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Júlia Lopes de Almeida
I
O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as pedras, bafejando
um ar de fornalha na atmosfera. Toda a rua de S. Bento, atravancada por veículos
pesadões e estrepitosos, cheirava a café cru. Era hora de trabalho.
Entre o fragor das ferragens sacudidas, o giro ameaçador das rodas
e os corcovos de animais contidos por mãos brutas, o povo negrejava
suando, compacto e esbaforido.
À porta do armazém de Francisco Teodoro era nesse dia grande
o movimento. Um carroceiro, em pé dentro do caminhão, onde ajeitava
as sacas, gritava zangado, voltando-se para o fundo negro da casa:
– Andem com isso, que às onze horas tenho de estar nas Docas!
E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa fantástica,
atirar as sacas para o fundo do caminhão, levantando no baque nuvens
de pó que os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabeludos mal cobertos
pela camisa de meia enrugada de algodão sujo: outros negros, nus da
cintura para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados.
Ao cheiro do café misturava-se o do suor daqueles corpos agitados,
cujo sangue se via palpitar nas veias entumescidas do pescoço e dos
braços.
No desespero da pressa, o carroceiro soltava imprecações, aos
berros, furioso contra os outros carroceiros, que passavam raspando-lhe a
caixa do caminhão, todo derreado para a aniagem das sacas, respirando
a poeirada que se levantava delas. Os outros respondiam com iguais impropérios,
que os cocheiros dos tílburis, em esperas forçadas, ouviam rindo,
mastigando o cigarro.
Os carregadores serpeavam por meio de tudo aquilo, como formigas em correição,
com a cabeça vergada ao peso da saca, roçando o corpo latejante
nas ancas lustrosas dos burros.
Transeuntes recolhiam-se apressados, de vez em quando, para dentro de uma
ou outra porta aberta, no pavor de serem esmagados pelas rodas que invadiam
as calçadas, resvalando depois com estrondo para os paralelepípedos
da rua.
Aqui, ali e acolá, pretinhas velhas, com um lenço branco amarrado
em forma de touca sobre a carapinha, varriam lépidas com uma vassoura
de piaçava os grãos de café espalhados no chão.
Com o mesmo açodamento peneiravam-nos logo em uma bacia pequena, de
folha, com o fundo crivado a prego. Era o seu negócio, que aqueles
dias de abundância tornavam próspero. Enriqueciam-se com os sobejos.
Assim, em toda a rua só se viam braços a gesticular, pernas
a moverem-se, vozes a confundirem-se, chocando nas pragas, rindo com o mesmo
triunfo, gemendo com o mesmo esforço, em uma orquestra barulhenta e
desarmônica.
A não serem as africanas do café e uma ou outra italiana que
se atrevia a sair de alguma fábrica de sacos com dúzias deles
à cabeça, nenhuma outra mulher pisava aquelas pedras, só
afeitas ao peso bruto.
Dominava ali o trabalho viril, a força física, movida por músculos
de aço e peitos decididos a ganhar duramente a vida. E esses corpos
de atletas, e essas vozes que soavam alto num estridor de clarins de guerra,
davam à velha rua a pulsação que o sangue vivo e moço
dá a uma artéria, correndo sempre com vigor e com ímpeto.
Já de outras ruas descia aquela onda quente, arfante de trabalho,
vinha da rua dos Beneditinos e vinha dos armazéns da rua Municipal,
todos atulhados de café, que esvaziavam em profusão para os
trapiches e as Docas, tornando-se logo a encher famintamente.
Em uma ou outra soleira de porta trabalhadores sentavam-se descansando um
momento, com os cotovelos fincados nos joelhos erguidos, salivando o sarro
dos cigarros, a saborear uma fumaça, olhando com indiferença
para aquela multidão que passava aos trancos e barrancos, na ânsia
da vida, num torvelinho de pó e gritaria.
De vez em quando, grupos de rapazinhos, na maior parte italianos, surgiram
nas esquinas e percorriam todo o quarteirão, às gargalhadas,
enchendo os bolsos com o café das africanas velhas, cujos guinchos
de protesto se perdiam abafados pelo ruído complexo da rua.
Dentro dos armazéns a mesma lufa-lufa.
No de Francisco Teodoro não havia paragem.
O primeiro caixeiro, seu Joaquim, um homem moreno, picado das bexigas, de
olhos fundos e maçãs do rosto salientes, gesticulava em mangas
de camisa, apressando os carregadores esbaforidos.
A porta, um capataz de tropa, mulato, furava com um furador tubular de aço
e latão todas as sacas que saíam, para que se escapasse pela
abertura uma mancheia de grãos. Os carregadores apenas retardavam os
passos nessa operação, e o café caia cantando na soleira.
Ao fundo, um rapazinho magro e amarelo, o Ribas, apontava num caderno o número
de sacas que levavam, rente à escada de mão por onde os carregadores
subiam para as tirar do alto das pilhas, correndo depois pelo asfalto desgastado
e denegrido do solo.
Tudo era feito numa urgência, obrigada a grande movimento.
Um sopro ardente de vida, uma lufada de incêndio bafejada por cem homens
arquejando ao mesmo tempo na febre da ambição, varava todo aquele
extenso porão negro, sem janelas, ladeado de sacos sobrepostos e adornado
nas vigas sujas do teto por infinita quantidade de teias de aranha, enredadas,
como longas sanefas viscosas de crepe russo.
De vez em quando, um ruído de cascata rolava pelo interior do armazém.
Era o café, que ensacavam na área do fundo, e que na queda das
pás desprendia um pó sutil e um cheiro violento.
Fora, chicotadas cortavam o ar com estalidos, e pragas rompiam alto, no som
confuso, em que vozes humanas e rodas de veículos se amalgamavam com
o estrupido das patas dos animais.
Alguns carregadores exaustos paravam um pouco, limpando o suor, mas corriam
logo, chamados pelos olhos de seu Joaquim, que ia e vinha, muito trêfego,
sungando as calças que lhe escorregavam pelos quadris magros.
– Aviem-se! aviem-se! temos hoje muito que fazer!
Era o seu estribilho.
E havia sempre muito que fazer naquela casa, uma das mais graúdas
no comércio de café. Dir-se-ia que o dinheiro aprendera sozinho
o caminho dos seus cofres, correndo para eles sem interrupção.
Ao lado do armazém e comunicando com ele por uma portinha estreita,
havia à esquerda o corredor e a escada, que levava ao escritório,
acima, no primeiro andar.
Em uma sala ampla, quadrada, de madeiras velhas e papel barato, o Senra,
guarda-livros, escrevia em pé, junto à escrivaninha colocado
ao centro. Em outra carteira trabalhavam mais dois ajudantes, um velho, o
Mota, de sorriso amável e modos submissos; e o outro, um moço
bilioso de barbinhas pretas, mal plantadas em um queixo quadrado.
Nessa sala o trabalho era silencioso. As penas não paravam, mal dando
tempo às mãos para folhearem os livros e as diversas papeladas.
Diziam-se frases sem se levantar os olhos da escrita, e as perguntas eram
apenas respondidas por monossílabos.
A um canto, sobre uma mesinha sólida, entre uma das janelas e a parede,
estava a prensa de copiar; e no outro canto, em um alto banco de madeira pintada,
a talha de filtro já enegrecida pelo uso. Pelas paredes, pastas de
molas, rotuladas, em filas, prenhes de contas, recibos e cartas a responder.
Ao fundo, entre a talha e o corredor da entrada, abria-se uma janela para
o negrume do armazém, sob uma clarabóia estreita, de pouca luz.
Era em um gabinete, ao lado, com uma janela para a rua e igual avareza de
mobília, que o dono da casa escrevia a sua correspondência, bem
repousado em uma larga cadeira de braços.
Ele ali estava, acabando de fechar uma carta.
Toda a sua pessoa ressumava fartura e a altivez de quem sai vitorioso de
teimosa luta.
Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os olhos garços
tranqüilos e os dentes brancos e pequeninos, tinha um belo ar de burguês
satisfeito.
Não era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a firmeza dos
seus passos pesados.
Um ou outro empregado vinha de vez em quando fazer-lhe uma pergunta, a que
ele respondia com paciência, indicando claramente as coisas, com minúcias,
para evitar confusões.
Francisco Teodoro, à sua larga secretária de peroba, dava a
face para o cofre de ferro, de trincos e fechaduras abertas.
Tinha ele por hábito, tornado já em cacoete, remexer com a
mão curta e gorda o dinheiro e as chaves guardadas no bolso direito
das calças. No começo da sua vida, dura de trabalho e de áspera
economia aquilo seria feito com intenção; agora representava
um ato maquinal, alheio a qualquer pensamento de avareza ou de orgulho de
posse.
Depois de muitas horas de trabalho febril, sem repouso, vinha o momento de
paragem, a hora do café, que um mulato moço, o Isidoro, levava
primeiro ao escritório, servindo depois os empregados do armazém.
Os degraus já gastos da escada rangiam então ao peso de um
comissário vizinho, o João Ramos, e do ensacador Lemos, da rua
dos Beneditinos, do Negreiros, da rua das Violas, e do Inocêncio Braga,
recentemente associado ao grupo. As duas horas reuniam-se sempre ali para
o cafezinho, descansando o corpo e desanuviando o espírito com palestras
de seu interesse e do seu gosto.
Nesse dia tinham soado já as duas, quando os negociantes apareceram.
Francisco Teodoro levantou-se e bateu com os pés, desenrugando as
calças.
– Homem! vocês tardaram…
– Culpa do Lemos…
E depois:
– O senhor está com a casa repleta!
– Tenho exportado muito café!
– Felizardo! aproveite a época, que não pode ser melhor!
Corria então o ano de 1891 em que o preço do café assumira
proporções extraordinárias. O movimento crescia e casas
pequenas galgavam aos saltos grandes posições.
– O que eu te invejo, disse o Ramos, único que ousava tratar Teodoro
por tu, não é a fortuna, é a mulata que te engoma as
camisas!
Os outros olharam rindo para o alvo e lustroso peitilho do dono da casa,
que saboreava o café, com ar satisfeito, de pé, com o pires
muito afastado do corpo, seguro na ponta dos dedos.
– Não é má essa, regougou o Lemos, o comendador Lemos,
da Beneficiência, franzindo o narizinho, submerso entre duas bochechas,
que nem de criança.
Depois de um riso fraco e desafinado, ouviu-se a vozinha aflautada do Inocêncio,
perguntando a Teodoro:
– Aqui seu vizinho Gama Torres é que fez um casão de um dia
para o outro, hem?
– Homem, sempre é verdade aquilo?!
– Se é!… tenho provas… Afinal, eu inspirei-o um pouco no negócio…
Fixaram todos a vista no Inocêncio Braga. Era um homem pequenino, magro,
com uns olhinhos negros, febris e um fino bigode castanho, quase imperceptível.
– Custa-me a crer nesses milagres… ponderou Teodoro, pousando a xícara
na bandeja que o Isidoro oferecia.
– Afirmo; questão de arrojo. Presumiu alta, abarrotou o armazém
e esperou a ocasião. O sogro ajudou-o, está claro…
– Não meditou nas conseqüências que poderiam sobrevir se
desse uma baixa.
– Quem fala em baixa?! Eu só lhe digo que o comércio do Rio
de Janeiro seria o melhor do mundo se tivesse muitos homens como aquele. Senhores,
a audácia ajuda a fortuna. Fiquem certos que o bom negociante não
é o que trabalha como um negro, e segue a rotina dos seus antepassados
analfabetos. O negociante moderno age mais com o espírito do que com
os braços e alarga os seus horizontes pelas conquistas nobres do pensamento
e do cálculo. O Torres é de bom estofo; é destes. Conheço
os homens.
Olhavam. todos para o Inocêncio com um certo respeito, reconhecendo-lhe
superioridade intelectual.
– O Gama Torres teve dedo, teve; sentenciou o Lemos.
E logo o Inocêncio acrescentou:
– Também aquele está destinado a ser o nosso Rottschild!
Teodoro contraiu as sobrancelhas. Ser o primeiro negociante, o mais hábil,
o mais forte fora sempre o seu sonho…
Voltando-se, inquiriu dos outros explicações miúdas
acerca daquele negócio fabuloso. O tempo favorecia as especulações,
e ele meditava no assunto, alisando a barba grisalha, rente às faces
gordas e macias.
O Negreiros, tendo dado volta à sala e enfiado pela porta do escritório
o seu enorme nariz de cavalete, virou-se para os outros e disse a meia voz:
– Que diabo! não posso acostumar-me a ver aquele velho como ajudante
de guarda-livros!
– Que quer você? murmurou Teodoro; o Matos empenhou. se por ele e afinal
a aquisição foi boa. Precisa mais do que os moços, e
como dá boa conta do recado não penso em substituído.
É assíduo.
– Outro esquisitão que você tem cá em casa é lá
embaixo o Joaquim… ninguém dirá que é o mesmo, lá
fora…
– Muito carnavalesco e metido com as damas, hem? Que se divirta, aqui trabalha
como nenhum. É uma praça de arromba: descansa-me.
– Ouvi dizer que ele vai casar com a Delfina do Recreio…
– Histórias! o rapaz é sério.
– Tolo é que ele não é, resmungou o Negreiros, procurando
o chapéu.
O Inocêncio despediu-se também; ia num pulo ao Torres. Os afazeres
eram tantos, que mal lhe davam tempo para engolir o café.
Quando ele saiu, olharam uns para os outros interrogativamente. O comendador
Lemos sentenciou:
– Este Inocêncio é espertalhão! Está aqui, está
diretor do banco. Não duvido que o Torres tivesse sido empurrado por
ele… Tem uma lábia!
– E sabe encostar-se a boas árvores. O Barros tem-lhe dado boas comissões
e não é à-toa que ele procura tanto agora o Torres…
Mete-se sempre na melhor roda… Aquele não veio de Portugal como nós,
sem bagagem e cheirando a pau de pinheiro; trouxe luvas e meias de seda…
O patife!
– São os que naufragam…
– Quando não vêm à caça e não têm
o jeitinho que este revela. Canta que nem um pássaro, para atrair a
gente!
– E uma inteligência superior! suspirou o Ramos, esticando com ambas
as mãos o colete sobre a barriga arredondada. Depois, refestelando-se
no sofazinho austríaco, teve uma ponta de censura para as coisas desta
terra: o governo era fraco, o povo indisciplinado. a cidade infecta.
Inda nessa manhã, vendo marchar um pelotão de soldados, sem
cadência nem ritmo, lembrara-se da maneira por que os soldados da sua
pátria andavam pelas ruas. As fardas eram mais bonitas, os metais mais
polidos, os passos iguaizinhos, um, dois, um dois; fazia gosto. E assim, em
tudo mais aqui, o mesmo relaxamento.
A maldita República acabaria de escangalhar o resto. Veriam.
Só no fim perguntaram pelas famílias.
– A propósito, perguntou o Ramos a Teodoro, aquela menina que vai
tocar violino no concerto dos pobres é sua filha?
– Que concerto?
– De amanhã, no Cassino. Foi a minha madama que leu isso num jornal…
– Pode ser… são coisas lá da mãe… a pequena tem
um talentão; o próprio mestre espanta-se.
– E bonita! vi-a um destes dias, observou o Lemos.
– Não, isso não! por enquanto ainda não se pode comparar
com a mãe… protestou Francisco Teodoro, com sinceridade e um certo
orgulho.
Os outros sorriram.
– Lá isso, você tem um pancadão. Feliz em tudo, este
diabo!
Houve uma pausa.
– Realmente, insistiu Francisco Teodoro, o Gama Torres deu um cheque valente.
Pois olhem, eu não dava nada por ele: um brasileirinho magro…
– E começou outro dia!
– De mais a mais, parecia acanhado… tímido…
– Qual! isso não! Conheci-o caixeiro, ali do Leite Bastos. Foi sempre
um atirado; ali está a prova: fez um casão de um dia para o
outro. Dou razão ao Inocêncio; aquele está talhado para
ser o nosso Rottschild…
– Vejam lá, rosnou o Lemos com a papada trêmula e um brilho
de cobiça nos olhinhos pardos, eu quis fazer o mesmo negócio
e lá o meu sócio é medroso e: tá, tá, tá,
é melhor esperar… Está aí!
– Fez bem, foi prudente! Deixem lá falar o Inocêncio. Senhores,
o comércio do Rio de Janeiro é honesto e não se tem dado
mal com o seu sistema, observou Teodoro.
– Sim, o Inocêncio aprecia isto de fora, por isso diz o contrário.
Chama o comércio do Rio de Janeiro de ignorante e de porco.
– Porco?! bradaram os outros, indignados.
– Porco, confirmou o Ramos com solenidade.
– Tudo mais aceito, o porco é que não engulo, observou do seu
canto o Lemos, o anafado.
Ramos sentiu saltar-lhe na língua esta resposta: "porque os animais
da mesma espécie não se devoram entre si". Ele confessava-se
seduzido pelas exposições de Inocêncio. Que talento!
– Mas, afinal de contas, que quer o Inocêncio?! perguntou Teodoro de
pé, cruzando os braços sobre o fustão alvo do colete.
– Queria… pensava encontrar aqui uma praça mais desenvolvida, maiores
transações, casas de mais vulto. Diz que não temos sabido
aproveitar as aragens. Que só trabalhamos com o corpo. Não o
ouviu?
– Com que diabo quereria ele que trabalhássemos?
– Com a inteligência. Está claro. E ele explicou a coisa bem.
O nosso comércio é formado por gente sem escola, vinda de arraiais…
Eu por mim, confesso, mal tive uns meses magros de colégio! Apanhei
muito e não aprendi nada.
Houve um curto silêncio, em que passou pelos olhos de todos a saudosa
visão de uma escola rudimentar, em um recanto plácido de aldeia.
Depois de um suspiro, Teodoro concluiu:
– Que venham para cá os doutores com teorias e modernismos, e veremos
o tombo que isto leva!
Entreolharam-se. A verdade é que tinham todos eles um soberano desprezo
pelas classes intelectuais. Dai um sorrizinho de expressiva intenção.
Mais um pouco de palestra sobre câmbio, transações da
bolsa e assuntos lidos no Jornal do Comércio do dia encheram um quarto
de hora, que passou depressa. Por fim saíram, falando alto, dizendo
que aquela casa cheirava a dinheiro.
Francisco Teodoro foi dar o seu giro pelo armazém. Vendo-o em baixo,
seu Joaquim acudiu logo, limpando com a língua o bigode molhado de
café, a dar informações.
– Estamos esperando o café do Simas.
O caminhão já está ai perto, mas ficou entalado entre
os carroções do Gama Torres. Tem sido um despropósito
o café que aquele armazém tem engolido.
– Já sei disso… bem. Mandou as contas para cima?
O outro disfarçou um movimento de enfado e mal respondeu: – sim, senhor;
depois gritou para o fundo:
– Seu Ribas!
O Ribas cruzou-se com Francisco Teodoro, que seguiu até a área,
a ver ensacar o café.
A gente do armazém tinha quizília à do escritório:
fazia valer os seus serviços, deprimindo os alheios. Seu Joaquim considerava-se
o melhor empregado da casa e gostava de mostrar as suas exigências.
Os caixeiros temiam-no; mas o pessoal de cima tratava-o com certa sobranceria,
que ele não perdoava.
O velho Mota, ajudante de guarda-livros, ainda era o único que lhe
dispensava amabilidades e cortesias; mas, mesmo nisso, seu Joaquim lia uma
adulação. Com certeza o velho só pensava em impingir-lhe
a filha, que mirrava os seus trinta anos em um sobradinho da rua Funda.
Francisco Teodoro demorou-se um bocado na área vendo ensacar. Passou-lhe
pela lembrança o tempo dos escravos, quando esse trabalho era exclusivamente
feito pelos negros de nação, com a sua cantilena triste, de
africanos. Era mais bonito.
As pás iam e vinham cantando, num compasso bem ritmado, sempre seguido
da voz: eh, eh! eh, eh! E agora mal se via um preto nesse serviço!
E ainda acham que as coisas se alteram devagar!
Rolavam pelo chão grãos de café, como contas de cimento,
e na atmosfera carregada mal se podia respirar. Francisco Teodoro voltou.
O caminhão estava já à porta e os carregadores andavam
nas suas corridas afanosas. Ia subir, quando foi abordado por um dono de trapiche,
o Neves, que, vendo-o da rua, entrou para lhe pedir a freguesia, acrescentando
para o estimular:
– Agora mesmo venho ali do seu vizinho, o Gama Torres, que me tem mandado
lá para o trapiche um número assombroso de sacas!
O movimento do armazém interrompia-os de instante a instante. Francisco
Teodoro mal respondia, com as idéias desviadas para outro sentido.
Pensava no Gama Torres, de quem toda a gente lhe falava com elogio e pasmo.
Aquele está destinado a ser o primeiro homem da praça dissera-lhe
o Inocêncio, e o Inocêncio era homem de bom faro e de êxito
seguro em todas as suas previsões… Mas esse papel, de financeiro
e negociante forte entre os mais fortes, fora o ideal de toda a sua longa
vida de trabalhos, de sujeições e de amarguras! Seria justo
que o outro, de um pulo, erigisse edifício mais alto e glorioso do
que o seu, cimentado com lágrimas, com sacrifícios, com tantos
anos de esforço e de labor?
Francisco Teodoro despediu-se do Neves sem o animar, apertando-lhe a mão
frouxamente, e subiu para o escritório. Na escada encontrou o mulato,
o Isidoro, com uma vassoura na mão.
– Cuidado!… não me tirem as teias de aranha do armazém…
– Não, senhor! Eu bem sei que aquilo dá felicidade…
Francisco Teodoro deteve-se um momento no escritório e entrou depois
para o seu gabinete.
Fora, o sol avermelhava as fachadas feias e desiguais das casas fronteiras.
Velhas paredes repintadas, outras com falhas de caliça, guardavam os
seus segredos e as suas fortunas. Um hálito ardente de verão
bafejava toda a rua febril.
Os armazéns, pelas bocas negras das suas portas escancaradas, vomitavam
ainda sacas e sacas de café, que as locomotoras e as carroças
levavam com fragor de rodas e cascalhar de ferragens para os lados da Prainha
e da Saúde, levantando do solo esmagado camadas de pó, que espalhavam
no ar cintilação de ouro.
II
Em caminho de casa, Francisco Teodoro, recostado em um bonde, persistia em
querer ler um jornal da tarde, sentindo que as idéias lhe fugiam para
um curso perigoso.
O êxito do Torres quizilava-o. Parecia-lhe que o outro lhe taparia
o caminho, impedindo-o de chegar ao seu último ponto de mira. Galgava-lhe
de assalto a dianteira, para se quedar sempre na sua frente, como um obstáculo.
Aquela conquista de fortuna, feita de relance, perturbava-o, desmerecia o
brilho das suas riquezas, ajuntadas dia a dia na canseira do trabalho. A vida
tem ironias: teria ele sido um tolo?
Talvez, e para se certificar reviu a sua vida no Rio, desde simples caixeiro,
quase analfabeto, com a cabeça raspada, a jaqueta russa e os sapatões
barulhentos
Tinha ainda fresco na memória o dia do desembarque – estava um calor!
– e de como depois rolara aos ponta-pés, mal vestido, mal alimentado,
com saudades da broa negra, das sovas da mãe e das caçadas aos
grilos pelas charnecas do seu lugar.
Pouco a pouco outros grilos cantaram aos seus ouvidos de ambicioso. O som
do dinheiro é música; viera para o ganhar, atirou-se ao seu
destino, tolerando todas as opressões, dobrando-se a todas as exigências
brutais, numa resignação de cachorro.
Assim correram anos, dormindo em esteiras infectas, molhando de lágrimas
o travesseiro sem fronha, até que o seu mealheiro se foi enchendo,
enchendo avaramente.
Aquela infância de degredo era agora o seu triunfo. Vinha de longe
a sua paixão pelo dinheiro; levado por ela, não conhecera outra
na mocidade. Todo o seu tempo, toda a sua vida tinham sido consagrados ao
negócio. O negócio era o seu sonho de noite, a sua esperança
de dia, o ideal a que atirava a sua alma de adolescente e de moço.
Não podia explicar, como, só pelo atrito com pessoas mais cultivadas,
ele fora perdendo, aos poucos, a grossa ignorância de que viera adornado.
A letra desenvolveu-se, tornou-se firme, e a sua tendência para contas
fez prodígios, aguçada com o sentido na verificação
de lucros. Relendo cifras, escrevendo cartas, formulando projetos, e observando
atentamente o seu trabalho e o alheio, tornara-se um negociante conhecedor
do que tinha sob as mãos, e um homem limpo, a quem a sociedade recebia
bem.
Não pudera ser menino, não soubera ser moço, dera-se
todo à deusa da fortuna, sem perceber que lhe sacrificava a melhor
parte da vida. Para ele, o Brasil era o balcão, era o armazém
atulhado, onde o esforço de cada indivíduo tem o seu prêmio.
Fora do comércio não havia nada que lhe merecesse o desvio
de um olhar…
Tempos de amargura e de esperança, aqueles!
Relembrando o passado, Francisco Teodoro procurava em si mesmo elementos
com que pudesse bater influências e opor-se às especulações
de afogadilho; devia encontrá-los espalhados pelos dias ásperos
da incerteza e os macios da prosperidade.
Esta retrospecção agradou-lhe; fixou vários períodos.
O tempo em que morara em um sobradinho do beco de Bragança, sombreado
pelo beiral muito estendido do telhado coberto de ervagem e pela sacada de
rótula de um verde sujo.
Embaixo e defronte, caixoteiros, martelavam em tábuas de pinho, cujo
cheiro dava ao beco imundo uma baforada fresca de floresta. E as marteladas
que lhe importavam, se poucas horas estava em casa! De dia o trabalho; de
noite o teatro ou a casa da Sidônia. Que seria feito da Sidônia?
Devia estar por aí em qualquer canto… e velha.
Aos domingos na chácara do Matos, o solo, os jantares à portuguesa,
e a hospitalidade paciente da boa D. Vica… Tudo lhe girava na memória,
suavemente, suavemente.
Fora no conforto daquela chácara, vendo-se cercado de considerações,
ao lado do amigo respousado e feliz, que ele sentiu a sua importância
e se lembrou que deveria haver na terra outras delícias; mas o seu
coração, cansado de uma luta formidável, negava-lhe novas
inclinações. A pátria esquecida não lhe acenava
com o mínimo encanto: a mãe morrera, a sua única irmã
tinha-se recolhido a um convento. Fechara-se uma porta sobre a sua meninice.
Sentia-se só; começava a cansar-se e a enjoar as mulheres fáceis,
com quem convivia em relações momentâneas. Mesmo a Sidônia
enervava-o com os seus arrufos… e as suas denguices.
Atirou-se a proteger as instituições do seu país, a
andar com medalhões e fazer mordomias na Beneficiência. No fundo,
não era só a distração que ele buscava, nem a
caridade que ele exercia; uma outra causa lhe filtrava nalma aquela vocação
para o beneficio…
E a comenda chegou.
Foi só depois de comendador que Teodoro se sentiu vexado daquela habitação
e se mudou para um segundo andar da rua da Candelária, que mobiliou
a vinhático, com exuberância de cromos pelas paredes. Achou,
ainda assim, que à sua casa alegre faltava qualquer coisa…
Viera-lhe a dispepsia. Que insônias!
Um médico, consultado, aconselhara-lhe uma viagem a terra ou o casamento,
para a regularização de hábitos. Ele achara cedo para
a viagem: solidificaria primeiro a fortuna. A idéia do casamento parecia-lhe
mais salvadora.
Para que lhe serviria o que juntara, se o não compartilhasse com uma
esposa dedicada e meia dúzia de filhos que lhe herdassem virtudes e
haveres?
No seu sonho começou a esboçar-se a idéia de um herdeiro.
Teria um rapaz, que usasse o seu nome, seguisse as suas tradições
e fosse, sobretudo, um continuador daquela casa da rua de S. Bento, que engrandeceria
com o seu prestígio, a sua mocidade, bem assente no apoio e na experiência
paterna. O filho seria a sua estátua viva, nele reviveria, mais perfeito
e melhor. Esse ao menos teria infância, seria instruído.
E tanto aquela idéia o perseguia, que num domingo de sol abriu-se
ao Matos, que acolheu com ar solene e discreto as confidências do amigo.
Lembrava-se muito bem da cara com que o outro lhe respondera:
– Sei o que você quer. Tivemos aqui na vizinhança uma família
que está mesmo ao pintar… Gente pobre, mas de educação.
A filha mais velha é a que lhe convém. Bonita e grave. Muito
digna.
Francisco Teodoro murmurou:
– Pois uma mulher assim é que me servia.
– O diabo é que elas vão de mudança para Sergipe…
Então acabou-se.
– Não se acabou tal. Por enquanto estão hospedadas em casa
de umas tias, no Castelo. Ainda é tempo de lá irmos fazer uma
visita… O resto fica por minha conta.
Foi por uma noite escura que ele, já mais por condescendência
que por curiosidade, entrou com o Matos na casa das senhoras Rodrigues, no
morro do Castelo.
Fazia frio; na rua um cão uivava longa, doloridamente.
Quem abriu a porta foi a mais velha das donas da casa, d. Itelvina. senhora
alta e seca, muito nariguda, vestida de lãs pardas. Os outros ainda
se cumprimentavam e já ela se sentava, erguendo o joelho agudo sob
a costura. Não tinha tempo a perder.
A outra senhora da casa andava por fora; Teodoro conhecera-a depois. Essa
era toda confiante e muito religiosa. Tinha ido à novena do Carmo com
as duas sobrinhas mais moças e o irmão, o velho Rodrigues.
Em uma sala vasta, quase nua, mal clareada por um lampião de querosene,
viu Teodoro, pela primeira vez, d. Emília, uma senhora bonita, de ar
majestoso e olhos trêfegos, e as suas duas filhas mais velhas – Camila
e Sofia.
Camila fazia crochê perto do lampião; Sofia refugiara-se para
um canto do canapé. queixando-se da cabeça. E a mãe começou
a falar com ar de sinceridade, muito demonstrativa. A cada instante o nome
de Camila saia-lhe da boca com um elogio. Era a filha mais velha e a mais
instruída: pilhara os tempos das vacas gordas, quando o pai exercia
um cargo lucrativo.
Os dedos de Camila apressavam-se no crochê; com certeza ela havia de
ter errado os pontos e sentido os olhares de Teodoro queimarem-lhe a pele,
que a tinha linda, de uma alvura azul de camélia.
D. Emília asseverava que a sua Mila, como a chamavam em casa, esquecia-se
das suas prendas, obrigadas pela necessidade a fazer serviços domésticos.
Francisco Teodoro comoveu-se com a idéia de que aquela mulher, talhada
para rainha, passasse os dias a picar os dedos na agulha ou a calejar as mãos
com o uso da vassoura ou do ferro.
Trabalhar! trabalhar é bom para os homens, de pele endurecida e alma
feita de coragem. Olhou para a moça com veneração.
Era bonita, alta, com grandes olhos aveludados, cabelo ondeado preto e uns
dentes perfeitos, muito brancos, mas que ela mostrava pouco, sorrindo apenas.
Da irmã Sofia, na sombra, mal se adivinhavam as feições.
A uma das frases, em que a abundância do amor materno lhe debuxava
as perfeições, Camila saiu de ao pé da luz e foi para
a janela olhar para o escuro.
Como correu depressa aquela noite!
Francisco Teodoro saiu tonto. O amigo ria-se: não lhe tinha dito?
Gabava-se de ser casamenteiro, levaria em breve tudo ao fim.
E dias depois o Matos pedia a mão de Camila para o amigo.
Começou então a série de presentes e de visitas. Mila
tinha sempre o mesmo embaraço e a mesma brandura de sorriso.
O que ela ouvia da família, não o podia adivinhar Francisco
Teodoro, que a sentia umas vezes reservada, outras vezes confiante.
Adiou-se a partida para Sergipe; houve doenças em casa, prolongação
do noivado. peregrinações de Teodoro por aquele morro do Castelo,
com raminhos de violetas para a Mila; todas as doçuras de namorado…
Casaram-se em um dia lindo.
Ele dera grandes esmolas aos pobres da igreja; Mila parecia um anjo entre
nuvens brancas…
Depois. a família partiu para Sergipe. O pai era chocho, mas levava
a carteira gorda. A mãe, com o seu modo de rainha destronada, e as
irmãs iam bem enroupadas e todas tranqüilas sobre o futuro de
Mila e do filho mais velho, o Joca, por quem Teodoro prometera olhar, e que
andava por aí, à-toa.
A sua maior comoção fora ao entrar em casa, na rua da Candelária.
Supusera sempre que ela apalpasse, com sofreguidão, todo o seu ninho,
na alegria de ser a dona, a senhora de tantas coisas compradas para o agasalho
do seu amor. Mas não: em vez de ir para o interior, Camila fora para
a sacada. Ele acompanhou-a.
Em frente, os telhados mais baixos sucediam-se irregulares, cortando-se em
linhas angulosas de um vermelho sujo; as casas, desiguais, acumulavam-se,
paredes ameaçando paredes, janelinhas de sótãos espiando
as telhas estriadas de limo, de onde emergiam chaminés negras e curtas,
baforando fumo.
Camila murmurava, como quem fala só:
– Se ao menos se visse o mar…
Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino reboou perto,
formidável, prolongando-se num som que era como um gemido da cidade
inteira. Mila ergueu-se com um estremeção e voltou para o perfil
da igreja o olhar estático.
Ele sorrira do susto, enquanto ela dizia:
– Como é alto!
Depois desse, vieram dias tranqüilos. A mulher bordava almofadas para
o sofá e emoldurava os cromos com musgo e flores secas.
Tinham-se acostumado um ao outro, viviam em paz, quando a Sidônia reapareceu
na vida de Teodoro, obrigando-o a desvios e infidelidades. Nem a pobre Camila
desconfiara nunca… Também, nada lhe tinha faltado e já devia
ser um regalo para ela cobrir de boas roupas o seu corpo de neve, ter mesa
farta, e andar pela cidade atraindo as vistas, no deleite da sua graça…
Então iam grandes remessas para Sergipe.
Um sorvedouro, aquela família, sempre exalando lamúrias em
todas as cartas, na sede insaciável de dinheiro.
Por esse tempo o seu grande desgosto era o cunhado, o Joca, que se lhe metia
em casa, com os seus maus costumes de vadio. Ele fora o causador de tantíssimas
querelas! E agressivo na sua indolência, mal humorado pelas dividas
do jogo, e ingrato! Má raça. Além do mais, pespegara-lhe
depois com a filha em casa, aquela pobre Nina, tão enfezada nos seus
primeiros tempos, fina como um caniço, e com uma tosse de cão,
que repercutia pelos corredores. Enfim, essa, ao menos, servira depois para
ajudar Camila a criar as filhas, que o Mário, esse já ela o
encontrara forte como um herói!.
O Mário…
No percurso da Carioca à praia de Botafogo, Teodoro foi assim reconstruindo
a sua vida, solidificando-a, pondo-a de pé. Era com essas memórias
de família e de trabalho, que ele se entrincheiraria contra os assaltos
das novas ambições.
O mar, muito azul, paletado de ouro aqui, desenhava já acolá
em grandes sombras negras o perfil dos morros. Uma aragem forte sacudia as
árvores, e folhas vinham redemoinhando no ar em vôos tontos.
Uns pequenos atiravam um cão da Terra Nova à água, e
as janelas dos palacetes mal se abriam aos esplendores de fora.
Perto do colégio, subiram para o bonde duas irmãs de caridade,
com ramalhetes de rosas. Teodoro conhecia-as, eram professoras da filha, e
distinguiam-no sempre, por sabê-lo religioso. Iam levar à ermida
da Copacabana aquelas flores, prometidas pela salvação de uma
aluna, que estivera às portas da morte.
Uma conversa simples, em dois minutos, foi como bálsamo para o espírito
fatigado do negociante.
Demais, ele achou bonito, comovedor aquilo: uma criança às
portas da morte, duas religiosas, um ramo de flores e a visão de uma
ermida sobre o mar…
Quando Francisco Teodoro chegou à casa, as suas filhas gêmeas,
Raquel e Lia, brincavam na chácara. Ao vê-lo abrir o portão,
as crianças atiraram-se para ele, que mal lhes passou os dedos pelos
cabelos; elas também pouco se detiveram e Teodoro atravessou o jardim.
O seu palacete era um dos mais lindos de Botafogo. No centro de um parque,
ele erguia os seus balcões por entre palmas estreladas de coqueiros
e copas de árvores bem escolhidas. Aquilo não fora obra sua;
tinha comprado a vivenda a um titular de gosto, cuja ruína o obrigara
a hipotecá-la quando a construção ia em meio e a vendê-la
logo depois de concluída.
A esquerda, uma escada de pedra, ladeada por uma grade florida, conduzia
ao terraço alpendrado do andar superior, onde muitas vezes a família
palestrava, à espera de descer para o jantar. Nessa tarde só
estava ali o filho mais velho, o Mário, todo derreado numa cadeira
de balanço. O pai foi andando, e ele mal esboçou um movimento
para levantar-se e dar-lhe as boas tardes.
Era já homem, muito moço ainda, e todo ele revelava preocupações
de luxo e cuidado da sua pessoa.
Na sala da frente falava-se com alegria.
– Temos visitas – pensou Teodoro, vendo chapéus de homem no cabide
da saleta.
Quando ele entrou na sala, a mulher dizia à filha:
– Vai ensaiar, Ruth!
A seu lado, sentado no mesmo divã, o dr. Gervásio Gomes desenhava
a lápis na carteira qualquer coisa que a fazia sorrir. Ele gabava-se
de ter jeito para a caricatura. Era um homem magro, nervoso, de quarenta e
três anos, trigueiro, e apurado na toilette. Era ligeiramente calvo,
tinha um olhar de que as lentes de míope não atenuavam a agudeza,
e um sorrizinho irônico, que lhe mostrava os dentes claros e miúdos
como os dos roedores.
Camila guardava um viço prodigioso de mocidade. Todo o Rio a apontava
como mulher formosa. Tinha herdado da mãe aquele ar de majestade, que
tanto impressionara Teodoro na primeira entrevista do Castelo, adoçado
por uma grande expressão de calma e de bondade.
Francisco Teodoro foi direito a eles e cumprimentou-os, sem se atrever a
roçar os lábios na face da mulher, com todo o escrupuloso pudor
das suas ações em família. Sentava-se já, quando
ela lhe disse com leve censura:
– Você não cumprimenta o capitão Rino nem o maestro?
Os outros estavam ao canto da sala, junto ao piano para onde Ruth se dirigia
com o violino na mão. Pedidas as desculpas, Teodoro voltou-se para
o capitão Rino:
– Muito me alegro de o ver aqui, capitão; quando chegou da sua viagem?
– Ontem.
– Você não imagina, interrompeu Camila; o capitão trouxe-me
um presente lindíssimo!
– Que foi? perguntou a meia voz o dr. Gervásio.
Francisco Teodoro enxugava com o lenço a calva rosada e luzidia. Mila,
voltando-se para o médico, explicou:
– Uma coleção de orquídeas do Amazonas; e prometeu mandar
vir para o lago uma Vitória Régia.
O doutor murmurou por entre dentes, em tom que só Camila pudesse ouvir:
– Isso de prometer é que não é bonito…
A moça relanceou-lhe um olhar, como a pedir misericórdia para
o outro, que palestrava agora com o dono da casa. – Não era bonito,
por que?!
O capitão Rino destacava-se entre todos na sala pelo seu tipo de louro
e pela robustez do seu corpo. Era alto, de ombros largos. Tinha as mãos
grandes, os olhos claros, de um azul de faiança, o bigode sedoso, como
que acabado de nascer, e a pele queimada pelos ventos do mar. Só se
lhe percebia a alvura da tez nos pulsos ou na raiz do pescoço, quando
ele atirava a cabeça e os braços nos seus gestos largos e desajeitados.
Havia qualquer coisa de infantil naquele homem grande, uma interrogação
tímida talvez no olhar, e um certo abandono, de pessoa pouco afeita
à sociedade. Vestia-se mal, usava gravatas de cores vistosas, abusando
do xadrez nos seus casacos de casimira mal feitos.
Ruth pôs-se em atitude; a mãe gritou-lhe:
– Imagina que estás diante do auditório!
Ela pareceu não a ouvir. Em pé, ao lado do piano, alta e espigada,
com a cabeça unida ao seu ombro estreito de menina, os cabelos negros
caindo-lhe em ondas sobre o pescoço moreno, os olhos de um verde límpido,
de água marinha, abertos para o vácuo, tinha um ar de sonâmbula
perdida em sonhos divinos. As mãos, longas e esguias, moviam-se com
segurança; o vestido branco, salpicado de florinhas amarelas, mostrava-lhe
um pouco das pernas finas, calçadas a preto.
O Lélio Braga, recém-chegado da Alemanha, o gordo maestro que
só falava de música ou de jogo, atacou o teclado vigorosamente.
Fez-se o silêncio em volta, mas por pouco tempo. Recomeçaram
as conversas em tom mais baixo. Ruth não ouvia ninguém; um brilho
quente. de sol, saia-lhe dos olhos verdes, voltados para a luz.
Só o capitão Rino parecia escutar a música, olhando
de esguelha para Camila. Abominava a confiança que ela dava ao outro,
ao magro dr. Gervásio, ali tão agarrado às suas saias,
dizendo-lhe coisas que a faziam sorrir. Tudo naquele homem o irritava: o seu
luxo, o seu tipo escanifrado e o seu ar de ironia, às vezes perversa.
outras insulsa.
Francisco Teodoro, nunca interessado por coisas de arte, nem mesmo pela música,
quebrava amiúde as reflexões do capitão Rino, interrogando-o
sobre assuntos do Norte, de puro interesse comercial.
Ainda vibrava no ar a última nota do violino, quando Nina, sobrinha
dos donos da casa, entrou na sala, com o seu modo simples que a tornava simpática
a toda a gente. Não era bonita: tinha o nariz grosso e alguns sinais
alourados na pele pálida.
– Você viu as parasitas? perguntou-lhe Camila.
– Sim; e, voltando-se para o capitão:
– Devemos conservá-las ao ar livre ou na estufa?
O capitão fez um gesto de ignorância.
Só à hora do jantar, Mário se reuniu à família.
A mesa, cheia de cristais e de prataria, tinha um aspecto festivo.
O dinheiro ganho à custa de trabalho gosta de impor-se a admiração
alheia. O dono da casa, refrescado no paletó de brim, não se
cansava de elogiar os seus vinhos e aludia amiúde à excelência
do cozinheiro.
Se alguém se esquivava a um copo de Bordeaux ou a um cálice
de velho Madeira, ele acudia animadoramente: – Beba, que esse é legítimo;
igual não se encontra com facilidade por ai.
Havia sempre excesso de iguarias; voltavam para dentro pratos complicados
intactos. A fartura passava ao desperdício. A copa atulhava-se de peças
grandes, em que as folhas de alface e os desenhos a rodas de limão,
de ovo, azeitonas e gelatina não disfarçavam a opulência
das carnes.
À cabeceira da mesa, Francisco Teodoro gostava de, espalhando a vista
por toda a longa superfície branca da toalha, vê-la bem coberta
de coisas caras e vistosas. Assim comia com apetite, gostosamente. Era o seu
triunfo na vida, que todo esse luxo representava, na única ocasião
em que lhe sobrava tempo para admirá-lo.
Os convivas eram instados para que comessem mais, comessem sempre! Com o
dr. Gervásio havia menos instâncias: conheciam-lhe os hábitos
de homem delicado. O capitão Rino era muito mais moço e trazia
da sua vida de mar valentias de estômago.
As crianças comiam à mesa, dirigidas por Nina, e faziam algazarra
e exigências.
Mário repreendia-as. achando intolerável que o pai consentisse
aquilo!
– O nome do seu vapor é…? perguntou ao capitão o dr. Gervásio,
ajeitando a luneta no nariz.
– Netuno.
– Amado de Anfitrite e das nereidas. O patrono deve pôr-lhe em perigo
o sossego…
– Por que?
– Porque assim moço, bonito, e com tal sugestão, de forte envergadura
precisa o senhor para resistir as seduções das sereias…
– Que ninguém viu nunca em mares brasileiros; respondeu o capitão
ingenuamente.
– Convirá não afirmar que não as haja também
em terras do Brasil, sublimou o doutor com um sorrizinho, descendo o olhar
para a pera que descascava.
Riram-se do embaraço do capitão, que murmurou, desviando a
vista de Camila:
– Os cantos das sereias não me seduziriam…
– Pois é pena; sem imaginação a vida do mar não
pode ter encantos. Se eu, em vez de médico, obrigado a deter-me com
o que há de mais prosaico na natureza. fosse… o capitão do
navio… perdão. do vapor Netuno, apegar-me-ia à mitologia,
faria dos seus deuses a minha florida e alegre religião, e afirmo que
seriam de gozo para mim as noitadas no convés, vendo ao clarão
das estrelas Vênus surgir das espumas e boiarem à tona da onda
negra os dorsos brancos das cinqüenta filhas de Nereu. Estou certo de
que não sentiria a tal melancolia das águas, de que às
vezes os senhores se queixam. Um homem de espírito nunca está
só…
O capitão sorriu e Francisco Teodoro falou com o seu modo sentencioso:
– Eles gozam a seu modo.
– Não gozamos, não; a vida do mar é dura.
O dr. Gervásio não pode sentir com sinceridade o que disse…
– Assevero-lhe que sim, capitão; e que parti de um princípio
de que parto para todos os atos da vida, convicto de que está no próprio
homem o remédio dos grandes males que o afligem.
– Se vai dizer isso ao pé dos seus doentes, ninguém mais o
chamará, replicou Camila.
– Chamarão; infelizmente chamam sempre. Ninguém tem absoluta
confiança em si. O homem, por mais que digam, ignora a força
de que vem revestido para a sua função. Para nós, a natureza
representa apenas o papel secundário da paisagem; é o acessório,
a mise-en-scène da Vida, em que nos atormentamos mutuamente num alarido
de inferno: Não valia a pena criar coisas tão bonitas para serem
tão mal aproveitadas. Palavra de honra! se fosse possível conceber
o riso, ou apenas o sorriso na face tremenda do Onipotente, eu diria que Ele
às vezes escarnece de nós. A sua saúde, capitão!
– Obrigado…
– Um dia meto-me no seu Netuno e atiro-me para o Norte. Curiosidade, simplesmente;
tenho mais vontade de ver os crocodilos do Amazonas do que… eu sei lá,
as bailarinas da Grande Ópera.
– Homem, dizem que a carne do crocodilo é boa, disse Francisco Teodoro.
– Há também quem afirme que a das bailarinas ainda é
melhor! observou o médico.
Camila riu-se; e depois:
– E eu que nunca vi um grande vapor por dentro!
– Quer ir comigo a Manaus?
– Não; mas quero que o capitão Rino nos convide para visitar
o Netuno.
O moço marítimo balbuciou, corando:
– Oh! minha senhora…
Interrompeu a frase, porque ia dizer: – eu não desejo outra coisa!
mas achou mais acertado e mais simples acrescentar somente: – quando quiser.
– Será num domingo, para que meu marido vá também. E
as crianças poderão ir?
– Por que não?
Lia e Rachei bateram palmas.
Ao café, no terraço, Camila declarou preparar um grande baile
para o S. João, quando Ruth completasse os seus quinze anos.
O dr. Gervásio protestou: que viesse o baile, mas com outro pretexto.
– Por que?
– Porque a noitada de S. João mete medo às casacas e assusta
os decotes. É um santo que só quer luz de fogueiras, com altas
labaredas e crepitações, e ainda há de ser no campo,
entre gente rude que dance em torno às chamas.
É uma festa que me dá idéia de uma cerimônia ritual,
de povo primitivo. Deixe o seu baile para outro dia.
– Mas depois eu não terei pretexto…
– Meu Deus! não é preciso descer uma pessoa a dar explicações
aos amigos, quando se trata de os divertir…
Francisco Teodoro ouvia o dr. Gervásio com muito acatamento, reconhecendo-lhe
superioridade intelectual.
Devia-lhe a vida dos filhos, confessava, e dessa dívida não
se cansava de se dizer devedor.
Aprovou a idéia do baile, fizessem o que quisessem, a bolsa estava
aberta. E a propósito, deixando os outros a tagarelar no terraço,
ele fechou os olhos e pensou na felicidade do Gama Torres… Quem sabe?…
talvez que ele pudesse fazer o mesmo; a época era favorável,
o café rendia como nunca e ainda havia esperanças de alta…
Se fugisse aquela ocasião… perderia o ensejo de triplicar de um dia
para o outro a sua já grande fortuna… Fora sempre um homem de ação,
de recursos, como ficar na retaguarda, imbecilmente, deixando que a outro,
novato, se conferisse o título de Rottschild brasileiro? O ciúme
do seu nome de negociante enchia-o até aos olhos. Encadeou e desencadeou
pensamentos calculistas.
Ter a maior fortuna, tendo partido do nada, era toda a sua ambição.
Repetia a qualquer a humildade da sua origem, espreitando o efeito dessa confissão.
Ser o mais poderoso, o mais rico, o mais forte, tendo partido do nada, não
seria ter alcançado a suprema glória na terra?
E, ali mesmo, bem recostado na sua cadeira de balanço, com o papo
cheio de ótimas iguarias, as mãos descansadas nos braços
da cadeira, ele insensivelmente passou do sonho ao sono.
Na meia sombra do lusco-fusco, os olhos do capitão Rino fulguravam,
espiando com raiva os rostos do médico e de Camila, que se contemplavam.
Mário atravessou o terraço de charuto na boca, em direção
à rua.
– Onde vais? perguntou-lhe a mãe.
– Ao teatro; respondeu ele sem se deter. descendo a escada.
– Este rapaz… este rapaz… resmungou por entre dentes o dr. Gervásio,
em modo de censura.
Camila desculpou-o; o filho tinha gênio e era muito independente. Não
queria contrariá-lo; para quê? a vida é curta, cedo viriam
as amofinações. O juízo havia de vir com a idade…
Em baixo, no jardim, entre os grupos rescendentes de heliotropo e de jasmins
do Cabo, as crianças e Ruth faziam roda à Noca, mulata antiga
na família, que lhes contava histórias de fadas e de príncipes
encantados. Vendo Mário dirigir-se para o portão, a mulata chamou-o
com familiaridade de amiga velha:
– Seu Mário, escuta aqui!
– Que é, Noca?
– Onde é que vai?
– Se eu não morrer pelo caminho, hei de chegar ao teatro.
– Não morre; eu ainda esta noite sonhei que v. estava amortalhado
e que d. Nina chorava sangue… Sonhar com morte é sinal de saúde.
Traga umas balas para mim.
– Vá esperando.
O capitão Rino despediu-se e desceu também para a rua, ouvindo
a voz da Noca recomeçar numa melopéia:
"Minha varinha de condão, pelo poder que Deus vos deu, fazei…"
Nina, encostada à grade, via Mário afastar-se; e lá
em cima, no terraço, ao lado do marido adormecido, Camila curvou-se
para o dr. Gervásio e beijou-o na boca.
III
Com preguiça de ir visitar as velhas tias do Castelo, Camila mandava
às vezes as filhas pequenas abraçá-las em seu nome, em
companhia da Noca. As senhoras Rodrigues moravam ainda na mesma casa, do alto
do morro, muito antiga, com janelas de guilhotina e paredes encardidas. D.
Itelvina raramente punha os pés na rua, e era tida como a criatura
mais sovina do bairro. A outra, d. Joana, pouco parava ali, sempre voltada
para Deus. Era viúva de um colchoeiro rico, morto de anasarca, de quem
sofrera os maus tratos que, na inconsciência das bebedeiras, ele lhe
ministrava.
Viviam as duas, desde crianças, na mesma casa. herança dos
pais, conservando os seus hábitos de vida mesquinha, amando ideais
diversos: uma concentrando-se, outra expandindo-se, consistindo para uma todo
o prazer da vida em aferrolhar, esconder bens que as mãos apalpam,
e para a outra só em querer bens dos céu, com que a alma sonha.
Nada sorria naquela habitação árida e velha. No quintal,
nem um canteiro de flores; uma horta raquítica a um canto, algumas
laranjeiras e um coradouro de grama pisada e sem viço, estendendo-se
ao lado de um tanque de cimento, coberto por um telheiro de zinco. Dentro,
o mesmo desconforto: salas com poucos móveis e esses antiqüíssimos,
alcovas vazias e uma cozinha de tijolos desgastados pelas pancadas do machado
na lenha.
D. Itelvina percebia bem que para conservação daquela casa
deveria fazer-lhe grandes consertos; mas queria obter da irmã que os
fizesse todos por sua conta, o que lhe parecia mais justo.
A irmã é que não olhava para os buracos dos ratos e
pouco lhe importava isso, desde que a sua Senhora do Carmo e o Santo Cristo
do seu oratório estivessem alumiados, a sua alma em graça, e
que ela pudesse fazer todas as semanas as suas confissões aos frades
capuchinhos. Esta era, para tudo mais, uma senhora apática, gorda,
de uma brancura anêmica, com uns olhos castanhos muito doces e um cabelo
grisalho, curto, que ela cobria com uma touca preta de folhos encrespados.
A saia, redonda e muito franzida, mostrava-lhe os pés largos calçados
em duraque, e nas mãos finas e cor de leite tinha, ora o livro de orações,
de folhas já denegridas nos ângulos, ora um rosário de
âmbar benzido pelo bispo.
D. Itelvina não parecia crente. Ninguém a vira nunca de joelhos
em frente ao oratório da irmã. Nenhum traço comum lembraria
a outrem o parentesco entre ambas. Esta era alta, morena, de nariz forte e
lábios finos.
A voz de d. Joana tinha inflexões brandas, de alma tranqüila;
a voz de d. Itelvina tinha sibilações desafinadas, rouquejava
ou tinia, como se saísse de órgãos de bronze. Nem as
duas sabiam se se amavam.
Os bons dias e as boas noites eram trocados sem o beijo que confraterniza
as almas. Toleravam-se, talvez, apenas; apoiavam-se mutuamente, guiadas pelo
hábito.
Quando Noca bateu à porta, ouviu gritos dentro: e calculou logo que
haviam de ser da Sancha, a negrinha órfã que d. Itelvina explorava
nos arranjos da casa.
Abriu-se uma janela com bulha impaciente e apareceu a cara de d. Itelvina,
indagando de quem batia.
– Ah!… é você, Noca! espera um pouco, eu já vou.
Dentro, a mulata explicou:
– Nhâ Mila mandou fazer uma visita e saber das senhoras como estão…
ela não pôde vir, porque…
– Já sei. Isto é muito alto… se fossem as escadas do Lírico,
muito que bem!… casa de pobres…
– Não, senhora! não é por isso, nem as senhoras são
pobres! até dizem todos o contrário…
– Dizem? mentiras! mentiras só… Como vai seu Teodoro?
– Muito bem.
– Excelente homem; aquilo é que foi sorte grande. bem Noca?
– Foi. sim. senhora; ele é bom… tem as suas impertinências…
mas a gente já sabe que é do gênio…
– Qual o quê! Mila deve adorar o marido de joelhos! Neste tempo já
não é fácil uma moça pobre e sem proteção
encontrar um casamento assim!
– Isso é verdade… Ela também é muito boa.
– Você se lembra de quando eles moravam na Lapa, que até você
levava as vezes comida da casa de pasto para dar às meninas?
A mulata sorriu com ar contrafeito e modesto, lembrando-se que não
fora da Lapa que ela levava os restos dos jantares da casa de pasto do amigo,
mas que subira muitas vezes a ladeira do Castelo, com a trouxinha das carnes
na mão, para matar a fome de Mila e das irmãs, então
hospedadas em casa de d. Itelvina.
– De quem é que você matava a fome, Noca? perguntou uma das
crianças.
– De uma viúva que já morreu, emendou Noca. impelindo as duas
crianças para o quintal. Vão ver a vista… vão ver os
sinais dos vapores… dizia ela.
D. Itelvina olhou para as duas meninas e não pôde conter-se
que não exclamasse:
– Tanta gente com fome e tanto dinheiro esperdiçado em vestidos de
crianças! Mila teve sempre propensão para o desperdício…
Bonitos aqueles vestidos! onde os compraram?
– Vieram de Paris…
– Uhm… não haviam de ser baratos… aquilo é seda, não
é?
– É, sim, senhora. D. Joana saiu?
– Já se sabe! anda pelas igrejas… Se não fosse eu, não
sei como havia de ser!…
Noca reparou, olhando para a alcova do oratório, aberta para a sala,
que a lamparina estava apagada.
D. Itelvina continuou:
– Joaninha só vem a casa para comer e dormir. Tem quem lhe faça
tudo… Ela não tem aparecido por lá?
– Não, senhora…
– Ruth por que não veio?
– Ficou dando lição. Ela tocou no concerto e foi muito festejada.
– Há de lucrar muito com isso… Aposto em como não sabe ainda
pregar um remendo ou fazer um vestido.
– Graças a Deus, ela não precisa disso!…
– O futuro o dirá…
– Credo!
– Pois sim. Cada vez bendigo mais a educação que minha mãe
nos deu. Havia dias, que era desde manhã até de noite a fazer
balas…
– Tal! e d. Joana não deu pra outras coisas?
– Ela sempre foi religiosa, mas depois de viúva refinou! E ainda se
queixa de doente, que tem faltas de respiração e pernas inchadas!
– Coitada!
– Minha filha! ela vai daqui a pé a São Francisco, ao Carmo,
a Penitência, a S. Bento a qualquer igreja da cidade!… As cinco horas
já está nos Capuchinhos; e à tarde aqui na igreja do
hospital ela canta com as Irmãs e com os soldados. E cada ladainha
que Deus nos acuda!
Alguém batia à porta, e d. Itelvina, tendo espreitado pela
janela, voltou-se apressada e foi reacender a lamparina do oratório.
Sancha apareceu, com os beiços inchados pelo excesso do choro, e,
dependurando a chave da porta da rua, segura pela argola a um prego na sala,
olhou com ar de queixa muda para a Noca.
A negrinha não teve resposta: a outra disfarçava, contemplando
as paredes nuas e desbotadas da sala. Pela janela aberta via-se parte de um
paredão desmoronado, e lá em baixo, em um fundo largo e fresco,
um trecho de mar muito azul.
D. Joana entrou, arfando de cansaço, e sentou-se logo na primeira
cadeira, ao pé da porta. Sancha tirou-lhe a touca, guardou-lhe o livro
e os rosários, e sumiu-se, sem ter descerrado os lábios nem
enxugado os olhos vermelhos e inundados.
– Hoje a igreja estava repleta; falou monsenhor Nuno… foi um grande sermão,
de muito proveito e de muita fé! disse d. Joana, e depois de uma pausa:
O Noca! Mila não vai nunca às solenidades religiosas?
– Vai todos os domingos à missa.
– Bem! que não deixe perder a sua alma! Entretanto, eu rezo por todos.
A pena que eu tenho é de me custar tanto a ajoelhar… estou com as
pernas cada vez mais inchadas…
– Isso é cisma, resmungou d. Itelvina, retirando-se para o interior.
Noca aconselhou logo um remédio prodigioso, benzido com cinco cruzes.
Ela sabia dessas coisas. Todos de casa a consultavam. A botica era a chácara,
com as suas folhas, cultivadas umas, agrestes outras; conhecia-lhes os segredos,
roubava-lhes os filtros mais sutis e aplicava-os acompanhando-os com orações
especiais dos santos mártires. Era sempre a Noca quem avisava às
pessoas da família qual o melhor dia para cortar o cabelo, para fazer
uma viagem ou para tomar qualquer mezinha. Sabia as voltas da lua, e traduzia
os sonhos que lhe contavam, com palavras de convicção inabaláveis.
Criara todos os filhos de Mila, desde o Mário até a Biju, a
pequena mais nova, já morta.
Quando ela descia o morro, as crianças queixaram-se de fome e confessaram
que não queriam voltar a visitar aquelas tias, que não lhes
davam nada. Nem um bocadinho de pão!
Na praça do Castelo, Noca, com pena, entrou numa quitanda, posta de
nova, brilhando ainda nas tigelas lavadas e no barro das panelas e das moringas
à venda, e comprou frutas para as duas meninas.
Portuguesas, de saias curtas e grandes arrecadas de ouro, iam e vinham, parando
umas à porta, com pimpolhos ao colo, e outras falando alto, para dentro.
A dona do negócio respondia a todos, conversando em ar de mexerico
disfarçado, com a mulata, a quem via pela primeira vez.
– A senhora vem morar por aqui?
– Não; vim fazer uma visita.
– A quem, inda que mal pergunte?
– As senhoras Rodrigues; conhece?
– As duas velhotas da travessa de S. Sebastião?
– Essas mesmo.
– Não conheço outra coisa!… E depois de uma pausa, em que
procurou conter-se, abalou a falar sem interrupção. As senhoras
Rodrigues eram muito conhecidas no bairro. Diziam que d. Itelvina passava
horas da noite escavando o quintal, à procura dos afamados tesouros
guardados pelos jesuítas. Os vizinhos viam uma luz de lanterna movendo-se
na sombra do pátio, rente do chão, e olhavam-na com desconfiança.
A outra era uma beata de igreja e já constava que legaria os seus
haveres ao frei Ângelo, dos Capuchinhos. A quitandeira afirmava que
elas haviam de passar mal da barriga: decorriam semanas sem que lhe comprassem
nem um triste feixe de espinafres ou molho de cenouras!
Quando a Noca atravessava o largo. com uma criança por cada mão,
para a ladeira do Seminário, sentiu que alguém, que viera correndo,
lhe puxava pela saia; voltou-se e viu Sancha, com ar de medo, de quem foge.
– Ué! que é que você quer?
– Quero pedir um favor, disse a negrinha, meio engasgada, tirando do seio
uma nota de quinhentos réis amarrotada e imunda.
– Que favor, gente?
– Quando voltar cá, traga isto de arsênico, disse ela apontando
o dinheiro que oferecia à mulata.
– Arsênico… pra quê?! você tá doida?!…
– Pra nada! faça esta esmola…
E como Noca não estendesse a mão, a negrinha atafulhou-lhe
o dinheiro, rapidamente, pela gola aberta do vestido, e voltou como uma seta
para casa.
As cabritas andavam soltas, pastando nas ervas altas; o sol, muito quente,
alvejava roupas estendidas nas ruas, e na torre repintada dos Capuchinhos
o sino badalava, convidando à oração.
Noca apressava-se, arrastando as duas meninas. Logo que chegaram em baixo,
ao largo da Mãe do Bispo, viram Mário passar no seu phacton,
que ele mesmo guiava numa posição correta. O lacaio, sem descruzar
os braços, sorriu para as crianças; o moço passou sem
reparar nas irmãs, que ficaram com ar despeitado, agarradas à
saia da ama.
O carro de Mário rodava já pela Guarda Velha, e Noca pensou:
– Ele vai ali, vai direitinho pra casa da tal Luiza, o diabo da mulher que
lhe come os olhos da cara. Uhm! eu gostava de ver só!
O Dionísio dizia-lhe que a francesa era bonita e muito chic, e ela
sentia no fundo uma curiosidade doida de conhecer a amante daquele rapaz que
embalara nos braços e cujo corpo redondinho e nu suspendera tantas
vezes no ar para o fazer rir. E fora uma criança alegre; agora não
era; pelo menos em casa mostrava-se tão arredio e tão sério…
Noca suspirou e, depois de um levantar de ombros, prosseguiu nos seus pensamentos:
– Afinal de contas, faz ele muito bem: a mocidade passa e o dinheiro foi
inventado para se gastar. Ele gosta dela, acabou-se! Sabe Deus o que o pai
teria pintado também; agora fala e quer dar leis ao coração
do filho… Está-se ninando! Aquele! pois sim! Cada um sabe de si…
Ao mesmo tempo sentia piedade pela Nina. Em casa a única pessoa que
percebera aquele segredo fora ela. Sabia, mas calava-se muito bem calada;
para que arranjar barulhos? Era tão boa, a pobre, tão fácil
de contentar… Bastava ver os vestidos e os chapéus que ela usava:
tudo restos de Mila e de Ruth, que ela fuchicava a seu jeito… Nunca pedia
nada, nunca se punha em evidência, ninguém se lembrava até
quando ela fazia anos! Talvez houvesse em casa um pouco de ingratidão
para com a moça; mas de quem era a culpa? Mário era um rapaz
rico e de bom gosto, havia de escolher mulher mais bonita, que fizesse vista
numa sala.
Noca adorava o Mário; achava-o lindo, com o seu pequeno buço
alourado e os seus olhos negros e pestanudos. A flor da família. Aquele
saíra à mãe.
Passava um elétrico. As crianças sacudiram a mulata:
– Vamos, Noca!
– Vamos mesmo, que hoje de mais a mais é terça-feira…
A conselho do dr. Gervásio, Camila, tinha marcado as terças-feiras
para as suas recepções. No começo houve relutância
em casa. Francisco Teodoro gostava de porta franca em todos os dias da semana;
a mulher mesmo, criada em velhos hábitos, vexava-se, porque era da
vontade do dr. Gervásio, e para esse o portão da chácara
estava sempre escancarado.
Ele não faltava, ia vê-la todas as manhãs, almoçar
no lugar de Francisco Teodoro, que almoçava sozinho duas horas antes,
a um canto da grande mesa vazia; e ali o médico ensinava àquela
gente o meio de se conduzir na sociedade, polindo-lhe o espírito, alterando-lhe
os gostos, fazendo-a preferir o queijo que ele preferia, o vinho de que mais
gostava, as aves e as caças com molhos delicados, de fino paladar.
A docilidade dos ouvintes fazia-o abusar de frases que ele formava para si,
com o pretexto de as dizer aos outros, e que eles todavia aceitavam, com agrado,
num sorriso…
Nessa manhã de terça-feira estavam ainda ao almoço,
quando palmas gordas estrondearam no jardim.
– É o Lélio, exclamou Ruth, arrancando o guardanapo do pescoço
e correndo para fora.
Era o Lélio; viram-lhe o gordo cachaço, através dos
vidros da porta, quando ele passou pelo corredor.
Com o pretexto de mostrar ao médico um anel novo, Camila estendeu-lhe
a mão, luminosa de pedrarias.
Ela segurou-a, e erguendo-a um pouco, observou:
– Tal qual cinco raios de sol… Sim, senhora! é muito perfeito este
brilhante… mas este outro ainda é mais límpido…
Ela sorria, e Nina excedeu-se em tratar das crianças, com o propósito
de desviar a atenção.
– Ponha este anel fora… É indigno da sua mão.
– Brilha tanto!
– É do Cabo, muito amarelo.
– Mas eu estimo-o muito. Foi o primeiro presente de meu marido.
– Vá lá, que não são mal escolhidas as suas pedras,
precisa ainda de um brilhante negro, para este dedinho que está muito
nu. Tenho pena que não goste de pérolas; só quer pedras
que fulgurem.
– Só.
– Vamos para a saleta? trouxe-lhe um livro.
– Versos?
– Não. Um romance.
– Ainda bem; eu só gosto de versos quando o senhor mos lê. Uma
monotonia…
Na saleta, ela abriu a veneziana e aspirou com força o aroma dos resedás
plantados junto à parede. Gostava dos aromas fortes. Que dia maravilhoso!
depois, voltando-se:
– O livro?
– Está aqui.
– Já leu?
– Já. Trata-se de um amor um pouco parecido com o nosso.
– Então não leio. Sei que está cheio de injustiças
e de mentiras perversas. Os senhores romancistas não perdoam às
mulheres; fazem-nas responsáveis por tudo – como se não pagássemos
caro a felicidade que fruímos! Nesses livros tenho sempre medo do fim;
revolto-me contra os castigos que eles infligem às nossas culpas, e
desespero-me por não poder gritar-lhes: hipócritas! hipócritas!
Leve o seu livro; não me torne a trazer desses romances. Basta-me o
nosso, para eu ter medo do fim.
– Não tenha remorsos; o nosso não acabará!
– Remorsos… remorsos de quê? Pensa, Gervásio, que, desde o
primeiro ano de casado, o meu marido não me traiu também? Qual
é a mulher, por mais estúpida, ou mais indiferente, que não
adivinhe, que não sinta o adultério do marido no próprio
dia em que ele é cometido? Há sempre um vestígio da outra,
que se mostra em um gesto, em um perfume, em uma palavra, em um carinho…
Eles traem-se com as compensações que nos trazem…
– Isso tudo é vago e abstrato.
– Não importa. E as denúncias? e as cartas anônimas?
e os ditos das amigas? Eu soube de muitas coisas e fingi ignorá-las,
todas! Não é isso que a sociedade quer de nós? As mentiras
que o meu marido me pregou, deixaram sulco e eu paguei-lhas com o teu amor,
e só pelo amor! E assim mesmo o enganá-lo pesa-me, pesa-me,
porque, quanto mais te amo, mais o estimo. É uma tortura, que parece
que foi inventada só para mim!
Gervásio não respondeu. Tinha o rosto contraído por
uma expressão de ciúme. Passado um instante de silêncio,
murmurou:
– É extraordinário! Nunca julguei possível essa dualidade
no amor. Bem, levarei o livro. Adeus.
– Não vá… É cedo… suplicou ela, com o rosto pálido,
iluminado de paixão. Fique, é tão bom! Falarei noutra
coisa. Ensine-me a falar, Gervásio.
– Então, diga lá: – amo-te!
E ela ia repetir as palavras, quando as gêmeas entraram ruidosamente.
Lia queria saber se aqueles navios pretos e pequeninos espalhados no jornal
eram do capitão Rino.
– São; disse a mãe abreviando explicações. Vão
brincar.
– Ih! então ele é muito rico?
– É. Vão brincar.
As meninas saíram e o assunto voltou-se para o capitão Rino.
O médico ridicularizava-o; queria-lhe mal, achava-o medroso, desenxabido,
muito branco e muito louro, mal ajeitado nas suas roupas. Faltava-lhe linha,
faltava-lhe espirito, faltava-lhe tudo.
Camila negava alguns desses defeitos. Não tivesse medo: ela só
o amaria a ele, em toda a sua vida.
Havia já muito tempo que duravam aquelas conversas na saleta, com
a porta escancarada para o corredor, por onde de vez em quando Lia e Rachel
passavam a galope, montadas nas bengalas do pai.
Era à despedida que o médico e Camila marcavam, de vez em quando,
uma entrevista, longe, em uma casa da Lagoa, conservando o respeito por aquela
habitação onde as filhas dela viviam soltas, procurando-a a
todos os instantes, irrompendo de trás dos reposteiros ou dos móveis
quando menos se esperava.
Ruth acabara a lição. Sentiram os passos do maestro na escada.
Gervásio ergueu-se.
– Pois vou-me por aí abaixo com o Lélio. São horas das
moças bonitas na rua do Ouvidor…
– Quem me dera que eu fosse uma delas… A velhice aterra-me por sua causa!
E ela vem perto!…
– Tontinha! e não sou eu mais velho?
– Sim… mas os homens! Quando eu tiver os cabelos brancos, você…
– Eu já não terei nenhuns; serei calvo como um ovo e viveremos
ambos com as doces recordações destes dias lindos. O nosso romance
não acabará nunca. Dê-me as suas ordens, minha senhora,
aqui temos o Lélio.
Camila acompanhou-os ao terraço.
– Que me diz da sua discípula? perguntou o maestro.
– Muito bem. Vai muito bem! Daqui a pouco ensina-me…
– Ela é estudiosa…
Enquanto os dois conversavam, o médico passeou o olhar pelo jardim;
depois disse, voltando-se indignado para Camila:
– O bandido do seu jardineiro está-lhe fazendo bordaduras de horta
nos canteiros! Aqueles feitios em gramas são de péssimo gosto.
Não tem instinto, o desgraçado! Hei de lhe arranjar outro, um
francês acostumado a lidar com as flores de Nice. Verá a diferença.
Este errou a profissão: nasceu para tosquiador ou barbeiro. Nem faz
idéia do que seja a harmonia das cores; veja aquele canteiro: o roxo
ao pé do escarlate, o amarelo ao pé da cor de rosa! Tudo mais,
folhagens, folhagens e folhagens! Parece que estes jardineiros fazem guerra
às flores! Pois cá terá o outro amanhã. Vamos,
maestro?
Eles desceram e Camila ficou encostada a um pilar, até ver sumir-se
o médico; já ele tinha desaparecido e ainda ela olhava, pensativa…
Fora há anos… Gervásio morava já na mesma casa do
Jardim Botânico, bem instalado, mas muito metido consigo.
Uma noite alguém lhe batera à porta com desespero: era Francisco
Teodoro, que o chamava como o médico mais próximo, para ver
uma filha que ardia em febre. Tinham ido provisoriamente para a sua vizinhança,
mudando o Mário, que tivera a palustre. O médico não
clinicava, mas cedeu à súplica e salvou Ruth de um tifo. A doença
fora longa; a menina só aceitava remédios e alimento pela mão
do seu amiguinho, que tratou também de fortalecer Mário.
Camila dizia então em êxtase, ao marido:
– Devemos ao dr. Gervásio a vida de nossos filhos! A entrada fora
vitoriosa; justificava o ascendente do médico na família…
Nem fora no começo, que ele amara a Camila. Nesse tempo ela não
sabia ataviar-se, nem fazer sentir a sua formosura. Tinha os modos de uma
boa mãe tranqüila, muito banal, com discursos longos e choradeiras
sobre a morte muito recente de uma filhinha, que a tornavam fastidiosa. As
gêmeas, então de meses, andavam sempre pendentes do paletó
branco da mãe. Gervásio odiava aqueles casacos e aquelas queixumeiras
insípidas. Mas esse tempo de prostração foi passando,
e ela ascendeu pouco a pouco, vagarosamente, para a formosura e para a graça.
A evolução não foi rápida, mas refletida e suave,
como impelida por sopros delicados. Quando o médico percebeu quanto
Camila mudava, e que essa transformação lenta e visível
se fazia ao influxo dos seus gostos, da sua convivência e do seu espirito,
começou a observá-la com redobrada atenção, cultivando
o prazer de a tornar outra, como que uma obra sua.
Camila usava agora as cores claras, que lhe iam bem, e que ele lembrara como
mais propicias à sua tez, adquiria expressões novas, inflexões
de voz em que nascia uma música de tons coloridos e harmoniosos, fazia
outros gestos, mais graves e adequados, pisava de maneira mais ritmada e linda,
deixou os perfumes misturados, sem escolha, por uma essência branca;
e tudo isso o fazia sem esforço, obedecendo à sugestão.
O médico via nela um reflexo perfeito da sua alma, sentia-se voltar-se,
subir para ele; e absorvido nesse estudo delicado – apaixonou-se por ela.
Levada na fascinação, só tarde Camila percebeu o perigo
que a solicitava; então quis fugir: fechou-se em casa, esquivava-se
a ver o médico; mas, através da distância e do silêncio,
ele percebia o amor dela a chamá-lo, a envolvê-lo todo com uma
obsessão de loucura.
Passaram-se assim longos meses, de saudades sem remédio, de agonias
mudas; até que um dia, cansados de uma resistência inútil,
deixaram-se vencer.
Para ele, aquela ligação foi uma vitória; para ela como
que uma lei da fatalidade. Era, porque tinha de ser, e a sua culpa salvaguardava-se
nessa crença.
Havia muito tempo já que o dr. Gervásio entrara na intimidade
da família: sabia-lhe os segredos, lia todas as cartas vindas de Sergipe,
com repetidas súplicas de dinheiro. Conhecia a história do nascimento
de Nina, filha natural do Joca, e da fugida dele, comprometido em uma casa
de comércio; estava ao fato das doenças de d. Emília,
das habilidades caligráficas do velho Rodrigues e da já alta
soma de dotes dada por Francisco Teodoro às cunhadas.
Tudo isto soubera-o ele naturalmente, sem indagações; vinha
na enxurrada dos desabafos, no desafogo da amizade.
Com o amor, ele tinha também sabido conquistar a estima. Toda a gente
em casa o ouvia com atenção.
Um pouco dessas coisas vagou pelo espírito de Camila, quando, de olhar
alongado, seguia ainda a sombra de Gervásio.
Dias depois ela dava os últimos retoques à sua toilette, em
frente ao espelho, quando o marido entrou.
Camila viu-o no cristal e perguntou-lhe mesmo sem se voltar:
– Por que é que você veio tão cedo?
– Por duas razões…
E, como ele interrompesse a frase, ela, sobressaltada, acercou-se, indagando
com interesse:
– Você está doente? Diga!
– Não tenho nada filha, descansa.
Camila sorriu e voltou tranqüila para defronte do espelho.
– Então que motivos são esses?
– O primeiro, para pedir ao Gervásio que vá ver o Mota, que
quebrou hoje uma perna.
– O velho?
– Sim.
– Coitado! como foi?
– Foi no serviço da casa; descendo de um bonde. Já está
medicado, mas quero que o Gervásio lhe examine o aparelho. O segundo
motivo é mais sério.
Sem afastar do rosto o pompon do pó de arroz, Camila interrogou com
certa indiferença:
– Que é?
– Trata-se do senhor seu filho.
– Meu só?! tem graça…
– Tem graça? Olha, eu é que lhe não acho nenhuma! Está
um bilontra, o tal senhor!
– Aposto, meu velho, em como você vem por aí com recriminações?!
– Certamente; porque afinal de contas a verdadeira culpada das patifarias
do rapaz és tu.
Camila voltou-se indignada, com os olhos chamejantes de cólera:
– Hem?!
– Não dou um passo na rua que não encontre um credor do senhor
meu filho.
– Ora, logo vi, por causa de dinheiro! murmurou com desprezo Camila, olhando
para o marido de alto.
Ele continuou:
– É preciso que tu o advirtas hoje mesmo, que isto não pode
continuar assim! Ele mantém agora uma mulher: dá-lhe vestidos,
carro, casa, e com toda a imprudência faz contas em meu nome! Já
se viu coisa igual?!
– É a mocidade…
– Já me tardava! É a pouca vergonha. Que trabalhe.
– Trabalhar! Mário tem só dezenove anos!
– Faze mãos de veludo para o acariciar; é o costume! Mas por
que não lhe fala você?
– Por que?! Ora essa! porque lhe vou à cara, se ele me retruca com
um desaforo!… Esperarei mais alguns dias… fala-lhe tu primeiro. Não
lhe metas caraminholas na cabeça; dize-lhe que trabalhe, que siga o
meu exemplo, e que se deixe de fazer dívidas. Isto competiria a mim,
bem sei, se não me tirasses toda a força moral.
– Eu?!
– Sim. Acodes com panos quentes sempre que o repreendo, e ai está
o resultado… E viva um homem honrado para isto! Uma vergonha…
– Ora! também você exagera. Mário tem boa índole.
É incapaz de uma ação má. Descanse; eu falarei
com ele. Quer então que eu o aconselhe a deixar a tal mulher?…
– Por força! Uma perua velha, que o há de comer por uma perna.
Não posso estar continuamente a desembolsar contos de réis para
os caprichos da tal madama. Podes dizer ao Mário que, ou ele toma caminho,
ou o mando para a Marinha.
– Já não está em idade disso, nem eu me separo de meu
filho!
– Temos outra. Faze o que quiseres; hoje fala-lhe tu, e se ele não
seguir outro caminho, terá de se haver comigo. Diabo, tenho outros
filhos!
– Coitado do Mário! tu nunca o amaste muito…
– Han! Eu?! eu é que nunca o amei? Oh! senhores… está bom,
está bom, falemos noutras coisas… Acalma-te… e veste-te á
vontade. As Gomes já estão ai: vi-as no jardim com a Ruth.
– Que me importam a mim as Gomes!
Francisco Teodoro chegou-se à janela, afastou a cortina e olhando
por entre os vidros, informou com voz amável:
– Lá está também o capitão Rino… Aí
estava um bom casamento para a Nina, hem? Gosto dele, parece um excelente
rapaz… apesar da procedência.
– Que procedência?
– Homem! a mãe morreu às mãos do marido, por crime de
adultério… Enfim, isso já foi há tantos anos, que ninguém
se lembrará do caso…
– Você lembrou-se.
– Ora, porque ainda ontem me falaram nisso.. Bom casamento para a Nina…
bom casamento!…
Camila sorriu com desdém e tratou de abotoar melhor o seu broche de
pérolas, sobre a escumilha cor de rosa do peitilho. Coitada da Nina…
pois sim!
– Muito bem! lá chegam o Lélio e o Gervásio… Sou muito
amigo do Gervásio, mas olha que ele também é um esquisitão.
Não diz nada a gente da sua vida, lá dos seus princípios…
Com a intimidade que lhe damos era natural que soubéssemos mais dele
que toda a gente; e afinal sabemos só o que todos sabem. Aqui para
nós, não simpatizam geralmente com ele por aí; dizem
que ele nunca escreveu uma linha e que vive a criticar livros e autores…
Realmente, ele não perdoa a ninguém. Pois vou falar-lhe. Até
já.
Antes de sair, Teodoro contemplou a mulher, ajeitou-lhe os caracóis
da nuca e, atraindo-a, quis beijá-la; ela porém esquivou-se
com um movimento rápido. Francisco Teodoro riu-se e saiu pensando consigo:
– Todas as mães são assim! Só porque lhe falei do filho…
Em baixo, Ruth colhia flores para as visitas, que se agrupavam sob as ramas
abundantes da mangueira. As Gomes, a mãe e duas filhas moças,
eram indefectíveis: todas as terças-feiras lá iam, houvesse
mau ou bom tempo. A velha era uma senhora toda cheia de preconceitos e escrúpulos,
e com a cabeça recheada de receitas, tanto medicinais como culinárias,
que ela oferecia a toda a gente que lhe ficasse ao alcance da voz. As filhas
eram espertas, cantavam ao piano e ao violão e vestiam-se com graça,
fazendo valer panos baratos.
O capitão Rino examinava as palmeiras com a atenção
de um botânico, enquanto o maestro e o dr. Gervásio cumprimentavam
as senhoras.
Francisco Teodoro apareceu risonho, com as duas mãos estendidas para
a querida sra. d. Inácia Gomes, que se levantou remexendo as sedas
farfalhantes do seu vestido cor de pinhão. Que excelente seda aquela!
já passara por três feitios diferentes, e ainda era aquilo que
se via!
– Cara senhora, então, o amigo Gomes?
– Vem logo; ah! ele tem muito trabalho, não imagina.
– Sei, sei… a vida foi feita para as mulheres. E ainda elas se queixam!
Só se fala por ai em emancipação e outras patranhas…
A mulher nasceu para mãe de família. O lar é o seu altar;
deslocada dele não vale nada!
Todos concordaram; e Francisco Teodoro passou adiante, puxando o dr. Gervásio
para uma aléia mais solitária do jardim:
– Vou pedir-lhe um obséquio. Lá um dos meus empregados, um
ajudante de guarda-livros, o Mota, quebrou hoje uma perna, ao descer de um
bonde. O homem foi tratado na farmácia do Souto, mas… sabe que esses
aparelhos feitos assim à pressa não inspiram confiança;
peço agora ao amigo que amanhã vá lá vê-lo.
– Perfeitamente. Onde mora?
– Na rua Funda, tenho aqui o número…
Francisco Teodoro sacou de um bilhete escrito a lápis.
– Rua Funda? Onde é isso?
– É no outro mundo, lá para os lados da Saúde.
Enquanto Francisco Teodoro conversava com o médico, Camila desceu
a escada exterior do palacete, olhando de relance para todos.
As Gomes acharam-na muito bonita e, intimamente, espantavam-se de não
verem nela o menor sinal de decadência. Aquela pele alva e macia, aqueles
cabelos negros sem um fio branco, aqueles dentes perfeitos e brilhantes, sem
um toque sequer de ouro que atestasse a passagem dos anos e das mãos
dos dentistas, faziam-na parecer sempre a mesma Camila dos tempos da Lapa,
em que d. Inácia a conhecera.
Vendo-a descer tão bonita, o capitão Rino corou até
à raiz dos cabelos e foi ele o último que se aproximou, tocando-lhe
de leve nos dedos estrelados de anéis.
Nina, que espreitava de cima, achou a ocasião oportuna para mandar
pelo criado a bandeja de prata com o vermute.
– Por que não subiram?
– Estamos bem. A sua Ruth tem feito as honras da casa. E como ela está
crescida; já não lhe ficam bem os vestidos curtos…
– Não diga isso ao pé dela; apesar de que estou certa de que
não toleraria as caudas; é muito criança e tem modos
de rapaz. Não imagina, d. Inácia, que fantasia a desta menina!
Não sei como se arranja, mas a verdade é que se encarrapita
nas árvores com o seu violino; e faz gosto ouvi-la tocar lá
em cima. Diz que é para fazer concertos com os passarinhos. Veja se
eu a posso por de vestidos compridos. Que horror!
– Ah! mas é preciso perder este costume; ela já tem os seus
treze anos…
– Quatorze… quase quinze! mas não parece.
– Isso de trepar nas árvores é para rapazes; uma menina de
educação tem deveres…
Ruth interrompeu o discurso da velha, trazendo-lhe uma manga-rosa muito perfumada.
– Não fale mal de mim, d. Inácia; aqui tem a senhora uma fruta
colhida por mim lá nos cocurutos da árvore. Se eu não
tivesse ido buscá-la a senhora não a teria agora…
– Ai está…
D. Inácia cheirou a fruta, com força, cerrando os olhos papudos;
e depois, voltando-se:
– Camila, você já comeu geléia de manga?
– Não me lembra…
– Pois é gostosa e fácil de fazer; olhe…
Enquanto d. Inácia desfiava a receita do doce, Camila olhava para
ela, ouvindo o murmúro de outras vozes, querendo distinguir as palavras
do médico e do capitão, sorrindo imbecilmente, destacando de
longe em longe uma ou outra coisa, um elogio ao Netuno, da esquerda, ou um
– espreme-se e põe na peneira – da direita.
Nesse dia Mário não apareceu ao jantar e Francisco Teodoro
queixou-se dele ao dr. Gervásio, em um vão de janela, num desabafo
de sentimento.
Gervásio ouvia-o calado, mordendo o charuto, dando-lhe razão,
sem dizer contudo uma única palavra. Teodoro assegurava:
– A mãe tem um coração de pomba, incapaz de fazer nem
pensar no mal. A bondade excessiva leva aos desatinos… aquele filho é
o mais velho e ela encontrou nele toda a sua ternura… não lhe levo
a mal, – é mãe. Repare que para com as meninas ela é
mais severa!
O dr. já observara isso mesmo; nessa mesma noite ele aconselhou Camila
a que fizesse a vontade ao marido, reprimindo o filho. Ele conhecia a amante
de Mário: era uma francesa gananciosa, podre de rica, de cabelos pintados
e carne mole. Não valia nada e arruinara muita gente boa.
Camila prometeu que faria valer a sua autoridade materna e envolveu-se na
conversação geral, fugindo daquele assunto irritante.
A noite foram outras visitas, dois negociantes solteiros e duas moças
da vizinhança, as Bragas.
Francisco Teodoro acoroçava os jogos e as músicas, acolhendo
entre os joelhos gordos, ora a filha Rachel, ora a Lia, que se a tiravam para
ele estonteadas, amarrotando os bordados dos seus vestidos brancos, interrompendo
com as suas corridas e risadas a conversa dos grandes. E foi no meio daquele
barulho, que um dos negociantes, o Negreiros, da rua das Violas, se lembrou
de falar das operações comerciais do Gama Torres, com elogio
e assombro.
Uma das Gomes, a Carlotinha, cantava modinhas ao piano com uma graça
picante, que a mãe tolerava a custo e que fazia rir muito as outras.
O capitão refugiou-se em uma janela. Ruth foi ter com ele: o moço
ao princípio não lhe prestou atenção; seguia,
através das cortinas, os olhares trocados entre Camila e Gervásio.
Seriam todos cegos, só a ele caberia descortinar aquele amor, tão
evidente?
Ruth, derreando a cabeça para trás, olhava para o céu
tranqüilo. Houve um largo espaço de silêncio entre ambos.
Ruth disse por fim, sem abaixar os olhos:
– Que parecerá a terra, vista de lá…?
– Uma gota de luz…
– Ainda bem; alegra-me saber que vivo em uma estrela. E como elas hoje estão
bonitas! Se Deus me desse a escolher uma, eu ficaria embaraçada. Olhe,
repare para aquela, como é grande e suave!
– É Vésper…
– Linda, linda, linda!
– Levanta mais os olhos, para acolá; repare para o Cruzeiro, como
está límpido hoje! Maravilhosa noite!
– Sim… estou vendo… cinco estrelas brilhantes em um lago negro. Por que
é tão escuro aquele pedaço do céu ao lado do Cruzeiro?
– Porque não tem astros.
– Deveria ter sido por ali que Lúcifer caiu.
– Por que?
– Fez um rasgão no filó dourado. Por isso Deus pôs ali
a cruz, para que o diabo não tornasse a passar pelo buraco.
O capitão sorriu.
– Se eu fosse pássaro, continuou ela, gostaria de voar à noite….
– Como as corujas.
– Não. As corujas são feias, metem medo, e eu só gosto
do que é bonito. Quereria ser uma ave branca e com asas tão
fortes que me levassem até acima das nuvens. Desde pequenina que eu
gosto de olhar para o céu e que me desespero por não poder voar…
Às vezes sonho que estou voando… e é tão bom!
O capitão Rino lembrou-lhe que fosse ao Observatório do Castelo,
o que lhe seria fácil, visto ter lá família na vizinhança.
Assim veria bem a lua e a cor das estrelas.
Interessado por aquela imaginação ardente, o capitão
Rino explicava à menina os nomes das estrelas, sentindo roçar-lhe
pelo ombro o cabelo dela, vendo-lhe na transparência luminosa do olhar
a chama de uma curiosidade insatisfeita.
Ele tinha uma linguagem clara, mas interrompia as frases de vez em quando,
com sobressalto, voltando-se para a sala atraído pela voz de Camila.
Ruth nem percebia a causa nem reparava mesmo naqueles movimentos e continuava
a interrogá-lo, com o olhar aceso para o grande céu iluminado.
Rebentaram palmas, lá dentro. Carlotinha acabara uma modinha requebrada,
e andava muito faceira pela sala, desafiando as Bragas para uma valsa.
– Quem toca?
Judith foi para o piano, que atacou com força e pedal.
Apesar do barulho, Francisco Teodoro discutia com o Negreiros o arrojo do
Gama Torres, atribuindo ao acaso o êxito da famosa empresa, o que o
amigo negava, afirmando o tino especial do outro.
Estava calor, os leques de papel adejavam como borboletas nas mãos
das moças. Carlotinha, não logrando dançar com o Rino
nem com o Negreiros, atirou-se aos braços da Terezinha, a mais moça
das Bragas. E as duas rodopiaram pela sala.
Duas horas depois o negociante acompanhava as visitas até ao portão.
D. Inácia ia desde a porta de braço com o marido, o Gomes, um
velhote gordo, de grandes lunetas de tartaruga. As Bragas, muito faladoras,
prometeram à Carlotinha e à Judith moldes de casaquinhas modernas,
como as que traziam vestidas. Camila acompanhava-as também, retardando
o passo, entre o dr. Gervásio e o capitão Rino, que não
dizia nada, recebendo em cheio o eflúvio daquela noite sem par! Um
bonde passou e as Gomes partiram. Nina ficara em cima, acomodando a casa,
vendo fechar as janelas da sala.
O médico chegou-se então para Francisco Teodoro, perto do gradil,
à espera de outro bonde para o Jardim. Camila sentou-se, olhando-lhe
para o perfil doce, ensaiando uma confissão que não lhe saía
nunca dos lábios trêmulos. Camila abandonava-se, parecia provocar
essa grande palavra, como se não bastassem a sua vaidade de mulher
os amores do amante e do marido.
Assim imaginou o capitão Rino, todo penetrado do aroma e do encanto
dela. A mão de Camila pousara no banco, e ele então, com o mesmo
gesto esquivo e assustado, apertou-a de leve; ela levantou-se, com modo brusco,
sacudida por um arrependimento, culpando-se da sua leviandade, e partiu logo
para a luz clara do luar, deixando o capitão na sombra da árvore.
O olhar do Gervásio indagou logo de tudo, enquanto o marido falava
em coisas indiferentes. Foi nesse instante que lá em cima, no terraço,
toda voltada para a lua branca, Ruth tocou no seu violino uma sonata harmoniosa
e larga.
Embaixo fizeram pausa na conversa, com as almas suspensas naquela música
e naquela noite.
Sentado no mesmo banco, o capitão Rino olhava com desespero para o
vulto claro de Camila, que lhe fugia e se chegava para o seu amor feliz, toda
embebida na poesia daqueles sons. Fechou os olhos para não ver…
A doçura da música enchia tudo de um sentimento ignoto, prolongado…
Uma estrela cadente riscou o espaço com um fugitivo fio luminoso. Camila
apontou-a com o dedo.
A sonata abria-se numa harmonia ampla e intensa, quando de repente Teodoro
gritou para cima:
– Não são horas de música. Para a cama!
Depois, em um murmúrio satisfeito:
– O diabo da pequena tem sentimento, hem?
– Tem mais do que isso, afirmou Gervásio: tem talento, tem inspiração!
– Tanto esta é aplicada, quanto o irmão… Bem! lá vem
o seu bonde, doutor!
O médico, despediu-se à pressa e correu; o capitão Rino
vencia a custo a sua comoção e saiu também, descendo
a pé pela rua abaixo, apesar dos pedidos de Teodoro, que esperasse
ali mesmo outro bonde para a cidade.
Camila entrou em casa antes do marido e procurou imediatamente a Noca, que
vigiava o sono de Rachel e de Lia.
– Mário já entrou, Noca?
– Não senhora. Dionísio já veio há que tempos
e disse que seu Mário ficava lá…
– Lá?… Em casa da tal Luiza?!
– É…
– Se meu marido sabe! Olhe… se ele perguntar, você responda que Mário
entrou com exaqueca, e que por isso não foi à sala. Ouviu? Diga
que ele está dormindo.
– E se ele amanhã perguntar a Dionísio?
– Você previna primeiro o rapaz.
– Também não sei pra que seu Mário faz assim; só
pra meter a gente em embrulhos.. –
– Tem paciência, Noca… ele é criança… Amanhã
eu lhe darei conselhos…
– Hum… Lia entornou o óleo da lamparina no chão, e eu já
fico esperando aborrecimentos. É sabido: azeite entornado, desgosto
em casa!
– Cala a boca; lá vem seu Teodoro. Boa noite, Noca!
Francisco Teodoro girou pela casa, verificou se estava tudo bem fechado e
fez à mulata as perguntas previstas pela mulher. Depois, já
a caminho do dormitório, voltou-se e foi dizer-lhe:
– Olhe, Noca, se a enxaqueca do Mário aumentar, sempre será
bom dar-lhe uma pastilha de antipirina…
– Sim, senhor, eu vou ver…
Francisco Teodoro saiu, e a criada suspirou, vexada, abaixando a cabeça.
IV
Era meio-dia, quando o dr. Gervásio saltou do bonde e encaminhou os
seus pés bem calçados para a rua dos Beneditinos.
Já o trabalho descia torrencialmente por toda a larga rua. Carroções
fragorosos abalavam os paralelepípedos, ameaçando esmagar tudo
que topassem adiante, numa chocalhada, aos arrancos dos burros alanhados pelas
correias dos chicotes. Carroceiros vermelhos, de grenha suja e pés
gretados, esbofavam-se agarrados aos grilhões dos varais, saltando
diante das rodas, na bruteza selvagem da sua lida.
Ao alarido das vozes confundidas, misturavam-se o cheiro do café cru
e a morrinha do suor de tantos corpos em movimento, como que enchendo a atmosfera
de uma substância gordurosa e fétida, sensível à
pele pouco afeita a penetrar naquele ambiente.
Através dos cristais da sua luneta de míope, o dr. Gervásio
olhava para tudo com o seu ar curioso, de cabeça erguida e narinas
dilatadas, como se o olfato o ajudasse também um pouco a conhecer o
porquê e o destino de todas aquelas coisas.
Com a bengala suspensa, os dedos das luvas irrompendo-lhe do bolsinho do
veston, a cartola luzidia, a gravata clara, picada pelo brilho faulante de
um rubi, ele atravessava como um estrangeiro aquelas ruas, só habituadas
aos chapéus de coco, às roupas do trabalho diário, alpacas
e brins burgueses, ou aos trapos imundos dos carregadores boçais.
Como tivesse perdido o endereço do velho Mota, teve o dr. Gervásio
de subir ao escritório de Francisco Teodoro. No armazém, em
baixo, a grita do negócio tocava à loucura: pareciam todos impelidos
por molas flexíveis de movimentos rápidos; eram máquinas,
não eram homens, aquelas criaturas nunca dobradas ao peso do cansaço…
O dr. Gervásio, presumindo-se de forte pela sua ducha fria e a sua
ginástica de quarto, espantava-se da maneira lépida por que
aqueles homens tiravam as sacas do alto das pilhas e as punham aos ombros.
O seu braço fino, mas valente, sentia-se humilhado diante daqueles
bíceps de atletas.
Francisco Teodoro sorria-se do seu espanto, e para que ele não perdesse
de novo o endereço, chamou um rapaz do armazém, o Ribas, e mandou-o
acompanhar o médico até a casa do enfermo.
– Será melhor assim; disse ele, não haverá perigo de
errar o caminho, porque, conquanto você seja carioca, nesta parte da
cidade, olhe que é mais estrangeiro do que eu!
O Ribas sacudiu a poeira do chapéu, enterrou-o até as orelhas
enormes, e, balançando os longos braços sem punhos, dentro dum
casaco enfiado à pressa, caminhou adiante, todo vergado, como um velho…
E por toda a rua de S. Bento, ele guardou aquela compostura, sem relentar
os passos nem voltar a cabeça. Entrado na da Prainha, modificou a atitude
de caixeiro em serviço, foi-se deixando ficar atrás, até
marchar ao lado do médico, morto por lhe pedir um cigarrinho.
O dr. Gervásio percebeu-lhe a vontade.
Deu-lhe cigarros.
Atravessavam o largo da Prainha, que o sol alcatifava de ouro. Fazia calor.
Ribas lembrou:
– Se o senhor quiser tomar alguma coisa, aquele botequim é muito bom.
– Não tenho sede.
– É que lá para diante não há nenhum que preste…
"O rapaz quer cerveja, pensou consigo o médico;. pois façamos
a vontade ao rapaz".
Entraram no botequim. Em uma salinha estreita, com cromos nas paredes e papéis
de cor no lampião de gás, havia três mesinhas vazias e
uma ocupada por dois ciganos angulosos, que gesticulavam largamente, sacudindo-se
nas suas longas sobre-casacas ensebadas. Tudo às moscas. O dono da
casa veio, com ar sonolento, pedir as ordens; o dr. Gervásio deu-lhas,
olhando para um violão pousado no balcão, e de que se dependurava
uma larga alça de cadarço vermelho.
Aquele instrumento abandonado sugeriu-lhe a idéia das noitadas de
modinhas amorosas pelas estreitas ruas do bairro. Ou na treva, ou à
claridade baça do luar, aqueles prédios teriam ouvidos com que
escutassem músicas vagabundas? Afigurava-se-lhe que não. A fadiga
dos seus dias rudes tornaria de chumbo o seu sono, impassível a sua
alma cansada. Por mais que o trovador berrasse, a sua voz chegaria lá
dentro como um leve zumbir de abelhas…
O dono do botequim julgou ver no olhar do médico um reparo ao desleixo
da sala e arrebatou a viola para dentro.
"Foi-se a única nota pitoresca", pensou Gervásio,
atirando os níqueis para a mesa.
Continuaram calados o seu caminho. E era um caminho todo novo para o médico,
que o achava interessante na sua fealdade, extravagante no seu conjunto de
velharias e sobejidões.
A novidade do meio dava-lhe um prazer de viagem: becos sórdidos, marinhando
pelo morro; casas acavaladas, de paredes sujas; janelas onde não acenava
a graça de uma cortina nem aparecia um busto de mulher; caras preocupadas,
grossos troncos arfantes de homens de grande musculatura, e ruído brutal
de veículos pesadões. faziam daquele canto da sua cidade, uma
cidade alheia, infernal, preocupada bestialmente pelo pão.
Subiam a rua da Saúde. Chegando à esquina do beco do Cleto,
dr. Gervásio olhou: ao fundo, no mar muito azul, barrava o horizonte
um vapor do Lloyd.
Pontas finas de mastros riscavam de escuro o espaço límpido.
Em terra vinham marinheiros aos grupos, baloiçando-se nos rins. Portugueses
levavam cargas, em carrinhos de mão, para um trapiche.
Foi logo adiante que um grupo de moleques irrompeu furioso, cercando o Ribas,
exigindo-lhe os dez tostões do jogo da véspera. Eram quatro:
um caboclinho de olhos negros e vivos, um negrinho retinto, um menino loiro,
que os outros denominavam o Bota – por trazer uma bota velha suspensa de um
barbante a tiracolo -, e um italianinho sardento, sem pestanas.
– Venham os dez tostões! venham os dez tostões que você
ficou devendo ontem no jogo… reclamavam.
E o Ribas defendia-se, hipocritamente:
– Que jogo? Eu?!
– Sim, senhor, não se faça de engraçado!
O menino loiro exigiu a entrada do dinheiro para a bota: ele era o caixa;
os companheiros romperam em assobios e chufas.
Dr. Gervásio apressou o passo, deixando o Ribas numa roda-viva de
provocações.
Que se arranjasse.
A curiosidade instigava-o a andar para diante; por bom humor talvez, sabia-lhe
bem aquela caminhada. Tinha um olhar curioso para cada fachada arruinada,
e parou com um sorriso, vendo em uma janela de vidros quebrados um vaso de
cravos brancos.
As flores trouxeram-lhe à idéia as mulheres.
Reparou então que só topava com homens, caixeiros apressados
ou embarcadiços de pele queimada, ou mulatos chinelando nas calçadas,
mostrando os calcanhares sem meias, num batepés barulhento.
Já agora não sentia só o cheiro do café, como
em S. Bento, sentia também o do açúcar ensacado, o das
mantas nauseabundas da carne-seca, o dos jacás de toucinho nos trapiches
e nos grandes armazéns, e do de sabão das fábricas, numa
mistura enjoativa e asfixiante.
Veio-lhe a impressão de atravessar o ventre repleto da cidade, abarrotado
de alimentos brutos, ingeridos com a avidez porca da doidice – e olhou para
si, receoso de encontrar nódoas e imundicie por toda a sua pessoa.
E assim foi andando até as Docas, já esquecido do Ribas e já
esquecido do velho Mota. Ao pé das Docas parou.
No chão, perto da porta, sacas de milho sobrepostas exalavam cheiro
de fermento; o caruncho, passando por entre os fios do cânhamo, passeava
ao sol.
Num banquinho de pau, e toda derreada sobre os joelhos, uma baiana de ombros
roliços e dentes sãos vendia gergelim, mendubi, batata doce
e tangerinas aos marinheiros chegados essa manhã do Norte. Pelo grande
portão em arco, viam-se lá dentro das docas os caminhões
seguirem pelos trilhos para o cais, e as galerias em cima, por cujas rampas
as sacas, apenas impelidas, desciam vertiginosamente.
Dr. Gervásio olhava interessado para dentro, quando sentiu uns passos
arrastados; voltou-se: o Ribas estava a seu lado, tranqüilo mas amarfanhado,
atando com mãos ligeiramente trêmulas a gravata suja.
– O senhor já passou a rua Funda!
– Nesse caso voltaremos.
E voltaram, sem que o médico diminuísse de atenção,
achando curioso um ou outro telhado colonial, de beiral estendido, uma ou
outra sacada de rótulas, com janelas baixas, de caixilhos miúdos,
muito velhinhas, sugerindo lembranças, provocando divagações…
Então ele parava, erguendo o queixo bem barbeado, a olhar para aquilo.
O Ribas não compreendia, e ficava à espera, com ar estúpido
e os braços pendurados.
Passavam por um armarinho, quando o Ribas, não se contendo. disse
com orgulho:
– Esta loja é de minha irmã… ela está ali… o senhor
dá licença?
– Pode ir.
Dr. Gervásio olhou. Em um balcão tosco e estreito almoçavam
um homem macilento e uma mulher moça, grávida, vestida de chita
preta, sentada em um banco, com crianças nuas agarradas à saia.
O almoço parecia parco, – não havia toalha nem vinho; o médico
surpreendeu de relance dois copos dágua e qualquer coisa pálida
dentro de um prato. Para não errar o caminho resolveu-se a esperar
o guia, olhando entretanto para a meia dúzia de objetos expostos, na
vidraça modestíssima da porta: linhas de redes, de crochete
de costura, anzóis e agulhas, cigarros, objetos de pescaria e cartas
de A B C.
O Ribas não se fez esperar; pareceu ao médico que o não
tinham recebido bem…
Seguiram dali por diante silenciosos, até que o Ribas avisou:
– Aí está a rua Funda.
Dr. Gervásio olhou e sorriu a uma observação que as
reminiscências de um quadro lhe sugeriam.
Aquela rua Funda, subindo estreita pela encosta do morro da Conceição,
ladeada de casas de altura desigual, de onde em varais espetados pendiam roupas
brancas recentemente lavadas, desenhando-se negra no fundo muito azul do céu,
lembrava-lhe uma viela de Nápoles velha, onde o pitoresco não
é por certo maior, e de que ele tinha uma aquarela em casa.
– É interessante, murmurou baixo, enquanto o Ribas, na frente, ia
galgando a rua e batia à porta do sr. Mota, um sobradinho amarelo,
de janelas de guilhotina e flores no peitoril, em latinhas de banha.
O velho Mota dormitava no canapé da salinha de visitas, com a perna
estendida sob uma colcha de retalhos de chita. As palmas do médico
a filha acudiu pressurosa, cuidando ter de receber a Deolinda do armarinho,
que ficara de ir acompanhar o velho um bocado do dia; vendo o dr. Gervásio,
ela estacou interdita, com os olhos arregalados e aconchegando com as mãos
tontas a gola do paletó de chita.
– Quem procura?
Dr. Gervásio explicou-se.
– Faça o favor de entrar…
A filha fez sentar a visita e correu a fechar a porta de uma colhendo as
mostras de desmazelo da casa: aqui um pé de meia caldo da cesta de
costura, acolá um pano de crivo roto, pendurado de um braço
de cadeira.
O velho, despertado com sobressalto, mal atinava com o que dizer.
Sim, ele conhecia o médico, e agradecia o cuidado do patrão.
A filha fez sentar a visita e correu a fechar a porta de uma alcova em desordem.
Era trintona, picada de bexigas, com as mãos desenvolvidas pelo uso
da vassoura e da cozinha. O médico acompanhou-a com a vista, depois
apressou-se em examinar o aparelho do doente, achando tudo em ordem, bem prevenido.
Ainda bem; ele desacostumara-se dos seus trabalhos profissionais. A clínica
irritava-o, como se tivesse pelos homens um interesse medíocre.
Sentindo os dedos do médico percorrerem-lhe a perna, seu Mota descrevia,
numa lengalenga, a sua queda e a sua falta de recursos. Supunha fazer falta,
caíra exatamente em uma ocasião de grande movimento no armazém….
A filha trouxe café em xícaras de pó de pedra; dr. Gervásio
bebeu uns goles por gentileza e o velho sorriu, aprovando-lhe a amabilidade.
O Mota pedia desculpas da casa… não morava ali por gosto. Oh, se
o dr. Gervásio o tivesse conhecido em Pernambuco, quando a sua velha
vivia! Com a morte dela tudo desandara…
O médico abreviou as lamúrias, prognosticando cura rápida,
e despediu-se, sem notar que a moça reaparecera na salinha, com outro
casaco enfeitado a crochet.
Embaixo respirou de alívio e começou a descer a rua, por entre
o palavreado gutural de papagaios suspensos às janelas.
Sempre as mesmas cantigas, sempre as mesmas cantigas! Era preciso fugir daqueles
abomináveis bichos; e ele apressou-se; mas logo na esquina pensou em
andar por ali e fixar o bairro. Entretanto, desandava pelo mesmo caminho por
que viera, quando viu uma rua cortada a pique na rocha e desejou saber que
mundo haveria lá em cima. Subiu.
Crianças, nuas, ainda mal firmes nas perninhas arqueadas, desciam
sozinhas, ladeando precipícios.
No alto o dr. Gervásio passou a outra rua, de grandes pedras engorduradas
e denegridas, onde mulheres despenteadas falavam alto e gatos magros se esgueiravam
rente às paredes.
Pareceu ao médico que a atmosfera ali era mais fria, de uma umidade
penetrante, cheirando a velhice e a hortaliças esmagadas. Mal concebia
que sé pudesse dormir e amar naquele canto sinistro da cidade, mais
propício às minhocas do que à natureza humana, quando
reparou para uma mulher moça, que, com uma lata de querosene, aparava
água em uma bica. Era pálida e linda. Também ela olhava
para ele com um olhar de veludo, sombrio e fixo, varado de tristeza.
Esses encontros fortuitos traziam às vezes ao médico comparações
singulares. Aquela mulher era uma invocação; o seu olhar revelava
uma consciência forte, a sua pele, cor de luar uma saudade infinita.
Era a Agar da Bíblia; urna açucena num canteiro de lodo…
Continuando o caminho, via de um lado e de outro casas desconfiadas, corredores
soturnos, escadas escorregadias, que faziam lembrar o mistério e o
crime. Assaltou-o a idéia de andar por ali à noite, disfarçado
de qualquer maneira. E quando o sol se esconde quê o homem se mostra
bem. Ele beberia com os marinheiros nas bodegas do bairro e penetraria em
um daqueles albergues.
Aos seus instintos repugnou logo esse mergulho na lama e rejeitou a lembrança,
observando se a rosa da sua lapela ainda estaria fresca.
Nem por isso… Foi então obrigado a recuar de um salto; de uma alta
trapeira atiravam água de barrela à rua. A água corria
espumosa, em fios grossos, por entre os pedregulhos desiguais.
– Bonito!
Daí em diante apressou o passo, sentindo que de todos os lados olhos
se fixavam com estupefação no seu chapéu alto. Tinha
a impressão de atravessar por meio de ruínas; parecia-lhe que
em toda aquela rua não haveria um único caixilho com vidros,
uma única chave sem ferrugem, uma única dobradiça perfeita.
Era o resto de uma cidade, tomada de assalto por gente expatriada, resignada
a tudo: ao pão duro e à sombra de qualquer telha barata. Uma
pobreza avarenta aquela, que formigava por toda a encosta de lagedos brutos,
entre ratazanas e águas servidas.
O dr. Gervásio interrompeu o curso das suas idéias ao ver,
atônito, d. Joana sair de uma casa.
Ela vinha cansada, com o largo rosto muito afogueado.
Trazia nas mãos curtas uma salva de prata, cheia de esmolas em cobre
e em níqueis.
Ela não se mostrou menos espantada de o encontrar naqueles sítios
e foram andando juntos até ao cimo do morro da Conceição,
onde o ar livre varria toda a esplanada em frente ao palácio episcopal,
e a luz de um céu muito anilado e puro caía com todo o brilho.
Respondendo a uma pergunta do médico, que aspirava com força
o ar do mar, como se quisesse lavar os pulmões do ambiente infecto
por que passara, d. Joana explicou que andava a pedir para a missa cantada.
Palmilhava todo o Rio de Janeiro (parecia incrível!) era sempre nessas
ruas de gente miúda, miserável mesmo, que ela colhia maior número
de esmolas. "A pobreza está mais perto de Deus", dizia ela
no seu doce tom de devoção.
Depois, ali mesmo ao sol, sem resguardo, queixou-se da sobrinha. Camila fora
sempre uma desviada, nunca tivera propensão para a igreja. Um cego
via melhor as coisas da terra do que os olhos daquela alma as coisas do céu!
Que reparasse para os nomes judaicos que ela pusera nas filhas: Ruth, Lia,
Rachel, quando havia tantos nomes de santas no calendário!
As crianças haviam de seguir no mesmo caminho perigoso; e era isso
o que a magoava.
Precisava salvar as crianças.
Francisco Teodoro, sim, esse era bom católico; gostava de o ver na
Candelária, com a sua opa de irmão. Um santo homem!
– Mas d. Mila vai à missa todos os domingos…
– Ora, a missa hoje em dia é mais um dever de sociedade que um preceito
de religião. Camila só vai à igreja para se mostrar.
Basta ver como ela se enfeita. Eu queria-a mais simples… A Ruth esteve algum
tempo no colégio das Irmãs: pois mal sabe o catecismo e ainda
não cuidou da primeira comunhão! Eu peço a Deus por eles,
mas…
– Faz bem.
– O senhor é dos tais, que não querem crer.
– Isso não me impede de lhe dar uma esmola para a sua missa.
– Aceito; rezarei nela pela sua conversão. Olhe que bem precisa: o
senhor está empurrando Camila para o inferno…
– Eu?!
– Quem mais!
– Oh, minha senhora, que injustiça… bem pelo contrário…
– Sim, vá falando e não me olhe com esses olhos de motejo.
Pensa que eu não sei de tudo? O único cego ali é o pobre
do marido, que não merecia que lhe fizessem isso. Eu estou cá
no meu canto, mas sei do que se passa, e toda a gente sabe, infelizmente…
Não é por falta de eu pedir a Nossa Senhora do Rosário,
minha madrinha… mas os pecados vêem-se, saltam aos olhos até.
Já me aconselhei com o padre Mendes, sem dizer de quem se tratava,
está claro, e pedi-lhe que rezasse para que isso acabasse em bem…
Ele é um sacerdote, deve ser atendido… enquanto que eu, pobre pecadora…
– Mas a senhora está louca, d. Joana?! balbuciou o médico,
mal disfarçando a sua ira; não a entendo!
Com medo de uma descarga de censuras, d. Joana despediu-se. Ia ainda dar
uma volta pela Pedra do Sal.
O dr. Gervásio mal a cumprimentou; sentia-se colado de espanto àquele
chão poeirento. Os seus amores, que ele julgava bem ocultos, tinham
varado as sacristias e ido do Botafogo elegante até aos casebres do
Castelo e da Conceição! Quis desmentir a velha; mas os seus
olhos claros, de um castanho louro, não o deixaram falar, cortando-lhe
pela raiz qualquer protesto. Ela não falara só pela boca, que
a tinha sincera; mas também pelos olhos, em cuja limpidez aparecera
toda a verdade.
O médico viu-a, com ódio, ir arrastando, na sua peregrinação
de fé, as pernas inchadas, rebolando os quadris largos, bem fornidos
e que ainda os franzidos da saia exageravam.
Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ela tornasse, para lhe
dizer ainda alguma coisa do pecado.
O que lhe repugnava, sobretudo, era a solicitada intervenção
do padre. Desde então deixou de reparar nas coisas, para pensar em
si. E os seus sentimentos eram de espécie confusa e tristonha.
Em outros tempos, de mais verdes anos, a divulgação de tais
amores não o desgostaria, talvez… Ser amante de uma mulher bonita
e cobiçada não é coisa que fique mal a um homem… Por
ela, sim, devia ter cuidados e mistério; mas esse mesmo dever de discrição
absoluta não seria abafado pela voz do egoísmo, sempre a mais
imperiosa nos homens, e pela da vaidade, se outras circunstâncias não
lhe exigissem segredo? As almas fortes dos homens têm dessas pequenices,
e a dele, sabia-o bem, era como as dos outros, amigas, sem propósito,
de causar inveja aos menos afortunados…
Cansado, nervoso, picado pelo sol, o dr. Gervásio seguiu à-toa,
desceu o morro, andou pelas ruas, mal respondendo aos cumprimentos dos conhecidos,
que ia encontrando à proporção que se aproximava do seu
centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquele giro,
se lhe esboçava na lembrança. Aquelas riquezas, aquele movimento,
aquelas casas, aquele rumor de população atarefada, baixa e
mesclada, aquelas altas ruas despenhadas em escadarias imundas e barrancos,
tudo se dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde
surgia a voz melada, untuosa da tia Joana, oferecendo promessas, confidenciando
com estranhos. sobre os seus amores e os seus adorados segredos.
Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou à rua do Ouvidor,
Veio-lhe então em cheio o aroma das flores frescas, à venda
na esquina; e a graça de uma mulher que passava com um chapéu
atrevido e um vestido bem feito, distraíram-no um pouco…
V
Noca foi ao quarto de Mário, avisá-lo que a mãe lhe
queria falar.
– Você sabe pra que é? perguntou-lhe o moço.
– Desconfio; há de ser por causa da tal francesa… Parece que ainda
foi outro dia que você nasceu, e já anda por aí na extravagância!
– Vai pregar a outra freguesia.
– Verdade, verdade, seu pai tem razão…
– Eu logo vi que o sermão havia de vir empurrado por papai, disse
Mário com ironia, dando o último retoque à toilette.
Nisso abriram a porta, ele voltou-se; era a mãe.
Noca deu uma volta pelo quarto, puxou as cobertas da cama até os travesseiros,
sacudiu com a toalha o estofo da poltrona, escancarou a janela e saiu, deixando
uma ponta de ordem no desalinho do quarto.
– Eu ia subir; Noca veio chamar-me agora mesmo.
– Achei melhor falarmos aqui. Não seremos interrompidos.
– Como quiser. Sente-se, mamãe.
Camila sentou-se e fixou no filho um olhar magoado. Ele, pegando-lhe nas
mãos, perguntou-lhe com um sorriso contrafeito:
– Então?
– Estás nos dando sérios desgostos, Mário.
– Eu?
– Sim; bem sabes de que se trata.
– Calculo; mas, francamente, não vejo razão para tamanho alvoroço…
– As tuas faltas são muito repetidas. Não te emendas!
– As minhas faltas são tributos da mocidade, fáceis de perdoar.
– Enganas-te.
Mário largou as mãos da mãe e tornou-se muito sério.
– Então não compreendo.
– Compreendes. Falo… falo dessa mulher com quem andas agora… dizem todos
que ela arruinará a tua saúde e a nossa fortuna…
– Oh! mamãe…
– Não é criatura por quem um rapaz da tua idade se apaixone.
Eu quando a encontro na rua nem sei onde ponho os pés.
Mário corou, e murmurou qualquer coisa que a mãe não
ouviu.
– Receio sempre ver-te aparecer a seu lado; porque eu sei que tens tido a
coragem de te apresentar em público com ela. Vê a que horror
expões tua família, já não digo teu pai, que é
um santo, mas que enfim, é homem; mas a tua irmã e a mim. É
feio da tua parte sujeitar-nos a uma decepção dessa ordem…
Mário mordia os beiços, brancos de raiva.
– Mamãe…
– Não me interrompas; já agora direi tudo. É preciso
acabar com a exploração daquela mulher, Deixa-a quanto antes,
hoje mesmo, ouviste? Teu pai exige isso de ti, ele sabe que por causa dela
tens cometido já indignidades. É uma vergonha, todos os dias
são dívidas e mais dívidas!
Mário continha a custo a sua cólera, apertando com as mãos,
nervosamente, as costas de uma cadeira.
– Põe os olhos em teu pai. Segue-lhe o exemplo.
Mário sorriu com desdém.
– Meu pai está velho; já não se lembra do que fez na
mocidade.
– Bem sabes que ele nunca teve mocidade; trabalhou sempre como um animal.
– Os portugueses nasceram só para isso; eu tenho outros gostos e outras
aspirações. Meu pai não me compreende.
– Mas o dinheiro que esbanjas de quem é?!
– Ah, o dinheiro! logo vi que havia de ser por causa do dinheiro! disse ele
com redobrado escárnio.
– Por isso e por outras coisas; exclamou Camila, espicaçada pela ironia
do filho.
– Mas que outras coisas, mamãe!? retrucou ele, plantando-se diante
dela, com raiva.
– Já te disse, já te disse! não te finjas de surdo!
Por causa da tua saúde, que é fraca, e da tua reputação.
– Reputação! ora, mamãe, e é a senhora quem me
fala nisso!
Camila estacou, sem atinar com uma resposta, compreendendo o alcance das
palavras do filho. A surpresa paralisou-lhe a língua; o sangue arrefeceu-se-lhe
nas veias; mas, de repente, a reação sacudiu-a e então,
num desatino, ferida no coração, ela achou para o Mário
admoestações mais ásperas. Percebia que a língua
dizia mais que a sua vontade; mas não podia contê-la. A dor atirava-a
para diante, contra àquele filho, até então poupado.
Recebendo em cheio a cólera materna, Mário julgou perceber
nela insinuações de outrem. Havia de andar por ali a intervenção
danada do dr. Gervásio. Quando Camila acabou de falar, ele começou,
destacando as palavras, que saíam pesadas:
– A senhora pode censurar-me em nome de meu pai, visto que ele não
teve coragem para tanto.; mas em seu nome, não!
– Mário!
– Em seu nome, não! Quem me lançou neste caminho e me fez ter
os gostos que eu tenho?
– O excesso do meu amor por ti está bem castigado!… Mas não
é isso agora que desespera teu pai…
– Meu pai é cego para as culpas dos outros; por que não será
também cego para as do filho? A pessoa que tanto o indigna é
menos nociva à família que…
– Basta!
– Não basta; a senhora assim o quis; conhece o meu gênio., podia
ter evitado esta explicação. Talvez seja melhor assim; afinal
eu precisava dizer-lhe alguma coisa, eu também. E isto: – odeio o dr.
Gervásio, e dou-lhe a escolher entre mim e ele.
Camila fixou no filho olhos de espanto.
Houve um largo silêncio. Depois ele repetiu, martelando as palavras:
– Ou ele ou eu.
A mãe, com uma lividez de morta, não voltava da sua estupefação.
Todo o corpo lhe tremia, e lágrimas vieram pouco a pouco borbulhando,
grossas e pesadas, nos seus olhos estáticos. Tentou defender-se, chamar
de calúnia aquela idéia; mas as palavras morreram-lhe na garganta,
e ela encolheu-se na poltrona, cingindo os braços ao busto, como se
tentasse esmagar o coração ofendido.
Mário caminhou nervosamente pelo quarto; depois, voltando-se para
a mãe, ia falar ainda, mas viu-a de aspecto tão miserável,
que uma súbita misericórdia se apoderou dele.
Ela chorava, muito encolhida, fazendo-se pequenina, no desejo de desaparecer.
– Perdoe-me, mamãe; mas que queria que eu dissesse!!
Camila levantou para o filho os olhos humilhados, e murmurou quase imperceptivelmente:
– Nada…
Mário recomeçou a passear, com as mãos nos bolsos, a
cabeça baixa. Camila, ainda na poltrona, com as costas para a janela,
os cotovelos fincados nos joelhos e o queixo nas mãos, procurava uma
palavra com que pudesse convencer o filho da sua inocência. Tudo lhe
parecia preferível àquela humilhação. Daria a
luz dos seus olhos, – ah, antes ela fosse cega! para que Mário a julgasse
pura, muito digna de todo o respeito das filhas, muito honesta, toda de seu
marido e das suas crianças.. Compreendia bem que o sentimento e a imaginação
nas mulheres só servem para a dor. Colhem rosas as insensíveis,
que vivem eternamente na doce paz; para as outras há pedras, duras
como aquelas palavras do seu filho adorado. Antes ela fora surda: não
as teria ouvido!
Quantas vezes o marido teria beijado outras mulheres, amado outros corpos…
e aí estava como dele só se dizia bem! Ele amara outras pela
volúpia, pelo pecado, pelo crime; ela só se desviara para um
homem, depois de lutas redentoras; e porque fora arrastada nessa fascinação,
e porque não sabia esconder a sua ventura, aí estava boca do
filho a dizer-lhe amarguras…
Lia e Rachel corriam no jardim, batendo por vezes na veneziana do quarto.
Mário aconselhou:
– Será bom aparecer; as meninas estão notando a sua ausência…
– Antes eu tivesse morrido no dia em que nasci! pensou Camila levantando-se.
Empurraram a porta. Era o Dionísio que vinha saber se o patrão
precisaria do carro. Ouvira falar na véspera em um almoço na
Gávea.
Mário respondeu com impaciência e sem abrir:
– Não preciso de nada! Depois voltou-se e foi direito à mãe;
puxou-a para si, beijou-a na testa e, com carinho:
– Diga a meu pai que hoje mesmo me despedirei dela…
Quando Camila saiu do quarto, sentiu-se agarrada pelas filhas gêmeas,
que a puxavam para o jardim, gritando com entusiasmo:
– Venha ver, mamãe!
– Que coisa linda, mamãe!
– O homem disse que foi papai que mandou!
– Adivinhe o que é!
– Diga; sabe o que é, mamãe?
A mãe não respondia; deixava-se levar sem curiosidade, toda
trêmula ainda, revendo no fundo da sua alma o rosto do filho ao dizer-lhe
aquelas palavras terríveis. As crianças riam, e aquelas risadas
eram como um clangor de sinos reboando em torno dela. Os sons avolumavam-se,
repercutiam no seu cérebro dolorido. Ele sabia! Mário sabia!
Quem lhe teria dito? que boca imunda profanara aquele segredo, em que há
tantos anos se encerrava? Seria a da Noca? E os outros da casa saberiam também?
– Veja, mamãe, que lindeza! gritou Lia apontando para um grande relvado
do jardim onde tinham posto um grupo de bonecos pintados a cores, um menino
e uma menina resguardados pelo mesmo chapéu de sol azul.
RacheI bateu palmas e deliberou que o menino se chamaria Joãozinho
e a menina Maria.
– Maria, não! há de se chamar Cecília, protestou Lia.
– Há de ser Maria, há de ser Maria e há de ser Maria!
– É verdade, mamãe, que a menina se há de chamar Maria?
Camila não respondeu; sentou-se em um banco, e, em vez de olhar para
os bonecos, pôs-se a olhar para as filhas, muito lindas, com os seus
bibes brancos, e os cabelos soltos.
– Vocês gostam muito de mim? perguntou-lhes ela de repente. puxando-as
para si.
– Eu gosto muito!
– Eu gosto mais!
– Mentira! quem gosta mais sou eu!
– Eu acho mamãe muito bonita!
– Eu também acho.
– E se eu fosse feia… bem feia… se… por exemplo, eu tivesse bexigas
e ficasse marcada, sem olhos, com a pele repuxada… ainda assim vocês
gostariam de mim?
– Muito, muito!
– Se Deus me desse uma doença repugnante… como aquela doença
do Raimundo, sabem? a morféia, e que todos fugissem de mim com nojo
e com medo… que fariam vocês?
– Eu havia de. estar sempre ao pé de mamãe! Havia de lhe meter
a comida na boca; mudar-lhe roupa e contar-lhe histórias…
– E eu havia de dormir na mesma cama que mamãe…
– Por que é que a senhora diz isso?! Não chore, mamãe!
Camila beijou as filhas com transporte, e uma grande serenidade caiu sobre
o seu rosto pálido. Poderia contar com alguma coisa, as filhas defendê-la-iam
dos maus tratos do mundo.
A campainha do almoço repicava no primeiro toque; Ruth fechava o seu
violino e Nina descia ao jardim com a Noca, para admirarem também o
grupo do lago, mandado da cidade por Francisco Teodoro.
Nina vinha na frente, conto seu modo tranqüilo de ménagère,
bem penteada, com um vestido escuro, alegrado pela nota branca de um aventalzinho
circundado de rendas. Atrás dela, Noca bamboleava o seu corpo cheio,
sem colete, vestida de chita clara, rindo alto de uma anedota do copeiro.
Camila teve um sobressalto.
Também aquela, a Nina, saberia tudo? Teve ímpetos de lhe ir
ao encontro e perguntar-lho; mas abaixou os olhos para os cabelos negros da
Rachel e da Lia, que se cosiam às suas saias, e passou-lhes as mãos
na cabeça, devagar, numa carícia muda, grata ao seu amor e à
sua inocência.
– Que engraçadinho! não acha, tia Mila, que há de fazer
bonita vista depois de colocado no meio do lago?
– Acho…
– É de muito gosto!
Noca tinha pena. Coitadinhas das crianças! haviam de ir assim tão
nuas para o sereno das noites? Muito chic!
Uns admiravam a beleza da menina, outros a do menino, e afinal concordavam
que o conjunto é que valia tudo. Ruth veio por último; queixava-se
de fome. A campainha vibrava pela segunda vez. Pediram a opinião dela;
não era tão bonito, aquilo?
– Nunca apreciei bonecos; vocês bem sabem…
– Isso é o mesmo que ver gente! exclamou Noca, indignada, isto não
é boneco! Você é enjoada! É verdade! Mário
ainda não viu… Oh! Dionísio! chama aí seu Mário!
Nina voltou-se, vermelha, para a janela do primo; ele não apareceu,
e Ruth, instando pelo almoço:
– Que milagre! Dr. Gervásio hoje não apareceu! exclamou sem
intenção, colhendo uma Marechal Neel para o peito.
Camila estremeceu e olhou para a filha com curiosidade e mal disfarçado
susto. Por que teria ela dito aquilo?
Noca abaixou-se na orla do canteiro, procurando com mãos apressadas
um trevo de quatro folhas, para dar à pobre da Nina.
– Oh! se ela encontrasse o trevo, a moça seria correspondida pelo
ingrato do primo, e assim o diabo da francesa iria bater a outra porta…
Deus fizesse com que ela achasse um trevo de quatro folhas!
Meia hora depois estavam todos à mesa, e ainda a mulata procurava
com ânsia a folhinha fatídica.
Mário atravessou o jardim; ela sentiu-lhe os passos e voltando-se
chamou-o.
– Uê! porque não foi almoçar?!
– Preciso ir já para a cidade. Diga isso mesmo a mamãe…
– Não foi se despedir dela?
– Não… já nos falamos… diga isso mesmo.
– Hum!… você hoje não tem boa cara!… Lá dentro não
está ninguém de fora: pode ir. E sua mãe…
– Cantigas. Adeus.
– Não. Olhe, Mário, lembre-se do que lhe diz esta mulata: –
Sua felicidade está aqui… As estrangeiras só gostam de dinheiro…
– Adeusinho!
– Adeus, meu filho…
A mulata foi até o gradil, para olhar ainda para o moço que
ela ajudara a criar desde o primeiro dia.
Como ele é bonito! pensava ela: as mulheres têm razão
de o preferir a todos!… D. Nina não merece aquilo; mas, enfim, antes
ela do que a tal sanguessuga… Este mundo é assim mesmo, a gente gosta
de quem não deve… Ele morre pela outra e é esta quem morre
por ele!… Verdade, verdade, ele é a flor da família… em
questão de boniteza, garanto que não há pessoa que se
iguale a Mário… Eu bem dizia que ele poria as irmãs num chinelo!
Por que não teria vindo o dr. Gervásio… o diabo do feiticeiro
deu bruxaria a nhá Mila… Se seu Teodoro sabe da história!…
que estralada! Mas quem há de dizer? Boca, fecha-te! boca, fecha-te!
que não seja por minha culpa… Bem! Mário tomou o bonde…
lá vai ele almoçar com a outra… Ora! se isso lhe dá
gosto, que aproveite!
Com um gesto decidido, ela rematou o seu pensamento egoísta e caminhou
para a copa, à procura de almoço.
VI
Numa manhã límpida, cor de safira, Camila e Ruth entraram com
Teodoro e o dr. Gervásio na lancha – Aurora – em demanda do Netuno.
O sol cobria com uma rede de ouro movediça a superfície das
águas; fazia calor.
As senhoras ajeitaram os folhos das suas saias de linho no banco da ré,
e abriram as sombrinhas claras.
– Sempre gostaria que me provassem a serventia desses chapéus de sol.
Não resguardam nada. São objetos inúteis. Eu se fosse
mulher nunca me sujeitaria a modas, disse Teodoro.
– Faria mal. Quanto aos chapéus, acho-os bonitos; são muito
decorativos. Veja como a cor de rosa da sombrinha de Ruth, e a creme de D.
Mila se harmonizam neste fundo azul. Digam o que quiserem; para mim a intuição
da arte está na mulher, retrucou Gervásio.
– Pode ser. Eu só gosto do que é positivo e prático.
Enfim, nas senhoras ainda eu perdôo certas niquices…
Sabia Teodoro que o espírito e a posição de um homem
se espelham nas suas roupas; por isso as dele eram sempre graves.
Para tudo que não fosse o trabalho, envergava a sobrecasaca, bem abotoada
sobre o estômago arredondado.
A sua cartola luzidia, bem tratada, afirmava às turbas que ia ali
alguém de cortesia e respeito; era como se o seu título de comendador
tremeluzisse no cetim daquele pelo. Não saía de casa sem carregar
o guarda-sol de excelente seda portuguesa e castão de ouro, traste
que o protegeria em um amplo círculo, se acaso chuvas caíssem
inesperadamente. Previa tudo; com habilidade, harmonizara à maneira
do traje a dos seus discursos, sempre entrecortados de: tais como, de maneiras
que, porém, tal e coisas…
Já a lancha singrava as ondas mansas, quando ele contou ao dr. Gervásio
que aí uns colegas seus amigos queriam arranjar-lhe um título
de Portugal; ele fizera constar que não aceitaria a distinção,
mas, se a coisa viesse, que havia de fazer?
O médico respondeu com um gesto vago, em que perpassou a sombra de
um sorriso.
– Outros usarão desses títulos com menos direito, continuou
o negociante, não digo que não; em todo o caso…
Mila lembrou que, para justificar essa honraria, bastariam as grandes somas
com que ele entrava nas subscrições.
Ele riu-se.
– Estou vendo que você quer ser viscondessa, hem?
Ela encolheu os ombros. Em verdade, nunca pensara nisso. Gostava de viver
bem, à larga, com muito dinheiro. Esse tinha-o, bastava-lhe.
Iam todos calados, quando Ruth suspirou:
– Tenho pena de não ter trazido o violino!
– Que tolice! havia de ter graça!
– Mamãe, quando eu me comovo, gosto de tocar. Entendo-me tão
bem com a música!
Os pais riram-se da asneira e o dr. Gervásio fixou o rosto pálido
da mocinha. Esse não riu.
A lancha Aurora, muito faceira, reluzente nos seus metais, cortava as águas
com rapidez, soltando silvos que assustavam as senhoras.
– Este passeio está-me abrindo o apetite para uma viagem… Se as
coisas continuarem como até aqui, é fato assentado que levarei
a minha gente ainda este ano à Europa, disse Francisco Teodoro.
Camila e o médico trocaram um olhar de susto.
Vendo o lindo rosto, sempre tão fresco e tão moço, de
Mila, os seus cabelos negros, o seu colo cheio, os seus olhos de veludo, provocantes
e apaixonados, toda aquela figura de mulher amorosa, quente e grave, que ele
não se cansava de estreitar nos braços, a idéia de uma
separação afigurou-se-lhe impossível e monstruosa.
Parecia-lhe que a amava ainda mais nesse dia do que em todos os passados;
a doçura da sua convivência enternecia-o, como se a entrevisse
já através da saudade.
Ela assegurou-lhe em um sorriso que não partiria. Não haveria
forças capazes de a arrancarem do seu amor.
Francisco Teodoro mostrava agora à filha o casco branco de um navio
de guerra, onde roupas lavadas de marinheiros enfestoavam de azul o castelo
de proa. No cimo de um mastro, um homem que desatava cordames, tinha, na altura,
proporções de boneco.
Gaivotas tontas voavam em bandos circulares, ponho grinaldas de asas fugitivas
no azul imaculado. Longe, a casaria da cidade, com as suas torres, esfumava-se
em uma neblina rósea, esbatida em diáfana violeta.
– Como é bonito! exclamou Ruth fulgurante, bebendo o ar que vinha
em cheio da barra. Está-me parecendo que, se eu fosse rapaz, seria
marinheiro.
– Outra tolice.
– Mamãe, o azul é uma cor tão bonita!
– Se fosses rapaz… se fosses rapaz… realmente antes fosses, tu o rapaz
e Mário a rapariga… resmungou Teodoro.
– Pobre do Mário… já tardava… disse Mila.
– Isto não é falar mal; é a, verdade.
– Não é falar mal dizer que ele não tem aptidões,
que é insignificante?
– Eu não disse tal.
– Mas deu a entender. Eu nem sei até como ele é tão
bom, ouvindo tantas insinuações. Se fosse outro, sabe Deus o
que teria acontecido! É porque tem mesmo muito bom coração.
Os erros que comete são naturais da idade…
– Senhora! não o defenda. Bem sabe porque é que eu digo as
coisas. Não falo à-toa.
Não, ela não sabia; o que via era uma grande injustiça,
pesando continuamente sobre a cabeça do filho. Que mais queriam que
o pobre fizesse? Ele não nascera para os trabalhos brutos, do comércio,
era um delicado. Certamente que não tinha idade para se divertir a
jogar a bisca em família; os seus dezenove anos tinham outras exigências.
Reparassem todos que era naturalíssimo…
– Qual naturalíssimo, qual nada! Indecente, sim,, é que aquilo
era. Um bilontrinha, o tal seu Mário. Ainda na véspera soubera
de novas proezas. Ele deixara a francesa, sim, senhores; parecia ceder ao
conselho da mãe; mas para que? Para andar em público de braço
dado com outras, talvez piores, e entrar em casas de jogo, que a polícia
ataca!
Camila mostrou Ruth ao marido, com um olhar aflito, para que moderasse os
furores da sua linguagem.
Contente por cortar o diálogo, o médico apontou um vapor, que
já se via de perto.
– O Netuno… é bonitinho, reparem.
– Não é feio, não… resmungou Teodoro, já desviado
dos seus pensamentos; mas… esperem! lá no convés parece estar
uma mulher. Que diacho! o capitão Rino será casado?
– Se é possível! se ele fosse casado nós estaríamos
fartos de o saber. Você diz cada tolice…
– Ora tolices! que mal fazia que o homem fosse casado, hein?
– A mim? nenhum certamente. Que me importa!… e Mila riu-se, querendo subjugar
à força a raiva que lhe ficara da discussão com o marido.
O médico tornou-se sombrio. Que mal faria que o outro fosse casado!
Nenhum!… certamente. E se dissessem dele a mesma coisa a Mila, que responderia
ela! a mesma coisa? com o mesmo levantar de ombros, com o mesmo desdém?
Teve ímpetos de lho perguntar; mas como? Ali era impossível…
Ficava para depois.
A lancha atracou ao Netuno, e do portaló desceu o capitão Rino,
vestido de flanela branca, com uma bela rosa vermelha na lapela.
Estranharam-lhe o porte, acharam-no muito mais elegante; parecia outro. Tinha
descido para ajudar as senhoras. Ruth saiu da lancha num salto, mostrando
as pernas finas, contente por aquela novidade, aquele mar circundado, de montanhas
azuis, aquelas velas brancas e aqueles cascos alcatroados, flutuantes, com
que se cruzara no caminho. O capitão Rino mal olhou para ela; suspendeu-a,
com pulso forte, até o primeiro degrau da escada e voltou-se logo para
Camila, com olhar ansioso, estendendo-lhe os braços. Ela caiu-lhe em
cheio sobre o peito largo e riu-se, pedindo desculpas. Era tão pesada!
Ele corou, tonto, trêmulo, sem achar uma palavra com que lhe respondesse.
Francisco Teodoro, cuidadoso da cartola e das abas da sua ampla sobrecasaca,
não prescindiu da mão auxiliadora do capitão; o dr. Gervásio
veio por fim, tirando num cumprimento o seu chapéu mole.
Em cima, no tombadilho, marinheiros passavam vagarosos, indiferentes pelos
visitantes. Junto ao portaló, estava uma senhora, a mesma, evidentemente,
que eles tinham avistado da lancha.
Era uma mulher delgada, branca e loira, com um par de olhos semelhantes aos
do capitão Rino, de um azul de faiança, e uma fisionomia vaga,
de anjo decorativo. Contrastando com o tipo, trazia uma toilette escarlate,
que lhe dava valor à pele cor de lírio pálido, e parecia
uma ofensa ao seu corpo virginal. O capitão apresentou-a logo a todos
com duas palavras:
– Minha irmã.
Foi depois, aos poucos, durante a visita do Netuno, que viram desde o tombadilho
até ao porão, que souberam que essa irmã, até
ali ignorada, se chamava Catarina, e vivia em companhia da madrasta, senhora
viúva, em uma frondosa chácara do Cosme Velho.
Catarina ajudava o irmão a mostrar o Netuno, e por vezes as suas explicações
tinham maior clareza que as dele. Se ele parava, ela tomava-lhe a palavra
cortada. completava-a e seguia para diante com todo o desembaraço.
Depois de percorrerem o navio, o capitão Rino convidou todos para
um vermouth gelado, na rua Câmara.
O espaço não era grande. Camila, Ruth e Catarina apertaram-se
no mesmo divã, de marroquim cor de azeitona, encaixilhado em cedro,
Francisco Teodoro recostou-se em uma poltrona ao pé da mesa, enquanto
o médico se arranjava ao lado de uma estante esguia, abarrotada de
livros, e o capitão, em pé, narrava ao negociante vários
episódios das suas viagens ao norte.
Que país! que maravilhoso pais este nosso! completava ele.
– É pena não ter povo. sentenciou Teodoro.
– Não é pena. Todas essas terras, ainda hoje virgens, serão
num dia melhor a glória do mundo, quando ele, esgotado pela exploração
das outras, voltar para elas olhos de amor. Guardam a sua fecundidade para
uma outra raça de grandes ideais, que ainda há de vir. Tão
formosas promessas não se fazem ao vento…
– Outra raça… outra raça… vinda de onde?! nascida de quem?!
– Da nossa, talvez; e das outras. As gerações que definham
nos países velhos aperfeiçoam-se e revigoram-se os novos. O
futuro do mundo é nosso, e será a coroação das
nossas bondades e virtudes, visto que o povo brasileiro é bom.
Francisco Teodoro não concordava em absoluto; não podia perdoar
a República. Aquela revolução fora uma revelação.
Sentia-se engasgado com o exílio do imperador. Torceu assim a conversa
para novo assunto.
Dr. Gervásio conhecia as idéias políticas de Francisco
Teodoro; ouvia-lhe sempre os mesmos comentários. Estava inteirado;
quanto às do outro, não lhe parecia que devesse lucrar muito
em ouvi-las. Voltou-lhe as costas e pôs-se a ler as lombadas dos livros
da estante:
– Virgílio… Homem… Dante… Camões… Gonçalves
Dias… Shakespeare… bravo!
Que espécie de homem seria então esse capitão Rino?
Leria ele efetivamente aqueles poetas?! O médico abriu ao acaso o primeiro
livro ao alcance da mão, e observou logo que ele estava anotado, a
lápis, com sinais firmes, de uma vontade bem dirigida, perfeitamente
consciente do seu claro juízo. Era o Cid. A primeira página
onde o olhar do dr. Gervásio caiu, havia este verso marcado com uma
linha gorda:
Lamour nest quun plaisir, lhonneur est un devoir.
Falava D. Diogo. O médico releu o verso com um sorriso de sarcasmo.
L amour nest quun plaisir…
Pois sim! bem esquecido estaria o velho pai de D. Rodrigo, ou não
chegara na sua juventude a amar com amor!
Depois daquilo o dr. Gervásio folheou outros livros literários,
por curiosidade, desprezando os técnicos, e em todos achou vestígios
de uma leitura inteligente. Bastava; começava a compreender o homem.
Iludira-se até então, julgando o Rino como um medíocre
e um simples. Um simples seria, mas um medíocre, não. Não
o temera nunca como rival, apesar de o ver apaixonado por Mila; julgara-o
fraco, inferior, sem recursos, falto de elegância, que é sempre
o que seduz as mulheres, física e intelectualmente; não passara
nunca aos seus olhos de um marinheiro rude, ingênuo, sem a graça
da palavra a tempo, nem a linha da distinção pessoal.
Que conservaria o capitão Rino no cérebro de tanta leitura
inquietadora e extraordinária? Que nervos eram aqueles, tão
perfeitos, que após tantas torturas e delícias pareciam intactos
de comoções artísticas?
Daí – quem sabe? – toda aquela livralhada que ele marcara com o seu
nome, no domínio da posse, viria de algum leilão, de alguma
herança, não representando naquele gabinete mais que um mero
adorno. Era o mais certo. Era mesmo a única hipótese verossímil;
não admitia que o capitão Rino fosse amigo de intelectualidades.
Aquele bruto! Fixou-o com atenção.
Não! não eram aqueles olhos límpidos, nem aquelas passadas
que faziam tremer os rijos assoalhos, que revelariam a ninguém investigações
da velha arte, turbadora como a febre ou como um vinho raro. Ninguém
acreditaria que aquele homem grande, de carnes duras, faces rosadas como as
de um menino são e modos bonachões, fosse capaz de entender
Shakespeare!
Ler livros tais, anotá-los, amá-los, deleitar-se na sua convivência,
era obra para outra espécie de criaturas. Aquilo era um escárnio,
não era outra coisa. Permitia-lhe a leitura de um ou outro clássico
português de mais calmo estudo e pulsação regular; lembrava-se
mesmo agora de lhe ter surpreendido algumas palavras de sabor antigo e que
lhe tinham feito, aos ouvidos delicados, um certo prurido de estranheza. A
sensação avivava-se, a reminiscência induzia-o a estudar
o homem. Voltou de novo o olhar para ele e resumiu ainda em um traço
o seu juízo:
– Um belo animal!
A irmã do capitão servia vermouth, mostrando em um sorriso
amável os seus dentinhos bicudos e desiguais. Ao dirigir-se ao médico,
ela obrigou-o a desviar-se da sua observação; e ele, descuidado,
refletindo na frase uma idéia que lhe atravessava o espírito,
agradeceu-lhe em inglês.
– Acha-me com ar de miss, não é assim? Talvez tenha razão;
não é a primeira pessoa que me dá a entender isso mesmo…
– Se lhe desagrada…
– Absolutamente nada; por que? Houve na nossa família qualquer antepassado
estrangeiro, uma bisavó dinamarquesa, creio eu… entretanto, afirmo-lhe,
somos bem brasileiros, mesmo um pouco nativistas… Já me disseram,
a propósito disto, que são os descendentes de estrangeiros exatamente
os patriotas mais exaltados. Mas não quer gelo?
– Obrigado…
Ela passou adiante, e o doutor tomou o seu primeiro gole de vermouth.
"Uma avó dinamarquesa, creio eu…" Extraordinário,
esse desprendimento pela sua origem! Bem lhe certificava esse dito, que aquela
gente não era de indagações nem de perder tempo com objetos
sem utilidade imediata.
A boa prática era essa: olhar para diante, que é onde se pode
encontrar tropeços. Caminho andado, caminho perdido. Adeusinho!
Da cadeira de braços, Francisco Teodoro atirava, a sua última
bomba contra a República, lamentando este grande piais tão digno
de melhor sorte…
Fino levantou-se; ele tinha outras opiniões e uma fé sincera
nos destinos da pátria. A alma nova da América só podia
agasalhar sentimentos de liberdade. A monarquia era a poeira da tradição
acumulada com o correr dos séculos, em velhas terras da Europa. Lã
teria a sua razão de ser, talvez; mas não aqui! Concluiu ele.
Farfalharam as saias das senhoras, que se punham de pé, já
cansadas da discussão, abominando a política…
Fora, no tombadilho, o sol estendia a sua luz clara. feita de ouro. Seguiram
então para debaixo do toldo.
Que maravilha!
Ruth lançou-se á amurada, agitando o lenço. Passava
uma barca de Niterói, repleta de passageiros, branca, ligeira, com
a sua cauda de espumarada. Toda a superfície do mar, paletada de luzes.
tremia como a pele moça a um afago volutuoso. Ao longe, a Serra dos
Órgãos desenhava no céu os seus contornos de um azul
de ardósia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca em que
o sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e rochedos
cor de violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um verdor intensíssimo.
Houve uns instantes de pasmo e de concentração, e foi nesse
silêncio que o médico percebeu um olhar de Camila para o capitão
do Netuno.
Aquele simples movimento bastou para atear no peito do médico o fogaréu
da ciumada. Estava feito; o outro venceria; soubera esperar e revelava-se
a tempo. Era a primeira vez que sentia zelos da amante, sempre tão
sua, tão submissa às arbitrariedades do seu gênio desigual
de homem nervoso. Quem pode confiar na lealdade de uma mulher? ninguém,
e a justiça era que ela o enganasse e o traísse, como por ele
traía e enganava o esposo…
Percebia bem que o capitão Rino era mais belo, mais moço, e
essas duas qualidades só por si bastavam, a seu ver, para fazer preferido
um homem aos olhos de uma mulher de quarenta anos…
– O senhor, hoje está nos seus dias de spleen, doutor? perguntou-lhe
de repente Ruth, com o seu modo sacudido e imprudente.
Ele deu-lhe o braço e explicou-lhe que não; queria estar calado
para ver melhor. Depois perguntou-lhe, sem rodeios se não achava o
capitão Rino muito diferente do que lhes parecera sempre em Botafogo.
– Eu já disse mesmo a ele, e descobri o motivo; é porque anda
sempre de escuro, e hoje está de branco!
– E com uma flor ao peito!
– É verdade.
– Ainda há outra razão; é que ele está contente.
Ruth, a influência das cores é grande nas criaturas, mas a das
impressões ainda é maior. A alegria força a ser-se bonito.
O capitão tem hoje a alma vestida de branco e perfumada como a sua
rosa vermelha da lapela… Uma bonita flor!… Não creia que baste
um alfaiate para dar a uma cara de pau a expressão que a dele hoje
tem; a grande influência do alfaiate pára no pescoço.
A cabeça é…
– Do cabeleireiro?
– Da paixão. Não creio que as mais frívolas mulheres
sejam tão frívolas que se contentem com o cheiro de uma pomada.
ou o bom corte de um fraque…
– Mas quem falou em mulheres!?
– Tem razão, ninguém! Veja como aquele barco de pesca vai bonito…
Você gosta destas coisas; faz bem. O amor da natureza e o amor da arte
são os únicos salvadores e dignos das almas puras. Os outros,
pff!
A mancha escarlate do vestido de Catarina apareceu diante deles; a irmã
do capitão convidou-os para o almoço; repararam então
que os outros já tinham entrado e logo o médico previu que Mila
tivesse ido pelo braço de Rino…
E fora; e lá estavam ambos em pé a um ângulo da mesa,
em frente a Francisco Teodoro, que gesticulava, no calor de uma discussão
ainda política.
A mesa, sentaram-se, ao acaso, à exceção de Camila e
do marido, a quem o capitão designou lugares. O médico escolheu
assento entre Catarina e Ruth.
Havia apetite; os primeiros pratos foram bem acolhidos. Catarina, julgando-se
um pouco em sua casa, ajudava o irmão; foi ela quem temperou a salada
de camarões e quem polvilhou os morangos de açúcar e
de gelo; as suas mãos muito brancas mostravam-se bem atiladas no hábito
de servir.
O criado ia e vinha do bufet para a mesa, com a serenidade sobranceira de
um ente necessário.
Na sala, longa e estreita, eles ocupavam uma das mesas compridas. a da esquerda,
a mesma ocupada sempre em viagem pelo capitão; a outra, vazia e sem
toalha, mostrando o verniz negro do oleado, dava um aspecto tristonho ao compartimento.
Falou-se, a propósito de viagens, de quando naquela mesma sala não
havia um só lugar vazio, e que ao rumor das vozes se juntava o tilintar
das louças e dos talheres… Só nos dias de tempestade, em que
o vapor era sacudido pelo furor das ondas, diminuía a afluência
e apareciam, disseminados e tristonhos, só os passageiros fortes, de
bom estômago…
Francisco Teodoro relembrou os episódios banais da sua única
viagem, de Portugal para aqui, e olhavam quase todos para o capitão
com certo interesse, como para um herói. Em casa, nas confortáveis
salas de Botafogo, tão ricas e tão burguesas, nunca a sua profissão
lhes parecera simpática; agora compreendiam-lhe os perigos e observavam-no
com respeito. O mar é tão pérfido! Qual era o ponto da
viagem que mais lhe agradava? perguntou Mila.
A entrada no Amazonas, respondeu Rino; e descreveu, comovido, o aspecto formidável
do rio, a grossa corrente das suas águas profundas, o seu ruído
sonoro, de ritmos novos, que nenhuma língua exprime e nenhum som musical
imita; e os cambiantes deslumbrantíssimos dos poentes, derramando na
água infinitas ramagens multicores, onde estrelejavam tons nunca dantes
vistos, que apareciam para se apagar, e apagavam-se para reaparecer em outros
pontos, igualmente luminosos e fugitivos.
– Que esplendor de poentes!
Depois as ilhas verdejantes, verdadeiros jardins, trechos de bosques emergindo
da água profunda e refletindo-se nela. Sinto ali, repetia ainda, um
mundo novo, guardando virgindades e mistérios para uma raça
de gigantes, ainda não nascida… Ah, as terras ardentes do Norte são
um deslumbramento!
Havia outro ponto da viagem que lhe fazia inda maior comoção:
era quando, já de volta, entrava na baía do Rio de Janeiro.
A ampla poesia desse espetáculo adoçava-lhe o humor estragado
pela monotonia do mar alto…
Dr. Gervásio punha afinal o dedo na alma do capitão. Era assim
mesmo; os livros da estante pertenciam-lhe: havia ali um homem. O embarcadiço
mercenário tirava o seu traje de piloto e aparecia cavalheiro e poeta.
Por que se havia enganado tanto tempo? A explicação teve-a pouco
depois, quando Rino afirmava que apesar das suas queixas, ele só estava
bem no Netuno; tanto se afastara da sociedade que se sentia bisonho nela,
e que acreditava deixar sempre no seu navio um bocado da sua alma, quando
ia para a terra.
– Só em terra, disse ele, compreendo o amor que tenho ao meu barco,
aos meus livros, ao meu cachimbo e à minha rede, a que a solidão
e o hábito deram foros de amigos; entretanto no mar, tenho saudades
de terra, da família, das distrações, de tudo que conjuntamente
a torna deliciosa…
Francisco Teodoro, a propósito do Norte, falou na prosperidade do
Pará, no comércio da borracha e discutiu as suas rendas e os
seus costumes. Ali, sim, havia gente refletida, de bons exemplos. Aquilo é
que é povo: patriotismo, critério, boas intenções.
Falem-me disso.
Concordaram. Houve uma pausa, em que se levaram à boca os copos cheios.
Veio o peru à brasileira provocar elogios ao cozinheiro do Netuno.
Magnífico!
Francisco Teodoro afirmou logo que aquele prato parecia feito, de saboroso
que estava, por uma mulher. A brasileira tem um jeitinho especial para temperar
panelas, dizia ele; e verdade, verdade, assim como ela não devia ser
chamada para os cargos exercidos por homens, também os homens não
lhes deviam usurpar os seus. A cozinha devia ser trancada ao sexo feio.
Ele dizia isto como pilhéria, por alegria.
Catarina, fazendo estalar uma côdea de pão entre os dedos magros,
perguntou sorrindo, com ar de curiosidade maldosa:
– O senhor é contra a emancipação da mulher, está
claro.
– Minha senhora, eu sou da opinião de que a mulher nasceu para mãe
de família. Crie os seus filhos, seja fiel ao seu marido, dirija bem
a sua casa, e terá cumprido a sua missão. Este foi sempre o
meu juízo, e não me dei mal com ele, não quis casar com
mulher sabichona. E nas medíocres que se encontram as Esposas.
O dr. Gervásio e o capitão Rino trocaram um olhar, de relance.
– E que são as outras? Mulheres que um homem honrado não deve
consentir perto das suas filhas.
Camila fez um sinal afirmativo. Ela era a mesma opinião.
– Não são sérias, concluiu.
– Lá por isso, replicou Catarina, de quantas mulheres se fala na sociedade
e que mal sabem ler?
– De poucas…
– De muitas. Sr. Teodoro, faz favor de me dar o vinho?
– Ora, as senhoras não conhecem o mundo! exclamou Teodoro, passando
a garrafa ao médico, que encheu o copo de Catarina e disse rindo:
– Elas não conhecerão o mundo e nós, meu amigo, não
as conhecemos a elas! A mulher mais doce e mais honesta, dizem que dissimula
e engana com uma arte capaz de endoidecer o próprio Mefistófeles…
– Homem, que idéia faz você da honestidade das mulheres!
– Faço idéia de que deve ser bem mais difícil de manter
do que a nossa.
– Bom; eu quando disse honestidade das mulheres, não foi com o pensamento
de que houvesse duas honestidades.
– Pois se tivesse tido tal pensamento, tê-lo-ia com muito acerto. Há
duas.
– Temos outra! Se está de maré, explique-nos a diferença.
– Não estou de maré, mas explicarei: é pequena. Materializemos
as comparações, para as tornarmos bem claras. Suponhamos, por
exemplo, que a nossa honestidade é um casaco preto e que a, das senhoras
é um vestido branco. Tudo é roupa, têm ambos o mesmo destino,
mas que aspectos e que responsabilidades diferentes!
Assim, o nosso casaco, ora o vestimos de um lado, ora de outro, disfarçando
as nodoazinhas. O pano é grosso, com uma escovadela voa para longe
toda a poeira da imundície; e ficamos decentes. A honestidade das senhoras
é um vestido de cetim branco, sem forro. Um pouco de suor, se faz calor,
macula-o; o simples roçar por uma parede, à procura da sombra
amável, macula-o; uma picadela de alfinete, que só teve a intenção
de segurar uma violeta cheirosa, toma naquela vasta candidez proporções
desagradáveis… Realmente, deve ser bem difícil saber defender
um vestido de cetim branco que nunca se tire do corpo. Eu não sei como
elas fazem, e, francamente, não me parece que a vida mereça
tamanho luxo.
– Você é o homem das divagações; tratava-se de
uma questão positiva. Dizia eu que as mulheres vulgares são
mais sérias do que as outras… pelo menos parecem…
– Porque não lhes esquadrinhamos as nódoas de cetim… Passam
despercebidas…
– Adeus!
– Agora é sério; vou repetir-lhe o que disse há pouco
à sua filha, a quem aliás o senhor educa para a arte. Foi mais
ou menos isto:
Não cabem na alma humana muitas paixões, e as melhores são
as que nos desviam dos nossos semelhantes, sempre enganadores. Só os
ideais de arte não pervertem, antes purificam e ensinam o Bem. As mulheres
devem cultivá-los com especial carinho. Acompanho, pois, as opiniões
de d. Catarina e bebo à sua saúde, minha senhora!
Enquanto ele bebia, Camila observou-o com pasmo; sabia que ele não
tinha aquelas idéias. Sempre lhe ouvira que a mulher devia conservar-se
no seu lugar de submissão.
– Então, a senhora lamenta não ser eleitora? perguntou Francisco
Teodoro à irmã do Rino, com um sorrizinho de mofa.
– Eu? Deus me livre! Tomara que me deixem em paz no meu cantinho, com as
minhas roseiras e os meus animais. Nunca falo por mim, sr. Teodoro. Eu nasci
para mulher.
– Então, pelas outras?
– Pelas outras que tenham atividade e coragem.
E a casa, minha senhora? e os filhos? A este argumento é que ninguém
responde!
– É velho.
– Mas é bom, prova que a mulher nasce com o fim de criar filhos e
amar com obediência e fidelidade a um só homem, o marido. Que
diz também a isto o nosso doutor?
– Que ela talvez tivesse nascido com essas intenções, como
o senhor disse, mas que as torceu depois de certa idade. Não seria
sem causa que Francisco I disse:
Souvent femme varie.
Francisco Teodoro não entendeu, mas sorriu.
O médico dizia aquilo para Camila, que lhe evitara o olhar agudo,
percebendo-lhe a perfídia.
– Isto é que se chama falar para não dizer nada… observou
alguém.
Catarina serviu o café; quando passava a última canequinha,
disse:
– As mulheres são mal compreendidas. Vejam aquela gravura. Está
ali um homem desafiando o perigo, avançando na treva com a espada em
punho, e a mulher mal o alumia com a luz da vela, cosendo-se amedrontada às
suas costas!
– O que prova que a mulher é medrosa! exclamou Teodoro com modo triunfante.
– Mas, não é verdade; pelo menos no Brasil. Nós não
nos escondemos atrás do homem que procura defender-nos. Se ele avança
para o inimigo, sentimos não ter asas, e é sempre com ímpeto
que nos lançamos na carreira querendo ajudá-lo a vencer ou evitar-lhe
a derrota. Este é que é o nosso caráter; que me desminta
quem puder!
O dr. Gervásio observou Catarina com atenção.
Ela estava de pé, com as narinas arfantes, as faces abrasadas.
Sim; agora era o sangue caboclo que lhe saltava nas veias: era uma brasileira.
A tal avó dinamarquesa dava todo o lugar à outra avó
indígena, descendente de alguma tribo selvagem.
Duas horas depois, os visitantes deixavam o Netuno; o capitão Rino
e a irmã conduziram-os até o cais, onde se separaram. Foi então
um grande alívio para o dr. Gervásio, a quem a presença
do outro irritava terrivelmente.
Francisco Teodoro não se cansava de elogiar a ordem e o asseio em
que encontrara tudo; começava a venerar o capitão Rino: achava-o
eloqüente, superior… lembrava detalhes insignificantes, muito agradecido
às cortesias do moço. Catarina desagradara-lhe, com os seus
modos independentes. Achara-a feia. Mulher quer-se com carne, – bons volumes,
dizia ele, olhando de esguelha para o vulto redondo da esposa.
À rua 1o de Março despediu-se do grupo. Aproveitava a ocasião
para visitar um colega doente; e encarregou o doutor de acompanhar a família.
Foram então os três, Ruth adiante, com o seu modo distraído,
de queixo erguido e passos firmes; Camila ao lado do médico, através
as ruas quase desertas, de domingo. Ao princípio nada se disseram.
Camila advinhava tempestade próxima, sem lhe atinar com a causa. Estranhara
as frases do Gervásio à mesa; sentia ainda a dor dos remoques
que ele lhe atirara disfarçadamente. Faltava-lhe coragem para uma pergunta;
mais por submissão do que por indolência, ela esperava sempre
que ele fosse o primeiro a falar e a agir, naquela torturante passividade
de escrava, a que o seu amor a lançara.
Ele falou. Disse ter surpreendido a doçura de um amor nascente; que
não se espantava da vitória do Rino. Achava que se devia despedir;
que a via bem entregue…
Camila compreendeu tudo, de relance; as lágrimas subiram-lhe aos olhos,
sem que ela, pudesse responder à brutalidade da ofensa. O rosto tingiu-se-lhe
de vermelho, numa onda de vergonha que a sufocava; vendo-a calada, ele insistiu
baixinho, teimosamente, irritantemente, espaçando as palavras, extravasando
todo o ciúme contido durante as horas de bordo.
Ela murmurou então, vexada, por entre dentes:
– Eu não gosto do Rino… eu não gosto…
E para que falar assim, na rua? É uma imprudência…
– Não tive tempo de escolher lugar. Isso é bom para os calmos.
Depois, vendo-me ameaçado de abandono, apresso-me em despedir-me. Isto
tinha de ser já.
– Como os homens são orgulhosos e injustos!
– Serão. E as mulheres? volúveis!
– Quase sempre a mulher ainda ama e já é considerada pelo homem
como uma importuna!… Está ai nossa volubilidade…
Calaram-se; passava gente. Depois de uma longa pausa, foi ela quem disse
primeiro:
– Que me importa a mim o Rino! estou pronta a desfeiteá-lo, se com
isso…
O médico interrompeu-a baixo, mas com vivacidade.
– Agora sou eu que lhe lembro que estamos na rua…
Ruth, sempre adiantada no caminho e sempre distraída, não percebia
nada; os dois seguiam-na automaticamente. Foi ela que, de repente, vendo uma
confeitaria ainda aberta, se lembrou de levar doces à Nina e às
crianças, e parou à porta, à espera do médico
e da mãe. No momento em que eles chegavam, saiu da confeitaria uma
mulher ainda moça, toda de luto.
Ao vê-la, o médico recuou bruscamente e ela, mal o viu, corou
até a raiz dos cabelos e vacilou também. O choque foi rude,
e rápido. Ele ficou firme na calçada, muito pálido, com
contrações nas faces, e ela passou séria, numa rigidez
contrafeita e torturada.
Camila sentiu roçar pelo seu vestido claro o vestido de lã
da outra; aspirou com força o seu aroma violento de uma essência
desconhecida; viu-lhe a alvura da pele aveludada entre a gola de crepe e a
parte da face onde terminava o veuzinho do chapéu; apanhou, naquele
gesto de surpresa de ambos, um mistério qualquer, uma traição,
uma infidelidade, uma ignominiosa mentira à sinceridade da sua paixão.
– Quem é?… quem é?! Perguntou ela com avidez frenética,
puxando imprudentemente pela manga do médico.
O dr. Gervásio, ainda no mesmo lugar, olhava para a mulher de luto
que seguia numa pressa de quem foge; à voz de Camila, voltou-se atarantado,
sorriu com esforço evidente e depois, baixo, muito baixo, mas com modo
sacudido e nervoso, disse:
– Não faças caso: uma mulher que amei e que morreu.
Uma nuvem negra toldou a vista de Camila e o coração apressou
a sua marcha num batimento louco.
Ruth, com toda a pachorra, escolhia os doces que um caixeiro ia separando
para um prato de papelão.
O dr. Gervásio pediu a Camila que serenasse o seu espírito.
Ele lhe contaria tudo mais tarde. Descansasse, que aquilo era uma coisa passada,
perfeitamente extinta.
Ela fingiu aceitar a promessa; no fundo duvidou dela; mas para que tentar
uma recriminação, se a sua língua fraca não lhe
sabia traduzir os sentimentos fortes? Ficaria no seu papel de mulher: esperaria
calada…
VII
O comércio de café nadava em ouro. Casas pequenas galgavam
de assalto posições culminantes; havia por todo o bairro cafezista
um perene rumor de dinheiro. E a maré do ouro subia ainda com a magna
abundância das enchentes que ameaçam inundação.
O preço do café chegara a uma altura a que antes nunca tinha
atingido. Era um delírio de trabalho por todos aqueles armazéns
de S. Bento.
No de Francisco Teodoro o movimento era enorme.
Seu Joaquim não parava um minuto, num vaivém incessante, realizando
milagres de atividade, observando, colhendo, dirigindo, mandando, rápido
no expediente, seguríssimo nas suas previsões e nas suas ordens.
Ele sabia de tudo, adivinhava tudo, sem que ninguém o visse arrancar
uma confidência ou uma denúncia dos seus amigos ou dos seus subordinados.
Era nele que parecia encarnada a alma daquele casario da rua S. Bento, porque
era o nome dele que andava de boca em boca, no ar, desde o caminhão,
na porta da rua, até o fundo, o pátio dos ensacadores, onde
as pás do café, caindo em ritmo, davam ao trabalho um acompanhamento
de música.
Seu Joaquim, pequeno, com o seu ar atrevido, podia, de um momento para o
outro, fazer cessar todo aquele giro vertiginoso, armar greves, paralisar
a vida, fechar a porta ao dinheiro que quisesse entrar.
Era dele todo o prestigio avistados trabalhadores boçais, das formigas
do armazém que negrejavam por ali num movimento incessante.
Francisco Teodoro descansava nele, deixava-o agir, "conhecia-lhe o pulso",
dizia; não fizera ele o mesmo no princípio da sua carreira?
Agora, bem assente na vida, aristocratizava-se, dava-se ares de grande personagem.
Havia uma hora em que o gerente subia ao escritório do patrão
para alguns esclarecimentos, e nesses curtos minutos, roubados à atividade
de baixo, seu Joaquim achava jeito de expor a situação do dia,
dar as notas pedidas e ainda falar do movimento das grandes casas próximas,
fazendo de relance, num quadro comparativo, o realce do armazém de
Francisco Teodoro
E, nesses dizeres simples, havia entre os dois homens como que uma chamazinha,
brilhando tonta, faisca de ambição assanhada pelos sucessos
próprios e alheios.
Ambos amavam a casa, ambos a queriam ver no plano mais alto.
Seu Joaquim, lá consigo, atribuía a prosperidade do negócio
ao tino da sua gerência, esperta e positiva. A seu ver, a gente do escritório
era inepta e não contribuía em nada para o êxito do negócio.
Julgava-se figura predominante, indispensável, e usava por isso de
impertinências, que Teodoro tolerava, em desconto do serviço.
Quando o gerente descia a escada do escritório e voltava para o armazém,
Francisco Teodoro reclinava-se na sua cadeira e ficava pensativo. Na sala
próxima as penas dos empregados rangiam nos livros e o rumor das folhas
que viravam era às vezes o único que se ouvia.
Naquela grande paz da fortuna conquistada, Francisco Teodoro sonhava então
com viagens demoradas, longos períodos de abstração.
Vinha-lhe o cansaço.
Todavia, se refletia nisso, recuava, com a certeza de que lhe seriam inaturáveis
os dias sem aquela confusão de trabalho, longe daquela atmosfera carregada
e das tantíssimas preocupações do seu comércio.
A esse desejo indeciso, que com tanta justiça o seu corpo e o seu espírito
fatigado reclamavam, mesclava-se agora uma febrinha nascente, que o incitava
a novas empresas e que ele combatia com ânimo e juízo.
Oh! se o Mário fosse um homem, se tivesse jeito e coragem para aquela
vida… com que satisfação ele o sentaria no seu lugar e lhe
mostraria o caminho já feito, fácil de percorrer!
Fora bem castigado o seu desejo de ter um filho, não pelo filho, mas
pelo orgulho da continuação daquela casa, que levaria o seu
nome a outras gerações. Viera o filho e voltava as costas à
fortuna.
A casa passaria a mãos estranhas, ou teria de morrer com ele…
Era o que lhe custava, deixar a melhor obra da sua vida, em que tinha concentrado
tamanhos sacrifícios, sonhada nos seus tempos de tropeções
pelas ruas, e executada depois aos bocadinhos, no esforço de uma vontade
enérgica, a gente que a pagasse, como uma coisa qualquer, e lhe mudasse
o nome. –
Como era bem-soante aquele – Casa Teodoro um ritmo de ouro!
Naquela rua, de casas ricas, ela seria a mais rica, se o Gama Torres não
se tivesse posto adiante, ajudado pela mão do diabo, que a de Deus
só auxilia os homens de longos trabalhos e belos exemplos.
O que dera fortuna ao Torres? O jogo. Sabia-se agora, por toda a cidade,
que ele jogava na Bolsa como um doido. O resultado aí estava – magnífico;
mas não poderia ter sido péssimo?
Certamente, concluía ele consigo, – não é a isso que
se chama ser bom negociante; obra do acaso, nem mais nem menos…
Chegara a hora do café. O primeiro a entrar nesse dia foi o Lemos.
As carnes pesavam-lhe; sentou-se logo.
– Então como vai isso, Seu Teodoro, ham?
– Bem… Muito trabalho.
– É o que se quer. Eu também não paro. Mas quer saber
quem vai mesmo de vento em popa? O Inocêncio. O ladrão tem mão
certeira; não erra o tiro! Vi-o hoje fazer grandes transações
com a maior fleugma. O dinheiro não lhe escalda as mãos. Ele
vem aí; deixei-o lá embaixo a conversar com um sujeito. É
um finório de marca.
– É esperto, é.
Minutos depois o Inocêncio Braga entrou, trêfego e alegre, em
companhia do Negreiros, que subira para tratar de um negócio, e, enquanto
este se entretinha com Teodoro, o Inocêncio dizia, voltando-se para
o Lemos:
– Hoje é para mim um dos dias mais felizes da minha vida! Imagine
que recebi carta do meu procurador, dizendo já ser minha uma quinta
lá da minha aldeia, e que eu ambicionava desde rapazinho…
– Terras de trigo?
– Não é por isso. A propriedade só dará despezas.
Comprei-a por vingança. O dono era um fidalgo desses velhos, de raros
exemplares. Por uma questão estúpida maltratou meu pai. Eu era
pequeno, mas não me esqueci da ofensa. Os dias passaram; o fidalgo
arruinou-se, e o filho do meu velho ganhou o bastante para fazê-lo assinar,
ainda que de cruz, as escrituras que lhe dão direito à, posse
da sua quinta. Meu pai já se instalou no palácio; o diacho é
que, pelos modos, ele não se acostuma à ociosidade e vai para
o campo mondar o linho com os empregados… não faz mal, é o
dono.
– Realmente, foi um ato de amor filial, muito digno… murmurou o Lemos,
assoando-se com estrondo.
Isidoro entrou com o café e a conversa generalizou-se. –
– Então, senhor Teodoro, é verdade que o Joaquim é seu
interessado?
– É…
– Inda bem. Você não parecia português, homem; você
parecia inglês!
– Por que?
– Por não querer sócios. Um casão destes pode enriquecer
muita gente. Olhe que é um erro isto de querer tudo para si.
Sim, pensou Francisco Teodoro, a vida é curta, e uma fonte cavada
com tanto esforço é justo que dê água com abundância
para muitas sedes…
Já o Isidoro recolhia as xícaras quando entrou o João
Ramos, a bufar de calor. Pediu notícias da saúde de todos e
mesmo antes de ouvir as respostas vasou quanto sabia acerca dos negócios.
Vinha da casa do Lessa, que auferira lucros extraordinários de uma
especulação de café. Ele também se metera em grandes
empresas; sacou papelada que lhe enchia os bolsos e representava muitos contos
de, réis.
Inocêncio Braga citava nomes de pobretões tornados em milionários,
com a alta, quando João Ramos o interrompeu, consultando os amigos
se deveria aceitar a presidência de um banco. Ele hesitava…
Inocêncio aconselhou-o a que acedesse. O cargo era de prestígio.
Depois, o tempo efervescente do jogo tinha passado. As transações
agora faziam-se com mais segurança. Também ele tinha em formação
um grande projeto…
Teodoro sufocava; não ouvia falar noutra coisa. O seu vizinho da esquerda
e o seu vizinho da direita passavam quantidades fabulosas de libras para a
Europa, ganhas no azar do momento. E ele?
As suas reflexões tomaram um curso tristonho. Trabalhara tanto, para
afinal alcançar o que os outros adquiriam com um gesto!
A pouco e pouco os seus amigos mais circunspectos iam-se atirando à
voragem da Bolsa. Afortunados, como se mão invisível os guiasse,
ganhavam quase sempre. Só ele resistira, firme nos seus princípios
de moral e de economia. Mas o contágio da febre manifestava-se já
nos primeiros arrepios da tentação.
Francisco Teodoro refletia…
Quando os amigos saíram, ele caminhou maquinalmente para a janela.,
Olhou: embaixo a pretinha velha varria pressurosa a calçada, ajuntando
o café da rua. Carregadores saíam-lhe da porta, vergados ao
peso das sacas. Os carroções passavam cheíssimos, com
estardalhaço, chocalhando ferragens, e um rumor compacto de vozes levantava-se
no ar espesso, engrossado de pó.
Era o trabalho, que passava, ardente e esbaforido.
Daquele esforço surgiria a redenção do povo. E com suor
e lágrimas que se fertilizam os melhores campos.
Da enxada, que fatiga o braço e rasga o seio do barro, é que
deriva o bem da humanidade, a água que mata a sede e a árvore
que dá sombra e se desmancha em flores.
Abençoados os que não fraquejam e podem no fim da existência
erguer bem alto a cabeça sem respingos de vício. Esses não
terão patinhado na enxurrada enganadora, esses dirão aos filhos:
– Olhem para a minha vida e façam como eu fiz.
Era 6 que pensava Francisco Teodoro, querendo agarrar-se à sua fé
antiga, que temia caísse agora, abalada pela ventania daqueles dias
de loucura.
VIII
Na saleta de engomar, Noca, com o ferro na mão, sabia do que se passava
em toda a casa. Nesse dia ela trouxera uma braçada de roupas para cima
de uma cadeira junto da tábua. Lia e Rachel interromperam-na depressa.
– Noca, você corta um vestido para a minha boneca? pediu Lia.
– E outro para a minha, Noca?
– Vão-se embora. Hoje não tenho tempo para conversas.
– Um só, Noca, sim?
– Não faço nada! Amanhã seu pai está a5 gritando
que não tem roupa!
Mas as meninas ficaram, trouxeram a rastos uma esteira, sentaram-se nela
e a Noca não teve remédio senão cortar os vestidos das
bonecas e ainda dar-lhes agulhas, linhas e retalhos. Distribuído o
serviço, levantou-se. Nina passava a caminho da despensa e sorriu-lhe;
mas a mulata mal correspondeu ao cumprimento, enjoada pela bondade daquela
criatura.
A culpa era do sangue, da sua raça, que menos estima os superiores
quanto mais estes a afagam. Por isso ela morria de amores por Mário,
um rapazinho atrevido, de gênio autoritário e palavras duras.
Começava a alisar a primeira camisa do patrão, quando Dionísio
se acercou da tábua.
– Agora é que você está chegando, Dionísio?!
– É. Fui levar um recado de seu Mário… A senhora já
sabe que ele deixou a francesa? Esta agora é mais bonita; é
uma carioca de se lhe tirar o chapéu
– Ora veja só como Dionísio está tolo… Ela apontou
as crianças, que poderiam ir mexericar lá para dentro. E depois:
– É loura ou é morena?
– Morena, altinha, muito chic.
– Bem. Vá arrumar o quarto de Mário, ande.
Mal saiu o Dionísio entrou a criada Orminda, uma caboclinha de olhar
sonso.
– Olhe aqui, d. Noca, o que eu achei embaixo do travesseiro de d. Nina.
– Que é? perguntou a mulata, sem levantar a vista do trabalho.
Um retrato.
Noca olhou; era um retrato de Mário. Guardou-o, sem dizer nada. Orminda
continuou:
– Minha ama está escrevendo uma carta, lá no quarto…
– É para Sergipe.
A cabocla sorriu.
– O professor de música está ai…
– Já sei…. Vai pedir ao jardineiro um pouco de hortelã, anda,
para eu botar de infusão.
Noca tinha ascendência sobre a criadagem, que a tratava por dona. Mesmo
entre os brancos a palavra da sua experiência era ouvida com acatamento.
Ela era a mulher desembaraçada, a doceira dos grandes dias de festa,
a única das engomadeiras capaz de satisfazer as impertinências
do dono da casa; ninguém sabia como a Noca preparar um remédio,
um suadouro, nem dar um escalda-pés sinapisado, nem tão bem
escolher o peixe, preparar um pudim ou vestir uma criança.
Alegre, forte, faladora e arrogante, com o gênio picado e a língua
pronta para a réplica, não admitia admoestações
nem conhecia economias. As suas roupas, muito asseadas, cheiravam bem; andava
de cores claras e fitas alegres, pisando com todo o peso do seu corpo volumoso
e encarando as criaturas de frente, num bom ar de sinceridade.
Exímia na tradução e interpretação dos
sonhos, era de uma imaginação lentejolada de pequeninas idéias
extravagantes e concepções originais. Para o mais insignificante
fato, tinha uma explicação misteriosa, embrulhada em névoas
e superstições curiosíssimas que saíam da sua
boca como lemas fatais, de uma verdade indiscutível.
E aquela influência estendera-se pela família toda. Camila consultava-a;
Nina contava-lhe os seus sonhos, pedindo-lhe explicações; Ruth
ouvia-a com enorme interesse, de alma aberta para tudo que tivesse ares de
fantasia; e a criadagem pedia conselhos, rezas, remédios, palpites
de jogo e consolações de desgostos…
Noca acudia com prontidão a todos, gabando-se, sem hipocrisia, de
gostar de ser útil e servir de muito a muita gente…
Ela andava agora desconfiada com a tristeza mal disfarçada de Mila.
Desde aquele passeio ao Netuno deveria haver por ali grande novidade… O
dr. Gervásio; entretanto, desfazia-se em cuidados… e o pobre do capitão
Rino era recebido com certa secura, que o estúpido parecia não
compreender!
A Nina, coitada, emagrecia como um arenque, e só Ruth passava sem
ver nada, como se a música a levasse por outros caminhos… O patrão…
esse também ruminava qualquer coisa…
Quem provocava confidências indiscretas da mulata era Nina, que, com
o pretexto de passar uma gravata ou alisar uma fita, ia à saleta do
engomado logo que dela via sair o Dionísio.
A mulata, percebia tudo e não tinha escrúpulos em repetir a
verdade. Ora, aquilo talvez curasse a moça, pensava consigo. Se os
amores não passassem, que seria da gente? O coração quer-se
à larga. Sofrer por causa de um homem ? Não vê!
Nina, com os olhos úmidos, as mãos curtas, de dedos ligeiramente
achatados, espalmados na tábua ainda quente do ferro, escutava tudo
muito caladinha e, quando a última palavra caía dos beiços
grossos da Noca e que a mulata começava a assoprar as brasas, ela voltava
para dentro, sentava-se a coser, achando-se mesquinha, feia e muito desgraçada.
Todos os esforços que fazia por agradar eram inúteis; Mário
nem parecia vê-la e mal parava em casa… A outra era bonita; morena
e altinha. Era pouco o que sabia, mas o bastante para a fazer sofrer.
Enquanto, no bulício da casa, todos se agitavam no trabalho ativo,
Camila conservava-se no seu quarto, muda, encolhida em uma poltrona, com as
mãos inúteis, o olhar febril.
A visão daquela. mulher de luto, da manhã do Netuno, não
a deixava nunca; sentia-lhe, como um castigo, a formosura, o perfume, e aquele
ar discreto de honestidade e de elegância. O que a punha doente, e que
a atormentava ainda mais era a obstinação de Gervásio
em negar-lhe uma explicação qualquer. Que haveria entre ambos
?
No seu ciúme e ressentimento, Camila esquiva-se agora ao médico;
era em vão que ele a chamava para as suas doces e cruéis entrevistas.
Mas toda a sua força em resistir ia afrouxando, e ela sentia bem que,
apesar de tudo, chegaria um dia em que os seus pés a levariam para
ele.
Foi ainda naquele canto do quarto que Francisco Teodoro a encontrou, ao voltar
da cidade.
– Estás doente ? Olha que eu trouxe um camarote para a Aída.
O Negreiros disse-me que vai muito bem por esta companhia…
– Que entende o Negreiros de música
– Ele tem excelente ouvido. Acho bom desceres. O Gervásio está
lá em baixo…
Mila desceu, e, ao sair para o terraço, parou entre portas, escutando
o que dizia o dr. Gervásio. Ele estava sentado, de costas para ela.
Em frente dele, em pé, Ruth ouvia-o atentamente, com a corda de pular
enrolada no braço, e o rosto ainda vermelho pelo exercício interrompido.
– "Você disse que a irmã da Lage é uma moça
bem educada, ,querendo dizer que ela é uma moça instruída.
Há diferença: educação e instrução
não se confundem. Repare: por que considera você essa moça
como bem educada? Porque fala francês, inglês, toca e desenha;
não é assim? Pois essas prendas, ainda que adquiridas com esforço,
compram-se aos mestres; as outras dão-se ou nascem da boa convivência.
Uma pessoa instruída não será de exterioridade agradável
se não for educada. A instrução nem sempre transparece
e nem sempre concorre para a felicidade. A educação prepara-nos
para a tolerância e revela-se em tudo, na maneira por que fazemos um
cumprimento, por que andamos na rua, por que nos ajoelhamos em uma igreja,
por que comemos a uma mesa, por que falamos ou por que ouvimos falar, por
que em discussões tonalizamos as nossas opiniões com as opiniões
contrárias; por mil efeitos, enfim, que, sendo imperceptíveis,
realçam o indivíduo, porque o polem e o tornam digno da boa
sociedade. A instrução é a força com que aparelhamos
o nosso espírito para a vida, lança e escudo para ataque e defesa;
a educação é o perfume que os pais inteligentes derramam
na alma dos filhos e que por tal jeito se infiltra neles, que nunca mais se
evapora, seja qual for o ambiente em que vivam depois.
É bom não confundir as duas palavras, Ruth, porque essas confusões,
à vista grossa dos indiferentes, não tem importância;
mas alteram a verdade e não escapam aos ouvidos delicados."
– Não tornarei a trocar o sentido dessas duas palavras…
– O Lélio disse-me ontem que lhe tinha trazido uma valsa de Chopin.
Ora, você pode tocar, mas não pode interpretar bem semelhante
autor.
– Por que?
– Porque ainda não tem idade para compreendê-lo. Chopin é
um músico perigoso, minha filha; é um torturador, um excitador
de almas. Contente-se com os seus clássicos, mais sadios e mais frescos.
A música como a leitura, deve ser ministrada com prudência. Falarei
ao Lélio. Sua mãe já desceu?
– Está ai, atrás do senhor.
– Ah…
Mila socorreu-se da filha, para não ficar só com o médico
que a via muito esquiva. A palidez e a tristeza adoçavam-lhe a fisionomia,
dando-lhe um encanto novo. O Gervásio observava-a calado, indeciso,
com medo de resolver de chofre a situação, com uma palavra só..,.
Todos os anos Francisco Teodoro celebrava os aniversários dele, da
mulher e dos filhos com banquetes de três e quatro mesas, vinhos a rodo
e danças até a madrugada.
Nesses dias o médico fazia apenas o seu cumprimento, oferecia as violetas
e o brinde do estilo, e retirava-se cedo para a casa silenciosa, lá
para os lados do Jardim Botânico, onde ia fazer as suas leituras, comodamente
reclinado na sua cadeira de balanço dentro do robe de chambre que lhe
agasalhava o corpo magro.
Camila conhecia suas antipatias por essas festas e não se lamentava
por isso da ausência.
A imensa casa era então pequena para o número de amigos. Nos
jardins iluminados a barões e a copinhos, nas salas, nos corredores,
nos terraços, no bufet, nos quartos, em toda a parte havia povo, rumor
de vozes e cheiro abafado de plantas pisadas, flores amornadas por luzes,
essências diversas reunidas ao odor dos molhos e das carnes servidas
no banquete. As camas sumiam-se ao peso de capas, mantilhas, chapéus
e sobretudos. Os convidados varavam todos os aposentos, como quem anda por
sua casa. Nina, as criadas e Noca atiravam para dentro de um quarto, o único
fechado, tudo o que não devia estar embaraçando o caminho: tapetes
retirados à pressa para as danças; mesas de centro, almofadões
do sofá, que tomavam espaço, floreiras, etc. As crianças
corriam pela casa, espalhando passas e migalhas de doces; e um pianista pago
dedilhava no piano as polcas e as valsas do seu repertório.
A essas festas iam sempre os colegas e os conhecidos de Francisco Teodoro,
o pessoal da sua casa de comércio, gente da vizinhança, alguns
doutores, um senador do império, a quem era dirigida a melhor das atenções,
e amigas de Camila, do tempo do colégio, mulheres de posição
e bem apresentáveis, que só com as ricas ela topara depois,
na balbúrdia da vida.
Nos intervalos da dança havia sempre quem tocasse dificuldades ao
piano, ou cantasse algum romance italiano.
Francisco Teodoro, jubiloso e amável, instava para que comessem, para
que bebessem. Não se esquecia de ninguém, punha mancheias de
balas nos regaços das crianças, ordenava que se abrisse champagne,
conduzia as senhoras idosas ao bufet recomendando à Noca que distribuísse
pela criadagem vinhos e doces.
Eram festas pantagruélicas, em que o riso se comunicava mais pelo
barulho que pela intenção.
Camila dançava, roçando os seus maravilhosos braços
nus pelas mangas dos comendadores ou dos empregados do marido.
A mesa os brindes sucediam-se atropeladamente. Para o fim, havia sempre uma
voz alta, pausada, que se erguia a vitoria do trabalho honrado e puro, e essa
voz lembrava os maus dias de Francisco Teodoro, a sua pobreza, a, sua energia
e o seu triunfo.
O dono da casa respondia com palavras trêmulas e olhos umedecidos.
Tilintavam as taças e a música vibrava com força na sala.
Voltavam para as danças. Como Ruth não dançasse, o pai
chamava-a de minha estudiosa gabando-a aos convidados, que olhavam um pouco
espantados para ela. Ruth esquivava-se àquela curiosidade e fugia para
fora. Iam encontrá-la depois no balanço, sozinha, voando à
claridade das estrelas…
Só no dia seguinte ao do festim é que o dr. Gervásio
ia ao palacete Teodoro saborear o peru quebrado do almoço e os fios
de ovos, na quietação cansada da família.
Então eram por toda a parte vestígios da barafunda. Nina contava
os talheres, que espalhados entre a louçaria e os cristais punham onda
de luz pálida na mesa do jantar; Noca varria as salas, criados lavavam
os mármores da escada e do vestíbulo e o jardineiro guardava
os copinhos e as lanternas disseminadas pelo jardim.
Era uma dessas festas que Francisco Teodoro desejava agora oferecer aos seus
amigos. Desceu a consultar a mulher e o médico. Encontrou-os ainda
no terraço, ao lado de Ruth, que as mãos da mãe prendiam
nervosamente.
Mila acolheu a idéia com frieza; o marido insistiu:
– Você está mole, anda diferente. Reaja, tome remédios.
Que diabo! eu tenho obrigação de obsequiar os homens. Eles vêm
aí em nome da colônia. Não quero fazer figura triste.
– Alguma manifestação ? perguntou Gervásio.
– Sim. Uma tolice. Idéias do Braga, do Lemos e de outros. Avisou-me
hoje disso o Negreiros. Foram até ao ministro e não sei mais
o quê! Enfim, já disse, o que eu não quero é fazer
figura triste. O engraçado é que minha mulher falava em dar
um grande baile, e agora, que se apresenta a ocasião, faz cara feia!
Dr. Gervásio acudiu. Achava magnífica a idéia e procuraria
auxiliá-la na execução. De si para si pensava que esse
pretexto traria Milú ao movimento da sua vida habitual; arrancá-la-ia
daquela obstinação de pensamento, daquela apatia física
que o atormentava.
Pela primeira vez o viram interessado por uma festa. Francisco Teodoro pediu-lhe
que a dirigisse. Desse dia em diante o médico punha e dispunha do palacete,
como senhor absoluto. Determinava como as coisas se fizessem. A ceia seria
no terraço, ao fundo, sob um toldo de seda, entre bosquetes de avencas
e camélias brancas; desenhava ornamentos, encomendava flores, substituía
estofos, harmonizava cores, dava estilo e graça ao que só tinha
peso e luxo; idealizava a matéria, arrancava uma alma delicada àquelas
salas carregadas e mudas.
Mila assistia a tudo silenciosa, abatida pelas suas suspeitas; mas, pouco
a pouco, Gervásio convencia-a de que a sua ciumada era lima doidice.
Não tivera ele também ciúmes do capitão Rino ?
E ai estava: já nem pensava nisso!
Como o coração de Mila não comportasse rigores, afeito
à felicidade, ela foi esquecendo.
IX
Uma tarde, Mário entrava na sala de jantar, quando viu o dr. Gervásio
à mesa; então tornou a sair, sem dizer uma palavra.
Mila sentiu o coração parar-lhe no peito. Teodoro não
ligou importância ao caso; para ele o filho voltara a buscar algum objeto
esquecido, e, tão entusiasmado estava a falar em negócios, que
só para a sobremesa disse espantado:
– É verdade, e o Mário ? então o Mário não
voltou?
Nina murmurou, desculpando-o:
– Acho que está incomodado…
– Vou ver isso.
Teodoro levantou-se.
Calaram-se todos, como se o mesmo fio de desconfiança os ligasse entre
si. Camila tremeu. Que diria o filho? como o ouviria o pai? No seu amor, de
tamanhos suplícios, nenhum igualara nunca ao desse instante.
Tinha chegado a hora do marido saber tudo, e pelo Mário!
Dr. Gervásio compreendeu-a e tentava sossegá-la de longe, com
um olhar firme, de confiança, certo de que nada vale antecipar tristezas,
que nem por isso as coisas deixam de vir, pelos seus pés ou pelas suas
asas, quando têm de vir. Mas tudo o fazia esperar que não viesse
a que ela temia…
E para afastar preocupações, falou de alegrias: anunciavam-se
festas; abria-se uma exposição de pintura, excelente; e comentavam-se
os brios de um tenor novo para o lírico…
Ele sentia que sua voz soava falso; ninguém o ouvia, nem ele mesmo,
que apesar da calma aparente dizia aquelas palavras pensando em escutar outras,
que viessem de fora, como raios, fulminando tudo.
Mila encostou-se ao espaldar da cadeira, muito pálida, com uma expressão
interrogativa no olhar assombrado. Dr. Gervásio falava, falava…
Entretanto, Teodoro rompeu pelo quarto do filho.
– Então, seu Mário ? isso faz-se ! Entra-se em uma sala para
jantar e volta-se para trás sem satisfações, de mais
a mais diante de visitas?!
– Visitas? que visitas? o dr. Gervásio?… Esse é de casa.
– Não é; mas que fosse; se não me consideras nem a tua
mãe, devias ao menos respeitar o hóspede.
– Mas se é o hóspede que eu detesto ! não posso ver
aquele homem, papai, não posso ver aquele homem!
– Tu estás doido! por que?!
Mário calou-se, de repente, arrependido, de olhar esgazeado. O pai
insistia, furioso:
– Essas coisas não se dizem à-toa; responde: porque lhe tens
essa raiva ?
– Não sei… desde criança que antipatizo com ele… por instinto…
Aborreço aquele rosto pálido… aquele corpo esguio.. aquela
voz desigual, aquele sorrisinho de mofa, embirro com as suas mãos de
mulher, com os seus ditos de pedante, com a sua assiduidade, com os seus sapatos,
com a cor das suas roupas, com os vidros das suas lunetas, com as suas essências,
com ele e com tudo que é dele. Não me pergunte mais; não
posso dizer mais nada; talvez lhe pareça pouco. É muito. Por
hoje desculpe-me. Estou doente.
– Se estás doente, trata-te; só mesmo um delírio de
febre explica o que disseste. Fica bom, que temos de ajustar contas! E que
o caso não se repita, ouviste? que não se repita!… senão…olha
que eu não sou bom!
Francisco Teodoro saiu ameaçador, mas foi dizer ao médico que
efetivamente o Mário estava indisposto…
Nessa noite, como nas outras, o moço foi para a rua sem um – até
logo!
Era preciso ir buscar a felicidade onde a encontrasse; a casa aborrecia-o.
A família andava a passear pela chácara, na doce pasmaceira
costumada, vendo regar as plantas e nascer as estrelas. Fazia um calor bárbaro.
Ruth voava agarrada às cordas do balanço, cantando alto, e atirando
flores de cajazeiro à mãe, cada vez que ela passava por perto.
Camila recebia-as com ambas as mãos e sorvia-lhes o aroma ácido
e leve, numa deliciosa sensação, afagada pela homenagem.
– Cuidado, minha filha
– Ai vai um beijo, mamãe
O beijo voava com as flores, que se prendiam aos cabelos de Mila. E o passeio
continuava, arrastado e feliz.
– Um dia esta menina leva um tombo!… Mas eu sei o que faço. Amanhã
cedo mando cortar as cordas do balanço. Mais vale prevenir!
– Não, Teodoro, não ! É o divertimento dela; e é
tão inocente!
– Lá vens tu…
Ruth nãos os ouvia, voava no ar como uma pluma, cerrando os olhos
à claridade que se difundia nas cores gloriosas de um crepúsculo
ardente. De vez em quando, num impulso mais forte sua cabeça roçava
na rama florida do cajazeiro, e o sussurro das folhas tinha para os seus ouvidos
um rumor divino e ritmado, de música impecável. Toda a sua força
se concentrava nas mãos, que a aspereza das cordas magoava, única
parte então sensível do seu corpo, que ia e vinha na luz cambiante
da tarde, como uma sombra movediça e impalpável.
Na vertigem do vôo, ela não via, em cima e em roda, senão
claridades estonteadoras, onde anjos azuis abriam asas esgarçadas de
nuvens fugidias, por entre barras de ouro e enoveladas fogueiras rubras. Em
baixo, na terra cor de âmbar, o veludo verde das gramas e dos arbustos
distendia-se num espreguiçamento voluptuoso e macio, à espera
do sono.
Ia chegando a hora da consagração puríssima da natureza:
a hora das estrelas, Não tardou que o alaranjado poente se concentrasse
num roxo escuro, bipartido em ilhotas negras, sobre um mar de prata. De repente,
a penumbra.
O calor aumentava; houve roncar de trovoada ao longe.
– Quer Deus Nosso Senhor que eu me vá embora, disse o médico.
– Sim, é prudente, nós vamos ter chuva… respondeu Teodoro,
consultando o céu. E chuva de arrasar!
Camila ordenou a Ruth que descesse e fosse dentro buscar o chapéu
do médico. Despediram-se.
Quando Teodoro entrou em casa perguntou à Noca:
– Seu Mário ?
– Seu Mário saiu…
– Hum… eu já esperava isso mesmo… Mas ele me paga…
Camila e Nina entreolharam-se com ligeiro susto, seguiram caladas para a
saleta, onde costumavam passar o serão. Mal se sentaram, Mila impacientou-se.
Formigas de asas voltejavam em nuvem ao redor da luz, e perseguiam-na a ela
também, batendo-lhe no rosto e entrando-lhe pela gola do vestido.
– Tudo se junta, quando a gente está aborrecida ! disse ela zangada.
Nina sacudiu as formigas com o lenço.
Pelas dez horas, Francisco Teodoro chamou de novo a mulata.
– Seu, Mário ?
– Ele ainda não voltou…
– Está direito. Você vá lá embaixo botar a tranca
na porta. Quando ele vier, mesmo que bata, não abra. Percebeu?
– Percebi, sim, senhor.
– Agora chame o Dionísio.
E ao Dionísio como a todos os criados, foi dada a mesma ordem.
Mila levantara os olhos do livro que estava lendo. Nina picava os dedos com
a agulha, mal acertando com a costura.
Teodoro voltou-se para elas:
– Nos tempos antigos não havia chaves de trinco. Os filhos deitavam-se
à mesma hora que os pais…
– Saíam pelas janelas… murmurou Camila.
– Pois sim!
– E se chover? A noite está tão feia…
– Que volte para trás. Não vem a pé.
– Mas como despede o tílburi ao portão, terá de voltar
a pé, e debaixo dágua…
– Pois que apanhe chuva, se chover, exclamou Teodoro fora de si; ou raios,
se caírem raios. Senhora, isto então é vida?!
– É a mocidade…
– Já me tardava. Muito obrigado! Eu pude passar a minha dobrado em
dois ao peso do trabalho, e o senhor meu filho só sabe gastar o que
ajuntei com o suor do meu rosto!
– Ele não tem a mesma saúde; Mário é fraco.
– Mais uma razão.
– Qual razão!
– Basta; resolvi, acabou-se. Daqui em diante, ou o rapaz me entra em casa
a horas convenientes ou…
– Ou?…
– Ou que vá dormir para o diabo!
Camila olhou com desprezo para o marido, enojada daquela fúria. Quis
replicar, mas veio-lhe de repente um grande medo de que Francisco Teodoro
a fizesse de novo intermediária das suas ameaças, e fugiu da
sala para não responder, batendo com a porta, num desespero.
– É por estas e por outras que o Mário está assim…
resmungou o negociante, percorrendo a sala com as mãos nos bolsos,
a tilintar as chaves.
Fora, a noite estava negra, abafadíssima. Vinha da terra e dos vegetais
um cheiro intenso, morrinha de febre, que engrossava a atmosfera, corporizava-a,
tornando-a irrespirável.
Ainda não eram onze horas e já se recolhiam todos para os quartos,
amodorrados, bambos.
Pouco depois levantou-se a primeira lufada, que veio roncando de longe, soturnamente.
Fecharam-se as janelas; a tempestade aí estava. Quando rezava para
dormir, Noca teve um estremecimento: uma coruja passou cantando rente ao beiral
do telhado.
A mulata persignou-se duas vezes e ficou à escuta.
O que passou depois, foi o vento.
Ela deitou-se com um suspiro.
Quem não se deitou foi a Nina. Sozinha, no seu quarto estreito, abriu
a janela e debruçou-se para o jardim sondando a rua, através
do arvoredo.
Os lampiões de gás mal alumiavam as calçadas solitárias,
envolvidos pelas nuvens de poeira, que vinham de longe, varridas pela ventania,
lambendo tudo. De vez em quando, um bonde passava, de oleados corridos, com
tilintar de campainhas que vibravam timidamente no vozear medonho da noite.
Nina voltou para dentro, desabotoou o corpinho e atirou-o para uma cadeira;
sentia-se opressa. O tufão descansava: ela voltou à janela,
curiosa, com ansiedade, cosendo o peito nu ao peitoril largo. Não viu
nada. A voz arrastada de um bêbedo guinchava na esquina, em falsete,
acompanhada por outra voz que falava na mesma toada. Uma nova lufada veio
forte, terrível, abalando tudo.
A única janela iluminada da vizinhança fechou-se.
O bêbedo foi arrastado para longe, perderam-se os seus queixumes à
distância, e só ficou o vento, cada vez mais forte, uivando,
uivando.
Agora não parava; enchia tudo com o seu sopro formidável.
Sentia-se o estalar crepitante das folhas estorricadas pelo sol e o aroma
das verdes, que ele ia levando pelo ar em revoada louca. Na inútil
resistência da luta, as árvores contorciam-se, estalavam; caíam
arbustos arrancados pelas raízes, e frutas verdes despenhavam-se sobre
as telhas, com estrondo.
Nina expunha a cabeça nua ao açoite da tormenta, enervada pela
fixidez da sua idéia. Entretanto, sabia, o Mário não
merecia aquilo, não a amaria nunca.
Havia uns quinze anos já que ela morava naquela casa, levada pelo
pai, o Joca: era então muito enfezada, apesar dos seus dez anos. Entrara
para ali como poderia ter entrado para um asilo qualquer: para ter cama e
pão. Não ignorava isso, lembrava-se de tudo. Era obrigada mesmo
a meditar no passado mais do que queria. Não conhecera a mãe,
e em frente à mudez da treva pensava nela, como se a tivera visto.
Não compreendia por que rejeitavam o seu coração amoroso.
Nem mãe na infância, nem noivo na mocidade. Que triunfo!
Sabia pelos outros que a mãe fora urna mulher da má vida e
baixa classe; mais nada; e não era pouco.
Criara-a desde o primeiro ano a avó paterna, d. Emília, sem
muitos agasalhos, porque o dinheiro era escasso e a paciência já
não era nenhuma. Por causa disso aprendera depressa todos os serviços
caseiros, era a copeira da família, e aos nove anos já não
se atrapalhava quando tinha de por uma panela de arroz ou de feijão
no fogo. Lá teria ficado sempre em Sergipe, se o Joca não se
tivesse casado com uma viúva carregada de filhos e que não podia
ver a enteada diante de si… Sempre as antipatias! Não era para tornar
má uma criatura? Lembrava-se que não fora também acolhida
com entusiasmo na casa de Francisco Teodoro.
Ao princípio, amedrontada, Nina procurara a companhia dos criados,
de preferência à da família, habituada aos serviços
grosseiros e às palavras brutas, com o seu ar de cãozinho batido.
Toda a gente tomava isso como o mais claro indício dos instintos baixos;
aquilo era o traço da lama que ela trazia da mãe e que arrastaria
pela vida fora.
Habilidosamente, Noca aproveitou-a para entreter Ruth, que dava então
os seus primeiros passos. E nesse mister, a menina revelou a doçura
do seu caráter e o engenho do seu espírito. Ruth em poucos dias
preferia-a aos outros, atirando-lhe ao pescoço magrinho e pálido
os seus dois bracinhos redondos. Aquela conquista foi uma glória para
Nina. O amor de alguém nascia para ela, como a luz para um cego, e
sentia nos beijos cor de rosa da criança gorda e bem tratada o aroma
da vida, que até então ela só parecia ter espreitado
de longe.
Mário era nesse tempo um rapazinho de cinco anos, alto e forte para
a idade, muito lindo, arrojado e pouco amável para ela. Abusando da
sua força e da sua posição de preferido, trazia-a fascinada,
pronta a ceder às suas vontades absurdas.
De todas as pessoas, uma das mais indignadas contra a adoção
da Nina em casa de Teodoro fora d. Joana, para quem a menina cheirava a pecado
e era uma blasfêmia viva aos preceitos da moral religiosa. Para essa
classe há os asilos, afirmava ela; as plantas daninhas não são
para os canteiros de violetas. A caridade faz hospícios, orfanatos,
rodas, onde se apuram e aperfeiçoam os filhos da impureza e da vergonha;
mas agasalhar no seio honesto um animal desconhecido, era exporem-se a um
veneno de efeitos imprevistos.
Mila não repelia a idéia, cheia de indignação
pela origem da sobrinha; entretanto, a coitada ia pouco a pouco conquistando
as boas graças de todos, devagar, pela sua docilidade e o seu préstimo.
Apesar de miúda e de pálida, ninguém a via doente; tinha
os músculos flexíveis, como o gênio. Aos doze anos conservava
o seu ar estúpido e humilde; não conhecia uma letra; mas ensinava
as criadas novas a varrerem a casa e a porem a mesa com perfeição.
Como o Mário lhe batesse um dia com os arreios do seu cavalo de pau,
Francisco Teodoro resolveu pô-la em um colégio, de pensionista,
recomendando uma instrução prática, nada ornamental.
Bem orientado andou.
O colégio fora o seu melhor tempo. Do pai não sabia senão
de longe em longe, quando ele participava à irmã o nascimento
de mais um filho, com umas lembranças murchas, para ela, no fim da
carta.
Ao princípio, a idéia daquele irmão, que não
veria talvez nunca, sensibilizava-a; depois deixou de pensar nisso… Para
quê?
Foi só depois de mulher que Nina começou a amar a mãe;
amor ignorado por todos e que ela cultivava como um segredo caro. Sondai bem
o coração mais puro, que lá no fundo achareis um mistério,
alguma coisa que existe e que se nega, ou porque faça corar ou porque
faça sofrer.
Nina tinha vexame de perguntar pela mãe e ardia em desejos de saber
dela. Onde estaria essa mulher repudiada?
Ninguém lho dizia; assim, ora a imaginava na sepultura, e era a idéia
mais consoladora, ora regenerada, mas sozinha… ora em um desses recantos
negros da cidade, já velha e ainda atolada no vicio, batida, escarnecida,
miserável.
No meio da treva, que ela interrogava com ânsia, pareceu-lhe sentir
a alma impenetrável da mãe solicitando-a nó agoniado
suspiro do vento; então estendeu os braços, soluçando,
no desejo da Morte, para o encontro definitivo das duas almas e a fusão
de um beijo eterno, que redimisse uma e desse à outra a sua primeira
alegria.
Reboaram os primeiros trovões, com enorme estampido; um ziguezague
de ouro cortou o espaço negro, e à luz branca de um relâmpago
a casaria muda bailou macabramente com o arvoredo escuro.
A convulsão passou, para voltar depressa; na fosforescência
móbil e ofuscante da luz, todas as coisas tomavam proporções
extraordinárias, mas logo, nos intervalos, a treva da noite mais se
condensava.
Aplacou-se o vento, e então, só de um jato, a chuva caiu, pesada,
brutal, ensurdecedora.
A água borrifava a janela. Nina procurou um chale, envolveu-se e voltou.
Era tempo: através das torrentes da chuva, viu tremeluzir indistinta
no véu fosco das águas, a lanterninha de um tílburi.
Debruçada, alongando a cabeça, a moça gritou:
– Mário! Mário!
Mas a sua voz fraca perdia-se no dilúvio.
O primo abria o portão; ela tentou ainda dizer-lhe que voltasse, que
o pai lhe trancara a porta; mas a lanterninha do carro movia-se já
na sombra, ia-se embora.
Nina voltou para dentro, acendeu a vela e esgueirou-se para o corredor.
Com o coração aos saltos, foi resvalando pela alcatifa do passadiço,
com a precaução de quem vai para o crime.
Quando chegou embaixo já o Mário sacudia a fechadura com impaciência.
praguejando raivoso.
Ela tateou os ferrolhos e recomendou:
– Espere um bocadinho, Mário!
– Que estupidez!
– Não faça barulho… já vai! sussurrava ela sem que
ele a ouvisse de fora.
Enfim, a porta abriu-se. Mário esperava cosido ao umbral.
– Que idéia foi esta de deixarem a chave…
E ele interrompeu a frase e a cólera, ao ver a prima ali. Por que
seria ela e não qualquer criado, quem lhe ia abrir a porta?
– Foi ordem do tio Francisco. Boa noite.
Nina quis subir logo, mas uma lufada de vento obrigou-a a proteger a chama
da vela com a mão, e com o gesto desprendeu-se-lhe uma ponta do chale
que a envolvia. Na meia escuridade do vestíbulo, Mário percebeu-lhe
a doçura do ombro nu, pequeno, redondo, um pouco de carne virginal
guardada até aí em um recato que nem o baile afuguentara nunca.
E já ele não viu senão a pureza daquele ombro acetinado,
saindo do meio das lãs, como um desafio aos seus sentidos, num assalto
impudico e voluptuoso.
Acudiu-lhe então a idéia perversa de haver um propósito
malicioso naquela história. Não lhe afirmara Noca tantas e tantas
vezes que a prima o amava?
A filha da mulher de má vida aí estava agora, como devia ser:
livre de hipocrisias. Mário estendeu-lhe os braços. Nina compreendeu.
Uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto; segurou o chale com força e
subiu correndo.
A vela apagou-se, os degraus da escada pareciam multiplicar-se debaixo de
seus pés. No alvoroço, pisava sem cautela ora no assoalho, ora
no passadiço, sentindo as faces abrasadas de vergonha, feliz no seu
desespero, supondo-se ainda perseguida pelos braços do Mário,
que se quedara estupefato no mesmo ponto.
Um trovão estalou, como se uma bomba tivesse rebentado em casa. Nina
sentiu os joelhos vergarem-se-lhe, mas continuou no seu galope tonto até
ao patamar. No corredor, em cima, receou ainda errar de porta.
Com as mãos estendidas apalpava a escuridão, ouvindo só
o estrondo da chuva, compacta, sempre igual. Temia que o primo a perseguisse
e não se atrevia a voltar a cabeça, para não esbarrar
com ele, ali mesmo, junto aos seus calcanhares.
Os pés, habituados ao caminho, levaram-na direita ao fim; uma rajada
assobiando pelas frinchas de uma porta, tê-la reconhecer o quarto, de
que deixara aberta a janela, e ela entrou arrebatada, forçando a porta,
que resistia. Fechou-se logo à chave, colou o ouvido à fechadura.
Ninguém; suspirou de alívio, estava só.
Um relâmpago conduziu-a à janela, de que fechou os vidros, alagando-se
toda. Despiu-se à pressa, às escuras, deixando cair toda a roupa
molhada no chão.
E foi à luz branca de um outro relâmpago que ela se viu toda
nua, muito pálida, no grande espelho do guarda-vestidos. Escondeu o
rosto de repente, como se vira um fantasma, e saltou para a cama, enfiando
a camisa de dormir, num movimento de louca, com medo da noite, com medo da
sua própria imagem, que se lhe afigurava impressa para todo o sempre
no vidro.
Era tal a sua confusão e a vibração dos seus nervos,
que não sentiu alguém andar pelo corredor de vela acesa e passos
compassados.
Mário adormecia feliz, na melhor paz da vida; Francisco Teodoro voltava
para o sono interrompido, tendo intimamente perdoado a quem abrira a porta
ao seu rapaz, por tão feia noite de trovoada, – e ainda Nina, na estreiteza
da sua cama, com os olhos pasmados para o teto negro, sofria, sofria, sofria…
No outro dia, às oito horas da manhã, quando Francisco Teodoro
entrou na sala de jantar para o almoço, comido sempre cedo e à
parte da família, já lá encontrou a sobrinha, retocando
os arranjos do copeiro para a sua mesa.
– Bons dias, Nina; você passou bem a noite? perguntou-lhe ele, fixando-lhe
os olhos pisados.
– Eu passo sempre bem… respondeu ela corando.
Ele teve pena; e mais baixo, para que o criado não o ouvisse:
– Você fez mal em abrir a porta a meu filho; ele não lhe merece
esses sacrifícios… e… e mesmo isso não lhe fica bem; a sua
intenção foi boa; realmente a noite estava pavorosa… contudo
espero ser esta a última vez que sou desobedecido.
Envergonhada, prevendo grandes males, em uma angústia em que se fundia
um prazer, adivinhando os pensamentos do primo, maldizendo-o e adorando-o,
sentindo-se dele para a vida e para a morte, quase que se arrependia de se
não ter abandonado, soluçando por aqueles braços de que
fugira…
Nina estava hirta, encostada ao espaldar de uma das cadeiras arrumadas junto
à mesa. Um vento de desespero sacudiu-lhe as idéias, sem que
ela atinasse com que palavra responder. Francisco Teodoro reclamou então
dela, mesmo para a tirar do embaraço em que a via, que lhe partisse
uma fatia do roast-beef frio e que lhe fosse depois buscar o Jornal, esquecido
em cima, no quarto de toilette.
Aquela maneira polida e reservada não era a usada pelo negociante
nos seus momentos de censura. Ao contrário, ele abusava dos termos
violentos e atroava a casa com as suas mais altas vozes. E era uma dessas
crises que a Nina esperava e que viu mudada num tom em que a admoestação
era misericordiosa, e por isso mesmo mais comovedora.
Ela não respondeu, e apressou-se em servir o tio.
X
Raras vezes as tias do Castelo apareciam em Botafogo. D. Itelvina não
se arredava de casa, espicaçando o serviço da Sancha, arreliada
com os desperdícios e a beatice da irmã; esta é que,
de longe em longe, ia sentar-se à mesa de Mila para uma palestra curta,
no intervalo das suas devoções.
Nina, ainda atarantada pela advertência do tio, punha no terraço
a gaiola do cacatua, quando viu d. Joana atravessar o jardim com os seus passos
vagarosos, de mulher gorda e cansada.
– Que milagre! a senhora por aqui!
A velha sorriu-lhe e só depois de sentada num banco do terraço
é que falou, com a blandícia costumada, desamarrando com as
mãos papudinhas o nó da mantilha preta.
– Mal imagina você por onde tenho andado!
Olhe: às cinco horas já eu estava em São Bento, ouvindo
a missa de N.S. da Conceição; depois dei muitas voltas pela
cidade, angariando esmolas.
– Tão cedo?
– Nos bairros pobres a vida começa de madrugada. Por falar em esmolas,
ontem estive em casa das Bragas, da rua dos Ourives. Conhece-as?
– Não, senhora.
– É pena; são umas almas muito tementes a Deus. Achei-as atrapalhadíssimas,
preparando doces para oferecerem ao vigário Alves, que faz anos hoje.
Não imagina como elas são…
– Desculpe, tia Joana, interrompeu Nina; e voltando-se para dentro:
– Ó Dionísio, leve o café ao sr. Mário, ouviu?
– Ainda estão dormindo?!
– Tio Francisco já saiu.
– Triste pecado é a preguiça… enfim, cá estou eu rezando
por todos… Pois as Bragas entregaram-me dez cartões para um grande
concerto que vai haver no Cassino, em beneficio da igreja do Monte Serrate…
Para o fim que é, ninguém se pode negar; Camila deve levar a
Ruth a essas festas de músicos… Eu pago a minha cadeira, mas lá
não vou, e as outras nove espero deixá-las aqui. Vocês
vão a tantos espetáculos indecentes, que não fazem nada
de mais indo a este, que é para bom fim. Canta uma tal… Marcondes,
ou… não sei quê…
– A senhora fale com tia Mila. Seu João! chamou ela interrompendo
outra vez a conversa, voltada para o jardineiro que passava: olhe! é
preciso fazer um ramo novo para a sala de jantar; como não há
rosas, faça de folhagens… Já reparou para as palmeirinhas
da entrada?
– A chuva escangalhou-as; desfolhou as flores, e abriu covas nos canteiros,
que Deus nos acuda!
– Veja se remedeia isso hoje mesmo…
O jardineiro passou; d. Joana disse:
– É pena que não haja rosas; eu gostaria de levar algumas ao
vigário Alves. Ontem a mulher e as filhas do dr. Mendes passaram lá
o dia, pregando cortinas, tapetes, ajudando d. Maria a enfeitar o quarto do
filho… Aquelas são também muito boas pessoas…
– Quer café, tia Joana?
– Aceito… Você é das tais que nunca vão à missa…
há de se arrepender…
– Não tenho tempo… Quer mais açúcar?
– Quero… Qual não tem tempo!… pois olhe, você tem pecados
atrás de si, que deve purgar, se quer merecer o nome de boa filha…
Nina franziu as sobrancelhas e, desviando a vista do rosto branco da tia,
olhou para o jardim, ainda empapado dágua, muito verde, juncado de
folhas arremessadas pela ventania..
D. Joana saboreava o café, sem reparar na moça, que continuava
em pé, com o rosto contraído por uma expressão de raiva
e de melancolia.
Ruth encontrou-as assim. Ela vinha toda fresca do banho, com o seu cabelo
negro e ondeado solto sobre os ombros estreitos, e o vestido branco, de cinto
largo, que lhe tornava a cintura grossa e lhe dava ao corpo um ar de anjo
de catedral.
– Como está crescida! exclamou d. Joana ao vê-la.
Ruth mostrou os dentes alvos num sorriso alegre.
– Bons dias! Sabe, tia Joana? Ainda ontem pensei na senhora!
– Por que?…
– Porque ando com muita vontade de ir ao observatório do Castelo ver
a lua e as estrelas.
– Que lembrança! pensei que fosse para a levar a alguma festa de igreja…
– Não; isso cansa-me, e, depois, já tenho visto tantas! Naquela
da Sé, outro dia, os músicos desafinaram que foi um horror!
Se ao menos cantassem bem… Quem me lembrou a ida ao observatório
foi o capitão Rino. Ver bem a luz e a cor das estrelas é o que
me preocupa agora. Leve-me lá, titia, sim?
– É melhor que você pense em conhecer o céu por dentro.
– Seria querer demais. Você já leu hoje a Flor de Neve, Nina?
Nina meneou com a cabeça, que não.
– Que história é essa de flor de neve? indagou D. Joana.
– É um romance do Jornal, muito bonito. Estou morta por saber se a
Madalena morreu… também se tiver morrido não tornarei a pegar
no Jornal!
D. Joana ia reprovar a leitura, quando Camila apareceu no terraço,
bonita, de peignoir cor de rosa, toda rescendente, dando as mãos as
duas filhas pequenas.
Nina tomou a bênção à tia e, para fugir à
presença da velha, que naquele momento se lhe tornara odiosa, entrou
logo para a sala de jantar.
– Isto aqui está muito úmido; por que não foi lá
para dentro, tia Joana?
– Este banco está enxuto. A Nina estava aqui…
Camila, depois de cumprimentar a tia, tirou da gaiola o cacatua e beijou-o
no penacho.
Depois, para a velha:
– O que a trouxe tão cedo?
D. Joana voltou à história das Bragas, da missa em S. Bento,
e apresentou à sobrinha as dez cadeiras para o concerto em benefício
da capela do Monte Serrate.
– Como é para um motivo de religião, eu fico, do contrário
não; porque exatamente no domingo tenho convite para uma festa.
– Hoje faz anos o vigário Alves; você não lhe manda um
bilhete?
– Posso mandar.
– Acho bom. Ele reza muito por sua intenção. É um santo
padre e um perfeito homem.
– Ele é bonito, e trata-se bem. Já tomou café, titia?
– Já.. Por que é que você deixa Ruth ler jornais? Ela
falou ai num folhetim; isso são obras impuras; é preciso zelar
pela alma de sua filha.
– O pai não se importa, que hei de fazer?
– Ainda não fez a primeira comunhão?
– É cedo.
– Não é tal. Ela não quererá?
– Se quer! ainda que não fosse senão para pôr coroa e
véu… Todas as meninas sonham com a primeira comunhão. É
um ensaio para o casamento.
– Heresias… E o Mário… como vai o Mário?
– Está um moço bonito.
– E… mais ajuizado?
Camila corou levemente, roçou em um disfarce as faces pelas asas brancas
do cacatua, e respondeu com um sorriso:
– Como todos os rapazes de vinte anos…
Lia e Rachel tinham-se engalfinhado a um canto por causa de um pêssego
verde, derrubado pela chuva e que ambas disputavam. Mila chamou a Noca, que
interviesse e levasse as contendoras para dentro. D. Joana levantou-se com
um gemido e foi sentar-se a um canto da sala de jantar.
Estava alquebrada, pesavam-lhe as pernas; soube-lhe bem a flacidez da poltrona,
que a envolveu logo numa carícia de sono. Cochilou gostosamente, mal
ouvindo as correrias e as gargalhadas das crianças, o tinir das louças
que punham na mesa, e os passos da criadagem em movimento. Através
do sono tudo aquilo era sutil e bom como uma música a distância.
Quando despertou, iam servir o almoço. Perto, em um vão de janela,
o dr. Gervásio, com roupa clara e flores na lapela, conversava baixo
com a Camila.
D. Joana tossiu para preveni-los da sua presença; não se queria
aproveitar do momento para indiscrições. Por fortuna, Nina entrou
na sala,, vinda da copa, carregando uma cestinha de uvas brancas.
Lá em cima Ruth atacava os graves e agudos do violino, com frenesi.
"Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, parece o zurrar de um burro!"
pensou consigo a velha, espreguiçando-se disfarçadamente.
À hora do almoço, o Dionísio trouxe uma bandeja para
servir Mário no quarto, visto que este só comparecia á
mesa da família quando o dr. Gervásio não estava.
Camila mal encobria o seu desespero, velando aquela ofensa com desculpas
frouxas, só para que o médico não reparasse. E ele nem
viu tal coisa; aceitou os pretextos sem desconfiança. Mário
merecia-lhe pouca atenção.
Entretanto, Nina apartava para o primo o melhor bife, o pedacinho de pão
mais fofo e os ovos mais perfeitos. D. Joana notou aquilo muito calada, com
medo de mexer em casa de maribondos, arrancando do peito suspiros curtos,
que afogava em bordeaux…
Dr. Gervásio observava a Ruth, que os exercícios que lhe ouvira
não estavam no andamento justo. Deveria repassá-los, antes da
lição; depois aconselhou a Camila que chamasse uma aia inglesa
ou alemã para as gêmeas, que perdiam o tempo, pervertendo-se
com a linguagem de criadas boçais. Ele opinava pelas alemãs;
são disciplinadoras, risonhas e mais acessíveis que as outras.
Depois de dirigir uns dois gracejos a Nina, o médico fixou com atenção
o rosto pálido e humilde de D. Joana, muito calada ao lado de Ruth.
Lembrou-se de relance do encontro que tivera com ela no alto da ladeira de
João Homem, sobre as pedras gordurosas da calçada, entre magotes
de moleques curiosos e paredes sujas de prédios velhos.
Ficara-lhe no ouvido toda a censura dela, e houve então nele um ímpeto
de agarrar Mila e de beijá-la mesmo ali, diante dos olhos castos e
pudibundos da velha.
Foi só depois do café, ao acender o charuto, que ele ouviu
d. Joana, com o seu tom açucarado, queixar-se à sobrinha:
– Por que é que você não ensina ao menos as suas filhas
a se persignarem quando se sentam e se levantam da mesa? Dar graças
a Deus pelos bens que recebem não é vergonha nenhuma… A sua
consciência, Mila, está muito perturbada por maus conselhos e
exemplos de ateus sem caridade… Eu não queria falar, mas tenho-lhes
muita amizade para ficar impassível; não lhe parece que está
em tempo de ensinar estas meninas a respeitarem a nossa religião?
Dr. Gervásio sorriu; compreendera o remoque; Mila protestou:
– Todos em casa eram religiosos, ninguém deixaria de ouvir a sua missa
ao domingo, exceto a Nina, que nunca tinha horas para coisa nenhuma, e uma
ou outra criada mais sobrecarregada de serviço; à noite também
ninguém adormecia sem ter rezado pelo menos um Padre Nosso. Ela não
se esquecia dos seus deveres.
Isto foi dito em tom seco, que encrespou um tanto o gênio manso da
tia; para vingar-se do médico, de quem supunha emanar toda a alteração
dessa família tão sua, ela exclamou com ironia, voltando-se
para ele:
– Aposto em como o doutor também reza todas as noites?
– Aos meus deuses, respondeu ele com toda a calma, por que não?
– Como se chamam os seus deuses?
– Camões, Dante, Shakespeare… Nunca adormeço sem ter lido
algum poeta, e de alguns recito mentalmente versos divinos. E a razão
por que me explico ter tão belos sonhos, visto que este feio homem
que aqui esta, excelentíssima, tem sonhos que perfumariam a existência
da mais formosa das mulheres. Ontem li Dante. Estive no inferno, D. Joana,
e que inferno belíssimo!
– Vá trazendo para cá essas idéias…
– Descanse; esta religião não se ensina; é para os iniciados.
A senhora já ouviu falar em Byron?
– Algum inimigo da nossa Igreja, como o senhor?
– Mas eu não quero mal à sua Igreja! acho-a só muito
triste, toda voltada para a morte… Não lhe quero mal, porque para
sua glorificação ela tem criado catedrais que são verdadeiras
apoteoses da arte.
– Só por isso?
– É uma das razões, e a única fácil de explicar-lhe.
– Julga-me muito bronca.
– Ao contrário, estou-lhe falando como a um literato! Agora, se quer,
discutamos religião e filosofia. Conhece Comte?
– Algum danado.
– É o termo.
– Eu sei, adoram-no numa Capelinha da rua Benjamin Constant. Que pecado!
– Ah! já tem notícias… Estamos bem adiantados.
– O senhor é um dos tais que não perdem essas sessões?
– Eu nunca lá vou. Já lhe disse, detesto a filosofia. Para
enfadar-me basta-me a medicina e para distrair-me as minhas roseiras. A senhora
conhece algum bom remédio para matar pulgões de roseira? Tenho
uma Yellow Persian quase perdida!
– A sua medicina nem para as plantas serve?
– Nem para as plantas, a miserável!
– Tia Mila! disse Nina apressada, entre as portas do corredor.
– Que é?
– Estão aí a baronesa da Lage e a irmã…
– Meu Deus! E eu de peignoir!
Dr. Gervásio voltou-se e disse:
– Pois está muito bem; quem procura uma senhora a estas horas, sujeita-se
a ser recebido assim. Digo-lhe mais; para mim não há vestido
tão bonito.
– Então vou assim mesmo…
D. Joana sorriu com mágoa; até nisso a opinião do diabo
do homem era seguida!
– Bem, Mila, ficamos despedidas, disse ela, eu vou-me embora. O dinheiro
dos bilhetes?
– É verdade! Nina! dá cem mil réis a tia Joana pelas
dez cadeiras. Até outra vez, tia Joana. Lembranças.
– Adeus.
A moça saiu.
– Jesus! exclamou logo a velha, já passa de uma hora e Mila esqueceu-se
de dar-me o cartão para o vigário Alves!
O médico voltou-se rapidamente, com uma curiosidade transparecendo-lhe
no rosto. Que desejaria Mila dizer por escrito ao padre Alves? A velha percebeu-lhe
a estranheza do gesto e voltou-lhe as costas antes que ele lhe pedisse alguma
explicação, afogando o rosto flácido na juba negra de
Ruth, com muitos abraços, ternuras e lembranças ao Mário.
Quando Camila entrou no seu salão, a baronesa da Lage, toda de cetim
preto, estava de pé, contemplando um quadro insignificante, ricamente
emoldurado.
A irmã, sentada perto do sofá, com um arzinho enfadado de loura
anêmica, distraía-se brincando com os dedos enluvados nos berloques
do seu cordão de ouro.
A dona da casa desculpou-se logo por se apresentar daquele modo…
– Mas está em sua casa, está muito bem. Olha, Paquita, este
peignoiré é quase igual àquele que eu comprei ontem no
Raunier, não é?
A Paquita meneou languidamente a cabeça, que sim.
– Adivinhe agora o motivo da minha visita! disse a baronesa através
de um belo sorriso.
– É fácil. Vem participar-me o seu casamento!
– Casar-me, eu? qual!
– Por que não? É a viuvinha mais cobiçada deste Rio
de Janeiro.
– Infelizmente. Imagine: tenho agora em casa uma senhora, espécie
de dama de companhia, sabe? só encarregada de receber e despedir os
meus pretendentes… Não se ria, saiba que é verdade. Não
é verdade, Paquita?
Paquita meneou a cabeça, que sim.
– Bem vê. Mas onde ouviu dizer que eu estava noiva?
– Em um bond.
– Já me tardava. O bond é o eterno mexeriqueiro desta terra.
Também vocês quando não querem comprometer os seus informantes,
atribuem ao pobre bond todas as indiscrições… Por isso o abomino.
Só saio de carro… Não! Eu não venho participar coisa
nenhuma; venho pedir a sua Ruth para abrilhantar um concerto que nós,
protetoras do Sagrado Coração, pretendemos dar no dia quinze.
Se não fosse coisa de religião, eu não me meteria nisto.
Já me têm pedido para organizar festas em beneficio de escolas
e de hospitais para pobres, como se na nossa América houvesse pobreza…
Creia, minha amiga, no Brasil não há miseráveis, há
ateus. Precisamos de regenerar o povo com exemplos de fé cristã.
Camila concordou; Paquita atreveu-se a dar uma sentença.
Houve uma pausa.
– Paquita deu-me um dia destes notícias de seu filho; diz que está
muito bonito moço.
Paquita atirou à irmã um olhar de reprovação;
mas as palavras já tinham saído, e nenhum poder as faria voltar
ao ponto de partida.
– Está… mas um pouco vadio; não gosta de trabalhar…
– Oh! nem precisa disso! É muito distinto. Eu, no caso dele, faria
o mesmo.
– Sim, mas o pai é que não se resigna a isso.
Paquita esboçou um sorriso que não foi notado. A baronesa continuou:
– Já recebeu convite para o nosso baile?
– Já…
– Esperamos que seja Mário quem nos marque o cotillon. Papai gosta
muito do Mário.
O pai da baronesa e da Paquita era um velho português, antigo cavouqueiro,
que boas auras de fortuna tinham tornado capitalista. Toda a cidade conhecia
as suas anedotas e simplicidades. Demais, ele gabava-se dos seus princípios
rudes e pesados.
– Nós também preparamos um baile; somente a data é ainda
incerta, disse Camila.
– Já se fala nisso.
A baronesa conversava com volubilidade, mal tocando nos assuntos. Falou muito
e falaria ainda mais se a Paquita não a interrompesse de repente com
uma frase seca:
– Vamo-nos embora.
– Sim, vamo-nos embora.
Quando elas se despediram, com a promessa de que Ruth tocaria no concerto,
Camila ficou com as mãos cheias de bilhetes para a matinée.
A baronesa, no meio da vidrilhada do seu vestido de cetim, caminhava como
se levasse música consigo; tinha os passos cadenciados, o busto bem
erguido, um calor doce nos seus formosos olhos acastanhados de morena.
Paquita seguia-a, com o seu modo vago, em que tudo parecia escapar à
observação. Camila notou, ao apertar-lhe a mão, a magreza
do pulso, um pulso alvo, fino, de criança doente, entrevisto entre
a luva e a manga.
Em baixo, no vestíbulo, as moças esbarraram com o dr. Gervásio,
que saía também, cansado de esperar por Camila.
Houve então uma troca de olhares significativos entre a baronesa e
a silenciosa Paquita, que fez ao médico um quase imperceptível
sinal de cabeça. A irmã, muito expansiva, reteve-o, falou-lhe
com alegria, achando jeito de lhe encher os bolsos com os bilhetes do seu
concerto de religião.
Nessa tarde o capitão apareceu em Botafogo. Começavam a notar-lhe
a ausência; Lia e Rachel, quando o viram, saltaram-lhe para os joelhos.
Ruth veio em alvoroço, chamando-o de ingrato, pedindo notícias
do Netuno. Nina acolhia-o sempre com simpatia, achando nele um ar de bom amigo,
a quem num lance de perigo ou de angústia o coração de
uma mulher pode vasar uma confidência e pedir um conforto; Francisco
Teodoro abriu-lhe os braços: Por que não aparecia, havia tanto?
Só Camila sorriu com esforço e reserva, estendendo-lhe a ponta
dos dedos frios.
E era por isso que ele fugia agora daquela casa, onde o seu pensamento vivia
encurralado, como um animal teimoso. O seu amor por Camila crescia à
proporção que ele se abstinha de a procurar, ou que se via maltratado
por ela. Não achava explicação para aquela mudança;
não a recebera ele no seu navio como a uma princesa?
As crianças abraçavam-no com entusiasmo.
– Meninas! que é isso? então! exclamava Francisco Teodoro,
rindo, muito fraco pelas denguices das gêmeas.
Camila olhou e teve pena. O capitão Rino estava mais magro; toda a
sua roupa, escura e desajeitada, parecia dançar-lhe no corpo; havia
uma tristeza resignada nos seus olhos garços. Ela levantou-se, pretextando
dor de cabeça e subiu para o seu quarto.
Rino pensou: "Ela foge-me… talvez seja melhor assim".
Ouvia-lhe desesperado o rumor dos passos pela escada acima e ninguém
percebeu que ele estava com o ouvido à escuta e os lábios franzidos
por um sorriso amargo.
Lia e Rachel balançavam-lhe os braços rindo muito, comparando
as suas grandes mãos às delas, tão mimosas…
– Capitão Rino, por que não nos traz nunca sua irmã?
perguntou-lhe Ruth.
Com toda a calma, como se nenhum desgosto o abalasse, ele respondeu:
– Catarina é uma esquisita; ela sai todos os dias, mas para andar
lá pelo morro colhendo plantas… Raras vezes vai à cidade ou
faz visitas. Somos uns insociáveis, nós dois. Meu pai era marítimo,
minha madrasta foi sempre muito doente, e está nisso, julgo eu, a origem
do nosso mal… ou do nosso bem, quem nos dirá?
Fazendo uma carinha cômica, e apontando para o céu, Ruth respondeu
com ar solene: – Só Deus!
XI
Era a hora do café no armazém de Francisco Teodoro. O escritório
estava cheio; o Inocêncio, miúdo e trêfego, retorcendo
com mão nervosa o bigodinho alourado, com os olhos pequenos fulgurando-lhe
no rosto pálido, dilatava as narinas, cheirando dinheiro, que lhe parecia
andar esparso no ambiente de todo aquele enorme casarão de S. Bento.
Percebia as coisas de relance, e apanhava no ar as que lhe convinham.
A seu lado o velho João Ferreira, espadaúdo trigueirão,
largo de faces e de gestos comentava com benevolência os atos do governo,
berrando às vezes contra a opinião dos outros, que o atacaram
por todos os lados em vivas represálias.
O Lemos sorria calado, muito estúpido para entrar em questões
de tal ordem. Que lhe falassem do preço da carne seca, que importava
em grosso, e dos jacás de toicinho, e a sua opinião figuraria
logo com todo o peso da autoridade. O Negreiros em pé, com o seu enorme
nariz de cavalete, que a mão distraída acariciava de vez em
quando, era o único republicano naquele ninho de velhos portugueses
aferrados às instituições tradicionais da sua pátria
e desta que o seu amor e o seu bem-estar escolheram.
João Ferreira desculpava a fraqueza dos homens; palrador, como todo
o minhoto, discursava por gosto, abafando com o seu vozeirão as ironias
do Inocêncio, um ou outro aparte medroso do Lemos, e os protestos de
Francisco Teodoro, que não compreendia como um tão fiel monarquista
pudesse achar desculpas para os desatinos desta "República de
ingratos".
Negreiros sorria com a serenidade de um confiante. Ele fora sempre um republicano
e um estremado e era por isso olhado por alguns dos seus compatriotas com
estranheza e susto. Como João Ferreira no maior ardor de seu discurso
esbarrasse com a expressão alegre do rosto de Negreiros, e lhe compreendesse
o contentamento de o ter de seu lado, tergiversou e, com maldade alegre, achou
logo também motivos de áspera censura ao mesmo governo que tinha
gabado havia pouco. Não, que ele já estava maduro para dar o
seu braço a torcer!
Os outros triunfaram, era assim que o queriam; e chegou a vez de Negreiros
entrar na discussão.
Foi nesse instante, no meio da balbúrdia de vozes, que o capitão
Rino apareceu no limiar da porta com o chapéu na mão, e uma
expressão interrogativa no rosto.
A chegada súbita daquele estranho, para quem Francisco Teodoro fez
logo um lugar ao pé da sua secretária, abaixou o calor da conversa.
Dividiram-se os grupos; houve risos baixos, pancadinhas nos ombros, de reconciliação
e amizade. Só os olhinhos do Inocêncio Braga ardiam na mesma
febre, e os seus dedos magros torciam com maior nervosismo as pontas do bigode
delgado.
– Que novidade é esta, o senhor por aqui?!
– Não lhe roubarei o tempo; é por curtos instantes.
– Ora essa! tenho muito prazer com a sua visita… dê-me licença
de o apresentar aos meus amigos.
Feitas as apresentações, o Isidoro entrou com o café
em uma grande bandeja e houve uns segundos de silêncio. Depois, Francisco
Teodoro perguntou baixo ao capitão se lhe quereria falar reservadamente.
– Não senhor; venho apenas despedir-me e rogar-lhe que apresente os
meus cumprimentos à sua família. Parto para o Pará.
– Por que não vai jantar conosco? o senhor não imagina como
é querido lá em casa. A minha gente não lhe perdoaria
isso! Bem sabe que não fazemos cerimônias.
– Obrigado, mas a minha viagem desta vez é mais longa, obriga-me a
preparativos que não me deixam tempo para nada. Na volta levarei os
meus respeitos a todos.
O capitão corava dizendo estas coisas. Todo o seu sangue, agitadíssimo,
lhe bailava sob a pele de louro.
– Bem, bem! as obrigações não se deixam por coisa nenhuma…
dou-lhe razão; sou homem de negócios. Darei os seus recados
à minha gente. Camila vai ficar triste… paciência… Pois quando
quiser lá estamos às ordens como bons amigos; e Francisco Teodoro
estendeu a mão larga ao capitão Rino, que a apertou confuso
e alvoroçado.
Seu Joaquim apareceu no escritório e pousou um maço de papéis
na secretária, pedindo a Teodoro que lhe desse pronto expediente.
Aquilo eqüivalia a uma despedida; havia urgência de recomeçar-se
a lida. Levantaram-se todos.
Inocêncio Braga deixou-se para último e ao despedir-se do negociante
pediu-lhe uma entrevista em sua casa para negócio urgente, de alta
importância.
No olhar de Teodoro houve uma interrogação pasmada. O do Inocêncio
tinha lampejos de ouro. Seu Joaquim observava em silêncio.
O capitão Rino, que desceu na frente, topou com o caixeiro Ribas no
corredor junto às grades do armazém, de orelhas moles e ombros
descaídos, ruminando ódios em silêncio contra o Joaquim,
que o deprimia à vista de todos. O capitão levava os olhos cheios
de outras imagens, para atentar nele. O bafo quente da rua, cheia de povo
e de sol acordou-o do sonho. Na calçada, mesmo à porta do armazém,
a velha Terência varria à pressa as pedras com a vassourinha
de piaçava, e a cabecinha amarrada no lenço branco, pendente
para o seu trabalho. Os carregadores iam e vinham, cruzando-se, serpeando
entre os veículos repletos de café, numa gritaria medonha. O
trabalho trombeteava a todos os ventos a sua força poderosíssima.
O capitão Rino seguiu, abrindo passagem através de grupos compactos
e movediços.
Aquela multidão aturdia-o.
O mar limpo e vasto obrigara-o sempre a viver das suas próprias comoções,
a ser um isolado e um melancólico, afeito a amar na natureza o que
ela tem de maior e de mais simples.
A onda do povo rude com que esbarrava, era bem mais complexa do que a do
oceano que ele cortava com a proa firme do seu Netuno.
Talvez tivesse escolhido mal a sua profissão. A vida do homem era
aquilo que ali estava: a agitação perene, o trabalho violento,
o amor sem idealizações, o espetáculo renovado de tudo
que a terra produz, mata e faz renascer para a fulguração do
tempo, que é instantâneo e é eterno.
O próprio mar, que escolhera e a que se lançara na fantasia
da adolescência, não era à orla branca da Terra que vinha
atirar a sua grande queixa, a sua fúria formidável ou a sua
voluptuosidade infinita?
A terra pálida dos areais, a terra cor de sangue das matas, a terra
negra do ouro, a terra roxa dos cafeeiros, mãe da abundância,
ou a terra clara dos laranjais, fonte de perfume, não é por
ventura a parte do mundo consagrada ao homem, onde o seu suor, em caindo,
se trasmuda em orvalho fecundo?
O capitão Rino olhava para toda aquela gente, marinheiros, soldados,
vadios e trabalhadores braçais, negros ou portugueses, uma população
de homens apressados, sem lhe fixar o desalinho do gesto ou a preocupação
das vistas abrasadas. Eram homens, passavam em repelões, pensando no
ponto da chegada. Ele ouvia-lhes a respiração, a ofegância
dos peitos cansados e a cadência dos passos batendo dominadoramente
as pedras duras do chão.
Aquele ruído era sempre para ele uma música de sonoridade nova.
Entrou na rua da Prainha, tomou depois a da Saúde, sem notar o aspecto
desigual da casaria, os negros trapiches tresandando a sebos de carnes e meladuras
de açúcar esparramadas no solo, onde moscas zumbiam desde a
porta da rua até lá ao fundo do armazém, aberto para
um quadro lampejante de mar.
Os trapiches sucediam-se, repletos de barricas, de sacos, de fardos e de
pranchões, enchendo o ar de um cheiro complexo, que a maresia levava
de mistura, e de sons ásperos dos guindastes, suspensos sobre balanças.
Lanchas passavam perto em roncos e silvos entrecortados, e aquela confusão
louca de vozes, que lhe era familiar, dava-lhe agora a impressão de
que a terra se debatia num delírio de febre.
Ele ia ao morro da Conceição, dizer adeus a um antigo companheiro,
agora padre. Para isso, enveredou por uma ladeira estreita, talhada sobre
rocha branca. A rua serpeava em curvas contrafeitas, elevando-se aqui para
se despenhar acolá, acotovelando-se em ângulos de uma lado para
descer ao outro em escadarias toscas.
De casas velhas, abertas para a grande luz, saíam mulheres para estender
ao sol blusas de marinheiros, enquanto lá dentro vozes frescas de moças
cantavam modinhas ternas.
A beira dos precipícios, crianças, quase nuas, atiravam com
os pés, dentre montes de lixo, latas vazias, que rolavam, tinindo pelas
ribanceiras, e velhas, sujas, agachadas em uma ou outra soleira, coziam trapos,
entre gatos adormecidos e galinhas soltas.
O dia estava azul, e o ar do mar vinha, em grandes lufadas, acariciar a face
quente e robusta da terra.
Capitão Rino atravessava uma rua de marinheiros.
Ao ver alguns rostos tranqüilos e braços grossos de mulheres,
trabalhando ao ar livre, pareceu-lhe que o coração daquela gente
era resignado e sabia esperar.
A grande virtude estava com ela, só os simples podem ser fortes.
Depois de várias voltas, por caminhos muito acidentados e sujos, ele
viu-se na ladeira da Conceição, entre casas baixas, umas com
as faces para as outras, mal abertas, de ar desconfiado.
Outra gente ali se movia nas ruas. Rolavam no cisco das calçadas velhos
botões azinhavrados de fardas. Mulheres de soldados tagarelavam em
língua áspera, com vizinhos de má compostura, e um fartum
enchia a atmosfera da rua longa, até às proximidades da velha
fortaleza.
Em todo o comprimento do seu passeio, foi ali a primeira vez que o capitão
Rino ouviu uma voz lamurienta, a pedir-lhe uma esmola.
Aí estava uma coisa que ele não ouvia nunca sobre a onda inconstante…
Pouco depois bateu à porta do amigo, mas ele não estava em
casa; só voltaria à noite. Rino continuou para cima até
o pátio do forte e aí sentou-se um bocado na muralha, olhando
para baixo.
Que via ele? a casaria desigual, feia, derramada, brilhando aqui nas telhas
novas de reconstruções, mostrando acolá outras, negras
ou esverdinhadas, sobre paredes encardidas? Reparava para o movimento contínuo
da rua embaixo, cortando com uma linha larga e branca os prédios melancólicos?
Não. Com os olhos fixos na água crespa da baía, coalhada
de vapores negros, de navios brancos, de embarcações de todo
o feitio, ele só pensava em Camila, tão rígida para com
ele quanto dócil e amorosa para com o outro…
Fugia. Estava tudo acabado. Era o adeus à sua mocidade, àquele
sonho de amor, que ele dizia através daquela infinidade de corações
felizes, fortes, que esses telhados abrigavam por certo. Não haveria
mais ninguém assim, tão desafortunado.
Como seria bom viver, mesmo naquele imundo bairro de trabalho, com o coração
tranqüilo, com fé no amor!
Para ele, estava escrito: não tornaria a ver Camila. A humilhação
da última visita queimara-o como brasas. Ainda se ela o desprezasse,
mas não amasse o outro!
E toda a causa da sua desventura estava naquela preferência. Por que
havia de ser o outro, e não ele?
O sino da Conceição badalou com força. Rino voltou-se;
dois padres moços, de batina, atravessavam o largo, como dois pontos
pretos de exclamação em um quadro vasto de sol. Nesse instante
o moço marítimo teve a visão de que, ao encontro da sua,
vinham duas almas iguais, tristes na sua esterilidade. Ainda aquelas tinham
o seu ideal, se guardavam intato o óleo divino que todas as chagas
suaviza e todas as misérias embeleza.
E ele? sem fé sem um fito qualquer que explicasse o motivo dos seus
dias, com um amor renegado, cavalheiro sem dama e sem sonho, que valia neste
mundo, onde o homem merece pelo que pensa, pelo que cria, pelo que combate
ou pelo que amplia?
Os padres passaram; ele quis segui-los, mas o corpo, cansado, amolecido,
ficou ainda. E o pensamento recalcava: por que havia Mila de preferir ao outro?
parecia-lhe que todo o seu amor seria para sempre doce e platônico,
se ela fosse para todos uma mulher austera, bem encerrada no círculo
de seus deveres.
Esta idéia trouxe a lembrança da mãe, morta a facadas
pelo pai, como adúltera. A imagem dela encheu-lhe o coração;
ergueu-se bruscamente e começou a descer a rua, apressado com a idéia
de fugir para longe, salvar-se do perigo que o solicitava.
Era preciso não tornar a ver Mila; nunca mais! Para algo lhe serviria
o seu orgulho de homem.
A vontade domaria o coração rebelde. Não tornaria a
vê-la.
A idéia da mãe lembrou-lhe a irmã; tinha ainda tempo
de ir jantar com ela naquela silenciosa casa das Laranjeiras. Só no
dia seguinte iria para bordo aprestar o Netuno.
Devia pensar noutras coisas; esforçava-se por isso. Desejar Mila,
para quê? não tornaria a vê-la…
Desceu o morro apressado, até à rua dos Ourives e seguiu por
ela, sacudindo os ombros no movimento bamboleado do corpo, num andar de quem
nada quer ver resoluto acalmado por um esforço em que entrara todo
o poder da sua vontade.
Fugir de Camila e para sempre, criar, talvez, lá longe, em terras
do norte, uma família honesta, era o que devia fazer, o que faria,
inevitavelmente e bem depressa, como remédio para esquecer…
O capitão atravessou ruas, passou por amigos como se ninguém
visse, e só ao desembocar na rua do Ouvidor parou de chofre, com um
batimento forte de coração. Diante dele, majestosa no seu vestido
preto picado apenas no peito por uma rosa escarlate, Camila sorriu-lhe, estendendo-lhe
a mão enluvada. Era uma reconciliação e um apelo; ele
não atinou com que dissesse. Ao lado da mãe, Ruth fixava nele
aquele brilhante par de esmeraldas que Deus lhe dera por olhos. Trocados os
cumprimentos elas não se detiveram, e o moço seguiu também
o seu caminho, enfraquecido, todo embebido no aroma dela todo deslumbrado
por aquele ar de deusa inatingível.
Dali até à Carioca já os seus passos se colavam às
pedras, desejosos de parar para a seguirem depois, quando ela voltasse para
o calor da sua casa; mas o capitão Rino obrigou-se a ter juízo
e caminhou para um bonde das Águas Férreas, que era justamente
o assaltado nessa ocasião.
Só depois de sentado reparou que estava junto da D. Inácia
Gomes e das duas filhas, a Carlotinha e a Judith, ambas muito faceiras e risonhas
nas suas toilettes claras.
D. Inácia suspirava, cansada do esforço da tomada de lugar,
com as mãos carregadas de embrulhos, e o toucado já descaído
sobre a orelha esquerda. Não a pilhariam tão cedo na cidade,
afirmava.
Reconhecendo o capitão Rino, pediram-lhe logo notícias da família
Teodoro, como estava a boa Camila?
Ele disse o que sabia, um pouco atrapalhado, corando.
A Carlotinha, sempre trêfega, debruçava-se sobre o colo da mãe,
dizendo-lhe com a sua voz maliciosa frases em que entrava mais atrevimento
do que espírito. Tinham-se mudado para as Laranjeiras e ofereciam-lhe
a casa. D. Inácia vinha espantada com os preços dos objetos
adquiridos; se não fossem as moças, ela não viria à
cidade; gostava do seu canto, da boa paz caseira.
– E o sr. Gomes, como está? perguntou o capitão, menos por
interesse do que para dizer alguma coisa.
– Coitado, como velho cheio de trabalho. O sr. não imagina! meu marido
sacrifica-se pelos outros e o resultado nós sabemos qual é.
Este mundo é de ingratos…
– Sim, é de ingratos; confirmou o capitão.
Até as Laranjeiras D. Inácia teve tempo de despejar todas as
lamentações da sua alma atribulada; falou de tudo, até
das cozinheiras e do mau serviço do açougue. O discurso, interminável,
numa lenga-lenga, ora lamurienta, ora resignada, tornava ao capitão
insuportável a lonjura da viagem.
Carlotinha perguntou pelo dr. Gervásio. Que era feito dele, que ninguém
o via, senão no palacete Teodoro?
Rino encolheu os ombros, não sabia. Judith debruçou-se por
sua vez, e contemplou-o com curiosidade.
Tinham chegado ao termo da viagem e desceram com muitos oferecimentos, apontando
o portão da sua residência.
O capitão Rino correspondeu às expansões com amabilidade
discreta, admirado da exuberância daquela gente. Que lhe importavam
as denguices da Carlotinha, de olhar gaiato e tez de jambo, ou as da Judith,
pálida e pequena, se todo o seu pensamento estava na outra, naquela
Mila de formosura opulenta, de quem guardava ainda na palma a doçura
da mão enluvada?
A fatalidade daquela paixão bem se revelava em tudo; ele furtava-se
a vê-la, saudoso e aflito, mas forte na sua resolução,
e eis que ela lhe aparecia em uma volta 4e rua, inesperadamente! O bond parara
no ponto e o moço desceu, caminhando para diante até a chácara
da madrasta; o portão estava aberto, entrou.
Nos largos canteiros touceiras de canas da Índia erguiam os seus penachos
de flores vermelhas e amarelas; ele tomou à esquerda, por uma rua ladeada
de girassóis e de magnólias cor de ouro velho. Era ao fundo
dessa rua que aparecia a casa, de feição antiga, sólida
e simples, com paredes brancas e largas janelas de guilhotina.
Sentindo gente, veio um cão enorme lá de dentro, aos saltos
e latidos, e logo após apareceu Catarina no patamar de pedra, da escada
em semicírculo.
Ela desceu ao encontro do irmão, muito risonha.
– Estás boa? perguntou-lhe ele, segurando-lhe no queixo forte e ligeiramente
quadrado e fixando-lhe de perto os olhos claros.
– Estou, d. Mariquinhas é que está doente, com uma das linfatites
do costume.
– Chamaste médico?
– Chamei, e lá a deixei com a Hemengarda ao pé da cama.
– Que Hemengarda?
– Aquela enfermeira mulata, do n. 15, mãe do…
– Já sei.
– D. Mariquinhas gosta muito dela. Queres ir vê-la agora?
– Depois; fiquemos por aqui. Os teus girassóis estão muito
lindos.
– Não parece um jardim japonês? Repara. Temos crisântemos
que nem os dos biombos, canas como as das ventarolas, lírios e girassóis…
d. Mariquinhas acha detestáveis todas estas flores e fala em mandá-las
arrancar… Esta nossa madrasta tem singularidades. Não compreende
o adorno e desconhece a graça das linhas. Só gosta das flores
pelo cheiro.
– Que tens feito?
– Lido, cosido e jardinado; que mais hei de fazer? quem me acompanha se eu
quiser sair?
– Efetivamente estás muito só.
– Preciso casar-me.
– Casa-te.
– Tenho medo.
– Os homens assustam-te?
– Um pouco. São enganosos, e eu sou franca. Imagina o conflito! Depois,
a lembrança da nossa mãe faz-me odiar o casamento.
– Sê honesta.
– Quem pode saber hoje o que será manhã?
– Tens razão. Fica solteira; serás mais feliz. Tens uma alma
indomável. Conserva-te aqui. Esta casa é tão propícia
a uma vida de calma e de reflexão!
– Minha madrasta, bem sabes, vive em guerra aberta comigo. Chama-me com malícia
– doutora. Todos os meus gostos são assunto de mofa para ela, e todos
os seus são para mim de aborrecimento. E aí tens a calma desta
casa. Fresca tranqüilidade!
– Tem paciência ou, então, dou o dito por não dito. Casa-te!
– Com quem?
– Comigo não pode ser.
– Nem tu quererias.
– Por que?
– Porque amas a Camila Teodoro.
Tinham-se afastado de casa e seguido para as bandas do pomar. O jardineiro
passou com o carro de mão cheio de folhas secas, e cumprimentou o moço,
que não lhe correspondeu à cortesia, tonto. pasmado para a irmã,
que estacara também ao dizer as últimas palavras.
– Nega, se és capaz; disse ela.
– Não nego.
Quedaram-se mudos, contemplando-se de face. Pela mente de ambos passou, dolorosissimamente,
a lembrança da mãe assassinada pelo marido. Compreenderam-se
através do silêncio. Catarina murmurou:
– À proporção que envelheço, mais se vincula
em mim a saudade dela e não consigo desvanecer o meu rancor por ele.
Não lhe perdôo.
– Nem eu; mas a sociedade absolveu-o.
– Os homens. Ela era tão boa!
– Enganou-o.
– Que monstruoso castigo! E o resultado, lembras-te? O teu afastamento de
casa e o meu ódio. Em vão ele se fazia bom para agradar-me;
era de uma humildade que comovia a todos, menos a mim. Não tornei a
beijar-lhe a mão.
– Nem mesmo na hora da morte?!
– Nem mesmo na hora da morte. E eu quis; curvei-me; mas quase ao encostar
a minha boca à mão dele, ergui-me com terror. Ele percebeu tudo.
Que morte!
– Foste cruel.
– Fui humana. Tu o amavas?
– Antes? muito!
– Depois?
– Não. Mas era nosso pai…
– E ela era nossa mãe!
– Tens razão. Para os filhos a mãe é sempre a melhor
e a mais pura entre as mulheres.
Um sabiá cantou e eles ficaram a escutar, com os olhos rasos de água.
– Foi no Netuno que percebeste tudo, não foi? perguntou Rino mudando
de tom.
– Onde havia de ser?
– E só aquela vez bastou?
– Só.
– Manda calar aquele sabiá, Catarina!
– Deixa lá o pássaro; chora.
– … Parto depois de amanhã. Desta vez a viagem será longa…
Entrego em Belém o comando do Netuno a outro. Tenho substituto; está
tudo combinado e resolvido. Bem resolvido. Devo fugir-lhe. Não era
preciso que evocasses a lembrança do passado para me dissuadir…
– Não tive a intenção de te dissuadir; quer-me parecer
que o amor não é figura de barro que se amolgue com os dedos.
Somente, como ela ama o dr. Gervásio…
– Por quem soubeste isso?
– Por nossa madrasta, que sem sair daqui sabe sempre de tudo, benza-a Deus!
– Mas quem lhe diria a ela semelhante coisa?!
– Talvez o médico… talvez a cozinheira… talvez o vento. O vento
traz-lhe aos ouvidos coisas que ninguém mais ouve. E é uma espada
desembainhada para todas as faltas, aquela mulher!
– De mais a mais, é uma calúnia! Camila é discreta;
mesmo que isso assim fosse, quem poderia adivinhar?
– João, amores são como luzes através de rendas: aparecem
sempre.
– Não, não; é preciso convencê-la de que isso
é falso. Mila não ama ninguém; não ama ninguém!
Catarina fechou os olhos por um segundo, depois recomeçaram a andar,
um ao lado do outro, silenciosos, pisando o enorme tapete sulferino que as
flores dos jambeiros-rosa alastravam no chão. A tarde descia clara
e calma, toda azul, com leves tons opalinos.
– Catarina?
– João?
– Precisava ter-te sempre a meu lado…
– Pois casa-te e chama-me para a tua companhia. Eu criarei o~ teus filhos.
Procura amar outra mulher. Há tantas no mundo, há tantas.
– Há uma só: a que amam os. Só quero aquela.
– Sofres muito?…
– Horrivelmente, horrivelmente! Este desabafo há de fazer-me bem.
Custa muito guardar um segredo destes! E eu guardo o meu há lauto tempo!
– Parecia-te. Bem viste que eu já o tinha comigo. Sorriram ambos,
com tristeza.
Como tivessem dado volta ao pomar, passaram pelo recanto onde Catarina tinha
o viveiro das rosas. mas não se detiveram. Tornaram a cruzar-se com
o jardineiro e, tomando a larga rua dos girassóis. entraram em casa.
Antes de se sentarem à mesa, os dois irmãos foram ao quarto
da madrasta. uma senhora muito gorda, que se alastrava pela cama, com um lenço
amarrado na cabeça e o rosto polvilhado de amido. A Hemengarda tinha
cerrado as janelas e vigiava a doente, na penumbra. Sobre a mesa muitos vidros
de remédios, e um cheiro de cânfora espalhado em tudo.
O leito rangeu, ao movimento do corpo enorme, que se voltava a custo, e a
enferma, fazendo uma voz débil, queixou-se de muitas dores e de muito
frio.
Os enteados disseram-lhe meia dúzia de frases animadoras, recomendaram-lhe
paciência e. sentindo que a importunavam. saíram em bicos de
pés.
Antes de se sentarem à mesa, Catarina confessou ao irmão sentir-se
aliviada com a ausência da madrasta. Teriam assim um jantar mais íntimo.
Ele perguntou:
– Afinal, tu a aborreces só por ela ser tua madrasta?
– Só. Se a morte de minha mãe tivesse sido natural, eu aceitaria
depois a madrasta, senão com ternura, ao menos com respeito. Assim,
quero-lhe mal, porque, escolhendo meu pai. ela ofendeu minha mãe. Mas
o mal está feito e é irremediável, não falemos
nela. Supõe que eu sou uma esquisita, que ela é outra, e não
penses mais nisso.
Ao jantar falaram-se baixo para não incomodar a doente, cujo quarto
era na vizinhança.
Quando à noite o capitão Rino se despediu da irmã no
jardim, sentiu, ao abraçá-la, que ela chorava. Era a primeira
vez, entre tantas de separação, que isso acontecia. Ele beijou-a
consolado, certo de que em toda a terra havia um coração que
o amava com firmeza. com sinceridade – o dela.
XII
Havia no palacete Teodoro um compartimento que raras vezes se abria: era
uma sala, destinada naturalmente na sua origem a biblioteca, e de que o negociante
fizera o seu escritório. Ficava embaixo, no rés do chão,
ao fundo do vestíbulo. toda voltada para o silêncio do jardim,
que formava perto das suas janelas grupos de plantas sem aroma, dentro de
grandes relvados, onde a bulha dos pés morria.
Como o negociante não usasse de livros. o seu escritório não
tinha estantes. A mobília, de canela e de couro, guardava ali, na sua
atitude impassível, um cunho de austeridade que não desdizia
do aposento, vasto e sóbrio.
Aquelas cadeiras e aquele sofá de braços estendidos, tinham
o ar das coisas a que a intimidade dos seres não deu ainda uma alma.
A melhor parede para uma armação era ocupada por dois quadros
industriais, de ricas molduras lampejantes, e por um contador veneziano. Sobre
esse móvel, erguia-se, com ar de desafio, a estatueta de um cavalheiro
de capa e espada e grande pluma ao vento.
Do lampião de bronze com abajur, caía uma luz bem dirigida,
espalhando-se sobre a secretária em um largo círculo tranqüilo.
Foi para junto dessa mesa que Francisco Teodoro levou o amigo. o Inocêncio
Braga, oferecendo-lhe uma cadeira ao pé da sua.
A figura trêfega daquele homem miúdo, que com os seus quarenta
anos não parecia ter mais de vinte e cinco, o brilho movediço
dos seus olhinhos, perspicazes e mergulhadores, a sua palidez baça,
os seus movimentos rápidos e incisivos, a febre dos seus gestos, a
clareza da sua exposição, punham em evidência a pacata
atitude do dono da casa, a calma dos seus modos, de satisfeito, de burguês
que já da vida alcançou tudo, e que se compraz em ver o mundo
do alto do seu fastígio.
Com as mãos apoiadas na mesa, onde, a par de um vistoso tinteiro de
prata maciça, só havia o Código Comercial de Orlando,
Francisco Teodoro abria os ouvidos às palavras do outro, em quem pressentia
o desejo arrojado de grandes vôos. Sabia-o tão inteligente quanto
esperto, de uma atividade febril e fecunda. Esperava que aquela entrevista
fosse para lhe pedir o nome e o capital para qualquer empresa.
Tinha-se aparelhado já com algumas evasivas e preparado para uma certa
condescendência, que o valor do homem o obrigava a ter. O seu capital,
avolumado, podia com lucro tomar diversas derivações, fertilizando
zonas e expandindo a sua força; tudo estava no crédito de quem
lho pedisse, e nas vantagens que lhe oferecessem.
E era só em negócio que Francisco Teodoro fazia caso do dinheiro.
No mesmo dia em que assinava vinte ou trinta contos para um hospital ou uma
igreja, numa penada rija e franca, recusava emprestar a qualquer pobre diabo
cinco ou dez contos para um começo de vida.
O seu dinheiro, adquirido com esforço, gostava de mostrar-se em borbotões
sonoros, que lampejassem aos olhos de toda a gente.
Queria tudo à larga. Era uma casa a sua em que as roupas, as comidas
e as bebidas atafulhavam os armários e a despensa até a brutalidade.
Dizia-se que no palacete Teodoro os cozinheiros enriqueciam e que a vigilância
trabalhosa da Nina não conseguia atenuar a impetuosidade do desperdício.
As próprias dívidas do Mário faziam vociferar o negociante,
não pelo consumo do dinheiro, mas por perdição daquele
filho, que ele não conseguia dirigir a seu modo.
Gastar consigo, com a sua gente. era sempre um motivo de vaidade e de gozo;
mas gastar mal em negócio. arriscar em comércio problemático,
é que lhe parecia uma ignomínia.
Agora, com este Inocêncio Braga. as coisas mudavam. A superioridade
do homem obrigava-o a transigir um pouco…
Por isso ele fez entrar o Inocêncio para o escritório, onde
mal chegava o eco das correrias das pequenas.
Sem preâmbulos, o outro atacou o assunto com a altivez de quem não
pede, mas oferece favores.
Com o seu timbre de voz nasalada como se toda ela só lhe saísse
da cabeça, começou:
– Lembrei-me de organizarmos aqui no Rio um grande sindicato de café.
O Gama Torres, que, aqui entre nós, deve aos meus conselhos a sua prosperidade,
está pronto a entrar com grande parte do capital. Foi ele que me disse
que o consultasse também.
Francisco Teodoro sentiu um arrepio mas não pestanejou. Os olhos do
Braga cintilavam na sombra.
Com elogios moderados, mas de infalível alcance, à argúcia
e bom critério do negociante, Inocêncio expôs o seu plano,
estudando-o, revirando-o por todos os lados, mostrando cálculos, em
cuja elaboração perdera noites de sono, assoprando-o devagar,
com eloqüência, fortificando-o com argumentos persuasivos.
Tudo aquilo aparecia como a irrefragável verdade, singelamente. Nenhum
artifício de palavras. Termos límpidos como água da fonte.
Francisco Teodoro, empolgado. reclamava repetições. Inocêncio
prestava-se.
Todos os pontos obscuros eram esclarecidos, repetidos, como os compassos
difíceis de uma música, até que se passasse por eles
sem tropeço. O tino comercial do Inocêncio Braga confirmava-se.
Entretanto, Francisco Teodoro hesitava. A sua escola fora outra, mais rude.
O assalto as.
Sentido-o escorregar medrosamente dentre os seus dedos nervosos, Inocêncio
sorria e com habilidade, sem querer constranger resoluções,
retomava o fio de ouro da sua proposta, e estendia-a sedutoramente.
Não havia zona cafeeira, em África, na América ou na
Ásia, de que ele não falasse com a autoridade de bom conhecedor.
Dir-se-ia que podia contar os grãos de cada árvore. Em algumas
colônias o sol mirrava o fruto; noutras, chuvaradas tinham levado colheitas;
em certos países de café, o café faltava, e só
no Brasil, terra da promissão, os cafezais vergavam ao peso da cereja
rubra. Tudo isto era documentado com trechos de jornais estrangeiros, colados
num caderno, anotado nas margens, com letra miúda.
Em toda a exposição não havia cálculo sem base,
idéias sem argumentos. Tudo era saber aproveitar a ocasião propícia,
esta incomparável época de negócios, para lançar
a rede….
Francisco Teodoro resistia ainda, ou antes, queria resistir, por instinto;
mas a verdade é que abria os ouvidos às palavras do outro, e
não achava termos com que defendesse a sua relutância.
O prestígio de saber traduzir um artigo para jornal vale alguma coisa.
Inocêncio leu um artigo traduzido por ele do inglês, sobre a propaganda
e o futuro do café, obra sólida, que Francisco Teodoro aprovou.
Reconhecia nos ingleses grande capacidade.
– Justamente, grande capacidade, atalhou o outro; e sabe o senhor por que?
– Superioridade de raça… Sim, é o que dizem.
– Não creia o senhor nessas balelas. Qual superioridade de raça!
de educação, só de educação. Individualmente,
o inglês não é mais forte do que nós, com toda
a sua ginástica, com todas as pipas de óleo de fígado
que tenha ingerido em pequeno.
A vantagem deles é outra: vêem melhor e fazem a tempo as suas
especulações. Podem ter medo de fantasmas, mas não têm
medo de negócios. Especular com inteligência, ganhar boladas
gordas, encher as mãos, que para isso as têm grandes, de libras
esterlinas, eis para o que o inglês nasce e se desenvolve.
Por isso o comércio deles é tão forte.
Como os ingleses se ririam de nós, meu amigo, se quisessem perder
tempo estudando as tímidas especulações do nosso comércio
de analfabetos!
Não percamos também nós o nosso tempo; estudemos este
assunto.
Curvaram-se outra vez para a secretária coberta de artigos, tabelas,
estatísticas…
Francisco Teodoro não se atrevia a uma resposta. Inocêncio disse,
sem tirar os olhos dos papéis:
– Aqui só vejo um homem capaz de entrar nisto sem medo: o Gama Torres.
– É rapaz novo…
– E atiladíssimo.
– Os negócios precisam ser feitos com vagar….
– À moda antiga.
– De todos os tempos.
– Não. Quando há febre é preciso saber aproveitá-la
na subida do termômetro.
As ocasiões fogem e não se repetem; o senhor refletirá;
esperaremos alguns dias, poucos, bem vê que não devemos adiar
isso para outra época. Esta é a melhor. – É a única.
Deixo-lhe aqui a minha papelada: consulte-a. Aqui estão coisas melhores
e mais convincentes do que palavras: – cifras.
Francisco Teodoro, acavalou no nariz a sua luneta de vista cansada e seguiu
com o olhar os caracteres cerrados que os dedos do outro apontavam e percorriam
rapidamente.
Como o rumor da enchente que se aproxima e vem até a inundação,
assim aquele amontoado de parcelas ia crescendo e ameaçando de desabar
em blocos de ouro.
Quando via uma abertazinha, Francisco Teodoro aproveitava-a para uma objeção,
que Inocêncio repelia sem esforço, com mostras de quem já
vinha prevenido para tudo.
A meia-noite ergueu-se, dizendo:
– Amanhã é domingo; o senhor fique com estes papéis
e leia-os outra vez, com o seu sossego. Segunda-feira eu irei procurá-los
no armazém, das duas para as três horas. Estude e resolva. Boa
noite.
Francisco Teodoro acompanhou a visita até o portão do jardim.
Em cima, a casa estava toda fechada; a família dormia. O jardineiro,
na soleira, esperava que a visita saísse para soltar os cães.
– Que linda noite, sr. Teodoro, e como o seu jardim cheira bem!
– Sim, Camila gosta muito de flores. Deve ser das violetas.
– É dos jasmins do Cabo, asseverou o jardineiro.
– Ou dos jasmins do Cabo; pois muito boas noites!
Nessa noite Francisco Teodoro mal pôde dormir. O seu pensamento girava,
girava. Como os tempos eram outros! Percebia a razão do Inocêncio:
o comércio do Rio já não tolerava o cansaço das
obras lentas. A finura e a astúcia valiam mais do que os processos
rudes e morosos do sistema antigo. Ah! se ele tivesse tido instrução…
Quando no dia seguinte abriu o Jornal, na frescura da varanda, percebeu que
não suportaria a leitura. Os olhos teimaram, e ficaram-se presos ao
papel; mas o pensamento, insubmisso, embarafustou por outros caminhos; foi
preciso fazer a vontade ao pensamento. Francisco Teodoro desceu ao escritório
e engolfou-se na papelada do Inocêncio Braga.
E lia ainda, meio tonto, quando Ruth entrou, com ar amuado.
– Sabe uma coisa, papaizinho?
– Não… não sei nada. Que temos?
– Uma desgraça.
Francisco Teodoro levantou os olhos, assustado.
– Que dizes?!
– Digo que a Nina faz anos hoje e que ninguém tem um presente para
lhe dar. Demais a mais é domingo: está tudo fechado…
– Então a desgraça é essa?
– Sim, senhor. Ela não se esquece de ninguém, não é
justo que os outros, que podem mais, se esqueçam dela…
– Ora, não lhe falta nada.
– A mim parece-me que lhe falta tudo. Quando qualquer de nós faz anos,
o senhor dá uma festa e mamãe arranja surpresas… Ela é
como se fosse outra filha. Quando Rachei esteve doente, eu ia dormir para
a minha cama e era Nina que fazia de irmã, velando ao pé da
doente… Entretanto…
Francisco Teodoro contemplou a filha com atenção.
– Acaba.
– Quando Rachei ficou boa, toda a gente se congratulava com papai, com mamãe,
comigo, mesmo com a Noca, e ninguém se lembrou dos sacrifícios
de Nina. O senhor diz: não lhe falta nada. É o que parece. Basta
dizer que se quiser fazer a esmola de um vintém precisa de pedi-lo
ao senhor ou a mamãe.
Foi uma maçada eu não ter-me lembrado ontem! Ela não
tem chapéu….
– Quem te lembrou isso hoje?
– Lembrei-me eu mesma, quando tirei a folhinha…
– Bom; promete-lhe o chapéu.
– Só?
– Parece-te que temos sido ingratos para com ela?
– Parece-me que além do chapéu ela precisa de outra coisa…
– Que coisa?
– Outro dia, quando fomos à cidade, ela gostou muito de uma gravata
que viu numa vitrina. Eu perguntei-lhe: – mas por que é que você
não compra esta gravata? E ela sorriu. Depois, passamos numa confeitaria
e ela manifestou vontade de tomar um sorvete. Eu estava com tosse, não
podia tomar gelo, mas perguntei: – por que é que você não
toma um sorvete? E ela foi andando. No bonde quando voltamos, o condutor vendo
que ela era mais velha pediu-lhe as passagens. Nina ficou que nem uma pitanga
e indicou-me com um gesto… Foi então que eu percebi que desde que
uma pessoa põe vestido comprido, precisa de usar uma carteirinha no
bolso…
– Queres então dar-lhe uma carteira?
– Não. Eu dou o chapéu; a carteira deve ser dada ou por papai
ou por mamãe.
– Está dito. Vamos a ver agora se nos dão almoço.
Já toda a família os esperava na sala de jantar. O dr. Gervásio
faltara, por isso o Mário se dignara de aparecer.
Foi logo no princípio do almoço que Francisco Teodoro, voltando-se
para a sobrinha, declarou:
– Nina, como eu não entendo de modas, o presente que escolhi hoje
para você foi uma casa. Com os aluguéis você poderá
escolher todos os meses um vestido a seu gosto.
A moça, que fazia nesse momento os pratos de Rachel e de Lia, estacou
com os olhos esbugalhados. Riram-se do seu espanto e fizeram-lhe a saúde.
Ela começou a chorar.
– Homem, não foi para a ver chorar que eu disse o que disse. De maneiras
que você…
Mas, Francisco Teodoro tinha também os olhos luminosos. Camila aplaudiu
a idéia e tocaram os copos, comovidos.
Depois, o negociante disse que levaria a sobrinha no dia seguinte ao tabelião,
para a transferência da propriedade, e acrescentou:
– A casa não é grande, mas é nova e bonitinha.
– É verdade, Mário, interrompeu Camila, a baronesa tornou a
escrever, insistindo para que você não falte ao baile do pai.
Parece que a Paquita está apaixonada!
Mário teve um sorriso de desdém; Nina deixou cair o talher
com que recomeçara a partir o beef das primas.
– Então convidaram só o Mário?! inquiriu o negociante,
espantado.
– Não, a todos: vamos todos. Eu já mandei fazer os vestidos,
mas do Mário é que fazem questão… uma insistência
esquisita! Eu só atribuo a querê-lo o Meireles para genro.
– Fresco genro, um frangote sem profissão… deixa-se de asneiras!
O Meireles não é nenhum parvo.
Mário fixou o pai com ar atrevido, e disse:
– Pois fique o senhor sabendo que mamãe acertou. A Paquita gosta de
mim, e já disse ao velho que não se casará com outro.
Eu é que não quero.
Nina tremia.
Francisco Teodoro riu alto.
– Ora! a pequena, não duvido… agora o pai! Há de casá-la
como casou a outra, com um homem de peso…
– Pois sim!…
– Verás. Bom casamento é ela, lá isso é… Quantas
filhas são?
– Cinco, parece-me que cinco.
– Mesmo assim. O Meireles está podre de rico. Podre de rico! Também
nunca vi homem tão agarrado; tinha até a alcunha do Chora vinténs…
Dantes eram muito freqüentes as alcunhas… ai, no comércio…
Alcunhas e bofetões. Hoje está tudo mudado…
– Assim mesmo ainda há muita brutalidade! disse Camila com um arzinho
de nojo.
– Que queres? Nem todos nascem para doutores.
Não havia alusão. Francisco Teodoro tinha na mulher a fé
mais cega; todavia, ela corou e não se atreveu a voltar o rosto para
o lado do filho.
Findo o almoço, a Noca cercou a Nina na copa para lhe perguntar:
– Que foi que eu lhe disse hoje?
A moça, aturdida, não se lembrava; a mulata explicou:
– Menina, pois eu não lhe disse que ver borboleta azul é sinal
de boa nova?
– Borboleta azul?…
– Gente! já se esqueceu que hoje de manhãzinha viu uma borboleta
azul? Pois olhe: ela veio lhe avisar que você havia de receber este
bonito dote… E ainda há quem não acredite!
– Sim, é verdade, você me disse…
E a moça sorriu; mas havia no seu sorriso uma mescla de ironia e de
doçura.
Na segunda-feira, às duas horas da tarde o Inocêncio Braga apresentou-se
a Francisco Teodoro no seu escritório da rua de S. Bento para buscar
a papelada; mas o negociante esquecera-se dela em casa, mostrando-se indeciso,
e renovando com disfarce perguntas em que transparecia a mais viva curiosidade.
O outro, percebendo tudo, muito correto, explicou com detalhes todos os pontos,
sem insistir com Teodoro para que acedesse. O que tinha de dizer estava dito.
Que passasse muito bem. Coube então a Teodoro prometer que iria ele
pessoalmente levar os papéis à sua residência, na rua
do Riachuelo, e conversar de novo sobre o assunto.
Nessa tarde o Ribas, balançando os braços moles, entregava
ao patrão uma carta manchada pelos seus dedos suados. Era do velho
Mota; a perna não o deixava ainda ir ao serviço; pedia desculpas
com humildade, tresuando miséria. Era o dia do vencimento do ordenado.
Francisco Teodoro deixou cair a carta na cesta dos papéis rasgados
e, cofiando a barba, cogitou na melhor maneira de responder ao Inocêncio…
XIII
O palacete Teodoro preparava-se para o baile.
Desde manhã até à tarde era uma invasão de operários
pelas salas e corredores, um contínuo martelar nas paredes, bulhas
abomináveis de escadas arrastadas, de utensílios atirados ao
chão, de lâminas raspando parquets e de móveis deslocados.
Arrancadas todas as cortinas e reposteiros e atirados em monte para o desprezo
do porão, o sol e o vento entravam pelas janelas escancaradas, com
inteiro desassombro.
Varado de ar e de luz, repleto de gente estranha, o interior da casa perdera
o aspecto de intimidade e de conforto, que torna o lar amorável e discreto.
Ruth sentia a impressão de estar numa praça pública.
O baile não a interessava, e aqueles preparativos irritavam-na. Tinha
uma salvação: fugir para o fundo da chácara, com o seu
violino ou um romance qualquer. A música inebriava-a; o livro abria-lhe
cismas, e não raro ela adormecia estirada no banco do caramanchão,
numa das suas longas estiadas de preguiça, entre o violino e o livro
abandonados.
Os outros da família preocupavam-se com a festa.
Camila ideava o esplendor do baile pensando muito em si. Reclamara da modista
um vestido com bordaduras luminosas, flores e asas espalmadas sobre tules,
que dessem ao seu corpo o fulgor de um astro.
O bulício produzia-lhe febre, anseio de chegar ao fim, de ver as suas
salas repletas de vestidos de baile e de casacas voejando no redemoinho das
danças.
Outras preocupações iam-se desvanecendo, substituindo, escorregando
para o esquecimento. Que valia já a tal mulher de luto? Gervásio
não provava com a sua assiduidade ser só dela? Talvez tivesse
visto mal, quem sabe? a gente ilude-se tantas vezes
E repelia da lembrança as palavras, a meia confissão do médico,
que tornavam o fato positivo e doloroso. A visão esgarçava-se.
Gervásio não a deixava tomar corpo.
Ele agora demorava-se no palacete dias inteiros. Fora ele quem determinara
a transformação de duas alcovas inúteis em uma sala de
música, em que essa aplicação fosse indicada por pinturas
a fresco: foi ele quem contratou artistas, quem escolheu mobílias novas
e harmonizou o conjunto em todas as peças. Tudo que saía das
suas mãos parecia a Camila perfeito.
Nem a Noca, nem a Nina sobrava tempo para descanso. Vigiavam tudo. As gêmeas,
atiçadas pela balbúrdia, contentes com a novidade, atiravam-se
por entre os utensílios dos enceradores e dos estofadores, rindo-se
da desordem que provocavam.
Mesmo Francisco Teodoro parecia mais satisfeito.
Depois de um exame meditado, ele tinha resolvido: aceitaria a proposta do
Inocêncio, daquele trêfego Inocêncio, tão perspicaz.
Livre de uma preocupação que o enervava, tornou-se mais leve
e mais risonho. Já tinha determinado as coisas: um mês depois
do baile a família partiria para Petrópolis, para o novo palacete
que ali estava construindo, e que, como costumava dizer: engulia dinheiro
que nem um avestruz.
Um belo dia, Ruth atravessava a sala de música para a escada, aflita
por se ver ao ar livre, quando, relanceando o olhar pelas paredes estacou
surpreendida.
De um fundo nebuloso, de brancura opaca, surgiam róseos anjinhos nus,
soprando em longos flautins de ouro.
A maneira por que nascia da tinta aquela carnação tenra e doce,
porque a leveza do pincel chamava à tona aquele bando de crianças,
que vinham de longe, as primeiras ainda mal entrevistas nos vapores da atmosfera
densa, as últimas já batidas de sol, na irradiação
límpida da luz, fizeram-na estremecer. Era uma arte que se revelava
aos seus olhos, como que um mistério que se esclarecia ao seu entendimento.
Nunca pensara nisso. Os quadros que havia em casa, vinham de fábricas.
A máquina não produz almas, e só a alma impressiona e
acorda instintos.
Em pé, com o violino mal seguro nas mãos, Ruth concebia agora
como se podia pintar um quadro. Maravilhava-a, que de uma parede compacta
e bruta, o artista fizesse o éter, onde nuvens se balançavam
e asinhas de filó batiam trêmulas.
Aquela surpresa dava-lhe a idéia de ter posto os pés em país
novo, um país de sonhos.
Já não pensava em se arredar dali. Cada vez mais curiosa, punha
a vista sôfrega nas mãos do pintor, tão grandes e tão
leves, e nas tintas da paleta, que se desmanchavam noutras, tintas mais suaves
ou em flechas de sol.
Tão embevecida ficou, que, meia hora depois, quando o dr. Gervásio
entrou e lhe bateu no ombro, ela respondeu, sem desviar a vista da parede:
– Estou gostando de ver…
"A quem diabo teria saído esta pequena?!" pensou consigo
o médico, ao mesmo tempo que examinava com vista curiosa o trabalho
do pintor. E não lhe agradou completamente o trabalho; torceu os lábios,
descontente.
Mais tarde, quando Ruth lhe pediu a significação daquele gesto,
ele respondeu:
– Não tive talvez razão; a minha exigência torna-me incontentável
e injusto. Eu já sabia que o artista não é genial; portanto,
não podia esperar dele uma obra perfeita. Que importa que um dos anjos
tenha uma perna mais comprida que a outra, e todos tenham o mesmo nariz? Não
digamos isso aos outros, que os outros nada verão. A cor é bonita,
o efeito é gracioso, basta. Já é uma felicidade haver
alguma coisa…
– Eu, como não entendo acho bonito.
Estou até com vontade de pedir a mamãe que me mande ensinar
pintura…
– Não se abstraia do seu violino; mesmo servindo a uma arte só,
é raro haver quem a sirva dignamente. Estude só música,
só música e não pense em mais nada…
Passados dias dava-se por finda a decoração da sala e Ruth
voltou a não encontrar jeito de estar dentro de casa, no meio da balbúrdia
dos trabalhadores. Passava agora outra vez o dia no balanço, ou no
caramanchão das rosas amarelas, fazendo do parque o seu salão
de música e de leitura. Ensinava as gêmeas a trepar às
arvores ou coroava-as de flores e punha-lhes palmas nas costas, à guisa
de asas.
Um dia, porém, a confusão chegou ao próprio parque.
Abriam um novo lago e alteravam o desenho dos relvados para os efeitos da
iluminação. Homens em mangas de camisa iam e vinham por entre
os canteiros, falando alto, e gesticulando afanosos e zangados.
Não tendo já para onde fugir, Ruth pediu à mãe
que a mandasse com a Noca para o Castelo. Passaria dois dias com as tias velhas.
A tia Joana prometera-lhe histórias de santos e levá-la às
igrejas e ao Observatório para ver a lua e as estrelas.
Era a ocasião.
Quando Ruth entrou em casa das tias Rodrigues, d. Itelvina contava, no oratório,
os níqueis arrecadados pela irmã, em esmolas para uma missa
rezada.
D. Joana tinha ido à novena do Rosário, nos Capuchinhos, e
entoava a essa hora o – ora pro nobis, em coro com o povo e os frades.
Ruth sentiu frio naquele casarão do Castelo, de largas salas ensebadas,
sem cortinas, quase sem mobília, com papéis sujos nas paredes
desguarnecidas; mas a idéia de ir ao observatório tentava-a,
e valia todos os sacrifícios. Ficaria.
Quem lhe abriu a porta foi a Sancha, sempre de olhos inchados e a roupa em
frangalhos. Mal deu com os olhos em Noca, a negrinha sorriu, perguntando pela
sua encomenda.
– Que encomenda, gente?
– A senhora já se esqueceu, tornou a preta a meia voz, o arsênico
que eu pedi…
– Ué! você está maluca! eu já nem me lembrava
disso! Tome o seu dinheiro; não foi quinhentos réis que você
me deu?
– Foi; mas eu não quero dinheiro, quero a outra coisa…
– Pra quê? ora veja só! olhe que eu conto a D. Itelvina, hein?
A negrinha pôs as mãos, em um gesto súplice.
– Não diga nada…
– Você é tola!…
A negrinha suspirou baixo e murmurou uma frase que não pode ser ouvida,
porque D. Itelvina aparecera, de olhar desconfiado e narinas dilatadas farejando
mistérios.
Daí a instantes, no canapé da sala, Ruth respondia ao longo
questionário da tia que lhe apalpava a lã do vestido, achando
desperdício que fosse forrado de seda, censurando-lhe o luxo de um
anel de pérolas, e a consistência das fitas de cetim do seu chapéu
de palha. Das presentes passou às coisas ausentes, em perguntas miudinhas
e torpes:
– O dr. Gervásio ainda vai lá todos os dias ?
– Vai, sim, senhora.
– Hum… Diga-me uma coisa: Mário continua a fazer dívidas
?
– Não sei…
– Camila sai sozinha ?
– Às vezes sai.
– Porque é que você não vai sempre com ela, hein?
– Eu tenho que estudar.
– Não fica bem uma senhora sair só…
Ruth contemplou-a, estupefata.
– As más línguas falam. O palácio de Petrópolis
está pronto?
– Está quase pronto. Nós vamos para lá este ano.
– Em quantos contos está ?
– Não sei, não, senhora…
– O dr. Gervásio vai também ?
– Acho que não.
– Hum… Quando se casa a Nina? ainda não haverá por lá
alguém de olho ?
– Pra Nina ? não, senhora.
– Seu pai não há de gastar pouco, agora, para este baile, hein!
Diz que estão reformando tudo! é verdade?
Inocentemente, Ruth contou o que se passava em casa; a intervenção
do médico na escolha dos aparatos, as cores do toldo de cetim do terraço,
as pinturas da sala de música, os lavores dos jarrões para o
vestíbulo…
D. Itelvina ouvia, sem interromper a narração de Ruth, que
ela animava a prosseguir com um gesto de interesse ávido. No fim, concluiu
com um sorriso torto:
– Têm dinheiro, fazem muito bem em gastar.
Nisto bateram à porta. Sancha moveu-se lá dentro e veio pelo
corredor. Sentindo-a, D. Itelvina correu para a alcova próxima e acendeu
a lamparina do Senhor Santo Cristo, que assoprava sempre que a irmã
voltava costas. Ruth seguia-lhe os movimentos e foi com espanto que a viu
mergulhar os dedos magros no prato das esmolas e sumir, quase que por encanto,
uma meia dúzia de moedas no bolso do avental. A velha julgou que a
sobrinha nada tivesse percebido, tão rápido e adunco fora o
seu gesto, e voltou dizendo que o vento apagara a lamparina, e que embebida
na prosa ela se esquecera de a reacender…
Ruth baixou o rosto, muito corada, arrependida de ter ficado. Noca rodara
sobre os calcanhares; se bem andara, onde estaria ela!
D. Joana entrou, gemendo de cansaço.
– Olha, maninha, quem está aqui! disse-lhe a irmã.
– Que milagre! exclamou D. Joana, abrindo os braços para Ruth, que
se precipitou neles, morta por se ver livre da secura áaacute;spera da outra
tia.
– Quem foi que trouxe você?
– Noca… ela vem-me buscar depois de amanhã bem cedo… mamãe
não queria dar licença, tinha medo que eu incomodasse, mas tanto
pedi, tanto pedi…
– Esta casa é muito triste. A alegria passou por aqui há mais
de trinta anos, mas não deixou sinal. Sancha! tira as minhas botinas.
É muito triste esta casa… filha… Estamos tão velhas…
Sancha ajoelhou-se. D. Joana estendeu dois pés inchados, calçados
a duraque, e quando a negrinha lhe puxou e tirou as botinas, ela gemeu: primeiro
de dor, depois de alívio.
– Vai buscar as chinelas…Pois você fez muito bem em vir…Amanhã
poderá ir comigo à missa, à tarde à novena e…
– E à noite ao Observatório. Foi por causa do Observatório
que eu vim. Dr. Gervásio escreveu ao Diretor, apresentando-nos… Estou
com uma curiosidade!
– Mas…
– Não temos mas, nem pera mas, mas, titia; faça a vontade à
sua sobrinha, sim?
Pouco depois, como estivesse escuro, Sancha trouxe um lampião de querosene
com um fétido horrível. D. Itelvina saiu da alcova, atravessou
a sala, e sumiu-se na goela negra do corredor.
Ruth sentia-se mal naquele canapé alto, de assento afundado. Foi à
janela, voltou; a tia rezava; quando a viu persignar-se, pediu-lhe histórias
de santos e sentou-se a seu lado. Tia Joana não se fez de rogada.
As mesmas palavras que na alegria da sua casa risonha lhe enfeitiçavam
a imaginação, arrepiavam agora Ruth, naquela meia sombra, num
ambiente tão diverso do que lhe era habitual.
Os cilícios, as caldeiras fumegantes, as fráguas acesas do
inferno, a nudez das virgens mártires, as cruzadas para a Terra Santa.
lanças flechando o ar abrasado, exércitos comidos pela peste
ou esmagando judeus, os grandes votos solenes, os ritos cruéis, as
perseguições injustas, os gritos de misericórdia, todas
as agonias e todos os êxtases, que a velha relatava, para a vitória
da Fé cristã, assombravam Ruth, que toda se cosia à tia,
olhando desconfiada para a vastidão sombria do aposento mudo.
Na parede do fundo, o bruxolear da luz fraca parecia desenhar formas indecisas
de animais fantásticos; seriam talvez os porcos babosos das lendas
satânicas, os dragões framíferos, ou os magros cães
de focinho erguido a uivar…
– Tia Joana, tia Joana
– Que é isso, minha filha?
– Eu estou com medo… conte outra história mais suave…
– Não se espante, menina! São as grandes dores, o sangue e
a morte que ensinam a Fé. Quem não sofre não compreende
o céu, Ruth! Ainda ontem monsenhor Cordeiro disse estas palavras verdadeiras.
– Mas, o céu assim é feio, tia Joana…
– Cale a boca!… espere… quero ver se me lembro de uma lenda muito antiga
que já tem corrido mundo, mas que é bem verdadeira e bem simples.
– Em que não haja nem fogueiras nem sangue, sim?
– Nem sangue, nem fogueiras: – Foi um dia…
XIV
Foi um dia uma freira pálida, muito moça, muito linda, temente
a Deus e devotada à Virgem. Vivia na Normandia, em um convento velho,
de rígidas penitências, isolado em cima de um rochedo.
Da frecha gradeada da sua cela, a freira só via: em baixo, a pedraria
negra, e além charnecas brancacentas a perder de vista.
Uma tristeza.
No claustro, para onde deitava a sua cela, mesmo no ângulo perto da
portaria, havia uma imagem de mármore representando Nossa Senhora,
tão doce, tão humana, que mais parecia criatura viva. Sempre
que soror Pálida deslizava pelo claustro, fazia à Virgem uma
reverência profunda e murmurava:
– Ave!
E a Virgem sorria-lhe, dentro do seu nicho azul.
Uma noite, soror Pálida, depois de reverenciar o Bendito, desabotoava
o seu hábito e preparava-se para dormir um soninho inocente, quando
lhe pareceu ouvir o seu nome na janelinha. "Há de ser o vento…"
pensou ela, tirando a cruz e o véu.
Não era o vento; a mesma voz, mais distinta agora, repetiu-lhe o nome.
Soror Pálida quis resistir, com medo, mas nunca o seu nome lhe parecera
tão doce, nem tão suspirado; assim, levada por curiosidade,
ou não sei porquê, foi-se aproximando, foi-se aproximando…
Tão depressa chegou, Jesus! que havia de ver?
Suspenso nos varões de ferro, o capelão do convento olhava
para ela, com dois olhos que nem duas estrelas.
– Senhor capelão, por que estais aí? perguntou ela aflita,
pondo as mãos trêmulas.
– Senhora freira, porque vos amo! respondeu-lhe ele.
E logo de mil modos começou a tentá-la.
Tais coisas disse, tais coisas fez, que a pobre o escutava embevecida. Chamou-a
linda, meiga, angélica, e por fim (vê a perfídia!) pediu-lhe
que o beijasse, que o beijasse na boca ou que ele se despenharia no abismo…
A freira debatia-se: que não!…mas, para não o ver morrer
despedaçado no rochedo, vá lá, condescendeu em beijá-lo.
Louca! que fizeste? foi a tua perdição! Ele sumiu-se e ela ficou
de joelhos, muito trêmula, muito alvoroçada.
Em vão coseu cilícios às suas carnes, em vão
se rojou pedindo a Deus que lhe apagasse da memória aquele pecado doce
e horrendo; em vão! O beijo ali estava sempre nos seus lábios,
sentia-o quente, perfumado, embriagador.
Soror Pálida já não era a mesma; perdia o sentido das
rezas, tinha delíquios, abstrações.
O moço capelão voltou, mais uma noite, mais outra, induzindo-a
a que fugisse: iriam viver bem longe, numa casinha branca, entre pomares cheirosos
e águas cristalinas.
Ela recuava, com temor de tamanho crime; mas ele estendia-lhe os lábios
e convencia-a de que o amor vale mais que o céu, mais que a perpétua
bem-aventurança, mais que tudo!
E tornava a suplicar-lhe que fugisse: ele a esperaria junto à portaria,
com os cavalos prontos, mais rápidos que o vento.
Sabe-se como essas coisas são: mau é dar-se ouvidos a primeira
vez. A freira já não pensava senão em varar aquelas charnecas
longuíssimas ao galope de um cavalo ardego, sentindo palpitar o coração
do seu cavaleiro enamorado. Mas, sempre que, altas horas da noite, sutil e
trêmula, deslizava para a portaria com atenção de fugir,
esbarrava com a Virgem, fazia-lhe a sua reverência profunda, murmurando
contritamente: – Ave! e passava; mas, oh! surpresa! a grande porta do convento
desaparecera, e na portaria, como em todo o claustro, só havia grossas
paredes impenetráveis.
Soror Pálida voltava atônita, e a Virgem sorria-lhe do seu nicho
azul.
Por serem sempre as flores presentes de namorados, o moço capelão
levava todas as noites rosas à sua eleita. No outro dia toda a comunidade
entoava:
– Milagre! milagre! a Irmã da Virgem recebe rosas do céu. Os
anjos trazem-lhe flores do Paraíso, como a Santa Dorotéia!
Assim acreditavam, visto que só cardos e espinheiros bravos nasciam
em redor, por aquelas penedias.
E entoavam hinos.
Cansado de esperar, por uma noite trevosa e triste, o moço capelão
aconselhou a freira a que passasse de olhos fechados pela Virgem, rosto voltado
para a outra banda.
Assim fez a louquinha, mas de coração apertado em muita agonia.
Dessa vez achou a porta do convento mal fechada: dir-se-ia que ferrolhos e
trancas, (e que tais eram elas!) se abriam de per si. Foi por isso que a freira
fugiu para a noite negra, com seu hábito branco…
Depois…
Só no fim de um ano, quando ele se cansara de a amar, foi que a mísera
percebeu que o seu cavaleiro não era o capelão – mas o diabo
em pessoa! Arrepiada, transida de medo, fugiu por montes e vales, de cruz
alçada, balbuciando preces, com o fito no convento e em redimir-se
com árduas disciplinas. Andou assim, noites e dias, léguas e
léguas, por mataria espessa, mal se sustentando nas pernas fracas e
nos pés ensangüentados, até que à luz frouxa de
uma madrugada viu um dia os penhascos abruptos do convento, e caiu de joelhos,
persignando-se.
Finda a oração, ergueu-se. Passava então pela estrada
um velho muito velho, de bordão e sacola, e ela perguntou-lhe se não
ouvira falar em uma religiosa fugida do convento um ano antes?
– Nenhuma freira fugiu nunca daquele convento, respondeu ele; são
todas umas santinhas, louvado seja o Senhor!
– Amen! Entretanto… ouvi dizer que uma das irmãs, que recebia rosas…
– A do milagre!? ah! essa! É a mais pura… Ide vê-la, Ide vê-la
se sofreis. Essa até dá vista aos cegos e faz andar os paralíticos.
Com vivo espanto, a freira galgou a encosta pedregosa e, toda a tremer, com
o coração aos pulos, bateu à porta do convento.
– Quem é? perguntou de dentro uma voz dulcíssima.
– Uma pecadora arrependida, para a penitência – sussurrou soror Pálida,
lavada em pranto. E confessou logo ali os seus desatinos…
A porta abriu-se sem fazer barulho: dir-se-ia que os grossos gonzos enferrujados
estavam de veludo,- e a rodeira mostrou-se com um sorriso à freira
apoquentada.
Oh! aquele sorriso, bem o conheceu a religiosa que, vergando os joelhos,
na profunda reverência antiga, murmurou com imensa compunção
e infinita doçura:
A Irmã rodeira era a Virgem Maria, que, desde a noite da fuga, tomara
a forma da freira e cumpria todos os deveres da regra que lhe competiam: badalando
os sinos, varrendo os claustros, acendendo as velas dos altares e arrumando
os gavetões da sacristia.
– Toma o teu hábito, disse-lhe Nossa Senhora, e vai para a tua cela…
Descansa, que ninguém soube do teu opróbio, ninguém!..,
Soror Pálida prostou-se e uniu humildemente a face à lage fria;
depois, erguendo o rosto inundado de lágrimas, perguntou soluçando:
– E Vós, Mãe Santíssima?!
– Eu? Perdôo, respondeu-lhe a Virgem sorrindo, já dentro do
seu nicho azul…"
Eram nove horas; Sancha veio chamar para a ceia, e levou para a mesa o lampião
fumarento. D. Itelvina só usava mate, que sempre era de maior economia.
Sentaram-se. Ruth mal engoliu a sua xícara. Pensava em Soror Pálida.
Nessa noite teve de sujeitar-se a dormir com a tia Joana. Lembrando-se das
pernas inchadas da velha, teve um arrepio e saudades do seu leito branco coberto
de filós delicados. A tia mexia-se, benzia todo o quarto, rezava a
meia voz, sacudia a roupa que toda cheirava a incenso, e com a vigília
da velhice perturbava o sono da menina. Foi no meio do silêncio da casa,
que irromperam de repente, lá do fundo, uns gritos lancinantes.
Ruth sentou-se na cama, com os olhos arregalados.
– Que é isto, tia Joana?!
– Não é nada… há de ser a maninha batendo na Sancha…
– Meu Deus!
– Não é nada, dorme minha filha!
– Oh!…tia Joana, vá lá dentro…peça a titia pra não
dar na coitada!
– Eu?! não… a negrinha merece… maninha não gosta de intervenções…
Sancha faz espalhafato à-toa.
– Vou eu.
Ruth, em fraldas de camisa, de pernas nuas, saltou para o chão, com
um movimento de cólera; e saiu para a sala de jantar; já não
havia luz; guiada por uma claridade frouxa, do fim do corredor, correu para
a cozinha, onde a D. Itelvina surrava a pequena com uma vara de marmeleiro.
A negrinha mal se livrava com os braços tapando o rosto e abaixando
a cabeça. Ruth saltou para o meio do grupo e segurou a vara que ia
descaindo sobre a carapinha da outra.
– Isso não se faz, tia Itelvina! isso não se faz! gritou ela
com ímpeto, crescendo para a tia, que estacara boquiaberta.
– Você não tem nada com o que eu faço. Este diabo botou
de propósito gordura na água do meu banho… eu sei porque dou.
Ela merece. Ruth, vá dormir.
– Não vou; mande a Sancha deitar-se primeiro. A senhora não
tem coração?!
– Ora vá-se ninar! Sancha praqui!
A negrinha tinha-se refugiado a um canto, perto do fogão, e exagerava
as dores, torcendo-se toda, amparada pela compaixão da Ruth.
D. Itelvina avançou os dedos magros, e, agarrando-a por um braço,
puxou-a para si; a sobrinha então abraçou-se à negrinha,
unindo a sua carne alva, quase nua, ao corpo preto e abjecto da Sancha.
– Bata agora! tia Itelvina, bata agora! gritava ela, em um desafio nervoso,
sacudindo a cabeleira sobre os ombros estreitos.
D. Itelvina atirou fora a vara e disse para a negra:
– Vai-te deitar, diabo! foi o que te valeu…Mas nós havemos de ajustar
contas…
Sancha esgueirou-se para um quarto escuro, onde os ratos faziam bulha, e
Ruth, arrepiada, trêmula, voltou silenciosa para o quarto da tia Joana.
A velha amarrava um lenço na cabeça. A sobrinha interrogou-a:
– É sempre assim?
– Não… uma vez ou outra.
– Mas como podem viver neste inferno?!
– Ora, você não sabe. A Sancha provoca. Maninha anda desconfiada
que ela lhe deita vidro moído na água, e na panela… é
uma coisa ruim. E ladra, ih! Você sabe o meu gênio, não
sei guardar chaves… Pois é raro o dia em que a Sancha não
me fique com alguns tostões das missas… Maninha corrige-a para bem
dela. É um sacrifício… Eu não teria paciência
para a aturar.
– A Sancha vai amanhã comigo para casa.
– Está doida, menina! e quem nos há de fazer o serviço?
– Aluguem uma mulher.
– Ruth… você é muito criança… não pense na
Sancha. Ela faz tudo quanto pode para excitar maninha… Eu se sigo, é
porque sei. Ainda ontem queimou-lhe de propósito os chinelos novos,
com o pretexto de os ir secar ao fogo. A minha roupa, lava ela; a da maninha
deixa-a apodrecer na beirada do tanque. É uma coisa ruim!… não
pense mais nela. Durma…
Mas Ruth não podia dormir; e quando de madrugada a tia Joana se levantou
para ir à missa das Almas, ela saltou da cama, para ir também.
Antes de saírem, foram à cozinha procurar café, e lá
encontraram Sancha a acender o fogo, assoprando com força. Foi então
que Ruth se chegou para ela e, pousando-lhe a mão no ombro, disse alto,
sem medo que a tia Joana a ouvisse:
– Sancha, porque é que você não foge?
A negrinha ergueu o busto e fixou a mocinha com pasmo.
– Nhá?!
– Fuja!
A tia Joana, entretida a partir o pão da véspera, não
percebera nada. Uma esperança vaga tremeluziu no rosto estúpido
da preta.
– E depois? perguntou ela, assustada.
– Vá lá para minha casa; eu falarei a mamãe.
– De que serve! me mandarão outra vez para cá…
– Não. Titia pode alugar outra criada… papai falará com ela…
A tia Joana acabara de partir o pão e chamava a sobrinha para o café
da véspera, requentado.
Quando saíram era já dia, mas as névoas da manhã
pousavam ainda nos telhados, e nada se via da cidade, em baixo.
Pelo caminho do convento cabras saltavam, seguidas dos cabritos de pelo espesso
e novo, e na grama molhada faziam correrias uns cachorros vadios. Tocou a
matinas e a tia Joana benzeu-se. Ruth, pouco afeita a madrugadas, achava um
prazer divino em ir assim rompendo as névoas com a pele refrescada
pela umidade da atmosfera e os olhos cheios daquela luz branca, suave, que
subia e se ia estendendo pelo céu todo.
Na igreja, a tia fez reverência a todos os altares, com uma oraçãozinha
na ponta da língua para cada um; Ruth seguiu até o altar-mor
e ao ajoelhar-se sentiu como nunca que havia na sua alma uma súplica,
um apelo para a misericórdia de Deus. Entre o altar, onde um ramo de
flores esquecidas se ia desfolhando, e os seus olhos sonhadores, foi-se esboçando
pouco a pouco a figura angulosa e tosca da Sancha. De mãos postas,
Ruth pediu à Virgem uma bênção para a negra, um
pouco de piedade, um refúgio, uma consolação. Até
ali que sabia das misérias do mundo? nada. Aquela noite do Castelo,
tão simples, tão monótona, fora uma revelação!
Era bem certo que a lágrima existia, que irrompiam soluços de
peitos oprimidos, que para alguém os dias não tinham cor nem
a noite tinha estrelas! Ela, criada entre beijos, no aroma dos seus jardins,
com as vontades satisfeitas, o leito fofo, a mesa delicada, sentira sempre
no coração um desejo sem nome, um desejo ou uma saudade absurda,
a saudade do céu, como dizia o dr. Gervásio, e que não
era mais que a doida aspiração da artista incipiente, que germinava
no seu peito fraco.
E aquela mesma mágoa parecia-lhe agora doce e embaladora, comparando-se
à outra, a Sancha, da sua idade, negra, feia, suja, levada a ponta-pés,
dormindo sem lençóis em uma esteira, comendo em pé, apressada,
os restos parcos e frios de duas velhas, vestida de algodões rotos,
curvada para um trabalho sem descanso nem paga!
Por que? Que direito teriam uns a todas as primícias e regalos da
vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade?
Sabia a história da Sancha: uma negrinha vinda aos sete anos da roça
para a casa das tias, com sentido no pão e no ensino. Era dos últimos
rebentões dessa raça que vai desaparecendo, como um bando de
animais perseguidos.
E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o
cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e
então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande
Pai misericordioso, porque a criara, a ela, tão branca e tão
bonita, e fizera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio
da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse
em felicidade perfeita o coração da negra.
– Sim, o coração dela deve ser da mesma cor que o meu, cismava
Ruth, confusa, com os olhos no altar.
Quando acabou a missa, tia Joana quis fazer a sua penitência, umas
coroas de rosário que ela disse a meia voz, de olhos cerrados.
Ao saírem do convento, dois frades retiveram a velha junto à
pia de água benta, interessados pela sua saúde, cobrindo-a de
bênçãos e de boas palavras. Fora, já o sol irrompera
vitorioso, estraçalhando os últimos farrapos de neblina.
A velha lembrou a Ruth que ainda teriam tempo de ir morro abaixo até
a igreja do Carmo.
Ruth não respondeu; deixou-se levar. Mais valia andar de igreja em
igreja do que voltar para o triste casarão da tia Itelvina.
– Você conhece a igreja do Carmo?
– Não, senhora. Ouço sempre missa na capela do colégio.
Não gosto das igrejas grandes.
– Por que?!
– Não sei…
– Ora essa!
– Tia Joana, há muita coisa que eu sinto e que não sei explicar.
A senhora não acontece o mesmo?
– A mim? não; nem a mim nem a ninguém. Quando a gente diz que
gosta ou não gosta de uma coisa, sabe sempre o motivo por que o diz.
– A senhora reza da mesma maneira em uma igreja grande, sombria e fria, que
em uma igrejinha clara e enfeitada de flores?
– Certamente. Deus tanto está nas grandes como nas pequenas igrejas.
Ele está em toda a parte.
– Mas se Deus está em toda a parte, porque abandona certas pessoas?
D. Joana estacou.
– Não diga heresias, menina! Deus não desampara ninguém.
– E a Sancha?
– Hein?
– A Sancha.
– Lá vem você com a negrinha!
– Negra ou branca, é criatura.
– Não digo que não. Mas que falta à Sancha?
– Oh, tia Joana! pergunte antes o que lhe sobra…
– Você é muito impressionável. Creia que a pequena não
é infeliz. Que seria dela, se não estivesse lá em casa…
Uma desgraçada, dessas da rua. Talvez que bebesse, ou que já
estivesse com um filho nos braços.
– Estar com um filho nos braços! mas isso seria uma fortuna, tia Joana.
Tomara eu.
Menina, que é que você está dizendo!
– Gosto tanto de crianças! Olhe, tia Joana, o meu desejo é
ter vinte filhos, vinte!
A velha corou.
– Perdôo essas palavras, porque você é inocente; mas não
torne a repeti-las, ouviu?
Ruth cismava em que constituiria pecado o ter vinte filhos, quando D. Joana
exclamou, apontando para duas crianças, carregadas uma com uma harpa,
outra com uma rabeca:
– Olha, Ruth; aquelas, sim, é que são infelizes: andam ao sol
e à chuva, e se não levam dinheiro para casa, ainda apanham
por cima.
– Não as compare à outra, tia Joana. Eu preferiria andar sempre
ao ar livre, apanhando sóis e chuvas, tocando no meu violino, dormindo
em qualquer soleira de pedra, do que viver no borralho como a Sancha. Ao menos
estes têm a música.
D. Joana riu-se.
– É verdade; quando você toca esquece tudo.
Chegaram à igreja; a missa tinha começado. Ruth deixou-se ficar
sentada no banco, sem atender aos puxões que a velha lhe dava, para
que se ajoelhasse. Para que, se tinha esgotado o ardor da sua alma na primeira
missa do convento? Sentia-se agora cansada, apertavam-lhe as saudades da mãe
e da alegria da sua casa. Como lhe pareceu interminável aquela missa,
que a velha ouvia toda de joelhos, num êxtase!
Findo o sacrifício, D. Joana quis levar esmolas a todas as caixas
da igreja.
Ruth apressava-a, morta por se ver na rua, mas a tia nem parecia ouvi-la.
No adro lembrou ainda:
– Já que estamos cá embaixo, vamos a Santa Rita saber notícias
do padre Euclides, que está doente.
Ruth objetou:
– Mas titia, eu estou com fome…
– Tem razão, filhinha; mas é um momento só. O sacristão
nos dará informações e seguiremos logo para casa.
Em Santa Rita, rezava-se uma missa de sétimo dia. Gente de preto cobria
as naves como um bando de urubus. O sacristão procurado ajudava à
missa, e não havia ninguém na sacristia que soubesse do padre
Euclides. D. Joana deliberou esperar e empurrou a sobrinha para o corpo da
igreja, dizendo:
– Rezemos por alma deste morto, filha.
– Mas nós nem o conhecemos, titia!
– Não faz mal; foi um pecador, precisamos salvá-lo.
Tia Joana ajoelhou-se e ergueu o rosto gordo e pálido para o altar.
Era tal a fé, a doce piedade que a sua expressão difundia, que
Ruth deixou-se cair de joelhos e pediu a Deus perdão para a alma daquele
desconhecido, por quem tantas mulheres choravam…
Que Deus lhe desse abrigo e eternos gozos!
Enfim, o sacristão afirmou à senhora do Castelo, como muita
gente a chamava, que o padre Euclides entrará em convalescença,
e diria no domingo a sua missa.
– Bem, titia, chegou a minha vez de lhe pedir também uma coisa; disse
Ruth.
– Peça, filhinha.
– Já que estamos tão perto, deixe-me ir tomar a bênção
a papai. A estas horas ele está farto de estar no armazém.
D. Joana hesitou:
– Olhe que não é tão perto assim…
– Parece-me que já estou há tanto tempo fora de casa.
– Vamos lá… Que pieguice!
Tinham andado meia dúzia de metros quando esbarraram com Francisco
Teodoro, que vinha reçumando saúde e alegria pelas faces coradas,
empertigado nos seus linhos e brins brancos, bem engomados, de que um paletó
preto fazia ressaltar a alvura.
Nos seus olhinhos pardos, muito claros, faiscavam lampejos; ele estendeu
as mãos à filha, com uma exclamação de alegria:
– Senhora fujona, que faz por aqui?!
– Já engoli três missas, papai; mas ainda estou com fome! íamos
agora procurá-lo ao armazém; eu queria tomar-lhe a bênção,
para depois irmos almoçar…
Se papai nos levasse a um hotel?…
– Não posso. Tenho muito que fazer. Vou agora mesmo procurar o Inocêncio
Braga, que já deve estar à minha espera… Adeus.
E, abreviando, ele meteu na mão da filha uma nota de vinte mil réis,
aconselhando às duas que comessem qualquer coisa em um restaurante.
E despediu-se à pressa, mal ouvindo os inúmeros recados que
a Ruth mandava à mãe.
D. Joana lembrou-se que estavam perto da casa do dr. Maia, e que mais valeria
irem lá papar-lhe o almoço do que entrarem sozinhas em um restaurante.
Ruth sorriu-se do escrúpulo da velha, já contagiada pelas economias
sórdidas da irmã.
– Tanto me faz, tia Joana; leve-me onde haja bifes, e eu ficarei contente;
respondeu-lhe a menina.
Ardiam-lhe os pés; uma fadiga enorme amolecia-lhe o corpo; e entregava-se,
inerte, à vontade da velha. Por fortuna, a casa do dr. Maia ora perto
do largo, na rua dos Ourives, um sobrado antigo, de rasgados salões
arejados, onde velhas mobílias bem espanadas atestavam o escrúpulo
dos moradores.
O dr. Maia foi o primeiro a recebê-las no corredor; muito velhinho,
arrastando os chinelos bordados pela neta, com a gorra de veludo cobrindo-lhe
a calva, e um bom sorriso hospitaleiro iluminando-lhe o rostinho claro e murcho,
onde os olhos azuis se iam velando da neblina da velhice.
D. Joana era íntima da casa, recebida sem cerimônia; e como
a Ruth tivesse ar de menina, ele foi empurrando a ambas para a sala de jantar.
Só estava em casa a velha, a D. Elisa; a filharada debandara depois
do almoço, uns para o emprego, outras para o dentista e as compras.
Mas no fundo das caçarolas ainda havia restos de arroz e de ensopado;
D. Elisa recomendou que estralassem uns ovos, e em poucos minutos D. Joana
e Ruth almoçavam, ao som de um discurso do dr. Maia, que ia descrevendo
com surpreendente entusiasmo o seu invento de um balão dirigível.
Ele não pensava em outra coisa; vivia em perpétuo vôo,
entre altas camadas de atmosfera. Desde alguns anos se fixara nesses estudos
e para eles fazia convergir todos os seus cuidados.
A mulher sorria-se com resignação imposta pelos mil desvarios
que se acostumara a conhecer no esposo. Desde rapaz que ele fora assim, metido
a empresas opostas à sua competência. Tinha estudado para médico,
e abandonara a clínica para defender réus desamparados, escrever
para jornais e desperdiçar forças e tempo na elaboração
de grandes empreendimentos que não levava a termo. Agora era o balão.
Aquele velho de quase oitenta anos, achacado de asma, perdia horas de sono,
curvado sobre a mesa, a desenhar, a escrever, a dar forma à sua idéia,
em uma palpitação assombrosa de vida…
Havia em casa uma certa piedade pelas suas manias, um respeito pela inocência
daqueles ideais. D. Elisa dizia às vezes que se a alma, no seu último
vôo, tomasse forma visível, veriam, os que assistissem à
morte do marido, que a dele lhe voaria do peito como uma borboleta. E toda
azul! acrescentava ela, com o seu sorriso simpático.
D. Joana mal entendia as descrições do dr. Maria, mastigando
com dificuldade a carne um pouco dura, batida à pressa. Ruth abria
os ouvidos e via esgarçar-se a neblina que a idade punha nos olhos
do médico e ir-lhe aparecendo nas pupilas azuis um branco fulgor de
primavera. Ela percebia alguma coisa, via já o balão cindindo
as nuvens, leve, leve, airoso, vestido de cores luminosas. Como seria bom
subir tão alto, tão alto!
– O meu balão será de alumínio, um metal levíssimo,
explicava ele, e todo redondo, girará em grandes círculos, como
se dançasse uma valsa; percebem?
D. Joana fez que sim com a cabeça, e espetou uma batata. Ruth murmurou:
– Assim branco e redondo, será como a lua… que bonito!
Felizmente, uma nova visita veio interromper a exposição do
velho, que se despediu das senhoras e lá se foi a sala pigarreando
pelo corredor.
D. Elisa desabafou depois com a amiga as suas queixas domésticas.
O marido esgotava os minguados recursos em livros e revistas. O que lhe valia
era o filho mais velho, o José… A neta andava na Escola Normal e
ganhava para os seus alfinetes; as duas filhas solteiras, já trintonas,
coitadas, cosiam para fora… Aí estava a vida. E é assim, por
aí; toda a gente trabalha; acrescentou ela com um suspiro.
Quando D. Joana e a sobrinha voltaram para o Castelo, quem lhes abriu a porta
de casa foi a Sancha. Ruth recuou espantada. Que! pois a idiota da negrinha
não ouvira o seu conselho?
Ao jantar, uma tristeza. D. Itelvina aludia com escárnio mal contido
às grandezas do palacete Teodoro, e lamentava-se de só poder
abastecer-se de gêneros baratos, espremendo-se em lamúrias. D.
Joana benzeu o pão, rezou de mãos postas, e sentou-se à
mesa com a sua consciência feliz, e uma doce expressão de conforto.
Para ela tudo era bom, estava tudo sempre muito bem.
Foi nessa noite que Ruth subiu com ela as escadas do Observatório,
para ver estrelas; e quando as viu, a sua comoção foi tamanha
e. tantas as suas exclamações, que a tia observou:
– Você é muito exagerada, Ruth!
Ruth nem a ouviu; olhava embevecida. No céu, de um azul fechado, aqueles
pontos de ouro tomavam formas e dimensões excepcionais. Esta estrela
era verde, aquela azul, aquela outra violeta, e uma como um bouquet de variados
matizes e outra pálida, e outra afogueada, e outra diamantina, e todas
imensas e luminosíssimas. Oh! as estrelas, que beleza de céu!
Sobretudo as do Cruzeiro eram formosas, límpidas como o clarão
da fé. Depois, aqueles chuveiros de ouro e prata, aquele fervilhamento
multicor da via-láctea, raios de fogo dançando, cruzando-se,
chispando em fagulhas de uma pirotecnia fantástica… Depois a lua…
– Nossa Senhora, que imensidade!… Como é bonito! Oh! tia Joana,
como é bonito!
– Bom, bom; divirta-se…
Ruth não respondia; com o olho colado à lente, esmagada pela
poesia daqueles esplendores, ficava embevecida, como se dos astros chovessem
sobre ela aromas que a embriagassem.
– Filhinha, vamo-nos embora…
– Mais um bocadinho só… oh! tia Joana!
Nessa noite, deitada ao lado da tia na alcova mal alumiada e que tresandava
a azeite de lamparina, Ruth via na imaginação impressionada
as estrelas, globos enormes de cristal cheios de luz e cheios de flores, fulgurando
e espargindo aromas. Já ela adormecia e ainda a tia lhe ouviu em um
murmúrio entrecortado:
– Como é bonito!
No dia seguinte, quando acordou, era tarde. Tia Joana saíra sozinha
para as devoções; nem a pressentira. Tia Itelvina andava aos
berros pela casa.
Ruth saltou da cama assustada e foi entreabrir a porta:
– Que é?
A tia respondeu-lhe com mau modo, em uma rebentina:
– A Sancha fugiu!
Um tremor de febre percorreu o corpo de Ruth.
Atirou-se para a cama, puxou os lençóis até a cabeça.
Para onde teria ido a pobre, sozinha, sem conhecer ninguém? De quem
seria a culpa se lhe acontecesse uma desgraça?… De quem, senão
dela?… Ora! sempre seria mais feliz lá fora…
Quando nesse dia Noca apareceu no Castelo, Ruth lançou-lhe os braços
ao pescoço. Era a sua libertação.
D. Itelvina rabeava pelas salas e corredores, culpando a irmã, que
se levantava fora de horas para a carolice e deixava a casa escancarada, provocando
a negrinha para o assanhamento da rua.
Foi ao fragor dessas invectivas que Ruth se despediu da velha, deixando-a
sozinha no seu casarão, onde as catingas do rato e do mofo vagavam
conjuntamente.
XV
Crianças, venham lanchar! gritava Nina para o jardim, às gêmeas,
quando viu entrar a Terezinha Braga.
– Você chegou a boa hora, Terezinha, nós vamos tomar café.
Entre.
– Estou com muita pressa; quero ver se vocês me emprestam o último
figurino.
– Mas nós não temos disso. Tia Mila manda fazer tudo fora…
– Manda a Noca pedir ali à casa do Dr. Nuno!
Nina vacilava, com vontade de servir a amiga; mas a mulata, que ouvira tudo
da janela da copa, interveio com ar peremptório:
– Seu Teodoro não quer que se peça nada à vizinhança.
– Ele não precisa saber… insistiu a Terezinha, ainda no jardim.
– Oh, xente! Por que é que a senhora não manda pedir os figurinos
em seu nome?
– Porque estamos mal com o Dr. Nuno… ora, você bem sabe!
– Eu não. Eu só sei que temos ordem de não incomodar
a vizinhança. Seu Teodoro não é para brincadeiras; quando
põe a boca no mundo vai tudo raso! Crianças! olhe só
onde elas estão!
– Vai buscá-las, Noca, que o café arrefece. Entra, Terezinha,
talvez se possa arranjar alguma coisa…
– Esta D. Nina, não tem emenda! murmurou por entre dentes a mulata.
Servindo o café, Nina explicou à Terezinha:
– A baronesa da Lage está lá dentro; eu vou pedir-lhe que me
mande logo os seus figurinos.
– É para o meu vestido de baile.
– Você mesmo é que o vai fazer?
– Que remédio! Sabe de que cor são os das Gomes?
– Não…
– Amarelos! A Carlotinha pediu à modista que lhe decotasse bem o vestido
atrás, para mostrar o sinal preto da espádua… é levada,
a Carlotinha! Ninguém dirá, às vezes, que é uma
moça de família; parece outra coisa…
– Está muito bonita, agora, depois que engordou.
– Mas cada vez mais maliciosa…
Nina não respondeu; mandava o copeiro servir o café à
sala. Lia e Rachel entraram arrastadas pela Noca, tentando morder-lhe as mãos,
muito pirracentas.
– Já viram só estas meninas como estão! Bem, D. Nina!
dê todos os sonhos a Ruth.
Nina elevou, sorrindo, o prato de sonhos em direção a Ruth,
que se balançava em silencio numa cadeira, e então as crianças
avançaram para a mesa, à espera do café.
– Ora graças!
Engulido o café, Terezinha declarou:
– Tenho muito que fazer; adeus, vou-me embora!
As gêmeas fugiram também, com as mãos cheias de sonhos,
para o jardim; Nina e Ruth ficaram sós, muito caladas, ouvindo as moscas
voejar sobre os restos açucarados dos pratos.
De repente, Nina:
– Em que é que você está pensando, Ruth?
– Na Sancha.
– Que idéia!
– É que ninguém sabe! fui eu que disse à Sancha que
fugisse. Tive tanta pena dela! Tia Itelvina é má: batia na negrinha
com vara. Eu vi. A Sancha nem parecia gente; suja, desconfiada… que estúpida!
Não sei como ela podia agüentar aquela vida. Fui eu que lhe disse
que fugisse; e depois que ela fugiu, tenho medo que morra por aí à
toa, que não ache emprego, que se embebede ou fique embaixo de um bonde…
Até sonho com a Sancha. Que coisa horrível!
Nina consolou-a. A Noca já lhe contara que a pretinha quisera envenenar-se;
era menos burra do que parecia.
– Você é muito nervosa; deixe lá a Sancha, pense em outra
coisa. Tia Mila ainda está no terraço com a baronesa da Lage…
vamos lá?
– Para quê?
– Para falar nos figurinos… Eu ando um pouco desconfiada com tantas visitas
daquela senhora… você tem reparado como ela cochicha com Mário?
– Não…
– Pois repare… A lesma da Paquita tem bom advogado!
– Mário não gosta dela.
– Quem disse?
– Ele mesmo, bem alto, outro dia na mesa. Você não ouviu?
– Ouvi…
– Então?
– Então? Quem sabe o que estará para acontecer!
Nessa tarde Camila participava em segredo ao marido que a baronesa da Lage
viera declarar-lhe o amor da irmã por Mário, e lembrar-lhe que
o baile seria uma bela ocasião para a apresentação dos
noivos.
O negociante olhou boquiaberto para a mulher.
Ela disse:
– Eles desejam abreviar essa história, porque o velho quer ir para
a Europa.
– Mas é incrível!
– Por que?
– Porque! porque o Meireles é um homem prático; não
há de querer entregar a filha a um rapaz sem profissão! Isso
não pode ser. A Lage está doida.
– Você é injusto… Mário não tem profissão,
mas pode vir a tê-la.
– Lá vêm cantigas! Pois sim! Aqui para nós: o rapaz não
vale nada. Quem não trabalha, que garantia pode dar à família?
– Ele é rico, e a Paquita ainda o é mais…
– Por esse lado aprovo. O dote dela é bom, e a família excelente.
Se o Mário soubesse ser o que sempre desejei, pouco me importaria que
se casasse com mulher pobre. São as melhores; trazem a experiência
da vida. A experiência da vida é um grande dote.
– Você fala com Mário?
– Eu?! eu não. não concorrerei com o meu conselho para semelhante
asneira. Arranjem-se. Que diabo! ele ainda não tem vinte anos. Fala-lhe
tu… se quiseres.
Francisco Teodoro passeava pelo quarto, com as mãos nos bolsos, fazendo
tilintar as chaves.
– A Lage disse-me também que você entrou em uma grande negociata
com o Inocêncio…
– Como soube ela disso?!
– Não sei… Diz que a sua casa vai ser uma das mais fortes ai…
– Tenho medo…
– Hein?
– Não é nada; está feito. Pois senhores, parece incrível,
eles querem mesmo o casamento?
– Então? Logo que Mário queira, será coisa para uns
quinze dias. O Meireles deseja levar os noivos consigo. Bem pensado, Paquita
teve bom gosto.
– Muito fresco! Olha: eu lavo dai as minhas mãos.
– Logo vi… Mário já deve ter chegado; eu vou falar com ele.
Por enquanto é bom não dizer nada a ninguém.
– A quem o dizes…
Teodoro ficou só no quarto, mudando de casaco e de calçado,
vagarosamente, com sentido no negócio que o preocupava.
Como diabo teria a Lage sabido daquele negócio com o Braga?
Abriu a janela e encostou-se.
De baixo, da sala de jantar e da cozinha subiam o cheiro de gorduras e a
música da cristalaria e da prata movidas pelo copeiro.
No grande lago do parque, de águas renovadas, patos gordos desprezavam
as migalhas de pio que a Rachel e a Lia, deitadas de bruços na relva
sobre os bordados bem engomados dos vestidos, lhes atiravam às mancheias.
Sob a jaqueira enorme, carregada de frutas grandes como ubres túmidos,
o cão de guarda preso à corrente, devorava uma enorme posta
de carne em um alguidar. Todas as plantas, bem tratadas, rebentavam em grelos
viçosos ou se expandiam em flores, e pela rua de palmeiras, que ia
ter à horta, o jardineiro vinha carregado com uma cesta de frutas e
frescos pés de alface.
A terra suava de farta; não lhe faltava nem o adubo que lhe dá
força, nem o ornamento que lhe dá graça. Afigurou-se
então a Teodoro, com clareza, que a vida é uma coisa bem boa
para quem vence e faz cair sobre o terreno que o circunda a chuva de ouro
fecundante.
No seu orgulho de homem saído do nada, aquele gozo material da riqueza
enchia-lhe a alma de uma espécie de heroísmo.
Era como se ele tivesse feito tudo, desde as pedras dos fundos alicerces
do seu palácio até as mais esquisitas frutas do seu pomar e
as mais divinas flores das suas roseiras. Semente germinada à custa
do seu dinheiro, era obra sua, envaidecia-o, como se a suprema perfeição
da planta lhe tivesse saído de entre os dedos poderosos.
Em todo esse sentimento de conquista havia a bondosa ingenuidade de ter sabido
criar para os seus uma felicidade perfeita.
Nunca os filhos saberiam o que era uma infância como fora a sua, desagalhada,
errante; nunca a mulher saberia o que era ter um desejo sem esperança
de satisfação, e a todos envolveria sempre o luxo, a abundância
e a alegria.
As copas das palmeiras desenhavam-se em fila na atmosfera límpida.
Uns passos rangendo na areia chamaram-lhe a atenção para baixo
da janela: Camila e Mário saíam de casa para o jardim. Ela,
alta, bem desenhada no seu vestido claro, andava de vagar: ele, com o peito
florido por um fresco bouquet de miosótis, as mios nos bolsos, parecia
ouvir a mãe com atenção a que não era afeito.
Seguiram ambos para o jardim da frente e deram volta à casa; quando
os perdeu de vista, Francisco Teodoro desceu à sala de jantar. A mesa
estava pronta; Nina, com o seu aventalzinho bordado sobre um vestido escuro,
dava uns retoques à fruteira.
– O dr. Gervásio almoçou cá? perguntou-lhe o tio.
– Como sempre.
– Virá jantar?
– Creio que não…
– É o diacho… eu precisava falar-lhe!
– O seu empregado está pior?
– Parece-me que sim… coitado…
Nina suspirou, e da fruteira passou às flores da jarra, pensando no
velho Mota, que mal conhecia, entretanto. Depois de uma pausa:
– Quer que eu mande tocar a sineta?
– É bom esperar um pouco; tua tia está em conferência
com o Mário. De maneira que o Gervásio não voltará
hoje por aqui?
Nina não respondeu, o coração batia-lhe com força.
A idéia da Lage deu-lhe o pressentimento da verdade. Seria certo, Deus
do céu que Mário se casaria com a outra? Conferência com
ele… para quê?
Francisco Teodoro recostara-se em uma cadeira do terraço, lendo um
jornal da tarde a que pouca atenção prestava. O que estaria
a mulher a dizer ao filho? Julgava do seu dever não intervir naquela
criançada; se o fizesse, seria para despersuadir a moça de tal
casamento: conhecia a frivolidade do filho; o que o espantava era o consentimento
do intransigente Meireles: só explicava aquilo por caduquice; miolo
mole. – O homem ensandeceu! Ora, ora! dar a filha ao Mário! – resmungava
ele de vez em quando, com estupefação, como se fizesse um comentário
ao artigo acabado de ler.
Nina, que se agitava de um lado para o outro, indo de armário a armário,
de janela a janela, veio para o terraço e encostou-se à balaustrada,
muito abatida. De seus olhos pardos saía uma luz branca, onde relampejavam
fulgores frios.
Vira de relance a tia e o primo embaixo dos tamarineiros, e fugira depressa
da janela da copa para o terraço, com medo de perceber-lhes nos gestos
a expressão exata das palavras que diziam. Adivinhava a verdade, mas
temia ouvi-la, porque essa verdade não a magoaria só, ofende-la-ia
também. Era como que um ultraje à sua mocidade outoniça,
à sua pobreza e à sua fé no amor. Sentia-se predestinada
a ser na vida uma espectadora da ventura alheia, e uma revolta de sentimentos
dava-lhe desejos maus.
A tia, contra o dever, não amava, não era amada, não
sacrificava tudo pelo perfume de uma palavra amorosa, pela loucura divina
de um beijo? Aquele livro de paixão, tão imprudentemente aberto
diante dos seus olhos, não a fizeram por tantas vezes estremecer de
inveja e sonhar com as delícias do amor?
Até ai respeitara aquela paixão, sentia-a sincera, fazia-se
cega, apiedada daquelas almas felizes. Agora tinha ímpetos de se vingar,
de arrancar das mãos do tio o jornal, de gritar-lhe com toda a força
a história daqueles amores que a humilhavam, porque entre ela e a tia,
não era a outra, casada e mie, mas sim ela, órfã e virgem,
quem tinha direito àquela felicidade de amar e de ser amada…
Duas borboletas brancas passaram rente a ela, perseguindo-se.
Nina fechou os olhos, mas a visão da felicidade alheia lá estava
dentro. Qual seria o interesse da tia em casar o Mário?
Lia e Rachel interromperam-na; vinham nas bicicletas a toda a força,
reclamando o jantar aos brados. O Pai sorriu, achando-as lindas, assim rosadas,
com os cabelos ao vento.
Elas, já combinadas, atiraram-se para ele, turbulentamente, pedindo-lhe
ao mesmo tempo as mesmas coisas. Queriam um carrinho de verdade, puxado a
poneys com o cocheiro vestido de azul.
Nina aproveitou para mandar servir o jantar, morta por interromper a conferência
da tia.
E quando Camila e Mário entraram na sala ninguém lhes soube
ler nas fisionomias uma sombra sequer da verdade: falavam ambos do baile,
como se de outra coisa não tivessem tratado.
Foi só à noite que Mila disse no quarto ao marido:
– O Mário aceita o casamento. Assim como assim, ele não tem
mesmo gosto para o comércio…
XVI
Na sua salinha da rua Funda, estendido no velho canapé empoeirado,
seu Mota, emagrecido, com a barba crescida, as faces chupadas, olhava para
as moscas que zumbiam, negrejando na cal da parede encardida.
Lá dentro, a filha cortava o silêncio de vez em quando com as
suas passadas vagarosas, em que se sentia o cansaço.
Tinha razão: era só para tudo. O pai, apesar da impertinência
da moléstia e das suas exigências de homem amigo da limpeza,
resignava-se quase sem protestos àquela imundície em que se
ia encharcando. Certo, que isto de se dizer que uma mulher pode fazer todo
o serviço sem se enxovalhar, é coisa de romance. A Emília
andava com as mangas e o avental sujos de carvão, tinha as unhas impregnadas
do cheiro da cebola e do alho; e as mãos, avermelhadas pelo uso do
sabão da terra com que esfregava a roupa, tinham perdido o jeito para
a carícia doce, macia, tão querida das crianças e dos
doentes. A pobre andava escada abaixo e escada acima, do sótão
para a cozinha e da cozinha para o sótão, com os ombros vergados
ao peso da bacia cheia de roupas ensaboadas ou torcidas, para estender lá
em cima no telhado, a um calor de rachar.
A paciência esgotara-se-lhe, ela andava aos suspiros, cada vez mais
cor de cidra.
Quando se mirava no espelhinho do seu quarto, ela mesma se achava feia. O
seu rosto alongava-se, tomava uma expressão de animal.
O pai chamou-a:
– Emília, olhe, veja se pode dar uns pontos nestas meias… estão-me
incomodando. O paletó está sem botões.
Ela não respondeu, foi dentro e voltou:
– Estão aqui outras meias.
– Tenha paciência, minha filha, eu não posso dobrar a perna…
Emília agachou-se e mudou as meias ao pai. Ele continuou:
– As minhas calças de brim estio muito encardidas, será bom
alvejá-las enquanto eu estou em casa. Vão ser muito precisas.
O meu terno de casimira está escovado?
Ela mal respondeu com um sinal de cabeça. O pai, querendo poupá-la,
com remorsos de lhe dar semelhante existência, atrapalhava-a com exigências;
eram os lenços rotos, as ceroulas sem nastros, ou por que as cadeiras
tinham um dedo de pó, ou por que as plantas das latinhas morriam nas
janelas à mingua dágua, torradas de sol.
Enfadada, Emília fazia os reparos exigidos, em silêncio, com
ar rebarbativo, então o velho voltava o rosto para a parede e fechava
os olhos para reter as lágrimas.
Vinham-lhe à mente os seus bons tempos de Pernambuco e a alegria da
sua defunta, tio ativa, tão pagodista e festeira.
Quem diria que de tal mãe…
À hora do jantar, a filha ajudou-o a ir para a mesa, em um canto da
cozinha, ao pé de uma janela com vista para telhados.
De enfastiado, ele às vezes não se continha e suspirava:
– Que jantarzinho cangueiro…
Emília não respondia; punha-lhe no prato o feijão e
a carne seca, que ele engolia com esforço.
Nesse dia a tarde estava quente.
O papagaio da vizinha arremedava as vozes e as gargalhadas das moradoras
de baixo, reunidas no quintal.
Mota sentiu vontade de palrar um pouco também; mas a companheira voltou-lhe
as costas para ir lavar as panelas e o cheiro das banhas frias tornou-se insuportável.
Ele voltou resignado para o canapé da saleta, martelando com a bengala
o chão roído pelo caruncho e pelos ratos.
O seu sonho era sair, voltar ao escritório, tatear as folhas dos livros,
pensar em negócios, deixar de ver o rosto comprido da filha e de sentir
a morrinha da casa suja.
Quem de vez em quando cortava aquela pasmaceira com um pouco de alegria,
era a baiana Bertolina que lhes levava um resto de quitanda recambiada, fatias
de Mané-taiado, ou cocadas com abóbora, sujeitas ao azedume.
E então era só:
– Ioiô! Iaiá! e gargalhadas frescas e: É preciso paciência,
atrás dos dias maus vêm os dias bons, não é meu
Ioiô? Tenham fé em Deus… E adeus, minha Iaiá, e adeus
meu Ioiô!
Seu Mota sorria lambiscando as cocadas, feliz por ver alguém rir.
Nessa tarde a Bertolina iria a propósito; mas quem apareceu foi o
Ribas.
Seu Mota contava as moscas da parede, sem querer dar confiança ao
rapaz, mas abria os ouvidos.
Ele estava mortinho por dizer o que sabia, e logo depois de uma meia dúzia
de palavras:
– Ontem houve um baile em casa de seu Teodoro. Diz que a rua estava cheia
de carros. Só o vestido da D. Camila custou dez contos…
– Quem acredita nisso…
– O Mário vai casar-se com uma moça que tem para cima de mil
contos. Foi ao baile coberta de jóias. Seu Guimarães, seu Castro,
todos estes turunas do café foram lá.
– Como sabe você de tanta coisa?
– Foi o Isidoro quem me contou.
O Ribas, com os ombros descaídos e um sorriso nos lábios moles,
falava em suntuosidades, com a voz empapada em saliva.
O velho tossiu, fingiu querer dormir, negando confiança ao rapaz,
sentindo-o abusivo. Vendo que o outro o não entendia, exclamou:
– Você não tem que fazer?
– Eu ainda não achei emprego…
– Veja lá, eu não quero que seu cunhado pense que o retenho
em minha casa.
– Meu cunhado não me governa.
Seu Mota despediu o Ribas, mas logo que o viu descer a escada sentiu-lhe
a falta. Ao menos aquilo era alguém, sempre trazia um eco de vida,
um zum-zum de fora.
O Ribas desceu, enfarado daquele velho cainha, que não escorrera nem
um tostãozinho para o café; se pensava que ele ia levar as novidades
só pelo amor dos seus olhos! Burro! Ele ainda haveria de ensinar toda
aquela canalha a temê-lo e a chover-lhe dinheiro no bolsinho; era só
falar com o Pirueta da Pedra do Sal, que lhe ensinasse a capoeiragem…
Na rua da Saúde parou à porta do armarinho da irmã,
a Deolinda, que esmiuçava a grenha hirsuta de um filho de três
anos, recostado sobre o seu ventre enorme.
Ribas fez-lhe sinal da porta, perguntando se podia entrar e observando ao
mesmo tempo se o cunhado estaria ali; ela disse-lhe que não entrasse
e, sacudindo-se a custo, foi à porta e falou-lhe em segredo.
Você não tem vergonha! Vá-se embora! Ubaldino tal…
– Queria que você me emprestasse quinhentos réis…
– Onde é que eu vou buscar dinheiro, gente!
– Na gaveta do balcão.
– Na gaveta! por você ter mexido na gaveta do balcão é
que aconteceu o que aconteceu; vá-se embora!
– Não seja má, Deolinda.
– E o seu ordenado? Olhe: nós não fazemos negócio nenhum…
Minha criança está para nascer e eu não tenho nem uma
camisinha arranjada. Mal dá pra comer, sabe Deus como.
– não seja sovina; depois eu pago.
– Ubaldino ai vem… vá-se embora.
– Ora…
E com arremesso o Ribas seguiu pela calçada até as Docas; à
porta encheu-se de batata roxa, cozida; que a Bertolina baiana vendia, tagarelando
com uns marinheiros do Lloyd. Depois das batatas o Ribas ainda teve uns tostões
para tangerinas. Só bem repleto foi que bateu as solas rotas pelas
calçadas, a caminho da rua de S. Bento.
Aí chegado, quis desafiar a paciência de seu Joaquim, postando-se
como um basbaque à porta do armazém, vendo os trabalhadores
na sua faina entrarem e saírem sem interrupção.
Em cima, no escritório, Francisco Teodoro, amolecido pela sua noitada
de festa, narrava lealmente ao Meireles, pai da Paquita, a inaptidão
do filho para o trabalho.
O Meireles sorria; que descansasse, ele encaminharia tudo, – e acrescentava:
– Paquita, com aquele ar de songa-monga, é de uma energia de homem,
não é de brinquedos. Tem um juízo notável. Eu
agora levo-os para a Europa, faço o Mário observar o movimento
das principais praças e na volta você verá, Teodoro, como
o seu filho há de trabalhar! Será então tempo de você
ceder-lhe o campo…
– E eu estou morto por isso…
– Então? Urge andar depressa, que eu não quero perder a viagem
do Equateur.
Francisco Teodoro começava a compreender que a Paquita, se era assim,
seria a única mulher capaz de modificar o caráter do filho.
Mário seria um instrumento nas suas mios enérgicas. Não
a supusera nem a cria ainda tal, tão frágil, tão esbranquiçada
e inexpressiva a vira sempre na moldura dos seus cabelos louros.
Estava bem; Mário precisava de uma vontade firme, que o dominasse
e dirigisse; nem com uma lanterna acesa encontraria coisa tão boa.
Paquita seria a salvação do seu filho, a garantia da sua casa
comercial, que já não acabaria com ele.
Pensando assim, uma ternura desabrochava na sua alma para aquele filho perdido,
que tamanhas desilusões lhe semeara na vida. Começava a sentir
que lhe não perdera o amor.
Ele continuaria aquela casa, com tanto trabalho nascida, que teria com ele
a mesma firma, a mesma tradição… Seria sempre a Casa Teodoro,
feita pela sua ambição, perpetuada na sua descendência…
XVII
Nina tinha voltado do casamento de Mário e despia-se devagar no seu
quarto, com os olhos fixos na luz branca do espelho.
Era o fim, e nem por estar tudo consumado se resignava. Para bem dela, os
noivos iam nesse mesmo dia para Petrópolis, e de lá só
voltariam para bordo de um transatlântico. Como seria doce à
Paquita cruzar os mares nos braços do seu amor…
Nina desprendeu do corpete as flores de laranjeira que a noiva lhe dera para
casar depressa, e contemplou-as com ironia… ia atirá-las ao chão,
quando alguém bateu à porta. Abriu.
Era a Noca, que vinha toda alterada.
– Nossa Senhora! quebrou-se o espelho grande do salão!
– Quem foi que o quebrou? perguntou Nina, para dizer alguma coisa.
– Ninguém sabe. Veja só, que desgraça estará
para acontecer! Espelho quebrado: morte ou ruína.
– Morte! se fosse a minha…
– Cala a boca, menina, não diga asneiras. Quem é que ama uma
vez só na vida?
– Muita gente… eu.
– Não acredite, deixe falar. A senhora é moça, verá.
Mas venha ver o espelho; não presta a gente ficar calada quando está
aflita. Parece arte do diabo, cruzes! Logo hoje!
– Vá andando, eu já vou.
Nina mudou de vestido à pressa e desceu.
Encontrou dois criados boquiabertos em frente ao espelho, prevendo desgraças,
sugestionados pela influência da Noca.
– Que pena! um espelho tão rico… murmurou Nina maquinalmente, pensando
na Paquita.
– O caso não é o dinheiro. Eu cá não tenho pena,
tenho medo.
– Agora que se há de fazer? ter paciência e esperar, disse Nina
com um sorriso pálido.
– Esperar! Diz você muito bem. Foi uma vontade mais forte que fez aquilo,
temos que esperar grandes coisas. Noca não fala à toa. Vocês
verão. É melhor não dizer nada a nhá Mila.
– É melhor…
No dia seguinte, quando o dr. Gervásio entrou no jardim de Camila,
encontrou-a no terraço, rescendente e fresca no seu peignoir marfim
pontilhado de ouro.
– Como estás linda! murmurou ele pegando-lhe na mão, que ela
deixou beijar à grande luz, como se a ausência de Mário
cegasse todos de casa.
E o casamento de Mário fora um alívio para ambos. Estavam livres
daquela testemunha importuna, que tinham de respeitar. Mila bendizia aquele
casamento, que a libertava de uma humilhação constante, levando-lhe
o filho para as terras do luxo e do prazer. Separando-se, ele ia ser feliz.
Que mais poderia desejar um coração de mãe?
Foi nesse mesmo dia, à tarde, que Francisco Teodoro chegou sombrio
a casa e, em vez de subir, como de costume, encerrou-se no escritório,
em baixo. Camila entrou da rua mais tarde, sacudindo-se à pressa pela
escada acima.
Durante o jantar só ela falava, muito risonha, rescendendo à
essência com que Gervásio a pulverizara pouco antes no chalezinho
da Lagoa, onde escondiam o seu amor. Aquele perfume era como que a alma dele
que ela trouxesse consigo.
– Que linda tarde! olhem para o jardim, exclamou ela, apontando para fora
com a mio fulgurante de anéis.
Era um por-de-sol maravilhoso.
– Tudo cor de rosa! Parece-me que o jardim nunca teve tantas flores. Como
isto é bonito! E há quem fale mal da vida; e há idiotas
que se matam!
Francisco Teodoro cruzou o talher sem ter comido.
– O senhor está doente? perguntou-lhe Nina.
– Não tenho vontade de comer, mandem-me o café ao jardim.
Camila contemplou-o com mágoa e explicou aos outros:
– Ele está impressionando com o casamento de Mário. Meninas,
vocês procurem entreter e distrair seu pai. Mande guardar um copo de
leite para ele, Nina; seu tio não pode ficar assim. Deus queira que
ele não me fique doente…
E um véu de tristeza passou pelos olhos, há pouco risonhos,
de Mila.
Mas nada houve nessa tarde que entretivesse Francisco Teodoro; ele repelia
a companhia de toda a gente para ir passear sozinho lá para o fundo
da chácara. Ruth tocou em vão as suas melhores músicas:
o pai nem parecia ouvi-las…
Na sala de engomar, a Noca comentava a tristeza do patrão, como um
fato anunciado pelo desastre do espelho… "A coisa está começando…
Eu não dizia"?
Á noite, enquanto Francisco Teodoro folheava embaixo a papelada do
Inocêncio Braga, Mila despia-se em frente do seu psyché, namorando
a própria imagem, milagre da juventude, sentindo em um frêmito
a delícia de bem merecer um grande amor.
Como a Sulamita, toda ela era formosa. O peito farto, o pescoço alvo
e redondo, as mãos pequenas, os pulsos delicados, e uns olhos negros
e pestanudos, de onde jorrava uma luz veludosa e doce que toda a vestia de
graça.
Ao prender o cabelo, lembrou-se de uma comparação de Gervásio;
ele dissera uma vez, ao vê-la pentear-se, que as suas mãos eram
como duas aves luminosas esvoaçando na treva. Mila sorriu.
Foi só depois das orações, ao espreguiçar-se
no seu largo leito, que se lembrou ter de levantar-se cedo no dia seguinte
para ir a bordo despedir-se do filho.
Tudo era como um sonho. O Mário já casado! Parecia-lhe que
ainda o estava a ver pequenino e gorducho, engatinhando pela casa, aquele
sobrado da rua da Candelária, onde a sua vida fora tão diferente.
E foi com a visão daquele filho em criança, daquela carne de
rosas, daquela boca inocente que a babava de beijos, que ela adormeceu, sentindo-lhe
o peso amado do corpo nos braços saudosos.
Quando soou meia-noite, em toda a casa só havia de pé Francisco
Teodoro, que folheava ainda no escritório a papelada do Inocêncio
Braga.
Nessa manhã ele tivera o primeiro toque de alarma, num telegrama do
Havre para o Jornal, que afirmava ter descido o preço do café
nos principais mercados.
Aflito, com a percepção de um desastre iminente e enorme, abalou
logo do armazém para o escritório do Braga. que o recebeu entre
duas risadinhas fanhosas, repimpado na sua cadeira de couro.
– Que é isso! o senhor é assustadiço… pois não
percebe que isto tudo é jogo?
– Não compreendo… balbuciou Francisco Teodoro com um enleio, em
que entrava com um amargo desapontamento a doçura de uma vaga esperança.
– Não compreende, porque é um nervoso; não tem a calma
dos grandes espíritos empreendedores. Eu desejaria convencê-lo
da certeza dos seus lucros; mas na disposição de espírito
em que está, vejo que isso é coisa difícil. Verá
que amanhã não teremos notícia alguma.
– Aquilo é feito aqui, homem, garanto-lhe que é feito aqui!…
– É impossível!
– Acredite.
– Não pode ser. O Jornal, tio sério…
– Ora, não pode ser!… que ingenuidade! Se eu lhe afirmo, é
porque sei. E se não fosse assim eu estaria calmo? Diga, seria possível
que eu estivesse calmo?
– Penso de outro modo: tenho lá grande parte do meu capital.
– Ninguém diz o contrário… sei… é natural o seu
cuidado; somente, afirmo-lhe que é infundado. Amanhã, ou haverá
silêncio, ou há desmentido. Tudo isto é jeito. Olhe, o
Gama Torres está satisfeitíssimo; saiu há pouco daqui.
Está contente; aquele é um homem do tempo. há de ir longe…
– Pois eu, confesso-me arrependido.
– Ora, não diga tal! que barbaridade! O nosso triunfo é certo.
E já que se mostra assim apreensivo, façamos uma coisa; telegrafemos
ao Lacerda. Eu por mim não telegrafaria, conheço a alma destas
maquinações. Tudo é química. Digo-lhe mais: eu
estou contente.. Olhe, amanhã poderei provar-lhe com documentos irrefutáveis
a veracidade das minhas afirmações. Venha cá ás
duas horas.
Francisco Teodoro saiu menos torturado: mas, á proporção
que as horas avançavam, voltava-lhe a inquíetação,
a ponto de não poder trabalhar. Fugiu para casa e ali encontrou o mesmo
desassossego.
Atirou-se aos papéis: leu-os, releu-os, tirou notas e cada vez sentia
maior confusão naquele embrulho de problemas, em que todo o seu bom
senso naufragava.
Inquietava-se com pressentimentos. Era muito disso. Afinal, um telegrama
isolado, discordando de tudo o que se dizia, podia não ser verdadeiro.
Afligiam-no certos zum-zuns da cidade. Os boatos são como os corvos,
aparecem no ar atraídos pela podridão oculta.
Todavia. forcejava por acreditar nas boas previsões do Braga. O homem
era honesto e tinha nas mãos hábeis o fio da trama: logo, melhor
seria esperar pelas tais provas irrefutáveis…
Eram seis horas da manhã quando Camila o chamou para irem ao Equateur.
Foi um alvoroço em casa.
Noca era a mais curiosa; queria ir também despedir-se do Mário
e ver por dentro uma daquelas casas flutuantes. onde não viajaria nem
à mão de Deus Padre!
Apressou-se em vestir as gêmeas, que se faziam de tolas, exigindo os
vestidos novos e os chapéus cor de rosa.
– Não: ponderava ela, deixem os chapéus cor de rosa para passear
na cidade… levem os brancos.
– Eu quero levar o chapéu cor de rosa, gritou Lia; e logo Rachel:
– Eu também quero levar o chapéu cor de rosa.
– Que tolice, gente! um chapéu daqueles para o mar!
As meninas berraram, e Mila interveio:
– Pois que levem os chapéus cor de rosa; também vocês
gostam de aborrecer as crianças.
As dez horas embarcaram numa lancha. Ruth lembrou-se do passeio ao Netuno,
e voltando-se para a mãe, perguntou:
– É verdade! nunca mais a gente soube do capitão Rino.
Camila levantou os ombros.
– Quando ele voltar, hei de pedir-lhe que nos arranje outro passeio pela
baía.
– Por uma noite de luar… disse Camila.
Ruth acrescentou, para bulir com a Noca, que se agarrava às bordas
da lancha:
– Ou mesmo por uma noite de tempestade, com muitos relâmpagos e trovões.
Ainda há de ser mais bonito.
– Ué, que maluquice! exclamou Noca; Nossa Senhora da Penha! eu com
este sol todo estou com medo, quanto mais…
– É pena que Nina não tivesse vindo…
– Para quê! para ver a outra?
Francisco Teodoro não ouvia nada; percorria com a vista ansiosa todos
os telegramas dos jornais. Nada; não vinha nada; e com isso ele não
sabia se havia de achar motivo de alívio ou de maiores apreensões.
Quando subiram ao tombadilho, já lá encontraram o Meireles,
mais o Mário e a Paquita. Ela, sempre com o seu arzinho enjoado, contando
as palavras que dizia, tratando a família do marido com cerimônias
afastadoras. Mário ia e vinha, solícito, obedecendo com sorrisos
ás ordens que ela lhe dava em frases curtas:
– Que fosse ao camarote guardar-lhe a bolsa das jóias… Que lhe fosse
buscar a capa… Que verificasse quais as malas que iam para o porão
e que mandasse a vermelha para o beliche.
Mal ele se lhe aproximava, logo ela o incumbia de qualquer coisa que o afastava:
– Que contasse os volumes,.. Que entregasse a cesta das frutas ao maitre d’hotel,
recomendando-lhe que as metesse na geleira… Que pusesse os seus cartões
de visita nas costas das cadeiras, para evitar confusões… Mário
girava sobre as solas de borracha dos sapatos claros e lá ia lépido
cumprir as ordens. Camila pasmava. Quem lhe diria que aquele era o mesmo Mário
indomável, seco, tão imprestável sempre aos favores pedidos
pela mãe e as irmãs? Vendo aquilo, subia-lhe do coração
aos olhos uma tristeza ciumenta, mágoa de alma ferida a que nenhuma
razão abafa a queixa.
Paquita percebeu tudo e redobrou de frieza, mal respondendo às perguntas
da sogra.
Entretanto, Teodoro e o Meireles passeavam a largas passadas da proa a ré.
O velho Meireles era de opinião que o telegrama do Jornal inserido
na véspera era coisa séria, de alarme. Francisco Teodoro engoliu
em seco: não teve coragem para lhe dizer que grande parte do seu capital
fora atirado à voragem de uma especulação. Relatou porém,
as palavras do Braga e as suas afirmações.
– Não me fale nesse homem, interrompeu o outro com violência;
é um especulador sem escrúpulos… quer mais claro? – é
um ladrão!
Veio de Portugal, há coisa de seis anos, sem vintém, e sabe
quanto já passou para Inglaterra em bom metal? mais de mil contos!
Vi a prova. O patife!
Aquilo é lá da minha freguezia… conheci-lhe o pai, era outro
marreco que tal! Homem – não se deixe levar pelas cantigas novas, nós
antigos. verdadeiros pés de chumbo, caminhamos devagar e escolhendo
terreno. Essas basófias e esses atrevimentos são bons para quem
não tem nada a perder… Olhe, lá toca a retirada; avise sua
senhora, para descerem sem precipitação…
Ao abraçarem Mário, Francisco Teodoro, com a voz estrangulada.
recomendou-lhe:
– Juízo, meu rapaz.
Camila, branca como mármore, apertou o filho com força ao coração;
depois, sentindo-o frio no seu abraço, beijou-o no pescoço e
na face e fixou nele em uma queixa muda os seus grandes olhos magoados. Foi
só na lancha, escondendo-se dos olhares da Paquita, que ela desatou
em soluços que ninguém tentou reprimir.
Havia em todos igual ressentimento. Noca chamava mentalmente a Paquita de
lambisgóia, percebendo que ela roubava o Mário a toda a família,
absolutamente. Ruth reconhecia que as separações são
as reveladoras do amor. Cuidara ela nunca por ventura que um abraço
de despedida custasse tanta pena? Lia e Rachel abriam olhares curiosos para
tantos rostos preocupados, e só Francisco Teodoro acenou para o filho
com um lenço, pondo naquele adeus toda a sua ternura.
Quem lhe diria? Agora, na possibilidade de um desastre, a única pessoa
da família que ele via salva era o Mário!
Chegando à terra, Camila e as filhas foram de carro para casa, e Francisco
Teodoro, depois de almoçar à pressa num restaurante, seguiu
impaciente para o armazém.
A porta dele a pretinha Terência guinchava contra um italianinho que
se lhe associara sem licença ao negócio, atirando-se a pilhagem
do café da calçada.
– Há alguma novidade? perguntou Teodoro ao gerente.
– Não, senhor. Ah! ê verdade, o Mota parece que está
moribundo.
– Pobre homem…
– A filha veio hoje procurar o senhor; vinha chorando.
– Há de ser preciso mandar recursos a essa gente… Arreda dali aquele
saco, João!
– Coitado do Mota…
O gerente já não o ouvia: determinava serviços.
Chegando ao escritório, Francisco Teodoro tratou de remeter dinheiro
ao Mota e informar-se do seu estado. O portador voltou depressa. O velho tivera
uma síncope mas estava melhor.
– Coitado do Mota, murmurou Teodoro, consultando o relógio, morto
pelas duas horas. E às duas horas correu ao escritório do Inocêncio.
Em cima um empregado informou-o de que o Sr. Inocêncio partira nessa
manhã para Petrópolis, a negócio urgente. Deixara dito
que na volta iria procurá-lo.
Francisco Teodoro não conteve um movimento de raiva, e saiu tonto,
sem cumprimentar ninguém.
O ruído, o trabalho, o movimento alegre da rua fizeram-no sentir mais
o seu cansaço moral. Ia cabisbaixo, quando encontrou o Negreiros; deteve-lhe
os passos e, quase sem explicação, perguntou-lhe:
– Diga-me cá: que opinião faz você do Inocêncio
Braga?
O Negreiros sorriu, coçou o nariz enorme, e sibilou:
– Aquilo é um espertalhão; não é bom fiar, não
é bom fiar.
– E que me diz você daquele telegrama do Jornal de ontem, sobre a baixa
do café?
– Que hei de dizer? que anuncia catástrofe para muita gente boa. Sabe
o que me consola? É que os Estados Unidos ainda levarão um rombo
maior do que nós. Não lhe parece?
Que importavam a Francisco Teodoro as falências dos americanos! ele
só tremia pela dele, era na sua fortuna que estavam condensados todos
os bens do universo.
Negreiros sentiu-lhe a mão fria, ao apertar-lha, e voltou-se de repente,
fixando-o nos olhos:
– Homem, querem ver que você…
O negociante não lhe respondeu; simulando pressa passou adiante.
Nessa tarde ele encontrou a casa cheia. D. Inácia espalhava receitas
de doces por todos os cantos onde encontrasse dois ouvidos pacientes. A Carlotinha,
com o seu ar picante de morena desembaraçada, debicava as Bragas, que
riam muito, aludindo aos namorados da Judith e da irmã, piscando para
um estudante de medicina, o Oscar Pereira, que elas apresentavam nesse dia
à família Teodoro, como um excelente recitador de monólogos.
Mas na casa pouco se apreciavam os versos e ninguém lhos pediu.
O Dr. Gervásio jogava com o Gomes e o Lélio, Camila girava
pela casa, esquecendo-se no meio do ruído, da impressão de abandono
dessa manhã no Equateur.
Lá dentro, Nina mandava acrescentar mais uma tábua à
mesa e descia à adega para determinar ao copeiro os vinhos a servir.
Assim, aquele dia de semana parecia de festa.
Francisco Teodoro sentou-se ao pé do piano e olhou para todos como
se olhasse para fantasmas. Que quereria dizer tanta alegria? Então
toda aquela gente não teria mais que fazer, nem outras coisas em que
pensar?
Não esteve muito tempo sossegado. Lia e Rachel saltaram-lhe para os
joelhos, e ele, cansado, deixou-as trepar, e fez de cavalinho durante alguns
minutos…
XVIII
Todos os dias era aquilo: logo pela manhã Francisco Teodoro saltava
da cama com sentido nos telegramas do Jornal. Desta vez, como das outras,
sofreu o mesmo desapontamento. Lá vinha a notícia de que o café
baixava de preço, pouco a pouco, invariavelmente.
Vestiu-se à pressa e desceu ao jardim, taciturno, como se os pesadelos
da noite se prolongassem. E o sol estava lindo. As cigarras cantavam pelos
tamarineiros.
Eram seis horas, e já Lia e Rachei andavam aos saltos, ainda de calções
de dormir. Noca perseguia-as, chamando-as para o banho, com os enxugadores
no braço e a saboneteira na mão.
– Então, crianças; que cacetes!
As pequenas, de queixinhos erguidos, sorriam para o pai, tomando-lhe o passo.
– Bons dias, papai!
– Bons dias, papai!
O pai nem sorriu, afastou-as com brandura e disse:
– Vão tomar o seu banho.
– Eu quero passear com o senhor.
– Eu também quero…
– Não façam esperar a Noca. Vão tomar o seu banho. Logo…
As crianças começaram então a desafiar a paciência
da mulata, em correrias e negaças. Francisco Teodoro seguiu sozinho
para o fundo da chácara. E por ali andou calado, sem atender aos cumprimentos
dos empregados que passavam por ele.
Sentia-se opresso, como se carregasse nos ombros um fardo muito pesado. Era
a primeira vez que atentava na pequena duração da mocidade:
a falta da energia dos outros tempos doía-lhe na alma.
E as cigarras cantavam; felizes, as cigarras, que só têm vida
para isso…
A Nina foi ter com ele.
– O senhor anda muito madrugador… Quer almoçar? Está tudo
pronto.
Ele puxou pelo relógio.
– Sim, posso ir, são quase nove horas…
Entraram. As pequenas puseram-se aos lados do pai, que lhes metia na boca
bocadinhos de pão com ovo.
– O senhor dá tudo às meninas e não come nada! observou
Nina.
– Não tenho fome.
– Depois fica doente… por que não fala com o médico?
– Eu? para quê?
– Aqui está o café.
Engolindo o café, de um trago, Francisco Teodoro saiu apressado.
Noca foi espiá-lo à janela e veio dizer à Nina que seu
Teodoro parecia outro homem; até mudara de andar. Contemplaram-se as
duas, e foi ainda a mulata quem murmurou:
– Quem sabe se alguém disse de nhá Mila, hein?
As onze horas, quando se sentaram à mesa do almoço, já
a visão de Teodoro se desvanecera. Deveria ser um mal passageiro.
A mesa era farta, o sol brilhante punha na sala manchas vermelhas, através
do toldo riscado das janelas; sobre a toalha havia os mesmos excelentes vinhos
e o mesmo excelente aroma de manacá. Nas jardineiras, os tufos rendados
das avencas davam, como em todos os dias, igual aspecto de frescura à
sala; as crianças rebentavam de saúde… Que mais seria preciso
para que as horas voassem na vida como num sonho?
Entretanto, o dr. Gervásio perguntou a Mila:
– Seu marido está melhor?
– Não sei; anda amofinado… Sentiu muito o casamento de Mário.
Ele não quer que se diga que está doente. E efetivamente não
está. Não sei o que é aquilo.
Gervásio calou-se, pensativo. As gêmeas começaram a rir,
uma da outra.
– Viu que bonito cróton está no vaso da entrada, doutor? perguntou
Ruth ao médico.
– Vi. O cróton é bonito, o vaso é que é medonho.
Tirem aquele vaso de alabastro dali, ou eu não volto cá.
– Acha feio?
– Horrível.
Nesse dia, Francisco Teodoro não achou um instante de alivio no trabalho.
Foi ao escritório do Inocêncio e maçou-o com interrogações,
percebendo que o achavam fastidioso, e que o evitavam disfarçadamente.
Já havia perto de três meses que os telegramas anunciavam regularmente
numa proporção de acinte, a baixa do café no Havre.
E ainda o Inocêncio conservava o seu risinho zombeteiro, de sentido
esgarçado, fugitivo.
Francisco Teodoro, mais enfurecido nesse dia que nos outros, teve ímpetos
de bater-lhe, tal foi a raiva de o ver sorrir; todavia, conteve-se, certo
de que nada lucraria, e desceu a escada do outro com o protesto de ser a última
vez.
Quando entrou no seu escritório, o guarda-livros estendeu-lhe um telegrama:
A casa Mendes e Wilson, de Santos, declarava falência, arrastando na
queda grandes capitais de Teodoro.
O negociante leu a comunicação em silêncio e em silêncio
se conservou por algum tempo, branco como a cal, suando em grossas camarinhas,
de olhar parado e o papel aberto nas mãos trêmulas.
Os empregados do escritório assistiam mudos e contrafeitos àquela
cena. O Mota já lá estava, muito amarelo, de olhos encovados,
mal escovado, com a gravata torta num colarinho amarrotado, com o triste ar
de pobreza relaxada; também ele percebeu que pairava ali uma grande
desgraça, e sacudiu piedosamente a cabeça, fixando o rosto transtornado
do patrão.
Ouviam-se as moscas no ar zumbir com força.
Quinze dias mais tarde anunciava-se o fim de tudo, – a grande casa Teodoro
teve de declarar falência.
Na família nada se sabia; o negociante readquirira nos últimos
tempos uma relativa serenidade. Tinha de se render à praça numa
segunda-feira, e exatamente no domingo a sua mesa encheu-se.
A família Gomes chegou cedo.
D. Inácia mudara mais uma vez o feitio ao seu vestido de seda cor
de pinhão; que seda aquela! parecia nova, com as rendas pretas do adorno.
– Então, como se passa por aqui? disse ela alegremente, repimpando-se
na melhor cadeira da sala de jantar.
– Assim, assim,… tio Francisco não anda nada bom, está muito
abatido, respondeu Nina.
– Isso é que é mau. E sua tia?
– Está lá em cima, já vem.
– Gostaram dos biscoitos que eu mandei?
– Muito, são muito bons.
– Eu trouxe a receita para Mila. Amanhã, se Deus quiser, hei de experimentar
outros. Como a Ruth cresce! Aqueles são de polvilho. Perceberam?
– Percebemos.
– Com muitos ovos. Nas confeitarias não se fazem assim…
– Não…
Carlotinha tirava o chapéu em frente ao espelho da etagêre,
cantarolando:
"No Brasil é doce dovos,
Chiquita
Um beijo dado em você."
"Um beijo…"
e chilreou um beijo no ar, cumprimentando Ruth, que sorria para ela.
Judith, com o seu andarzinho saltado de mulher baixa, rabeou pela sala, sacudiu
os braços numa tilintação de pulseiras e roubou Nina
à mãe, puxando-a para o terraço:
– Você sabe duma coisa? Fui pedida em casamento. Ah, como é
bom! como eu estou contente!
– Foi o Samuel?
– Então, quem havia de ser?
– Seu pai não queria…
– Que remédio teve ele… Custou, hein? Ele há de passar por
aqui… Você vem comigo para o jardim?
Pouco depois chegaram as Bragas com o estudante dos monólogos. O dr.
Gervásio mesmo, que não costumava aparecer aos domingos, lá
foi para o joguinho com o Lélio e o Gomes.
Francisco Teodoro mandou abrir cerveja. A criançada da vizinhança
tagarelava pelos corredores. Fazia um sol!
– Gostou dos biscoitinhos que eu lhe mandei, sr. Teodoro?
– Muito bons… a sra. d. Inácia é emérita. Sabemos.
– São de polvilho… Eu trouxe…
Camila apareceu na sala. Vinha bonita, toda de azul. D. Inácia remexeu-se
nas sedas e levantou-se interrompendo a frase. Disse outra:
– Como ela vem! É um céu!
De vez em quando Noca aparecia na porta do corredor, percorria com a vista
toda a sala e voltava risonha para dentro, contando aos outros criados, em
arremedos alambicados, as pieguices enjoadas da Terezinha Braga com o estudante
dos monólogos, pelos vãos das janelas.
– Credo, um mocinho tão aquele…
Às dez horas da noite começou a debandada. As primeiras a sair
foram as Bragas com muitos adeuzinhos e risadas. O dr. Gervásio carregou
com o Lélio, dando-lhe hospedagem com a condição de lhe
ouvir Chopin. As Gomes foram as últimas. As moças saíram
carregadas de flores e mudas de plantas, e d. Inácia com o braço
vergado ao peso da bolsa cheia de pêssegos inchados, bons para doce.
– Com o pretexto da doçaria, ela passava sempre revista ao pomar de
Camila. O marido dava-lhe o braço, com a cabeça erguida, para
que não lhe caíssem do nariz o pesado pince-nez de tartaruga.
– Foi um dia bem passado! disse depois Mila à sua gente.
Os outros concordaram.
Recolheram-se. Quando viu toda a casa silenciosa e fechada, Francisco Teodoro
entrou no quarto das crianças.
Do gás em lamparina descia uma luz doce, atenuada por um globo de
porcelana.
Em duas caminhas iguais, de ferro branco com varais dourados, e separadas
apenas por um intervalo de um metro, as duas meninas dormiam profundamente,
com os lençóis revoltos, as pernas nuas, os cabelos espalhados
sobre as almofadas. Por acaso estavam ambas de papinho para o ar e lábios
entreabertos.
Era a primeira vez que as achava semelhantes. Lia, batida de luz, parecia
mais clara, tinha um joelho erguido, amparado pela aba da cama; a outra velava-se
em uma meia sombra, com as mãos espalmadas no peitinho gordo.
Que dormir tão bonito. Quase que lhes lia os sonhos, através
das pálpebras mimosas…
Francisco Teodoro esteve longo tempo a olhar, ora para uma filha, ora para
outra. Como eram bons aqueles leitos, como era espaçoso aquele quarto,
como eram finos aqueles sapatinhos que descansavam vazios sobre o tapete,
e como cheiravam bem aquelas sainhas bordadas e aqueles vestidos brancos que
estavam ali atirados para as costas de uma cadeira! E não poderiam
crescer assim as suas filhas, com aquele conforto de luxo! Dias depois sairiam
do seu palacete, e iriam… para onde? que os esperaria a todos?
Francisco Teodoro curvava-se para beijar Rachel, quando sentiu passos; voltou-se
assustado. Era Noca que entrava com um copo de leite. A mulata, que vinha
deitar-se, recuou espantada. O negociante explicou:
– Pareceu-me ouvir gemer: vim ver o que era.
– Tão sonhando… às vezes basta mudar de posição
e ficam logo quietas…
– Sim, estarão sonhando… queira Deus que os sonhos sejam bons…
– Elas não têm nada! Tão frescas… apalpe só,
pra vê…
– Sim, deixe-as dormir… olhe por elas… olhe por elas!
Francisco Teodoro saiu do quarto com um nó na garganta. Como seriam
educadas aquelas crianças? As pobres ainda não sabiam nada,
nem uma letra… nem uma! Em vez de subir para seu quarto, onde Camila adormecia,
ele acendeu uma vela, apagou o gás da saleta e desceu para o seu escritório,
no rés do chão.
À uma hora da madrugada, Teodoro escrevia ainda. Do lampião
de bronze descia uma luz calma, fixa, propicia à escrita. A mobília
de canela e de couro lavrado, nua, bem arrumada, tomava uma feição
de espanto naquela claridade muda.
Sobre o contador, o cavalheiro de capa e espada desenhava na parede cor de
avelã a sombra da sua atitude arrogante e viva…
Na mesa, ao lado do código de Orlando, o tinteiro de prata tinha reflexos
brancos; e só das quatro molduras douradas dos quadros saltavam lampejos
luminosos que animavam a sala.
Francisco Teodoro escrevia cartas: acabada uma, começava outra. Dir-se-ia
que as palavras eram em todas iguais. A pena corria dando as mesmas voltas
e rangendo com força, como se fosse calcada por uns dedos de ferro.
Terminada a última, colocou-as em um maço sobre a pasta e encostou-se
na larga cadeira, ofegante, com os olhos no vácuo. Esteve largo tempo
assim, imóvel. Depois, sem que um único músculo do rosto
se lhe contraísse, abriu uma gaveta da secretária, tirou dela
um revólver e examinou-o com atenção. Era uma arma nova,
reluzindo ainda às últimas fricções da camurça;
o negociante revirou-a entre os dedos, moveu o gatilho, carregou-a e tornou
a guardá-la na mesma gaveta, que fechou à chave.
Estava ali dentro o descanso, a eterna paz.
Tinha ao alcance da mão o esquecimento de tudo…
No dia seguinte, depois de uma terrível noite de insônia, Teodoro
desceu à hora do costume para a sala de jantar, reluzente de cristais
e prataria, e sentou-se à mesa, em frente ao terraço que todo
se via pelas largas portas abertas. Ao centro, uns degraus amplos desciam
para o parque de relvas bem tratadas; junto ao ponto terminal dos balaústres
irrompiam, de entre tufos de avenca, dois esplêndidos pés de
manacá em flor. Francisco Teodoro olhava para eles sem os ver, absorvido
no seu desgosto, quando a afilhada o interrompeu:
– Bons dias, titio!
– Adeus, Nina.
– Estava gostando de ver os manacás?
– Sim…estão bonitos…
– Lindos! Sabe? tia Mila vai ter hoje um desgosto!
– Hein?! perguntou Francisco Teodoro sobressaltado.
– Amanheceu hoje morto o cacatuá, e ninguém sabe porque. Noca
já está dizendo que é sinal de desastre em uma casa…
– Ah! ela disse isso?
– Disse. Nós não nos importamos; mas o senhor sabe como tia
Mila é impressionável!
– Não lhe digam nada. Quem foi que deu o cacatuá?
– O capitão Rino.. Quer que eu lhe sirva um pouco de fiambre?
– Não… Dê-me uma xícara de chá…
– Mas o bife e os ovos aí vêm…
– Não quero nada. Só chá.
– Coma então destas bolachinhas. Estão muito bem feitas.
Nina foi ao armário, de onde retirou a biscoiteira de cristal. Enquanto
o tio comia, ela sentou-se a seu lado e pediu-lhe lápis para escrever
uma nota, nas costas de um cartão de visita. Ao mesmo tempo ia dizendo:
– Deus queira que eu não me esqueça de nada do que tia Mila
recomendou…
Depois leu alto:
– Para o senhor fazer o favor de dizer a Mme. Guimarães que mande
trazer hoje os dois vestidos de seda e amostras de veludo turquesa.
Dizer ao Bastos que faça, pela medida que tem lá, mais um par
de sapatos de cetim preto… Há mais: um quilo de bombons e…
– Não diga mais; hoje não posso fazer nada disso.
– Então tia Mila irá a cidade… É melhor.
– Não! que não vá, atalhou ele nervosamente. Dize-lhe
que voltarei cedo. Eu farei tudo… mandarei vir os vestidos de seda, os sapatos
de cetim, os doces…Ah! a Noca tinha razão! Sabes tu, Nina?
– Eu? murmurou a moça espantada: Eu? repetia ela, com assombro, eu
não sei nada!
– Tens razão… cala-te e espera. Expliquem à minha mulher
o significado da morte do cacatuá, não faz mal. Adeus, tenho
pressa…
Nina ficou pensando:
– Tio Francisco estará doido?
Um lindo dia, quente e luminoso. Nas copas floridas dos flamboyants, as cigarras
cantavam estridulamente. Os bondes vinham cheios, e bandos de crianças
passavam nas calçadas a caminho do colégio.
Francisco Teodoro é que não caminhava bem: tinha um grande
peso derrubando-lhe os ombros, e sentia as pernas amolecidas. Tomou o bonde
já na praia. Adiante dele, no banco da frente, ia um portuguezinho
recém-chegado, de jaqueta, chapéu de feltro de abas ensebadas
e grossos sapatos enlameados. O pequeno volvia para tudo um olhar pasmado,
entreabrindo os lábios secos e gretados numa expressão admirativa.
Francisco Teodoro não podia desprender a vista daquela criança
rústica. Veio-lhe à memória o seu desembarque, a sua
pobreza, a crosta da terra pátria que trazia presa às solas
brutas dos seus sapatos, e o espanto com que ele, também, nos seus
primeiros dias, olhava para este céu, e estas árvores, e estas
montanhas, em uma interrogação de esperança e de medo;
e da saudade que tivera da broa, da aldeia, das águas claras daquele
rio em que se banhava nas tardes de verão, daquelas charnecas onde
ia à caça dos grilos, daqueles campos de trigos dourados ao
sol, das cerejeiras onde trepava, dos ralhos da mãe, das caminhadas
pelas brancas estradas atrás dos burricos do moleiro…
E, em um assomo, teve vontade de dizer ao ouvido do rapazinho: "Volta
para a tua aldeia, contenta-te com o pão duro, com a sardinha assada,
e a água do bom Deus!
"Onde há uma árvore há sombra onde um homem se
deite. Não queiras a riqueza, que ela engana e mente. Mas vale ser
pobre toda a vida! Volve; acostuma tua mulher ao trabalho e os teus filhos
a rolarem nus pela terra que um dia os há de comer… Se bem os vestires
a todos… verás: pesarão ouro e valerão pó…"
Eram dez horas quando o negociante entrou no armazém. Seu Joaquim
andava azedo e mal humorado, e até mesmo para o patrão tinha
um modo rebarbativo e seco. Depois, o trabalho estacionara; não havia
nenhum caminhão à porta e os caixeiros pasmavam-se para as rumas
de sacos e para as aranhas do teto.
Francisco Teodoro chegou-se à mesa que estava à esquerda da
porta de entrada, apanhou ai a sua correspondência e girando sobre os
calcanhares entrou no corredor ao lado e subiu ao escritório.
Em cima estavam só o guarda-livros, que escrevia de pé, e o
velho Mota, todo embebido no trabalho. Trocaram-se os bons dias.
– O Leite Mendes mandou cá?
– Não senhor…
– Está tudo direito, não?
– Tudo.
– Escrevi eu mesmo as cartas… veja se estão em ordem…
O guarda-livros fez um gesto de recusa.
– Não; já estou desacostumado dessas coisas… veja. Depois
será bom mandá-las entregar, insistiu Teodoro.
– Julgo melhor esperarmos pela resposta do Sidney, de Santos.
– Para quê?
– Adiaremos ao menos a… a catástrofe.
– Ora! o Sidney! há de dizer o mesmo que os outros! Olhe, tenho aqui
justamente uma carta dele, que ainda não abri. Vou lê-la agora.
Francisco Teodoro sentou-se muito pálido, e rasgou o sobrescrito com
mão trêmula. O guarda-livros desviou a vista. Houve depois da
leitura uma grande pausa, em que o silêncio pesava; ao fim de alguns
minutos o negociante ergueu-se e começou a passear nervosamente de
um lado para o outro. De vez em quando lançava uma pergunta pueril
ou distraída:
– Que dia é hoje?
– 29…
– Ah!… sim… 29… é isso… 29… 29… repetia ele baixo.
Os outros calavam-se.
O sol entrava com força pela sacada aberta; Francisco Teodoro pôs
as folhas da janela em fresta e voltando-se atravessou vagarosamente e em
diagonal o escritório até o canto da talha, cujo barro começou
a raspar com a unha.
Da rua vinha uma bulha ensurdecedora: rolavam conjuntamente carroças
e vozes praguejantes; os chicotes estalavam no ar e, em grossas nuvens de
pó, o cheiro do café cru subia na atmosfera quente.
Súbito, Francisco Teodoro voltou-se para o guarda-livros e disse com
voz segura:
– Mande as cartas. E entrou para o seu gabinete.
O empregado releu os sobrescritos e chegando-se à janela do fundo,
que deitava para o interior do armazém, gritou para baixo:
– Seu Augusto!
Ninguém lhe respondeu, e como ele repetisse o chamado com mais força,
o gerente voltou-se para cima com ar ameaçador e um outro caixeiro
gritou:
– Seu Augusto ainda não voltou da rua!
Fechado o gabinete, Francisco Teodoro escreveu longamente Meireles e ao Mário,
relatando-lhes o desastre, sem lamentações.
Fechada a carta, lembrou-se que poderia talvez ter recorrido à Lage,
mas levantou logo os ombros; era uma mulher, que podia entender de negócios?
De mais, as coisas iriam em declive rápido, e um novo empréstimo
seria um compromisso irremissível… melhor fora não se ter
lembrado dela. E as tias do Castelo? a essas pediria apoio para a família;
ele já nada queria para si; poucos dias teria de vida: o golpe era
muito forte para deixá-lo de pé. Mas a mulher?… e as filhas?
E, afinal, acreditava ele na fortuna das velhas? onde a escondiam elas que
ninguém a via? Riquezas, riquezas, vá a gente desencantá-las
em cofres ávaros!
As cartas expedidas tinham marcado para o dia seguinte ao meio-dia a reunião
dos credores no armazém, para verificação do estado da
casa. Francisco Teodoro tinha algumas horas diante de si para avisar a família,
mas faltava-lhe a coragem.
Saiu do escritório mais tarde, fugindo do encontro habitual de um
ou outro amigo. Logo no primeiro quarteirão teve um sobressalto; à
porta da casa Torres estaca um dos seus credores, o Serra; mal lhe adivinhou
o corpanzil metido em alvejantes brins, com um fraque preto fugindo para trás
e grossa corrente de ouro do Porto arqueando-se-lhe sobre o abdômen
arredondado. Francisco Teodoro corou, teve desejos de ser engolido pela terra;
e tocando com os dedos trêmulos na aba do chapéu esboçou
um sorriso e foi andando.
Já mal podia caminhar: um peso horrível nas pernas fazia-o
retardar os passos, exatamente quando os queria acelerar; arrimava-se com
força ao seu chapéu de chuva e remexia os beiços como
se fosse a falar sozinho; era a secura, tinha um aperto na garganta, parecia-lhe
ter engolido todo o pó das ruas.
Já não via ninguém, pouco se importava que o cumprimentassem;
ia pensando em tomar o bonde na esquina; mas como não o visse ali em
toda a extensão da rua, subiu pela calçada rente aos trilhos.
Tinha andado alguns metros quando esbarrou com o Negreiros.
– Então? Todos bons? perguntou-lhe o outro com o ar constrangido de
quem já fora informado do desastre e não quizesse aludir a ele.
– Todos bons… estou à espera do bonde.
– Isso às vezes demora… Eu não tenho paciência!
– Han… é aborrecido.
Pararam ambos, e chegando-se para a parede olharam para um coupé particular
que roçou na calçada; dentro ia o Inocêncio, que os viu
e os cumprimentou com um adeuzinho de mão.
Francisco Teodoro nem tocou no chapéu e murmurou com ódio.
– Cão!
– Vai para a Europa… segue diretamente para Londres, num paquete da Nova
Zelândia, amanhã.
– Com o meu dinheiro…
Negreiros engoliu uma palavra qualquer, afagou o nariz e depois, corando
um pouco, aproximou-se mais de Teodoro e murmurou:
– Se precisar de mim… os amigos são para as ocasiões…
Francisco Teodoro estremeceu e apertou-lhe a mão com força;
houve nos olhos de ambos como que o brilho passageiro e eloqüente de
uma lágrima. Vinha um bonde; o negociante tornou a sacudir em silêncio
a mão de Negreiros e partiu.
No largo da Carioca, ao esperar outro bonde que o levasse à casa,
Francisco Teodoro topou com a baronesa da Lage, farfalhante nas suas sedas
e vidrilhos; quis evitá-la, não pôde: a moça estendia-lhe
a mão enluvada, sorrindo-lhe através do veuzinho.
– Sabe? Papai escreveu-me. Paquita parece outra, tem engordado muito. Mário
está deslumbrado; comprou belos cavalos de raça em Londres;
se não fosse a mulher, diz papai que ele poria em poucos dias todo
o dinheiro fora…
– Ah…
– Eu tenciono também partir em breve; vou ter com eles a Paris…
Irei abraçar a nossa Camila qualquer dia destes. Mário escreveu-lhes?
– Não…
– É noivo… tem desculpa… lá está o seu bonde.
– E a senhora?
– Eu vou de carro. Saudades a todos.
Ela afastou-se ligeira, no frou-frou das saias de seda, e o negociante tomou
lugar no bonde, repetindo mentalmente a frase da Lage, acerca de Mário:
"Se não fosse a mulher, ele poria em poucos dias todo o dinheiro
fora."
Nunca a viagem da cidade à rua dos Voluntários lhe parecera
tão curta.
Francisco Teodoro tinha medo de chegar a casa, medo dos beijos das suas gêmeas,
à espera dele no jardim, ambas de branco, risonhas e saltitantes, e
de Ruth, no patamar, com os seus olhos de esmeralda, que lhe faziam lembrar
os olhos da mãe em uma vaga reminiscência saudosa; e, em cima,
de Camila, em frente ao espelho, nos últimos retoques da toilette da
tarde, com os braços arqueados e os dedos carregados de anéis,
unidos nas ondas negras do penteado…
Que lhes diria ele? que lhes diria?!
Lembrou-se então do dr. Gervásio: seria esse amigo quem se
encarregasse de dizer tudo a Mila, no dia seguinte, à hora em que ele
estivesse com os credores no armazém… no fim, absolutamente no fim!
Essa idéia animou-o.
Iria à noite procurar o médico à sua residência
e confessar-lhe-ia tudo. Ao abrir o portão da chácara, viu as
suas gêmeas voando nas bicicletas pelas ruas do jardim e ouviu os sons
do violino de Ruth em uma sonatina fresca.
Nina fazia um ramo e Camila, já pronta, formosa no seu vestido cor
de milho maduro, lia no terraço, com o cotovelo pousado no jarrão
das gardênias.
XIX
C om um avental atado sobre as rendas do peignoir, Camila executava, com
a Noca, uma receita de doce dada por d. Inácia.
Era um pudim, um famoso pudim de nozes, muito apreciado e indefectível
nos jantares de aniversário das Gomes.
A mulata pisava as nozes no almofariz. Mila acabava de observar a calda e
voltava a consultar o papel, em que a caligrafia desleixada da Judith confundia
os a com os o, quando a Nina apareceu dizendo:
– Dr. Gervásio está ai. Entrou para a saleta. Quer falar com
a senhora.
– A estas horas!… Ele não disse por que não veio almoçar?…
perguntou ela alvoroçada; e continuou logo: Bem! Desamarrem-me o avental.
Escuta, Noca, quando a calda estiver em ponto de espelho, despeja-lhe dentro
as nozes… depois destas bem cozidas retira o tacho do fogo e mistura ao
doce doze gemas de ovo… torna a pôr tudo ao lume… Anda, Nina! desamarra
este avental, de uma vez!
– Deu nó, tia Mila! Tenha paciência…
– Depois? inquiriu, Noca, enquanto Mila, para não perder tempo, lavava
os dedos melosos mesmo na bica da pia da cozinha.
– Depois? Espera, deixa-me ver a receita… Ah, depois da massa estar bem
cozida, põe-se no forno, em uma forma untada com manteiga. Manteiga
fresca, ouviu? Lembre-se que o dr. Gervásio não gosta de manteiga
salgada… Pronto este avental? Até que enfim! Fica em meu lugar, Nina.
Nina ficou, e Camila, tendo enxugado as mãos ao avental, que atirou
ao chão, dirigiu-se para a saleta, pondo em ordem as rendas da gola,
que as mãos ágeis ajeitavam mesmo sem espelho.
Sentindo-lhe os passos, Gervásio foi-lhe ao encontro, mas com ar tão
grave e desusado que ela logo o estranhou…
– Está doente?!
– Eu, não… por que?
– Você está diferente. Que modo!
– É que eu tenho uma coisa muito grave para te dizer.
– A mim?!
– Sim.
– Que é?
Ele não respondeu imediatamente: contemplava-a em silêncio,
segurando-lhe nas mãos como se a estudasse, a ver se lhe podia despedir
o golpe em cheio. Mila impacientou-se.
– Que será, meu Deus! E logo lhe ocorreu a idéia de que sucedera
algum desastre ao filho, um naufrágio. Aterrorizada por aquele pensamento,
balbuciou apenas: – Mário?
– Não se trata do Mário. É isto: vocês estão
pobres… Teodoro faliu.
Camila tornou-se lívida Houve um longo silêncio cortado só
pelo zumbir de uma vespa no resedá da janela. Ela não ouvia
a vespa, não ouvia nada.
O seu rosto, que havia pouco refletia o fulgor das brasas, estava tão
desbotado agora, que o médico, inquieto, com receio de uma síncope,
amparou-a, dizendo:
– Compreendo a estupefação, mas agora, que a verdade está
sabida, é preciso coragem… Camila!
Como ela continuasse imóvel, ele abalou-a brandamente, repetindo-lhe
o nome: Camila… Camila!… julgava-te mais forte, muito mais forte! Olha
para mim. Percebe o sentido das minhas palavras – falir não é
morrer. Teu marido não morreu, – faliu.
– É impossível! murmurou ela por fim com uma voz de sonâmbula.
– Impossível por que? a quanta gente tem acontecido o mesmo? Vocês
mulheres não entendem destas coisas. Só conhecem a vida pela
superfície, por isso é que têm surpresas com fatos naturalíssimos.
Hoje a falência é de Teodoro, amanhã será de e
depois de outro… A série há de ser longa.
– Que me importam os outros!
– Importa como explicação: é uma conseqüência
do tempo. Mas senta-te, estás muito fria… queres uma capa?
– Não quero nada. E, como ele quisesse retê-la, ela desprendeu-se-lhe
bruscamente dos braços.
– Descansa…
– Não posso.
Gervásio calou-se, à espera: ela começou a andar com
passadas irregulares, como se buscasse uma coisa, uma palavra, uma idéia.
A vida, há pouco suspensa, voltava agora com ímpeto. A reação
escaldava-lhe o corpo. Ela ia falando, estraçalhando frases:
– Que horror! como havemos de aparecer diante de toda esta gente… Que insensatez,
naquela idade! deixar-se falir! não compreendo! Que vergonha, que vergonha!
E as crianças?!… Não pode ser! não pode ser.
Subitamente parou, com um relâmpago de esperança.
– Se fosse mentira?!
– Eu seria um miserável.
– Podiam ter-te enganado. Quem te disse?
– Ele.
– Burro!
Camila deu um puxão à gola, como se o vestido a sufocasse e
recomeçou logo no seu giro tonto.
O médico tentou acalmá-la:
– Escuta, Mila, tenho hoje, como direi… pudor em aludir à nossa
felicidade; contudo é em nome dela que te peço que não
faças a teu marido recriminações insensatas. Lembra-te
que ele é o mais desgraçado.
Camila sentiu as pernas vergarem-se-lhe e murmurou ainda:
– A culpa é dele…
– A culpa é de todos.
– Isto não podia ter acontecido de repente, e ele não me disse
nada! Os homens pensam que nós não nos interessamos pela sua
vida. Têm-nos só para o seu prazer! Só, só, só!
– Teodoro está muito acabrunhado…
– Quando foi que ele te disse?
– Ontem à noite, em minha casa. Chorou.
– Chorou? Foi a primeira vez; eu nunca o vi chorar!
– A dor é forte.
– Já perdeu uma filha…
– Uma criança apenas nascida… Agora perde a sua honra de negociante,
que ele preza acima de tudo.
– A sua honra! mas Teodoro não roubou nada!
– Não, mas empregou capitais em empresas de azar. A lei tem severidades.
É preciso estar preparada para tudo.
– Quer dizer que ele pode ser preso?
– Quem sabe, não é provável, mas…
Os olhos de Camila, até então enxutos, encheram-se de lágrimas
e ela disse, com os beiços trêmulos:
– Não! ele não sairá de ao pé de mim. Vá
buscá-lo.
– Tu o amas, Camila!
Ela fez que sim com a cabeça e foi sentar-se junto ao médico,
olhando-o de face.
Por algum tempo foi só o zumbir da abelha no resedá o único
rumor que se ouviu na sala. Gervásio desviou os olhos.
Camila vergava-se agora toda para os joelhos e chorava, com o rosto escondido
nas mãos.
A crise foi longa. Através da porta fechada sentiam-se passinhos indiscretos
pelo corredor.
Gervásio consultou o relógio. Eram quatro horas. Que se teria
passado em S. Bento? Desejava apressar a situação, acabar com
aquilo; sentia-se opresso, levantou-se, foi à janela olhar para o azul
macio do céu chamalotado de nuvenzinhas brancas.
Um belo dia perdido!
Camila soluçava. Ele voltou-se sem saber como cortar aquela agonia.
Nunca o coração daquela mulher lhe parecera tão impenetrável,
nunca a sua psicologia tão obscura. Esperava vê-la raivosa, assustada
pela perspectiva da ruína, reagindo com fúria contra aquela
decepção tremenda. Era evidente que ela se tinha casado por
interesse não seria extraordinário que se julgasse agora roubada…
Entretanto, só nos primeiros instantes Camila tinha pensado em si,
no egoísmo a que a vida a acostumara; mas a dor da compaixão
viera depressa e manifestava-se mais abundante.
Um pouco irritado, sem poder esconder um movimento de ciúme, dr. Gervásio
perguntou baixo a Camila, fixando-lhe o rosto inundado:
– Mas sempre o amaste assim?!
– Não… eu comecei a amá-lo depois que o enganei… É
amizade, é uma amizade muito grande!
O médico não respondeu; olhava para ela pensativo, e depois
de um largo silêncio:
– Enxuga os olhos. é tempo de chamar o resto da família.
Ruth e as crianças entraram acompanhadas por Nina e pela Noca, que
o dr. Gervásio quis associar a família. E sobre todos eles a
porta foi fechada com precauções, para que os criados não
percebessem do que se tratava.
Dr. Gervásio expôs o fato em poucas palavras, ferindo o assunto
sem rodeios. Lia e Rachel não o entendiam, embasbacadas para a mãe.
As palavras para elas só tinham som, mas não sentido.
Ruth ouviu tudo sem pestanejar, depois beijou a mãe, e disse:
– Não chore, que isso aumentará a aflição de
papai.
O médico olhou para a menina com assombro; e depois voltando-se para
Nina:
– E você, que diz?
– Nada; espero.
– E sei que há de esperar com firmeza. Muito bem.
Eram cinco horas da tarde, e ainda Francisco Teodoro expunha com voz trêmula
os negócios da casa aos credores, reunidos no seu escritório.
Ouviam-no todos silenciosos, mal se atrevendo, de longe, a uma ou outra pergunta,
que a delicada compaixão do momento tornava tímida. O próprio
Serra, afamado pela sua gordura e pela sua bruteza, fazia-se de leve quando
andava, para que o assoalho não gemesse e tinha artes de transformar,
para um brando sussurro, o seu vozeirão de trovoada.
Em baixo, o armazém parecia outro. Seu Joaquim permanecia sentado
ao pé da mesa, enquanto os caixeiros pasmavam, inativos, para as rumas
das sacas e para as aranhas negras do teto, que se suspendiam de viga para
viga em grandes bambinelas de fumo lutuoso. No chão nem um grão
de café; tudo varrido como se fora um dia santificado. Só na
rua havia ainda a bulha das últimas carroças e o ronco de alguns
armazéns que fechavam cedo e que parecia arrotarem de fartos.
Do seu ponto, seu Joaquim não perdia de vista a casa do Gama Torres,
agora a mais afortunada da rua.
Logo que recebeu o último aperto de mão dos seus credores,
Francisco Teodoro refugiou-se no seu gabinete, para que o não vissem
chorar; mas as lágrimas que o enchiam não chegaram aos olhos,
o coração absorvia-lhas todas. Envelhecido, exausto, encostou-se
a sua velha secretária, companheira de tantos anos de trabalho, e ali
ficou, como um viúvo ao pé da eça em que a amada dorme
o último sono.
Já os credores estavam longe quando ele, tomando vagarosamente o chapéu,
entrou outra vez no escritório.
O Mota chorava, com os cotovelos fincados na escrivaninha. O guarda-livros
levantou-se e disse:
– Eu esperava-o para despedir-me. Tenciono partir em breve para o Norte.
Vou tentar outra vida…
– Faz mal, não devia cortar a sua carreira… seja feliz! Abraçaram-se.
Mota aproximou-se.
– E o senhor? perguntou-lhe Teodoro.
O velho fez um gesto de ignorância; depois suspirou.
– Fico pra ai à-toa…
– Recomendá-lo-ei ao Negreiros.
– Será favor…
Os outros empregados não estavam: Francisco Teodoro agradeceu àqueles
o seu concurso e desceu, olhando para os degraus carcomidos com saudade infinita
de todas as vezes que por eles pisara, num longo período de trinta
anos…
No armazém, apertou a mão dos caixeiros, desde o mais ínfimo,
e deteve-se a falar com o Joaquim.
– O senhor que tenciona fazer agora?
– Sr. Teodoro, eu fui já há dias convidado para a casa Gama
Torres… Devo entrar para lá amanhã…
– Muito bem… muito bem!… balbuciou em tom frouxo o negociante. E, relanceando
o olhar triste pelo armazém, em um último adeus saudosíssimo,
saiu para a rua.
Na porta vizinha a velha Terência, com a carapinha oculta no lenço
branco, e os bracinhos delgados estendidos para diante, sacudia os últimos
grãos de café, peneirando-os na bacia de folha furada a prego.
Já a sombra se estendia pelas calçadas, e só lá
em cima o sol encarapuçava de ouro as platibandas dos prédios.
XX
A hora em que Francisco Teodoro entrou em casa, já havia estrelas
no céu. O dr. Gervásio e as meninas esperavam-no no portão.
Logo no jardim ele sentiu-se abraçado pelas filhas e a Nina com demorada
ternura. Desprendendo-se de todos, olhou a roda, procurando alguém.
– D. Camila adormeceu há pouco, acudiu o médico – Noca está
ao pé dela.
Francisco Teodoro não respondeu; sentou-se em um banco, com ar de
extenuado, com a cabeça pendida para o peito; e, depois de uma longa
pausa:
– Está desesperada, muito contra mim?
– Não; respondeu o médico, está resignada. São
todos fortes, acredite.
– Coitadas…
– Não diga assim, papai! exclamou Ruth, não se aflija! Neste
mundo então só há lugar para os ricos?
– Bom, só…
– Qual! havemos de ser muitos felizes, descanse.
– Como recebeu ela a noticia? tornou o negociante, voltando-se para o médico.
– Naturalmente, teve um abalo… não esperava semelhante coisa, mas
venceu-se com admirável coragem. Em todo caso, dei-lhe um calmante
para obrigá-la a dormir e repousar os nervos…
– Fez bem; obrigado.
– Tio Francisco, o senhor deve estar muito fraco; venha tomar sopa, ao menos…
– Por isso mesmo, tome um caldo e vá-se deitar.
Entraram. Na grande sala de jantar havia um certo ar de abandono. Nina esquecera-se
de enfeitar a mesa com as flores do costume. e a gaiola vazia do cacatuá
punha a um canto uma nota de tristeza e de morte. Francisco Teodoro aceitou
a sopa, tomou-a em silêncio, e logo depois, deixando todos a mesa, pediu
licença para subir. O médico, receioso acompanhou-o com a vista.
Que se iria passar lá em cima? como receberia Camila o marido?
Parecera-lhe ter sentido passos; deveriam ser dela, que já estivesse
acordada e andasse nervosamente pela casa…
Lia e Rachel, tão turbulentas, encolhiam-se uma na outra, observando
tudo pasmadamente.
Imperturbável, Nina servia a todos.
– Que idade têm mesmo estas meninas? perguntou o médico de repente,
apontando para as gêmeas.
– Seis anos, respondeu Ruth.
– É cedo para entrarem para o colégio, balbuciou ele, completando
alto um pensamento qualquer.
Tinham acabado de jantar, quando Francisco Teodoro desceu.
– D. Camila?
– Quando eu subi dormia ainda; mas soluçava de vez em quando. Depois
acordou e fez-se de forte para tranqüilizar-me. Talvez que ela não
tivesse compreendido todo o alcance da desgraça…
– Compreendeu, mas resignou-se.
– Obrigado por todos os seus cuidados, doutor; tenho ainda um favor a pedir-lhe:
venha cá amanhã, cedo, às sete horas da manha. Será
possível?
– Virei.
– Obrigado.
O médico saiu, recomendando à Noca mil cuidados com Mila. Duas
horas depois, a casa estava em silêncio; as crianças dormiam,
e Nina, não vendo Ruth nas salas, julgou-a recolhida e desceu devagar
ao escritório do tio, que achou escrevendo na sua larga secretária.
– Dá licença, tio Francisco?
O negociante encobriu depressa com o braço o papel em que escrevia,
e respondeu:
– Pode entrar.
E Nina entrou, embaraçada, percebendo o movimento do tio.
– Que quer você?
– Quero pedir-lhe um favor…
– Eu ainda os poderei prestar?!
– Oh! tio Francisco!
– Diga lá.
– Tenho vergonha… eu…
– Diga, diga.
Nina sentiu impaciência na voz do tio, e resolveu-se:
– Quero pôr em nome de suas filhas a casa que o senhor me deu. Ela
é pequena, mas caberemos todos lá, se…
Nina corou; o tio contemplou-a em silêncio, depois, sentindo que as
lágrimas lhe corriam em fio pelo rosto, disse:
– Fez você muito bem em dizer-me isso; eu precisava chorar. Bem vejo
que não há só ingratos no mundo; você é
um anjo. Aceito o seu agasalho; olhe por minhas filhas.
As gêmeas são muito pequenas, não têm educação…
é o que mais me pesa! Ruth, essa tem talento e um recurso. Tenha também
paciência com sua tia, é quem vai sofrer mais…
– O senhor há de lhe dar o exemplo de resignação.
– Sim. Você que entende disso? Vá dormir.
– Mas…
– Vá dormir.
Nina murmurou, muito embaraçada:
– Boa noite.
– Adeus, minha filha. Que Deus a faça feliz.
Ela saiu sem compreender bem os gestos desencontrados nem o sentido das palavras
do tio.
Ele queria estar só. A dor fazia-o desconfiado, temia que o amor da
família não subsistisse à catástrofe.
Em que fizera ele até então consistir a felicidade e o seu
merecimentos aos olhos dela? No dinheiro, só no dinheiro. Ele era bom
porque sabia cavar a fortuna, encher a casa de jóias, de fartura e
de conforto. Ele era bom, porque, tendo partido de coisa nenhuma, chegara
a tudo, visto que o dinheiro é o dominador do mundo e ele tinha dinheiro.
Ainda não compreendia como tendo trabalhado tanto, juntado com tão
tremendo esforço em tão largo período de sacrifícios,
deixara agora ir tudo por água abaixo em tão curtos dias. Desfazer
é fácil!
Revoltado contra si, Francisco Teodoro cravou as unhas na calva, chamando-se
de leviano e miserável. Como toda a gente se riria da sua falta de
senso. A culpa era dele. Deixar-se levar por cantigas com a sua idade e sua
experiência! Sentia ferver-lhe o ódio por todos os amigos que
o tinham inebriado com palavras perigosas e fúteis. Então todos
chamavam o Inocêncio Braga de honrado, perspicaz e arguto. Agora, depois
de tudo feito e perdido, é que o diziam um especulador sem consciência.
Mas agora era tarde; estava tudo perdido.
Recomeçar a vida? como? Já nem o próprio exemplo da
coragem antiga lhe valia de nada.
A energia gastara-se-lhe. Nem o corpo nem o espírito resistiriam à
luta tremenda de recomeçar.
Pela primeira vez Francisco Teodoro percebeu que há na vida uma coisa
melhor do que o dinheiro: a mocidade. Com o corpo vergado, o espírito
amortecido, ele era o homem extinto, o fantasma do outro, que ficava boiando
no passado, desconhecido por todos, só amado pela sua lembrança.
"Velho… estou velho! pensava ele, já não sirvo para
nada. E agora? Para onde há de ir esta gente, que eu mesmo habituei
a grandezas? Para o sobradinho da rua da Candelária? Nem isso. Camila
naquele tempo contentava-se… agora já se afez a outra coisa. Camila!
Camila sem sedas? não, não se pode compreender Camila sem sedas.
Onde tinha eu a cabeça? Miserável! Eu sou um ladrão.
roubei a meus filhos. Eu sou um ladrão!"
Como se quisesse fugir das próprias idéias, começou
a andar pelo escritório, com ar desvairado. Vingava-o a sensação
de que tudo agonizava com ele.
A especulação, a fraude, a ganância, a traição
e a mentira, iriam roendo e corrompendo fortunas e carateres. Enganados e
enganadores seriam todos engolidos conjuntamente pela outra falência,
de que a sua era uma das precursoras.
No fim, havia de aparecer a justiça punindo as ambições
e as vaidades destes tempos e destes homens doidos, quando, depois de tudo
consumado, não houvesse nada a refazer mas tudo a criar.
A pulsação do seu sangue alvoroçado dava-lhe a percepção
fantástica de que o Brasil seria arrastado vertiginosamente pela maldade
de uns, a ignorância de outros e a ambição de todos, em
voragens abertas pela política amaldiçoada.
Já não culpava o patrício, o Inocêncio Braga,
como causa direta da sua ruína. A responsabilidade da sua perda caia
em cheio sobre a República, que ele invectivava de criminosa, na alucinação
do desespero.
Toda a sua vida de trabalho rotineiro material, sem ideais, mas cansativa
na sua brutalidade mesmo, parecia-lhe agora como um rio caudaloso que tivesse
vencido a nado e de que só depois de transposto, percebesse o volume
e os perigos.
Entretanto, talvez não tivesse sido difícil percorrer aquilo
de outra maneira e melhor… Não fosse ele um ignorante e não
se teria deixado enfeitiçar por palavras!
Era pois também certo que a inteligência e a instrução
valiam alguma coisa…
Resumindo os seus pensamentos de vencido, Francisco Teodoro disse alto, num
suspiro:
– Trabalhei, trabalhei, trabalhei, e aqui estou como Job!
Mas o som da sua própria voz assustou-o. Espreitou a ver se o viam.
Foi à porta; não havia ninguém. Lembrou-se depois dos
seus projetos de viagem: idas à Europa, regalados descansos.
Era de justiça, diziam todos, e a justiça fizera-a ele por
suas mãos, o homem nasceu para o trabalho, ele devia voltar para o
trabalho.
E as forças? Onde estavam elas, que as não sentia? Ah! corpo
miserável! corpo miserável.
Afogueado, como se tivesse brasas na cabeça, Teodoro procurou a frescura
do ar livre e foi encostar-se ao umbral da janela.
Fora numa noite assim, de lua clara, que o avô se enforcara numa amendoeira,
fugindo, no seu delírio de perseguição, a um inimigo
que lhe ia no encalço. Era um camponês rude, o avô; havia
muito meses antes desse ato que ele andava taciturno, agitado; depois, que
tranqüilidade!
Francisco Teodoro olhou para a noite:
O luar estava lindo, boiava no ar morno o aroma das esponjas e dos manacás,
que a luz cobria de uma brancura sedosa e doce.
O aroma das plantas avivou-lhe também a sensação dos
seus triunfos de outrora.
Aquela essência divina nascia da fertilidade das suas terras. trabalhadas
por homens pagos por ele.
A criadagem! Como os seus criados, menos feliz do que eles, precisava também
agora do salário de um patrão, com que matasse a fome à
mulher e aos filhos…
– Como Job! repetiu ele furioso, arrancando as barbas e unhando as faces.
Não lhe bastava o arrependimento, a dor moral, queria o castigo físico,
a maceração da carne, para completa punição da
sua inépcia.
Não saber guardar a felicidade, depois de ter sabido adquiri-la é
sinal de loucura. Ele era um doido! Sim, ele era um doido. Tal qual o avô!
Riu alto; ele era um doido!
Foi então que do fundo do jardim vieram os sons de um violino tocado
em surdina.
Francisco Teodoro estremeceu, as pernas vergaram-se-lhe, olhou pasmado para
o grande céu tranqüilo, onde as estrelas palpitavam. Compreendeu;
Ruth não quisera perturbar a tristeza da família e fugira com
a sua música para fora! Aquela era uma forte, amava o seu ideal mais
do que tudo, mais do que a vida! Que reservaria Deus àquela alma de
êxtase e de sonho?
Os gemidos da música vagavam na noite clara como queixas de anjos
invisíveis. Não pareciam vibradas por mãos humanas aquelas
notas suavíssimas e repassadas de doçura. Trêmulo, vencido
pela comoção, Francisco Teodoro ajoelhou-se e chorou copiosamente.
O último beneficio era-lhe ministrado pela filha, como um sacramento.
Nem ele soube quanto tempo durou aquela crise de pranto que o sufocava. Quando
Ruth acabou a sua música e ele lhe sentiu os passos leves e apressados
na areia, teve ímpetos de chamá-la e cobri-la de beijos.
Mais forte, porém, do que o seu amor e a sua ternura, foi o medo de
enfraquecer. Ele fugiu para dentro; tinha tomado a sua resolução.
Cada homem é criado para um fim. O dele tinha sido o de ganhar dinheiro;
ganhara-o, cumprira o seu destino. Não podendo recomeçar, inutilizado
para a ação, devia acabar de uma vez. Toda a energia da sua
vida se concentraria num movimento único e decisivo.
Ruth subia a escada. Ele foi colar o ouvido à porta para escutar-lhe
os passos. Beijaria o lugar em que ela punha os pés… Esteve assim
longo tempo, depois voltou-se e foi sentar-se a um canto, esperando…
Pouco a pouco a casa adormecia, até que se encheu toda do pesado silêncio
do sono.
À uma hora Francisco Teodoro levantou-se muito pálido, persignou-se
e rezou, ali mesmo, entre o lampejar das molduras e o ar atrevido do cavalheiro
de bronze. Finda a oração, caminhou resolutamente para a sua
secretária. A bulha dos seus passos firmes abafou um sussurro leve
de saias que deslizavam pela escada abaixo.
Francisco Teodoro tirou da gaveta o seu revólver, olhou-o um instante
e encostava-o no ouvido quando a mulher apareceu na porta, muda de terror,
estendendo-lhe as mãos. Ele cerrou logo os olhos à tentação
da vida e apressou o tiro.
E toda a casa acordou aos gritos de Camila que, com os braços no ar,
clamava por socorro.
XXI
A morte de Francisco Teodoro fez sensação.
Amigos e conhecidos acudiram pressurosos à casa da família.
Negreiros levou a carteira cheia, pensando em fazer o enterro; a baronesa
da Lage ofereceu-se para educar as gêmeas. Chamado de madrugada pelo
jardineiro, dr. Gervásio determinara tudo: o enterro seria conforme
disposições do finado, a expensas da sua Irmandade.
Toda a família soluçava à roda do cadáver. Camila
tinha no olhar uma fixidez de loucura. A cena da morte reproduzia-se diante
dela, como se uma infinita sucessão de espelhos a refletisse consecutivamente.
Culpava-se de ter chegado tarde. Esperara o marido em cima por mais de duas
horas, cuidosa, com medo que ele fizesse uma loucura, morta por encostar-lhe
a cabeça aturdida ao seu peito de mulher enternecida, sentindo que
o amava na sua dor, mais do que o tinha amado na felicidade. Entretanto, porque
só obedecera ao desejo de o ver e só viera procurá-lo
no momento justo e inevitável da morte? Se ela tivesse adivinhado?
Por que não tinha ela obedecido logo ao primeiro impulso de suspeita?
O descuido do pressentimento é uma falta que a consciência não
perdoa. Sentia-o; revolvia-se em um grande remorso. Oh, se tivesse descido
uma hora antes! Um minuto antes!
E agora, como caminharia na vida sem aquele companheiro de tantos anos? Que
fariam todos ali sem ele?
Seus olhos eram duas nascentes de agonia, choravam sem cessar.
No meio de tanta gente, só o dr. Gervásio a compreendia. Os
outros mal acreditavam na sua sinceridade.
As maiores condolências voltavam-se para os filhos, e só por
etiqueta e dever de aparência cumprimentavam a viúva.
As Bragas tinham sido as primeiras, como vizinhas, a invadir a casa, e tomaram
conta dela, afetando grandes intimidades, dispondo, ordenando, mostrando aos
estranhos a sua interferência.
D. Inácia Gomes foi também, muito chorosa, pelo braço
do seu velho. Repetia a todos que a Judith ficara em casa com ataques; Carlotinha
também tivera uma síncope. Eram muito amigas… Pudera não!
Era só gente e mais gente a entrar e a sair, pessoas curiosas da vizinhança,
que aproveitavam o ensejo para varar os jardins daquela casa de luxo, onde
nunca tinham entrado; ondas negras de povo, cruzando-se nas portas, escoando-se
pelos corredores, num sussurro de passos e de vozes abafadas…
D. Joana conseguira, pelos seus merecimentos, um padre para a encomendação
do suicida. Com o rosário nas mãos trêmulas, os olhos
inundados, ela não saia de ao pé do cadáver, defendendo-o
do inferno na fé ardente e pura da sua prece.
Quem lhe diria! um homem tão temente a Deus.. tão digno do
Paraíso!
E toda se debulhava em prantos por aquela alma perdida.
Por seu lado, sentada num canto, com as grandes mãos pousadas na seda
russa do seu vestido preto, d. Itelvina considerava na fragilidade humana.
Por que morrera aquele homem? Por não ter sabido guardar.
O instinto da vida é o egoísmo. Julgara-o mais precavido e
mais forte; afinal era um bobo. Se tivesse o seu dinheiro aferrolhado, acontecer-lhe-ia
aquilo? não. Morreria de velho, deixando testamento.
Sempre pensara que ele havia de deixar testamento; seria então uma
cerimônia completa e bonita, bem certo é que o dinheiro dá
prestígio a tudo.
Empobrecer… suicidar-se, quem diria? um português, um homem conservador
e acostumado ao trabalho! Ainda o maior crime não estava em suicidar-se,
estava em empobrecer, em deixar a família na miséria.
Na sociedade há só uma coisa ridícula: a pobreza. Vejam
se os jornais inscrevem o nome dos miseráveis que vão para a
vala.
Pois sim! Dizem que o dinheiro não vale nada, mas só dão
notícia dos mendigos que deixam moedas de ouro entre as palhas podres
do colchão…
D. Itelvina relanceou os olhos pela sala e considerou-lhe o luxo, com asco.
A seu lado caíam as dobras fartas de um reposteiro de veludo lavrado;
ela apalpou-o, sentindo com um arrepio o pelo do cetim do forro agarrar-se-lhe
à pele áspera dos dedos.
– Foi por estas e por outras! murmurou ela de si para si.
Que fará agora esta gente toda? Talvez conte comigo…
Ah, mas eu não posso… eu não posso. Que trabalhem ! para
isso Deus lhes deu cinco dedos em cada mão.
No meio dessas considerações acudia-lhe de vez em quando à
lembrança o que estaria fazendo em casa a criada… não fosse
ela dar entrada a alguém!
Ruth soluçou alto; d. Itelvina não se mexeu, mas disse consigo:
– Coitadinha…
E consigo ficou no canto da sala, recebendo em cheio a onda dos soluços,
que ora decrescia pelo extenuamento, ora redobrava pela violência da
comoção. O cheiro da cera, a chama trêmula das tochas,
faziam-lhe mal à cabeça. Desculpou-se com isso, de não
ajudar ninguém; parecia-lhe que a hora do enterro tardava; mas devia
chegar, e enfim chegou.
Paravam carros à porta, a sala encheu-se de gente. O Lemos e o Negreiros
choravam. Cresceu o sussurro de vozes e de passos, era preciso fechar o caixão.
Ruth desmaiou; as gêmeas bradaram pelo pai. Nina acudiu a todos, com
os olhos em sangue, e Camila, tirando o lenço da face do morto, beijou-o
três vezes.
De volta do cemitério, dr. Gervásio entrou no palacete Teodoro.
O gás da sala de jantar estava em lamparina, ele mal distinguiu uns
vultos a um canto; aproximou-se. Era Camila sentada no divã, entre
as gêmeas adormecidas. Ela, muito pálida. com uma brancura que
saía do negror das roupas num polimento de mármore, interrogou-o
com o olhar.
Calado, o médico entregou-lhe a chave do esquife. Evitaram o contato
das mãos: ela encolheu-se, ele recuou e foi sentar-se ao pé
da mesa.
Era a primeira vez que se repeliam. Mila sentia na palma da mão a
friagem daquela chave pequenina e pesada sem saber onde guardá-la,
com medo de a por no seio, achando irreverente guardá-la no bolso.
Gervásio considerava na dolorosa delicadeza daquela situação,
que o obrigara a ele a trazer do cemitério a chave da prisão
perpétua do outro. Apoquentou-o a idéia de o terem escolhido
por ironia, e, olhando para a Mila, pareceu-lhe que nunca mais poderia beijar
sem arrepios aquela boca, que tão repetidos beijos dera num cadáver…
A única voz na sala era a do relógio; mal se ouvia a respiração
das crianças bem acomodadas.
Gervásio quis falar, dar alguns conselhos a Camila; sabia-a muito
inexperiente, mas conteve-se, sem atinar como tratá-la. A língua
negava-lhe o tu, a que seu amor o acostumara. Ela suspirava baixinho, de queixo
caído para o peito.
Uns passos e um roçar de saias pela escada fizeram-na voltar a cabeça.
Era a Noca. Vinha buscar as meninas. Tomou Lia nos braços.
– Como está Ruth? perguntou Mila.
– Tá com febre… D. Nina ficou perto dela… Camila voltou-se para
o médico:
– Vá vê-la… sim?
Ele fez um gesto de assentimento e acompanhou a mulata.
XXII
Só no fim de um mês foi que a família Teodoro tratou
de mudar-se.
Nina despediu os criados, montou a casa nova com mobílias baratas,
leitos de ferro, louças brancas, sem douraduras. Pensava em tudo, traçava
planos, sacudia o torpor e a apatia dos que a rodeavam, indagava preços
e discutia o valor dos objetos que adquiria.
– Você dá à própria dor uma forma de felicidade,
disse-lhe um dia o médico; é a mulher mais compenetrada dos
seus deveres de mulher que eu tenho conhecido.
– De que serve?!…
– Para fazer os outros felizes. A sua influência e a sua atividade
têm realizado prodígios. E eu que já não acreditava
em prodígios!
– Bem vê que fazia mal…
– Bem vejo. Nina sorriu; e depois continuou:
– Falando sério: tenho medo da responsabilidade que vou assumindo,
sem saber como.
Tia Mila não está em idade de aceitar hábitos novos
sem grande sacrifício; Ruth só há de querer saber do
seu violino; para tudo mais foi sempre…
– Preguiçosa.
– Sim… As outras são tão pequenas! Eu estarei a seu lado.
Nina corou, e não respondeu.
Dias depois Noca foi ao quarto da ama avisá-la de que iriam almoçar
já na outra casa.
Mila apertou as pálpebras.
– A senhora torna a adormecer! Eu vou abrir a janela… abro?
Camila não respondeu; sentiu o corpo pesar-lhe na cama e espalmou
as mãos no seu largo colchão de clina. Como era bom!
O ócio tinha-lhe infiltrado no sangue a voluptuosidade, que embelezava
a sua carne de pêssego maduro, colhido ao sol de outono. O seu corpo
redondo e róseo tinha o aroma expansivo da flor aberta, e a maciez
da fruta polpuda e delicada que não pode sofrer nem grandes baques,
nem grandes ventanias.
Noca insistiu:
– Abro a janela?
Camila calou-se ainda, procurando gozar mais um minuto o conforto do seu
quarto cheiroso. Tinha criado fundas raízes no luxo, não se
podia desprender por si, seria preciso que a arrancassem.
A culpa não fora sua… a última vez, essa, que se estendia
sob um docel assim de rendas e de cetins? Só agora compreendia o valor
das mínimas coisas na harmonia do conjunto.
Ali tudo era bom. A idéia da necessidade, do tacão acalcanhado,
do chapéu feito em casa, do vestido forrado de algodão, irritavam-na
até à doença. A pobreza tem morrinha; é suja.
Quis lembrar-se do seu quarto de solteira, buscando na humilhação
do passado a resignação do futuro; dormira na mesma alcova que
a irmã Sofia. Mal pôde reconstruir na memória o mobiliário
barato desse aposento, em que havia roupas pelas paredes…
Noca andava pelo quarto; Camila olhou:
Era em frente àqueles grandes espelhos que o marido a encontrava quando
voltava do trabalho, satisfeito dos seus negócios, pisando e falando
alto, com as mãos carregadas de embrulhos de guloseimas e de jornais
da tarde.
E não era para ele que ela picava nos seus vestidos claros uma flor,
ou uma jóia discreta. Era para o Gervásio que adoçava
a sua beleza e se agarrava tanto à mocidade. A mocidade!
Vendo-a abstrata, com os olhos úmidos, cheios de tristeza, Noca avisou,
já impaciente:
– Olhe, nhá Mila, a gente não deve ir tarde; o carro daqui
a pouco está aí.
– Ajuda-me a vestir…
– E as meninas, lá embaixo? Lia e Rachel agora é que vão
tomar banho…
– Você tem razão… eu estou mal acostumada… Vá, eu
me arranjarei sozinha. Também, para este vestuário… Que saudade,
Noca!
– Que se há de fazer?! Agora é ter coragem!
Duas horas depois Nina passava a última revista à casa, abria
as gavetas verificando se todos os móveis estavam vazios e limpos,
e percorria tudo, do salão à cozinha, da cozinha ao fundo do
quintal; Noca ajudava-a na inquirição, remexendo as prateleiras
e fechando as janelas e as portas.
– No escritório, por mais que tivessem lavado, lá ficava indelével,
em uma sombra, no assoalho, a mancha do sangue de Francisco Teodoro. Nina
ia passar por cima dela, quando Noca deu um grito. A moça recuou, olhando
aterrorizada para o chão:
– Pisei?!
– Quase…
– Meu Deus!
Contemplaram-se as duas entre lágrimas.
– Foi uma grande desgraça, Noca!
– Se foi! Ainda me parece mentira…
– A mim também. As vezes julgo mesmo que ele vem da cidade e que vou
vê-lo abrir o portão… Pobre tio Francisco!
Pela primeira vez, pareceu-lhes que aquela mobília impassível
lhes estendia os braços numa súplica.
Na secretária, ao lado do código de Orlando, o tinteiro de
prata já vazio e em que a caneta sem pena pesava num abandono de corpo
morto, havia cintilações frias.
Nas paredes, chispavam as molduras dos quadros, e desenhava-se a figura atrevida
do cavalheiro de bronze, de chapéu emplumado na mão, em um aceno
arrogante de adeus.
Disseram-lhe o último, e fecharam a porta.
Na limpeza da casa, Nina encontra em um caixote, no porão, entre um
sem número de objetos mutilados e antiquíssimos, o chicotinho
com que Mário a zurzia nos dias de cólera, quando, pequena e
magra, ela fazia reboar pelos corredores a sua tosse de cão, que ele
abafava gritando-lhe:
– Cala a boca! cala a boca!
Calar a boca tinha sido todo o seu trabalho na vida. Com um triste sorriso
desbotado, Nina separou de todos os objetos destinados para a fogueira, aquele
chicotinho revelador e profético, e guardou-o como relíquia.
Para que nascera ela, senão para ser batida?
Depois de toda a casa fechada, foram para o jardim. Camila e as duas gêmeas
esperavam-nas sentadas no banco, em baixo da mangueira. Atrás delas,
muito magrinha e pálida, Ruth mal sustentava a caixa do seu violino,
pasmando para as árvores amadas um olhar dolorido e longo.
Um minuto depois acomodavam-se no carro. Noca fechava o portão do
jardim, entregava as chaves ao criado do dr. Gervásio, que esperava
ali, na rua, para ir levá-las ao patrão. Subiu por último
para a caleça. Ao primeiro arranco do carro, de todos os peitos saiu
um suspiro e todos os olhares se voltaram para a casa.
Ruth chorou; parecia-lhe que deixava ali o pai, o seu querido papai… Só
Lia e Rachel gorgearam uma risadinha. – Enfim, iam para a casa nova!
Durante a viagem ninguém mais falou.
Para quê? Diriam todos a mesma coisa. Abafavam gemidos, disfarçavam
lágrimas, e iam assim, de negro, começar nova vida.
Eram dez horas quando o carro parou em frente à casa de Nina.
Na vizinhança, tocavam exercícios num piano desafinado. O sol
irradiava com força no cascalho branco do chão.
A casa era pequena, em um trecho sossegado da rua de d. Luiza, disfarçada
por um jardinzinho mal cultivado. Dentro sentiram-se todos opressos; habituados
à largueza de um palácio, parecia-lhes que aqueles tetos e que
aquelas paredes se apertariam de repente esmagando-os a todos.
O melhor quarto fora arranjado para Mila e as gêmeas; Ruth e Nina dormiriam
na mesma alcova, Noca num quarto ao fundo.
A sala de jantar, forrada de novo com ventarolas e japoneses no papel, abria
para uma nesga de quintal por um patamarzinho de ladrilho que a desafogava.
Tinham-na alegrado com um par de cortinas de cretone claro e uns vasos de
flores na janela.
Nina explicava à tia como determinara as coisas, sujeitando-se a mudá-las,
se lhe n&aatilde;o agradasse a posição delas.
Supusera melhor suprimir a sala de visitas e fazer dela, que era ampla e
clara, a sala de trabalho. Em vez do sofá, do dunkerke inútil,
de uma ou outra cadeira preguiçosa, estavam ali a máquina de
costura, cadeiras fortes, uma estante para músicas, um armário,
uma mesa e uma tábua de engomar.
– Aquela tábua faz mau efeito aqui… murmurou Mila numa censura leve,
sentando-se, muito abatida.
A sobrinha explicou:
– A saleta lá dentro é muito pequenina, ficou vazia, para as
crianças brincarem nos dias de chuva. Se a senhora quer, põe-se
lá a tábua.
– Depois…
Quando acabaram de percorrer tudo, Lia e Rachel pediram para ver o resto.
Onde estava a sala do piano? e o escritório? Onde guardariam as suas
bicicletas? A cozinha então era aquele cochicholo?
A mãe anediava-lhes os cabelos, sem responder, com os olhos parados.
Tinham arranjado para cozinheira uma preta velha, de trinta mil réis
mensais. Mila achou-a repugnante e disse a Nina que lhe pusesse ao menos um
avental. E à hora do almoço não comeu; olhava para as
gêmeas que iam devorando os bifes e o arroz da cozinheira nova.
Nina ofereceu Collares à tia, que bebeu pouco, sem nem ao menos indagar
a proveniência daquele vinho, também, soube-lhe mal, bebido por
um copo de vidro, e lembrou-se com pena das suas garrafas de cristal lapidado
que atiravam sobre a toalha bouquets iriados e tremeluzentes. Eram como violetas
e botões de ouro que nascessem da luz e se espalhassem sobre o adamascado
do linho.
O vinho viera da adega do dr. Gervásio; ninguém mais o bebeu.
Lia pediu repetição do bife, Rachel exigiu batatas, e Nina,
diminuindo a sua ração, encheu os pratos das primas.
O sol entrava pela janela numa larga toalha de ouro, rebrilhando no verniz
novo dos móveis e nas roupas vermelhas dos japoneses retorcidos do
papel.
A preta velha trouxe o café numa bandeijinha, mal arrumada, que pousou
brutalmente em um canto da mesa.
Camila fechou os olhos para não ver; quando os abriu, a sobrinha estendia-lhe
uma canequinha delicada, do último aparelho do palacete.
Mexendo o café, vagarosamente, a tia perguntou-lhe:
– Só veio esta canequinha?
– E uma xícara de chá; nós bebemos bem nas outras. Veio
também um copo de cristal. Esqueci-me de o pôr na mesa…Quer
mais açúcar?
– Não quero diferenças para mim. Depois: – Realmente, custa
muito a beber num vidro grosso!…
– Eu não acho…
– Ah, você!
Nina sorriu e foi abrir a porta ao criado do dr. Gervásio, que entrou
trazendo a correspondência, jornais e uma carta para Francisco Teodoro,
que o carteiro levara ainda à rua dos Voluntários da Pátria.
– Você esteve lá em casa outra vez?! perguntou Mila admirada.
– Sim, senhora. Fui lá com seu doutor, um homem gordo, seu Serra e
mais o leiloeiro.
– Já! Andaram depressa!… Olhe, é bom avisar o carteiro.
– Seu doutor já avisou.
– Bem; pode ir…
A carta era de Sergipe. O pai de Camila queixava-se de doenças e de
atrasos; estava muito velho, pedia recursos ao genro. D. Emília andava
ameaçada de congestão; o Joca internara-se com a família
para o interior, por míngua de empregos, a Sofia fora pedir-lhe agasalho
por ter brigado com o marido e as outras duas filhas iam indo.
Desde a primeira até a &uuacute;ltima palavra arrastava-se um suspiro
lamentoso de pobreza e de inércia.
Quando Camila acabou de ler a carta, deixou-a cair aberta sobre os joelhos
e calou-se muito pálida. Ruth soluçava com a cabeça deitada
na mesa. Ouvira as súplicas, mas o que a alterava não eram os
cuidados do avô, era o destino daquele sobrescrito que ela tinha diante
dos olhos, com o nome do pai, que, na ilusão da vida viera de longe,
impelido por várias mãos desconhecidas e que, chegando ao final,
não encontrava ninguém!
Releram a carta; vinha atrasada. Já por lá, deviam estar fartos
de saber a verdade. Como teriam recebido a notícia? Camila cerrou as
pálpebras; viu a mãe, tal qual era na primeira visita de Teodoro
ao Castelo: faladora, animada, com aqueles grandes olhos trêfegos sempre
reluzindo de esperança… deveriam estar bem amortecidos agora aqueles
olhos, bem cansados de chorar… E, como nunca, Mila sentiu saudades do carinho
e do consolo materno. Estava tudo acabado! Que ventura, se pudesse voltar
a ser pequenina, inocente e adormecer no colo da mãe! Seria tão
doce… tão doce…
Os rigores do luto trariam a todos reclusos se a estreiteza da casa e o bom
senso de Nina não reagissem contra as praxes. Depois não bastava
a economia, era preciso trabalhar, fazer pela vida.
Conheceram-se, pela primeira vez na família, as agruras do cálculo,
o dever das restrições.
Mário escreveu lamentando ter de demorar-se em Paris; retido por uma
doença de Paquita, cujo nome repetia em todos os períodos. A
verdade é que na família ninguém contava com ele, e que
todos dissimulavam ressentimentos, fugindo de agravar tristezas.
Noca, pronta em expedientes, arranjou depressa freguesia para engomados.
Aquilo aborrecia Camila, que não gostava de ver trouxas de roupa atravancando
a casa. O ferro, a fumaça, os peitilhos das camisas alvejando ao sol
aumentavam-lhe o tédio e o mal estar. A vida pesava-lhe.
Uma tarde a mulata entrou com uma novidade: tinha encontrado uma discípula
de violino para Ruth, a filha de um empregado público da vizinhança.
Camila opôs-se. Ver a sua pobre filha andar na rua angariando dinheiro
alheio? nunca. Não tinham ainda chegado a tal extremo…
– Mas, tia Mila, a não ser que Mário lhe dê uma mesada,
com que devemos contar? perguntou Nina, estupefata daquela afirmativa e acrescentou:
o que nós trouxemos, mesmo com economia, não dará para
mais de dois meses…
Camila arregalou os olhos, como se só então tivesse a percepção
da sua desgraça…
Aproveitando a perplexidade da mãe, Ruth convenceu-a de que as lições
seriam um meio de a distrair; já não agüentava aqueles
dias sem fim.
Só à Nina não sobravam horas para trabalhos de interesse;
precisava dividir-se em todos os misteres domésticos; as cozinheiras
não paravam, umas porque bebiam, outras porque achavam o ordenado mesquinho…Era
um vai-vem cansativo, e ela sujeitava-se a tudo, pondo o encanto da sua paciência
nos trabalhos mais rudes e pesados. Cumpria a sua missão de mulher,
adoçando sofrimentos, serenando tempestades e conservando-se na meia
sombra de um papel secundário.
Corriam assim os meses. Os amigos escasseavam, mais pelo retraimento da família
que pela sua mudança de fortuna. Os infelizes julgam os homens piores
do que eles são, e nunca vêm em si a causa justificada de certos
abandonos. Camila queixava-se às vezes das relações antigas,
sem cogitar que quem mais fugia era ela, envergonhada da sua nova situação.
Levado talvez mais pelo hábito que por outra cousa, dr. Gervásio
continuava na assiduidade antiga; as suas visitas eram mais curtas, feitas
de passagem; evitava, com escrupulosa discrição, os almoços
naquele lar pobre e simples. Demais a mais, não podia falar nunca a
sós com Mila, naquela casa estreita; encontrava-a rodeada sempre da
família, fechada no seu rigoroso vestido de viúva, muito arredia.
Aquelas esquivanças não o atormentavam, ele sentia que a ia
amando com menos amor e mais amizade; era como uma irmã, necessitada
do seu amparo e do seu conselho, que ele não podia deixar de ver todos
os dias; o calor da sua mão e o som da sua voz já não
lhe alvoroçavam os sentidos adormecidos; e bem percebia que no coração
dela a paixão estava também apaziguada, e que para Camila ele
ia já sendo apenas o amigo.
E assim se passaram poucos meses, até que chegou um dia em que o olhar
de Camila, irradiando, se trocou com o dele num fulgor de desejo. O fogo abafado
pelas cinzas da tristeza irrompia subitamente, como uma labareda de fragoa.
Ele espantou-se, ela conteve-se envergonhada, e separaram-se ambos inquietos
e torturados.
XXIII
Adeus, mamãe! nós vamos levar estas sobras do jantar às
crianças da Jacinta, ouviu? Nina disse que não vale a pena guardar
para amanhã; é pouco e pode azedar.
– Mas que crianças são essas? perguntou Camila às duas
gêmeas, que lhe falavam do quintal com a trouxinha da comida num guardanapo.
– São as netas da Jacinta…
Ruth apareceu atrás das irmãs.
– Mamãe não conhece… Jacinta é uma velha paralítica
que mora na vizinhança da minha discípula. Sempre que passamos
por lá nos pede esmola… E tão velhinha que faz pena. Combinamos
com a Nina que sempre que sobrasse alguma coisa do jantar fôssemos levar
a ela. Quando me lembro do que se desperdiçava lá em casa! Por
um lado, mais vale a gente ser pobre… Os ricos, não é por
mal, mas como não conhecem a necessidade dos outros não consolam
ninguém…
– Fala baixo! Bem, meus amores, vão antes que seja noite.
– Anda depressa, Noca.
– Mamãe, como nós vamos acompanhadas, podemos depois fazer
um passeiozinho?
– Sim…
As crianças saíram com a mulata. Camila sorriu. A Providência
não a desamparava. Ainda na sua casa havia sobras para dar…
A tarde caía com lentidão; a viúva, derreada na cadeira
de balanço da sala de jantar, olhava pela janela aberta para a grande
amendoeira do quintal, cujas folhas cor de ferrugem caíam espaçadamente,
com um rumor tímido.
Invadia-a uma grande tristeza, um desejo vago de fugir, de sumir-se na transformação
de uma essência diversa. A sua alma amorosa crescia-lhe dentro do peito
na ânsia do calor do abraço e o sabor do beijo. Não podia
mais, as roupas negras sufocavam-na, lembravam-lhe a todos os instantes aquele
minuto inolvidável, que se lhe fixara na vida, que se repetia sessenta
vezes em todas as horas e de que ela não se libertaria nunca!
Nunca? Quem sabe? a sua carne forte acordava de um longo letargo com frêmitos
de mocidade, capaz de todos os prodígios. Se a paixão que ela
via arrefecer nos olhos de Gervásio se reacendesse! Se ele voltasse
a amá-la com aquele amor antigo, todo de extremos… Se ele voltasse!
Na palidez da tarde moribunda, a grande amendoeira desnudava tranqüilamente.
Camila olhava para ela, invejando-lhe a serenidade, quando sentiu passos.
Voltou-se.
Gervásio sorria-lhe da porta.
– Vem! murmurou ela então, num triunfo, estendendo-lhe os braços…
Ele precipitou-se.
– Enfim, voltas a ser minha! a ser minha!
– Espera… sossega… a Nina está em casa…
– Que importa a Nina?
– Cala-te! Oh, eu já não posso mais!
Muito juntos, com as bocas quase unidas, eles repetiam as mesmas palavras
de outrora, que soavam agora aos ouvidos de Mila como novas.
O céu ia mudando de cor; as folhas da amendoeira desprendiam-se céleres
e com freqüência; dir-se-ia uma tarde de outono, e era apenas começo
de verão.
Camila, reentrada no seu sonho maravilhoso, parecia iluminada. O médico
puxou-a para si, ia beijá-la, quando a Nina apareceu na sala, com modo
disfarçado.
– Querem luz? Como as meninas estão tardando!
Gervásio não respondeu; achou-a importuna. Camila disse com
meiguice:
– É cedo, minha filha…
Ficou depois por muito tempo calada, recolhida na sua alegria. Era como se
a tivessem encerrado em uma redoma luminosa e cheia de perfumes, em que houvesse
outra atmosfera que lhe alterasse a natureza, isolando-a de tudo o mais. As
roupas do luto não lhe pesavam, semelhavam rendas levíssimas;
pela primeira vez a imagem do marido no último momento se lhe apagou
na memória… Era já noite quando ela acompanhou Gervásio
ao jardinzinho da entrada. Ele sentia-a trêmula, numa comoção
de virgem, como se aquele velho amor pecaminoso fosse um amor nascente.
A sua voz, lenta e grave, tinha inflexões tímidas, e a brancura
da sua carne tantas vezes beijada por dois homens, parecia-lhe, na sombra,
de uma imaterialidade puríssima.
– Agora és só minha, só minha! dizia Gervásio,
apertando-lhe as mãos com força, quando um homem se aproximou
do portão e o empurrou. Olharam, com espanto, mas logo Camila deu um
grito: reconhecera o filho e correu para ele.
Mário olhou para o médico com aborrecimento não disfarçado
e recuou, dando lugar a que ele passasse para a rua, como a despedi-lo.
Trocaram um cumprimento rápido e cruzaram-se.
Foi só depois do portão fechado sobre as costas do outro que
o Mário se voltou para a mãe com uma expressão que significava
– ainda?!
Camila rompeu em soluços e então o filho abraçou-a docemente,
e a foi levando para dentro. Nina acendeu o gás, batendo os dentes,
num acesso nervoso; depois contemplaram-se todos, em silêncio. Foi ainda
soluçante, que Mila perguntou afinal:
– A Paquita?
– Está muito pesada, por isso não veio.
Camila sentiu o sangue sumir-lhe. Que! um neto! o seu Mário ia ter
um filho!
– Demorei-me mais na Europa por esse motivo: os médicos acharam imprudente
que a Paquita se metesse em viagens…
– Fizeram bem. Por aqui sofreu-se tanto! Quando chegaram?
– Esta madrugada. Desembarcamos às nove horas…
Outra decepção: todo o dia. no Rio, e só à noite
o filho a procurava!
Ele explicou: tivera muito trabalho, idas à alfândega, uma trapalhada!
E as irmãs? onde estavam as irmãs?
– Já vêm, andam aí pela calçada. Vai avisá-las,
Nina.
A moça saiu. Mário continuou:
– Porque não as entregou à minha cunhada? Ela escreveu-nos
falando nisso…
– Tive pena… não me quero separar delas.
– Sim, concordo que é penoso; mas é para o bem delas, e esta
situação não pode continuar. Paquita é uma mulher
sensata, mesmo a bordo determinou tudo da melhor maneira: Lia e Rachei vão
para a casa de minha cunhada; Ruth irá morar conosco, isto até
lhe facilitará um casamento, coisa sempre difícil para uma moça
pobre, e Nina tem o recurso de ir para a casa do pai…
– E…eu?!
– A senhora, visto que agora é livre… porque não se há
de casar?
Camila tornou-se rubra e escondeu o rosto nas mãos.
Mário não soubera reprimir-se, e já agora prosseguia:
– Acho preferível o casamento à continuação desta
vida. Perdoe-me que lhe diga, mas suas filhas merecem outros exemplos…
As mãos de Mila, geladas, apertaram com mais força o rosto
em fogo.
Mário falou ainda.
Ele premeditara o seu discurso, ao lado da previdente Paquita, mas a língua
recusava-se a repeti-lo inteirinho, no seu rigor de forma decisiva.
Vinha como uma espada, cortando todos os nós. Prevalecia-se da sua
autoridade de homem.
A mãe teve nojo, e num só grito explodiram-lhe todas as queixas.
As faces, de vermelhas tornaram-se lívidas, as mãos e os beiços
tremiam-lhe; avançou:
– Vá dizer à Paquita, à sua prática e sensata
Paquita, que eu não preciso do dinheiro dela ouviu? Não se demore,
que ela é capaz de bater em você’
— Mamãe!
– Perversos! vir de tão longe, o meu filho, para me dizer isto. O
meu filho! e eu que tinha tantas saudades!
– Mamãe, a senhora é injusta…
– Injusta é ela, que me quer separar de todos os filhos e te ensina
a faltar-me ao respeito. Acham que tenho sofrido pouco?!
– Acalme-se e reconhecerá que temos razão. Paquita é
um anjo.
– Um diabo do inferno!
– A senhora está me ofendendo.
– E ninguém me ofendeu? Diga! ninguém me ofendeu?!
– Sossegue: tudo se há de arranjar; bem sabe que eu não tenho
nada; a fortuna é de minha mulher, mas nós lhe daremos uma mesada,
visto que…
– Recuso; não quero nada dessas mãos. O meu filho morreu no
dia em que se casou. Se o envergonho, é melhor fingir que não
me conhece. Vá-se embora.
– Mamãe…
– Vá-se embora! Eu não preciso de nada. Suas irmãs saíram
para dar uma esmola. Temos sobras em casa. Que castigo, meu Deus!
– Não tive a intenção de a ofender. Se eu não
tivesse encontrado aqui aquele maldito homem, as coisas teriam caminhado de
outra maneira. Compete agora a mim o dever de zelar pela sua honra. A senhora
é viúva, o Dr. Gervásio é solteiro, amam-se, casem-se.
E lógico.
– Pelo amor de Deus! Mário!
– A senhora não é criança, deve perceber que desse modo
compromete o futuro das meninas. O tempo lhe dirá se tenho razão…
– Que insistência! uma vez por todas: basta, basta, basta!
– Bem. mamãe, calo-me.
– Enfim!
Era oportuno o ponto. As meninas entravam em tropel pelo jardim, gritando:
– Mário, Mário!
Ele chegou à porta, agitadíssimo e estendeu os braços
a Ruth, que lhe pareceu muito magrinha, já de vestido comprido, como
uma senhora. O abraço evocou em ambos a lembrança do pai. Mário
semeou beijos e lágrimas nos cabelos da irmã, na sua primeira
efusão de ternura.
Foi só depois de tudo acabado, que à Noca, contemplando o moço
de frente, murmurou:
– Gentes! reparem como o bigode de Mário cresceu, e como ele está
bonito!
XXIV
Domingo de verão; as cigarras chiavam estridulamente no flamboyant
da rua. Grande sossego em tudo.
Fechada no seu quarto, Camila tentava ler, mas os olhos fugiam-lhe da leitura
para as caminhas vazias das gêmeas, entregues desde a véspera
à baronesa da Lage. Cumpriam-se as ordens de Mário.
A família espalhava-se ao bruto ponta-pé da pobreza: uns para
aqui, outros para acolá… Que imprevistas soluções tem
a vida!
Numa persistência cruel, o conselho do filho fincava-se-lhe no cérebro.
Exangue e dolorida, ela não lutava; a fatalidade faria dela o que quisesse…
O que a atormentava sobretudo era a saudade das gêmeas, que tinham levado
consigo toda a sua alegria e que, ausentes dela, iriam dispensando à
outra os afagos que deveriam ser só seus! Pobres inocentes, lá
viria um dia em que o preconceito da honra se levantasse no seu caminho, como
um rochedo em cujas arestas lhes ficassem o sangue e a carne.
Via já a outra como uma inimiga. Fora ela quem lhe tirara o filho
para a irmã; era ela quem lhe tirava as filhas para si. O pretexto
humilhava-a, achava-se indigna por não ter tido forças de defender
as crianças, arrancadas de casa pela pressão da necessidade.
Olhou para as mãos: eram bonitas, mas não sabiam fazer nada.
Camila escondeu-as depressa, arrepiada, nas dobras do casaco.
E o conselho do filho não a deixava, numa fixidez alucinadora. Sim,
só Gervásio poderia salvá-la, se quisesse dizer primeiro
a palavra que ela não tinha coragem de pronunciar.
Camila fechava os olhos, tapava os ouvidos e sempre, continuamente, entre
o seu orgulho de mulher e os seus extremos de mãe, badalavam as palavras
do filho:
– Case-se, case-se, case-se!
E ele tinha razão; só assim ela tornaria a ter um lar onde
aninhasse as filhas; cessariam os sacrifícios de Nina e de Ruth, a
Noca trabalharia só para si, e o Mário…
O ressentimento que lhe ficara daquele filho, que viera de longe para lhe
amargurar, avolumou-lhe as lágrimas que chorava. Tinha-se humilhado,
havia de humilhar-se até ao fim. Falaria a Gervásio.
Devia fazer-se isso depressa, a tempo de salvar toda a gente e reunir as
crianças antes do desapego completo.
Francisco Teodoro assim quisera, furtando-se à responsabilidade da
família. fugindo da vida desde que a vida, em vez de presenteá-lo,
lhe pedia favores. Era o abandono; pois bem, ela reconstituiria o lar que
ele desmanchara; o seu velho amor, purificado por tantos sobressaltos, por
tantas agonias, ressurgiria, como um dia de luz após outros de negrume,
para a felicidade de todos!
O oração faz pagar caro às mulheres a sua glória,
bem o sabia. Dei-a tudo, certa de que não era a honra do marido que
sacrificava: era a sua própria. Ele não era autor nem cúmplice,
não podia ser argüido pela sociedade hipócrita.
Por fortuna. tinha-se empenhado com um homem de bem: Gervásio salvá-la-ia.
Mário dissera um dia:
– Escolha entre mim e o dr. Gervásio – Aí estava ela agora
radiante, escolhendo a ambos, porque adorava um, porque era mãe do
outro.
As horas passavam devagar. Num piano vizinho rompeu uma polca faceira; ressoavam
gargalhadas na rua.
Que dia lindo e como havia gente alegre na vida! Camila foi à janela;
vacilava ainda. Nem uma nuvem no céu; voltou para dentro e esbarrou
com as caminhas vazias. Numa imposição de vontade, despiu-se
a pressa e enfiou o vestido de sair; os dedos mal atinavam com os colchetes;
nem olhou para o espelho, na ansiedade de partir. de correr para o futuro…
Eram quatro horas quando entrou no bonde que a levaria à casa do dr.
Gervásio. Colheu a cauda do vestido, dobrou sobre o rosto o seu véu
de viúva, ciosa de que lhe não lessem os pensamentos na alteração
do rosto. Dobrava-se, enfim, á vontade da nora, aquela criatura implacável,
que nunca a procurava, conservando-se a distância, com medo do contato.
Camila sorria daqueles grandes escrúpulos, tão tardiamente acordados…
Para melhor evitar a sogra, Paquita mudara-se para Petrópolis; e o
Mário, sempre com medo de perder a barca, mal visitava a família,
carregado de encomendas para a mulher e o filho, um rapagão nascido
longe da avó.
Camila esquecia-se de tudo isso, abrindo os olhos para as imagens exteriores.
Era como se tivesse saído de um cárcere: tudo lhe parecia diferente
e mais bonito. Começavam já a aparecer as chácaras de
Botafogo, grandes relvados, altas palmeiras, frescuras de água e de
sombras macias.
Em quantas daquelas casas, ela fizera brilhar as suas jóias, rugir
as suas sedas, vagar o perfume do seu lenço de rendas e dos seus vestidos!
Bons tempos… ah! mas eles voltariam, quando a fortuna e a lealdade de Gervásio
a repusessem no lugar de que a ambição do marido a tinha arrancado.
Ia leve. Como é bonito e curto o caminho da felicidade!
O bonde dobrou a rua dos Voluntários; e uma súbita angústia
caiu no coração de Camila. Ia passar pelo palacete Teodoro como
uma estranha. Por um grande trecho da rua, ela esperava esse momento com curiosidade
e terror; e quando o momento chegou, quis abranger tudo com a vista, adivinhar
até o que se passava dentro daquelas grossas paredes. Na fugacidade
do instante só pode perceber que a janela do seu quarto estava aberta
e que tinham substituído por areia preta a antiga areia branca do jardim.
Teve ímpetos de mandar parar o bonde, de entrar pela casa, ir até
à sua saleta, continuar o bordado ou a leitura interrompida e beijar
as duas filhinhas, coradas, ofegantes pelas últimas corridas da bicicleta,
que lá deviam estar dentro, ao pé da Noca, na sala de engomar,
sobraçando as suas grandes bonecas de olhos azuis…
O bonde passou, e Mila, toda voltada no banco, olhava para a sua casa, depois
para o seu jardim, e ainda, enquanto a viu, para a alta copa ramalhuda da
sua mangueira…
Sentiu então como que um desdobramento de personalidade. Ela que passava,
sozinha, vestida da lã negra, com um véu de crepe pela cara,
mal arranjada, abotoada à pressa, não era a Camila dos vestidos
claros e das mãos luminosas; essa estaria lá dentro do palacete
no seu eterno sonho de mocidade, de amor e de beleza…
Quando entrou em casa de Gervásio, teve um ímpeto de voltar
para trás. Todos os seus escrúpulos se levantaram em revoada.
Feriu-a então a idéia de que já era avó, e que
esse título devia ser um ridículo algemando-a ao silêncio.
O filho de seu filho seria também um inimigo? Tão pequenino,
apenas nascido, e já teria força para se interpor entre ela
e a felicidade?
Um criado abriu o guarda-vento; ela entrou indecisa para o vestíbulo.
Nunca se encontrara ali sozinha: Gervásio não quisera expô-la
aos comentários dos seus criados; preferia ter um canto obscuro, todo
destinado a ela e que nenhuma outra mulher maculasse com a sua presença
ou a sua indagação curiosa.
O mesmo criado conduziu-a por um corredor atapetado, ornado de plantas, até
uma sala do mesmo pavimento térreo, abrindo sobre um jardinzinho interior,
onde as dracenas se empenachavam de flores.
Pediu-lhe que esperasse ali. O senhor doutor conferenciava com um indivíduo
no escritório, mas ia avisá-lo.
Ela respondeu-lhe que não, não tinha pressa; ficaria até
que o outro saísse…
Quando se viu só, Mila levantou o véu com um suspiro de alívio.
Olhou amorosamente para tudo: nas paredes alguns quadros; uma certa sobriedade
nos arranjos e nos móveis. Reconheceu numa cadeira uma almofada bordada
por ela, e, a um canto, um jarrão chinês com que Francisco Teodoro
presenteara o médico, após uma doença grave do Mário.
O marido! o Mário! como eles lhe fugiam para o horizonte da vida…
Aquele jarrão evocava uma época feliz. O filho era então
já um rapazinho atrevido, mas tão meigo, tão lindo! o
marido era forte, falador, arrebatado, ameaçando fazer cair a casa
ao furor das suas rebentinas. E ela? Ela bem diferente: caseira, mal vestida,
egoísta e muito severa para as faltas alheias… Prodigalizava-se pouco,
o próprio marido não obtinha dela mais do que o carinho frio,
de condescendência; não por mal, não por propósito,
nem sabia porque…
Fora Gervásio que lhe ensinara a enternecer-se, a reprimir as suas
cóleras, a perdoar as fraquezas dos outros, a embelezar a sua casa,
a sua pessoa, a sua vida, a querer bem a todos, com inteligência e com
consciência. Antes não o houvera conhecido; ela talvez não
tivesse sido boa para ninguém, mas teria sido honesta e não
conheceria o sofrimento.
Com os olhos parados nas figuras policromas do jarrão, Camila relembrava
todo o martírio do seu amor, nascido pouco a pouco da intimidade…
O tal indivíduo demorava-se no escritório. Ela levantou-se,
foi à janela olhar para o jardim. As plantas eram finas; como no interior
da casa, havia também ali uma tranqüilidade distinta. Sentia-se
que os gostos e os instintos do dono sabiam subordinar-se a uma vontade forte.
Camila olhava abstratamente para as flores, quando ouviu passos no corredor.
Voltou-se; Gervásio apareceu no limiar da porta.
– Que é isso, Mila?!
– Nada… eu…
– Por que vieste?!
Camila avançou timidamente. Ele continuou:
– Por que não me mandaste chamar logo que entraste? Estás tão
pálida!… tão fria… Foi uma imprudência vir aqui, a
esta hora!… Mas por que?!
– Lá eu não poderia falar…
– Tens razão, aquela casa é tão pequena! está-se
tão perto de todos! Senta-te, meu amor.
– Contrario-te?
– Nunca! estamos juntos! Fala.
– Eu…
Mal pronunciou a primeira palavra, Camila arrependeu-se da sua resolução.
Era quase velha, já era avó! Aquele pensamento toda se enrubesceu;
calou-se de novo, com os olhos rasos de água.
– Não te compreendo… assustas-me! Tens segredos para mim? Olha que
me zango! Vamos, que aconteceu?
– Amas-me sempre?
– Sempre!
– Como… no princípio?
– Mais.
Então baixinho, num sussuro, com o rosto unido ao rosto dele, Camila
disse tudo. Levada pelo seu sonho, ela não percebia quanto as mãos
dele tremiam nas mãos e que sombras lhe passavam pelo rosto transtornado.
Quando ela acabou, ele não respondeu; ficou por largo tempo imóvel,
como se ainda esperasse a última palavra.
A viração da tarde encheu a sala com o aroma das dracenas;
Camila sorveu-o com deleite, como se fora um afago do céu. Enfim, falara,
tinha-se dissipado a nuvem e já sorridente, instou pela resposta:
– Queres?
O médico ergueu-se de chofre, e com voz metálica e dura disse
rapidamente:
– Não pode ser.
Camila moveu os lábios, numa agonia de morte. O que ela temia ali
estava. Ele tinha razão, era bem feito, casar, para quê? Fora
a nora que a obrigara a tamanha humilhação! Atrás daquela
máscara de seriedade, Gervásio havia de se estar rindo dela,
da pretensão daquele miserável corpo de avó a um noivado
de amor! Teve a impressão dolorosíssima de estar coberta de
rugas e de cabelos brancos; olhou para as mãos com medo; não
compreendeu bem o motivo por que continuava ali e levantou-se com esforço,
para se ir embora. O seu destino estava escrito: via todo o futuro tapado
pelo corpo pequenino do neto.
Gervásio, pondo-lhe as mãos nos ombros, fe-la sentar-se outra
vez, com brandura.
– Para quê? perguntou-lhe ela, quase chorando.
– Para te dizer tudo: eu sou casado.
Camila abafou um grito, tapando a boca com a mão.
Ele dissera aquilo num desabafo, na ânsia do golpe inevitável,
com uma voz cortante como a de um machado lanhando um tronco verde. Roto o
segredo, apiedou-se logo e falou com humildade, muito chegado a ela. Também
pensara nisso, ela, também a quereria fazer sua aos olhos de toda a
gente, mas estava preso a outra mulher, até que a morte…
– A morte! suspirou Camila.
E ele continuou, muito comovido:
– Viste-a uma vez. lembras-te? era aquela mulher de luto que encontramos
na volta do Netuno. Achaste-a bonita… percebeste a nossa impressão
e tiveste ciúmes… Eu não queria que soubesse… mas agora
a explicação deve ser completa, dir-te-ei toda a verdade. Meu
pobre amor, perdoa-me…
Gervásio segurou nas mãos de Camila; ela retirou-as devagar
e fixou-o com um olhar de tão clara interrogação, que
ele continuou mais baixo, mastigando as palavras:
– Sim. amei-a muito! casei-me por amor; mas no dia em que percebi que ela
me enganava, deixei-a… Morávamos no Rio Grande, ela ficou lá
com a mãe, eu voltei para aqui. Quis divorciar-me… ela opôs-se;
opõe-se ainda; quer ter-me acorrentado como um cão: consegue-o.
É tudo.
Era tudo. Camila percebeu o melindre do segredo, mantido para evitar-lhe
uma ofensa. A razão iluminava-se-lhe; ela não podia ser aos
olhos daquele homem nem melhor nem mais digna do que a outra que ele desprezara;
a mesma culpa as nivelava, e se ele não encontrara perdão para
a esposa. como encontraria respeito para ela?
Sempre calada, puxou o seu véu de viúva para o rosto e levantou-se.
O aroma das dracenas invadia tudo, numa exalação sufocante.
Gervásio beijava-lhe as mãos, suplicando-lhe que lhe perdoasse;
fora por amor de ambos… Por que não continuariam a viver como até
então?
Camila não respondia, e como ele instasse, ela pediu:
– Deixa-me ir embora!
– Tens razão; precisas descansar. Mas não podes ir assim, deixa-me
ao menos mandar buscar-te um carro!
Camila desprendeu-se, já muito impaciente; queria ir sozinha, andar
a pé ao ar livre. Ele consentiu, adivinhando que a perdia para sempre.
Talvez fosse melhor assim…
Ela colheu a cauda da saia e saiu tiritando de frio, por aquela luminosa
tarde de verão. Encontrara fechada a porta do futuro; voltara para
trás, aturdida, como se sentisse dentro da cabeça um sino doido,
badalando furiosamente. Ele era casado! Ele mentira-lhe! Tantos anos de mentira,
tantos anos de mentira!
Era já noite quando Camila entrou no seu jardinzinho da rua de d.
Luiza. A casa estava ainda às escuras, mas Ruth tocava lá dentro
um adágio de Mendelssohn. Extenuada, Camila sentou-se nos degraus de
pedra, como uma mendiga à espera da esmola. As luzes dispersas dos
lampiões semeavam de pontos de ouro a curva negra do morro; a última
cigarra adormecia nas flores abertas do flamboyant, e a alma dos seres invisíveis
erguia-se na noite, enchendo-a de impenetrável e sagrado mistério…
Camila, com o olhar aberto para o veludo macio da sombra, percebia que estava
tudo perdido, irremissivelmente. No outro dia escreveria uma carta a Gervásio,
com a sua última palavra. O adeus definitivo. As lágrimas rolavam-lhe
em fio pelo rosto abrasado; estava bem certa de que aquele era o dia da sua
segunda viuvez.
Perdera na primeira o aconchego, as honras da sociedade, a fortuna e um amigo
calmo, que não a repudiaria nunca… Na segunda, perdia a ilusão
no amor, a fé divina na felicidade duradoura, o melhor bem da terra!
Chegara ao fim de tudo, à hora tremenda da expiação.
Mas fora ela, por ventura, uma criminosa?
Maldizia-se, fora uma confiante, dera-se toda com os seus devaneios, os seus
desesperos; dera-se completamente, absolutamente, e aquele a quem tudo sacrificara
tinha-a deixado do lado de fora da sua vida, como a uma estranha.
Ele mentira-lhe, ele mentira-lhe!
Era casado, e desprezara a mulher pela mesma culpa! Que seria ela também
aos olhos dele?
Oh! ser honesta, viver honesta, morrer honesta, que felicidade! Se pudesse
voltar atrás, desfazer todos aqueles dias de sonho e de ebriedade,
recomeçar os labores antigos na insossa domesticidade de esposa obediente,
sem imaginação, sem vontade, feliz em ser sujeita, em bem servir
a um só homem, com que pressa voltaria para evitar esta humilhação,
pior que todas as mortes, porque vinha dele, que ela amava tanto! Amava ainda.
Ainda!
Olhou com desprezo para o seu belo corpo de mulher ardente. Era um despojo,
de que valia? Lembrou-se com terror das filhas, aquelas crianças nascidas
dela, predestinadas para o Sofrimento. Caminhariam alegremente para o Amor,
e o Amor só lhes daria decepção e miséria.
Numa angústia, Camila interrogou com olhar ansioso a treva muda: Senhor,
que haveria no mundo para salvação das almas doloridas?!
Alguma coisa falou-lhe no ar, em um rasgo de poesia, que subia as estrelas:
a música de Ruth. A essência da lágrima purificava-se
no som, com um poder de infinita pacificação.
Então a viúva teve inveja da filha, daquele ideal puríssimo,
que não lhe traria nunca o travo de um desengano. A arte a consolaria
do homem, pensou, quando chegasse o dia de o amar e de o servir…
Maldita a natureza, que a fizera, a ela, só para o amor!
As onze horas da manhã seguinte, Camila sentou-se a um canto da sala
de trabalho. O sol entrava pela janela, estendendo no chão uma toalha
de ouro. Debruçada sobre a mesa, Ruth escrevia em papel de pauta, preparando
lições para duas discípulas novas. Toda a sua indolência
antiga se transformara em atividade. Nina cosia à máquina e,
no meio da casa, Noca borrifava a roupa para o engomado. Ela olhou para todos.
Ruth estava feiosa, muito magrinha; mas a sua coragem iluminava-lhe a fronte,
uma fronte de homem, vasta e pensadora; as outras pareciam até mais
bonitas naquele afã. Estavam na sua atmosfera.
Com voz pausada e clara, Camila pediu que lhe dessem trabalho. Olharam-na
com espanto.
– Mamãe, quer mesmo fazer alguma coisa?!
– Sim, minha filha… Tudo acabou, devo começar vida nova!
– Então mande buscar as meninas e ensine-as a ler! exclamou Ruth.
Um grito irrompeu de todos os peitos. Noca saltou:
– Vou já me vestir! Credo! não sei o que parece isto da gente
dar os filhos. Deixe Mário falar, afinal aqui ninguém há
de morrer de fome… Vou buscar as crianças?! Vou, ou não vou?
– Vai, respondeu Camila muito excitada; mas olha, não ofendas a baronesa.
Basta dizer… que eu não tenho nada no mundo senão as minhas
filhas!
– Bem que eu ouvi a senhora chorar toda a santa noite… Até estive
quase…
– Basta de palavreado, Noca! interrompeu Nina; e acrescentou:
– Vá descansada, eu acabarei de borrifar a roupa. E depois, para a
tia:
– Faz bem, tia Mila. O trabalho distrai.
XXV
Depois de dois anos de viagens pelos Estados Unidos, o capitão Rino
desembarcou no Rio de Janeiro. Vinha outro, remoçado, lépido,
despido do seu ar de ingênua rudeza. Havia agora no seu sorriso a mesclazinha
de ironia que a perversidade do mundo ensina aos homens.
Catarina notou-lhe logo a diferença, ao conduzi-lo alegremente por
entre os girassóis do seu jardim. Compreendeu a serenidade do irmão.
Vinha salvo.
Na manhã seguinte ele lia alto um jornal, quando esbarrou com um anúncio
para um concerto de Ruth.
Parou; ele soubera de tudo pelas cartas de Catarina, e, voltando-se, fixou
nela os seus olhos claros. Houve uma troca de confidências entre os
dois rostos mudos; depois, curvando-se um pouco para o irmão, a moça
perguntou em voz baixa:
– Vai visitá-la agora?
Rino hesitou, e depois, com o tom mais natural do mundo, respondeu com outra
pergunta:
– Para quê?…
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