Memórias do Cárcere (Volume II) – Graciliano Ramos

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Graciliano Ramos

TERCEIRA PARTE

COLÔNIA CORRECIONAL

1

ENTRAMOS num salão bastante limpo, de pintura nova, ainda com cheiro
de tinta fresca, mas desprovido inteiramente de móveis. Era o Pavilhão
dos Militares. O chão liso, as paredes nuas valorizavam demais o conforto
escasso perdido uma hora antes: o colchão magro, a cama dura, o guarda-vento.
Iríamos para a Colônia? Essa pergunta muitas vezes se repetiu;
uns aos outros os homens em redor avivavam receios, queriam suprimi-los, enquanto
se ambientavam, de cócoras pelos cantos, sentados nas bagagens. Macedo
não tinha dúvida. Iríamos, claro. Dizia isso tranqüilo,
indiferente à miserável perspectiva, arrumando os troços
com pachorra, a concentrar o engenho no problema de armar a rede. Trouxeram-nos
esteiras e lençóis. Bem. Davam-nos agasalhos, a situação
era melhor que nas prisões das galerias, molhadas, cheias, a gente
mal conseguindo estirar-se no espaço exíguo.

Despi-me, busquei nos muros um prego que me servisse de cabide; em falta
disto, dobrei a roupa, coloquei-a em cima do chapéu de palha. Retirei
da maleta o pijama, vesti-me, arriei na esteira a carcaça, junto à
porta, Macedo abriu o saco de lona e ofereceu-me um travesseiro. Homem arrumado
e previdente. Com o saco de lona parecia fazer mágicas: extraía
dele os objetos necessários e requintes de luxo, até fronhas.
Agora exteriorizava contentamento: achara meio de pendurar a rede entre duas
grades. Sentou-se nela e acendeu o cachimbo. Tentei repousar, mas um burburinho
confuso e as idéias fragmentárias impediam-me o sono. Impossível
conservar-me em posição horizontal. Ergui o espinhaço,
encostei-me à parede, entretive-me a examinar os companheiros; contei-os
várias vezes, sem atinar com o número certo; mexiam-se demais,
entregues à arrumação, e atrapalhavam-me a contagem.

Findos os arranjos, atenuada a lufa-lufa, convenci-me afinal de que éramos
dezessete pessoas, cinco nordestinos e doze paranaenses. Fixei a atenção
nestes, quase todos rapagões fortes e brancos, já percebidos
vagamente no andar térreo do Pavilhão dos Primários,
envoltos em largos sobretudos espessos. Tinham prosódia esquisita,
e sobrenomes exóticos feriam-me os ouvidos: Petrosky, Prinz, Zoppo,
Garrett, Cabezon. A minoria, vulgar e mais ou menos cabocla, usava designações
caseiras, expressas na fala arrastada, familiar no porão do Manaus,
quatro meses atrás: Guerra, Macedo, João Rocha, José
Gomes.

Entre os sujeitos ali reunidos, atentei num velho encorpado, vermelho, de
óculos, muito sério, visto dias antes na fila, à hora
da bóia. Conversamos essa noite, e descobri que ele se notabilizava
por vários motivos: falava polaco, citava com abundância versículos
da Bíblia e era danadamente reacionário. Precisava desabafar
e segredou-me confidências: fora preso por engano; sim senhor, engano,
calúnia de inimigos. Via em mim uma pessoa de consideração
– e julgava por isso que não iríamos para a Colônia Correcional.
Chamava-se apenas Eusébio. Tinha um cargo público (ou não
tinha: provavelmente o haviam demitido) e era pequeno proprietário.
Em desassossego, evitando convivências prejudiciais, buscava no ambiente
insalubre um homem de posses, conservador, esforçava-se por segurar-se
a ele e tranqüilizar-se. Iriam mandar-nos para a Colônia Correcional?
E porquê? Francamente, seria possível que nos mandassem para
lá? A viagem me parecia certa – e o velho Eusébio desesperava.
Não senhor, grunhia aflito e encatarroado. Não nos fariam semelhante
desacato. Arregalava os olhos, querendo enxergar em mim qualquer coisa além
das aparências, elevar-me e salvar-se: – Uma pessoa de consideração.

Desenganei-o. Conhecendo-me a pobreza, desanimou, sentiu-se desamparado.
Extinta a fugidia importância, em vão buscava em roda um sustentáculo,
o ar de cólica, o sorriso mofino, uma longa tremura a envolver-se no
capote. No descampado social nenhuma saliência. E a criatura infeliz
continuou a chatear-me remoendo o seu caso, arrepiando-se em cochichos por
ver-se misturado a indivíduos suspeitos. Vivera sempre longe de confusões,
gemia fanhoso, terminando os períodos numa interjeição
demorada e asmática – “An!” Explicava-se, defendia-se, pegando-se
à religião, utilizando pedaços do Velho Testamento, como
se isto lhe proporcionasse vantagem. Apesar da minha franqueza, teimava em
não julgar-me inteiramente pobre. E afastou-se rosnando com segurança
fraca: – Uma pessoa de consideração. Acha que mandam? L impossível.
An! Essa despedida não me trouxe o isolamento necessário ao
arranjo das idéias e ao sossego. As idas e vindas no cubículo,
à toa, a ouvir palavras sem nexo, a procura de objetos miúdos
na arrumação da bagagem, a dificuldade em amarrar a gravata
e calçar-me, enfim a mudança de gaiola tinham-me fatigado em
excesso. Que distância havíamos percorrido? Cem metros, duzentos,
no máximo uns trezentos. Isso me parecia uma caminhada extensa, e o
meio novo, as fisionomias indistintas, vozes a confundir-se exigiam-me grande
esforço para simular calma, apreender a significação
de uma pergunta e dar a resposta conveniente. A covardia obtusa do velho Eusébio
causava-me desgosto profundo. Largos dias, talvez meses, as lamúrias
bambas iriam importunar-me, endurecer-me o coração. Nenhuma
simpatia, absoluta ausência de piedade. Receava impacientar-me, suprimir
com raiva as lamentações pegajosas que nos sujavam, lavar-me
delas. Queria dormir, mas sempre estavam a reclamar-me a atenção.
A imobilidade e o silêncio adquiriam de repente enorme valor. Dificuldade
pensar, e obrigavam-me a isto.

Um paranaense loquaz avizinhou-se, entabulando camaradagem fácil,
esteve meia hora a narrar-me as divergências existentes no seu grupo,
intelectuais de um lado, operários de outro, abominando-se ou desprezando-se.
A curiosa revelação desanuviou-me um instante e despertou ligeira
curiosidade. Intelectuais? Que diabo significava isso? Inteirei-me a custo.
Designavam-se desse jeito os indivíduos alheios a qualquer ofício
manual: Herculano, estudante de músculos débeis e rosto enxofrado,
o velho Eusébio, alguns pequenos funcionários de uma estrada
de ferro. Mais essa. Iam forçar-me a conviver, tempo indeterminado,
com pessoas que se justapunham, sem chegar a entender-se. Não me eximiria
de muitos erros: certamente esqueceria as diferenças e a minha linguagem
feriria susceptibilidades.

A fadiga me entorpecia a carne, mas o fervedouro de pensamentos desconexos
não me deixaria repousar. Livre do informante, alonguei-me na esteira,
fechei os olhos, envolvi me no lençol curto demais. Os pés ficaram
descobertos, o ar frio da noite picava-me as orelhas. Encolhi-me, tentei defender-me
das ferroadas penetrantes, vencer os arrepios. A umidade atravessava o tecido
fino, e não havia meio de aquietar-me. Escolhera por desgraça
o pior lugar, junto à grade; um ventinho insinuante e velhaco trazia-me
a garoa de julho. Se o esgotamento não me prendesse, iria alojar-me
noutra parte. Nem me lembrei disso, provavelmente, e na sala não havia
canto disponível.

Descerrando as pálpebras pesadas, inteirava-me de minúcias
que não se articulavam; o conjunto era uma aglomeração
de tipos reconhecíveis um instante e logo a esfumar-se em neblina;
envoltórios de redes e capotes davam-lhes a feição vaga
de fardos instáveis. A fraqueza visual impedia-me identificar as pessoas
mais distantes. Necessário usar óculos quando me soltassem:
à luz escassa dos cubículos, durante alguns meses as letras
haviam dançado no papel. Falas vagarosas me arrastavam de chofre ao
porão do Manaus, e três figuras ressurgiam: João Rocha,
o pequeno dentista Guerra, José Gomes. De que modo iria comportar-se
o pobre Guerra, dias antes acometido por um acesso de terror, a urinar-se
e a tremer, querendo a presença de mamãe? Garrett e Petrosky,
encostados ao muro, estavam silenciosos e carrancudos. Tinham esses nomes,
sem dúvida, mas não consegui saber qual dos dois era Garrett,
qual era Petrosky. Incomodavam-me as frases soltas, para mim vazias como tagarelar
de papagaios. Descobri aos poucos sentido nelas: os operários arredavam
preocupações contando anedotas escabrosas. José Gomes
ria-se demais das próprias histórias, repisando minúcias,
como se desconfiasse da inteligência dos outros. Não alcançando
o resultado previsto, de nenhum modo se alterava: divertia-se imenso com as
narrativas insípidas. A gente do sul procedia de igual maneira, pouco
lhe importando o juízo do auditório. A ausência de espírito,
a monotonia, a pobreza de concepção, a linguagem perra, tudo
indicava falta de exercício mental, insinuava-me cautela, a precisão
de acomodar-me ao conceito simples e direto: um paradoxo ali originaria incompatibilidades
inevitáveis. Desagradável naquele meio o diálogo curto
que tive com um trabalhador. O homem falava-me nas vantagens da autocrítica.
E eu, sem refletir: – “Exato. Devo conhecer os meus defeitos, para conservá-los
todos com muito cuidado.” Surpresa viva, interjeições –
e este desgraçado remate incompreensível ao interlocutor honesto:
– “Claro. Se os meus defeitos se sumirem, deixarei de ser eu, mudar-me-ei
noutro. Quero guardá-los, não perder um.” Opiniões
desse gênero alarmariam as criaturas singelas ocupadas em remoer facécias
estultas.

Súbito uma pilhéria cheia de sal arrancou-me uma gargalhada,
abriu-me os olhos, virou-me na esteira, ergueu-me sobre o cotovelo. Fora Cabezon
que me provocara esses movimentos, o indivíduo a quem davam tal nome,
com certeza um dos intelectuais mencionados pouco antes, amanuense oficial
administrativo, ou funcionário pequeno de uma estrada de ferro. A situação
dele era mais ou menos igual à minha. Revelava-se num trocadilho obsceno,
mas isto não causou grande efeito na assistência. Os casos insulsos
continuaram. O velho Eusébio tentava levar a conversa para assuntos
graves. E Macedo, balançando-se na rede, cachimbava e sorria.

2

NO DIA seguinte pela manhã, Herculano trepou-se a uma janela e, agarrado
aos varões, ficou lá de poleiro como papagaio, buscando entender-se
com as outras celas. Gritos nos deram a notícia de que uma turma viera
dias antes da Colônia e estava ali perto. Desejei saber os nomes dos
recém-chegados; como a voz fraca me impedia comunicação,
o estudante amarelo encarregou-se de transmitir a pergunta. Berraram-nos uma
lista, abafada e incompleta; algumas pessoas reduziam-se a sílabas
escassas, não havia meio de reconhecê-las; quatro ou cinco surgiam
claramente, quase todas enviadas na primeira leva, naquela noite em que Desidério
levantava o braço com raiva, entortando mais o bugalho vesgo, e Tamanduá
se empavonava, metido no poncho vermelho.

Trouxeram-nos o café, muito ralo, e um pão sem manteiga. Aí
notaríamos uma advertência, se ela fosse precisa. O pão
era exatamente igual ao fornecido no Pavilhão dos Primários,
mas tiravam-nos o pouco de manteiga rançosa, obrigatória lá.
Com certeza não procediam assim por economia: a supressão visava
a um fim, aliava-se às esteiras, ao ajuntamento em local exíguo,
aos lençóis curtos e finos em tempo frio, a indicar-nos uma
degradação. Iam impor-nos outras mudanças, apagar de
chofre os restos de conforto ainda conservados na véspera e forçar-nos
a contrair novos hábitos. Esses choques nos perturbam em demasia, e
o pior é não sabermos até onde nos levarão: a
instabilidade nos impede entrever qualquer limite.

Mandei comprar pelo faxina um litro de leite. Dias compridos o meu alimento
seria esse litro de leite, o pão e alguns canecos da lavagem turva,
de gosto adocicado, que eu insistia em beber, esquecendo o aviso misterioso
de um preso velho e experiente. Em geral nos davam essa refeição
com a porta fechada: o bico do bule se encostava a uma travessa, estirávamos
os canecos e recebíamos os pães através dos ferros. Nos
cubículos era assim que faziam. Mas naquela manhã destrancaram
inopinadamente a grade, os faxinas entraram com o saco de pães e o
vaso enorme de folha, e o guarda nos permitiu andar no pátio.

Engoli o café, abalamos todos em busca do Pavilhão onde se
aboletavam refugos da Colônia. Encontrei um bando a comprimir-se numa
abertura estreita, e nos espaços que havia entre os corpos surgiam
rostos magros e desbotados. Outras fileiras deviam empurrar-se, invisíveis,
pois do fundo, escuro, fumacento e fuliginoso, partiam vozes percebidas em
qualquer parte. Os homens da frente, quase nus, cabeças lisas, tinham
muita sujeira, muita amarelidão, órbitas cavadas, bochechas
murchas. Deixavam provavelmente a enfermaria. A primeira vista não
reconheci nenhum. Quando principiaram a falar, depressa, em desordem, como
se o tempo não desse para todos, fui notando aqui e ali sinais guardados
inconscientemente. Sorriam, descobrindo as gengivas pálidas. O esqueleto
que o moço da rouparia tinha no punho voltou-me ao espírito.
Os ácidos não haviam desfeito a medonha tatuagem. Por cima da
cicatriz que repuxava a pele e se estendia num desenho róseo, sobressaíam
costelas, vértebras, o riso da caveira. As figuras estranhas apinhadas
ali riam. Riam para mim, como se eu fosse uma carcaça também.
Quantos meses fazia que tinham vivido comigo no Pavilhão dos Primários?
Dois meses. Era, dois meses, pouco mais ou menos. E estavam assim. Talvez
ignorassem que estavam assim. Estremeci. Não me acharia daquele jeito?
Olhei o pijama curto e rasgado. Ultimamente dormia pouco, alimentava-me com
dificuldade. Extingui a comparação desagradável. Farrapos.
Regressavam da Colônia, farrapos. Iriam reconstituir-se, renascer, mas
ali eram farrapos. Examinei-os. Bem. Aquele devia ser o Newton Freitas, o
camarada alegre e ruidoso que no Pavilhão soltava risadas enormes,
com ou sem propósito. Era ele, pensei descobrindo nos ossos do rosto
lívido sinais do antigo Newton. Sem dúvida, lá vinha
a gargalhada, uma fria gargalhada sem ânimo. E o sujeito baixo, de cuecas,
barbudo em excesso, a mexer as mandíbulas com jeito de caititu? Seria
o Pessoa? Com os diabos! Anastácio Pessoa, tipo neutro, alheio à
questão social, posto em liberdade, supúnhamos. Inofensivo e
discreto. – Você também, Pessoa? Recordei-me dele, vi-o na fila,
manejando um romance inglês, à espera da comida, num apuro escandaloso.
Não se decidia a vestir pijama, nivelar-se aos outros, pois ia de morar
pouco entre nós. Um equívoco, tinham-no agarrado por engano.
Com certeza iam chamá-lo, explicar-se, mandá-lo embora, com
desculpas. E nesta convicção isolava-se, de meias, sapatos lustrosos,
calça de casimira, suspensório, camisa de seda e gravata. Havia
de ficar ali sem saber porquê? Saíra – e por isto recebera abraços
e parabéns. Agora voltava da Colônia Correcional sujo, magro,
hirsuto, de cueca e tamancos. No risinho insignificante e nos modos encolhidos
logo distingui Bagé. O nome dele me surgira pela primeira vez na galeria.
Distraía-me a olhar as paredes e o teto, um dos poucos meios de encher
o tempo ali. As paredes estavam cobertas de inscrições e desenhos;
no teto oscilavam penduricalhos feitos com essas lâminas finas de metal
usadas em carteiras de cigarros. No meio dos letreiros, alto, onde não
chegava braço de homem, uma lista de presos, em tinta azul. Embaixo,
uma data e o motivo da prisão. Alguns indivíduos expostos no
rol tinham-me aparecido mais tarde. Numerosas voltas e viravoltas arbitrárias
– e diante de nós se achavam dois: Bagé e Medina. Também
reconheci Agrícola Baptista, o Tamanduá, que, em briga da Coluna
Prestes, recebera uma bala na perna e claudicava. Um guarda veio abrir a porta,
reunimo-nos à sombra de uma árvore no pátio. E as notícias
choveram, em pedaços, de cambulhada.

– Bichos, exclamou Tamanduá. Vivemos como bichos.

Um Tamanduá diferente, sórdido e escuro, sem a cabeleira arrepiada.
E o poncho, que fim levara o poncho vermelho, afrontoso e ostensivo como bandeira
de guerra? – Num curral de arame farpado, como bichos, prosseguiu Tamanduá.

Disse mais coisas a respeito de latrinas, banheiros, disenteria e falta
de papel, mas o rebanho de criaturas humanas em curral de arame farpado buliu
comigo e afastou o resto da exposição. As minúcias embaralhavam-se,
perdiam-se.

– Para onde vão mandar vocês? perguntou Medina. Para a Colônia,
evidentemente; isto me parecia claro. Medina espalhou a vista em redor, analisou-me
a cara, refletiu e moveu a cabeça discordando: não nos meteriam
na Colônia. Aborreci-me. Quereria tapear-nos com emolientes? De nenhum
modo; interpretei mal as disposições do moço: não
nos enviariam à ilha Grande, infelizmente. Procurou exibir-me a vantagem
de permanecer lá umas semanas.

– Não digo meses, que você não agüentaria. Algumas
semanas apenas. Muito instrutivo.

Era um rapaz frio, risonho, desdentado. No Pavilhão dos Primários
tinha uma cabeleira vasta e barba longa, mas isto desaparecera. A boca murcha
dava-lhe um ar insignificante e avelhantado.

– Boa experiência, creia; material abundante. Seria magnífico
você estudar aquilo.

Em seguida à estridência e aos arrepios de Tamanduá,
não me entusiasmei com as palavras de Medina; achei-as realmente absurdas:
se resolvessem matar-me, a abundância de material seria inútil.
Newton Freitas anunciou o propósito de narrar em livro a viagem no
porão do Campos. Excelente idéia. Eu é que não
tinha desejo nenhum de escrever. O guarda surgiu com o molho de chaves. Fizemos
as despedidas e novamente nos trancaram.

3

AGORA na prisão havia mais espaço: deixaram aberta uma grade
e nosso mundo se estendeu alguns metros, pudemos andar na sala vizinha. Estive
ali parte do dia, a contar os passos de uma a outra parede, a imaginação
presa no curral de arame, as palavras insensatas de Medina fervilhando-me
na cabeça. Esforçava-me por varrer essas coisas aflitivas, um
minuto conseguia amortecê-las, embalar-me numa vaga impressão
de esquecimento; logo se reavivavam, eliminando recordações,
a insinuar-se nos fatos da vida nova. Caso singular: a desgraçada perspectiva
me dava prazer. Não era talvez isso, pois ao mesmo tempo sentia o coração
desmaiar numa espécie de angústia, e alarmava-me servir de campo
ao medonho jogo de emoções incompatíveis. As notícias
me arrefeciam, animavam terrores latentes, e em vão queria livrar-me
de uma horrível curiosidade malsã. Na verdade Medina tinha razão:
pus-me a afirmar isto sabendo que afirmava uma estupidez: as minhas observações
no lugar infame não valeriam nada. Mas a sujeira imensa, a disenteria,
a falta de água, um milheiro de homens a apertar-se num curral de arame
não me deixavam sossegar. Aquilo merecia ser visto, pelo menos serviria
para indicar a nossa resistência, de algum modo fortalecer-nos. Havia
nesse desejo mórbido quase um desafio aos maus tratos, às humilhações,
e se de repente nos largassem na rua, nem sei se me consideraria em liberdade
ou vítima de um logro.

O velho Eusébio veio trazer-me a sua camaradagem mofina, entrou a
passear comigo, a voz bamba a sumir-se na pergunta ansiosa mastigada na véspera.
Estivera no pátio, debaixo da árvore, os olhos e os ouvidos
atentos, e os molambos de esperança guardados preciosamente iam-se
esgarçando.

– Nós vão mandar para a Colônia? Será possível?
Novamente a confusão pronominal, observada no Pavilhão, me chocou;
não havia de acostumar-me ao diabo da sintaxe encrencada. Isso jugava-se
aos receios e à moleza da criatura, aos gestos ambíguos, às
citações do Velho Testamento, e uma forte repulsa me enchia
o coração. Impacientei-me, acho que fui grosseiro; nenhuma piedade
me levava a minorar os sustos do menino grisalho. Respondi com monossílabos
ásperos, continuando a absorver-me nas impressões de Tamanduá,
na extravagância de Medina. Restar-me-iam forças para agüentar-me
na piolheira infame? Essa pergunta já me viera ao pensamento ao aniquilar-me
no porão do Manaus, respirando a custo, andando sobre porcarias, meio
desfeito em suor no calor de fornalha. Na primeira noite julgara-me perto
de enlouquecer; depois me habituara: uma semana a ver as algas pela vigia,
trepado numa costela do cavername; a fumar na rede presa à boca da
escotilha; a redigir notas a lápis no camarote do padeiro. A gente
se acostuma depressa às mais inesperadas situações. O
que me alarmava era ter vivido muitos dias em jejum. Provavelmente ia agora
suceder o mesmo; enjôo à comida, a língua seca, os beiços
a rachar; o estômago já se entorpecia, como a bordo. Certamente
me acabaria de inanição.

– Sim. É. Claro. O senhor tem dúvida? Essas concisões
faziam brechas na arrepiada lengalenga do paranaense, queriam destruí-Ia,
mas o esguicho de lamúrias não cessava, atingia-me, dissolvendo-me
a estranha demência. Idiota. Nenhum sujeito normal deseja rebaixar-se
e arriscar-se a morrer de fome. Que me importavam as figuras tristes consumidas
no curral de arame? Preferível não conhecê-las. Para quê?
Ladrões, vagabundos, malandros. Tinha-me arrastado mais de quarenta
anos longe deles, sem cogitar da existência deles, e surgia-me de chofre
a necessidade besta de uma aproximação inútil. Idiota.
Injuriava-me por dentro, mas a zanga exterior convergia para o velho Eusébio,
revelada nas sílabas cortantes:

— Isso. Pois não. Claro, claro. Todos. Não está vendo?
Receava exceder-me, engolia impropérios. Afastei-me, a arrasada personagem
me seguiu ronronando o seu caso, inocentando-se. Desculpava-se usando o plural,
envolvendo-me na justificação. Havia qualquer suspeita contra
nós? Não havia. Tínhamos entrado em desordem? Não
tínhamos. Éramos inimigos de barulhos. E então? Porque
estávamos ali? Hem? E porque essa história de Colônia
Correcional? Os lamentos enfureciam-me, atazanava-me por evitá-los;
a maneira hostil e as passada largas frustravam-se: em qualquer parte achava-se
ao pé de mim a sombra queixosa. Essa convivência de naturezas
inconciliáveis, prolongando-se, chega a ser tortura, e explica brutalidades,
rompantes de que não nos julgamos capazes e nos envergonham.

Afinal, depois de muitos ziguezagues nas duas salas, refugiei-me num vão
de porta, busquei distrair-me olhando o pátio, jogando miolo de pão
às aves residentes na árvore próxima. Eram pardais sem
conta e devoravam tudo com rapidez enorme. Algum tempo isolei-me; o rumor
das asas, os chilros e o verde-claro dos ramos na manhã luminosa acalmaram-me.
Vencidas as idéias malucas, resolvi descansar na esteira, decifrar
a conversa dos operários, mas não consigo lembrar-me do que
eles diziam. Os pardais tinham-me dado uma tranqüilidade aparente. Levantava-me,
deitava-me, bebia goles de leite e canecas do pretume doce e repugnante que
o faxina vendia à grade. O futuro já não me inquietava;
esvaíam-se as tremuras do velho Eusébio, o desconchavo de Mediria,
e a viagem para a Colônia deixava-me indiferente; impacientava-me, porém,
ficar sentado, imóvel, na incerteza. Difícil desenovelar tais
incongruências. Experimentamos isto, suponho: os acontecimentos de amanhã
não nos interessam, são como se se referissem a outra pessoa;
hoje não encontramos paz, as horas longas enchem-se de fatos desagradáveis,
necessitamos fingir paciência e isto cada vez mais nos enerva.

Herculano, em rápida arenga, despertou-me a atenção.
Arrolou as nossas dificuldades, exprimiu a conveniência de mutuarmos
auxílio e acabou sugerindo que esvaziássemos os bolsos, contássemos
o dinheiro e o dividíssemos eqüitativamente. A inesperada proposta
não causou entusiasmo. O velho Eusébio franziu o nariz e arredou-se;
os homens da estrada de ferro e os operários fizeram-se desentendidos;
os nordestinos encolheram-se reprovando. Ante a negativa fria e silenciosa,
chamei de parte o estudante: – Ó Herculano, se não é
indiscrição, quanto é que você possui? – Eu? Nada,
cochichou o rapaz. Tinha vinte mil-réis, que perdi no jogo.

Diabo! Um truque infantil. E eu havia ganho a pobre cédula do companheiro,
deixando-o mais fraco e mais pálido. – Porque não me disse,
homem? Dei-lhe esse prejuízo, sem querer.

Abri o porta-níqueis, retirei uma das poucas notas lá escondidas:
– É uma restituição. Talvez seja a mesma que recebi naquela
noite.

Aliviada a consciência, pus em ordem os meus troços, coloquei-os
junto à esteira, ao alcance do braço, o chapéu em cima
da valise, a roupa dobrada em cima do chapéu. As notas redigidas em
vários meses davam-me receio. Apesar dos longos intervalos de marasmo
e preguiça, alargavam-se em quarenta ou cinqüenta páginas
cobertas de letra miúda, as linhas tão próximas que as
emendas se tornavam impossíveis. Ocultavam-se entre cuecas e lenços,
mas com certeza não conseguiriam entrar na Colônia. Não
cabiam dentro dos sapatos; imaginei guardá-las por baixo da camisa,
enfaixar as pernas com elas; necessitava barbante para amarrá-las.
Escapariam à revista? Os diálogos em roda iam-me descobrindo
alguns indivíduos. Petrosky era o sujeito louro, grande, forte, de
rosto severo. O moço de cabeça redonda e fala doce e engrolada
chamava-se Zoppo. Como se arranjaria na viagem desgraçada o pequeno
dentista Guerra? Um dia caíra da cama, esperneara gritando por mamãe.
Coitado. Iam arrasá-lo. Agora havia sossego no pátio; o calor
e a claridade recolhiam entre ás folhas os pássaros mudos.

Um guarda de olhar manhoso destrancou a porta e os faxinas entraram com
o almoço Fugi, um aperto na garganta, examinei o exterior deserto,
para não ver a comida, não podia evitar o cheiro dela, e a náusea
me atormentava. Sensação igual à experimentada meses
atrás, no porão do Manaus. A língua seca, os beiços
iam rachar-se, a ponta do cigarro se colaria à pele sangrenta. Agachados
nas esteiras, diversos homens sentiam prazer em mastigar, e o apetite deles
me causava uma estranha indignação. O som das colheres nas marmitas
feria-me os ouvidos, era insuportável.

4

PASSOU-SE o dia, outros dias se passaram, quatro ou cinco, talvez mais. Uma
notícia entrou a circular: embarcaríamos para o sul. Os paranaenses,
em maioria, admitiram logo o boato, sem procurar saber quem o trouxera. Ninguém,
provavelmente; originara-se ali, mas o curso, a repetição, complementos
anônimos, davam-lhe prestígio, mudavam-no quase em certeza, e
Petrosky, Zoppo, Cabezon, Garrett esperavam ler num jornal impossível
a passagem de um navio para o sul. Guerra, José Gomes e Rocha tinham
a certeza de que viajaríamos para o norte. Esforçava-me por
fechar os ouvidos e isolar-me, e não conseguia deixar de contaminar-me,
ver nos desejos ambientes realidades possíveis, aceitar a informação
chegada a nós sem veículo, atravessando muros. Essa credulidade
me desgostava; busquei afastá-la pensando em Sebastião Félix,
mudo e sombrio, ausente do mundo, em contato com os espíritos num cubículo
do Pavilhão dos Primários. Deixava-me levar, contra vontade;
as fisionomias mostravam convicção, e por minutos incorporava-me
a um dos grupos. Em seguida reagia, certamente por não querer deslocar-me
para cima ou para baixo. Não me tentava o regresso à minha terra.
E que diabo iria fazer no Paraná? Livre do contágio, Macedo
sorria e cachimbava na rede, falava sobre a permanência na Colônia,
sereno, como se isto figurasse nos seus planos. Continuava a servir-me do
travesseiro dele, macio, de penas, mas tão miúdo que, para erguer
a cabeça, tive de colocá-lo em cima da valise. A calça
e o paletó, dobrados, formando um volume pequeno, ficaram sobre o chapéu
de palha, junto à parede. Não me incomodava a aspereza da esteira,
mas, na friagem da noite, enrolando-me no lençol curto, adormecia,
acordava, as orelhas e as mãos geladas. Arrepios, desânimo na
carne. A apatia sexual, notada meses atrás, depois esquecida, novamente
me causava surpresa. Tentei vencê-la enchendo as horas de insônia
com cenas lúbricas; isto se convertia depressa num exercício
mental penoso, e era como se me faltassem partes do corpo. A lembrança
das mulheres não me dava nenhum prazer. Porque me havia aparecido aquilo
de repente? Chegara-me a impotência completa. Bem; se fosse definitiva,
não valia a pena mortificar-me; iria talvez eximir-me de excessivos
tormentos, da horrível necessidade insatisfeita, que me perturbava
o trabalho. Iria comportar-me direito, como um frade, relacionar idéias
fugitivas, obrigá-las à disciplina; as histórias se arrumariam
no papel sem as freqüentes suspensões inevitáveis. Para
ser franco, esse entorpecimento me agradou; se não fosse ele, a reclusão
demorada se tornaria dolorosa em extremo. E continuei a beber café,
muitas canecas de café, não percebendo nisto sombra de inconveniente.

Das funções orgânicas permitiam-nos apenas assimilar,
desassimilar. Abundante e ruim, a comida nos chegava em marmitas de folha
amolgada, a empanturrar um caixão que varais ladeavam. Agarrando esses
apêndices, os faxinas do transporte pareciam animais atrelados a uma
liteira. Grandes nacos de carne, farinha de mandioca e arroz, de mistura nas
gamelas sujas, causavam repugnância. Com o material existente ali um
cozinheiro teria podido sem esforço arranjar pratos regulares. Desperdício
e desleixo. Convidavam-me em redor, insistiam, afirmando que a bóia
não tinha mau gosto, mas a minha fraqueza arrepiada contentava-se com
o pão seco oferecido pelo governo e um litro de leite comprado por
mim. Ao cabo da refeição gorda, os homens se estiravam nas redes,
nos capotes, ressonavam pesada sesta. A um canto, à esquerda, não
longe da porta, duas paredes baixas angulavam, formando um compartimento exíguo,
que escondia a latrina e uma torneira. A carência de pia tornava as
mais simples necessidades de higiene muito difíceis.

Uma tarde, ao cair da noite, subitamente nos achamos em situação
embaraçosa; diante do imprevisto, embuchamos, a surpresa nos cortou
a fala e escureceu o espírito. Como de ordinário, os meus novos
amigos haviam devorado o almoço, lavado as mãos no esguicho
mesquinho, repousado; findos os cochilos, entregaram-se aos exames das probabilidades,
ao corte das unhas, à arrumação e desarrumação
das bagagens. Quando o jantar veio, ainda estavam fartos. Alguns olhavam a
comida com indiferença e afastavam-se bocejando; outros pegaram as
marmitas e depressa as largaram. Inapetência contagiosa, recusa geral.
Os faxinas jungiram-se aos varais, o caixão desapareceu, a chave tilintou
na fechadura. Passou-se meia hora, e o guarda velho de cara manhosa surgiu
com uma indagação desconcertante. Porque havíamos devolvido
o rancho? O diretor queria saber se estávamos sem fome ou se se tratava
de insurreição. Longos minutos ficamos desorientados. Espantava-me
ver um caso tão insignificante engrossar, exigir sindicância.
Ninguém tencionara rebelar-se, era evidente, mas todos se fechavam,
com receio de confessar isto, de qualquer forma revelar covardia. Chateavam-se,
resmungavam. Para o diabo. Não se explicariam, não dariam a
impressão de recuar; dispunham-se a assumir responsabilidade por uma
falta inexistente. Isso manifestava-se em pedaços de frases, em gestos
desabridos; e havia também um mudo assombro, dificuldade em compreender
a exigência impertinente. O guarda insistia na pergunta, mas falava
a dezessete indivíduos; e nenhum se julgava na obrigação
de responder. Ouvido em particular, cada homem diria sem esforço a
verdade: ausência de apetite, apenas. No conjunto a confissão
esmorecia, quase se desagregava, era difícil alguém arriscar-se
à iniciativa de expor intuitos alheios. Agüentaríamos as
conseqüências, iam mandar-nos para as galerias, provavelmente.
Em situação normal temíamos isso; agora se atenuava o
perigo, dividido por muitas pessoas. Com certeza ainda pensávamos nele;
mais grave, porém, seria uma afirmação irrefletida, em
desacordo talvez com os sentimentos do grupo. Com as melhores intenções,
engendramos ali dentro incompatibilidades insolúveis, em vão
tentamos explicar-nos, e isto é pior que todos os vexames causados
pela polícia. E temeroso arvorar-se um homem, sem mandato, em representante
de uma sociedade fluida, a vacilar entre opiniões e interesses opostos,
ora pelo pés, ora pela cabeça. Um momento julgamos interpretá-la,
decidimos por conta própria enfeixar as aspirações coletivas,
e sucede esvaírem-se os desencontros, uma súbita unanimidade
surgir contra nós; imaginamos ser úteis – e somos imprudentes.

Não refleti nisso. Indispensável uma consulta rápida,
supus. O guarda, amolado, esperava a resposta, uma sílaba apenas. Sim
ou não? Houvera bagunça, intuito subversivo? Se a questão
se formulasse de outro modo, permitisse delonga, recursos, os meus companheiros
não se engasgariam, a sílaba atravessada na garganta, como um
osso. Mas o diretor exigia uma dificuldade: sim ou não? Achamos resistência,
o guarda se dispunha a retirar-se.

– Um instante.

Veio-me a tentação de lançar-me ao jogo, exatamente
como quando, no bacará, arrojava todas as fichas numa cartada: – Vamos
resolver isto. Vocês estavam no propósito de esculhambar a administração?
Se estavam, porque havemos de calar-nos? É arriar a trouxa e esperar.
Se não estavam, parece bobagem mostrarmos uma valentia que não
tivemos. Penso haver falado pouco mais ou menos assim. Em redor me afirmaram
disposições pacíficas. Bem. E dirigi-me ao funcionário
de rosto manhoso: – Diga ao diretor que não tencionamos fazer revolução
aqui dentro. O jantar voltou porque era demais. É impossível,
deitados, sem exercício, digerirmos tanta carne, tanta farinha: não
temos estômagos de jibóia. Ignoro se a comida é ruim,
nunca toquei nela, a minha parte sempre foi devolvida intacta. Não
é protesto, é que não posso engolir isso.

A intervenção produziu bom efeito. Arrancando exíguas
palavras, limitara-me ao essencial: os companheiros conservavam-se dignos,
um diretor invisível recebia explicação razoável.
Depois refleti na inquirição. Iam tratar-nos com dureza, submeter-nos
a uma justiça diversa da usada no Pavilhão dos Primários.
Lá rebentáramos a louça toda, e ninguém se lembrara
de indagar motivos; em conseqüência tínhamos recebido talheres
e pratos novos. Agora tencionavam descobrir malevolência em ninharias
Pesos e medidas diferentes. Queriam talvez desforrar-se, obrigar-nos a ajustar
contas com dois meses de atraso. Na verdade os paranaenses estavam alheios
à bagunça. Mas isso não tinha importância. Rigor
para todos.

5

UMA novidade nos chegou, retalhos de novidade; não houve meio de cosê-los.
Ouvimos um barulho grande, vozeria para os lados do Pavilhão dos Primários,
e o faxina preto nos cochichou que a polícia especial tinha aparecido
lá e quebrado muita cabeça. Porquê? O informante erguia
os ombros; tinham-lhe dito apenas aquilo: várias cabeças partidas.
Como o rumor distante se prolongasse, apertei o guarda com perguntas vãs:
o patife baixava o rosto, mordia os beiços, com ar de inocência
muito safado. Não sabia. Por detrás dele, o negro arredondava
o bagulho cor de leite, fazia caretas, negando a ingenuidade sorna. O grupo
era burlesco e irritante. Embora não houvesse dúvida sobre as
escapatórias do homem, os gestos simiescos e a zombaria silenciosa
às costas dele estorvavam-nos a possibilidade vaga de por um instante
enganar-nos.

Desordem no Pavilhão, gritos e pancadaria; certamente Agildo se comprometera
elevando no fuzuê a voz fina e o gesto macio de gato. Não me
podiam dar uma notícia, dizer ao menos se houvera transferência?
Nesse caso, os estrangeiros iriam roer o osso mais duro: Ghioldi, Sérgio
e Snaider gramariam tormentos físicos e morais; a coleção
de selos de Birinyi desapareceria, e o pobre homem, desesperado, tentaria
de novo abrir as artérias. Onde estavam Ghioldi, Sérgio, Benjamin
Snaider e Valdemar Birinyi? O guarda sacudia a cabeça, bonachão,
na maior ignorância deste mundo; não trabalhava por aquelas bandas,
e, no meio de tantos presos, nunca ouvira os nomes das quatro pessoas que
me interessavam. Esses miseráveis segredos nos arrasam, nos deixam
em pandarecos. Vemos um sujeito sem as unhas dos pés, sabemos que elas
foram arrancadas a torquês, e a nossa curiosidade não vai além;
os sofrimentos findaram, as unhas renascerão, a memória da vítima
se embotou; horrível é imaginarmos a redução de
uma criatura com tenazes quando pensamos nela, exatamente quando pensamos
nela. A limitação profissional de um guarda e a bisbilhotice
vaga de um faxina levam-nos a criar medonhas realidades; as imagens surgem
com vida intensa e em vão tentamos afastá-las: vemos perfeitamente
dorsos lanhados, carne sangrenta, equimoses vermelhas, azuis, pretas. Essas
coisas, percebidas de relance numa porta de cubículo, avultam em demasia
quando se ausentam, e é horrível a expressão de um rosto
meio esquecido, num instante recomposto. Palavras obliteradas se renovam,
terrivelmente claras. Um berro nos chega aos ouvidos: – “Polícia.”
E uma voz trêmula desmaia: – “Não agüento mais. Vão
matar-me.” Foram esses, creio, os piores momentos que vivi no Pavilhão
dos Militares, agachado na esteira ou refugiando-me perto da grade, olhando
o vôo dos pardais. Realmente nunca me supus arriscado aos lanhos, a
sapecar-me no fogo do maçarico; achava-me livre disso, estupidamente
livre, até rebentando a louça do governo, por insinuação
de Agildo. No íntimo devia julgar-me uma espécie de Anastácio
Pessoa, pequenino e invulnerável.

A desgraça era indeterminada, uma desgraça fluida e abstrata,
influenza sentimental. Essa impossibilidade de isolamento, a obrigação
de sentir a miséria alheia, é imposta lá dentro. Inútil
espalmar as mãos nas orelhas: o chilro das aves próximas não
abafa o alarido contínuo. Além dos gorjeios, destacavam-se,
nos dois ou três dias de celeuma, as conversas de Zoppo e as cantigas
de Herculano. Zoppo era excelente camarada, ingênuo, simples, uma criança.
Falou-me de parentes revolucionários perseguidos pelo fascismo e tentou
ensinar-me a extração do ouro nas minas. ótimo tipo.
A cara redonda iluminava-se, a voz doce, lenta, engrolada, narrava projetos
de mineração e os tios que Mussolini prendeu e matou.

Os cantos me enjoavam. Ao chegar ao Pavilhão dos Primários,
ainda sentia o gosto do café torpe bebido na galeria, tinha debaixo
dos pés a oscilação das pranchas do Manaus, e o Hino
do Brasileiro Pobre me endireitara o espinhaço derreado. Essa composição,
que os jornais da polícia confundiam de propósito com a Internacional,
dera-me alguma confiança em meu país chinfrim. Ou talvez a confiança
fosse em mim mesmo. De fato precisava dela: uma semana de jejum, os beiços
a sangrar, o interior em cacos, a hemorragia súbita. O Hino do Brasileiro
Pobre me servira bastante. A correção de alguns versos maus
fizera dele coisa menos ordinária que a arranjada para imbecilizar
a infância nas escolas. As repetições me haviam fatigado
e logo exasperado. Amolava-me sobretudo este pedaço, anterior à
emenda: “Brasil, que lembra o fogo e lembra a árvore.” Altas
vozes em prisão vizinha: um infeliz a pedir água. Os berros
e o hiato roubavam-me o sono. Todos os dias, à mesma hora, ecoava a
insipidez morna das canções, alternando-se a marchas de carnaval,
sambas, e isto era uma espécie de morfina, afastava-nos do espírito
a viagem provável à Colônia. Vinha o silêncio, findava
a anestesia, chegava-nos a depressão.

Agora não nos podíamos iludir: receios esparsos juntavam-se,
engrossavam, e debalde nos esforçaríamos por amortecê-los.
Contudo Herculano trepava à janela, segurava-se às traves de
ferro e ordenava que todos cantassem. Donde lhe vinha aquela autoridade? O
velho Eusébio fungava, ia encolher-se na outra sala. Insensíveis
à exigência ruidosa, nem nos mexíamos nas esteiras, quase
todos macambúzios, alguns a expandir-se em conjeturas desagradáveis.
O tumulto não findava no Pavilhão dos Primários. Durante
um minuto era balbúrdia enorme; em seguida esmorecia, ficava um rumor
surdo: com certeza havia gente escalada para deitar lenha na fogueira sonora,
não deixá-la apagar-se. Que estaria sucedendo? Herculano deixava
a janela, indignado, como se assistisse a uma deserção. O canto
devia ter para ele a importância de um rito, e a nossa indiferença
o molestava.

6

DESPERTARAM-NOS antes de amanhecer, ordenaram que nos vestíssemos
sem rumor. Lavagem precipitada na torneira, rápida mudança de
roupa, leve tilintar de chaves, um sujeito invisível à porta,
a exigir pressa. Findamos os arranjos, tomamos as bagagens, saímos.
Escuridão lá fora, com certeza o dia estava longe, os pardais
ainda não tinham acordado. Movemo-nos algum tempo entre as árvores,
deixamos a prisão.

Um tintureiro nos aguardava na rua, abriu-se para receber-nos. Ignoro como
entrei, acho que subi por uma pequena escada. Provavelmente com receio instintivo
de maus tratos, empurrões, muitas vezes referidos, mergulhei rápido
na abertura, à traseira do veículo, se não me engano.
Outros me haviam precedido, e no exíguo espaço não descobri
meio de acomodar-me. Arriei sentado não sei onde, em posição
má, sem poder virar-me. Um objeto duro, mala ou fardo, esmagava-me
as coxas e um corpo me tombava, pesado, no ombro direito Jogam-se ali homens
e coisas, de mistura, e não indagam se o carro tem capacidade bastante
para carga; depois batem a porta. Se alguém ficar com a perna levantada,
viaja equilibrando-se num pe e escorando-se no vizinho. Provavelmente o sujeito
que me caía por cima do ombro estava assim, uma perna no ar, buscando
apoio, sacudindo-se, mal arrumado naquela espécie de lata de conserva.
Se houvessem permitido que nos ajeitássemos, acharíamos talvez
lugar para redes e sacos. Mas com semelhante azáfama, afundáramos
à toa no buraco sombrio, éramos uma confusão de membros
e pacotes. Em vão nos esforçaríamos por endireitar-nos.
Aliás, diante de nossas preocupações, a imensa trapalhada
valia pouco. Senti uma dor aguda no baixo-ventre. Uma operação
anos atrás, o corte de peças necessárias, demora no hospital
– e, em conseqüência, a perna a fazer-me pirraças. Largo
tempo a claudicar, um aprumo difícil. Novamente me desarranjara na
cadeia: vinham-me repuxões na carne doída, arrastava-me a cambalear,
e os dias longos no Pavilhão dos Militares, a ausência de comida
e a friagem do chão tinham-me arrasado. O diabo do volume saltava sobre
a coxa doente, chocava-me na barriga, exatamente na região aberta pelos
médicos. Cercavam-nos trevas cheias de manchas luminosas. As paredes
do carro eram crivadas de furos redondos, as luzes da rua entravam por eles,
corriam em dança louca, punham, traços vivos e inconstantes
nas figuras em redor, e isto me dava a impressão de ver gente incompleta,
pedaços humanos, olhos, bocas, orelhas, a aparecer e desaparecer continuadamente.
Palavras soltas indicavam que alguns tipos se orientavam chegando-se aos buracos
e ainda queriam enganar-se examinando o exterior: imaginavam pisar num cais,
embarcar em navio para longe, muito longe, da Colônia Correcional. Essas
fantasias não me pareceram absurdas, teimamos em pegar-nos a ilusões,
sabendo perfeitamente que eram ilusões. Virei-me a custo, e as marteladas
no pé da barriga cessaram. Consegui levantar-me, romper a massa compacta,
avizinhar-me dos orifícios, enxergar uma esteira de asfalto molhado.
Nesse instante um prazer inexplicável e uma idéia esquisita
me assaltaram. Devia ser delírio, mas depois esse pensamento doido
me importunou com freqüência. Tentava libertar-me, vencer o despropósito,
horrorizava-me sentir prazer em tal situação, mas o asfalto
molhado e os farrapos de luz me fascinavam. Quando me decidisse a escrever,
em futuro remoto, produziriam bom efeito numa página. Como nos entram
na cabeça maluqueiras semelhantes? Queremos extingui-Ias, voltar a
ser viventes normais, e as miseráveis insistem. Em períodos
vagos, num livro distante, surgiriam de novo o asfalto molhado e a deslocação
vertiginosa das réstias. Queria convencer-me de que isso não
tinha nenhuma importância, zangava-me por estar satisfeito, e a leseira
permanecia.

O carro parou, rolamos uns por cima dos outros, esbarrando nas trouxas e
pacotes. Abriu-se a porta, descemos. Quando saí, já diversos
companheiros se moviam entre duas filas de soldados. Espantou-me conservar
na mão a valise, guardá-la inconscientemente naquela balbúrdia.
Na claridade ambígua da manhã nascente focos elétricos
desfaleciam.

Avancei tonto, um homem de farda e fuzil à direita, outro à
esquerda. Marchávamos num corredor estreito, renques de polícias
a isolar-nos, e por detrás das cercas móveis curiosos embasbacavam
para nós. Essa indiscrição me aborreceu. Estúpidos.
Baixei a cabeça, e escaparam-me os arredores. Na barafunda mental a
indignação transferiu-se. Estúpidos. Havia esquecido
os basbaques; impressionava-me a inútil exposição de
força. Bobagem, fanfarrice besta. Para vigiar um doente bambo e trôpego
– dois sujeitos armados. Mergulhamos numa estação de estrada
de ferro, mas só percebi isto ao entrarmos no carro de segunda classe.

Arriei no banco estreito, ladeado pelos tipos que me custodiavam desde o
tintureiro, espalhei a vista em roda, colhi fragmentos de miséria em
gestos moles, em fisionomias decompostas. Criaturas arrasadas; provavelmente
devia achar-me assim. O trem moveu-se. Para onde iríamos? Naquele momento
a Colônia se tornava bastante duvidosa, não sei porquê.
Dos soldados próximos um esteve em silêncio durante a viagem.
O outro, um rapaz magro, puxou conversa em voz baixa: – Ordem política
e social? Atrapalhei-me e confessei: – Não entendo.

– Pergunto se é preso político, insistiu o rapaz. – Ah! sim.
Porque pergunta? – Porque ladrão não é.

Admirei a sutileza do moço, desejei experimentá-la- E se eu
quiser dizer que sou ladrão? Assustou-se, deu uma espiadela em torno,
examinou-me fixo, cochichou: – Não diga. Isso prejudica. Mas se dissesse,
ninguém acreditava. O senhor pode ser assassino. Também não
é. Se fosse, tinha ficado. Para lá só vão presos
políticos e ladrões. Ladrão não é.

– Está bem. Vejo que tem muita prática.

– Não, pouca, às vezes me engano. Os da polícia civil
conhecem os ladrões de longe, na rua, pelo andar.

– Está bem. Para onde vamos? Olhou-me surpreendido, certamente a
duvidar da minha ignorância, e permaneceu calado.

– Vamos para a Colônia? Balançou a cabeça afirmando.
– Horrível, hem? Hesitou um momento, segredou: – Não é
tanto como dizem não. Agora está melhor. Isso contradizia a
afirmação de vários indivíduos, mas se tivermos
uma corda no pescoço e alguém nos vier sorrindo negar a existência
dela, acho que nos convenceremos facilmente. Um gazeteiro chegou à
janela apregoando.

– Julgo que podemos ler, não? – Com certeza.

Comprei um jornal e, com esforço, repisando a leitura cheia de lacunas,
agarrei a notícia infeliz: o estado de guerra ia ser prorrogado. A
patifaria inicial não me deixara mossa, de fato nem me perturbara o
jogo de xadrez, talvez por achar-me estável no cubículo 35;
nenhuma referência a ela nos papéis guardados no bolso; agora
faltava-me estabilidade, era-me impossível pensar nisto ali dentro,
a rolar para a ignomínia, e a renovação do ato canalha
dava-me arrepios. Larguei a folha em desânimo profundo. Câmara
prostituída. Mais três meses de arrocho, ficaríamos pelo
menos três meses na ilha, no curral de arame farpado, na sujeira imensa.

Tento lembrar-me de qualquer coisa exterior, vista nos campos, nas plataformas
das estações. Não me lembro de nada, inúteis as
pessoas, inútil a paisagem. Rodávamos no meio de laranjais,
observei-os no regresso. Não havia laranjais. Havia apenas a informação
desgraçada: mais três meses de guerra. Guerra a quem, malandros?
A quem, filhos de umas putas? Essas explosões internas causam enorme
desarranjo a um organismo combalido. Não nos revolta a safadeza, revolta-nos
a estupidez. Conformismo idiota, pulhice, tudo a encolher-se na ordem – e
um reconhecimento de guerra nesse marasmo. O soldadinho magro e pálido
era uma criatura boa, não tinham força para incutir-lhe ferocidade.
O instinto o levava a conversar comigo, a ver em mim um tipo como ele. Uns
miseráveis o açulavam debalde: não sabia morder. Com
certeza desejei agradecer-lhe, e o receio de parecer covarde abafou o impulso.
Não me recordo, isso me aconteceu algumas vezes. Nevoeiro mental, fugas,
carência de nexo, o estado de guerra e os buracos do tintureiro.

Um volume sobre a Colônia, o livro que Medina esperava. Detinha-me
nessa afirmação maquinal, embora considerasse o projeto irrealizável:
nem queria ouvir falar em semelhante gênero de trabalho. Haviam-me no
Pavilhão dado conselhos, mostrado a conveniência de narrar a
vida na cadeia; a tarefa imposta me esfriava, em horas de aborrecimento vinha-me
a tentação de berrar que não tinha deveres, estava longe
da terra e imbecilizado. Os buracos do tintureiro e as réstias movediças
continuavam a perseguir-me. De quando em quando me apalpava, tocava os papéis
escondidos nos bolsos do paletó. Se fosse revistado, atira-los-ia pela
janela do vagão. Sobressaltava-me, as figuras de Tamanduá, Newton
Freitas e Medina apareciam-me nítidas. Um curral de arame farpado,
um rebanho a definhar. As réstias deslocando-se no tintureiro. Punha-me
a esfregar as mãos de rijo, depois tateava o manuscrito dividido, inquiria
de esguelha se ele estava muito visível. No caso de revista, joga-lo-ia
fora. Em que estariam pensando o velho Eusébio, Guerra, Herculano,
Zoppo, Macedo? Ignoravam talvez a minha presença, absorviam-se como
eu, faziam gestos inconsiderados e tentavam emendar-se. Na ratoeira que andava
em cima de trilhos, sem decidir-se a parar, na verdade éramos bichos
bem mesquinhos. Todos bichos. Mencionei a prorrogação do estado
de guerra, desdisseram-me com azedume; exibi o jornal, repeliram a nota agoureira:
a unanimidade alienaria provisoriamente o sucesso aziago.

Dessa viagem realizada fora do tempo, armas e fardas a enchê-la, a
guardar as portas, ligeiros traços hoje se esfumam. Página meio
branca Avultam nela contudo as palavras do soldadinho Convenço-me de
ter sido fiel reproduzindo o nosso diálogo; ao cabo de tantos anos,
as perguntas e as respostas vêm nítidas, parecem recentes; não
preciso enxertos, pelo menos julgo isto. A magreza e a palidez do moço
ainda se conservam. O resto era confusão. O jornal, armas e fardas,
os meus dedos úmidos e frios, as mãos inquietas esfregando-se,
metendo-se nos bolsos, os companheiros a recusar indignados a notícia
ruim. Nada mais. Uma janela inútil.

7

O TREM parou, desembarcamos em Mangaratiba. Aí me chegaram algumas
idéias claras, fui capaz de observar qualquer coisa; agora as recordações
avultam e se articulam. Achara-me num sorvedouro; ou antes, não me
deslocara em sentido horizontal, mas para cima e para baixo, a subir e a descer
nas roscas de um parafuso. Estávamos em Mangaratiba. Vi este nome na
placa da estação. Bem. Chegávamos enfim a um canto da
terra, e isto nos dava consistência. Roláramos fora dela, ausentes
da realidade.

Ao sair da caixa móvel, José Gomes, o velho Eusébio,
Guerra, Zoppo, deixavam de ser sombras, ganhavam corpo: lembro-me deles. Mangaratiba
é um lugar miúdo, que pro curo fixar na memória para
não me esquecer dos companheiros. Uma povoação triste
e abafada, com montes em redor. É, parece que tem montes em redor.
Nada mais.

Deixando o vagão, marchamos em frente, pisamos num tablado sobre
água: com certeza íamos embarcar. Faltavam-me cigarros. Como
embarcar sem cigarros? Talvez não tivesse fumado no trem, mas ali,
com os bolsos vazios, uma angústia me vinha. Os dedos a entrar nos
bolsos vazios, a apertar-se em vão. Procurei auxílio, enxerguei
perto um soldado negro, dirigi-me a ele. Estava sem cigarros. Entendia? Impossível
viajar sem cigarros. Ofereceu-se para comprar alguns maços. Dei-lhe
vinte mil-réis, fiquei olhando algumas senhoras que desciam do trem,
da primeira classe, ingressavam no embarcadouro, em companhia de um sujeito
magro, baixo, de cara chupada. Alguém me disse que o tipo se chamava
Sardinha, era médico e mandava provisoriamente na Colônia Correcional
de Dois Rios. Punham-me em contato com um mundo estranho, vago e difícil.
Busquei adivinhar, pela fisionomia do homem, o que ele tinha por dentro. Nenhum
contato, enganei-me. Aquele rosto impenetrável, chocho, aparece-me
como silhueta recortada em matéria dura e fria. Um rosto de lâmina,
cortante. Percebi a roupa escura e, além disso, um envoltório
de rabugice, pimponice e hostilidade. Nunca me fez mal; pelo contrário:
mais tarde me livrou de ser roubado; mas naquele momento me causou impressão
demasiado repulsiva, e instintivamente dei um passo para trás. Recuo
inútil: embora estivessem próximas, em cima do tabuado exíguo,
as pessoas vindas da primeira classe muito se distanciavam de nós.
Atentei nos rostos delas – e, que me lembre, nunca vi tal expressão
de estabilidade, segurança. Firmeza em cima de pranchas mal pregadas.
Um homem baixo e magro, mulheres bem vestidas. Certamente se haviam habituado
a olhar trastes como nós, espalhados no chão, eram tipas importantes,
não nos enxergavam, naturalmente. Carregados de embrulhos, redes, malas
e sobretudos, gente do sul e do norte, pobres-diabos, não valíamos
nada, éramos lixo. Não nos distinguiam. Acostumadas ao lixo,
andavam cegas, podiam pisar-nos. O homem de rosto murcho, recortado em lâmina
de faca, mexia-se procurando meio de acomodar as senhoras. Trouxeram cadeiras,
julgo que vieram cadeiras de vime. Talvez fossem de vime, não sei bem.
As senhoras sentaram-se, tranqüilas, conversando alto. Estávamos
ali, arrumados nas pranchas, com os nossos embrulhos e a nossa desgraça
– e elas não nos viam. Lixo. Se quisessem levantar-se e andar, caminhariam
bem, pois não tomávamos espaço, éramos coisas
diminutas, rentes às tábuas. Passariam tranqüilas por cima
de nós, machucar-nos-iam com as solas dos sapatos, como se fôssemos
pontas de cigarros. Excitava-me o sossego das mulheres e cócegas me
arranhavam a garganta. Desejo de rir. Desenvoltas, em desembaraço perfeito,
pareciam trancadas num quarto, podiam despir-se.

Duas idéias me perseguiam: o soldado preto não voltava com
os cigarros, e nós éramos bagatelas, cisco em cima das tábuas,
pontas de cigarros. Os meus vinte mil-réis estavam perdidos. E se uma
daquelas senhoras quisesse mijar? Esse pensamento burlesco um minuto me agravou
os arranhões da goela, o desejo de rir. Nenhum motivo para acanharem-se,
mijariam facilmente na rede de Macedo, no capote do Zoppo, na minha valise.
Tão grandes e afastadas, assim próximas e miúdas, em
cadeiras de vime! Estávamos em pé, as nossas misérias,
os nossos embrulhos, no chão. O soldado preto não regressava.

Uma lancha avizinhou-se, atracou. Saltamos para ela, houve confusão
de passageiros no transbordo, gente a entrar, sair. Fizeram-nos descer uma
escada que levava ao porão. No primeiro degrau ouvi alguém chamar-me
familiarmente e dei de cara com um sujeito desconhecido, alegre e ruidoso.
Quem diabo seria? Reparando bem, julguei-o, pelos modos, um tipo encontrado
meses antes, no Pavilhão dos Primários, buscando entender-se
com Birinyi num italiano incompreensível. Vinha num grupo da Colônia
e saía do porão. Criaturas indefinidas. A nossa escolta apoderou-se
deles, a que os havia trazido encarregou-se de nós e ficou lá
em cima, a vigiar em torno da escotilha.

Descemos. Em meio do caminho ouvi um grito e, levantando a cabeça,
distingui o soldado preto a acenar-me. Subi ao convés, recebi vários
maços de cigarros e caixas de fósforos. Ao metê-los nos
bolsos, encontrei as folhas de papel cobertas de letras miúdas e joguei-as
na água. Representavam meses de esforço, nenhuma composição
me fora tão desigual e custosa, mas naquele momento experimentei uma
sensação de alívio. Não me ocorreu o prejuízo.
O certo era que as notas significavam culpa, e se fossem descobertas isto
me renderia aborrecimentos. Haviam escapado às fogueiras inevitáveis
nos cubículos do Pavilhão quando nos anunciavam revista. Imprudência
conservá-las naquele tempo. Agora isto era absurdo: não entrariam
na Colônia. Perda escassa: estavam pessimamente redigidas, e longos
anos tantas vezes me sucedera queimar prosa ordinária que não
me abalava a destruição de mais algumas páginas. De certo
modo aquilo desculparia o desânimo e a preguiça, serviria de
pretexto para furtar-me à obrigação cacete. Iam-se diluindo
na água as minhas lembranças esparsas; não me seria possível
reconstituir com segurança os cubículos povoados de percevejos,
a sala escura da galeria, as redes oscilantes e o camarote do padeiro no porão
do Manaus. Tornei a descer a escada curta, penetrei na jaula que nos reservavam,
fui sentar-me a um canto, sobre a maleta.

A lancha desatracou e partiu, algumas pessoas entraram a enjoar. Como era
grande o calor, tirei o paletó e a gravata, afrouxei o colarinho. A
perna encrencada aperreava-me em excesso. Ao embarcar atrevera-me a um passo
comprido – e a dor crescera, muito aguda. Isto me alegrava. Se me inutilizasse,
com certeza me deixariam morrer num hospital. A perna doía. E cultivei
a dor, imaginei acabar-me depressa fora do curral de arame descrito por Tamanduá.

Macedo estabeleceu-se junto a mim e começou a realizar uma operação
minuciosa e lenta. Despiu-se, tirou o dinheiro, enrolou as notas em longos
pavios e meteu-as no cós do pijama. Em seguida substituiu a cueca pelo
pijama, vestiu a calça e aconselhou-me a fazer o mesmo. Restavam-me
cento e poucos mil-réis e não julguei preciso escondê-los.
A barca jogava muito. E em redor olhos compridos enlanguesciam, fechavam-se,
abriam-se, fechavam-se de novo. Lembrei-me do pavor de Guerra, no Pavilhão.
Batia com a cabeça nos ferros da cama e gritava, injuriando o governo,
atirando à polícia nomes sujos. Como iria agüentar-se?
Esquisito: Guerra se comportava bem, ria, pilheriava. Estaria a fingir-se
alegre por fanfarronice? Talvez não. o movimento e o riso pareceram-me
naturais. Os homens do Paraná tinham modos bovinos. Sentados nos capotes,
as costas apoiadas às tábuas das paredes, fechavam-se, lúgubres.
Os óculos do velho Eusébio procuravam socorro impossível;
a voz era um tímido murmúrio, a interjeição do
fim das frases quase se sumia. Espanto e receio nos rostos. Não me
surpreendia viajarmos em porão, mas aquele era baixo demais. Talvez
Macedo e Guerra pudessem ficar ali em pé; se Petrosky se levantasse,
com certeza bateria com a cabeça no teto.

Não sei quem teve a lembrança de me oferecer comida. Prinz
ou Cabezon. Surgiram postas de peixe seco e rodelas de pão num papel
engordurado, certamente contrabando fornecido pelo faxina preto. Desviei-me
engulhando, os rapazes insistiram, a princípio com paciência,
depois irrita dos: uma exigência dura. Bem, tinham razão. Escolhi
um pedaço de peixe, o menor, tentei ingeri-lo devagar. A língua
seca, aperto na goela, os beiços gretados e queimados. Se tivesse um
copo de água, tudo se arranjaria. Mas com semelhante secura a dificuldade
era grande. Mastiguei o peixe até que ele se transformou numa espécie
de serragem, longo tempo estive a ruminar em vão. Afinal o espesso
farelo me atravessou a garganta, arranhando-a. Como areia. Resisti à
náusea, apertei os queixos, entortando a cara, retesando os músculos
do pescoço. Talvez aquela fosse a minha última refeição.

Chegou-me a sede. E como limpar os dedos sujos de sal e gordura? Esfreguei-os
num pedaço de papel, mas continuaram sujos e tive receio de enodoar
a roupa. Tirei dos bolsos as carteiras de cigarros que o soldado trouxera,
despejei-as, limpei as mãos nos invólucros, demoradamente, até
ficarem túmidas e vermelhas. Desmanchando as carteiras e friccionando
as mãos, tinha entre as pernas juntas uma pilha de cigarros soltos.
Espalhei-os em vários bolsos, inquieto: haviam-me dito que só
entrava na Colônia um reduzido número de maços; veio-me
a esperança de salvar aqueles, dispersos, misturados a lenços
e objetos miúdos. Percebi em volta olhares cobiçosos, urgências
de fumo, e arremessei, com um gesto liberal, o paletó recheado sobre
as tábuas. O valor dos cigarros diminuiu.

Petrosky, Zoppo, Garrett, Prinz, Cabezon – que nomes estranhos! Bichos brancos
e vagarosos, de outro mundo. Prinz tinha um sorriso fatigado. Cabezon tentava
conversar e desistia. O tormento do velho Eusébio reluzia nos vidros,
soava na respiração de gato. Duas figuras me impressionavam:
Macedo, tranqüilo e gordo, cachimbando, a arrumar as suas coisas sem
pressa, e Guerra, agitado e falador, com estridências na voz e ameaças
na ponta do bigodinho, um Guerra muito diferente do que rolava na cama, aos
gritos. Do velho Eusébio restavam depressões. Por cima das nossas
cabeças, ladeando a entrada, viam-se as perneiras, as fardas, os bonés
e os fuzis da polícia. Petrosky, o homenzarrão silencioso e
louro, arriava-se a um canto, invisível no escuro, entre caixões.
Se tentasse erguer-se, não conseguiria aprumar-se. Sentado na valise,
arrimado à tábua, pouco a pouco me entorpeci, achei-me longe
do porão da lancha, do carro de segunda classe, do tintureiro. Todos
ali eram desconhecidos, meses antes não me havia chegado o nome de
nenhum deles. Eu mesmo era um desconhecido agora, diluía-me, tentava
debalde encontrar-me, perdido entre aquelas sombras.

Uma frase repetida, que se despojara de significação, martelava-me:
o estado de guerra ia ser prorrogado. Isto me aborrecia. Para o diabo o estado
de guerra. Imaginei-me em país distante, falando língua exótica,
ocupando-me em coisas úteis, terra onde não só os patifes
mandassem. Logo me fatiguei dessas divagações malucas e dei
um salto para trás, vi-me pequeno, a correr num pátio branco
de fazenda sertaneja, a subir na porteira do curral, a ouvir os bodes bodejarem
no chiqueiro. De qualquer forma, enveredando no futuro ou mergulhando no passado,
era um sujeito morto. Necessário esquecer tudo aquilo: o porão,
o carro de segunda classe, o tintureiro, os cubículos, a recordação
da infância, o país distante e absurdo, refúgio impossível.

Não sei quem me tirou dessa horrível apatia, alguém
que me pediu um cigarro ou ofereceu qualquer coisa. Regressei à realidade,
enxerguei fisionomias sucumbidas, invadiram-me palavras soltas, o riso estridente
de Guerra, a fala engrolada de Zoppo, o laconismo, a resignação
bovina de Petrosky. José Gomes estava abatido. Lembrei-me do Manaus.
A noite José Gomes fazia com as mãos uma corneta, erguia a voz
imitando um locutor: – “Rádio Clube do Porão. Vamos ouvir
Paulo Pinto, rei do samba.” E Paulo Pinto, negro, rei do samba, cantava;
com amores, tolices, onomatopéias, reduzia o calor da fornalha, o cheiro
de amoníaco, os vômitos, o arquejar penoso, as cascas de laranja
atiradas da coberta sobre as nossas redes. Agora Paulo Pinto estava na Colônia,
e José Gomes se imobilizava no silêncio.

Em redor, nos cantos sombrios, caixas, bagagens, sacos. E pelas frestas
que separavam as tábuas grossas e sujas, víamos a água
escura lá embaixo. As minhas folhas se desagregavam nela, a plumbagina
se diluía, perto do embarcadouro de Mangaratiba. Amizades rápidas,
casuais, um instante a fixar-se e logo a estremecer nos sacolejos dos navios,
dos carros, seriam em breve partículas indecisas no mar, partículas
indecisas na minha memória. Na Colônia, iriam mexer-me nos bolsos,
despojar-me, recolher-me fraco e desarmado.

Resolvi guiar-me pelo juízo de Macedo, homem cauteloso, em geral
entregue a minúcias razoáveis; imitei-lhe a prudência.
Retirei da valise a calça do pijama e introduzi no cós dela
o dinheiro de papel que me restava; deixei no porta-níqueis uma cédula
de cinqüenta mil-réis. Despi-me, vesti a peça fraudulenta,
a roupa de cima, com a aprovação tácita do meu companheiro
meticuloso. Bem. Agora me alentava um pouco; as notas amarradas à barriga
davam-me a esperança de conseguir mexer-me, não perder a iniciativa.

Ergui-me, fui até a abertura por onde havíamos descido, subi
os degraus inferiores da escada curta. Entre as perneiras dos soldados, vi
o mundo lá fora, o sol, água, ilhas, montes, uma terra próxima
a alargar-se.

8

SUBI mais uns dois degraus, vi telhados, árvores, depois, mais para
baixo, uma povoação e as tábuas de uma espécie
de embarcadouro, aparentemente melhor que o de Mangaratiba.

A lancha atracou. Mergulhei os olhos no buraco onde ainda me achava meio
enterrado, percebi alvoroço, homens agarrando embrulhos, fardos, sobretudos,
maletas, sacos e as redes sertanejas inseparáveis dos nordestinos.
Eram grandes e tinham aplicações várias, essas redes.
Presas nos armadores, serviam de camas, cadeiras. Estendidas no chão,
substituíam cobertores, lençóis. Dobravam-se, enrolavam-se,
entre as varandas metiam-se objetos miúdos – supriam sem dificuldade
os baús de folha usados no interior. E como no nordeste conduzem nelas
defuntos para o cemitério, não é tropo afirmar que os
meus amigos do porão do Manaus levavam às costas os seus próprios
caixões. Matuto degenerado, nunca pude utilizar essa complicação.
E ali estava no meio da escada, a valise debaixo do braço, leve, transportada
maquinalmente. Dentro da valise, cuecas, lenços, duas camisas, dois
ou três pares de meias, alguns lápis, um bloco de papel inocente
e branco, bilhetes, cartas, fotografias, correspondência de minha mulher.
Pouco me importava que tomassem tudo isso. Nada comprometedor. Papéis
inofensivos, bilhetes anódinos, lápis, nenhum dinheiro, retratos
de meninos. As notas, únicas forças restantes, arrumavam-se
no cós do pijama, faziam na barriga um chumaço pequeno em cima
da cicatriz da operação. As folhas prejudiciais tinham sido
atiradas na água. Estavam comigo notícias ingênuas, a
figura de meu filho mais novo, de olhos grandes. Apenas. Bem. Valise insignificante,
que a minha fraqueza podia transportar sem custo. Bem. Não me constrangiam
coisas pesadas e incômodas.

Enquanto os outros arrumavam a difícil bagagem, trepei os últimos
degraus, cheguei à coberta. Alguns minutos de espera. Macedo e Zoppo,
Guerra e Cabezon, Petrosky e Zé Gomes desenroscaram-se lá embaixo,
subiram – e achamonos em linha, passamos ao tablado que servia de ancoradouro.
Um sargento, mulato gordo e fornido, entrou a distribuir-nos, e as dezessete
pessoas, em fileira, num instante se sumiram. Dois sujeitos armados tomavam
conta de um preso, exatamente como ao descermos do tintureiro. Arrogância,
exposição besta de força. Dois polícias para escoltar
um indivíduo inerme, de braços ocupados, seguro à bagagem.
O sargento volumoso e escuro tinha carranca selvagem, mas o instinto me levou
a entender-me com ele. A primeira leva desembarcara ali em noite de chuva,
subira montes e descera montes, às carreiras. Lembrei-me do relatório
de Chermont. Se um infeliz escorregava no barro molhado e caía, obrigavam-no
a levantar-se com pancadas. Agora os caminhos estavam enxutos, o dia claro.
Infelizmente a perna me atormentava e não me seria possível
correr. Declarei isto ao sargento. Examinou-me, talvez procurando no meu rosto
sinais de mentira.

– Que é que o senhor tem? perguntou áspero. – Fui operado.
Não consigo viajar depressa. Refletiu, decidiu: – Vou pedir um cavalo.

Isto me aborreceu: desagrada-me incomodar alguém. – Talvez não
seja preciso. Qual é a distância? – Doze quilômetros de
serra. – Que horas são? – Dez.

– A que hora devo chegar? – A tarde. Chegando às seis chega bem.

– Obrigado, sargento. Não é necessário o cavalo. Vou
a pé.

Voltou-se para os dois policiais: – Este senhor está doente, não
pode acompanhar os outros. Andem muito devagar com ele, parando para descansar.

Afastei-me capenga, disposto à marcha penosa; no fim do tablado recuei,
vexado por não me ocorrer um agradecimento razoável. Afinal
a criatura nada tinha com os meus desastres. Atentei na fisionomia agreste:
– Aquilo é horrível, hem, sargento? Alongou o beiço grosso,
resmungou: – Não. Para o senhor, não.

– Ora essa! Porquê? – Em qualquer parte o senhor está em casa.

A observação me chocou. Ter-me-ia acanalhado? Comportar-me-ia
direito em excesso, buscando captar a benevolência da força?
Um rápido exame interno sossegou-me: ti nha-me expressado conciso e
frio, apenas manifestara a impossibilidade completa de mexer-me depressa.
Antes de me retirar, o homem se avizinhou, segredou uma pergunta inesperada:
– Tem dinheiro? Surpreendi-me. Contudo não senti desejo de fechar-me:
– Tenho, pouco, mas tenho.

– Não caia na tolice de entregá-lo. Só lhe consentem
levar cinco mil-réis. Guarde o resto. Vai passar fome, sabe? Há
de comprar comida fora.

Súbito revelei ao sujeito o esconderijo das notas, e não julguei
ser imprudente. Estavam no cós do pijama, entre as calças e
a cueca.

– Acha que vão descobri-Ias na revista? Balançou a cabeça
negativamente: – Não há perigo, a busca é formalidade.

Referiu-se de novo à falta de alimento e repetiu o conselho de aferrolhar
o dinheiro, economizar: ser-me-ia indispensável prover-me em negócios
clandestinos. Falava rápido e baixo, a conversa durou talvez dois minutos.
Ainda avancei uma interrogação: qual era o meio de obter coisas
no exterior? Alguns rapazes da polícia arriscavam-se a esses favores,
afirmou.

– Quer apresentar-me a um dos seus homens? – Não. O senhor será
procurado, com certeza.

Duas ou três vezes introduziu no diálogo esta observação
intempestiva: – Não lhe acontecerá nada ruim. Uma pessoa inteligente
nunca se aperta.

– Agradecido, sargento.

Arredei-me a coxear, aproximei-me dos guardas, pisamos terra. A reflexão
do sargento era burlesca; e fazendo-a, parecia referir-se, não à
minha inteligência, mas à dele. Que ria talvez aparentar sagacidade
notando em mim prendas ocultas, pois nenhum recurso intelectual se revelara
nas minhas palavras. Longe disso: houvera-me estupidamente, confessara a existência
das cédulas e a peça de roupa onde se metiam. Deixara-me levar
pelo instinto: não enxergara um inimigo no tipo sombrio. Ou então
me surgira o desejo de arriscar-me, avaliar a minha resistência e as
disposições contrárias. Algumas vezes isso me acontecia,
e, presumo, durante a reclusão estirada não precisei simular.
De qualquer modo a conversa ligeira nas tábuas me convencia de que
a violência organizada era bem precária: os agentes dela se bandeavam,
nos momentos difíceis vinham cochichar-nos informações
e conselhos. Bem. O mulato rijo e de tromba, os soldadinhos fracos a aborrecer-se
debaixo dos fuzis pesados não tinham interesse em magoar-me. Os generais
deviam procurar saber como as suas ordens se cumprem. Berram, ameaçam,
têm aparência de terremotos – e ali me achava a manquejar, seguido
por dois sicários inofensivos.

– Como se chama este povoado? – Abrão.

Na ponta da rua uma bodega me sugeriu a idéia de comprar cigarros.
Entrei nela, pedi um milheiro, diversas caixas de fósforos, enchi a
valise, acabei de empanzinar todos os bolsos. Deixariam penetrar na Colônia
aquele despropósito? Os soldados me incutiram otimismo. Bebi um cálice
de conhaque, larguei a nota de cinqüenta mil-réis e guardei o
troco no desvão do porta-níqueis; à mostra ficaram apenas
algumas moedas. O álcool é proibido com rigor, mas nem me ocorreu
falar em consentimento: a disciplina se relaxaria ante a necessidade forte.
Saímos, perdemos de vista as últimas casas da aldeia. Topônimo
esquisito: Abraão. Um dos condutores me corrigiu a pronúncia:
– Abrão.

Certamente havia morado ali um sujeito importante com esse nome. Algum judeu?
Na Alemanha a designação torpe e semítica se haveria
riscado, mas a esculhambação nacional não atentava nisso.
E o Abrão continuava na geografia miúda, possivelmente um velho
Abrão de olhos vivos e nariz curvo, parente vago de Gikovate e Karacik,
transferido um mês atrás para a Sala da Capela.

Distanciamo-nos da costa, assanharam-se os declives, entramos a subir e
a descer ladeiras. Vegetação farta. Várias pontes sobre
os rios estreitos, ziguezagueantes, que haviam batizado a Colônia. A
luz forte do sol feria montes escuros e nus; em certos pontos árvores
esguias disfarçavam a calvície da terra pedregosa. Veio-me o
desejo de perguntar como se chamavam essas plantas, mas a curiosidade morreu
logo.

Ao calor do meio-dia, estazei-me. Horríveis picadas na perna; vencer
alguns metros de rampa custava-me esforço enorme. Respiração
curta, suor abundante, falhas na vista. Procurei dominar a fraqueza atentando
na paisagem. Inutilmente. A cabeleira escassa dos morros já não
me interessava. As dores no pé da barriga avivavam lembranças
insuportáveis do hospital. Meses compridos vira-me forçado a
amparar-me a uma bengala; esse arrimo agora me fazia grande falta, e os passos
arrastavam-se trôpegos, indecisos, parando a cada instante. Os soldados
começaram a impacientar-se, e isto agravou a dificuldade. Tentei elastecer
a carne entanguida, propensa à imobilidade; experimentei a sensação
de ter um dreno de borracha metido no ventre. Mordia os beiços queimados
e arfava. Impossível continuar. Pus a valise em cima de uma pedra e
sentei-me, indignando os condutores presos ao cambalear penoso, recusei-me
a prosseguir. Inútil a insistência, arquejei. Não viam
que estavam exigindo o impossível? Contudo inclinava-me a julgar aquilo
um achaque passageiro; nenhuma preocupação. Iria restabelecer-me
quando me surgissem de novo as mesas e as camas, objetos remotos, improváveis.

Ergui-me, reencetei a caminhada bamba, detive-me ao cabo de cem metros,
joguei-me outra vez para a frente. Rês cansada; nenhum aguilhão
me apressaria. Inquietava-me a posição do sol, e uma pergunta
me vinha com freqüência: ainda estávamos longe? Com certeza.
Afligia-me causar transtorno aos dois homens. Um deles puxou conversa. Era
de Palmeira dos índios, em Alagoas. E inteirando-se de que eu vivera
ali muitos anos, pediu notícias de personagens locais, perguntou como
iam de saúde seu Aureliano Wanderley e seu Juca Sampaio. Achei graça
na curiosidade e afirmei: – Vão muito bem.

Nas escarpas da ilha Grande, a esfalfar-me, a aproximar-me vagaroso da Colônia
Correcional, papagueava com um matuto fardado sobre gente do interior, meio
esquecida. O rapaz me interrogava como se eu tivesse a obrigação
de conhecer Juca Sampaio e Aureliano Wanderley. Palmeira dos índios
é uma cidadezinha, os habitantes andam lá em contato forçado.
Apartara-me deles, mas não hesitava em referir-me às duas pessoas
mencionadas. Estavam bem. Pelo menos deviam estar melhor que eu. Essa tagarelice
aplacou o trajeto ronceiro.

As estações espaçaram-se. O terreno ia ficando menos
íngreme, o calor diminuía. Era certo chegarmos antes da noite
e não precisava agitar-me em excesso. As punhaladas no ventre esmoreceram;
o que agora me incomodava era o torpor na coxa direita. A dormência
crescia, chegava ao joelho, dava-me a impressão nova de mexer-me com
uma perna artificial. A voz lenta do sertanejo escorregava-me nos ouvidos,
trazia-me ao espírito as largas campinas da minha terra, os cardos
pujantes na seca, as flores amarelas das catingueiras. Em redor, coisa muito
diversa dessas evocações familiares: sombras, matas, as estranhas
árvores delgadas a vestir a peladura negra dos montes.

No fim da tarde alcançamos um pátio branco. Ao fundo, enorme
galpão fechado, e junto a ele cercas de arame, certamente o curral
onde nos confinariam. A vista fixa nas paredes baixas, na cobertura de zinco,
durante algum tempo não percebi as casas alinhadas no terreiro. Surgiram-me
de chofre, como se se tivessem construído naquele instante, sem dúvida
residências de funcionários, repartições, cozinhas,
e alojamento da tropa. Na confusão da chegada, isso me vinha desconexo,
vago e sem limites. Amálgama incoerente. Que pensariam de mim os dois
rapazes? Movera-me até ali conversando, a exumar fatos e indivíduos
meio extintos, e não revelara falha na memória, nas idéias.
De repente me achava incapaz de localizar os edifícios, desorientava-me.
Só queria saber se a perturbação vinha à tona,
transparecia nos modos, ou se ainda me seria possível exibir uma aparência
razoável. Continuava a falar, com pausas, ignorando a significação
das palavras, e examinava os interlocutores, buscando neles marcas de espanto.
Nada enxerguei. Naturalmente fazia perguntas, mas não tinha consciência
disto; as informações resvalavam no entendimento paralisado.
Incapaz de relacionar as coisas mais simples, senti um prazer absurdo no exame
de plantas amáveis, de grandes folhas verdes, crestadas, a adornar
a terra clara. Concentrei-me nessa decoração, no movimento e
na cor: as folhas mortas, fulvas, caíam lentas, voavam na aragem fria.
Para onde me levavam? No caminho surgiu-me um velho miúdo cheio de
rugas. Vestia zebra e manejava enxada, ocupando-se em retirar do chão
uma nesga de grama. Ao passarmos, interrompeu a tarefa, diligenciou erguer
o espinhaço curvo, estirou o braço trêmulo, gemeu quase
a soluçar: – Uma esmolinha de um cigarro pelo amor de Deus. Meti a
mão no bolso prenhe de cigarros, tirei um punhado, larguei-o na mão
da criatura.

– O senhor está doido? gritou um dos soldados. Espantei-me: – Porquê?
– Dar quarenta cigarros a este vagabundo! Estão aí bem quarenta.
Há de haver dia em que o senhor não acha um cigarro por dinheiro
nenhum. Escute bem. Por dinheiro nenhum.

Essa perspectiva me trouxe um arrepio. Enfim, paciência Que se havia
de fazer? Na verdade não me instigara nenhum sentimento caridoso ao
espoliar-me em benefício do velho. Estava meio convencido de que não
me deixariam guardar aquela enorme provisão de fumo. A minha filantropia
esvaziava um pouco a algibeira prejudicial. Reduzido o ‘volume, talvez me
permitissem conservar o resto dos cigarros.

9

LEVARAM-ME a uma das formalidades inevitáveis na burocracia das prisões,
num dos edifícios baixos, limites do pátio branco. Sala estreita,
acanhada; homens de zebra a mexer-se em trabalhos aparentemente desnecessários.
Porque me encontrava ali? Devo ter feito essa pergunta, devo tê-la renovado.
Impossível adivinhar a razão de sermos transformados em bonecos.
Provavelmente não existia razão: éramos peças
do mecanismo social – e os nossos papéis exigiam alguns carimbos. A
degradação se realizava dentro das normas. Que me iriam perguntar?
Não disseram nada. Os homens de zebra exigiram apenas que lhes entregasse
a roupa. Ora essa! Queriam então que me retirasse dali nu? Não
era bem isso. Tinham aberto a valise, arrolado os troços, achavam possível
despojar-me da indumentária civilizada. Estava certo. Era preciso despir-me
em público ou havia lugar reservado para isso? Não havia. Perfeitamente.

Despojei-me da casimira. E como tinha por baixo a calça do pijama,
com o dinheiro minguado no cós, vesti apenas o casaco. Achava-me regulamentar,
tanto ou quanto regulamentar e ridículo, a prendei a camisa nas virilhas,
sujeitando o pano à carne resistente. Achei-me coberto enfim deste
jeito: camisa úmida, colarinho, gravata, pijama bastante amarrotado,
os pés coagidos nos sapatos duros, poeirentos. Os tamancos deixados
no cubículo 50, no Pavilhão dos Primários, faziam-me
falta. É estúpido mencionar isso; contudo não conseguimos
prescindir lá dentro de tais insignificâncias. De fato não
eram insignificâncias. Os sapatos duros e estreitos magoavam-me os calos;
seria bom juntar aos pés inchados pedaços de madeira presos
com tiras de pano. Os tamancos me dariam folga, relativa liberdade.

Antes de largar os trapos ao funcionário de zebra, recolhi os cigarros,
enchi os bolsos do pijama, fiquei obeso. Para emagrecer um pouco, recolhi
o cinto, apertei-o à barriga, avancei dois ou três furos além
do ponto normal: a ausência de comida facilitava-me a operação:
a magrém forçada compensava a gordura exterior. Em relativo
equilíbrio, tentei conservar a carteira, onde havia alguns papéis
isentos de valor. Um sujeito de zebra tomou-a. Reclamei.

– Para que é que o senhor quer isso? São fotografias. Veja.
Não interessam.

O homem fez orelhas moucas e guardou a carteira, sem me deixar nenhum vestígio
da subtração. Depois me conduziram às cercas de arame,
ao galpão temeroso. Numa saleta, os meus companheiros de viagem, com
certeza chegados horas antes, amolavam-se à espera de formalidades
rotineiras, mais ou menos indecifráveis. Em torno de uma banca figuras
se moviam, davam-me a impressão de mexer-se em densa neblina: a minha
vista se turvava, era-me impossível notar minúcias. Na imobilidade,
reapareceram-me as dores, ferrões me atravessaram a carne entanguida.
Não me agüentei de pé, fui encostar-me a uma parede, curvo,
derreado para a direita, a mão no pé da barriga.

Nunca pude saber como, em tais situações, nos chegam notícias
precisas. De que modo se transmitem? Parecem adivinhação. Estamos
cercados, vigiados; alguém nos sussurra algumas palavras, e recebemos
num instante esclarecimentos indispensáveis. Uma cadeia se forma, conjugam-se
reminiscências, o aviso se amplia; quando nos referimos a ele, notamos
apêndices, interpolações, acréscimos rápidos,
anônimos. Nesse trabalho coletivo a memória e a imaginação
cooperam de tal jeito que nos é impossível saber se o informe
decisivo é falso ou verdadeiro: entrosam-se nele os pacientes exames
rigorosos e a credulidade excessiva ordinária nas cadeias. Em torno
divisei homens fardados, mas a minha escolta havia desaparecido. Indicaram-me
nessa altura um sujeitinho e segredaram-me o nome, a índole, os costumes
dele. O anspeçada Aguiar, nanico, tinha péssimas entranhas,
compensava a escassez física normalizando a violência; arrogava-se
poder imenso, de fato ali dentro superava as autoridades comuns, adstritas
à censura e à regra. Já me haviam falado nesse tipo Exigia
um respeito absurdo, e na presença dele todos nós devíamos
guardar silêncio e cruzar os braços. Inclinava-me a julgar isso
exagero; difícil admitir que tal insignificância tivesse meios
de criar normas, sujeitar a elas várias centenas de indivíduos.
O cochicho rápido fez-me virar o rosto, atentar na minguada personagem.
O movimento não lhe passou despercebido. Olhou-me seco e frio, com
certeza o surpreendeu a minha postura encaranguejada. Chegou-se a mim, resmungou
áspero, distante e superior: – Está doente? Balancei a cabeça
afirmando. Retirou-se, momentos depois reapareceu trazendo uma cadeira. Sentei-me,
agradeci num gesto. O homem não era tão ruim como diziam. Essa
oferta da coisa necessária numa situação crua me dispunha
favoravelmente. Bobagens sermos susceptíveis naquele meio. Era possível
que as grosserias do pequeno soba apenas existissem cotejadas ao proceder
exterior. No lugar estranho iam surgir-nos relações novas –
e era ingenuidade pretendermos conservar os nossos hábitos.

Correra o tempo, chegara a noite, em redor da mesa os preparativos longos
escapavam-me, atos desconexos. Fixava-me num pormenor, noutro, ainda me sentia
capaz de observar, mas sem continuidade. Não sei quando me chamaram.
Vi-me ao pé da mesa, junto à valise aberta, mão a revolver-me
os bolsos. Deixaram-me os cigarros, e isto me trouxe imenso alívio;
durante o dia, no consumo lento das horas, a privação do fumo
absorvera-me. Respirei, as algibeiras pejadas, a enorme provisão de
tabaco e fósforo salva, de mistura com lenços e cuecas. Exigências
insignificantes, formalidades. Pegaram no porta-níqueis, abriram-no
e logo o devolveram, sem examinar o conteúdo. Não tiveram a
idéia de mexer-me no cós do pijama; o dinheiro lá guardado
iria ser necessário: talvez a minha existência dependesse dele.
Tomaram-me os lápis e o bloco de papel. Por muito que me esforçasse,
não consegui mais tarde recompor as fisionomias das pessoas que realizaram
essas operações. Naturalmente fizeram perguntas e dei respostas.
Não me lembro de nada. Os meus companheiros de viagem deviam estar
ali perto, mas isto é suposição. Qual deles me cochichara
o nome do anspeçada e me avivara passagens do relatório de Chermont?
Uma balbúrdia, pensamentos a debandar. Tentava expressar-me direito,
não me custava fingir calma. Aspecto normal, a voz ordinária;
convencia-me de que nas minhas palavras não havia incongruências,
e esta certeza me parecia insensata.

10

FINDA a vistoria achei-me no pátio, sobraçando a valise, a
andar sob as árvores de grandes folhas invisíveis agora. Entramos
num salão estreito e escuro. Pendiam lâmpadas do teto baixo,
vidros fuscos, fios incandescentes, a espalhar uma luzinha frouxa e curta;
a alguns metros delas os objetos mergulhavam na sombra. Distingui duas alas
de mesas compridas; eram duas, se não me engano, ladeadas por bancos.
Tombei num deles, cansado.

Reparando bem, notei que as mesas se formavam de tábuas soltas em
cima de cavaletes. O ar estava nauseabundo e empestado, havia certamente nas
proximidades um bicho morto a decompor-se. Juntei os cotovelos às pranchas,
segurei a cabeça fatigada, comprimi as narinas com os polegares, fiquei
um minuto a arfar, respirando pela boca. Um sujeito se avizinhou, manso, quase
invisível na escuridão. Arriei os braços, ergui os olhos
inúteis: impossível enxergar as feições do homem.
O cheiro de carniça invadiu-me os gorgomilos, trouxe-me enjôo,
lágrimas, embrulho no estômago. Outra vez levantei as mãos,
apertei o nariz, receando vomitar, cerrei as pálpebras.

Tocaram-me num ombro. Sacudi o torpor, abri os olhos, vi um prato junto
a mim.

– Obrigado.

Nos arredores vultos indecisos, provavelmente os meus vizinhos da lancha,
do carro de segunda classe, do tintureiro, matavam a fome. Depois de tantos
abalos, nordestinos e paranaenses tinham apetite naquela situação.
Repugnava-me, inquiria mentalmente se o olfato deles se embotara ou se o fedor
horrível era uma criação dos meus nervos excitados. Inclinei-me
a supor isto. Difícil admitir a insensibilidade estranha em várias
pessoas; o defeito estava em mim, um sentido me enganava. Tocaram-me de novo
no ombro, da figura indistinta veio um conselho doce e lento: – Coma.

Soltei a cabeça, aspirei um pouco de ar; estupidez negar as emanações
torpes.

– Obrigado. Não posso.

– A comida está boa, foi preparada para os senhores. Acendi um cigarro,
pus-me a fumar depressa, buscando vencer a infeliz sensação.
No prato havia manchas escuras, talvez pedaços de carne.

– Faça um esforço. Amanhã o senhor não terá
isso. A comida foi feita para os senhores. Experimente.

A fala branda era um murmúrio. Espantava-me da curiosa solicitude,
queria desembaraçar-me dela: – Agradecido. É impossível.

Apesar da recusa, a criatura afável, isenta de fisionomia, continuava
a embalar-me com a oferta vagarosa, insistência mole, gorda e úmida.
O rosto se escondia na máscara de trevas; a voz blandiciosa me escorregava
nos ouvidos, causando-me um vago mal-estar; não a poderia esquecer.
Nunca imaginara que um homem se dirigisse a outro daquele jeito: desvelo excessivo,
uma ternura flácida e trêmula. Só me ocorriam as sílabas
ásperas de agradecimento. De fato reconhecia a bondade esquisita, mas
era preferível não a receber. Escapava-me a origem dela. A atenção
espalhada, a fumar sem descanso, desejava retirar-me. E achava-me ingrato,
fazia esforços por descobrir alguma coisa amável para juntar
às frases curtas. Logo me distraía ouvindo o rumor das colheres.
Defendia-me da repugnância envolto na fumaça do cigarro, e os
indivíduos irreconhecíveis tornavam-se mais confusos. Terminaram
a refeição, erguemo-nos, lancei uma despedida vaga e maquinal:
– Obrigado. Não, não. Era impossível. Adeus.

Saímos e, em linha, fomos levados ao casarão baixo. A alguns
metros da porta uma grade se descerrou, e a fileira pouco a pouco mergulhou
nela. O tempo se desperdiçara nas idas e vindas, nas buscas, no refeitório
sombrio. Quantas horas? A falta de um relógio me desorientava. Suponho
havermo-nos retardado ali, de pé, meio indiferentes, avançando
um passo, outro passo, como bichos miúdos a caminhar para uma goela
de cobra; mas isto é reminiscência quase a apagar-se, neblina
de sonho. Nessa paralisia da vontade os minutos se encolhem ou se alongam
desesperadamente. Afinal fui engolido, achei-me num estreito vão, barras
negras de ferro em frente e à retaguarda. A esquerda um sujeito de
zebra indicou uma cadeira e entrou a desculpar-se: infelizmente era obrigado
a tosquiar-me.

– Isso não tem importância, declarei sentando-me, a valise
nas pernas.

E o barbeiro iniciou a tarefa, meteu-me nos cabelos uma pequena máquina
cega. Verboso, prosseguia nas justificações, pensando causar-me
dano; carrasco amável, queria harmonizar-se com a vítima. A
loquacidade me aborrecia; era espantoso imaginarem-me capaz de guardar ali
qualquer espécie de vaidade.

– Meu amigo, não se preocupe. Vai muito bem. Continue o seu trabalho.

– Está incomodando muito? – De forma nenhuma. Vai muito bem.

O infame instrumento arrancava-me os pêlos, e isto me dava picadas
horríveis no couro cabeludo. A operação findou, ergui-me,
passei os dedos no crânio liso, arrepiado na friagem da noite. Diabo.
Estávamos no inverno, a cabeleira ia fazer-me falta. Um burburinho
extenso anunciava multidão.

ALGUÉM me chamou, perto, avizinhei-me da grade interior, percebi no
outro lado uma figura indistinta. Reconheci-a pela voz mansa, dormente. Depois,
habituando os olhos à luz mortiça, divisei as feições
de Vanderlino, o moço calmo, vagaroso, que no Pavilhão dos Primários
gastara semanas destruindo um cabo de vassoura, talhando peças de xadrez
a canivete. Parecia à vontade, como se estivesse em casa, e manifestava
um prazer absurdo ao ver-me ali. Ficou um minuto a falar oferecendo qualquer
coisa, mas não consegui entendê-lo: a minha atenção
fixava-se no lugar sombrio onde ele se achava. Através das barras de
ferro uma turba confusa me surgia de chofre, corpos indecisos a mexer-se,
em pé, de cócoras, estendidos, espalhando o surdo rumor já
notado enquanto me raspavam a cabeça. Nenhuma particularidade, som
ou visão, se destacava nessa balbúrdia. Apenas o novelo animado
a desdobrar-se no escuro e o burburinho a rolar. Um cheiro desagradável,
complexo, indeterminado, provocava tosse.

Abriu-se a porta, avancei, num instante me vi mudado em partícula
da massa heterogênea. Achavam-se ali provavelmente os bichos curiosos
expostos no relatório de Chermont.

Perdiam-se naquele fervilhar de cortiço a zumbir, e a minha curiosidade
minguava no alvoroço. Capotes e redes indicaram-me os companheiros
de viagem, num grupo. Haviam entrado antes ou depois de mim? Vanderlino prosseguia
na conversa. Levou-me para o centro do galpão, e só aí
compreendi a oferta muitas vezes repetida: era-me possível dormir ali.
Reuniu a esteira dele à do vizinho e conseguiu arranjar o espaço
necessário a três indivíduos. Sentei-me na urdidura gasta
de pipiri, fiz da valise travesseiro, pus-me a fumar, não distinguindo
bem as palavras de Vanderlino.

Surgiram-me de relance caras já vistas, umas conhecidas, outras duvidosas.
Cansava-me fazendo perguntas mudas: – “Onde terei visto esse tipo?”
A dois passos alguns sujeitos nos examinavam fixos, indiscretos; julguei-os
espiões, interessados em descobrir um movimento, ou olhar suspeito,
avisar a polícia. Joguei fora a ponta do cigarro, os homens se lançaram
sobre ela, empurrando-se. Levantaram-se. A ponta do cigarro tinha desaparecido.
Com um estremecimento, recordei-me do aviso do soldado, no pátio; a
inesperada vileza dizia claro o valor do fumo na prisão. Desejei distribuir
cigarros aos infelizes; acanhei-me, fingi distração, receando
vexá-los. Continuaram perto, observando, a rondar.

Chamaram-me da porta; levantei-me, para lá me dirigi, estranhando
que alguém já me soubesse o nome; andei lento, fazendo curvas
e ziguezagues, entre as esteiras muito numerosas no chão sem ladrilho.
Avizinhei-me da grade, vi além dos varões um rapaz magro, pavoneante
na farda nova. Em criança, tinha-me conhecido: era filho de José
Plácido. José Plácido? Tentei lembrar-me. Um sapateiro
aleijado das pernas, compadre de meu pai.

– Sei. Morava na Rua do Gurganema. Ainda é vivo? Estava morto, presumo,
e com isto a minha curiosidade terminou. Esse encontro não me deu nenhum
contentamento. Plácido moço ficou um instante a encarar-me severo,
exibindo superioridade; constrangi-me supondo nele o intuito de acabrunhar-me.
Arredou-se, outro soldadinho veio substituí-lo, propondo-se, num cochicho,
a servir de intermediário se eu precisasse qualquer coisa do exterior.
Realizava-se muito cedo a promessa do sargento. Agradeci. Haveria de precisar,
com certeza. Não me comportava de maneira conveniente: a postura e
a linguagem violavam as normas. Sem ambages, o anspeçada Aguiar encarregou-se
de me explicar isso. Miúdo e teso, surgiu, olhou-me duro, resmungou:
– Cruza os braços, chefe.

Em mudo assombro, devo ter-me conservado longo tempo imóvel, a vista
escura, as idéias em fuga, o coração a estalar de raiva
e desespero; o ar frio da noite veio outra vez morder-me o couro cabeludo.
Ter-me-iam largado aquela frase? Inclinava-me a duvidar, tão inconcebível
era, e esforçava-me por admiti-Ia, conjugá-la a farrapos de
notícias, compreender a situação. Achava-me estúpido.
Evidentemente as palavras tinham sido proferidas, necessário repetir
isto. Surpreendiam-me nelas dois pormenores: o sujeito usava ironia, chamando-me
chefe, e tuteava-me. Na surpresa, virei-me para os lados, procurando ver se
a ordem singular não se dirigia a outra pessoa. Através da névoa
distingui a pequena distância os óculos do velho Eusébio,
capotes, redes, confusas lembranças da semana incômoda. Tolice
querer enganar-me: aquela miserável insignificância falava comigo.
Porque me espantava? Casos semelhantes me haviam sido várias vezes
narrados, causando abalo rápido. Julgara-os, desatento, fatos possíveis,
improváveis. Agora me atordoava, buscando aflito meios para resistir.
Nada achei. Dentro de mim ódio impotente, enleio, a carne a inteiriçar-se,
arrepios a subir-me o espinhaço, a torturar-me o crânio pelado;
fora, trouxas, pacotes, figuras nubladas, os óculos medrosos do velho
Eusébio. Inútil pensar em defender-me. Certo a criatura nanica
era débil, mas fortificava-se por detrás de barras de ferro,
as armas do governo a protegiam, davam-lhe empáfia segura. No desarranjo
momentâneo o que mais me impressionou foi sentir-me inteiramente só.
Havia em torno um milheiro de homens, com certeza, mas a horrível sensação
de isolamento empolgava-me.

Cruzei os braços, aniquilei-me. A vontade sumira-se, o meu corpo
infeliz era um conjunto de trapos bambos. Vendo-me assim, vazio e inerte,
o anspeçada Aguiar disse-me que as esteiras viriam no dia seguinte;
aquela noite dormiríamos na terra nua.

Está bem.

Ia retirar-me, um guarda me deteve com esta decisão incompreensível:
– Na formatura reúna os seus homens lá no fundo.

– Os meus homens? gaguejei atarantado.

– Os seus companheiros. Mande que eles formem lá na porta.

Sucumbido, fui apontar aos recrutas o lugar onde nos alinharíamos.
Isto me rebaixava mais que a atitude humilde na presença do anspeçada.
Um momento me anulara, incapaz da mínima reação, meio
cadáver. Pretendiam agora infamar-me, transformar-me em vigia dos meus
amigos. O terror me obrigaria a mantê-los na disciplina e, sendo preciso,
denunciá-los. Um instrumento dos verdugos enxameantes além da
grade. Cabo de turma, com horror senti-me cabo de turma. Chegaria a conseguir
bastante vileza para desempenhar esse papel? Enquanto me dirigia ao grupo
e indicava a extremidade obscura do galpão, atenazava-me a pergunta
ansiosa; e a resposta se esboçava no rosto zombeteiro de João
Rocha. O mulatinho parecia felicitar-me com um risinho encolhido e enviava-me
espiadelas de soslaio, exibindo respeito burlesco. Patife. Os outros, glaciais,
começavam talvez a desprezar-me. Tencionava amparar-me neles, e a dura
reserva feria-me, pior que bofetada. Esses desentendimentos originam fundos
rancores, ódios, e não nos surpreendemos se uma criatura hoje
se inflama a cantar hinos revolucionários e amanhã cochicha
pelos cantos, envia cartas à autoridade. Reunindo a custo indecisos
fragmentos de energia, julguei-me incapaz de chegar a isso – e a desconfiança
tácita flagelava-me. Novamente a solidão me envolveu, aqueles
homens se distanciavam, como se ainda estivessem no Rio Grande, no Paraná,
terras desconhecidas. Separei-me deles, voltei ao meu pouso, sentei-me na
valise; o esquisito abandono pouco a pouco se sumiu. Não valia a pena
atormentar-me com a opinião alheia. Era enorme o alojamento, sem dúvida
estava ali um milheiro de pessoas.

Vanderlino me interrompeu cálculos difíceis e apresentou uma
delas, rapagão espadaúdo, simpático, o olho vivo, de
gavião. Uma curiosa madeixa de cabelos brancos enfeitava-lhe a testa
e o lábio superior se erguia, descobrindo os dentes, num sorriso sarcástico.
Fisionomia aberta, ar decidido. Admirou-me a franqueza de Vanderlino ao dizer
o nome e o ofício da personagem.

– Gaúcho, ladrão, arrombador.

Um insulto. Como se ofendia um homem daquele jeito, cara a cara, sem metáforas?
Examinei os dois um instante, reconsiderei. No Pavilhão dos Primários,
Vanderlino era um sujeito de excessiva delicadeza; a voz calma não
se alteava; nunca melindraria ninguém. E Gaúcho nem de longe
parecia injuriar-se. Tinha a aparência de uma ave de rapina. Estendeu-me
a garra larga, acocorou-se junto à esteira, pôs-se a conversar
naturalmente. Apertando-lhe a mão, declarei ter muito prazer em conhecê-lo.
Tinha. Não era apenas curiosidade. Finda a surpresa, confessei a mim
mesmo que poderia tornar-me sem esforço amigo do ladrão. A firmeza,
a ausência de hipocrisia, a coragem de afirmar, tudo revelava um caráter.
Lembrava-me dos modos esquivos dos meus companheiros, da malícia estulta
de João Rocha. Bem. Cortavam-me várias amarras, vidas estranhas
iam patentear-se no formigueiro em rebuliço. Dos rápidos minutos
desse encontro apenas resta o bom efeito causado pelo tipo anormal. Gaúcho
falava gíria, de quando em quando me obrigava a interrompê-lo:
– Que significa escrunchante? Escrunchante? Ora essa! O lunfa que trabalha
no escruncho, quer dizer, no arrombamento. Era a profissão dele. Súbito
a palestra morreu.

– Formatura geral, gritou um negro lá da porta. Deslocaram-se com
rumor os objetos espalhados no solo, uma nuvem de poeira toldou as luzes escassas,
toda a gente se moveu, organizaram-se à pressa numerosas filas. A minha,
ao fundo, era a mais curta e algum tempo ficou acéfala. De repente
mandaram-me sair de forma e achei-me em frente aos dezesseis homens firmes,
direitos, de braços cruzados. Cabo de turma, realizava-se a previsão
funesta. Mas não me conservaria no miserável cargo: era-me impossível
fiscalizar os outros; naquele instante cerrava as pálpebras, ignorava
os acontecimentos em redor. Uma voz longínqua chegava-me aos ouvidos,
a cantar números, e nem me ocorria perguntar a mim mesmo a significação
deles. Abrindo os olhos, convencia-me da existência de vultos indecisos
a transitar para cima, para baixo, certamente fazendo a contagem. E desgostava-me
enxergar a careta manhosa de João Rocha. Tirou-me desse enleio um forte
barulho. Despertei, vi a dois passos um soldado cafuzo a sacudir violentamente
o primeiro sujeito da fila vizinha. Muxicões terríveis. A mão
esquerda, segura à roupa de zebra, arrastou o paciente desconchavado,
o punho direito malhou-o com fúria na cara e no peito. A fisionomia
do agressor estampava cólera bestial; não me lembro de focinho
tão repulsivo, espuma nos beiços grossos, os bugalhos duas postas
de sangue. Os músculos rijos cresciam no exercício, mostrando
imenso vigor. Presa e inerme, a vítima era um boneco a desconjuntar-se:
nenhuma defesa, nem sequer o gesto maquinal de proteger alguma parte mais
sensível. Foi atirada ao chão, e o enorme bruto pôs-se
a dar-lhe pontapés. Longo tempo as biqueiras dos sapatos golpearam
rijo as costelas e o crânio pelado. Cansaram-se enfim desse jogo, o
cafuzo parou, deu as costas pisando forte, soprando com ruído, a consumir
uns restos de furor. O corpo estragado conservou-se imóvel. Estremeceu,
devagar foi-se elevando, agüentou-se nas pernas bambas, mexeu-se a custo
e empertigou-se na fileira, os braços cruzados, impassíveis.

Todos em roda estavam assim, firmes, de braços cruzados, impassíveis.
Nenhum sinal de protesto, ao menos de compaixão. Também me comportara
com essa horrível indiferença, como se assistisse a uma cena
comum. Éramos frangalhos; éramos fontes secas; éramos
desgraçados egoísmos cheios de pavor. Tinham-nos reduzido a
isso. Qual a razão daquela ferocidade? A cabeça fervia-me; as
dores no pé da barriga tornavam difícil a posição
vertical: debalde tentava aprumar-me, inclinava-me para a direita. Precisava
descansar. Já nem me importava saber a causa da sevícia imprevista.
Falta ligeira: algum descuido, gesto involuntário, cochicho a perturbar
o silêncio. Estávamos reduzidos àquilo. Derreava-me tanto
que julguei perder o equilíbrio, estender-me na terra. O cafuzo viria
levantar-me com a biqueira do sapato. Estávamos reduzidos a isso.

Não sei quanto durou o suplício. Debandamos, houve uma lufa-lufa
no arranjo das camas. Andei a capengar na multidão, em busca de Vanderlino.
Alcancei a nesga de esteira, pude sentar-me, fumar. Os sucessos do longo dia
misturavam-se, pesavam demais. Impossível dizer qualquer coisa. Estirei-me,
caí num sono de pedra.

12

UM toque de corneta ergueu-me, e ouvi o grito da véspera: – Formatura
geral.

Ainda quase a dormir, vi-me arrastado pela multidão que fervilhava
com rumor, dobrando cobertas, enrolando esteiras. Andei à toa, maquinal,
ignorando o motivo da agitação; acordei, a memória funcionou,
o grito adquiriu sentido Pela primeira vez me sucedia levantar-me durante
o sono e despertar caminhando. Lá fora havia trevas. Porque nos vinham
perturbar tão cedo, roubar-nos alguns minutos de repouso? Essa pergunta
inexeqüível juntava-se a outra, formulada com certeza no meio
da confusão: onde me deveria colocar? Os meus companheiros de viagem
sumiam-se dispersos, eram fragmentos na balbúrdia.

Novamente cantaram números, uma longa tabuada. Na inconsciência
e na atarantação, achei-me numa fila, não longe da porta.
Felizmente ocupava o quarto ou quinto lugar, podia ocultar-me, não
ver a tromba e os olhos vermelhos do soldado cafuzo que tanto me havia perturbado
na véspera. Dois ou três passos atrás de mim o velho Eusébio
se aniquilava, e alguns capotes na vizinhança indicaram-me a dissolução
do nosso grupo. Isto me sossegou, vi-me livre do humilhante dever imposto
horas antes. Não me deixariam no cargo infame, decerto, mas surpreendeu-me
notarem tão depressa a minha incapacidade. Bem. Ia tornar-me invisível,
acabaria acostumando-me à vida no formigueiro.

– Já estão na bagunça! exclamou alguém com estridência
arrepiada.

Virei-me, enxerguei um tipinho de farda branca, de gorro branco, a passear
em frente às linhas estateladas. Era vesgo e tinha um braço
menor que o outro, suponho. Não me seria possível afirmar, foi
impressão momentânea. Um sujeito miúdo, estrábico
e manco a compensar todas as deficiências com uma arenga enérgica,
em termos que me arrisco a reproduzir, sem receio de enganar-me. Um bichinho
aleijado e branco, de farda branca e gorro certinho, redondo. Parecia ter
uma banda morta. O discurso, incisivo e rápido, com certeza se dirigia
aos recém-chegados: – Aqui não há direito. Escutem. Nenhum
direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há
grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção.
Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não
vêm corrigir-se: vêm morrer Embora não me restasse ilusão,
a franqueza nua abalou-me: sem papas na língua, suprimiam-nos de chofre
qualquer direito e anunciavam friamente o desígnio de matar-nos. Singular.
Constituíamos uma sociedade numerosa, e não tínhamos
nenhum direito, nem ao menos o direito de viver. Esquisita afirmação.
Várias pessoas estavam ali sem processo, algumas deviam quebrar a cabeça
a indagar porque as tratavam daquele jeito; não havia julgamento e
expunham claro o desejo de assassiná-las. Não nos faziam ameaça
vã, como notei depois. Atanazavam-me as palavras do caolho: todos iguais,
nenhum direito, os soldados podiam jogar-nos impunemente no chão, rolar-nos
a pontapés. E finar-nos-íamos devagar. Isso me trouxe ao pensamento
a brandura dos nossos costumes, a índole pacífica nacional apregoada
por sujeitos de má fé ou idiotas. Em vez de meter-nos em forno
crematório, iam destruir-nos pouco a pouco. Certamente era absurdo
responsabilizar o Brasil, quarenta milhões de habitantes, pela sentença
do zarolho. Ali dentro haveria criaturas bem intencionadas, mas não
nos valeriam muito na engrenagem que nos agarrava. Lembrei-me do sargento,
da voz morna a gemer um conselho brando, no escuro. Não podia alimentar-me,
e esses propósitos generosos deixavam firme a revelação
dura: – “Vêm morrer.” Sem dúvida. Quando chegaria a
minha morte? Embora a julgasse próxima, de nenhum modo me desgostava.

Amanhecia. Uma das paredes laterais do galpão fechava-se, inteiriça;
havia na outra janelas altas, inatingíveis: Por uma larga porta víamos,
através das barras, as cercas de arame. Abriu-se, as filas moveram-se,
marcharam, entraram no curral, volveram à esquerda, transpuseram a
cancela e, engatadas em linha extensa, ondularam no pátio, sob as árvores
de grandes folhas amarelas, dirigindo-se ao refeitório. Andávamos
lentos, em fundo silêncio, os braços cruzados. Invadimos a saleta
estreita e longa, novamente me achei sentado num banco, as mãos a descansar
em tábuas postas sobre cavaletes. Aos lados, em frente, pessoas estranhas;
apenas reconheci a figura bamba do velho Eusébio. Importunado pelo
cheiro desagradável, acendi um cigarro. A luz da manhã, as pranchas
nuas eram horríveis. Em torno, caras macilentas. Chamaram-me a atenção
forquilhas de numerosas pontas, arbustos secos feitos cabides, onde se penduravam
canecos de lata, formando cachos barulhentos. Homens de zebra mexiam neles,
distribuíam rápidos as vasilhas nas mesas. Atentei na minha,
suja, enferrujada, a asa cheia de lama, quis mostrá-la ao sujeito que
nos servia; moderei-me: impossível reclamar, e todas eram mais ou menos
assim. Um tipo de fisionomia repulsiva, manejando enorme bule de folha, vazou
nelas uma beberagem turva. Baixei a cabeça, vi um pãozinho redondo
sobre a tábua; no líquido frio boiavam cadáveres de moscas.
Não percebendo em roda sinal de nojo, tentei vencer a repulsa, mastigar
a comida insuficiente. Em vão busquei dividi-Ia: a massa obstinou-se,
pegajosa, mole: tinha a brandura resistente de borracha. Soltei-a, fiquei
algum tempo a olhar as moscas mortas. Enfim me decidi: retirei-as, bebi o
caneco de água choca. Seria mate? Veio-me a idéia extravagante
de que a miserável insipidez era uma infusão de capim seco.
Nada me levava a supor isto, mas a idéia permaneceu. O rumor de centenas
de corpos em movimento deu sinal de regresso. Ergui-me, saltei o banco, ia
enfileirar-me quando um vizinho me bateu no ombro, indicou o pão elástico
abandonado sobre a mesa: – Vai deixar isso? – Claro.

No rosto do homem havia espanto e censura: – Guarde. Vai precisar depois.

O enjôo me impedia aceitar o conselho prudente; murmurei a recusa
maquinal jogada à noite diante das manchas quase invisíveis
num prato invisível: – Obrigado. Não tenho fome.

O sujeito, rápido, meteu o pão no bolso. Entramos em forma,
voltamos, cabisbaixos e de braços cruzados. Houve uma azáfama
no alojamento: desfizeram as camas, espalha ram-se no curral, estenderam lençóis
e esteiras ao sol. Deixei-me arrastar, sem perceber direito porque nos mexíamos,
achei-me sentado junto a uma cerca de arame. Lembro-me de ter lançado
esta pergunta várias vezes: quantos éramos? As respostas divergiam,
mil, novecentos, e obstinava-me na indagação, como se tivesse
grande interesse em fixar o número exato. Convenci-me enfim de que
éramos novecentas pessoas; a curiosidade esfriou e derramou-se.

Na leve neblina da manhã uma sombra vermelha passou perto de mim;
atentei nela, distingui nos ombros de um rapaz moreno o poncho revolucionário
de Tamanduá. Nas idas e vindas, no interminável borbulhar de
espuma, os objetos deslocavam-se, em trocas, em ofertas. Surpreendeu-me ver
muitos indivíduos com as roupas pelo avesso, os bolsos para dentro.
Era desnecessário explicarem-me a razão dessa cautela: a singular
sociedade permitia o furto e resguardava-se, nem sequer fingia dissimular
os receios. Talvez o rapaz moreno houvesse abafado o poncho rubro.

Novecentos homens num curral de arame. Pensei na estridência, nos
arrepios de Tamanduá: – “Bichos, vivíamos como bichos.”
A grade tinha ficado aberta. Além dela passavam criaturas meio nuas,
varrendo a prisão. Que nome tinham as plantas esguias do monte próximo?
Novo esclarecimento me chegou: piteiras. Bem. O guarda vesgo de roupa branca
se excedera: ainda me restava o direito de informar-me. Estavam ali novecentas
pessoas e as árvores finas se chamavam piteiras.

Vi organizarem-se as filas do trabalho e incorporei-me numa, ao acaso: mandar-me-iam
com certeza carregar tijolos, pois me faltava habilidade para o serviço
na horta ou na cozinha. No transporte de tijolos ocupava-se a maioria dos
presos. Avizinhamo-nos pouco a pouco de um tenente de polícia, alto,
de beiço rachado, que fazia a distribuição O companheiro
da retaguarda sussurrou-me a alcunha dessa figura: Bicicleta. Procurei o motivo
do apelido curioso, nada vi semelhante ao objeto da comparação:
um homem atento, grave, de rosto inexpressivo. Ao chegar a minha vez, examinou-me
de relance e determinou conciso: – Volte.

– Porquê? murmurei atrapalhado, esquecendo o lugar onde me achava.

– Está doente.

– Não. Estou bem, respondi à toa, vexado com a exclusão.

Seria uma preferência injustificável? Bicicleta passou-me o
rabo do olho e insistiu: – Volte.

Saí da fila, dei as costas, de novo me sentei ao pé da cerca,
apoiando-me numa estaca. A minha fraqueza era então visível,
julgavam-me incapaz de resistir ao peso de três tijolos. Não
me sentia tão combalido, apesar de mexer-me a custo, e afligia-me o
pensamento de lesar Vanderlino, os homens do Paraná e do Rio Grande,
enviados em turmas. A exceção me envergonhava: tinha aparência
de favor, e isto era desagradável. Algumas palavras em conversa ligeira
dissiparam-me os escrúpulos.

– Que idade tem o senhor? perguntou-me alguém. Veio-me o desejo de
conhecer o meu aspecto: – Calcule.

– Sessenta e cinco anos, disse o interlocutor sem vacilar.

– Por aí, pouco mais ou menos, concordei num abatimento profundo.

Sessenta e cinco anos. Andava em quarenta e três, quarenta e três
e meses. Atribuíam-me sessenta e cinco. Essa carga de vinte e dois
anos explicava a recusa do oficial: – “Está doente. Volte.”
Uma espiada de través e a decisão: – “Volte.” A noite,
o anspeçada Aguiar, vendo-me curvo, a arrimar-me à parede, tinha-me
oferecido uma cadeira. Percebia agora porque me haviam mandado reunir os novatos
no fim do alojamento a velhice me permitia essa infeliz vantagem. Mas achava-me
tão bambo, tão murcho, que me deixavam logo em sossego. Uma
ruína, imprestável, nem servia para carregar tijolos. Para bem
dizer, o estômago desaparecera; a dormência da perna alcançava
o joelho; as ferroadas no pé da barriga não cessavam. As dores,
o torpor e o vácuo não me pareciam contudo sintomas graves,
e espantava-me sabê-los perceptíveis. Sessenta e cinco anos.
Se pudesse ver-me num espelho, notaria medonhos estragos, devastação.
O guarda manco e vesgo afirmara: – “Aqui não vêm corrigir-se.
Vêm morrer.” Certamente. Era assombroso, porém, aquilo realizar-se
tão depressa. A morte se aproximava, surrupiava-me de chofre vinte
e dois anos; o resto iria sumir-se, evaporar-se. Antes de saber isso, distraía-me
buscando articular frases e gestos, olhando os montes e as piteiras a emergir
da luz e da bruma, o pátio claro, as árvores douradas. Num instante
a curiosidade amortecia. O poncho vermelho de Tamanduá voejava perto,
dava ao rapaz moreno uma vaga feição de ave provocadora, a bater
as asas agoureiras. Já não me interessava descobrir se ele estava
ali por compra ou furto. As dores no ventre e o torpor na coxa avivaram-se.
Incrível: tinham notado isso melhor que eu. Devia achar-me na verdade
muito doente. A luz ruim dos cubículos do Pavilhão debilitara-me
a vista: para ler, era-me preciso afastar o livro, esforçando-me por
conter a dança caprichosa das letras. E havia também a estranha
insensibilidade, o desaparecimento repentino dos desejos sexuais. Todos os
sentidos esmoreciam. Velho. A decrepitude me agravaria as macacoas se a sentença
do guarda não fosse realizar-se. Quando seria? Onde iriam enterrar-me?
Dentro de uma semana, alta madrugada, os faxinas me levariam para um cemitério
pequeno e lá me deixariam, anônimo. Depois, o silêncio.
Uma semana de jejuar. O organismo achacado não resistiria mais. Sessenta
e cinco anos. Na véspera, coxeando nas ladeiras, era-me impossível
imaginar tal coisa. A gente mais ou menos válida tinha saído
para o trabalho, e no curral se desmoronava o rebotalho da prisão,
tipos sombrios, lentos, aquecendo-se ao sol, catando bichos miúdos.
Os males interiores refletiam-se nas caras lívidas, escaveiradas. E
os externos expunham-se claros, feridas horríveis. Homens de calças
arregaçadas exibiam as pernas cobertas de algodão negro, purulento.
As mucuranas haviam causado esses destroços, e em vão queriam
dar cabo delas.

Na imensa porcaria, os infames piolhos entravam nas carnes, as chagas alastravam-se,
não havia meio de reduzir a praga. Deficiência de tratamento,
nenhuma higiene, quatro ou seis chuveiros para novecentos indivíduos.
Enfim não nos enganavam. Estávamos ali para morrer.

13

RECOLHERAM-NOS, fecharam a grade, fomos arriar pelos cantos as nossas morrinhas.
Tinham espalhado no galpão uma camada espessa de areia, e quando entramos,
acabavam de jogar nela baldes de água. Supus nisso um desígnio
perverso: obrigavam-nos a descansar no chão molhado. Reconsiderei:
talvez quisessem apenas reduzir, pelo menos algumas horas, a poeira sufocante.
Recebi uma esteira nova e curta. Estendi-a no chão, perto do lugar
onde me havia estabelecido na véspera. Sentei-me, abri a valise, receoso
de algum furto durante a ausência. Tudo em ordem, meias, cuecas, lenços,
uma toalha miúda, a provisão de cigarros e fósforos.
Ainda nenhum furto, mas era conveniente não separar-me dos troços:
as roupas vestidas pelo avesso anulavam tristezas, davam-me desejo de rir
e sugeriam-me cautela. Um grito e um aceno levantaram-me, aproximaram-me do
negro que fizera a chamada e ordenara a organização das filas.

– O seu número é 35.35, anunciou.

Fiquei um momento absorto, pouco a pouco me inteirei da supressão
do meu nome, substituído por quatro algarismos.

– 35.35, não se esqueça. – Está bem.

Nada mais ouvindo, afastei-me e colhi informações. Não
sei porque o sujeito me impressionara. Chamava-se Cubano, tinha este apelido.
Em geral se usavam pseudônimos naquele meio: Gaúcho, Paulista,
Paraíba, Moleque Quatro. Cubano dispunha de autoridade enorme. Na falta
dos guardas ou do anspeçada Aguiar, mandava e desmandava; submetia-nos
a disciplina rigorosa e uma denúncia dele trazia os castigos mais duros
a qualquer um. Ao chegar a primeira leva, esse vasto poder se confiara a Moleque
Quatro, mas a enérgica personagem, forte na capueira e no samba, não
dera conta do recado e em pouco tempo se degradava no transporte das vigas,
um tormento. Cubano agüentava-se no papel de cão de fila. Era
um sujeito de meia altura, encorpado, grave, de fala macia. O cocuruto principiava
a desnudar-se, ia tomando feição de tonsura. Caminhando, movia-se
todo, para um lado, para outro, como se as juntas não funcionassem
bem. Essa maneira de andar, reumática, dava-lhe jeito de boneco e de
longe o tornava reconhecível pelas costas. Naquela manhã apenas
me disse e repetiu o número do batismo: 35.35. Ou 33.35, não
me lembro direito. Recordo-me dos algarismos, extinguiu-se a disposição
deles. Extinguiu-se de chofre: ao deitar-me na esteira, já se baralhavam,
apesar do aviso: – “Não se esqueça.” Na chamada seguinte
Cubano berrou o número muitas vezes, debalde; convenceu-se depois de
que me era impossível tê-lo de cor e deixou de mencioná-lo.

– Formatura geral.

Agitação de carneiros, entrada ruidosa nas filas. Estive alguns
minutos de pé, aguardando a causa do movimento. O cochicho de um guarda,
e voltamos aos nossos lugares. Novamente a exigência de Cubano: – Formatura
geral.

E o tropel de bichos mansos na areia molhada. Ordem para debandar, regresso
às esteiras, às camas, às tábuas juntas ao fundo.
Terceiro chamado, quarto, quinto. Havia tábuas e camas, perto das paredes;
não as notei a princípio, e na barafunda perdiam-se; mais tarde
consegui atentar nelas. Os homens do trabalho foram chegando, sujos de pó
vermelho, suarentos. Cerca de meio-dia saímos do galpão, outra
vez nos dirigimos ao refeitório. Vi-me sentado entre as figuras vagamente
percebidas pela manhã. A direita enxerguei o rapaz que havia metido
o pão no bolso. Colheres e pratos de folhas tiniram, chocando-se na
distribuição, e logo veio a comida: feijão negro, farinha,
um pedaço de carne. Uma insignificância, ninguém podia
alimentar-se com tão pouco.

Mas o que me assombrava era o aspecto da bóia. Horrorizei-me, pensando
em vômito, em lata de lixo. Afirmando a mim mesmo ser impossível
um estômago suportar aquilo, observava o contrário, numerosas
pessoas devorando sôfregas, insensíveis à porcaria e ao
cheiro teimoso de podridão. O olfato, o paladar e a vista acomodavam-se
às circunstâncias. E havia um clamor surdo. Evidentemente não
se abalançariam a pedir qualquer coisa. Mas achavam-se esfomeados,
novecentos indivíduos esfomeados a procurar migalhas nos pratos vazios.
Gestos aflitos, desespero nos rostos, um sussurro a aumentar, queixa longa.
Não os inquietava a qualidade: atormentava-os a insuficiência
da refeição torpe. Em redor de mim tudo se consumira, e obstinava-me
a chupar o cigarro, olhando a infame ração. Na farinha escura
havia excremento de rato. Apesar da náusea, parecia-me necessário
comer, retardar a previsão do guarda zarolho. Chegaria afinal a habituar-me,
como os outros, conseguiria vencer o enorme enjôo, matar a sensibilidade.
Fiz um tremendo esforço, meti na boca uma colher de feijão,
engoli rápido. Um gosto horrível deu-me tremuras. Percebendo-me
as contrações, um vizinho me segredou que deitavam potassa no
feijão para cozinhá-lo depressa. Atordoado, recusei-me a aceitar
a informação. Depois caí em desânimo profundo,
continuei a fumar, os cotovelos na prancha, num desfalecimento, as pálpebras
cerradas. Não havia meio de evitar o medonho vaticínio do zarolho.

Tocaram-me o ombro direito, saí da inércia, notei um pedido
faminto na cara do homem que havia metido o pão no bolso. Compreendeu-me
a renúncia muda, agarrou ávido o prato, deixou-o limpo num instante.
A educação desaparecera completamente, sumiam-se os últimos
resquícios de compostura, e os infelizes procediam como selvagens.
Na verdade éramos selvagens. Esgotou-se o tempo, buscamos os nossos
lugares, pusemo-nos em marcha; o zumbido lamentoso decresceu e findou na extensa
linha resignada e lenta. A viagem curta esfalfou-me. Entrando no galpão,
deitei-me e adormeci logo. O berro de Cubano despertou-me: – Formatura geral.

Com certeza aquilo iria prolongar-se indefinidamente, não nos deixariam
em sossego. Queriam apenas isto: mexer-nos, obrigar-nos à correria
estúpida. Um sono pesado amortecia me as dores agravadas ultimamente,
e à ordem, sempre renovada, movia-me como sonâmbulo, procurando
adivinhar se estava muito longe o toque de silêncio. A princípio
molhávamos os sapatos; mas a terra secou e depois do almoço
uma nuvem de poeira se erguia à contínua deslocação.
Atenuava se um pouco, engrossava, e mergulhados nela respirávamos com
dificuldade e tossíamos. Ergui-me trinta vezes e andei como barata,
da fila para a esteira, da esteira para a fila. As idéias baralhavam-se
em confusão doida, um torvelinho; diluíam-se pensamento e vontade,
a consciência falhava. Tentando agarrar-me a qualquer coisa, absorvia-me
na contagem mecânica dos exercícios inúteis.

– Formatura geral.

Trinta vezes. Em seguida perdi a conta. E os sucessos em roda esmoreceram,
findaram. A tardinha me achei na sala comprida, em frente do jantar, mas ignoro,
como cheguei, como saí. A repugnância havia desaparecido. Insensível.
nem vi quando o vizinho me retirou o prato imundo. Sei que fez isso porque
assim procedeu vários dias. Não me lembro. As vozes abafadas,
o rumor das colheres, o cheiro nauseabundo, a comida nojenta, as pranchas
negras apagavam-se. Julgo haver dormido. Novamente no galpão.

– Formatura geral.

A revista, a enfadonha cantilena dos números, os guardas examinando
as fileiras imóveis, os olhos sangrentos e maus do cafuzo, a investigar
culpas. Noite. Irradiava-se per to das lâmpadas uma luzinha baça,
os cantos do galpão mergulhavam na sombra. Debandamos, cessaram as
chamadas e o burburinho espalhou-se.

Estendi-me na esteira, a arquejar, descoberto, sem ânimo de abrir
a valise, retirar alguns panos, envolver a cabeça nua, defendê-la
do ar frio. A esquerda, Vanderlino tentou puxar conversa. Não respondi,
seria preciso demasiado esforço para entendê-lo E o solilóquio
do vizinho morreu. A direita, um homem se acocorou. Distingui o riso irônico
e a mancha de cabelos brancos de Gaúcho, o arrombador que me havia
entretido na véspera. Seria bom conhecê-lo. Se não fosse
a enorme fadiga, distrair-me-ia ouvindo o rapaz, buscaria sondar os pensamentos
e os sentimentos de um ladrão, mas a curiosidade arrefecia, os músculos
frouxos recusavam-se a gesticular, as pálpebras caíam e apenas
me era possível enxergar a esquisita madeixa, o curioso ricto amável
e sarcástico, nos membros e no peito marcas de tatuagens.

14

VEIO a ordem de silêncio e os corpos estenderam-se. Mas não
ficaram em repouso e o silêncio era impossível. Findo o rumor
tumultuário das conversas, formaturas, chamadas, combinações,
rixas, avultava um ruído complexo feito de tosses, ofegos, arrotos,
borborigmos, ventosidades fraga rosas. O barulho dos ventres não me
deixou descansar, estrondo cavo, ininterrupto Ao cair na esteira, achava-me
tão bambo que nem conseguia entender Vanderlino e Gaúcho. A
fadiga permanecia, os olhos fechavam-se. Desejo imenso de dormir. Na véspera
tombara no chão como pedra, e as coisas em redor tinham desaparecido
num instante. Agora o sono vinha, fugia. As vezes me embrenhava em agoniada
modorra, e logo um sobressalto me sacudia. – “Está doente.”
– “Que idade tem o senhor?” – “Calcule.” – “Sessenta
e cinco anos.” Essas palavras me perseguiam. Na verdade o tenente Bicicleta
devia ter razão. Um frio terrível, frio de maleita, a carne
a eriçar-se, os dentes a ranger sem descontinuar. Haveria por ali um
termômetro? Com certeza não era o contínuo rolar do ignóbil
trovão que me causava a insônia. Durante o dia quase me imbecilizara
na agitação maquinal, os queixos desgovernavam-se em bocejos,
a morrinha alquebrava-me e uma neblina me envolvera no refeitório Desejava
com desespero o esquecimento e a imobilidade. E na hora de aquietar-me lá
vinham as pontas de alfinetes impedir-me o sossego. Julguei-me intoxicado
pela colher de feijão engolida no almoço. Não era senão
isso. Abreviara a sentença do guarda zarolho, querendo afastá-la.
Marasmos curtos, estremecimentos. Os roncos medonhos das tripas enchiam a
noite, secretas necessidades orgânicas a manifestar-se em público.
Indignava-me o impudor coletivo, a ausência de respeito mútuo,
e queria explicar esse comportamento sujo. Coitados. A miserável bóia
lhes arrasara as entranhas, vencia melindres, anulava a educação.

As tremuras sacudiam-me, nos beiços queimados o cigarro colava-se.
Não agüentei a posição horizontal, sentei-me, enojado,
cuspindo. Muitas criaturas velavam também, mexiam-se nas esteiras,
gemiam, escarravam na areia, e ouviam-se vozes desconexas, divagações
delirantes. Sem cessar vultos se erguiam, deitavam-se, gente se deslocava
num vaivém contínuo, aglomerava-se no princípio do alojamento,
à direita. A precisão de um mictório chegou-me forte,
levantou-me, dirigiu-me àquele ponto. Já me havia achado ali,
pela manhã, de volta do curral, mas então o refúgio estava
deserto. Agora havia ajuntamento, e o que percebi horrorizou-me. Estaquei
indeciso à entrada, com desejo de recuar, mas a bexiga repleta obrigou-me
a permanecer no lugar infame. Era uma sala quadrada, o chão de cimento.
Pendiam do teto alguns chuveiros, quatro ou seis, e junto a uma parede se
alinhava igual número de latrinas, sem vasos, buracos apenas, lavados
por freqüentes descargas rumorosas. Em todas viam-se homens de cócoras,
e diante deles estiravam-se filas, esperando a vez, cabisbaixas na humilhação,
torcendo-se, a exibir urgências refreadas a custo. Essa mostra indecorosa,
a falta da mínima dignidade, encheu-me de vergonha e medo, tolheu-me
a ação. Olhei com desespero em redor, procurando ver se não
poderia urinar noutra parte. Não, evidentemente, era preciso aviltar-me
incorporando-me num dos grupos. Absurdo. Uns restos de pudor fechavam-me os
olhos, o quadro inverossímil sumia-se, isento de realidade, penosa
visão de pesadelo. A tiritar, a arder, chegava a supor-me enganado
pela febre, pedaços de sonho mau a torturar-me. O peso na bexiga impedia-me
o regresso.

Encostei-me à ombreira da porta, os braços e as pernas a vacilar,
braços e pernas de velho. – “Sessenta e cinco anos.” A vista
arruinada me iludia, e restava-me uma cons ciência a minguar, consciência
débil de sessenta e cinco anos. A necessidade intensa despertou-me.
As linhas resignadas mexiam-se lentas. Abeirei-me de uma, entrei; a cena ignóbil
dominou-me brutal, invadiu-me os sentidos. Esforçara-me por negá-la,
ao menos atenuá-la; apesar da clareza, era um fato novo, inadmissível,
qualquer coisa semelhante à aparição de um fantasma.
Conseqüência da febre. Na porta, embalava-me nesta afirmação,
a vista baça a espalhar-se no conjunto indeciso, evitando minúcias.
Ingressando na fila, esse desgraçado recurso me fugia, o exame impunha-se.
Caras macilentas, o suor a escorrer nas barbas crescidas; magrém e
sujeira, chagas negras medonhas produzidas pela mucurana; fadiga, nudez mal
disfarçada em trapos imundos; gestos de impaciência, inúteis
pedidos silenciosos. As pessoas agachadas contorciam-se em longos tenesmos,
retardavam-se arfando; limpavam-se em farrapos, lenços, fraldas de
camisas, erguiam-se exaustas, e ao cabo de minutos várias iam de novo
contrair-se numa cauda de fila. Passariam a noite a arrastar-se na viagem
de alguns metros, nas horríveis estações. Os sucessivos
jatos de água lavavam nádegas. Apesar disso, havia filetes de
sangue às margens das latrinas, coágulos de sangue. Lembrei-me
da informação cruel à hora do almoço. A potassa
arruinava intestinos. Arriscara-me a ingerir uma colher de feijão,
e apavorava-me submeter àquela ignomínia. Já me submetera,
não tinha meio de escapar, e ainda queria iludir-me. Era abjeto achar-me
no desfile repugnante, obrigado a ver fisionomias decompostas em desmaio de
cólicas.

Não sei que tempo estive a deslocar-me ronceiro. Passos curtos, paradas
extensas, os olhos baixos, fingindo não perceber os dolorosos movimentos
espasmódicos. Aguardava com dificuldade o momento de aliviar-me e sentia
dores vivas na próstata. Afinal pude esvaziar a bexiga, livrar-me da
exposição miserável, tornar ao galpão. Tinha sono,
mas não consegui dormir. O frio espicaçava-me, os queixos batiam
castanholas.

15

DE MANHÃ, no curral de arame, achei-me capaz de fixar a atenção,
coisa que ainda não conseguira fazer. As minhas observações
tinham sido fragmentárias e dispersas, as relações escapavam-me,
havia sulcos na memória, fatos de pequena importância avultavam
demais. Agora diminuía a perturbação. Tinha febre e uma
tossezinha renitente me aperreava, mas as tremuras da noite já não
me sacudiam.

Aquecendo-me ao sol, apoiado a uma estaca da cerca, distingui várias
pessoas conhecidas: Aristóteles Moura; o português que no Pavilhão
dos Primários cantava como galo; França, o padeirinho tuberculoso
de riso franzido; Van der Linden, Mário Paiva, Manuel Leal, meus companheiros
no porão do Manaus. Quando as turmas saíram para o trabalho
e a gente inválida se recolheu, distraí-me a reparar na gaiola
enorme. Da porta lateral do fundo corria uma linha de camas de ferro, juntas,
as cabeceiras encostadas à parede; nenhum espaço entre elas;
faziam ginástica para ocupá-las, galgando as extremidades. Ausência
de colchões. Os forros eram esteiras presas com barbantes. Precaução
indispensável: se as deixassem soltas, desapareceriam. Esse exagero
de cautela e as roupas vestidas pelo avesso não nos permitiam esquecer
o meio onde nos achávamos. Era preciso vigiarmos sem descanso os nossos
objetos; não me separava da valise. No muro oposto havia uma espécie
de lavatório. Sempre as torneiras abertas, rumor contínuo de
líquido nas pias, tilintar de canecos, chiar de escovas, lavagem de
cuecas e lenços, a higiene precária dos tipos que voltavam das
latrinas. Na água morna vinha areia, mas não tínhamos
outra para beber.

A direita, perto da entrada, alojavam-se as criaturas mais doentes. Em cima
de uma tábua um preto novo gemia grosso e arquejava, pedindo uma injeção
de morfina. Perto da grade que dava para o curral um homem pálido e
magro se consumia despejando hemoptises em duas bandas de lençol presas
entre as coxas. Esses pedaços de pano agitavam-se como asas feridas;
a criatura exangue suava, fechava os olhos e abria a boca, sem fôlego;
a esteira da cama estava coberta de manchas vermelhas.

Atentando bem, reconheci o Neves, um sujeito visto meses atrás no
Pavilhão dos Primários, cheio de mágoas recalcadas. Parecia
um dos indivíduos postos à margem, sem que se perceba claramente
a razão disto. Alarga-se e aprofunda-se uma vala em torno deles. Tiveram
responsabilidade num organismo revolucionário, mas sentiram-se de chofre
envoltos em desconfiança e amofinaram-se no desprestígio. Ignoram
quem os acusa; os exames ponderados e as críticas se tornaram impossíveis
nas mudanças repentinas de prisão. Alguns sujeitos se reúnem,
discutem hoje, e amanhã se avistam de longe noutro lugar. Nem se conhecem
direito. Surge uma dúvida sobre qualquer deles, reforça-se,
não há meio de verificar se é justa ou injusta. Escasseiam
as informações, truncam-se as notícias, e em vão
nos esforçamos por evitar uma credulidade infantil, conseqüência
do isolamento. Vemos um capitão de nariz bicudo a cochichar, supomos
que está fazendo uma trança miserável nos cubículos.
Notamos desagregação quando ele sai e afirmamos: – “É
da polícia.” Mas não temos plena certeza. E os fuxicos
brotam, indicam-se numerosos indivíduos suspeitos, denunciados pelo
capitão de nariz longo. Afinal já nem conseguimos distinguir
amigos de inimigos: o nosso parceiro no xadrez, no poker, na literatura, no
coletivo, pode ser um agente policial disfarçado em comunista. Fechamo-nos
em reserva silenciosa, tudo em redor é inconsistente.

Neves, pelos modos, era uma dessas criaturas ressentidas. No Pavilhão
vivia à parte. E agora se desfazia, derramava os pulmões nos
dois pedaços de lençol, na esteira amarrada a barbante. Nenhuma
queixa. O suor corria nos sulcos da pele cor de enxofre, os bugalhos sumiam-se
nas órbitas profundas e a caveira estava tão visível
como se se expusesse num ossuário. A resignação entrevista
meses atrás na fila da comida, à porta de um cubículo.
Resignação ou indiferença. Dentro em pouco o Neves iria
enterrar,se ao pé de um morro, a família o procuraria em vão
– ninguém se lembraria da existência dele.

Van der Linden e Mário Paiva também cuspiam sangue. No porão
do Manaus tinham perfeita saúde. Mário Paiva me bebera meia
garrafa de aguardente e me chateara em demasia: – “Lobato tinha uma flauta.
A flauta era do Lobato.” Pobre do Van der Linden. Já nesse tempo
se isolava, cercado por antipatias contagiosas, vagas censuras encobertas.
A velha blusa de mangas curtas exibia os braços finos, as costelas,
o peito débil. Outro passageiro do Manaus, o chauffeur Domício
Fernandes, estava nas últimas: perdera a fala e certamente não
regressaria ao nordeste.

No fim do galpão, sobre enormes tábuas, arrumavam-se muitas
pessoas. Devia ser ali, distante dos guardas, que se faziam as reuniões
clandestinas de que recebi notícia pouco depois. O exame do ambiente
desviou-me as idéias negras, a certeza da morte próxima. Via
antigos companheiros finarem-se e apegava-me a insensatas esperanças:
não me achava como eles. As misérias patentes – gemidos, queixas,
vozes dúbias, escarros vermelhos, dispnéia – livravam-nos dos
perigos incertos que em vão queríamos figurar. – “Vêm
morrer.” Experimentamos um choque. O pior é não saber a
gente como vai morrer. Ali no canto da sala enorme, à direita, os nossos
receios se limitavam: desapareceríamos daquele jeito, iguais ao Neves,
a Domício Fernandes, ao negro ansioso que pedia uma injeção
de morfina. Essa perspectiva de nenhum modo era desagradável; tínhamos
imaginado torturas, a chama do maçarico devastando carnes, e o consumo
lento, a inanição, quase nos surgia como favor. Provavelmente
uso subterfúgios, justifico-me de não haver sentido compaixão
excessiva diante dos cadáveres que ainda se mexiam. Os vivos preocupavam-me;
ao desespero e ao desânimo sucedia uma intensa curiosidade. Já
não me achava obtuso, conseguia refletir.

Esse dia foi menos agitado que o primeiro. A cantiga dos números
e as formaturas espaçaram-se, às vezes ficávamos em paz
uma hora, encaixando-nos pouco a pouco na rotina da prisão. Horrível
era entrar no refeitório, sentar-me num banco, envolver-me na fumaça
do cigarro, os cotovelos em cima da prancha, os olhos fechados. O vizinho
à direita comia sôfrego, num mastigar enervante, depois me arrebatava
o prato imundo. Necessário tapar as narinas; impossível agüentar
a vista e o cheiro da coisa sórdida. Novamente no galpão, a
fumar, um embrulho no estômago. A curiosidade se extinguira logo, sem
dúvida.

16

RETIRARAM-NOS do galpão, conduziram-nos a uma sala onde seríamos
fichados. O hábito nos enfileirou diante de uma banca, e o responsável
por aquele serviço, rapaz de boa aparência, metódico e
vagaroso, nos submeteu à praxe enfadonha das inquirições
regulamentares. Recém-chegados, calouros, íamos afrontar um
longo questionário a desdobrar-se na larga folha amarela, diferente
das fichas até então conhecidas.

Vi de longe numerosas linhas de papel extenso, quesitos imprevisíveis
que nos encheriam de espanto. Haviam-me citado num deles no Pavilhão
dos Primários: – “Tem vícios secretos?” O funcionário
cuidadoso ali presente, decompondo um dos meus amigos, traduzira a pergunta
assim: – “É pederasta passivo?” Tinha-me falado nisso meses
atrás, e parecera-me inacreditável que alguém tornasse
mais cruel e mais grosseira a horrível injúria.

Nordestinos e paranaenses iam-se deslocando pouco a pouco, estacionavam
junto à banca, zumbidos monótonos aliavam-se aos cochichos burocráticos.
Estaria o moço a ultrajar Macedo e o velho Eusébio daquele jeito?
As vozes esmoreciam como num confessionário, a pena chiava na folha
amarela. Dois passos, uma demora comprida. Afinal percebi a fala engrolada
de Zoppo, em frente a mim.

– Com dois pp? indagou o empregado meticuloso, aferrando-se a uma consoante.

– Com dois pp, afirmou Zoppo. – Italiano? – Filho de italianos.

E as indiscrições da norma estenderam-se num sussurro; palavras
soltas perdiam-se. Agucei o ouvido em busca do insulto. Nada ouvi. Findas
as declarações, Zoppo desviou-se, foi juntar-se com outros,
a um canto. Avizinhei-me. O funcionário passou-me a vista, rápido,
e indagou: – Apendicite? O rapaz era médico, o hábito profissional
se revelava no exame instantâneo.

– Não. Psoíte. Há uma eventração. – Deixe
ver.

Abri a roupa, mostrei o pé da barriga. O homem palpou-me a cicatriz
doída: – Realmente. Se quiser, nós podemos operar isso.

– Aqui, doutor? gaguejei num sobressalto, metendo os pés pelas mãos.
Obrigado. Não estou com desejo de suicidar-me.

Notei o escorrego na inconveniência, detive-me confuso. O moço
ergueu os ombros, sorriu e principiou o interrogatório. Admirei-me
de ver um tipo educado sujeitar-se àquele ofício e achei improvável
que ele houvesse jogado a horrível ofensa a uma criatura indefesa.
Os modos eram corretos, frios, mecânicos; as palavras incisivas, rápidas,
indispensáveis. Lançava-me um olhar de través, lia as
declarações prestadas, às vezes escrevia duas, três
linhas sem fazer perguntas. Derreando-me capenga, distingui no papel a insolência
imunda; a caneta andava muito depressa, num minuto ia alcançá-la.
Estúpida exigência. Evidentemente não me seria possível
dar nenhuma resposta: se um infeliz tem vícios secretos, não
os vai confessar. Resolvi calar-me, embora isto me trouxesse conseqüências
desagradáveis. Não queria admitir que alguém se atribuísse
o direito de me falar daquele modo. Sentia-me num enxurro, nivelava-me a ladrões,
vagabundos, malandros, escórias das favelas, reduzida a apanhar no
chão pontas de cigarros, e, apesar de tudo, achava impossível
dizerem-me tal coisa. Talvez dissessem, mas, se me conservasse mudo, provavelmente
não insistiriam: sem dificuldade haveriam de compreender que a frase
torpe não fora redigida para mim.

A pena alcançou a injúria, suprimiu-a com um risco, desceu
uma linha. Procurei os olhos do médico; estava de cabeça baixa
e não parecia ter querido ser amável. A áspera delicadeza
apenas significava a eliminação de um quesito inútil.
Diabo. Não é difícil notar, depois de alguns minutos
de conversa, que um indivíduo não é homossexual. E o
médico, trabalhando no meio sórdido, conhecia essa gente, sem
dúvida. Na linguagem crua, tencionava ser claro, sem rodeios. Julgava
enxergar num rosto fugitivos indícios ambíguos e largava a expressão
adequada; provavelmente isso não molestaria os indivíduos num
lugar onde a inversão sexual era fato comum. O trabalho acabou e despedi-me
em silêncio, evitando qualquer sinal de agradecimento: seria idiota
agradecer não me haverem ofendido.

Regressando ao alojamento, esforçava-me por não julgar à
pressa, investigar a razão de certos atos prejudiciais lá fora,
mas talvez indispensáveis ali dentro. Inclinava-me a justificar tudo.
Esse exagero de compreensão pode ser funesto, levar-nos a aceitar iniqüidades:
examinamos as coisas, inertes, e somos incapazes de revolta. Uma impertinência
começou a roer-me o espírito: se o médico me houvesse
dirigido a infame pergunta, achar-me-ia disposto a analisar-lhe o procedimento,
buscar explicações? Retraí-me vexado. Eximira-me pouco
antes de fazer um gesto de reconhecimento; agora desculpava o sujeito, e isto
me aperreou. A condescendência de um agente policial, a cortesia desdenhosa,
às vezes redunda em suborno. Precisamos ter os olhos muito abertos.
Caímos numa excessiva desconfiança, somos injustos com pessoas
bem intencionadas; não conseguimos divisar os elementos de corrupção
que nos cercam. Depois de ter vacilado, a acusar e a defender o médico,
a ação de um companheiro de viagem deu-me fúria de cachorro
doido Sumiram-se de chofre as ponderações. Não refleti,
achei-me num instante inimigo do homem, irreconciliável. Tínhamos
entrado no galpão. Um sujeito do Paraná falou-me risonho, tão
risonho que ninguém lhe adivinharia qualquer sentimento ruim: – Faz
favor de me dar um cigarro? Estendi-lhe o maço. O rapaz tirou um cigarro
e deitou-me um níquel de cem réis na mão Sem abarcar
direito a mesquinharia estúpida, senti uma onda quente subir-me ao
rosto. Logo o frio me envolveu. Súbita explosão e blocos de
gelo a desmoronar-se. Revi o porão da lancha. O meu paletó se
abria em cima das tábuas, e o fumo comprado em Mangaratiba estava ao
alcance das figuras piongas, de cócoras. Não se lembravam de
pedir. serviam-se naturalmente. No Abrão viera-me o plano de contrabandear
cinqüenta maços obtidos numa bodega; ocultos em bolsos de capotes
e dobras de redes, vários se tinham extraviado no caminho. Não
me ocorrera a sovinice de contá-los; seria miserável ter dúvidas,
naturalmente haviam caído; as explicações me atrapalhavam.
O meu gesto deve ter sido instantâneo, não dei tempo ao sujeito
de riscar um fósforo. Tomei-lhe o cigarro, sacudi-o no chão,
com a moeda. O sorrisinho encolheu-se e findou nos beiços odiosos.
Voltei as costas. E nunca mais pude olhar essa criatura.

17

GAÚCHO começou a procurar-me. A noite acocorava-se junto à
minha esteira, ficava até a hora do silêncio a entreter-me com
a narração das suas complicadas aventuras. Esforçava-me
por entendê-lo, às vezes o interrompia buscando compreender alguma
expressão de gíria. Vanderlino trocava-me em linguagem comum
a prosa obscura, e na ausência dele a conversa arrastava-se, cheia de
equívocos e repetições.

– Os homens, dizia Gaúcho, dividem-se em duas classes: malandros
e otários, e os malandros nasceram para engrupir os otários.

Ria-me com a franqueza do meu esquisito amigo: – Eu, naturalmente, devo
figurar na categoria dos otários, não é verdade? – Se
vossa mercê não é malandro… Só há duas
classes. Logo no segundo ou terceiro encontro o arrombador me fez esta observação
curiosa: – Vossa mercê usa panos mornos comigo, parece que tem receio
de me ofender. Não precisa ter receio, não; diga tudo: eu sou
ladrão.

– Sim, sim, retruquei vexado. Mas isso muda. Lá fora você pode
achar ofício menos perigoso.

– Não senhor, nunca tive intenção de arranjar outro
ofício, que não sei nada. Só sei roubar, muito mal: sou
um ladrão porco.

Diversos profissionais corroboravam esse juízo severo, ostentavam
desprezo à modesta criatura. Eram em geral vaidosos em excesso, fingiam
possuir qualidades extraordinárias e técnica superior. Tentavam
enganar-nos, talvez enganar-se, mentiam, queriam dar a impressão de
realizar trabalho perfeito. Não se misturavam com os indivíduos
comuns, e o natural expansivo do escrunchante exasperava-os. Obtive lápis,
papel, comecei de novo a tomar notas, embora fosse quase certo jogá-las
fora.

– Ó Gaúcho, perguntei, você sabe que eu tenho interesse
em ouvir as suas histórias? – Sei. Vossa mercê vai me botar num
livro. – Quer que mude seu nome? – Mudar? Porquê? Eu queria que saísse
o meu retrato. Logo se esquivava, humilde, engrandecia os talentos de alguns
companheiros: – Mas vossa mercê está, perdendo o seu tempo comigo.
Eu sou um vira-lata. O pouquinho que faço, aprendi com minha mulher,
que é uma rata de valor: trinta e duas entradas na Casa de Detenção.
Aqui vossa mercê encontra muitos homens sabidos. Conhece Paraíba?
Paraíba tem cabeça, é um vigarista de respeito. E seu
Nunes? Moço de qualidade. Procure Marcelle, o maior de todos, escroque
internacional. Vossa mercê fala com ele numa língua estrangeira,
que Marcelle não sabe português nem entende a nossa gíria.

Já me havia detido no exame desses tipos. Paraíba era um mulato
pretensioso, cheio de lábias e sorrisos; gestos brandos, voz dulçurosa.
Nunes, uma besta, vivia a mencionar a importância da família.
Achava-se ali por engano, e qualquer dia os parentes, com influência
no governo, mandariam buscá-lo. Um idiota. Não me disseram como
se chamava o terceiro indivíduo. Tinha no peito o nome de Marcelle,
em tatuagem magnífica, e daí lhe viera essa alcunha feminina.
Só uma vez me aproximei dele. Vestia um calção de banho,
tinha-se fatigado a carregar tijolos. Estendeu-se na areia, as mãos
debaixo da cabeça, esteve alguns minutos olhando o teto. Virou-se,
descobriu perto um grupo e indagou lento, carregado e gutural: – Como é
que se vai fugir daqui? Fingiram não ouvi-lo, o homem renovou a pergunta
usando as mesmas palavras, como se as tivesse de cor: – Digam. Como é
que se vai fugir daqui? – Provocação, rosnou um sujeito.

E o grupo dissolveu-se.

– Covardes, grunhiu Marcelle.

Voltou-se, continuou de barriga para o ar, olhando o teto. Vivíamos
entre delatores, um vagabundo estava ali de orelha à escuta e levaria
a imprudência ao tenente Bicicleta. Provável. Também podíamos
julgar Marcelle um espião: largara a frase para sentir o efeito dela
e denunciar alguém A prudência fechava as bocas. Nesse meio fecundo
em ciladas a confiança de Gaúcho me sensibilizava.

– Seu Nunes me fez hoje uma proposta, e eu estou pensando em topar esse
negócio quando sair daqui. São quarenta contos de jóias
para dividir com seu Nunes: metade para cada um. Ele me dá a planta
da casa e eu entro de olhos fechados. Que é que o senhor acha? Não
podia deixar de rir-me ouvindo semelhante consulta. Depois me interessava
pelas transações do meu novo amigo, temia um fracasso e arriscava-me
a dar-lhe conselhos: – Eu, no seu caso, não aceitava. Nunes é
um imbecil. Porque é que você não trabalha só?
Que precisão tem de sócios? O escrunchante ponderou e, se não
me engano, a oferta de Nunes foi recusada. A noite Gaúcho ficava uma
hora de cócoras, junto à minha esteira, a divagar por numerosas
aventuras. A posição incômoda não o fatigava. Queria
instruir-me e ambicionava ler tudo aquilo impresso.

– Vou comprar esse livro. Quanto custa? Erguia-se, tentava reanimar Paulista,
criatura arrasada, um molambo: – Se vire, homem, tenha coragem. Desse jeito
você endoidece.

Paulista ouvia sem nenhuma reação, a cara inerte, os braços
caídos, a agüentar-se mal nas pernas bambas, a boca entreaberta,
quase sem fôlego, murcho, pálido como um defunto. França
andava a empurrar idéias revolucionárias no espírito
rombo desse infeliz, e a aprovação tácita, a passividade,
a falta de resistência davam-lhe esperanças absurdas. A teimosia
cega do padeiro alarmava-me. Aquela gente estava perdida, sem esforço
víamos isto – Se vire, insistia o ladrão.

Voltava a agachar-se ao pé da esteira: – Não sei como certas
pessoas se metem nesta vida. Eu tive um aprendiz assim, não dava. Foi
um pivete muito ordinário, e quando cresceu, chegou a descuidista,
não passou a ventanista. E queria ser escrunchante. Eu dizia: – “Rapaz,
deixa de novidade. Tu não tens nervos para lunfa.” Mas o desgraçado
teimava em me acompanhar: – “Me leve, Gaúcho.” Eu cedia.
Botava a caneta na fechadura, e o garoto começava a tremer. Um dia
se estrepou. Arrumei um assalto, guardei na memória a casa toda e a
vizinhança.

– Como é que vocês conseguem isso? interrompi.

– Bom. É preciso estudar o terreno, bancar vendedor ambulante, consertador
de fogões, caixeiro de venda. Eu às vezes me emprego, faço
o papel de criado uma semana, saio com as peças de cor, o lugar dos
móveis: posso trabalhar no escuro. Já lhe disse que minha mulher
é uma rata de valor? Junto dela, eu não valho nada. Não
é do escruncho, faz o serviço às claras. Entra num botequim:
– “Será que d. Esteia, a moça do setenta e cinco, está
doente?” Arranja a informação de um carregador: a moça
do setenta e cinco não é d. Estela, é d. Zulmira. Sai,
volta no outro dia, fica bebendo cerveja, espiando o setenta e cinco. Depois
de algumas visitas, conhece os nomes das pessoas, os costumes da família,
a hora da missa e do cinema. Enfim, achando o campo livre, dá o golpe:
avança, empurra sem cerimônia o portão do jardim, aparece
na cozinha: – “D. Zulmira, a roupa.” D. Zulmira foi às compras,
a cozinheira e a copeira não sabem onde a roupa está. Aí
minha mulher se aborrece, fala com energia a uma empregada: – “Minha
filha, tenha paciência, faça o favor de ir buscar a roupa. Moro
longe e não posso gastar o meu tempo com viagens à toa. Ou então
diga a d. Zulmira que não volto. Ela marcou para hoje. Vá buscar
a roupa, faça o favor.” O pessoal fica tonto, á lavadeira
vai ao quarto, estira uma colcha em cima da cama e agadanha o que pode, leva
até rádio. Volta com a trouxa na cabeça, naturalmente:
– “Adeus. Já vou. Lembranças a d. Zulmira.” Isso às
vezes dá certo, outras vezes não dá. Se não dá,
é preciso ter a retirada livre. A gente prepara a saída para
o caso de ser necessário pirar. Como eu ia dizendo, o meu ajudante
não prestava para nada. A última vez que me acompanhou endoideceu
e nunca mais se levantou. Arrombei a porta, fomos à copa, achei um
queijo, comemos uma banda; piquei o resto e despejei querosene em cima.

– Porquê? – Por nada. Só para fazer miséria. Subimos
uma escada. Na sala da frente estava dormindo um casal de velhos. No guarda-vestidos
afanei uma carteira com grana e um bobo. Um bobo, sim senhor, um relógio.
Andei na casa toda, que não é direito sair deixando gaveta fechada.
No oratório havia muito santo, mas nessas coisas de religião
eu não mexo. Enfim consegui muamba regular para o intrujão.
No derradeiro quarto vimos uma lindeza com os peitos de fora. Aí o
sujeito perdeu a ação, ficou besta, de olhos arregalados, como
se estivesse diante de uma imagem do altar. Puxei a manga dele, chamei e tornei
a chamar: – “Vamos embora.” Nem ouvia. De repente subiu na cama
e deu um beijo na boca da moça. Calcule. Foi encanado e escrachado,
natural. Larguei-me escada abaixo, soltei a muamba, saí da casa, atravessei
o jardim, pulei a grade. Felizmente salvei a carteira e o bobo.

A curiosidade me levava a pedir minúcias: – Ó Gaúcho,
como é que você consegue destrancar uma fechadura? O paciente
indivíduo não se espantava da minha ignorância, mencionava
a caneta, usava expressões técnicas obscuras. Aproximava-me
do rosto o indicador e o polegar, manejava delicadamente uma pinça
imaginária, introduzia-a num buraco, segurava com ela a ponta de uma
chave, ia movendo a mão – assim – para os lados, avançava depois
os dedos para os meus olhos. Falava com abundância – e a palavra e o
gesto davam-me idéia viva da operação: vencido o obstáculo,
a chave, impelida para diante, caía.

– Mas isso faz barulho, Gaúcho.

– Não senhor. Eu estiro um número do Jornal do Brasil por
baixo da porta. Puxo o jornal e trago a chave. Se ela não vier, meto
a gazua na fechadura.

Explicava a maneira de cortar uma vidraça, com diamante. Dava um
murro no vidro, que se deslocava, batia sem rumor em cima do Jornal do Brasil.

– Ó Gaúcho, informei-me estranhando a repetição,
porque essa preferência? Outro jornal não serve? O ladrão
refletiu e esclareceu, muito grave: – Vossa mercê compreende: o Jornal
do Brasil tem mais páginas, é mais grosso.

Vanderlino, na esteira próxima, divertia-se. E Gaúcho, exposta
essa utilidade nova da imprensa, estendia-se por um dos seus numerosos casos.

18

UM SUJEITINHO de olho agudo foi visitar-me; acomodou-se na esteira e apresentou-se
fanhoso: Nascimento. – O companheiro necessita alguma coisa? Essa pergunta
já me era familiar. Antes de me fazerem qualquer pedido, lançavam
generosos o oferecimento. Não, obrigado; pudor excessivo me impedira
aceitar no Pavilhão dos Primários um maço de cigarros.
Agora, em completa miséria, o Coletivo esbarrava em dificuldade imensa
para levar a alguém o mais insignificante auxílio, e a oferta
perdia o sentido, quase se mudava em fórmula de cortesia.

– Obrigado.

O sujeito de voz nasal não insistiu e pegou assunto diverso: – Bem.
Nós precisamos do companheiro. Trago-lhe uma tarefa: corrigir isto.

Deu-me um pedaço de lápis e duas ou três folhas de almaço.
cobertas de letra miúda, sem claros. Passei a vista nas primeiras linhas.
Relatório a um deputado, narração minuciosa da Colônia.

– Perfeitamente.

Pus a valise em cima das pernas cruzadas e nesta espécie de banca
iniciei o trabalho. Logo no segundo período, além de pequenas
modificações, substituí uma palavra.

– Não senhor, opôs-se Nascimento. Esse troço foi discutido
e vai como está. Nós desejamos é que você bote
as vírgulas e endireite os verbos.

Reli o trecho, infeliz, desanimei: – É impossível, meu caro.
Isso não tem sentido. A correção é indispensável.

O homem refletiu um instante: – Bom. O que posso fazer é levar aos
outros o seu palpite. Eles decidem.

Tomou os papéis, encaminhou-se ao fundo escuro do alojamento, onde,
sobre tábuas, várias pessoas se reuniam às vezes, cochichavam,
rabiscavam. Além do padeirinho França, juntavam-se ali algumas
figuras negras, curiosas: Claudino, esgalgado, rijo, sério, de voz
áspera; Francisco Chaves, gordo e baixo, sempre em luta com dificuldades
imensas de expressão; Aleixo, estivador na Bahia, se não me
engano, criatura amável em extremo, a fala mansa, um brilho de inteligência
nos vidros dos óculos redondos. Provavelmente esses indivíduos
não iriam achar imprescindível a mudança de um adjetivo,
dispensariam a minha cooperação. Ao cabo de meia hora Nascimento
voltou: – A sua proposta foi aceita. Pode continuar. Recomecei. Vendo-me cortar
uma frase, redigi-Ia de novo, o medianeiro quis retomar-me as folhas. Segurei-as:
– Um instante.

Li a página até o fim: – Meu amigo, se você for reunir
a célula para examinar cada emenda, isto não acaba. É
absurdo. A redação está cheia de erros, sou obrigado
a riscar muito. Vamos ser pra ticos: eu faço as correções
todas, vocês estudam isso depois, em bloco.

O sujeito considerou, ronronou: – É. Talvez seja melhor. Vou falar
aos companheiros. Afastou-se, foi segredar a consulta, a um canto, regres
sou: – Eles concordam. Meta a cara no serviço.

A empreitada me levou dois dias. Em época normal estaria pronta numa
hora, mas achava-me confuso e dificilmente conseguia fixar a atenção
na prosa obscura. Surgiam-me dúvidas, via-me forçado a recorrer-
a Nascimento: – Que significa isto? Obtinha a explicação, manejava
o lápis sem gosto. Preguiça e bocejos. Que lengalenga comprida!
Fatigava-me, guardava os papéis na valise. Retomava-os, escrevia alguns
minutos, interrompia-me. Encolhido na esteira, Nascimento conversava durante
essas pausas, dizia a utilidade presumível de um burguês como
eu: – Vamos supor que a gente amanhã tenha uma pretensão qualquer
num ministério. Nós não sabemos tratar com ministros.
Você pode servir de intermediário.

Ria-me da esperança louca! – Meu amigo, você está equivocado.
Eu não sou burguês, não exploro ninguém. Se fosse
burguês, não estaria aqui. Não pertenço a nenhuma
classe, vivo numa camada vacilante, sem caráter. E nunca me entendi
com ministros, ando muito longe dos ministros.

Aleixo também me aparecia. Com certeza vinha sondar-me, agente da
máquina secreta que funcionava na prisão. Misturava à
linguagem dos manifestos e dos comícios expressões ambíguas,
tão difíceis como a gíria de Gaúcho. As alterações
de forma e sentido chocavam-me; convencia-me lento de que proleta era uma
redução de proletário. Defesa de criaturas perseguidas;
juntavam-se naquele meio o vocabulário dos malandros e o dos militantes
de organismos políticos ilegais; pouco a pouco esse aglomerado caótico
invadia a língua comum. Aleixo referia-me greves, peleja nos sindicatos,
rebeldia na estiva; narrava essa matéria violenta com doçura,
baixinho, completa mansidão nos bugalhos cor de leite; parecia-me compor
madrigais à revolução, enternecia-se por ela.

– Formatura geral! gritava Cubano.

Interrompíamos a conversa, procurávamos os nossos lugares.
A lufa-lufa desaparecera, achava-me agora tranqüilo e mecânico.
Um dia o moleque largou o berro de comando e volveu para mim o seu andar curioso
de boneco de molas: – Quando eu mandar a formatura, não é preciso
o senhor se incomodar não. Sente-se numa daquelas camas, lá
no fundo.

– Obrigado, Cubano.

Escorreguei para trás das filas, instalei-me perto das pias. Habituei-me
desde então a passar ali horas escrevendo O local era inconveniente:
da grade o polícia me via entre tido no arranjo da literatura explosiva
do relatório. Alheio ao perigo, não tomei nenhuma precaução,
e esta imprudência ainda hoje me espanta. Findei os remendos, restituí
os papéis a Nascimento, embrenhei-me na composição das
minhas notas. Uma tarde, esfalfando-me nelas, vi a pequena distância
um vagabundo a estirar o pescoço, a lançar à escrita
olhadelas furtivas.

– Que é que há? perguntei com mau modo.

– Eu não queria interromper, disse o tipo. Estava esperando que o
senhor acabasse.

– Para quê? – Eu sou lavador. Se o senhor tiver alguma roupa suja,
não se esqueça de mim. Lavo barato.

– Sim. Está bem.

Certamente o indivíduo era espião, mas não achei que
uma denúncia dele me fosse prejudicial. Naquele momento as folhas,
recopiadas, andavam longe, sem dúvida, talvez já estivessem
na câmara. Um soldado servira de portador. Havia diversos que se encarregavam
disso. A direção do estabelecimento, de orelha em pé,
esforçava-se por descobri-los.

19

AQUECENDO-ME ao sol da manhã pálida, vi um guarda além
da cerca e dirigi-me a ele: – O senhor me poderia fazer o obséquio
de mandar trazer minha roupa? Estou com os pijamas sujos.

Não enxerguei no caso nenhuma ofensa ao regulamento, mas naquele
estranho meio o mais insignificante pedido constituía infração;
ninguém tinha o direito de reclamar. O sujeito lançou-me uma
espiadela torva e rosnou algumas palavras de anuência contrafeita. Um
rapaz, junto, ouviu o pequeno diálogo e teve a idéia infeliz
de exigir qualquer coisa usando quase a minha linguagem. O funcionário
arremeteu contra ele como um touro furioso, derramou impropérios em
gritos, parecia querer derrubar a cerca.

Atordoado, sem perceber o motivo da zanga súbita, responsabilizava-me
de algum modo por ela; se não resolvesse imitar-me, o pobre moço
não estaria a ouvir desaforos e despropósitos. Arrimado a uma
estaca, pois a perna doente não consentia firmar-me direito, assisti
com indignação impotente à cena ignóbil. O tipo
se descomedia num discurso trôpego e incoerente, avançava e recuava
aos tombos, agitando os membros à toa. Num desses movimentos desordenados,
avizinhou-se demais e senti no rosto uma baforada viva de álcool. Dependíamos,
assim, de consciências turvas, já pela manhã, cedo, a
extravagar. Qualquer ato nosso, qualquer gesto, provocaria doidas cóleras,
e não havia meio de nos defendermos. Os restos de paciência do
animal tinham-se esgotado comigo, a ira extravasava logo, atingia o primeiro
indivíduo exposto.

Vinte e quatro horas depois, enquanto os homens se distribuíam nas
filas do trabalho, chamaram-nos para entregar os objetos deixados na secretaria,
ao chegarmos. Alinhamo-nos, os braços cruzados, e o sujeito da véspera,
novamente na embriaguez, começou a dizer números e a jogar pacotes
por cima da cancela. De repente houve uma suspensão na tabuada e percebi
o meu nome preso a um título: dr. Fulano de Tal. Aproximei-me, vi um
saco de estopa negra, aberto, além do arame. Um embrulho arremessado
caiu-me aos pés. Ergui-o, cheio de espanto: era uma trouxa úmida,
escura, de causar nojo; pareceu-me que a tinham molhado, machucado, amassado,
até dar-lhe a aparência de um bolo repugnante, seguro em cordões.

Voltamos à gaiola. Desatei os barbantes, desdobrei a coisa sórdida:
a calça e o paletó surgiram, mudados em trapos de mendigo. Aí
principiou a ‘revelar-se a bondade estranha de Cubano, imperceptível
quando ele cantava a lista da chamada e reunia o pessoal nas formaturas. O
ar de tédio, gestos maquinais de fantoche; ninguém adivinharia
aí um coração. Achei, contudo, que me ia tomar amigo
daquele negro vagabundo, e não me iludi: a amizade até hoje
resistiu. Era uma criatura esquisita, empenhada constantemente em nos prestar
algum serviço, obrigando-nos às vezes a aceitá-lo à
força. Nunca vi ninguém assim. Notando-me o apuro em descobrir
lugar para a farpela enxovalhada, Cubano chegou-se, áspero e breve:
– Eu guardo a sua roupa.

– Será que você tem onde guardá-la, Cubano? hesitei,
receando furto.

– Não se preocupe, disse o moleque decifrando-me o pensamento. Estando
comigo, eles não mexem.

Tomou os panos, estendeu-os na cabeceira da cama, vizinha à porta.
Fui acomodar-me na esteira, aborrecido com a exceção aberta
para mim no curral de arame. Doutor, que estupidez! Essa ironia besta anunciava
desgraça. Tinha-me esforçado por esquivar-me, ser uma partícula
invisível na turba, linha de quatro algarismos no catálogo de
Cubano. Obrigavam-me a sair da massa anônima, personalizavam-me e, além
de tudo, conferiam-me distinção perigosa. Aquilo era tão
burlesco e tão lastimoso que me senti_ como um ator infeliz chamado
à cena para receber vaia. Tive a impressão de me haverem posto
um rabo de papel e orelhas de burro. O horrível escárnio levava-me
ao desespero. Talvez não fosse escárnio: era possivelmente vaidade
maluca, desejo de apontar no rebanho triste e submisso um animal diferente
dos outros. Não me saía da cabeça o aviso do zarolho:
– “Quem foi grande lá fora esqueça-se disto.” Conselho
supérfluo. Não me perseguia nenhuma recordação
de grandeza: ocupava-me em ofícios miúdos e entregara-me à
difícil manufatura de alguns livros pouco mais ou menos desconhecidos.
Tinha razão para julgar-me um autor inédito. Curiosa deferência
num lugar onde os homens se nivelavam, deitados na areia, nas esteiras podres
Revolvi os miolos, a buscar sentido no caso absurdo. Convenciam-se da existência
de um doutor no meio ignóbil, a definhar na piolheira, o crânio
devastado a máquina. A enorme queda e o imenso contraste deviam interessá-los.
Era agradável ter ali uma importância extinta, lembrar isto,
agravar a abjeção. – “Cruza os braços, chefe”,
ordenara-me no primeiro dia um miserável pigmeu. Qualquer polícia
bêbedo se esgoelaria dirigindo-me insultos, depois aludiria ao meu prestígio
inexistente. A incoerência golpeava-me, e a chaga iria ser revolvida.
O quesito infame exposto na ficha amarela vinha-me ao espírito, fixava-se:
– “Tem vícios secretos?” 20

TORRANDO ao sol ardente, ficamos bem duas horas sentados no chão,
esperando que o médico nos mandasse chamar para a consulta. Éramos
uns vinte doentes, os mais arruinados, a tossir, a expor as horríveis
chagas escuras, trabalho das mucuranas. Bocejando na demora longa, procurei
distrair-me vendo o serviço na lavanderia próxima: à
beira de um tanque, alguns indivíduos se atarefavam mexendo na água
peças de roupa zebrada. A luz forte, o monte parecia avizinhar-se,
e as pedras ferruginosas tinham cintilações ásperas.
As piteiras se imobilizavam.

Entramos enfim, despimo-nos. E em fila, nus, passamos a um pequeno gabinete,
segurando pijamas e cuecas. Sentado a uma banca, o moço que dias antes
havia feito as nossas fichas iniciou o rápido exame inútil.
Apesar da inutilidade, estivéramos duas horas ao sol para exibir ali
a magrem, a sujeira, a palidez. Mais tarde receberíamos alguns frascos
de remédio, que seriam despejados na areia do alojamento. Não
tínhamos confiança na beberagem. Que fazíamos então
junto à mesa, despidos, a expor mazelas? O meu desejo era saber se
me achava mal, se poderia resistir ainda algum tempo ou se me acabaria logo;
buscava adivinhar isso observando a cara e os movimentos do rapaz. Esperava
também que não deixassem morrer de fome, na repugnância
invencível à cenoura.

O doutor varejou-me a carcaça, deteve-se no pé da barriga,
pela segunda vez exprimiu a idéia maluca de operar-me, atendeu à
recusa e anotou os meus achaques. Afastei-me, vesti o pijama, estive uma hora
a ver a linha avançar lenta para a formalidade burocrática.
A pasmaceira me fatigava, queria recolher-me. fechar os ouvidos à tosse
contínua, desviar-me das pernas cobertas de algodão negro, purulento.
Quando nos retiramos, julguei impossível tornar àquela exibição
desagradável.

Ao jantar, mandaram-me para a mesa dos doentes, num ângulo do refeitório;
no prato de folha machucado serviram-me um caldo morno e ralo onde havia algumas
rodelas de bóia sórdida exposta sobre as tábuas negras
dos cavaletes Era uma insignificância, mas não tinha o aspecto
asqueroso da refeição comum, e pude ingeri-Ia. Dois ou três
dias sentei-me entre as figuras macilentas, tomei a sopa desenxabida e escassa.
De repente julgaram-me indigno da exceção, talvez por não
haver tornado ao consultório, devolveram-me ao lugar primitivo, e de
novo me abati no banco negro, os cotovelos em cima das pranchas, os dedos
médios comprimindo as narinas, os polegares cerrando as orelhas, a
boca aberta, os olhos fechados. O vizinho à direita engolia rápido,
em seguida me retirava a bóia sórdida. Impossível comer.
Agora o que me restava era o caneco de água choca, imitação
de mate. Percebia a necessidade urgente de mastigar o pãozinho redondo
e elástico; palpava-o com desânimo, a resistência viscosa
trazia-me enjôo. Certa manhã, depois de beber o líquido
sensabor, esqueci o ambiente, dirigi-me ao copeiro, distraído, como
se estivesse num café: – Quer fazer-me o obséquio de trazer
mais? Compreendi logo o desconchavo, estremeci vexado com a perturbação
do homem. Era um mulato claro, de fisionomia doce; vestia a zebra vergonhosa
do estabelecimento. Ainda não me havia ferido a atenção,
mas o singular procedimento que teve levou-me a examiná-lo rápido.
Hesitante, dirigiu-se ao sujeito de cara repulsiva encostado à ombreira
de uma porta, junto ao bule enorme e às forquilhas de pontas numerosas,
cabides estranhos das vasilhas. Cochichou um momento, cabisbaixo, em grande
embaraço. A criatura repelente descerrou os queixos num riso sinistro,
jogou-me de través uma espiadela desdenhosa, soprou agastada: – Quer
mais, hem? Estamos num hotel, hem? O mulato, confuso, aproximou-se do cavalete,
murmurou sucumbido: – Não pode ser. Desculpe. Eles não dão.

A voz suave num instante me revelou o moço. Já me havia impressionado;
apenas de outra vez não estava assim trêmula. Era ele, sem dúvida.
Acabou de falar, e as lágrimas correram-lhe no rosto pálido.
Essa anormal sensibilidade me causou violento choque, e lamentei com desgosto
a exigência imprudente que originara tal desarranjo no esquisito indivíduo.
Era ele, recordava-me bem.

No encontro anterior não havia a tremura, a palidez, o choro; esquecer-me-ia
dele se a voz dulçurosa não me escorregasse nos ouvidos, trazendo-me
a cena meio apagada. Noite. Das lâmpadas mortiças espirrava uma
luzinha curta, as sombras envolviam a sala estreita e longa, o ar se empestava
com um cheiro de carniça. Entorpecia-me num banco, as mãos segurando
a cabeça pesada. Em frente, em cima de tábuas vagas, manchas
escuras num prato invisível. Perto, um vulto sem feições
gemia um conselho frouxo: – “Coma. Faça um sacrifício.
A comida está boa, foi preparada para os senhores. Experimente.”
– “Não. Obrigado. É impossível.” Novamente
a fala morna a embalar-me: – “Faça um esforço. Amanhã
o senhor não terá isto. A comida está boa. Experimente.”
Na sombra espessa os lineamentos perdiam-se; a amabilidade excessiva provocava-me
uma sensação molesta, a náusea crescia; ignorando a significação
daquilo, desejava afastar-me e esquecer a brandura pegajosa. Ao mesmo tempo
achava-me ingrato.

Na claridade nevoenta da manhã, divisei os traços do homem,
e a lividez, o pranto fácil, o tremor, a desculpa embrulhada revelaram-me
a natureza dele. Era gordo, imberbe, os olhos mansos, um sorriso doloroso
nos beiços flácidos. Embora visse ali um vivente a sofrer por
minha causa, era-me impossível evitar a repulsa que sentira à
noite da chegada, mas o nojo misturava-se à gratidão e ao pesar
de haver estorvado o infeliz. Um infeliz, sem dúvida, firmava-me nesta
convicção: tipo de sexo duvidoso, comum no ajuntamento da cadeia.
A aparência equívoca e o procedimento invulgar causavam-me transtorno
e a necessidade urgente de afastar-me e esquecer, embora dissesse a mim mesmo
que a lembrança do caso iria perseguir-me. Nunca me vira na presença
de um desses indivíduos assim cara a cara, sabendo-lhe as tendências.
Pela primeira vez surgia-me um deles e facultava-me o exame imprevisto do
corpo e da alma. Apesar de não me ser possível nenhuma comparação,
estava certo de não enganar-me. Era aquilo, sem dúvida.

A carranca feroz, a poucos metros, junto ao bule enorme e às forquilhas,
enviava-me olhares assassinos. E o coitado permanecia de cabeça baixa,
num constrangimento, enxugando o rosto à manga da blusa. Imaginei ali
um episódio sentimental: havia entre os dois possivelmente um drama,
e o portador das forquilhas e do bule se enchia de ciúme e despeito
vendo na frágil condescendência do amigo sinais de traição.
Devia ser isso. A recusa brutal e o gesto provocador falavam claro. Essa idéia
me trouxe horrível mal-estar, vergonha, como se me cumpliciasse a ignomínias;
cresceu o desejo de levantar-me, regressar ao alojamento, cair na esteira,
escrever as minhas notas, ouvir as greves narradas por Aleixo, os roubos de
Gaúcho. Invadia-me, entretanto, uma indecisa mistura de sentimentos:
chocavam-se a piedade, a tristeza, a admiração, o prazer de
realizar uma descoberta. Não me ocorrera a existência de coração
nessas anomalias; de longe, exclusivista e rígido, habituara-me a julgá-las
sordidez apenas. As mulheres sempre exerceram sobre mim tirania excessiva,
davam-me preocupações vizinhas da monomania, às vezes
as imagens interiores mudavam-se quase em visões, e isto era doloroso.
Fantasias doidas impediam-me o trabalho. Pois, dedicando-me a elas inteiramente,
nunca divisara em nenhuma a bondade manifesta ali próximo.

Na verdade era impossível transformar-me, vencer ó nojo que
esses desvios me causavam. Era um nojo profundo, e em vão buscaria
livrar-me dele. Mas uma evidência entrava a impressionar-me: na torpeza
nauseante havia alguma coisa muito pura.

21

NÃO VOLTEI ao refeitório. A presença do homem tímido
e blandicioso era insuportável. Queria explicá-lo, justificá-lo;
sentia-me cheio de agradecimento e asco. Nessa incompatibilidade, esforçava-me
por esquecê-lo, mas a gordura fofa e a benevolência pegajosa estavam-me
presas na lembrança, como esparadrapo. Contentava-me haver percebido
um fato novo; ao mesmo tempo me aborrecia por ver que isso me perturbava idéias
antigas, abalando valores assentes.

Busquei distrair-me compondo as notas infindáveis, confusas, em pedaços
de papel arranjados nem sei como; provavelmente ninguém as leria: em
momento de apuro seriam deixadas em qualquer canto, jogadas na água.
A hora da comida esquivava-me para trás das filas, escondia-me ao pé
do lavatório. O rebanho movia-se, transpunha a porta, conjugava-se
numa extensa linha, atravessava o curral de arame, o pátio branco.
E achava-me só, um livro na mão, espremendo os miolos inutilmente
para entendê-lo. Pezunhava numa página, lia cinco, seis vezes,
largava a brochura, desanimado. A leitura se havia tornado impossível;
contudo aventurava-me a escrever. Se aquelas folhas me aparecessem hoje, desconexas,
medonhas, revelariam a minha perturbação, a fraqueza do espírito.
As horas longas arrastavam-se, e era preciso enchê-las.

A escrita fatigava-me depressa, e arrojava-me teimoso a uma história
simples apanhada na biblioteca do Coletivo Era uma pequena coleção
amarfanhada, triturada, suja, inteiramente de acordo com o lugar onde funcionava.
Encontrei nela, inexplicavelmente, os três volumes que me acompanharam
no dia da prisão e tentei decifrar no quartel do Recife e a bordo:
lá estavam as dedicatórias de José Geraldo Vieira, Agrippino
Grieco e Otávio de Faria. Essas artes tinham-me deixado o cubículo
no Pavilhão dos Primários; agora, rasgados e sem capas serviam
de pasto a ladrões, vagabundos e políticos. A forma de obtê-las
harmonizava-se com o nosso meio.

Descobri alguns romances de José Lins, de Jorge Amado, meus. E, tanto
quanto posso julgar, o mais lido era Jorge: apareciam-me com freqüência,
nas tábuas e nas esteiras, malandros, tipos das favelas, atentos no
Suor e no Jubiabá. Porque estaria Jorge, só ele, a provocar
o interesse dessa gente? Remexi a cabeça procurando uma resposta. Bem.
José Lins é memorialista, o grande mérito dele é
haver exposto, nua e bárbara, a vida nos engenhos de açúcar;
é uma enorme força que se esvai fora do seu ambiente. Dá-nos
a impressão de ouvir o rumor do vento nos canaviais, sentir o cheiro
do mel nas tachas; percebemos até, nos seus diálogos, o timbre
da voz das personagens. Uma realidade flagrante. Essas coisas eram vistas
com atenção por uma pequena minoria de sujeitos mais ou menos
instruídos que buscavam nas obras de arte apenas o documento. O nosso
público em geral afastava-se disso, queria sonho e fuga. Aqueles homens
de tatuagens, anfíbios, ora no morro, ora na cadeia, entregam-se, por
serem primitivos ou para esquecer asperezas, a divagações complicadas,
e não sabemos quando nos expõem casos verídicos nem quando
mentem. A imaginação de Jorge os encantava, imaginação
viva, tão forte que ele supõe falar a verdade ao narrar-nos
existências românticas nos saveiros, nos cais, nas fazendas de
cacau. A respeito dos meus livros nada sei, pois nunca vi ninguém pegar
um; lá ficaram intatos, suponho. Notando-me o jejum, Cubano quis levar-me
ao refeitório.

– Tenha paciência, Cubano, protestei. Você me dispensou das
formaturas.

– A hora da comida, não. É diferente. O senhor não
pode passar sem comer.

– Obrigado. Não tenho fome.

O ótimo negro rosnou uns conselhos e deixou-me em paz. Ele tinha
razão, era preciso enganar o estômago. Assim, mandei comprar
um queijo pelo soldadinho que, à noite da chegada, se oferecera, por
influência do sargento, para os negócios clandestinos. O rapaz
trouxe-me a encomenda e recusou gorjeta. Se o queijo ficasse em meu poder,
os ladrões o abafariam; por isso Vanderlino apossou-se dele, trancou-o
na mala e durante algum tempo me submeteu a duas, três rações
diárias, fatias quase transparentes, insignificâncias cortadas
a gilete. Percebíamos em redor olhos famintos, pedidos silenciosos,
novamente os dedos ágeis da pachorrenta criatura manejavam a lâmina,
reduziam a escassa reserva, que logo se dissipou. Outra vez a abstinência.
E respirei com alívio. Mastigar, remoer aqueles fragmentos, era na
verdade uma obrigação imposta por Vanderlino A pasta gordurosa
causava-me forte enjôo. Realmente me achava, como no porão do
Manaus, atacado pela sitiofobia; pensar em alimento me dava nojo.

Fumava sem interrupção; o médio, o polegar e o indicador
da mão esquerda amarelaram e enegreceram; os beiços queimaram-se
e não era possível umedecê-los. Essa terrível necessidade
ocasionava-me arrelias constantes. Havia sempre em torno de mim vários
sujeitos a rondar, a matilha impudica dos caçadores de baganas. Quando
vi pela primeira vez esses indivíduos baixarem-se para colher no chão
uma ponta de cigarro, vexei-me em excesso, virei a cabeça, fingi não
reparar no procedimento vil. Depois me indignei e enojei Era uma canalha privada
inteiramente de vergonha, não me deixava em sossego. Queria afastar-me
dela, mas em qualquer parte do alojamento surgiam-me vagabundos ligeiros,
de olhos compridos, a medir-me os gestos. Impacientavam-se, avizinhavam-se,
num descaro revoltante. Uma praga. Risinhos safados, enorme sabujice nas caras
lorpas. Examinavam-me atentos os bolsos da roupa vestida pelo avesso. Na cupidez
e na rivalidade, avançavam mal se riscava o fósforo, pediam
sem pejo o resto do cigarro apenas começado. A princípio, em
horrível constrangimento, resignei-me a estender-lhes o maço.
Distanciavam-se, ao cabo de minutos estavam na ronda, insaciáveis.
Inquietei-me: era impossível sustentar tantos malandros. Na valise
a provisão -de fumo se reduzia. Tentei reagir, pôr termo à
infame investida: – Assim também é demais Vão para o
diabo.

Voltava as costas, cheio de raiva. Um patife me seguia, chegava-se de manso,
arrancava-me da mão o cigarro e saía correndo. Enfim o sortimento
se esvaiu e necessitei recorrer de novo ao soldadinho prestativo. Recebi um
milheiro de cigarros. Cubano tomou esse contrabando, meteu-o numa sórdida
mochila, que amarrou nos ferros da cama.

– Em meu poder estão em segurança. Fique descansado. Eles
não mexem comigo.

No dia seguinte havia um buraco na mochila e a ausência de oito maços.

22

GRITARAM-ME o nome. Soltei o livro, saí da esteira, cheguei-me à
porta, vi além da grade Alfeu, o cafuzo de olhar sangrento que, à
noite da chegada, espancara e rolara a pontapés um homem, perto de
mim. Agora não mostrava fúria. Esteve um minuto gargarejando
sons incompreensíveis, a fazer pausas, em grande embaraço. Procurava
as palavras, coçava a cabeça, num desesperado esforço
para explanar o assunto difícil; espantava-me, examinando-lhe a cara
torva, buscando perceber a causa de tantos circunlóquios e hesitações.
Pouco a pouco as idéias dele se combinaram, afinal lhe conheci o intuito,
mas o caso era estranho, e com um tremor violento recuei cheio de pavor. O
soldado esperava de mim um obséquio. O diretor da prisão aniversariava
no dia seguinte, o pessoal andava a preparar-lhe uma festa, e Alfeu tinha
desejo de fazer um discurso, representando a polícia. Como não
sabia trabalhar nessa matéria, pedia-me que redigisse uma saudação,
curta, meia folha de papel somente. Um favor pequeno.

Atravessou-me o espírito, com medonha nitidez, a conseqüência
de uma recusa: lembrei a cena horrível e imaginei-me na situação
do infeliz, a espojar-me na areia, contuso, amarfanhado, biqueiras de sapatos
desarranjando-me as costelas. O aviso do zarolho misturou-se à desgraçada
lembrança: – “Aqui não há direito, nenhum direito.
Quem foi grande lá fora esqueça-se disto.” Iria suceder-me
aquilo, sem dúvida, se me negasse a contentar o enorme bruto. Sem dúvida.
Mas não me ocorria uma negativa, nem sequer a possibilidade vaga de
eximir-me. Escreveria o discurso; no primeiro instante supus que iria escrevê-lo;
nenhum meio de evitar esta infâmia. Atento nas estrias vermelhas dos
bugalhos duros, perguntava a mim mesmo onde iria esconder-me para fabricar
elogios ao diretor da prisão. Vinte e quatro horas depois o cafuzo
gaguejaria essa miséria, e eu me conservaria agachado na esteira, um
molambo, sem ânimo de encarar Nascimento, Aleixo e Claudino. Achava-me
indigno, interiormente sujo, e não conseguia evitar isto. As biqueiras
dos sapatos não me saíam do pensamento, e era como se estivessem
moendo-me a carne, desarticulando-me os ossos.

Um medo horrível, presumo que ninguém sentiu medo assim. Já
me havia sucedido coisa semelhante, anos atrás. Em geral me atordôo,
perco a noção do perigo, não ouço tiros num conflito;
vem-me custosa, em pedaços, a conveniência de resguardar-me atrás
de uma árvore, num vão de uma porta. Em 1930 um piquete das
forças revolucionárias de Agildo Barata agarrou-me no interior
de Alagoas e fingiu querer fuzilar-me. No Pavilhão dos Primários
Agildo ria escutando a narração dessa proeza besta. Eram dezesseis
malucos. Esvaziaram-me os pneumáticos do carro, encheram-me de perguntas
e ameaças. Atrapalhado em excesso, não respondi; tirei do bolso
um papel e mastiguei-o. Preso, estirado na cama, o chapéu cobrindo-me
o rosto, ouvi pancadas; sentei-me, vi perto um indivíduo a bater com
a soleira do. fuzil no chão, querendo assustar-me. – “Você
dispara esse diabo e mata um companheiro. Com licença.” Estirei
o braço e virei a asa do registro de segurança. Achava-me bastante
apreensivo, mas era receio comum. Alguns dias de reclusão, vários
aborrecimentos. Mal sério não me fariam aqueles militares vagabundos,
incapazes de pegar direito numa arma. Não, não era medo. Medo
sentia agora, diante do cafuzo, pensando nos sapatos ferrados, na cólera
doida. Medo igual ao que experimentara anos antes, uma noite de lua. Achava-me
no quintal de uma criaturinha sem-vergonha, meio escondido junto a uma cerca
de bambu. Eram duas horas da madrugada. A mulher não vinha, fazia-me
perder tempo, e a demora me impacientava. Abriu-se de repente uma janela na
vizinhança, um cachorro ladrou; julguei-me descoberto peio marido pulha
da sujeitinha, larguei a espera, atravessei o portão, e saí
correndo à toa na rua deserta. Era uma carreira trêmula e bamba,
os joelhos chocavam-se, pernas de velho; um soluço esmorecia-me na
garganta e em mim tudo se resumia numa necessidade horrível de chorar
Queria deter-me, condenava severo a fuga ridícula, mas alguém
me perseguia, esta idéia absurda atirava-me para a frente. Negava a
existência da perseguição, considerava-me estúpido,
mas era impossível refrear os movimentos desengonçados. Em completo
abandono, vivente infeliz, sem nenhuma defesa. A brancura do luar desesperava-me.
Habitava uma cidadezinha sertaneja, todos aí me conheciam. Negociante,
figura mais ou menos razoável. Se um dos meus fregueses surgisse na
rua, me apanhasse naquele estado? No meu último livro, em poder de
José Olímpio, aventurara-me a fixar esse terror, essa covardia
imensa. Ali ao pé da grade, via-me assim pela segunda vez.

Um trapo, os músculos frios, desmaio no coração, a
vontade suspensa. Talvez, se abrissem a porta, me pusesse a correr desvairado,
como naquela noite. Mas a precisão de fugir, alucinada e urgente, não
podia realizar-se: quando muito, iria manquejando ao extremo do galpão,
onde o cafuzo batera e espezinhara um desgraçado. Um rato a pretender
esquivar-se, inutilmente; os olhos ruins do gato imobilizavam-me. Tortura
dupla: a visão clara de patadas rijas num corpo inerme, a ignominiosa
composição de louvores ao diretor. Não havia alternativa,
não me deixavam direito de escolha. – “Aqui não há
direito, nenhum direito.” Horrorizava-me ser atirado ao chão,
pisarem-me, desarticularem-me, e a repulsiva tarefa vinha com jeito de ordem.
Não estava nas minhas possibilidades furtar-me a ela, nem um momento
pensei nisto; preocupava-me somente achar um canto para cumpri-Ia, ausente
de Aleixo. Depois me tornaria inimigo do excelente negro; não suportaria
o brilho dos óculos redondos, a fala mansa, as histórias de
greves. Acharia razões para simular desprezá-lo, desprezando-me;
servem para isto as pequenas inteligências malandras. Não as
censuro, pois estive a ponto de acanalhar-me e nenhuma resistência opus.
Não refleti, não busquei vencer a dificuldade: um miserável
traste. O desfecho desse caso foi imprevisto e ainda hoje me espanta: ignoro
como veio.

– E quem lhe disse que eu sei fazer discursos? perguntei numa calma exterior
de causar surpresa.

– Sabe, afirmou o soldado. Pois eu não vejo o senhor mexendo em papel
o dia inteiro? Demais o senhor foi importante na sua terra.

– Nada disso. É engano.

Fechavam-me aquela saída. Imprudência dedicar-me ao relatório
e às notas perto da grade. Nova objeção caiu, lenta e
incisiva: – Bem. Suponhamos que eu saiba fazer isso. Imagina que posso fazer?
Não adivinho os seus sentimentos. Se eu escrevesse o discurso, toda
a gente compreenderia logo que ele não era seu.

Devo ter falado assim, com pouca alteração. Pelo menos estou
certo de não exibir nestas linhas coragem falsa. O medo me envolvera
um infindável minuto, medo horroroso de agüentar coices na barriga
e no peito, de me esconder para arrumar as letras miseráveis. Não
hesitara um segundo: necessário compor o discurso. A resposta ao cafuzo
revelou que eu havia preferido os golpes e a humilhação: ignoro
como se deu a mudança interna, falta-me a consciência disto.
Provavelmente foi a certeza de me ser impossível a infame redação.

– Use a sua linguagem, tornei. Não adianta dizer frases bonitas,
alheias. Mostre com simplicidade o que tem dentro. É melhor, não
é? A tromba de Alfeu exprimia descontentamento, os bugalhos cruéis
injetaram-se mais, o crânio miúdo balançava, afirmando,
negando: o homem rude buscava entender. Ao declarar-me, ao ter conhecimento
da resolução involuntária, livrara-me do terror. As biqueiras
dos sapatos deixaram de atormentar-me, eram desgraças inevitáveis.
Paciência, estavam previstas. Bom deixar tudo claro: – E depois não
tenho motivo para ser amável com o diretor. Você tem, é
natural. Mas eu, acha que posso ser amigo dele? O cafuzo, perplexo, continuava
a agitar a cabeça e arregalava os olhos.

– Diga. Acha que posso ser amigo dele? – Não, rosnou com mau modo.

– E então? Ponha-se no meu lugar. Se você estivesse aqui preso
e soubesse escrever, fazia esse discurso? – Não fazia, murmurou o soldado.

– Está aí. Você mesmo reconhece. É impossível.
Agora o rosto de Alfeu manifestava confusão e desassossego. Tive pena
do pobre selvagem que me inspirara tanto horror, precisei dizer ainda uma
palavra, dissipar nuvens: – Fica zangado comigo, Alfeu? Ergueu os olhos, quase
doces: – Não, não fico, o senhor tem razão.

– Peça uma coisa que não me prejudique. Peça outra
coisa.

– Não. Obrigado.

Afastou-se abrupto. No dia seguinte pela manhã, penetrando no curral
de arame. vi Alfeu encostado à ombreira do portão. A minha passagem,
agarrou-me o braço e cochichou: – Se o senhor tiver negócios
lá fora, conte comigo. estou às suas ordens.

– Muito agradecido, Alfeu.

23

O POBRE Neves, de mal a pior, tossindo e sem fôlego foi acabar-se na
enfermaria; nunca mais ouvimos falar nele. E Gaúcho se apossou da cama
vizinha à porta lateral.

Levou para ali os seus picuás, estabeleceu-se e no dia seguinte me
fez uma proposta curiosa: – Vossa mercê quer comprar a minha cama? A
princípio não entendi; notei depois que se tratava de negócio
regular naquele meio. O sujeito apodera-se de um objeto, declara-se dono e
logo o transforma em dinheiro. Essas operações já não
constituíam novidade para mim; surgiam-me com freqüência
indivíduos agachados pelos cantos, embromando-se em longos cochichos,
ajustes infindáveis As coisas miúdas circulavam, passavam de
bolso a bolso, e as vítimas dos furtos, cheias de vergonha, sentiam
desprezo nos olhos dos profissionais e guardavam silêncio. Nenhum espanto,
consideravam-se legítimas essas transações. Gaúcho
não me propunha essa mercadoria, uma das bagatelas que facilmente se
ocultava em sacos, em dobras de roupa: oferecia um móvel. Estabelecera
a posse e transferia-me o direito de me deitar na cama. Hesitei, receoso de
trapaça, afinal me decidi: – Está bem. Quanto custa isso? –
Uma gâmbia. – Quanto? – Cinco mangos.

– Fale direito, Gaúcho. – Cinco mil-réis. Já disse.
Na segurança mesquinha os preços reduziam-se muito. – Está
certo.

Passei a nota, o ladrão foi retirar os cacarecos e arranjou lugar
numa tábua, no fim do alojamento. Pouco depois encontrei-o ocupado
em despregar a esteira que forrava o lastro da cama. Protestei, indignado:
– Que é isso, Gaúcho? – Estou descosendo a esteira. – Vai levá-la?
– Então? – Você não me vendeu esses troços, homem?
– Vendi a cama. A esteira é outra coisa, resmungou o sujeito com descarada
firmeza.

– Deixe disso, criatura. Eu vou dormir em cima do ferro? – Não sei.
A esteira é minha. Se vossa mercê precisa dela, eu vendo custa
dois mangos.

– Está bem, está bem. Mas você vai pregá-la de
novo. Se ficar solta, desaparece.

O escrunchante recebeu a moeda, afastou-se, voltou com uma agulha comprida
e esmerou-se em corrigir o estrago. Findo o trabalho, seguiu-me; vendo-me
pegar a valise, tomou-a, perfilou-se, numa atitude burlesca e de respeito
que me arrancou uma gargalhada.

– Solte essa valise, Gaúcho. – Não senhor, faço questão.

Fui tomar posse da cama; Gaúcho atrás, segurando a pequena
bagagem, muito sério, representava o papel de criado. Pus-me a rir,
pela primeira vez me surgia ali motivo para riso. Sobre a esteira, dobrado,
achei um cobertor Admirei-me de ver Gaúcho ir-se embora, não
se lembrar de extorquir-me dois ou três mil-réis por ele. Mas
o espanto durou pouco: não se tratava de generosidade nem de esquecimento.
Aquele traste fora abandonado porque estava aberto ao meio e tinha grandes
manchas de sangue, as hemoptises do pobre Neves, certamente. Com viva repugnância,
larguei os dois pedaços de pano; em seguida resolvi embrulhar-me neles:
deitei-me, prendi-os entre as coxas, envolvi-me, encolhido. A valise continuava
a servir-me de travesseiro. Enquanto vivi na Colônia, usei desse jeito
as duas bandas de cobertor, e nem uma vez foram à lavanderia.

Surgiu-me de repente uma contrariedade. França, o padeiro tuberculoso,
meu vizinho no Pavilhão dos Primários, veio censurar-me, e com
tanta arrogância que o supus logo dirigente de qualquer coisa. Falava
como se eu fosse criança, queria saber quem me havia dado licença
para deitar-me na cama. Tinham preferência os companheiros doentes.

– Perfeitamente, França. Mande um, eu saio. Lembrei-me dos risinhos
tímidos de França meses antes, quando, pela manhã, vinha
pedir-me a garrafa de leite à porta do cubículo 35. Essa garrafa
de leite não me fazia grande falta. Findara a inapetência da
semana horrível passada no porão do Manaus, era-me possível
entrar nas filas, receber o prato, duas vezes por dia, beber o caneco de café
que tinha gosto de formiga. Não me custava privar-me do leite, vendo
um sujeito precisar dele. Nenhum favor. As tremuras e os sorrisos do padeiro
confundiam-me. Tipo demasiado sensível, julguei. Para não ouvir
os agradecimentos bambos, desfazia-me da garrafa, saía do cubículo,
atravessava a plataforma, descia a escada. Vinha-me agora o pensamento infeliz
de que o rapaz se humilhara ao receber aquela insignificância. Humilhara-se
pagando com sorriso e tremura. Que miséria! E vingava-se chamando-me
à ordem, severo em demasia. Apesar de me ver disposto a ceder o lugar
a outro mais necessitado, prosseguia na arenga, violento como o diabo, repisando:
– Há companheiros doentes.

– Já sei, França. A cama está às ordens. Para
que repetir isso? – Você fala como se fosse dono dela. Quem lhe deu
ordem? Impacientei-me: – Olhe, França, vamos deixar de conversa. Não
tenho prazer nenhum em deitar-me nesta porcaria. Tome conta dela. Não
há razão para barulho.

O sujeito não se convencia, impertinente, a remoer aquela ninharia,
exibindo autoridade. Completa ausência de tino. Perdi os estribos: –
Vá para o inferno. Aqui feito um menino, a agüentar repreensões
idiotas. Não quero ouvir mais nada, percebe? Nada. Para o inferno.
A cama é propriedade minha, dei sete mil-réis a Gaúcho
por ela. Daqui não saio, entende? Sou um proprietário.

Diante dessa razão miserável, a arrogância do padeiro
murchou e desapareceu. Fui acomodar-me, envolver uns restos de zanga nos trapos
imundos. Certamente havia ali pessoas mais doentes que eu; Van der Linden
e Mário Paiva mereciam sem dúvida aquele desgraçado conforto.
Domício Fernandes estava moribundo, não voltaria ao Rio Grande
do Norte. Se não fosse a bazófia de França, não
me custaria despojar-me em benefício de qualquer deles. Na verdade
me achava bem mal, embora não vivesse a queixar-me nem avaliasse os
estragos, mas cada vez me arrasava mais. Só pensar no refeitório
me causava náusea, as mucuranas e os mosquitos perseguiam-me, e agora,
na esteira suja, enrolado em trapos vermelhos de vômitos sangrentos,
pensava na invasão dos bacilos, no rápido extermínio
do organismo indefeso.

24

TINHAM conseguido armar na cama vizinha um difícil mosquiteiro. Na
manhã seguinte vi sentado nela um sujeito maduro, atraente, óculos
grossos de míope, a roupa de casimira pelo avesso.

– Bom dia, atirou-me risonho e lento.

Estava com desejo de conversar e logo se apresentou: Mota. Escorregamos
depressa numa camaradagem fácil, tive realmente muito prazer em conhecê-lo.

– O senhor tomou parte na Aliança Nacional Libertadora, seu Mota?
– Não senhor, respondeu a criatura amável. Tinha as minhas simpatias.
Sou admirador de Prestes.

Vejam só. Porque simpatizava com a Aliança Nacional Libertadora
– cadeia, braços cruzados, a roupa vestida pelo avesso, a cabeça
baixa e sem cabelos. Pobre seu Mota. A situação dele era com
certeza a de Manuel Leal, meu amigo velho arrancado às Alagoas, metido
no cárcere dos sargentos no quartel do Recife, depois no porão
do Manaus e agora ali a carregar tijolos. Mas Leal não tinha o sossego,
a conversa amável de seu Mota. Andava irritado, sombrio, num desespero
mudo contínuo. Um dia essa mudez se quebrou e o infeliz, de volta do
trabalho, suado, coberto de pó vermelho, dirigiu-se a mim, ríspido:
– Porque é que estou preso? Hem? Diga.

Estranhei, tive pena do homem a desabar em velhice rápida. Coitado.
Não me parecia longe o tempo em que os tristes olhos hoje apagados
no rosto murcho brilhavam muito vivos; os fartos anéis da cabeleira
negra seduziam mulheres. Pobre de Leal. Provavelmente a decadência não
era apenas física; o espírito devia estar em declínio
também para ele me vir fazer tal pergunta.

– Que é que você quer que lhe diga? Sei lá! Nem sei
porque estou preso.

O meu antigo camarada engasgou-se, esteve um minuto a examinar-me com espanto
e censura. Tomou fôlego, e, de supetão: – Você? Ora essa!
Está preso porque é comunista. Sempre foi.

Declarou isso aos berros, sem ligar importância aos guardas e à
polícia.

– Desde menino. Sempre foi. Ainda usava calças curtas e já
lia essas coisas no balcão de seu pai. Mas eu? Que foi que eu fiz para
estar aqui? Hem? Explique.

Cheio de piedade, não conseguia eximir-me ao desejo de rir ouvindo
esse despropósito. Leal gritava a denúncia, provavelmente ignorando
que ela me poderia ser funesta. Não repliquei, temendo encolerizá-lo
mais. Coitado. Não perceberia a exígua significação
das brochuras que li na infância; continham veneno, supunha, estava
nelas a causa da minha desgraça. Tinham sido justos comigo. Pois não
passara a vida a procurar sarna para me coçar? Com ele havia injustiça.
Porquê? Responsabilizava-me: – Diga. Porque me mandaram para aqui? Diga
ao menos que é comunismo. Não sei. Nunca me meti com vocês,
nunca li nada disso. Explique.

A aflição tornava egoísta uma pessoa amorável.
Desequilíbrio, certamente. Vinham-me à lembrança o riso
aberto de Leal, as anedotas de caixeiro-viajante, sem graça, narradas
muitos anos atrás, quando ele se hospedava em nossa casa do interior.
Que horrível decadência! Via-me obrigado a fazer a comparação,
e isto me dava imenso desgosto. Não me ocorreu uma palavra generosa,
capaz de minorar aquela angústia. Afastei-me em silêncio. Esquisito
afligir-se um prisioneiro de tal modo, não achar sossego, alhear-se
do meio, o pensamento fixo no exterior, em casos remotos. Esses viventes arredios
ficam desagradáveis. Sentimos não poder auxiliá-los,
distraí-los; receamos contagiar-nos, findar naqueles tormentos. Buscamos
a companhia de sujeitos expansivos, esboçam-se camaradagens num instante
desfeitas. As histórias de Gaúcho afugentavam-me o sono, ser-me-ia
agradável escutá-lo muitas horas. Infelizmente quebravam-se:
vinha o momento de recolher, éramos forçados á calar-nos
e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.

– Imagine vossa mercê. Peguei um dia uma roupa nova bacana, azul-marinho.
Assentava no meu corpo e não foi para a muamba. Vesti-me nela e caí
na rua. Pois veja que azar. Na Lapa um sujeito do meu tope começou
a espiar demais para mim e não me deu tempo de pirar. Chegou-se e atacou:
– “Moço, me desculpe. Onde foi que o senhor arranjou esse terno?”
– “Pergunta muito bem, respondi eu. Comprei hoje por cem mil-réis
a um adelo da Rua da Constituição, número tal.”
– “Pois, moço, juro que esse terno é meu. Foi roubado ontem.”
Aí eu me ofendi e propus: – “O senhor quer ir comigo falar com
o adelo, agora mesmo? É um negociante conhecido.” O tipo afrouxou:
– “Não, não, posso estar enganado. Mas ia garantir que
não estou. É o feitio, é a cor, é o tamanho.”
Foi-se embora. E eu voei para casa. Um susto medonho, não sei como
tive tanta calma. Tirei a roupa e disse à mulher: – “Leva este
diabo ao intrujão, dá sumiço a isto.” A gente não
deve usar as coisas que rouba.

A conclusão vinha quase em forma de conselho: o ótimo ladrão
parecia querer livrar-me de tais vexames. Também me agradava a figura
tranqüila de seu Mota. Apesar de ser vítima de uma iniqüidade,
pois não se envolvera em política, mantinha na prisão
excelente humor. – “Bom dia.” Estava ali junto, emoldurado pelo
mosquiteiro entreaberto, os óculos a faiscar. A voz nunca se alterava,
e a afável saudação nos transmitia serenidade. Realmente
só vi seu Mota zangar-se uma vez. Fazia uma semana que nos conhecíamos,
e ele me narrava os seus começos. Fora secretário da prefeitura
em Corumbá, ou Cuiabá, não me lembro. De fato quem se
responsabilizava pela administração era ele, que o prefeito,
coronel e analfabeto, não entendia de verbas.

– Esse matuto viajou para o Rio e lá ficou três meses. Dirigi
o pessoal na ausência do homem e fiz boa arrecadação.
Quando ele chegou, havia em caixa trinta contos, naquele tempo uma fortuna
Arrumei o balancete e dei ao prefeito a chave do cofre. Não faltou
um tostão.

O meu vizinho interrompeu-se, um minuto se conservou absorto, o olhar distante,
mergulhado nas suas recordações. Súbito inquiriu: – O
senhor acredita? Acha que eu entreguei esse dinheiro? – Sem dúvida,
seu Mota. Ora essa! O ex-secretário da prefeitura de Corumbá
teve um longo suspiro: – Entreguei. Foi uma doidice. Com trinta contos nas
mãos, e passei a outro esse dinheiro todo. É o remorso que me
persegue na vida.

Seu Mota concluiu, exaltando-se: – Eu era muito novo. E muito burro.

25

CUBANO chegou-se a mim com uma proposta: – Vou apresentar o senhor a Paraíba.
Ele sabe muito. – Conheço de vista. Vamos lá.

Percorremos o galpão, encontramos ao fundo um mulato claro, de olho
vivo, a conversar baixo com um sujeito arriado.

– Paraíba, disse o negro, aqui seu Fulano vai escrever uma história
e vem pedir a você algumas informações. Diabo. A notícia
do livro chegara a Cubano, talvez à polícia; não me deixariam
salvar as notas guardadas na valise.

– Informações? estranhou Paraíba interrompendo os cochichos.

– Sim, coisas de vigarismo. Diga como é que você trabalha.

O tipo formalizou-se: – Nós não devemos confessar a leigos
os mistérios da nossa profissão.

Essa frase pulha enjoou-me. Pensei na linguagem simples de Gaúcho
e fiquei ali de pé, sem nenhum interesse. Cubano insistiu, e enfim
o mulato acedeu, com um gesto de profissional que manda um consulente para
a sala de espera.

– Bem. Demore um pouco. Estou ocupado em negócios. E voltou à
conversa. Tinha na mão um cinto de malhas brancas e pretas, a imitar
escamas. A outra personagem mostrava-lhe um porta-níqueis, – Como você
está vendo, o cinto é meu. Pele de lagarto. Compare. É
meu.

Cubano afastou-se, e ali fiquei reparando na transação. Paraíba
teve um risinho zombeteiro: — Seu? – Sim. Lagarto, como a bolsinha. Não
está vendo? – Era seu, concordo. Mas agora foi comprado por mim. Dei
por ele cinco mil-réis.

– Quem vendeu? O vigarista melindrou-se e atentou no parceiro com ar de
imenso desprezo: – Você me acha capaz de fazer uma denúncia?
Ora! Comprei a um dos nossos companheiros.

O outro se desmoralizava inteiramente, sucumbia, representando o infeliz
papel de otário. Paraíba iria zombar dele, exigindo o cinto,
e desmanchava-se uma reputação. Otário. O desgraçado
vergava o cachaço, a gaguejar; a minha presença aumentava-lhe
o embaraço. Depois de gozar longo tempo aquele constrangimento, o vigarista
fez um gesto macio de gato, ofereceu esta escapula ao podre rato: – Não
se incomode. Eu lhe cedo, sem lucro, o cinto. Custou cinco mil-réis.

Esse descaramento incrível e a humilde postura da vítima aguçavam-me
a curiosidade.

– Muito caro, gemeu uma voz sumida.

– Então, nada feito. Você não vai exigir que eu tenha
prejuízo Afinal concedeu: – Como se trata de um camarada, eu perco
dois mil réis. Leve o cinto por três, e o caso morre aqui entre
nós. Além do furto, chantagem. Afrouxou mais cinco tostões.
Com um suspiro, a criatura arrasada largou-lhe dois mil e quinhentos, retirou-se
afivelando o cinto.

E Paraíba atendeu-me: – As suas ordens.

Referi-me à frase dele: não desejar confessar os mistérios
da profissão. E resolvi metê-lo em brios dizendo não acreditar
nos mistérios: – Tudo isso é velho e já foi contado milhares
de vezes pelos jornais. Vocês não têm originalidade.

– O senhor se engana, protestou o velhaco. Nós jogamos com armas
psicológicas.

O vigarista falava bonito e pretendia, julguei, não revelar as suas
destrezas, mas fazer uma conferência literária. Continuei a duvidar:
– Pouco provável. As armas psicológicas de vocês são
como as dos caixeiros-viajantes: sempre as mesmas lábias. Ausência
de imaginação.

– Como é que o senhor sabe? – Pela repetição dos truques.
E pela natureza das vítimas, pobres matutos que andam pelas ruas de
boca aberta. A psicologia de vocês dá para conhecer essa gente.
É fácil. Não se aplica a outros indivíduos.

Paraíba me olhava com um sorriso de mofa. Insisti, querendo arrancar-lhe
as astúcias apenas mencionadas: – Certamente encontrei lá fora
centenas de colegas seus. Nunca nenhum se chegou a mim. Porquê? Teriam
notado pelo meu jeito que eu não tinha dinheiro? Seja franco. Você
me ofereceria o paco? Você me acha com cara de lhe comprar um bilhete
premiado? – Não, concedeu Paraíba. Com o senhor eu uso o golpe
da velha.

– Como é lá isso? Paraíba se decidiu: – Eu me aproximo
do senhor, com uma carta na mão: — “Cavalheiro, por obséquio,
sabe onde fica esta rua?” O senhor me dá a informação
e eu respondo aflito: – “Ah! Não acerto. Cheguei ontem do interior,
não consigo orientar-me.” Puxo conversa, falo numa tia doente,
provoco a sua piedade. – “Se o senhor quisesse ir comigo a este endereço
. ” Dou a entender que um favor tão pequeno salve talvez uma vida.
O senhor vai.

– Supõe que essa lengalenga me desvia das minhas ocupações?
– Sem dúvida. Nós somos atores. O senhor vai. Quando chegamos
ao destino, sai da casa um sujeito com uma pasta debaixo do braço.
É o esparro. Eu me dirijo a ele: – “Seu doutor, um momento.”
E passo-lhe a carta. O esparro finge ler e me responde: – “Meu caro,
essa letra se vence o mês vindouro.” – “Mas só faltam
quinze dias, seu doutor.” Tiro do bolso um papel selado e represento
uma cena triste. O senhor vai compreendendo a história aos pedaços.
O sujeito deve dez contos a minha tia, e ela está de cama, para morrer;
gastou as reservas com a farmácia e o médico. Tento por todos
os meios tocar o seu coração, e pelos modos nem dou pela sua
presença ali. Procuro entender-me com o outro: – “Veja, seu doutor,
a pobre da velha está nas últimas. Tinha aquele sítio
que lhe vendeu. Vim tratar disso, cheguei ontem. Se não houvesse muita
precisão, eu não tinha arriscado esta viagem antes do vencimento.
Não está legal?” – Mostro o papel: – “Só faltam
quinze dias ” O homem confessa a dívida, mas não quer pagar
adiantadamente. Aí eu proponho dez por cento de redução:
– “Liquide isto hoje por nove contos, seu doutor. Ganhe um conto de réis
e faça uma obra de caridade.” O devedor recusa, e eu ofereço
vinte por cento: – “Oito contos, recebo oito contos, que o aperto é
grande.” Impossível. O esparro mostra impaciência, olha
o relógio e vai embora. Caio num desânimo enorme: – “Que
é que eu faço?” Como vê, desperto no senhor dois
sentimentos: a piedade e a cobiça. Não vou assustá-lo
com ofertas vantajosas, lidas em notícias de jornais. A minha habilidade
consiste em levá-lo pouco a pouco a admitir que a proposta feita ao
esparro lhe foi apresentada. O senhor não desconfia de um matuto infeliz
e ignorante: emprego o vocabulário e a pronúncia da roça.
Os dois sentimentos vencem a prudência; observo o seu rosto, mostro-lhe
o papel. O senhor examina a data, a assinatura, os selos. Tudo em ordem. Arranjo
um pretexto para acabar-lhe a resistência. Entramos na casa, subimos
o elevador, vemos lá em cima um escritório com esta placa na
porta: Fulano de Tal. advogado. É o nome que está no documento.
O senhor não vai perguntar se o homem da pasta é o dono do consultório.
Vê os móveis, a instalação; o proprietário
é rico. Descemos. Entro em cheio no assunto. Não lhe peço
os oito contos de que falei ao esparro: desejo apenas um conto ou dois, e
ofereço a letra como garantia. Afianço voltar no vencimento,
procurá-lo, receber o dinheiro e dar-lhe o duplo da quantia que recebi.
Um lucro excessivo, mas a velha está moribunda e isto ainda pode ser
considerado favor. Sou um roceiro ingênuo: trago-lhe ocasião
de liquidar a letra na minha ausência e guardar tudo. O senhor afasta
essa idéia ruim, ela aparece de novo. Percebo na sua cara a luta dos
dois sentimentos. A sua inteligência baixou, as suspeitas adormeceram:
tenho probabilidade forte de arrancar-lhe o cobre. Estive um minuto em silêncio,
olhando o vigarista com algum respeito. Na verdade o ofício dele não
era tão simples como eu supunha. Um técnico, evidentemente;
linguagem de pessoa educada. Manifestei-me: – Paraiba, há um erro fundamental
na sua exposição. Você é um artista, reconheço,
mas a sua psicologia agora falhou. Não me seria possível acompanhá-lo
ao escritório do bacharel. Vivo sempre ocupado, e as ocupações
dos outros não me interessam. Nada me desviaria do meu caminho para
resolver as dificuldades de um transeunte. Se alguém me pedir uma informação,
respondo, e não saio do lugar onde estou. Além disso os dois
sentimentos a que você se referiu são fracos em mim, não
chegam a perturbar o juízo. Cobiça, para bem dizer, não
tenho: a sua letra de dez contos me deixaria em completa indiferença.
E as velhas doentes não me inspiram compaixão muito grande.
O fim das velhas doentes é a morte; não tenho meio de evitar
isso. Há desgraças em toda a parte. É absurdo condoer-me
de uma criatura invisível que um desconhecido menciona.

26

DOMÍCIO FERNANDES, o chauffeur que viajara comigo no porão
do Manaus, morreu à noite. De manhã, quando se varria o alojamento
e os presos arejavam no curral de arame, o cadáver foi retirado, em
cima de uma tábua. Vi de longe o embrulho fúnebre; não
se percebia nenhuma parte do corpo; fora envolto provavelmente no cobertor
ou na rede. Iam enterrá-lo assim.

Virei-me. afastei-me daquilo. Apesar de viver numa espécie de anestesia,
abalei-me, senti a morte avizinhar-se de mim. As dores no pé da barriga
cresceram, a tosse me deu a certeza de que os pulmões se decompunham.
Iriam levar-me qualquer dia enrolado no lençol tinto, vermelho de hemoptises.
Era coisa prevista, imaginada sempre, mas o jeito de fazer o enterro, a mudança
de uma criatura humana em pacote jogado fora sem quebra da rotina, expôs-me
com horrível clareza a insignificância das nossas vidas. Não
se indagava a causa da súbita desvalorização: bastava
a nossa presença ali para justificar o lento assassínio. Lembrei-me
de Leal, desesperado, em busca de razões desnecessárias; talvez
estivesse próximo o fim dos tormentos dele. Uma apresentação
desviou-me um instante as idéias negras; em seguida concorreu para
fortalecê-las. Um companheiro, a caminho das filas do trabalho, parou
junto de mim, acompanhado por um sujeito moreno.

– Você achou impossível o caso de Tiago, não acreditou.
Pois Tiago é este, ele pode confirmar.

E contou de novo a história, que me deixara incrédulo meses
antes, no Pavilhão dos Primários. Tiago servia na marinha inglesa,
muitos anos viajara em linhas do Pacífico. Um dia tivera o pensamento
infeliz de se dirigir à América e saltara no Brasil, depois
de longa ausência. Levado pelo amor, encaminhara-se ao Mangue. De volta,
chamara um táxi. E ao saltar no cais do porto, ouvira a escorchante
exigência da patifaria nacional: cem mil-réis pela corrida, um
furto. – “Você está maluco, protestava Tiago. Pensa que
sou gringo? Nasci no Rio, tenho isto de cor. Tome vinte mil réis, que
é muito, e guarde o troco.” Berros do chauffeur: – “Ladrão,
comunista” Apitos, rolo, gritos, homens de farda, Tiago no embrulho.
O chão molhado, a esteira, pulgas, percevejos, afinal o interrogatório.
– “Que anda fazendo aqui? perguntara um delegado. Qual é a sua
missão?” Tiago não tinha missão nenhuma: era marinheiro
na Inglaterra e conhecia Java e Singapura. Brasileiro, tivera saudade, revira
a pátria e fora ao Mangue. Apenas. Queria regressar aó navio,
falar inglês, viajar novamente no Pacífico. – “Está
bem, está bem, resolvera o delegado. Você fica. Não é
bom que esse negócio seja contado lá fora. Você fica.”
– “Doutor, afirmara Tiago, prometo não dizer uma palavra, esquecer-me
do Brasil. Se me aparecer numa rua a nossa bandeira ou estiverem tocando ali
o Hino Nacional, torço caminho, volto, passo longe. E deixo de falar
português.” Essa promessa de nada servira. Tiago virara comunista,
perdera o lugar no paquete – e, de cabeça rapada, vestindo zebra, carregava
tijolos na Colônia Correcional.

Grave, a testa enrugada, escutava a narração e movia a cabeça
aprovando em silêncio. Era aquilo. Se a bóia nojenta, os piolhos,
os mosquitos, decidissem matá-lo, Tiago sairia do galpão como
Domício Fernandes, em cima de uma tábua, envolto num lençol.

A história incrível me importunou o dia inteiro. De regresso
ao alojamento, pus-me a remoê-la contra vontade; meses atrás
parecera-me invencionice, e este juízo ainda persistia, apesar da confirmação
do protagonista: recusava-me a admitir que ele não houvesse omitido
qualquer coisa. É horrível estarmos a remexer um fato incompreensível.
A minha prisão era justa, na opinião de Leal. Pois não
passara a vida inteira a encher-me de letras radicais, a procurar sarna para
me coçar? Refletindo, achei a situação dele explicável
também. A dele e a do beata José Inácio, que a bordo
se zangara comigo, rosnara exibindo o rosário de contas brancas e azuis
no peito veloso: – “Quando nós fizermos a nossa revolução,
ateus como o senhor serão fuzilados.” Certamente era ridículo
perseguir essas criaturas. Mas podíamos conjeturar vinganças,
denúncias de inimigos ocultos, a canalhice de um chefe empenhado em
suprimir eleitores da oposição. Tiago não tinha inimigos
no Brasil, não votava, ninguém lhe ambicionava o emprego ordinário
na frota mercante inglesa. A absurda acusação de um patife burlado
fora suficiente para inutilizá-lo. Era inacreditável. Não
me fazia mossa o ato injusto; afligia-me ser impossível imaginar uma
razão para ele. Disparate. Convencia-me disto – e continuava a esforçar-me
para achar qualquer vantagem na imensa estupidez. Uma apenas me ocorreu, já
muito repetida. O governo se corrompera em demasia; para agüentar-se
precisava simular conjuras, grandes perigos, salvar o país enchendo
as cadeias. Mas as criaturas suspeitas, e os homens comprometidos na Escola
de Aviação, no 3.° Regimento, na revolução
de Natal eram escassos, não davam para justificar medidas de exceção
e arrocho, o temor público necessário à ditadura. Assim,
prendia-se um viajante alheio aos sucessos do Brasil. Os jornais aplaudiam.
Na publicidade rumorosa, Tiago reunia-se aos outros, vago conspirador anônimo.

Os tipos juntos ali com esse intuito safado não tinham sossego, viviam
numa indignação permanente, e alguns ainda esperavam reabilitar-se
na polícia; declaravam-se vítimas de engano. O espanto do velho
Eusébio, os sustos, as tremuras, permaneciam; na cara arrepiada estampavam-se
o sorriso inquieto e mofino; a voz esmorecia a gemer desculpas: – “An!”
Respeito imenso à propriedade e aos evangelhos. Pessoa de consideração:
– “An!” Esse encolhimento e essas evasivas contrastavam com a energia
de Claudino, de Aleixo, de Francisco Chaves, os três negros ocupados
sempre em conciliábulos no fim do galpão. Admirava-me a serenidade,
a frieza de Aristóteles Moura, conhecido meses antes no Pavilhão
dos Primários. Nunca lhe notei uma queixa, um gesto áspero.
Nenhuma ferida nos melindres de pequeno-burguês aviltado na piolheira
social. Não se aproximava nem se afastava dos vagabundos; mantinha-se
mais ou menos distante, nada o contagiava. Subia pelos pés de uma das
camas unidas que formavam longo estrado junto à parede, recolhia-se,
tomava um livro. Se alguém lhe falava, interrompia a leitura, respondia
calmo, paciente, em poucas palavras, a voz monótona, e findava: – “É
só.” Depois abria o livro. Também me surpreendia o comportamento
de Álvaro Ventura, meu parceiro de poker no cubículo 35 do Pavilhão.
Naquele tempo não revelava de nenhum modo se perdia ou se ganhava;
nunca vi tanta serenidade no jogo. Enquanto Sebastião Hora, um médico,
se excedia, golpeava a mala que nos servia de mesa, Ventura, simples estivador,
largava as fichas tranqüilo, indiferente. Agora, de volta do trabalho,
suado, coberto de pó vermelho, parecia ainda estar sentado na cama,
em frente a mim, exibindo as cartas, despojando-se das fichas de papelão.
Viera na primeira leva, demorava-se muito, e era como se não se ressentisse
do tratamento. Vinha-me a impressão de que ele se julgava metido numa
espécie de jogo e aceitava os riscos sem se alterar: as perdas estavam
previstas. Alguns indivíduos tinham maneiras insensatas, davam mostra
de querer prejudicar-se. Uma noite, na revista, dois rapazes da marinha entraram
a discutir, azedos, acabaram atracando-se.

– Desgraçados! exclamou Cubano intervindo e aplicando aos contendores
meia dúzia de safanões. Vocês estão doidos? – Que
foi? gritou da porta o guarda.

– Nada não, respondeu Cubano.

Ficou um minuto a resmungar conselhos enérgicos, afastou-se. Os marinheiros
voltaram à discussão e pegaram-se de novo. Aí o guarda
aproximou-se e levou-os. A chave tilintou na fechadura, a grade se abriu,
desapareceram.

– Veja o senhor, disse-me Cubano mais tarde. Fiz o que pude para salvar
aqueles infelizes. Não me ouviram, estão na cela.

Iam dormir no chão, descobertos, e o alimento seria reduzido. Perdia-se
a estranha benevolência de Cubano, expressa em murros. Pior talvez que
a cela foi o castigo humilhante aplicado a Baptista, o português hábil
no canto de galo, conhecedor de algumas frases mil vezes berradas para chatear-nos:
– “Por causa de uma aventura galante…” Já não podia
expandir-se desse jeito: o período irritante e o cocorocó tinham
desaparecido. Um dia o obrigaram a ficar muitas horas de pé num canto,
os braços cruzados, o rosto junto ao muro. Na sujeição
ridícula, a natureza do homem se revelava em patadas leves, o protesto
de menino teimoso.

Um curioso monólogo afastou-me dali certa manhã, levou-me
de chofre ao sertão do nordeste. Achava-me deitado numa esteira. Súbito
uma voz sobressaiu no zumbido confuso da multidão, e espantei-me de
reconhecer a personagem que falava, poucas vezes percebida na semana de pesadelo
gramada no porão do Manaus. Lembrei-me do nome e do tipo: era João
Francisco Gregório, caboclo robusto, desconfiado, o sujeito mais inocente
do mundo, na aparência. A fala cantada e lenta sussurrava perto; não
me era possível distinguir a figura, mas vinha-me desejo de rir ao
encontrar de novo, na pachorra e no tom, a ingenuidade manhosa da minha gente.

– Moço, dizia João Francisco, eu não entendo isso que
o senhor está dizendo não. Sou da família e da igreja,
devoto de São Francisco, não quero saber de barulho. Nem penso
em revolução, Deus me livre. Quando me soltarem, caio no trabalho
e nas orações; foi nisto que me criei.

Calou-se. O intruso se havia afastado. Ergui-me, vi a criatura mordendo
um sorriso astuto.

– Nas orações, hem, seu João Francisco? murmurei. O
vigoroso caboclo examinou os arredores: – Tinha graça, na minha idade,
eu me abrir com esse provocador. É a terceira vez que me vem com histórias,
sem me conhecer. Sei lá donde ele saiu? E não gosto de conversas.

Guardou silêncio um minuto, olhou-me de soslaio, continuou: – Preciso
agüentar-me aqui. Tão cedo não me largam, fico de molho,
sem dúvida. Um dia volto para a minha terra e entro num bando, vou
matar soldado na guerrilha. É o que interessa, as discussões
não servem para nada. Estamos no meio de espiões; fecho a boca
e me livro deles. O senhor não resiste um mês: com certeza morre
de fome. Eu posso viver aqui alguns anos, estou acostumado a passar miséria.
Depois eles me botam na rua. Aqui eu não dou armas à polícia.
Lá fora, quando chegar o momento de pegar no pau furado, entro na dança.

Agradeci interiormente esse desabafo, estranho em pessoa que pouco antes
se mostrara simulada e cautelosa. A paciência enorme, a saúde
firme de mandacaru em tempo de seca e o plano realizável em futuro
remoto fizeram-me esquecer um instante as chagas medonhas envoltas em algodão
negro, a tosse dos tuberculosos, o ferrão dos piolhos e dos mosquitos,
o embrulho fúnebre saído para o cemitério, numa tábua.
João Francisco não teria o fim do pobre Domício Fernandes.
Queria viver e matar soldados.

27

O PADRE de Mangaratiba, numa longa visita, procurou salvar as nossas almas.

– Formatura geral.

Era de manhã, o frio cortante nos arrepiava as cabeças peladas,
estávamos no curral de arame. Organizaram-se as filas, o reverendo
surgiu com o tenente Bicicleta, o oficial de beiço rachado, passeou
algum tempo a examinar-nos, depois de colocar-se junto à grade, risonho,
esfregando as mãos, um brilho de contentamento nos olhos. Sem dúvida
nos julgava animais perigosos enjaulados. Entrava na jaula, mas sentia-se
defendido, livre das nossas garras, e esfregava as mãos, satisfeito.
Indisfarçável aquele ar de triunfo e segurança. Ficou
alguns minutos em silêncio, o sorriso a espalhar-se em todo o rosto,
em seguida iniciou a catequese num discurso mastigado, cheio de erros pavorosos.
Nunca ouvi tanta besteira. Logo no princípio engasgou-se e recorreu
atarantado a uma poesia do Conde Afonso Celso. “Seria enorme crime não
amar aqui a Deus.” Atrapalhou-se muitas vezes, e sempre que isto acontecia
largava a citação maluca; se havia no mundo lugar onde o amor
a Deus estava naturalmente excluído, era aquele. Felizmente o orador
não me via a cara. Achava-me no segundo lugar da fila, atrás
de um repórter volumoso bastante para esconder-me, e fazia em voz baixa
comentários ao sermão e à literatura do conde. Naquele
dia tivemos uma surpresa. Estávamos de braços cruzados, como
de ordinário; mas no decorrer da evangelização os guardas
se azafamaram de um lado para outro, a mandar-nos que os descruzássemos.
De fato não mandavam: pediam em cochichos, tinham-se de chofre amaciado.
Obedecíamos. Ao cabo de um minuto voltávamos à posição
humilhante: impossível ficar de outro jeito. Havia nas linhas um contínuo
movimento de braços a estirar-se ao longo dos corpos, a retomar a postura
maquinal. Em alguns presos esse comportamento era ostensivo, percebia-se neles
prazer em desgostar os nossos verdugos. A covardia dos funcionários
causava-me espanto. Confessavam daquele modo as violências e os abusos,
esforçavam-se por ocultá-los e supunham estupidamente que os
auxiliaríamos. Isso me fez pensar em coisa vista pouco depois da minha
chegada. Não me isentara do imundo refeitório e via-me na obrigação
de sentar-me nos bancos negros, fumando para atenuar o fedor horrível.
Certo dia correu um boato: alguns jornalistas iam visitar-nos. A hora do almoço
notei modificação na sala estreita e longa: nas tábuas
dos cavaletes a pavorosa bóia se disfarçava debaixo de folhas
de alface. O medo à reportagem nos explicava o uso das máscaras
verdes, inúteis, pois a visita não se realizou. Agora, na presença
da religião, os nossos carcereiros fingiam brandura, e esta falsidade
nos revoltaria se a lengalenga do padre não nos divertisse.

Não havia meio de achar a peroração. Avançava,
recuava, dava por paus e por pedras, como se tivesse o desígnio de
nos afastar do céu, a meter sempre no aranzel a cunha poética:
– “Seria enorme crime não amar aqui a Deus.” Encolhia-me
para não ser visto e alargava-me em elogios graves sussurrados na orelha
do vizinho da frente. Larguei um disparate cabeludo, o moço perdeu
os estribos e pôs-se a rir. O pregador interrompeu-se, o oficial de
beiço rachado fez um gesto, o rapaz saiu da fileira, avizinhou-se da
grade e foi submetido a um ligeiro interrogatório. Voltou e segredou-me:
– Veja só. Quando este idiota for embora, tenho de me apresentar a
Bicicleta. É o diabo Com certeza vai mandar-me para a cela.

Estremeci. Por minha causa o pobre ia ficar às escuras, receber um
pires de feijão por dia, sem conseguir estirar-se no cubículo
molhado e exíguo, de um metro e pouco. Acharia-me na obrigação
de responsabilizar-me, dizer ao homem de beiço rachado que a culpa
era minha: sem as pilhérias bestas, não teria havido o riso.
Ao mesmo tempo uma idéia cautelosa insinuava-se, malandra: a honradez
excessiva não serviria para nada; o mais certo era meterem os dois
na cela; querendo salvar o companheiro, ia prejudicá-lo, tomar-lhe
o espaço reduzido. – “Seria enorme crime não amar aqui
a Deus.” O estribilho deixava-me indiferente, impossível achar
graça nele. Desejei ouvi-lo estirar-se, adiar o encontro do rapaz com
o tenente. Não havia jeito de me resolver. Iria denunciar-me? Ou deixaria
outro ser punido em meu lugar? Na verdade a minha falta não era grande:
apenas me distraíra a lançar observações a respeito
da eloqüência do padre e da literatura da citação,
usada sem propósito. O infeliz tivera o desplante de zombar disso claramente,
às barbas da autoridade. Pior para ele. Assim falava no íntimo,
e ainda me conservava indeciso, a condenar-me, a inocentar-me. O rapaz fora
leviano por me haver escutado. Evidente. A culpa era minha. Teria coragem
de revelar-me, tentar eximi-lo? Uma idéia fúnebre me ocorreu:
na desgraçada situação em que me achava encerrar-me por
gosto na ratoeira medonha era um suicídio. O meu companheiro, homem
robusto, poderia agüentar-se ali uma semana; depois recobraria as forças.
Não me seria possível resistir. A perna entanguida, as dores
no pé da barriga, o torpor no estômago vazio, a tosse, arrepios
de febre tornavam irrealizável a honestidade. É estranho um
indivíduo perceber que não tem meio de ser digno. Mas relutava
em convencer-me disto, não via a exigência de comportamentos
diversos em condições diversas. Com efeito, lá dentro
os melindres de consciência embotam-se, alteram-se os valores morais
– e o nosso dever principal é existir. Por isso os atos de solidariedade
avultam em demasia, não os esquecemos. – “Seria enorme crime não
amar aqui a Deus.” Imbecil. Na ânsia de fixar-me numa decisão,
e o pensamento a desviar-se para a frase idiota. Enfim talvez o rapaz não
estivesse ameaçado como julgava, e era doidice arriscar-me antes de
saber a resolução do tenente. O caso findaria numa leve censura
e não valia a pena expor-me. Deixaria para manifestar-me se houvesse
perigo. A solução me pareceu razoável e de algum modo
me tranqüilizou. Contudo ainda me restavam dúvidas. Iria realmente
condenar-me, se fosse preciso? A pergunta me afligiu um instante, inclinei-me
em seguida a afirmar que sim.

O padre tornou a referir-se ao enorme crime e pôs fim à declamação,
fatigado e vermelho na manhã fria. A arrumação das palavras
dera-lhe trabalho e suor. Esteve algum tempo a observar-nos, o largo contentamento
expresso na cara. Atravessou a cancela e desapareceu. Deixamos as filas. O
meu vizinho chegou-se ao tenente do beiço rachado e teve uma conversa
rápida com ele. Estava calmo, risonho; evidentemente não provocava
nem uma ligeira admoestação. Despediu-se como se nada houvesse
acontecido. Fui procurá-lo: – Então, não vai para a cela?
– Não. Expliquei ao tenente que tinha rido porque a poesia do conde
me dava prazer. Bicicleta aceitou a explicação e deixou-me em
paz. Com certeza admira o conde.

28

AS TURMAS haviam saído para o trabalho e no galpão restavam
apenas os doentes. Sentado na cama, esforçava-me por entender um livro,
relendo páginas; rumor de tosses, gemidos, casavam-se à leitura,
especialmente os uivos de um malandro cafuzo, que pedia uma injeção
de morfina. Um grito levantou-me a cabeça: – Gaúcho! Perto da
grade, Alfeu chamava o arrombador, que saía do banheiro, despido, enxugando-se
numa toalha de rosto, e, sem se voltar, respondeu áspero: – Já
vou.

Outro berro, e o ladrão se afastou com vagar irritante, a esfregar-se.
Tinha na coxa um monstruoso falo tatuado; a glande ficava abaixo do joelho.

– Gaúcho! – Estou nu. Vou-me vestir.

E dirigiu-se às tábuas do fundo. Alfeu marchou atrás
dele, furioso, alcançou-o no fim do alojamento, deu-lhe uma bofetada,
lançou-o por terra. O escrunchante ergueu-se, tirou com a toalha a
areia pegada no corpo úmido, aproximou-se da roupa, vestiu a cueca,
recebeu novo golpe caiu, levantou-se rápido, abotoando-se. Terceira
queda, e vestiu uma das mangas da camisa, a outra ficou para depois da quarta.
Assim conseguiu enfiar as calças. As vezes resistia às pancadas;
cambaleava, endireitava-se, prosseguia na custosa operação,
atento. Não esboçou um gesto de defesa, nem sequer tentou cobrir
o rosto. O soldado batia sem pressa, dando-lhe o tempo necessário para
arrumar-se nos intervalos da surra. Isso durou uns cinco minutos. Afinal o
desgraçado afivelou o cinto, meteu nas casas todos os botões
e disse tranqüilo: – Bem. Agora podemos ir.

E acompanhou o soldado. A noite, quando me apareceu na visita ordinária,
revelei o meu espanto: – Ó Gaúcho, você podia ter evitado
aquela desgraça. Porque não atendeu logo ao chamado? – Vossa
mercê não entende, respondeu o escrunchante. Ele fez o que eu
desejava, não houve desgraça nenhuma. Aquilo é treinamento
do sistema nervoso, é ginástica. Sem exercício, eu enferrujo
aqui dentro; quando sair, não posso arrombar direito uma casa, volto
ao serviço com as juntas perras.

Guardou silêncio um instante, depois resvalou numa confissão
temerária: – Eu tenho um plano: vou fugir. Foi por isso que lhe vendi
a cama, não precisava dela. Antes de um mês estou no Rio.

– Difícil – Não senhor. Já fugi de Fernando de Noronha.
Isto sim, foi difícil. Pirar daqui é brincadeira de menino.
Basta arranjar um saco, um pedaço de pau, um cordão e uma caixa
de fósforos.

Estranhei. Para que diabo serviam coisas tão diferentes? – Eu lhe
digo. Sabe qual vai ser a conseqüência da minha brutalidade com
Alfeu? A sova foi apenas o começo; qualquer dia mandam-me para as vigas.

Estremeci – Que horror, Gaúcho! Não pense nisso.

Era um castigo medonho, pior que a cela, e apenas se infligia a homens robustos
e perigosos. Estavam separados de nós. As vezes, pela manhã,
durante o curto banho de sol, víamos essas criaturas em fila, conduzindo
troncos pesados. Vagarosos, passavam a pequena distância, a vacilar,
trôpegos, vergando ao peso da carga. As pontas dos madeiros apoiavam-se
nas cabeças, nos ombros, e os infelizes arrastavam-se, dois a dois,
jungidos pela horrível canga. Se um traquejava, tombava, o companheiro
via-se coagido a serviço duplo, no cocuruto uma rodilha, a trave em
cima, equilibrando-se mal, as extremidades a subir, a descer. Aquilo formava
uma gari, gorra sinistra, o espigão em marcha ronceira, titubeante.
Avanços, recuos, tombos, quase impossível a geringonça
manter-se em posição horizontal. Se se desconchavava, o sujeito
era obrigado a arrastá-la. Polícias, com sabres desembainhados
e açoites, não concediam trégua no duro esforço.

– É terrível, Gaúcho – Não senhor. A gente nas
vigas tem algumas vantagens. Há comida. Ruim, mas há. Aqui nós
morremos de fome. É de lá que eu vou fugir.

Olhou em roda, baixou a voz, desenvolveu o projeto: – Arranjo o saco, o
pau, o cordão, meto isso debaixo da camisa e, na hora do trabalho,
guardo tudo no mato, longe das vistas. Escondo nos bolsos o que pegar na cozinha,
restos de pão, carne, qualquer bóia, e, no corte de madeira,
arrumo no saco esses mantimentos. É preciso ter paciência, não
há pressa.

– E o cordão, Gaúcho? E o cacete? – Bem. O cordão serve
para amarrar a boca do saco, por causa das formigas. O cacete o senhor vai
ver depois. Um dia, no transporte das vigas, corto o pé com um caco
de vidro e vou-me atrasando, manquejando. Sapecam-me o lombo, querem obrigar-me
a andar como os outros, mas estão vendo muito sangue, sabem que me
estrepei e largam-me. Não posso acompanhar a turma, dão-me um
carrego leve; continuo remanchando e depois de algumas horas estou na ponta
da fila. Numa volta do caminho, quando não me avistam, jogo fora a
madeira, corro à moita onde escondi os troços, agarro tudo e
caio na mata. Aí não me acham. Descobrem a fuga tarde: estou
longe, ninguém adivinha que rumo tomei. A ilha é grande. Está
no bolso a caixa de fósforos, porque à noite preciso uma fogueira
para me defender das cobras. Tenho de viver nas brenhas muitos dias, até
que a vigilância afrouxe. Na primeira semana há um corre-corre
dos diabos, e não faço a doidice de me aproximar da costa. Fico
na serra, entocado, como bicho Se a bóia acabar, assalto a casa de
um desses caipiras. É aí que entra o cacete. Chego-me devagar,
espio, descubro uma velha junto do fogo, preparando a gororoba. Estudo a ocasião,
vou-me abeirando por detrás da mulher, dou-lhe uma cacetada na cabeça
e levo a panela. Isto é ruim e só se usa em caso de aperto,
porque a notícia se espalha e a guarda percebe que ainda não
me escapuli. O meu interesse é que ela esteja na dúvida. Agüento-me
quinze dias, um mês, afinal se esquecem de mim, volta o sossego. Vou-me
aproximando e observo isso com muito cuidado. Aproveito uma noite de escuro
ou de chuva, desço ao porto, desatraco uma canoa, meto-me nela e toco
para Mangaratiba. Mas desembarco fora do povoado, fujo das casas e não
viajo em trem, é claro. Entro no Rio a pé, acompanhando a estrada
de ferro.

Calou-se, e apresentei-lhe esta objeção: – Você fala
com uma certeza esquisita. Pode ser que as coisas não se passem como
você imagina.

– Ora essa! Falo porque tenho prática, não é a primeira
vez que me desenrasco. É assim que se faz.

Em seguida referiu-me a evasão de Fernando de Noronha, mas havia
nela sérias dificuldades, e não me seria possível hoje
reproduzi-Ia. Esqueci quase tudo. Essa história não me despertou
muita curiosidade, talvez por encerrar um lance romanesco, façanha
incompatível, parece-me, com a natureza do meu amigo. Supus que a fantasia
dele houvesse forjado o caso, pelo menos grande parte do caso estranho. Em
geral aqueles homens devaneavam, enxertavam pedaços de sonho na realidade.
Afasto o juízo temerário, concebo alguma verdade na proeza de
Gaúcho. Enfim as narrações dele articulavam-se com rigor.
Dessa, na verdade singular, perdeu-se o começo. O arrombador escapara
da prisão, arranjara um bote e fizera-se ao largo. Não tinha
velejado muito e recebia uma descarga: alguns perseguidores navegavam para
ele. Deitara-se, livrara-se das balas. Depois, manejando vela e remo, conseguira
distanciar-se um pouco. Ainda longe do continente, naufragara a embarcação
dos caçadores. O fugitivo recuara, avizinhara-se deles e, com esforço,
recolhera todos, meio mortos. Prosseguira e ao cabo de horas alcançava
uma praia deserta. Pusera em terra quatro soldados exaustos, sem armas, e
embrenhara-se no Rio Grande do Norte, sempre caminhando para o sul.

– E como foi que você viveu nesse tempo? informei-me. – Roubando,
fazendo miséria.

– Diabo! exclamei atônito. Você perdeu uma boa oportunidade.
Era fácil reabilitar-se.

– Não senhor. Nunca pensei nisso. Não aprendi nada. Só
dou para roubar, é o que sei.

Essa franqueza levou-me naquele momento a aceitar sem exame o heroísmo
do sujeito absurdo. Incongruente. Mas quem não é incongruente?
Não havia em Gaúcho sinal de mentira; as palavras saíam-lhe
naturais, vivas, um pequeno silvo a terminar os períodos; o olho de
gavião fixava-se em mim com energia, nunca se desviava. Enfim o indivíduo
singular não dava mostra de haver praticado ação notável.
Sentado à beira da cama, em cueca, nu da cintura para cima, exibia
os músculos rijos, os bíceps enormes. Bem. Aquela força
visível podia ter realmente salvo os quatro soldados. Observando o
corpo vigoroso, baixei o olhar às pernas, ri-me: lá estava numa
delas o remate da figura obscena.

– Ó Gaúcho, inquiri, você não acha um horror
essa tatuagem? Porque não mandou pintar coisa menos indecente? – Isto
é o meu cartão de visita, respondeu o escrunchante. Quando entro
na cadeia, os veteranos vão-se chegando, e sei perfeitamente as intenções
deles. Se não tivesse a marca do ofício, estava perdido, era
uma pessoa enrabada. Os tipos se assanham e eu tiro a roupa devagar. Eles
vêem a tatuagem e baixam o fogo: compreendem que sou lunfa e mereço
respeito.

29

CUBANO bateu palmas à hora do almoço e os homens se alinharam.
Desviei-me, como sempre fazia, esgueirei-me para as camas vizinhas ao lavatório;
ouvi gritarem-me o nome: – Seu Fulano, entre em forma. Voltei-me: – Obrigado,
não quero almoçar.

O negro estava diante de mim, decidido, sem nenhum vestígio das amabilidades
ordinárias: – Não estou perguntando se o senhor quer, estou
mandando. Entre na fila.

– Tolice, Cubano, respondi com mau modo. Você não me dispensou
das formaturas? Essa réplica foi inútil: o moleque aproximou-se,
cochichou-me ao ouvido, a voz trêmula: – Perdoe-me. Eu não posso
deixar o senhor morrer de fome. Vai à força.

E agarrou-se comigo, em luta desigual, absurda. Achava-me num espanto imenso,
cheio de fúria e vergonha. E parecia-me sobretudo ridículo envolver-me
em briga daquele gênero com um vagabundo, na presença de novecentos
homens em linhas pasmas, os braços cruzados. Minutos antes, folheando
papéis, sentado na cama, tal ocorrência não me atravessaria
o espírito. Demência. Apesar de ter vivido muitos anos no sertão,
convivendo com gente meio bárbara, nunca me viera precisão de
recorrer ao músculo. De fato os pobres músculos se haviam atrofiado;
impossível extrair deles o vigor necessário. Dias gastos numa
repartição, no exame de processos, noites consumidas no lento
arranjo de frases, o espinhaço curvo, estragam definitivamente um organismo.
Ao chegar ali, firmava-me com dificuldade, a arrastar a perna trôpega.
E agora, ausente da mesa onde me davam, em prato de folha, um caldo insípido
e ralo, com três rodelas de cenoura, sentia-me arrasado. Uma semana
de jejum completo, mais de uma semana, conjeturo. Nessa infeliz situação,
bambo, atracar-me a um bicho forte, habituado aos rolos das favelas, era estúpido.

Movia-me em desespero, atacava, defendia-me à toa; com certeza os
meus golpes não tinham nenhum efeito. O moleque, rijo, nem se ocupava
em revidá-los: todo o esforço dele consistia em procurar segurar-me
os braços. Um murro me lançaria ao chão. Tive consciência
disso, percebi que o estranho adversário me poupava e limitei-me a
fugir às mãos ásperas, aos dedos de ferro. A enorme cólera
juntou-se uma gratidão insensata. Perseguia-me a escusa estapafúrdia,
no meio daquele desconchavo: – “Não posso deixar o senhor morrer
de fome. Perdoe.” Excelente propósito, sem dúvida, mas
o jeito de realizá-lo indignava-me. Muitas vezes o rapaz me oferecera
conselho: – “O senhor fuma demais. E não come. Isso é ruim.
Veja se pode engolir qualquer coisa.” – “Não. Obrigado. É
impossível.” Nunca me passara a idéia de que ele fosse
capaz de levar-me a semelhante apuro. Amável, serviçal, procurava
tornar-nos a vida menos dura no lugar infame. De repente, a inopinada agressão.
Gente singular, meio esquisito: até para revelar sentimentos generosos,
era indispensável a brutalidade. Na desordem, mexendo-me ao acaso,
via-me forçado a achar razoável o disparate: o homem recorria
à violência com o intuito de prestar-me favor, e admiti que não
podia comportar-se de outro modo. Tinha um coração humano, sem
dúvida, mas adquirira hábitos de animal. Enfim todos nos animalizávamos
depressa. O rumor dos ventres à noite, a horrível imundície,
as cenas ignóbeis na latrina já não nos faziam mossa
Rixas de quando em quando, sem motivo aparente; soldados ébrios a desmandar-se
em coações e injúrias. Essas coisas a princípio
me abalavam; tornaram-se depois quase naturais. E via-me agora embrulhado
num pugilato.

A zanga e o reconhecimento ferviam-me no interior. Súbito uma confusa
piedade engrossou-me o coração. Tive pena do infeliz amigo,
que se aventurava a medidas extremas, julgando salvar-me a vida. A irritação
esmoreceu: provavelmente ele devia sofrer. Continuava a defender-me; na confusão,
tínhamos andado vários metros, pouco a pouco nos chegávamos
à porta, onde a guarda assistia ao fuzuê. A indisciplina me ocasionaria
provavelmente a cela, estreita e escura. Não pensei nisso. o perigo
imediato, sucumbir, entrar na fila, marchar de cabeça baixa, sentar-me
no refeitório nauseabundo, eliminava riscos afastados. Empenhava-me
na resistência, que se ia tornando bem difícil: a minha estulta
compaixão associava-se aos movimentos de Cubano; sem dúvida
ele iria subjugar-me.

Um berro medonho nos interrompeu. Virei-me, enxerguei por cima do ombro
o malandro cafuzo que, dias e dias, uivava junto à grade pedindo uma
injeção de morfina. Rolara de uma tábua e espojava-se
na areia do alojamento, em gritos, a barriga nua exposta a uma nuvem de moscas.
De relance notei uma ferida aberta, um jorro de sangue preto derramando-se
nas virilhas, nos pêlos do ventre, nas pernas, formando uma poça
no chão. Sacudi-me, livrei-me das garras fortes do vagabundo: – Vá
para o inferno, Cubano. Eu posso comer vendo uma desgraça desta? A
criatura desviou-se, e ao cabo de um minuto as linhas moveram-se, entraram
no curral de arame, articularam-se no pátio branco. Ficamos sós
no galpão, o doente caído na terra vermelha, eu de pé,
atordoado, inútil. Aproximei-me dele, perguntando a mim mesmo se era
possível fazer qualquer coisa. Evidentemente não, mas resistia
em conformar-me com isso.

Fui à porta, olhei pelas barras de ferro, procurei um soldado, um
funcionário, chamei. Ninguém. Nenhuma assistência ao infeliz.
Voltei para junto dele, fiquei algum tempo a ver o líquido escuro esguichar
do buraco, sob o vôo das moscas. Faltavam desinfetantes. Aquilo arruinara,
apodrecera ao abandono, e o sujeito, com os intestinos avariados, manifestava
a dor e o medo em queixas estertorosas. Lembrei-me das palavras do médico
ao examinar-me a eventração: – “Apendicite?” – “Psoíte.”
– “Vamos operar isso. É fácil.” Estremeci com horror
desconhecido naquele tempo. Se me houvesse entregue às facas dos magarefes,
acabar-me-ia assim, decompondo-me sem tratamento, devorado pelas mucuranas.
A horrível chaga era pouco mais ou menos à altura da minha cicatriz,
abaixo das últimas costelas direitas. O homem provavelmente ouvira
oferta igual àquela, baixara a um hospital miserável, fora cortado
à pressa numa sala isenta de assepsia. A voz era um’ grunhido rouco:
– Uma injeção de morfina, pelo amor de Deus.

O pedido insistente no deserto arrasava-me os nervos. Arredei-me, fui sentar-me
à cama, abri o livro, repisei coisas da índia. Não sei
como obtive esse volume encadernado, com ilustrações. Enquanto
ali vivi, tornou-se em mim um hábito folheá-lo, mas nunca entendi
um período: sabia apenas que se tratava de coisas da índia.
Irritava-me a demora dos companheiros, o almoço interminável.
Se estivessem ali, talvez algum achasse meio de socorrer o pobre. Dizia isso
a mim mesmo, embalando-me numa esperança indecisa e hipócrita.
Nenhum auxílio, evidentemente. O -meu desejo era que o galpão
se enchesse e o rumor das tosses, o zunzum das conversas, palavras ásperas,
contendas amalgamadas num burburinho constante, abafassem o ronco lastimoso.
Pensava em distanciar-me, dirigir-me às tábuas do fundo, e continuei
ali, contando os longos minutos. Com freqüência levantava a cabeça,
via, a seis ou oito passos, a barriga preta, onde o sangue estancara. Os gemidos
caíam monótonos, e parecia-me que a ele se juntava o surdo zumbir
das moscas. Ilu são: àquela distância não se ouvia
o débil som, mas distinguia-se bem o esvoaçar dos bichos em
cima da carne rasgada. Naquele momento a perna direita me incomodava em excesso.
Difícil arrastar-me: talvez por isso não me haja decidido a
refugiar-me nas tábuas do fundo, longe do queixume ininterrupto. A
briga física havia-me exaurido. Burrice. Enrolara-me em coisa semelhante
no curso primário, e desde então as encrencas se aplainavam
sem muita grosseria. Julgava-me um tipo mais ou menos civilizado. Agora isso
desaparecia.

Um bruto, evidentemente. Um bruto cansado, a vista a espalhar-se, turva,
nas paredes sujas, detendo-se num ventre aberto, num orifício glutinoso,
no vôo de insetos vorazes. O cafuzo ia morrer, sem dúvida.

– Uma injeção de morfina.

A súplica desmaiava, era um rumor abafado, arquejante. Se a não
tivesse ouvido muitas vezes, não me seria possível entendê-la.
As palavras sumiam-se, desarticulavam-se, como a enregelar-se num torpor de
morte. Descerrou-se a grade, as filas entraram no alojamento, desfizeram-se;
as vozes espalharam-se, fundiram-se no rumor coletivo. Erguendo a cabeça,
não percebi o corpo exangue na areia vermelha. Bem. Agora estava sobre
a tábua donde resvalara, junto à porta. Findo o almoço,
decidiram acomodá-lo. Ia enfim aquietar-se; pelo menos a agitação
nos escaparia. E à tarde, com o regresso das turmas do trabalho, poderíamos
distrair-nos passeando entre as esteiras, ouvindo, aqui, ali, uma história,
uma anedota.

Cubano falou-me, solícito, camarada: a luta da manhã não
lhe deixara vestígio no espírito. Busquei lembrar-me dela. O
pensamento desviava-se, os olhos prendiam-se com insistência na figura
imóvel junto aos varões de ferro.

A noite, a visita de Gaúcho não me deu prazer: achava-me desatento,
murcho. E depois do silêncio, estirado, a maleta servindo-me de travesseiro,
presas entre as coxas as duas bandas do lençol tinto de hemoptises,
não consegui dormir direito. O sono vinha, fugia. Modorras desagradáveis
partiam-se, e nesses intervalos abalavam-me os sentidos meio dormentes os
ruídos noturnos: papaguear desconexo e delirante, revoluções
de tripas, gemidos, tosses. Avultavam nisso os arquejos do malandro. Eram
na verdade quase imperceptíveis, mas feriam-me como pregos. Fazia muitas
horas que tinham cessado; capacitara-me disto. Ressurgiam, prolongavam-se,
estertor de moribundo teimoso. Porque não morria logo aquela criatura?
– Uma injeção de morfina, pelo amor de Deus.

Era apenas um sussurro, quase indistinto. O pedido esmorecia, inútil.
Pela madrugada enxerguei vultos em redor da tábua, curvados, em cochichos.
Teriam vindo enfermeiros? Estariam abreviando e entorpecendo a agonia do homem?
Retiraram-se. Os lamentos enfraqueceram ainda, espaçados, sumiram-se.

Ao levantar-me, vi o cafuzo imóvel e sereno. Afastei-me, com este
horror aos mortos, de que não me livro. Fomos aquecer-nos ao sol, no
curral; as turmas saíram para o trabalho. Quando voltei ao alojamento,
o cadáver tinha desaparecido. Saíra provavelmente enrolado num
cobertor, como Domício Fernandes.

30

CERTA manhã os paranaenses foram chamados à secretaria e voltaram
num ruidoso contentamento: no dia seguinte, com dois rapazes do nordeste e
alguns ladrões e vagabundos, deixariam a Colônia. Essa notícia
me causou viva inquietação. O nosso grupo se desconjuntava,
segundo o hábito que me parecia regra na cadeia. Uma parte ficava ali;
outra se juntava a pessoas desconhecidas, ia formar em lugares diferentes
novos aglomerados instáveis. No Pavilhão dos Primários
qualquer boato a respeito de mudança nos tirava o apetite. Agora aqueles
homens estavam alegres em excesso: provavelmente não seriam soltos,
mas a transferência devia ter para eles quase o valor de uma libertação.

Felicitei-os, procurando sentir prazer com o afastamento incompreensível.
Achava-me na verdade cheio de inveja e despeito. Resolução estúpida.
Van der Linden e Mário Paiva, meus companheiros no porão do
Manaus, cuspiam sangue, coitados, precisavam realmente sair. Mas Zoppo, Cabezon,
Petrosky, homens fortes, podiam resistir mais alguns dias. Petrosky era um
gigante. Ao vé-lo arrumar a bagagem, vagaroso, pesado, com jeito de
boi, achava-me em completo desânimo. Impossível agüentar-me.
A agonia do malandro cafuzo importunava-me. A chegada, arrastava-me a custo;
olhando-me a cara, o tenente Bicicleta me dispensara do trabalho O meu fim
estava próximo, com certeza. E abandonavam-me naquele inferno.

Passei o dia remoendo idéias lúgubres. Iam enterrar-me ali.
Um pacote leve, alguns ossos envoltos nas duas bandas de lençol tintas
de vômitos sangrentos. Embrulho imundo, anônimo, em cima de uma
tábua. Enfim não pretendiam corrigir-nos: queriam apenas matar-nos,
dissera o guarda vesgo na primeira noite, procurando esconder o braço
pequeno, atrofiado. – “Quem tem protetor fica lá fora. Os que
chegam aqui vêm morrer. Todos iguais.” Sem dúvida. O malandro
cafuzo, Domício Fernandes, revolucionário de Natal, assassinados,
iguais, sem dúvida. Todos iguais. Ia acabar-me assim. Natural. Se pudesse
entrar na fila, sentar-me no refeitório ignóbil, ingerir pedaços
da bóia infame, talvez couse guisse estender um pouco a vida hesitante.
Impossível. Cubano voltaria a agarrar-se comigo, em luta física,
para obrigar-me a comer. Os bons propósitos dele se perderiam.

Esses pensamentos desagradáveis foram interrompidos à tarde.
Chamaram-me à grade, mandaram que me apresentasse ao diretor. Que diabo
seria? Essa gente nunca me falara. Vesti a roupa de casimira por cima do pijama
e, sem gravata, julguei-me decente para falar à autoridade. Abriu-se
a porta, saí em companhia da força, atravessei o pátio,
fui levado à casa onde me haviam espoliado antes de me rasparem a cabeça.

Entrei numa saleta, vi sentado a uma banca um homem de rosto fino, duro,
silhueta recortada em lâmina de faca. Logo reconheci o médico,
o diretor suplente que viajara conosco na lancha, entre senhoras acomodadas
em cadeiras de vime. Avancei, detive-me a pequena distância da mesa.
O sujeito de fisionomia cortante, em silêncio, estendeu-me um papel.
Li. Era um telegrama chamando-me com urgência ao Rio.

– Está bem. Quando viajo? – Amanhã, com os outros. – Está
bem.

Ia retirar-me, atordoado: não esperava tal coisa. Porque não
me haviam juntado aos outros? Decisão de última hora, certamente.
Dirigi-me à porta, uma lembrança deteve-me: recuei, murmurei
à toa, sem escolher palavras: – Ó doutor, quer fazer-me o obséquio
de mandar procurar uma carteira que me furtaram aí na secretaria? O
sujeito olhou-me severo e respondeu firme: – Aqui não se furta.

– Santo Deus! tornei. Aqui não se faz outra coisa. Todos nós
somos ladrões. Porque é que estamos na Colônia Correcional?
Porque somos ladrões, naturalmente. Pelo menos é esta a opinião
do governo. O senhor ignora que lá dentro usamos os casacos pelo avesso,
para os nossos amigos não nos meterem as mãos nos bolsos? Larguei
isso com um sorrisinho mau, impertinente, repisando frases. O objeto perdido
não me faria grande falta, nem uma vez pensara em reavê-lo. Mas,
feita a reclamação, pegava-me a ela, por ver que estava causando
aborrecimento ao funcionário antipático. Insisti, ele mandou
chamar o rapaz da secretaria.

– É isto, expliquei. Uma carteira que os senhores me furtaram no
dia da chegada. Estão aqui o porta-níqueis e o cinto, com monogramas.
Há na carteira um monograma igual. – O senhor tem recibo? perguntou
o sem-vergonha.

– Não, homem. Você já viu ladrão dar recibo do
que furta? – Ah! Não fui eu.

– Então foi um colega seu. Vocês todos se entendem. O sujeito
negava a pés juntos. Insisti na reclamação por teimosia,
só para chatear o médico. Certamente não me iriam atender:
limitava-me a acusar sem provas, e era impossível identificar o culpado
na multidão confusa. No caso dele, meter-me-ia nas encolhas, evidentemente;
qualquer indivíduo sensato faria o mesmo. Não me passava a idéia
de que ele fosse denunciar-me. E continuava a segurar-me a um direito vago,
indemonstrável, enquanto a frase do guarda zarolho me feria a lembrança:
– “Aqui não há direito.” O homem de cara metálica
esgotava a paciência, com certeza; necessário decidir-me a largar
o caso enfadonho, que nenhuma vantagem me podia trazer. Depois de viver naquela
miséria, sem alimentos, sem banho, encurralado como bicho, sugado por
mosquitos e piolhos, resguardando-me com trapos sujos de hemoptises, ocupar-me
assim de um prejuízo insignificante era absurdo. Ao entrar na Casa
de Detenção, agarrara-me a um frasco de iodo quase vazio que
me queriam tomar, defendera-o com vigor, mostrando uma unha já cicatrizada;
conseguira salvá-lo e jogara-o no lixo, pois não me servia para
nada. Qual seria o motivo dessa obstinação, agora repetida?
Julgo que o meu intuito, embora indeciso, era reaver uma personalidade que
se diluíra em meio abeto. Exigindo o frasco inútil, esforçava-me
por eliminar do espírito vestígios do horrível porão,
onde supus enlouquecer. As esteiras imundas, o refeitório ignóbil,
pessoas transformadas em animais selvagens, morrendo à toa, justificavam
segunda impertinência. Não se tratava só de molestar uma
figura desagradável. Junto à mesa, olhando o telegrama, aparecia-me
a avidez de reentrar enfim na humanidade. Lembro-me de, naquele instante,
me haver considerado trapaceiro e mesquinho. Prevalecia-me da situação
para dizer palavras insensatas na véspera, e isto de algum modo significava
um procedimento covarde. Senti que aquela gente – soldados e guardas ébrios,
insensíveis, obtusos – já não me causaria mal: o telegrama
tinha pouco mais ou menos o valor de uma carta de alforria. Havia nessa reflexão
força bastante para fechar-me a boca. Não me calei. E o moço
da secretaria, negando sempre, começou a perturbar-se. De repente saiu.
Dispunha-me a sair também, avizinhava-me da porta, quando ele entrou
de novo ,e me estendeu a carteira: – É esta? Recebi-a, tirei do bolso
o porta-níqueis, desafivelei o cinto, fui colocar tudo sobre a mesa,
conferi os monogramas: – Está aí, doutor. O ladrão veio
trazê-la. E o doutor a dizer que aqui não se furta. Engraçado.

Recolhi os três objetos, rindo alto. Mordia os beiços para
reprimir a manifestação ruidosa, e não me continha: –
Aqui não se furta. Adeus, doutor. Muito obrigado. O médico levantou-se,
acompanhou-me até a cancela do curral. Pela primeira vez achava-me
vigiado por um sujeito de importância, mas isto de nenhum modo atenuou
as humilhações anteriores. Naquele momento, com a viagem fixa
para o dia seguinte, inclinava-me a dispensar a cortesia inopinada. O homem
tencionava provavelmente, julguei, abrandar-me o conceito motivado pela cena
desairosa à administração. Ao sair, espantava-me de ele
não haver dito uma palavra de censura. E mais me surpreendia o desazado
comportamento do velhaco: repelira a acusação frágil,
depois se embrulhara, perdera os estribos e condenara-se estupidamente. Isso
corroborava o meu juízo a respeito dos ladrões: gente vaidosa
e potoqueira. Mas aquele na verdade era inferior aos outros. Descuidista,
imaginei.

No pátio branco, as árvores enfileiradas, marciais, despojavam-se
das folhas amarelas, que voavam lentas na aragem branda. Havia no céu
um desperdício de tintas. O negrume ferruginoso dos montes próximos
ganhava tons dourados. E a distância, verdes e finas, as piteiras imergiam
num banho luminoso. Seriam talvez seis horas.

– Que beleza, doutor! Que maravilha! Chegávamos à cancela.
E experimentei de chofre a necessidade imperiosa de expandir-me numa clara
ameaça. A desarrazoada tentação era tão forte
que naquele instante não me ocorreu nenhuma idéia de perigo.

– Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia
a hospitalidade que os senhores me deram.

– Pagar como? exclamou a personagem.

– Contando lá fora o que existe na ilha Grande. – Contando? – Sim,
doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel. O diretor suplente recuou, esbugalhou
os olhos e inquiriu carrancudo: – O senhor é jornalista? – Não
senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional.
Duzentas páginas ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico.
Uma história curiosa, sem dúvida.

O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras.
Deu-me as costas e saiu resmungando: – A culpa é desses cavalos que
mandam para aqui gente que sabe escrever.

31

QUASE não precisava arranjar-me para a viagem. Despi-me, abri a valise,
procurei. algum pano limpo, sabendo perfeitamente que não iria encontrá-lo.
Camisas, cuecas, meias, lenços, os dois pijamas, talvez não
estivessem muito sujos, mas com certeza haviam sido lavados sem sabão:
tinham cor suspeita de mofo e cardina, a ignóbil aparência dos
molambos comuns na prisão.

Vesti-me. esfreguei com o lençol coberto de hemoptises os sapatos
secos e empoeirados, calcei-me, amarrei a gravata, que se enrolava como corda.
Impossível disfarçar as manchas e vincos da roupa externa. Arranhava-me
os dedos a aspereza da barba, nunca raspada naquele infame lugar.

Cubano ordenou a formatura, e pela última vez fui alinhar-me, observando
atento a bagagem deixada sobre a cama, junto ao chapéu de palha. Desnecessária
cautela: os indivíduos capazes de furtá-la achavam-se nas filas,
de braços cruzados. Tinha-me, porém, habituado à vigia
e maquinalmente procurava esses objetos. Os guardas fizeram a contagem, dispersamos,
as esteiras se desenrolaram chiando na areia. Circulei entre elas, avizinhando-me
das pessoas conhecidas, a despedir-me. Entretive-me nisso, apesar de faltarem
muitas horas para a saída. Ao retirar-me, estariam dormindo. O excelente
Macedo abriu generoso uma lata de goiabada; aceitei um grande pedaço,
comi-o, reprimi com esforço o desejo de pedir mais. Voltava de repente
a fome, fome de açúcar. Vi um dos garotos estigmatizados por
Nazir, um monstro recolhido ao manicômio, à Casa de Correção,
não me lembro. Já me aparecera um desses infelizes. O demente
violara-os e deixara-lhes no corpo o ferrete indelével: nunca mais
as vítimas se livrariam do horrível domínio, seriam durante
a vida como reses marcadas a fogo por um vaqueiro.

– Levanta a manga.

A criatura miserável obedeceu, languenta e passiva: com certeza era
incapaz da mínima resistência. Lá estava no antebraço
descarnado a ignominiosa tatuagem: o nome de Nazir debaixo de um coração
flamante. Fiquei um momento a espiar as letras azuis mal desenhadas na pele
morena. – Que significa isso? – Amor de mãe, sussurrou uma vozinha
débil, inexpressiva, cantilena sem dúvida repetida.

Era a segunda vez que me diziam aquilo. Examinei a carinha murcha, os olhos
baços, o peito frágil. Pálido e sem músculos.
Uma criança, parecia não ter mais de quinze anos.

– Como é que você imagina que Nazir seja sua mãe? O
aborto não respondeu. Baixou a manga e afastou-se. Concluí as
despedidas, voltei à cama.

Um rapaz alto e magro chegou-se a mim, segredou-me um recado para Ivan Ribeiro.
Não o compreendi e quis eximir-me dizendo ser improvável avistar-me
com o tenente, no Pavilhão dos Primários. O outro insistiu,
e, embora tentasse decorar-lhe as palavras, não consegui entendê-lo.
Para vencer a dificuldade, abri a valise, rasguei uma folha de papel, escrevi
a lápis duas ou três linhas numa tira de cinco centímetros,
enrolei-a, meti-a no bolso, misturada aos cigarros. Estava em segurança,
confundia-se com eles.

O moço retirou-se. O que não estava em segurança eram
as notas guardadas entre meias e lenços, doidice pretender levá-las.
Novo trabalho perdido. Peguei-as, contei-as: umas quarenta páginas
inúteis. Rebentei o cordão que prendia a esteira ao forro da
cama, abri um esconderijo, meti-as ali. Quando as achassem, haveria um fuzuê
dos diabos. Gaúcho e Cubano fizeram-me a derradeira visita, conversaram
alguns minutos. Abracei-os ao separar-nos, afirmei que sentiria muito prazer
se nos encontrássemos na rua. Parecia-me entretanto difícil
rever-nos, e isto me afligia. Nascimento, amável e fanhoso, veio trazer-me
a penosa oferta já exposta no dia do nosso encontro inicial: – O companheiro
necessita alguma coisa? Não, decerto. Em geral não me agradava
‘receber, e no imundo barracão um fósforo podia adquirir valor
inconcebível. Ainda me pesava na consciência a fatia de goiabada
que me tentara pouco antes. Devia ter-me abstido.

– Não, obrigado. Fora daqui, em qualquer parte me agüento.

O avesso da generosidade estapafúrdia logo se manifestou num doce
ronrom: – É possível deixar alguma contribuição?
Exibi a escassa pecúnia: cédulas miúdas, níqueis
– vinte ou trinta mil-réis. O meu dinheiro, guardado no cós
do pijama, se queimara, virara fumaça, convertido em cigarros.

Vagabundos e malandros, em continua ronda, não me deixavam fumar
em paz, e a despesa crescia.

– Só? perguntou Nascimento.

– É o que tenho. Está às ordens.

– Não, recusou o homem. Você não sabe para onde vai.
Guardei aqueles restos chinfrins. Realmente não tinha nenhuma idéia
a respeito do meu destino. Desejaria regressar ao Pavilhão dos Primários,
assistir às conferências de Rodolfo Ghioldi, rir com as brincadeiras
de Apporelly, acompanhar o jogo difícil de Pompeu Accioly, campeão
de xadrez. Essas figuras, desbotadas, ressurgiam, ganhavam nitidez. Ao mesmo
tempo ia-se apagando a gente anônima e esquiva que me povoara o extenso
pesadelo e vinha, com pisadas leves, muda e invisível, arrancar-me
da mão o cigarro. Não me seria possível reconstituir
no futuro a massa informe, imponderável. Os papéis abandonados
entre os ferros da cama e a esteira iam fazer-me falta. Essa perda me inquietava,
desviava-me das opiniões roufenhas de Nascimento, as últimas
que ouvi na piolheira da Colônia.

Achei-me enfim só, diante da valise aberta. Fechei-a, meti a chave
no porta-níqueis, pesquisei o galpão, tentando fixar no espírito
aquele momento: cochichos, palestras, negócios, rumor de intestinos,
brigas, a diluir-se no zunzum de feira; criaturas erguendo-se, escorregando
furtivas nos corredores abertos entre corpos estirados; exigências ansiosas
à porta da latrina, idas e vindas, contínuo zumbir de asas no
buraco de um cortiço. Na friagem da noite, aqui e ali, divisavam-se
os capotes dos paranaenses agachados na arrumação de pacotes
e trouxas. Os óculos medrosos do velho Eusébio faiscavam perto.
– “An! Pessoa de consideração”, resmungaria lento
e asmático embrulhando os picuás. O amor à propriedade
e versículos da Bíblia ganhavam consistência na alma dele,
com certeza. Vivia sempre a falar nisso, evitava encrencas e esperava salvar-se.
Iam livrá-lo do refeitório, do carrego dos tijolos, do chão
molhado. – “An! Pessoa de consideração.” As redes
nordestinas alargavam-se, enchiam-se de miudezas, dobravam-se, convertiam-se
em malas. Distanciando-se dali, Van der Linden e Mário Paiva recuperariam
talvez a saúde.

Entre os vagabundos que nos acompanhavam, distingui o vulto sinistro de
Raimundo Campobelo. (Ou Campos Belo; nunca lhe pude saber direito o nome.)
Esse negro imenso devia ter tido prodigiosa robustez. Agora o tremendo arcabouço
pendia, os ombros curvos, as costelas salientes; e no carão chupado
os bugalhos eram duas postas de sangue. Com os pulmões a decompor-se,
arquejando na dispnéia, vivia em zanga permanente, rosnando solilóquios
roucos nos intervalos da tosse, a alma bárbara, solitária, longe
da turba. Afeiçoara-se meses atrás a um padeirinho sambista.
Um dia esse moço lhe contava uma história: – Eu vinha do trabalho…

O enorme bruto fixara nele os olhos duros, sanguinolentos. Supunha-o malandro
e admirava-se: – Tu trabaia? – Sim, trabalho. Sou padeiro.

– Fala mais comigo não, grunhira Raimundo Campobelo dando-lhe as
costas.

Daí em diante ignorara a existência do outro. Hora de silêncio.
Deitei-me, suspendi a gola, defendendo o pescoço, pus as mãos
entre as coxas. Na cama exposta, vizinha à grade, o vento me alfinetava
as orelhas. Mas um nojo desconhecido me impedia usar os molambos sujos de
hemoptises. Adormeci descoberto.

32

ESTIVE algumas horas a embalar-me em leves modorras, perturbadas muitas vezes:
o frio intenso e a preocupação da viagem davam-me sobressaltos
contínuos. Perseguia-me a idéia de que os outros iam retirar-se
e esquecer-me ali. Qualquer movimento me acordava.

Afinal a chave rangeu na fechadura da porta, vultos deslizaram sem rumor,
os capotes grossos dos paranaenses juntaram-se à entrada. Ergui-me,
peguei a valise e o chapéu, acerquei-me do grupo. Um guarda veio com
uma lista, cantou os nossos nomes. Feita a conferência, descerrou-se
a grade, saímos. Até que enfim. Parei um instante, a examinar
o cubículo estreito onde um barbeiro canhestro se desculpara ao raspar-me
a cabeça, arrancando pêlos. Cheguei ao pátio; dois polícias
me ladearam, segundo o costume; esgueirei-me na sombra vagamente quebrada
por luzes capiongas. As árvores tinham perdido a forma, a cor, o alinhamento:
escondiam-se, manchas quase invisíveis. Andei alguns metros. Até
que enfim. Deviam ser três horas; chuviscos finos batiam-me na cara.

– Alto.

Parei. Não havia razão para considerar-me livre daquilo: desabafara
antes do tempo, ao deixar a grade, a pequena barbearia. Numa elevação
de meio metro, a pessoa que me detivera surgia indistinta, à luz fraca
de uma sala miúda. – Alto.

A repetição era desnecessária, pois me achava imóvel,
entre dois soldados, à espera de ordens.

– Entre.

Subi a calçada, encaminhei-me à saleta e reconheci na figura
indecisa o tenente Bicicleta – O papel que o senhor leva aí? – Qual
é o papel? inquiri sem perturbar-me.

Num instante abarquei a situação. Era a tarefa exigida por
Nascimento, as folhas de almaço que me esforçara por emendar
a lápis retardando-me em explicações, mal-entendidos.
Um sujeito se chegara de manso e, estirando o pescoço, tentara lamber
a escrita com os olhos gulosos. Lembrei-me da pergunta azeda: – “Que
é que você quer?” O sem-vergonha, mordendo um sorrisinho
malandro, se oferecera para lavar roupa. Trabalhava barato. Espião,
como eu havia suposto. Aliás a denúncia era inútil. Sem
nenhuma cautela, ocupara-me em redigir as notas agora abandonadas entre os
ferros da cama e a esteira. Soldados e funcionários podiam tê-las
apreendido se quisessem. Desabotoei o casaco. Meteram-me as mãos nos
bolsos, apenas descobriram a carteira, o porta-níqueis, um lenço,
um pente desnecessário, pois me achava pelado, cigarros, fósforos.
Abri a valise, Bicicleta remexeu cuecas e pijamas.

— Não há papel. Os papéis que eu trouxe os senhores
me tomaram quando cheguei.

– Não se faça de ingênuo, respondeu o tenente. O senhor
entende. Com certeza não ia ser portador do que escreveu, hem? Nada
afirmei. Também era tolice negar coisa sabida.

– Sei lá! O que tenho é isso. Veja.

Recordei-me da imprudência largada na véspera ao diretor: –
“Vou fazer um livro de duzentas páginas contando o que existe
aqui. Digo tudo, sem dúvida.” – Veja, convidei tranqüilo,
revolvendo os panos sujos, encardidos, cheirando a mofo. É o que tenho.

Bicicleta não revelava interesse naquela formalidade: até
parecia indiferente. Examinou tudo, machucou algibeiras e dobras, monologou:
– São ativos, já mandaram.

– Não sei, respondi. Posso ir? Então adeus.

Tranquei a valise, agarrei-a, saí, desci a calçada, mergulhei
na treva, flanqueado pelos dois homens que tinham ficado à porta enquanto
se realizava a busca. Os chuviscos engrossavam, tornaram-se pingos fortes.
Três horas, pouco mais ou menos. Os meus guardas afastavam-se, aproximavam-se,
às vezes me deixavam só algum tempo. A vigilância afrouxava,
inútil. O desejo de abandonar a ilha fazia-me esquecer por instantes
a dormência da coxa, as picadas no pé da barriga, lançava-me
para frente. Com certeza os companheiros deviam estar longe. Esta idéia
me alarmava; perseguia-me um receio absurdo: iam chegar ao Abrão logo,
embarcar sem mim. Rumor de passos, alguns vultos na escuridão, traziam-me
sossego. Pouco a pouco a marcha penosa esmoreceu, arrastei-me com dificuldade
imensa. As gotas amiudaram-se, uma chuva furiosa caiu de chofre, enregelando-me
os desgraçados músculos, fustigando-me a cara, amolecendo as
abas do chapéu de palha. O enxurro desceu dos montes, engrossou no
caminho, cobriu-me os sapatos, chegou-me às pernas. Baixei-me, arregacei
as calças. As pancadas de água cegavam-me. Para onde me dirigia?
A tiritar e a tossir, procurei alguém que me orientasse. A escolta
se dispersara, julguei. Nisso percebi uma voz fraca, abafada pela zanga da
ventania: – O senhor não pode andar. Está doente? Passei as
mãos no rosto, esfreguei os olhos e, por um rasgão do véu
líquido, enxerguei um cavaleiro perto.

– Estou. E com este aguaceiro medonho piorei.

– Faz tempo que ficou aí parado, acrescentou a figura indistinta
apeando. Monte.

Recusei: – Obrigado. Não vou privá-lo da condução.
Muito agradecido.

– O senhor não anda, insistiu o homem generoso. Monte.

– É inútil. Não quero.

A criatura retomou a sela e, depois de um momento: – Bem. O cavalo vai servir
para nós dois. Segure-se aqui na maçaneta.

Inclinou-se de lado, firmando-se num estribo, deixou-me espaço, mas,
embora me esforçasse, as tentativas para agarrar-me foram baldas: sentia-me
exausto, os dedos hirtos e insensíveis resvalavam no couro molhado.
O sujeito amparou-me com um braço; em posição incômoda
e torcida, levou-me a reboque, agüentando parte do meu peso. Mexi-me
vagaroso no rego lamacento, diligenciei aprumar-me, reduzir o auxílio
do ótimo desconhecido. Afligia-me importuná-lo, e isto deve
ter concorrido para vigorar-me um pouco. A chuva amansou, desapareceu; alcançamos
terreno plano e a enxurrada escoou-se; findo o barulho tempestuoso, chegou-me
aos ouvidos o som de passos confusos, intermitentes, chiando na areia mole,
empapada. A luz da manhã tingiu de leve as árvores, cresceu,
revelou-me traços do indivíduo que me arrastava em silêncio.
Moreno, grave, não manifestava pressa, e era como se executasse um
exercício da rotina. Examinei-o a furto, interrompi a observação
notando em mim horríveis estragos. Apesar de ter erguido as calças
até os joelhos, não me preservara: toda a roupa se cobria de
lama vermelha. Os sapatos deformavam-se, chatos, enormes, sob camadas grossas
de barro, e uma vasa pegajosa entrara neles; senti os pés imundos,
supus distinguir na caminhada um gluglu desagradável. As meias pretas,
ligadas às canelas, sumiam-se, vermelhas. Tudo se avermelhava, era
como se eu tivesse lavado as pernas em gelatina sangrenta. Avancei alguns
metros com vergonha e nojo; um frio intenso picou-me, frio interior, provavelmente.
Difícil continuar. Parei, busquei no meu condutor uma divisa, sinal
de comando. Nenhuma. Soldado raso apenas.

– Meu amigo, esta viagem me arrasa. Não posso caminhar. Vamos bater
à porta de uma bodega, beber um copo de aguardente.

– É proibido, o senhor sabe, respondeu o homem tranqüilo. Só
se o cabo der licença.

– Mas, filho de Deus, retorqui, eu sei lá onde está esse cabo?
Ao fim de meia hora alcançamos os outros viajantes, que haviam estacionado,
à espera dos retardatários. Devíamos ser os últimos,
pois à nossa chegada a marcha continuou. Renovei o pedido, e um rapaz
de fita no braço afirmou que o sargento era quem resolvia. Dirigi-me
a essa autoridade, expus a exigência importuna, certo de não
ser atendido.

– Pois sim, concordou o homem. Quando chegarmos ao Abrão, o senhor
bebe.

– Mas é exatamente para chegarmos lá que preciso beber. Estou
morto de frio.

– Tenha paciência. Daqui a pouco, já prometi. Difícil
convencê-lo: tinha conseguido mover-me debaixo do temporal; com o sol
a avançar, dia claro, um princípio de calor a enxugar-me a veste
imunda, não me esfalfaria. Escorando-me ainda à maçaneta,
já não causava estorvo ao soldado: capenga e trêmulo,
as ferroadas na barriga a atormentar-me, lá me ia deslocando, vagaroso.
Um casebre fechado. Seria venda? Porque não batíamos? A necessidade
urgente de álcool aperreava-me.

– Tenha paciência, dizia o comandante. Espere. Outras casas; caipiras
feios, de pernas tortas; mulheres obesas, amarelas; crianças opiladas.
Enfim, cerca de nove horas, desembocamos na povoação. Atravessamos
a rua sórdida, entramos num botequim próximo ao embarcadouro.
Arriei no tamborete, arfando, a vista escura, um suor frio a correr-me no
peito. A mesa pequena, sentaram-se comigo dois paranaenses e o soldado que
me transportara. Serviram-nos. Recusei o pão e o café: – Não
quero isso. Traga um copo de aguardente. Com um sopro de mofa, o botequineiro
deu-me as costas, erguendo os ombros. Tinha graça. O sargento chamou-o,
falou baixo, e o tipo foi à prateleira, pegou uma garrafa. Cheguei-me
ao balcão: – Ouça. Para não quebrar a disciplina ponha
a aguardente numa xícara. É como se fosse café.

Voltei à mesa, recebi uma xícara enorme, cheia, bebi sôfrego.
Pedi a segunda, a terceira, a quarta. Apesar de ter o estômago vazio,
senti apenas uma ligeira turvação. Alegre, distanciei-me da
Colônia, desejei conversar e de novo me surpreendeu a esquisita sintaxe
dos paranaenses: – “Nós disseram.” Essa estranha maneira
de falar tinha-se esvaído no burburinho do galpão. Van der Linden
e Mário Paiva tossiam. A carranca medonha de Raimundo Campobelo estava
cavada; nas órbitas fundas os olhos eram manchas cor de sangue; a respiração
penosa descerrava os beiços grossos, exibindo os dentes fortes de selvagem.
Iam mais dois malandros: o idiota do Nunes, a palrar da família, cheio
de fumaças, e um mulato de cara impudente e risonha. Terminada a refeição,
engoli o resto da aguardente, fiz um sinal ao dono do botequim, abri a carteira;
o soldado moreno adiantou-se, estendeu uma cédula.

– Isso não, protestei. A despesa é minha.

– O senhor nos julga bem miseráveis, disse o rapaz melindrado.

– Está sendo injusto, meu amigo, atalhei. Eu é que seria miserável
se esquecesse um favor tão depressa. Tenho boa memória e não
sou ingrato. Mas o caso é este: eu sozinho gastei mais que os senhores
três juntos, bebi quase uma garrafa de aguardente. É razoável
eu pagar.

O moço concordou: a nuvem desfez-se e privei-me de alguns mil-réis.
Saímos, passados minutos chegamos ao porto, vimos uma lancha atracada.
Subimos ao tablado flutuante e embarcamos.

33

IGNORO se nos retardamos no botequim à espera da barca ou se ela chegou
antes de nós. Também não sei se conduzia presos para
a Colônia e se a nossa escolta foi substituída. As quatro xícaras
de aguardente me impediam talvez observar direito. Lembro-me de haver caminhado
nas pranchas do embarcadouro, saltado na lancha, descido ao porão.
Acomodei-me entre as figuras que se animavam na sombra, riam, entregues a
uma parolagem otimista, cambiando notícias absurdas a respeito do nosso
destino. Os paranaenses regressariam logo a Curitiba. Van der Linden e Mário
Paiva seriam enviados ao nordeste. Só Raimundo Campobelo se isolava
a um canto, arfando, a sacudir-se, na dispnéia e na tosse. O arcabouço
enorme dobrava-se; na sufocação, os dedos magros desabotoavam
a camisa, exibiam as costelas, o esterno. Chegando-nos a ele, poderíamos
contar-lhe os ossos, mas a repulsiva criatura evitava aproximação.
A fala de Nunes se esganiçava numa pergunta imbecil: iria achar os
parentes na estação quando chegássemos ao Rio? Com certeza,
se lhes dessem aviso na polícia. Gente graúda, poderosa, contratara
sem dúvida os melhores advogados para tirá-lo da prisão.
Iam soltá-lo, em poucos dias se desmanchava o engano. 0 mulato de cara
impudente e risonha puxou conversa comigo, narrou coisas da sua vida. Não
lhe dei ouvidos nesse encontro inicial, apenas lhe guardei o nome: José.
Sentado no chão, ocupava-me em reduzir os estragos causados pela chuva:
esfregava as manchas da roupa, as meias, as pernas sujas de lama a secar;
um pó vermelho me tingia as mãos, espalhava-se nas tábuas.
No atropelo da. viagem nem me ocorrera fumar. Vasculhei os bolsos, joguei
fora uma pasta negra, úmida, nojenta, os cigarros decompostos no aguaceiro.
Encontrei na valise dois ou três maços e algumas caixas de fósforos,
guardei tudo nos bolsos.

Fingia interessar-me pela história de José, mas, embora me
esforçasse, não a compreendia: a atenção se fixava
no chapéu de palha deformado e lasso, as abas a cobrir-me os olhos
e as orelhas. Examinei aborrecido o traste ridículo; não tornaria
a pô-lo na cabeça. Quis desfazer-me dele. ergui-me, segurei a
valise, aproximei-me da escada, subi vários degraus. O calor principiava
a incomodar-me. Avancei, atingi o fim da escada, enxerguei lá embaixo
pessoas envoltas em neblina. Evaporação, julguei. Conseqüência
provável do álcool. Foi também efeito dele, suponho,
a inconveniência dos meus atos depois daquele momento. Pisei na coberta,
avizinhei-me da borda, atirei na água o chapéu acanalhado.

Voltei, permaneci junto ao buraco sombrio do porão, sem me decidir
a mergulhar nele. Arriscava-me a ser repreendido, coagido a enfurnar-me ali,
mas não pensei nisto. Uma segurança inexplicável surgia,
detinha-me. Não me forçariam a descer. As dores na barriga e
o torpor na coxa tinham desaparecido. Na posição desagradável,
em pé, olhando grupos de soldados, ondas revoltas, a praia distante,
devo terme arrimado a qualquer coisa para resistir aos balanços fortes
da lancha: encosto de cadeira, uma balaustrada, coluna, amparo assim. Realmente
me sentia firme na oscilação. Hoje presumo que a aguardente
suprimiu a Colônia, Alfeu e Aguiar, fomes, disenterias, quatro ou seis
chuveiros para novecentos homens. Quantos chuveiros? Nem sei. Suponho que
me lavei uma vez. Sentia-me cheio de porcarias, a desejar uma torneira aberta.
Ia banhar-me, enfim banhar-me, e isto me dava consistência. Depois do
banho, considerar-me-ia um sujeito normal. Escorado no futuro, conservei-me
ali, estendendo-me por terra e mar, a bagagem leve debaixo do braço.

As fisionomias dos soldados estavam baças, confusas. Inclinava-me
a falar com essa gente, sondar o interior dela.

Procurei o rapaz moreno que me havia conduzido, o cabo, o sargento, figuras
reconhecíveis. Não os distingui: haviam tornado à Colônia,
provavelmente. A pequena distância, divisei um homem atarracado, sardento
e ruivo. O resto se perdia numa grande névoa. Seria embriaguez? Não
era, suponho. Desordem visual depois de semanas de jejum. As idéias
estavam lúcidas, as pernas se agüentavam bem nas tábuas
que se inclinavam para um lado, para outro. A anormalidade se revelava na
ausência de receio, no desejo de conversar com o sujeito ruivo, que
me inspirava estranha confiança. Dirigi-me a ele e, sem escolher palavras,
encetei uma arenga bastante venenosa contra o governo e o capital. Sou incapaz
de revelar-me em público; não chego a expor meia dúzia
de períodos a meia dúzia de ouvintes; em tais apertos foge-me
a expressão e deixo de pensar. Não tencionei, pois, fazer discurso:
o meu intuito foi explicar-me a um sujeito inclinado na aparência a
ouvir as minhas opiniões relativas à ordem. Não era difícil.
Ataquei diversas instituições favoráveis aos ricos: o
congresso, a justiça, a imprensa, o exército, a Colônia
Correcional. Passados minutos, porém, notei que as figuras a princípio
nevoentas estavam próximas, nítidas, tinham ganho fisionomias
e escutavam a diatribe. Achava-me assim, a declamar horrores num comício
improvisado. Embora corresse perigo e afirmasse isto no interior, não
moderei a linguagem. Iria circular a notícia daquilo e uma semana depois
me devolveriam à bondade áspera de Cubano e às aventuras
esquisitas de Gaúcho. Abarquei a situação com perfeita
lucidez. Não me embriagara, disse a mim mesmo. Nenhum vestígio
da leve tontura; o juízo e os sentidos funcionavam bem. As frases saíam
arrumadas em sintaxe razoável e o exame do auditório se realizava,
claro. Admirei-me de não perceber em redor sinal de hostilidade; aqueles
indivíduos se mostravam curiosos, enchiam-se com certeza de espanto,
e ninguém se lembrou de reduzir-me ao silêncio, como esperei,
fazer-me regressar ao porão. Em geral não aplaudiam nem desaprovavam:
tinham jeito esquivo, desentendido. Alguns manifestavam franco apoio. Surgiam
apartes em voz baixa. O homem ruivo e sardento, com um sorriso, muitas vezes
me interrompeu o aranzel: – Exatamente o que eu digo. Isso mesmo. Estão
ouvindo? Terminei o desconchavo na vizinhança de Mangaratiba. O povoado
surgiu e cresceu. Fui reunir-me aos companheiros, que saíam do porão
como ratos em tocas e logo se mudaram em carneiros. Os acontecimentos da manhã
avivaram-me o conselho do sargento gordo ao saltarmos no Abrão: – “Tem
dinheiro? Esconda. Mostre cinco mil-réis e guarde o resto. Vai precisar.”
Temerário, arriscara-me a confessar onde se ocultavam as notas. – “Irão
descobri-Ias?” – “Não. A busca é formalidade.”
Descobrira-me à toa a um desconhecido, e agora se renovava a imprudência.

Estávamos no porto. Em linha, marchamos para terra. Vi-me pouco depois
num carro de segunda classe, entre dois tipos mal-encarados. Uma pergunta
me enleava: que me induzira a confiar no sargento gordo e no soldado ruivo,
presumíveis inimigos? Talvez possuíssemos a faculdade misteriosa
de penetrar de golpe o íntimo das pessoas, encontrar lá sentimentos
indefinidos na superfície. Ou não seriam indefinidos. O hábito
de pesquisar, necessário nalgumas profissões, tornava-se instintivo
e dele se originavam as simpatias e antipatias rápidas. Mas ali não
havia pesquisa, no tempo minguado, era como se as almas saltassem para fora
dos corpos. Um salto, provavelmente. Qualquer coisa as fizera saltar. Observação
repentina e involuntária, supus. Não me abalançaria a
interrogar os dois vizinhos acomodados no banco estreito, os fuzis entre as
pernas. Enxergara-os de relance e desviava-me deles, voltado para a janela,
agüentando os solavancos do trem. Não me dariam nenhuma indicação,
convencia-me sem precisar vê-los. Nessa altura reconheci-me incongruente.
Arrojara-me a lançar conceitos rigorosos, denegrir a autoridade na
presença de funcionários dela e decerto era impossível
decifrar de supetão aquelas figuras nebulosas. Reconsiderei. Não
tentara adivinhá-las. Nem me importava convencê-las. O meu intuito,
no começo pelo menos, fora entender-me com o ruivo sardento, e a cavaqueira
agreste apenas continuara o monólogo endereçado a ele. Percebendo
outros ouvintes, não me calara, e isto significava bazófia,
medo, julguei, de recuar, parecer covarde. O temor às vezes nos leva
a temeridades, empresta às nossas ações aparência
falsa de coragem. De qualquer modo, refleti, a cadeia nos exibia a fraqueza
da reação. Lá fora, roncavam forte, como se pisassem
terreno firme. Paradas, ameaças, afirmações categóricas,
censura, deputados e senadores feitos bonecos, os jornais prostituídos
a semear calúnias. Firmeza, um edifício inabalável desafiando
séculos. Propaganda somente: havia nele caruncho e ferrugem, água
a infiltrar-se nos alicerces. Vivíamos de fato, nos cubículos
pequenos ou no grande alojamento, cercados de gente duvidosa, e as suspeitas
nos induziam a cometer injustiças. Um desconhecido cheio de reservas
soprava-nos a advertência gasta: – “Cuidado com Fulano: é
espião da polícia.” Embora quiséssemos afastar a
denúncia infundada, ela permanecia, ocasionando esta pergunta desagradável:
– “Qual dos dois será o espião? Ambos. Ou nenhum.”
Se não fossem aqueles, seriam outros. O capitão de nariz comprido
semeara desavenças no Pavilhão dos Primários e sumira-se.
O busto de Miranda surgia-me na lembrança, exposto com vaidade e pimponice,
a exibir insignificantes escalavraduras. Pensei na tatuagem obscena vista
na coxa de Gaúcho – “É o meu cartão de visita. Quando
me vêem nu, sabem que sou lunfa e deixam-me em paz.” No peito de
Miranda havia também uma espécie de cartão de visita.
Percebiam marcas de sevícias nas escoriações chinfrins
e tomavam-no como revolucionário. Obtida essa vantagem fácil,
a criatura leviana expandia-se, resvalava na mentira, dizia tolices, inconveniências,
diante dos guardas, e nos interrogatórios falava em demasia, largando
informações a respeito de pessoas não mencionadas no
inquérito. Sena apenas desatino? A carência de provas nos impedia
escorregar em juízos temerários quando nos referíamos
a semelhantes indivíduos. Ficávamos nas reticências, e
isto nos aborrecia como nuvem de insetos importunos. Alguns desses tipos ambíguos
tinham grande influência lá dentro. Porquê? De passagem,
alguém nos cochichava uma desgraçada explicação.
– “Já fizeram muitas denúncias e é bom tratá-los
bem: podem denunciar o resto.” Repelíamos a frase venenosa; sem
querer, íamos desenterrá-la mais tarde, associá-la a
um gesto, um sorriso, uma pergunta largada com modos inofensivos. Não
conseguíamos identificar os traidores. Sabíamos, porém,
que eles estavam conosco, aperuando o jogo de xadrez, ouvindo as conversas,
inimigos ferozes do burguês, intransigentes, radicais, sempre dispostos
a oferecer-nos avisos cautelosos: -“Abra o olho com Fulano: é
um espião.” O conselho se desprestigiara enfim, mas continuava
a -circular, papagueado por fanáticos de cérebro escasso, ingênuos
demais. Os autores dessas desavenças metiam-se nas encolhas, sem dúvida.

Impossível distingui-los. Em compensação havia na polícia
agentes infiéis, e ela não tinha meio de conhecê-los.
Desempenhavam-se, mecânicos, pontuais, dóceis ao regulamento.
Quando menos esperávamos, em hora de aperto, sugeriam-nos conduta irregular
Ou, se estávamos em maré de conversa, recebiam sem reserva os
nossos propósitos subversivos. Naquele dia arriscara-me a algumas infrações
apoiando-me na conivência imprevista dos soldados O trem rolava no meio
de laranjais; por instantes as árvores enfezadas me prendiam a atenção.
Porque seriam tão miúdas? Conseqüência do enxerto,
imaginei. Surgiam pela primeira vez; na outra viagem, apesar de numerosas,
tinham-se conservado inteiramente invisíveis. – “Trabalho de cupim.”
Estas palavras andavam-me no pensamento, desviavam as laranjeiras, que fugiam
numa corrida louca. Trabalho de cupim, com certeza. Na miséria do galpão
enorme, tencionavam matar-nos, diziam isto com sinceridade crua. Mas os instrumentos
necessários à infeliz tarefa bandeavam-se, queriam deixar-nos
viver. Um cochicho os revelava. Bem. Impossível transformar em assassinos
pessoas normais, que não tinham razão para odiar-nos. Decerto
havia criaturas insensíveis e regimentais, surdas a súplicas,
gemidos, estertores. Os dois sujeitos próximos, armados e silenciosos,
tinham focinhos duros, agressivos; uma vista de olhos indicava não
serem capazes de prestar-me nenhum favor. Isso não me admirava. Espantoso
era achar naquela gente escolhida para torturar-nos homens dispostos, em noite
de temporal, a descer de um cavalo, oferecer-nos a sela cômoda, viajar
num rego lamacento. Em carro igual àquele, outro soldado benévolo
me dera notícias da Colônia e informara-se a respeito da minha
situação Era-me impossível entendê-lo, o moço
renovara uma pergunta: – “Preso político?” E acrescentara:
– “Porque ladrão não é.” Pasmava-me aquela
certeza em quem me via pela primeira vez, rapidamente, à luz escassa
da madrugada. No escuro da noite chuvosa, o cavaleiro não me distinguiria
de Raimundo Campobelo, que também se arrastava por aqueles ermos, a
ofegar e a tossir. Nenhum meio de saber se eu era ladrão. O comportamento
generoso alcançava todos nós. Esses pensamentos encurtavam a
viagem.

Chegamos à estação final. Desenrosquei-me vagaroso,
aos últimos sacolejos do trem, ergui-me, deixei o vagão, pisei
na plataforma, lá fui coxeando entre os dois fuzis. As dores eram fortes,
até ali não me supusera tão combalido; mexia-me zonzo,
sem ver as coisas, as pessoas, o lugar. Os companheiros se distanciavam. Achei-me
na rua, levaram-me a uma calçada, parei: difícil subir ao meio-fio.
Um dos soldados mostrava impaciência: – Caminhe.

– Um instante.

Procurei forças, dei um passo custoso, sacudi-me com esforço
desesperado, atravessei um portão de ferro. Atarantado e bambo, a arfar
e a suar, reconheci as cotias do Campo de Santana. Escapou-me a vegetação,
mas as grades e os bichinhos saltitantes revelaram-me a praça enorme.
Lembrei-me de haver entrado ali vinte anos antes, em companhia de uma sirigaita.

– Mas porque e que o senhor não anda? tornou o soldado impaciente.

Diligenciei contentá-lo, avançar um pouco a marcha capenga:
– É inútil. Não vê que não posso andar mais
depressa? Afastei a exigência refugiando-me no passado. Vinte anos.
Corrigi: vinte e um, vinte e um e meses. Havia umas furnas. A mocinha me conduzira
a elas e estivera algum tempo a cantar. Desassossegavam-me o dinheiro minguado,
o trabalho de foca na revisão de um jornal, e o canto não me
impressionara. Onde estariam as furnas? Não as enxerguei, talvez as
tivessem desmanchado. Pensei no romance entregue meses antes ao editor. A
menina sapeca figurava nesse livro como neta de uma dona de pensão.
Deixamos a praça, descemos á rua. O condutor se aperreava, queria
lançar-me para a frente, fazia o gesto de ferir com aguilhão
uma rês cansada.

– Ainda estamos longe? informei-me.

Não me deram resposta, e avancei no desânimo, parando a cada
instante. Os companheiros tinham-se sumido. Aonde me levariam? Nenhum esclarecimento,
e não me ocorreu orientar-me olhando as placas nas esquinas. Afinal
estacamos. Retesei a desgraçada carne, galguei três pequenos
degraus.

34

OS OUTROS refugos da Colônia estavam reunidos e submetiam-se a qualquer
vaga exigência burocrática. Cheguei-me a eles e, perturbado ainda,
não reparei no lugar onde nos achávamos. Ignoro se me fizeram
perguntas. As minhas primeiras recordações posteriores à
chegada referem-se a um longo corredor sombrio. Meteram-nos nele, abriram
no fim uma grade, mergulhamos numa peça de muros invisíveis,
tamanho incerto. Ouvi ranger a chave na fechadura e arrisquei alguns passos,
meio cego. Devia ser quase noite, embora na rua a confusão e as dores
não me houvessem permitido calcular, as horas. Derreei-me a um canto,
estendi com alívio a perna doída, encostei-me à parede.
Abafava e sentia calor.

– Onde estamos? – Na Polícia Central, responderam-me.

A sombra se atenuava, era-me possível distinguir as figuras abatidas
sobre capotes e redes. Tentei descobrir a pessoa que me dera a informação,
reconheci perto o vagabundo José, o mulato de cara viciosa. Mostrava
simpatizar comigo, avizinhava-se, e a resposta lhe servia para reatar a conversa
interrompida na lancha. Era vadio e ladrão; no começo da vida
a repulsa da mãe e as sovas do padrasto haviam-lhe fechado os caminhos
direitos. Fugia de casa, voltava morto de fome, agüentava surras, tornava
a fugir. Nem escola nem trabalho. Com o intuito de prolongar as ausências,
obtivera ganhos miúdos pondo em prática as habilidades fáceis
de pivete e descuidista. Não sei como José iniciou a história,
e causa-me espanto haver-me escolhido para confidente. As palavras ditas no
porão da lancha tinham-se esvaído por inteiro; reproduziam-se
agora, e esforçava-me por entendê-las, exigindo repetições.

– Bem. Continue.

Éramos cerca de vinte pessoas, algumas ruidosas e alegres, funcionando
bem, as idéias ligadas a parentes razoáveis. O idiota do Nunes
esganiçava-se: – Será que eles sabem a minha chegada? Hem? Será
que sabem? Buscava em roda interesse para o caso importante: – Se souberem,
vão trazer-me hoje dinheiro e comida. Não se esquecem, os senhores
hão de ver.

Fechavam-lhe ouvidos, o imbecil continuava a monologar: – Trazem, com certeza.

Porque José, malandro também, não se entendia com ele?
Os paranaenses, graves, metódicos, arrumavam-se para descansar da melhor
maneira, examinavam lentos a sala acanhada, permutando cochichos. Lembrei-me
de um caboclo da minha terra, impelido ao sul finda a ilusão da borracha.
De regresso, com chapéu de abas largas, roupa de casimira e relógio,
esse tipo me dissera: – “Vossa mercê não imagina. Em São
Paulo há um bando de línguas. Língua Bahia, língua
Mato Grosso, língua Paraná. São diferentes da nossa,
mas o senhor entende. O que ninguém entende é a língua
Japão: essa é uma língua filha da puta.” Na verdade
a do Paraná, como afirmava o tabaréu, compreendia-se bem; contudo
o diabo do pronome, arrastado pelo velho Eusébio, chocava-me. A narrativa
de José não apresentava essas cachoeiras: fluía simples
e horizontal.

Veio luz, os homens avultaram, a cela se reduziu e nos apertou, no chão
molhado. A frente, à esquerda, a latrina suja e exposta. O vagabundo
falava manso e baixo, como num confessionário, e a precisão
de responsabilizar a família, justificar-se a um desconhecido, trazia-me
ao espírito uma dúvida. Haveria alguma semelhança entre
nós? Na verdade a minha infância não devia ter sido muito
melhor que a dele. Meu pai fora um violento padrasto, minha mãe parecia
odiar-me, e a lembrança deles me instigava a fazer um livro a respeito
da bárbara educação nordestina. Conservaríamos
no exterior sinais de penas excessivas ou injustas, asperezas, dores inúteis,
indícios reveláveis a uma criatura que se houvesse visto em
situação igual? Essa idéia esquisita, nociva à
minha gente, induzia-me a desculpar o miserável. Não era isso.
Faltava-me o direito de absolver alguém. Restringia-me à comparação.
Débil, submisso à regra, à censura e ao castigo, acomodara-me
a profissões consideradas honestas. Sem essas fracas virtudes, livre
de alfabeto, nascido noutra classe, talvez me houvesse rebelado como José.
Não me conformava com tal espécie de rebeldia. Contudo, apesar
de nos dedicarmos a ofícios inconciliáveis, a autoridade não
nos diferençava.

– Está bem. Continue.

O homem rude flagelava o garoto e criava pássaros. Um dia, certa
de conseguir realizar furtos de pouca monta, a vítima lhe suprimira
esses dois passatempos: abrira todas as gaiolas e ausentara-se de vez. Ao
cabo de vários anos, narrando a proeza, o mulato sorria enlevado. O
verdugo achara com certeza outros canários, mas já não
tinha uma criança para açoitar.

Mulheres se esganiçavam no cárcere vizinho. Uma se enfurecia;
depois, alegre, divagava em parolagem confusa, largava fragmentos de obscenidades;
com certeza estava bêbeda. Vozes masculinas, no corredor, tentavam sossegá-la
com pilhérias amáveis. Suponho que nos trouxeram comida; não
conservo disto nenhuma lembrança. A conversa de José me entretinha,
embora com freqüência me desviasse dela. Escaparam as minúcias
de uma viagem difícil de São Paulo ao Rio, a pé: fadigas,
largos rodeios nas cercanias dos lugares povoados, o roubo de um porco.

Alguém me chamou de fora. Levantei-me; além dos varões
de ferro um guarda me repetiu o nome, espalhando os olhos indecisos, pelo
sórdido magote: – Fulano, toma.

Abriu a porta, arrastou para o meio da cela um estrado baixo, saiu trancando-nos
de novo.

– Obrigado, murmurei com assombro, cheio de vergonha.

Era a segunda vez que me tuteavam. Na Colônia, o anspeçada
Aguiar me ordenara ríspido: – “Cruza os braços, chefe.”
Mordendo os beiços, com surpresa e raiva impotente, resignara-me a
obedecer: cruzara os braços diante da torpe insignificância.
Agora se renovava o tratamento injurioso. Apenas, em vez de repreender-me,
queriam prestar-me obséquio; no vexame e no desespero, via-me coagido
a agradecer.

Voltei a sentar-me, com a impressão de ter levado um murro forte
na cabeça. Porque diabo, entre quinze pessoas, fora o sujeito escolher-me
para a indigna benevolência? A horrível distinção
magoava-me em excesso, era talvez mais dolorosa que a familiaridade revoltante.
Nada me faria aceitar o miserável presente; o móvel ficaria
ali no abandono, a pejar a saleta. Olhei-o, rancoroso. Um traste ignóbil,
sujo; tinha um palmo de altura, pouco mais ou menos. Procurei sinais de malícia
nos rostos; alguém me considerava possivelmente um bicho quieto em
demasia, submisso à ordem, pronto a receber favores daquela espécie.
Examinava-me por dentro, ansioso, via próximo a figura arriada e mofina
do velho Eusébio, estabelecia uma infeliz comparação
e achava-me vítima de grande injustiça. Era razoável
terem premiado as tendências pacíficas do velho Eusébio,
amigo da religião e da propriedade. Escolhiam-me, e isto me deixava
perplexo. Inútil buscar motivos.

Um grunhido rouco aliviou-me a apoquentação: Raimundo Campobelo
resmungava a pequena distância. Parecia zangado e pregava em mim os
bugalhos sangrentos. Esforcei-me por distinguir-lhe as palavras, mas o negro
para bem dizer não tinha voz articulada. Grunhiu alguns minutos, em
seguida entrou a bodejar um, protesto, sem se dirigir a ninguém. A
firmeza dos olhos maus revelou-me que ele estava furioso comigo. Tentei decifrar
a linguagem dura e revolta, conseguir adivinhar pedaços dela: – Peste!
A gente aqui vomitando os pulmões! Peste! Outros sons perdiam-se no
embrulho espumoso. Contudo as poucas sílabas inteligíveis foram
bastantes para esclarecer a zanga despropositada: – A gente aqui vomitando
os pulmões! Peste! E dão cama a uma peste que não está
doente.

Esperei vê-lo acalmar-sé. Enfim o miserável troço
ia ser útil e já não havia razão para acabrunhar-me.
Surgia uma escapatória, respirei tranqüilo. Não achando
resistência, a cólera do vagabundo subiu. Espantava-me ver alguém
excitar-se daquele modo. Um longo braço estirou-se para mim, da algaravia
atrapalhada veio a ameaça clara: – Peste! Fingi desconhecer a ofensa;
provavelmente o infeliz bruto ia sossegar. Deu-se o contrário. Mexeu-se
rastejando, chegou-se a mim, disposto a briga: – Peste! Ergui-me impaciente:
– Meu amigo, vamos deixar de valentia. Você hoje é incapaz de
fazer medo a uma criança. Está arrasado, não agüenta
um empurrão. Para que barulho? Pensa que vou dormir nessa porcaria?
Tome conta dela. Há mais dois companheiros com os pulmões estragados
Arrumem-se vocês três, que necessitam.

Van der Linden e Mário Paiva ensaiaram recusa, depois abriram as
redes, tiraram lençóis, foram acomodar-se nas tábuas.
Raimundo Campobelo deitou-se à beira, de costas viradas para os vizinhos.
A arfar e a tossir, não mudou de posição. Nenhum gesto
ao receber-me a proposta. Calara-se, a tromba feroz de repente murcha: de
fato seria loucura, no estado lastimoso, arrojar-se à luta. Mas não
dava mostra de haver recebido qualquer coisa. Era como se estivesse inteiramente
só. Nem os dois malandros, Nunes e José, lhe mereciam atenção,
Herculano, o estudante pálido, estirou no chão o capote largo
e ofereceu-me lugar. Sempre me faziam esses convites nas horas difíceis.
Estendi-me no colchão improvisado, junto ao muro. Por cima da cabeça
de Herculano, eram visíveis alguns vultos caídos também
na terra úmida, e, vinte centímetros acima deles, Van der Linden,
Mário Paiva, os ombros curvos de Raimundo Campobelo.

35

NO DIA seguinte, depois do café, vieram buscar-nos e ainda uma vez
nos catalogaram. Novas fotografias, novas impressões digitais em fichas.
Estupidez. Imaginariam que as nossas caras eram outras. que os nossos dedos
se transformavam, deixavam no papel marcas diferentes das primeiras? Voltamos
à cela. E aí Nunes entrou a cochichar aos guardas, fingindo
importância, esganiçando-se em risinhos. Chegando-me à
grade para encomendar um maço de cigarros, vi-o mexer em dinheiro:
com certeza pedia qualquer coisa. A hora do almoço, trouxeram-lhe comida
superior à que nos deram em marmitas de folha. O idiota agarrou o prato,
começou a exibi-lo a toda a gente com excessiva alegria, a voz estridente
oferecendo explicações: – Eu não disse? Eles souberam
que eu tinha vindo. Afastei-me do tipo desagradável: a parolagem aguda
e o alimento causavam-me desgosto e enjôo. Mas Nunes queria forçar-me
a admirar um pedaço de carne e rodelas de batata: – Como foi que eles
souberam tão depressa? Naturalmente os amigos deram aviso. Temos amigos
na polícia. Está vendo? Bóia fina, de hotel. Só
estou pensando no advogado. Será que ele chega hoje? Nem me ocupava
em simular atenção: virava o rosto, ia sentar-me longe do tagarela
estúpido; sem se ofender, ele me seguia, o prato na mão Fui
encostar-me aos varões de ferro, voltado para o exterior. O cheiro
de gordura e o tinir das colheres repugnavam-me.

Terminou a refeição. No começo da tarde procurávamos
embalar-nos em conjeturas quando a porta se abriu e nos anunciaram transferência.
Ficavam no cárcere os três vagabundos. Num instante arrumaram-se
os troços. Olhei pela derradeira vez a figura sinistra de Raimundo
Campobelo, despedi-me de José, saí com os outros.

Deixamos o corredor sombrio, volvemos à direita, pisamos a rua, subimos
a um carro, fomos trancados e rodamos. Veículo semelhante ao que nos
levara à estação, na mudança para a Colônia
Correcional: as paredes estavam cheias de furos pequenos; corriam por eles
réstias escassas, e nessa luz intermitente olhávamos pelo crivo
e era impossível orientar-nos. Sacolejos, corpos invisíveis
caindo-nos em cima das pernas. O dia lá fora iluminava e informava
os passageiros dos ônibus, dos bondes; ali dentro uma noite rápida
nos envolvera.

Chegamos, a prisão móvel se destapou, descemos e achamo-nos
em frente às grades altas da Casa de Detenção. Alegrou-me
a esperança de voltar ao Pavilhão dos Primários, rever
pessoas amáveis, distrair-me jogando xadrez, escutar as conferências
de Rodolfo Ghioldi. Entramos. Novamente percorri as aléias de árvores
chinfrins, ainda silenciosas; dentro em pouco todos os ramos se animariam
na algazarra dos pardais. Ao virar uma esquina, avistei a cara ríspida
e os cabelos grisalhos do chefe dos guardas. Reprimi o desejo de cumprimentá-lo,
inquirir sobre o nosso regresso aos cubículos familiares. Seguimos
noutra direção, fomos conduzidos a uma sala vasta, como a que
tínhamos ocupado uma semana, antes de nos enviarem à Colônia.
Os muros estavam pintados de fresco, e as tintas me produziram náusea
e dor de cabeça Ao chegarmos, alguns sujeitos abandonaram as esteiras
e fizeram-nos a recepção convencional, ruidosa, cheia de lugares-comuns
e patriotismo. Embora repetida em excesso, a cordialidade vazia me impressionava.
Um moço pálido e franzino, gingando, trauteou uma canção
insípida e maluca.

Passo a passo, camarada Fracasso não é derrota.

Aludia ao malogro da insurreição, evidente; não queria
admiti-lo e afirmava um disparate: fracasso não é derrota. Ainda
as cantigas sem pé nem cabeça, enervantes; iam reproduzir-se
as mesmas tolices ouvidas meses atrás. Herculano empoleirou-se no vão
de uma janela, berrou com desespero, tentando comunicação. Gritos
responderam, longe. E o Hino do Brasileiro Pobre nos chegou, desmaiado e incompleto:
Do norte, das florestas amazônicas, Ao sul, onde a coxilha a vista encanta.

Bem. Os nossos amigos do Pavilhão. Era como se, no rumor confuso,
me chegassem distintas as vozes deles. Benjamin Snaider largava o tabuleiro
de xadrez, saía à plataforma, enviava-nos enérgico as
boas-vindas, ritmadas, sonoras. A bocarra de Lacerdão se escancarava,
o peito se alargava como um fole, imenso gorgolejo sobressaía no canto.
Rodolfo Ghioldi não tinha parte na ruidosa manifestação:
arredio e silencioso, preparava o esquema de uma palestra difícil.
Valdemar Birinyi estudava a coleção de selos ou buscava entender-se
com Sérgio num alemão desordenado.

Entre os indivíduos existentes no salão, um não se
mexera ao entrarmos: permanecia a distância, a cara inerte, a vista
fixa num livro. Examinei-o, curioso. Em meia hora não virou a folha.
Quem era? Um lituano, informaram-me. Vivia assim mudo, o volume nas garras,
e ninguém sabia como se chamava. Um conspirador, imaginei propenso
a justificar-lhe a prudência: isolava-se por necessário orgulho,
receio de comprometer-se no meio estranho e míngua de assunto: os homens
ocupados em cantigas não o entenderiam. Muitos anos atrás, um
vendedor ambulante, da Ucrânia, me explicara a revolução
de 1905 e deixara-me a idéia esquisita de que todos os eslavos eram
inteligentes. A literatura russa e as conversas de Sérgio fortaleciam
a generalização. Cheguei-me à criatura impassível,
ensaiei camaradagem, impertinente. Ergueu os olhos baços, rosnou alguns
monossílabos indistintos e mergulhou de novo na leitura, arrepiado.
Grosseiro, pensei com azedume espiando, familiar e indiscreto, a cartonagem
miúda. Era um método inglês, resumo bem vagabundo. A cara
do gringo se imobilizava sobre um vocabulário de cinco ou seis palavras.
Arredei-me, fui sentar-me a uma esteira. 0 moço pálido continuava
a bambolear-se, percorrendo a quadra de um muro a outro, e sorria incitando-nos
a acompanhá-lo: Passo a passo, camarada Fracasso não é
derrota.

Como não? O desconchavo repetido bulia-me os nervos. Claro que fracasso
era derrota. Reprimi o desejo de afirmar isso ao rapaz, indagar se ele compusera
o verso e exigir modificação.

Nordestinos e paranaenses, livres do abafamento no galpão infame,
ressurgiam. Os bofes avariados de Van der Linden e Mário Paiva iriam
cicatrizar. Anedotas obscenas espalharam-se, as mesmas ouvidas anteriormente,
mas agora não provocavam hilaridade fria, convencional. Quem estaria
a contá-las? Cabezon, provavelmente. Observei os arredores, agucei
o ouvido: – “Numa sacristia, o padre novo”… Gargalhadas enormes
no fim da história, a mesma já escutada. O remate era previsto
– e ríamos apesar de tudo. Um Cabezon novo, isento de carrego de tijolos
– homem. Homem a voltar à superfície. A fala engrolada de Zoppo
tornou a embalar-me; os óculos do velho Eusébio já não
revelavam a fraqueza angustiante; vagaroso, Petrosky andava procurando lugar;
trepado na janela, aos gritos, Herculano era como um papagaio na gaiola. Abri
a valise, inventariei panos sujos, não me decidi a usá-los:
ficaria vestido na roupa de casimira, onde placas secas de lama se desfaziam,
desbotavam. Animal sórdido. Tirei a gravata, afrouxei o colarinho;
levantei as calças: os sapatos e as meias repugnavam-me. Sórdido.
Agarrei um pijama, levantei-me, dirigi-me ao lavatório. Sórdido.
Não pensara nisso, mas agora sentia perfeitamente, sabia perfeitamente
que estava sórdido. Alguns metros à retaguarda, o rapaz débil
gania, passo a passo: Abaixo o integralismo, O vômito do fascismo…

Bem. Vômito do fascismo – ótimo. Ruim era o homem dizer intregalismo.
Achei um pedaço de sabão, enchi a pia, esfreguei a roupa com
força, procurando tirar dela o mofo e a cardina. Distraí-me
nesse trabalho cerca de uma hora. Esfrega inútil; dedos se inteiriçavam
na barrela e a imundície permanecia nas dobras do pano. Achava-me felizmente
de costas para os outros e não assisti ao jantar.

O chilro dos pardais anunciava lá fora a noite. Vieram luzes. Deixei
a tarefa, regressei às anedotas de Cabezon, ao ronrom do velho Eusébio,
à conversa lenta de Zoppo.

Nova curiosidade levou-me para junto do lituano, observei o livro aberto.
A criatura não volvera a página, continuava na mesma lição,
emperrado no vocabulário exíguo. Os faxinas entraram, conduzindo
uma grande caixa. Lá estava a lembrança dos nossos vizinhos
dos Primários, as reservas guardadas semanas e semanas para os famintos
da Colônia Correcional.

Experimentei a exigência forte de açúcar, como na antevéspera.
Insuportável a comida regular, mas o açúcar dava-me gana
esquisita: fome canina de açúcar. De mistura com laranjas murchas
e abacates, havia uma lata de goiabada. Imaginei o Pavilhão. Durante
meses, quando nos comunicavam a existência de uma leva exausta, corríamos
à plataforma, jogávamos para baixo as nossas economias. Sérgio
devorava uma parte dos abacates levados por Emile nas visitas das sextas-feiras;
guardava o resto para os homens doentes, meio mortos. Solidariedade realmente
suicida. Os frutos verdes expostos no caixão deviam ser oferta dele.
O frasco de geléia fora enviado por Adolfo Barbosa, homem rico, neto
de senador e quase dono de um cubículo cheio de troços luxuosos.
Até mesa e cadeiras.

Abri a lata de goiabada, comi um pedaço vorazmente. Quem a teria
mandado? Súbita bulímia, coisa semelhante ao que, anos atrás,
depois de longa inapetência, me agredira no hospital, mas agora apenas
o açúcar me apagava as brasas da boca. Necessário escrever,
narrar a mesa de operação; a cama dura, horríveis delírios,
um tubo de borracha furando-me as entranhas como punhal. As cenas próximas
já não me interessavam. Bobagem renovar as anedotas de Cabezon,
as histórias de Zoppo, o andar vagaroso de Petrosky, a fraqueza do
velho Eusébio. Se me decidisse a reproduzir essas coisas, mais tarde
seria forçado a jogá-las na água, metê-las num
buraco. E já me aborreciam, vistas em excesso. As dores no pé
da barriga e a dormência -da coxa traziam-me ao espírito enfermeiros
e serventes, cheiro de petróleo, a figura evangélica de padre
José Leite, rumor de ferros na autoclave, as mãos ágeis
de Clemente Silveira, sonhos, visões. Necessário fixar isso,
achava-me na verdade perto disso.

Tomei a escova de dentes, encaminhei-me ao lavatório. Finda a higiene
rápida, fui estender o pijama nos varões da grade. Tirei os
sapatos, caí na esteira, adormeci.

QUARTA PARTE

CASA DE CORREÇÃO

FIQUEI ali apenas vinte e quatro horas. – Seu Fulano, transferência.

A roupa lavada na véspera ainda não estava seca. Embrulhei-a
num jornal, meti-a na valise, abracei os companheiros, exceto o lituano, embrenhado
no exercício penoso e um rapaz que na Colônia me ofendera querendo
comprar-me um cigarro. Essa mesquinhez, apesar de velha, ressentia-me: a lembrança
do homem sonso e risonho, de braço estirado, um níquel entre
os dedos, não se apagava. Em minutos achei-me pronto: – Vamos lá.

Para onde? Calei a pergunta, como de outras vezes; se a lançasse,
não me dariam resposta. Imaginei regressar ao Pavilhão dos Primários.
Engano, conduziram-me noutro sentido. Os renques de árvores pequenas,
mansas a tesoura, não me forneciam orientação. Dobramos
esquinas, saímos do edifício. Procurei em redor um daqueles
temerosos carros, os tintureiros, marcados com um dístico, eufemismo
extravagante: assistência policial. Jogam-nos ali, esmagam-nos, indiferentes
à capacidade, e batem a porta; viajamos na treva e no calor, como bichos,
atormentados pela desagradável assistência.

– Vamos, convidou um dos soldados.

Nenhum veículo. Diabo. Mexia-me a custo, e iam obrigar-me a nova
marcha. De fato lamentei a ausência do automóvel fechado e escuro.
Partimos, lá fui claudicando até a Casa de Correção,
a pequena distância, entramos. Surpreso e inquieto, perguntei a mim
mesmo porque me enviavam àquela prisão. Deviam estar ali, supus,
as criaturas forçadas a cumprir sentença, e ainda não
me haviam dito uma palavra a respeito dos meus possíveis crimes. Tinham-me
obrigado longos meses a rolar para cima e para baixo; aplicavam-me agora uma
condenação enigmática. Desapareceriam talvez as mudanças,
as relações instáveis com vagabundos e malandros; estabelecer-me-iam
num dos cárceres habitados por assassinos e ladrões perigosos.
Chegamos à secretaria; um tipo de farda recebeu o ofício que
ordenava a minha permanência ali e os condutores se retiraram.

– O diretor está à sua espera, declarou a nova personagem
levando-me a um gabinete à esquerda.

Espantei-me. Antes do médico, na Colônia, o homem áspero
que me exibira o telegrama e defendera os gatunos, nenhum diretor me havia
posto os olhos em cima. Um que ria ver-me. Ia interrogar-me, sem dúvida,
arranjar outra ficha complicada. Ingressamos na saleta. Debruçado a
uma banca, um velhinho escrevia. Ergueu-se, tomou do funcionário o
envelope, correu a vista rápido na folha de papel, estendeu-me risonho
a mão: – Está bem. Muito bem. Chegou ontem, não? – Sim,
ontem. Ou anteontem, nem me lembro, respondi atarantado.

O tempo deixara de existir.

– Sua mulher esteve aqui hoje. Vai bem. Eu o esperava desde ontem. Houve
atraso. Vou telefonar a ela marcando uma visita para amanhã. Vai bem.
Toda a família vai bem. José Leite . e Amália vão
bem. Sabe que padre José Leite esteve aqui, procurando visitá-lo
nos Primários? Não conseguiu a visita. Vai bem.

– É. Percebi a letra dele num pacote de frutas. Mas como é
que o senhor conhece essa gente? – Ah! Sou de Alagoas, nasci em Pilar. Vamos.
Pegou-me o braço, levou-me à porta. Essa incrível familiaridade
perturbava-me. Difícil admitir que um instrumento da polícia,
só por ter nascido na minha terra e conhecer parentes de minha mulher,
procedesse de tal jeito. Inclinava-me a descobrir na linguagem simples do
homenzinho idéias de corrupção. Mas corrupção
porque, Deus do céu? Que diabo esperavam de mim? Estúpido imaginar
terem posto ali uma pessoa do nordeste para engabelar-me. Receava comprometer-me
e receava ser bruto com um vivente amorável. Ao passarmos a secretaria,
o velho ordenou: – Deixe a maleta aí, com a chave. Há uma formalidade.
Pus a valise em cima de uma banca, retirei-me em companhia do homem. No pátio,
onde se erguiam edifícios altos, atravessamos vários portões
de ferro; chegamos a um prédio velho de dois pavimentos. Grades abertas,
sem vigias, surpreenderam-me. Além de um pequeno vão escuso,
onde vi, direita, uma sala, provavelmente a casa da ordem, chegamos a um canto
de terreiro, subimos uma escada. Lá em cima um guarda, que nos acompanhava,
entregou-me a valise. Desembocamos numa espécie de antecâmara;
vi na parede um espelho, avizinhei-me dele. Não contive uma exclamação
de espanto: – Que vagabundo monstruoso! Estava medonho. Magro, barbado, covas
no rosto cheio de pregas, os olhos duros encovados. Demorei-me um pouco diante
do espelho. Não podia ver-me na Colônia, de nenhum modo avaliava
os estragos, a medonha devastação.

– Que vagabundo monstruoso! Horrível. Entramos num salão muito
comprido, onde se alinhavam camas e janelas numerosas rasgavam as duas paredes
externas. Havia ali umas cem pessoas. Ao pisar no soalho gasto, oscilante,
reconheci alguns dos meus companheiros do Pavilhão. Vários se
aproximaram, uma voz metálica soou perto: – Você está
morto, rapaz. Quantos dias faz que não come? Voltei-me. Era José
Brasil. – Nem sei, muitos dias.

José Brasil saiu precipitado; ouvi-o descer degraus com forte rumor
de tamancos. O professor Castro Rebelo trouxe-me biscoitos, Maurício
Lacerda ofereceu-me duas maçãs.

– Tem pijama? inquiriu um homem atarracado e moreno, que logo me apresentaram:
Rosendo, juiz de direito em Niterói.

Com certeza se arriscava a respeitar o habeas-corpus – e estava conosco
– Tenho. Imundo, uma porcaria.

O juiz afastou-se, minutos depois entregou-me um largo pijama Nenhum desejo
me aparecia de comer as maçãs e os biscoitos, esquecidos numa
grande mesa à entrada, tábuas nuas, soltas, em cima de cavaletes.
Dirigi-me a um canto do salão, e só aí notei que havia
luzes Provavelmente a noite baixara antes da chegada, mas, na confusão
da mudança, escapavam-me as horas. Apaguei uma lâmpada vizinha,
despi-me, vesti-me. Em seguida, encaminhei-me à porta, segurando a
valise: não havia perdido o hábito de fiscalizá-la. Voltei,
joguei-a sobre o paletó e a calça amarrotados no chão.

Fui sentar-me num banco, junto à mesa. O diretor conversava animado,
risonho e familiar. Tratavam-no por major e pareciam gostar dele. Nesse ponto
José Brasil entrou com dois faxinas, que puseram diante de mim bules
de café, leite e chá, um tabuleiro cheio de fatias de pão.
Surgiu-me de repente a fome: bebi sôfrego um caneco de leite e comecei
a devorar. Espantava-me o horrível apetite, depois da longa inapetência,
e desgostava-me não conseguir moderá-lo. Portava-me como selvagem,
mastigava sem descontinuar e envergonhava-me de estar causando impressão
deplorável. Minutos antes as maçãs e os biscoitos provocavam-me
repugnância. A esquisita avidez viera de golpe. Esforçava-me
por adivinhar a causa dela, e isto era o único sinal de inteligência
que ainda havia em mim. Bicho faminto, surdo, mudo. Não me achava inteiramente
cego: via em redor médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, oficiais
do exército, gente que, meses atrás, lia e jogava xadrez no
Pavilhão. A ausência de operários deu-me uma indicação:
provavelmente estávamos na Sala da Capela, destinada a burgueses e
intelectuais. Mas porque n&atilatilde;o estavam ali Rodolfo Ghioldi, Sérgio,
Valério Konder, os Campos da Paz? Consumi todo o pão e esvaziei
o bule de café. Aí choveram perguntas, mas, cansado, zonzo,
senti preguiça de falar, catar lembranças.

A Colônia ia-se distanciando; a cama, a esteira, o lençol ensangüentado,
a tatuagem de Gaúcho e os olhos ferozes de Alfeu confundiam-se. Teriam
existido? Afligiu-me reconhecer lacunas em tão pouco tempo, vacilações
na memória. Não me seria possível reconstituir o galpão,
o refeitório, a generosidade estranha de Cubano, o estertor do vagabundo
na imensa noite. A perda irremediável das folhas de papel mexia-me
os nervos. Afugentei essas coisas, firmei-me na realidade próxima.

Estávamos na Sala da Capela? Disseram-me que sim e obstinaram-se
em pedir notícias da ilha Grande. Mencionei as pedras escuras, os morros,
as piteiras brilhantes no crepúsculo. O diretor, baixo, gordinho, atirando
passos curtos nas pranchas desconchavadas, ofereceu-nos um trocadilho de caserna,
pilhéria de sal grosso. Um sujeito se referira à ilha e às
plantas: – “É a terra onde a pita abunda.” Percebendo a cacofonia,
emendara: – “É a terra onde abunda a pita.” Uma hilaridade
cortês e chocha acolheu a anedota.

Alheio às conversas, detinha-me na observação do ambiente
e passava os dedos nos pêlos ásperos do rosto. Além de
Castro Rebelo, divisei os outros dois professores da universidade: Hermes
Lima e Leônidas de Resende. Também avistei Gikovate e Karacik,
os médicos judeus, Francisco Mangabeira, Agildo, Moreira Lima, Sisson,
Apporelly, Cascardo. Várias personagens, vistas anteriormente, formavam
grupos na sala vasta e só mais tarde as reconheci.

– Preciso que me arranjem navalha, pincel, sabão, um pano para enxugar-me
Estou horroroso, não posso dormir assim.

Trouxeram-me os objetos pedidos. Fui à saleta, descobri um lavatório,
abri a torneira, lavei-me e esfreguei-me vagaroso. Chegando-me ao espelho
para barbear-me, repeti com desânimo: – Que vagabundo sórdido!
Como se transformava uma pessoa tão depressa? Escanhoei-me e alterou-se
um pouco a figura semelhante aos ladrões, meus companheiros na Colônia
Correcional. Mas a magreza, as órbitas fundas, as rugas, ainda me espantavam;
não havia jeito de habituar-me àquele horror.

Voltei ao salão, procurei o indivíduo que me havia emprestado
as miudezas e dei de cara com Walter Pompeu. Entraram faxinas, uma cama se
armou. Fui recostar-me nela, morto de fadiga, a custo desamarrei os sapatos.
Os olhos fechavam-se. Morto de cansaço. Não entendia nada. As
perguntas que me fizeram ficaram sem resposta. O homem gordo e baixo deu mais
alguns passos curtos no pavimento bambo e retirou-se Apagaram-se as lâmpadas.
Sobre a mesa, à entrada, uma ficou acesa; alguém pôs sobre
ela uma pantalha de jornal; criaturas vagas se acercaram, abriram volumes
em roda. Sono, fadiga. Apesar disso, não me foi possível repousar
direito. Adormecia, acordava. Sonhos atrapalhados, visões da Colônia,
misturavam-se a figuras imóveis, sombras, guaritas altas, em cima de
muros, apitos de sentinelas. O colchão e o travesseiro incomodavam-me,
o lençol e a manta pareciam-me sujos de hemoptises.

2

LEVANTEI-ME de madrugada e fui sentar-me no banco, junto à mesa; esperei
que as figuras em redor se mexessem. Na saleta, à porta, um guarda
cochilava. Sombras lá fora, massas indistintas, prédios, árvores,
rumores vagos, apitos. Fiquei debruçado na tábua cerca de uma
hora, até que a luz da lâmpada esmoreceu e lá embaixo
se espalhou a gritaria dos pardais. Estirando os olhos pelas janelas, distingui
o terraço da Casa de Detenção e, longe, à esquerda,
o vulto pedregoso da Favela, com uma igreja no cocuruto, fina e simpática.

O dia entrava no dormitório, as camas rangiam, alguns homens se levantavam
e passos duros no pavimento desconchavado impediam o sono dos dorminhocos.
Uma voz áspera indicou-me a presença de Moésia Rolim.
Abandonei as ladeiras da Favela, examinei o interior, vi a distância,
no fim da sala, as barbas de Apporelly, o roupão vermelho de Cascardo,
Moreira Lima a ajeitar a funda, vagaroso. Um faxina apareceu na saleta; dirigi-me
a ele e encomendei um par de tamancos.

– Agora, se for possível. Número quarenta, pouco mais ou menos.

O sujeito saiu, tornou pouco depois, entregou-me os pedaços de pau
cobertos de lona, duas tiras grossas. Descalcei-me, experimentei-os: – Bem.

Fui juntar à bagagem os sapatos enlameados. Ao abrir o porta-níqueis
para fazer a paga, demorei-me a contar as últimas cédulas, e
uma sensação de inferioridade me empolgou. Senti-me fraco e
desarmado. E necessitava banho. Vendo alguns indivíduos afastaram-se
com toalhas, acompanhei-os, desci a escada. Lá embaixo, como na véspera,
achei as grades abertas e sem vigilância. Entramos no pátio,
dobramos esquinas. Os banheiros eram longe, ao pé do muro interno que
nos separava da Detenção. Lavei-me com demora e fui secar-me
ao sol: não me atrevera a usar a toalha pequena guardada na valise.

De volta, dirigimo-nos ao refeitório, no pavimento inferior. A primeira
vista aquilo não diferia da Colônia. Tábuas nuas em cima
de cavaletes, ladeadas por bancos estreitos e escuros. Mas o aspecto agradável
da comida nos tabuleiros cheios, bules de metal areado, pratos e xícaras
limpos desfizeram logo a abjeta comparação. Embora a manteiga
estivesse rançosa, mastiguei o pão e bebi o café com
prazer. Certamente influíram nisso as criaturas civilizadas que se
sentavam próximo e devagar iam ressurgindo no meu espírito.
As mesas se despovoaram e, finda a refeição, demorei-me um pouco
ali, a fumar. O rapaz que me servira, gordo, baixo, inquieto, aproximou-se,
disse-me que se chamava Aleixo e não era homossexual.

– Quem lhe perguntou isso? exclamei erguendo-me. A sua vida não me
interessa.

– É que o senhor vai ouvir dizer que sou pederasta. E não
sou. Juro que não sou, nunca fui.

– Está bem. Adeus.

Saí, galguei a escada. Lá em cima encontrei Walter Pompeu,
que se sentara junto a mim no banco escuro.

– Ó Walter, quem é o tipo que nos serviu, o Aleixo? É
doido, não? Walter Pompeu narrou-me o caso de Aleixo. Não era
doido. Marinheiro, longe da terra, vivera muitos anos amigado com um oficial.
No mar essas coisas são naturais – falta de mulher. Por acaso, resolvera
mudar de vida e casar. Achara fêmea num porto, quisera fixar-se nela,
abandonar o navio, ser tipo decente, macho. – “Não quero saber
mais disso.” O oficial tinha direito sobre ele, tentara forçá-lo.
– “Seu tenente, larguei isso e vou casar. Deixe-me em paz.” O outro
insistira, exigente. Aleixo matara-o. E condenado no júri, com larga
pena, longe da noiva, tornara à vida anterior. O sentimento de culpa
exteriorizava-se a cada instante – e esforçava-se por evitá-lo
afirmando a toda a gente que não era invertido.

Um guarda moço, de olho vivo, apareceu, largou sobre a mesa um grande
maço de jornais. Tirou do bolso uma caderneta e começou a arrolar
encomendas. Cheguei-me a ele, pedi lápis e um bloco de papel. Na saleta
alguns presos tinham arranjado uma pequena marcenaria. Aquela hora já
serravam, aplainavam, manejavam com barulho, desajeitados, o escopro e o martelo.
Especializavam-se na fabricação de cadeiras, talvez por termos
vivido meses a sentir a falta delas. Havia ali diversas, outras se concluíam,
móveis originais` discrepantes na forma e no tamanho. Uma idéia
me levou a esquisita oficina. Obtive um pedaço de madeira. E com ele
e barbante compus uma espécie de cabide, onde estirei a calça
e o paletó amarrotado. Alguém me emprestou uma escova. Esfreguei
os panos devagar, pendurei-os a um prego. Mandei lavar a roupa branca. E dediquei-me
a limpar os sapatos, dar-lhes aparência razoável.

Em redor, nas camas, os presos liam, conversavam, discutiam a guerra civil
da Espanha. Ao fundo, Apporeliy arrumava cartas sobre uma pequena mesa redonda,
entranhado numa infindável paciência. Avizinhei-me dele, pedi
notícias do livro que me anunciara meses antes: a biografia do Barão
de Itararé Como ia esse ilustre fidalgo? A narrativa ainda não
começara, as glórias do senhor barão conservavam-se espalhadas
no jornal. Ficariam assim, com certeza: o panegirista não se decidia
a pôr em ordem os feitos da notável personagem. Lamentei aquele
desperdício de tempo, embora também me achasse inútil,
ocioso: quase um ano a jogar poker e xadrez, matar percevejos, ouvir hinos
e discursos. Agora, depois do jejum prolongado, não me sentia disposto
a recomeçar o trabalho. Enfim todos nós procurávamos
atordoar-nos. Renovavam-se histórias narradas no Pavilhão e
tinha-se como certa a vitória dos republicanos em Madrid e na Catalunha.
Éramos crédulos em excesso e repelíamos zangados os telegramas
favoráveis a Franco. Aliava-se a essa ingenuidade uma irritação
nova. Certos indivíduos, anteriormente calmos, propendiam a bulha;
sossegavam, mas uma palavra largada à toa os enraivecia. A demorada
reclusão mudava os caracteres. A princípio um homem apenas me
surgiu tranqüilo, usando os modos e a linguagem usuais lá fora,
na cátedra: Hermes Lima. Embrenhava-se no estudo do alemão,
compondo exercícios num caderno que se avolumava. Nenhum livro. E,
na falta disso, Gikovate era gramática e era dicionário. Se
Gikovate não estava à mão, Hermes recorria a um dos irmãos
Cunha, os Cunhões, dois gêmeos perfeitamente iguais. Tenentes
do exército, sul-rio-grandenses, falavam bem as duas línguas,
podiam ser úteis a Hermes em caso de necessidade.

– Almoço, gritaram da porta.

Erguemo-nos, houve no tabuado um barulho de tamancos, descemos a escada
gasta, carunchosa. Lá embaixo, no refeitório comprido, sentei-me
no lugar ocupado pela manhã, à hora do café. Walter Pompeu
estava junto de mim, e Aleixo, o desgraçado, nos servia. A comida era
boa.

– As pontas da vanguarda… anunciou Rollemberg impingindo-nos uma série
de triunfos imaginários.

Esse otimismo provocava riso. Estava ali parte da vanguarda, esparsa nos
bancos estreitos e escuros, roída pelas dissidências, e outras
partes se desfaziam nos cubículos da De tenção, na piolheira
da Colônia. Chegou-me de novo a fome experimentada na véspera,
durante algum tempo não escutei as reflexões de Walter a respeito
de Aleixo, bambo e lânguido.

Voltamos, apareceram-me dores vagas nas pernas, deitei-me, fixei a vista
na escarpa vermelha de um monte próximo. Barracos miseráveis,
transeuntes raros a subir e a descer, um burro e uma cabra imóveis.
Meia hora de observação fatigou-me. Baixei os olhos, uma guarita
surgiu-me a poucos metros, cavalgando o muro alto. A tarde chamaram-me: –
Visita.

Bem. A promessa do diretor se realizava. Ergui-me, calcei os sapatos, enverguei
a roupa única sobre o pijama de Rosendo, saí acompanhado por
um guarda. Portões abriram se e fecharam-se no caminho percorrido no
dia anterior, chegamos à secretaria. Minha mulher, à porta,
recebeu-me com espanto: – Como está magro! Porque raspou a cabeça?
– Pois sim! resmunguei. Isso dependia de mim. Devia estar gordo e cabeludo.
Quanta inocência! Afastei as explicações e fomos sentar-nos.
Aí a criatura me forneceu novidades, esforçando-se por desviar
coisas desagradáveis. O intuito era visível. Inteirando-se da
minha viagem para a Colônia, ficara satisfeita: ao menos lá,
supunha, não me seria difícil encontrar mulheres.

– Encontrar mulheres? exclamei assombrado.

– Sim. Julguei. Uma dessas matutinhas da lavoura. No campo é fácil.

– Que estupidez! Ciumenta em excesso, minha companheira achava natural que,
depois de longa abstinência, me encostasse a fêmeas ordinárias.
Essas não lhe faziam mossa. Tinha horror às senhoras educadas
e inteligentes. O ciúme dela não era, por assim dizer, físico:
era mental. Abandonou o assunto maluco e entregou-me cem mil-réis que
recebera de uma revista argentina. A publicação do conto enviado
a Benjamin Garay rendera vinte e cinco pesos.

– Diabo! A minha cotação lá é baixa. Em todo
o caso isso veio em boa hora: estou sem dinheiro. Basta metade. Guardei cinqüenta
mil-réis, devolvi o resto.

– Como vai o livro? Estava na composição, em provas. – Que
demora! Já devia ter saído.

O diretor apareceu, esteve algum tempo a recordar a sua mocidade, em Alagoas.
Quando saíra de lá, a mãe da visitante era criança.
Aí fiquei sabendo que o homem, oficial reformado, se chamava Nunes.
A interrupção delicada, presumi, indicava o momento de retirar-me.
Aquilo era encontro de exceção, explicou major Nunes, marcando
a visita regular para sexta-feira, ao meio-dia. O velho me tratara por você,
como se houvesse conhecido a minha família, inexistente, esfarelada
no interior. Essa intimidade não me humilhava. Notei depois que ele
se dirigia assim a toda gente: era como se os presos fossem seus filhos. Agradeci,
despedi-me, regressei à Sala da Capela. E não consegui jantar.
No fim da tarde o burro e a cabra desapareceram no morro, os transeuntes sumiram-se.
Vozes furavam-me os ouvidos. Quanta gente! Hora do chá. Não
me foi possível descer. Luzes. A guarita, em cima do muro, estava quase
imperceptível. As dores cresciam. Não dormi direito. Gemi toda
a noite.

3

MOREMA, o guarda moço de olho vivo, trouxe-me de manhã os lápis
e o papel encomendados. Para que servia aquilo? As dores nas pernas anunciavam
doença grave.

Iam do tornozelo ao joelho, era como se os ossos se estivessem desfazendo.
Com o dia tinha diminuído um pouco, talvez por haver agora algum calor,
mas a horrível impressão me chegava de que a parte inferior
do esqueleto não agüentava o peso do corpo. Ossos a esfarelar-se.
Polinevrite, beribéri – misturei esses nomes e desejei consultar Flávio
Poppe, visto de relance, Gikovate, Karacik, um dos médicos presos.
Falta de comida. Lembrava-me de ter passado pelo menos uma quinzena em jejum.
Devia ser isso. Dificuldade em mexer-me até o banheiro, lavar-me, voltar,
beber o café, subir a escada. As pernas não tinham consistência.
Movia-me com medo. A qualquer momento as canelas iam desmanchar-se, mudar-se
em algodão. Tíbias de algodão. Estranho aparecer-me aquilo
exatamente ao chegar à Sala da Capela, onde não havia penúria.
Alimentara-me – e as pernas negavam a sustentar-me. Já viera, com certeza,
meio morto. A visagem medonha, percebida no espelho, atenazou-me de novo.
– “Que vagabundo monstruoso!” Não. Por fora já não
estava assim. Raspado e ensaboado, metido em panos limpos, melhorara um pouco
o exterior. Mas era uma desgraça por dentro. Convencia-me disso e receava
mover-me: a carcaça miserável não me suportaria. Vagaroso,
fui guardar na valise a encomenda inútil. E arriei na cama.

O vizinho da direita, Castro Rebelo, cerimonioso, tratava-me por senhor,
para marcar distância. E eu, naturalmente, provinciano mesquinho, dava-lhe
o título de professor e falava pouco. Nessa manhã Castro me
fez uma consulta estapafúrdia: queria saber quando tinha sido publicado
não sei que livro. Refleti, consultei a minha profunda ignorância,
aventurei que, salvo erro, a obra tinha saído ali por volta do século
XVI.

– Ora no século XVI! Eu queria saber o ano.

Isso me esfriou a espinha, reduziu mais a consistência do arcabouço
frágil. Necessário mudar de lugar. Que seria de mim se o erudito,
minucioso, me perguntasse o mês, o dia, a hora, o minuto? Naquela manhã
Castro se achava de mau humor. Referindo-se à política nacional,
atirou uma observação absurda.

– Não compreendo, atalhei. Como se explica isso? – Não se
explica, volveu o professor.

E largou um palavrão.

– Quando, na história do Brasil, lhe aparecer um fato inexplicável,
procure a razão dele entre as coxas de mulher. Não se engana.

Aludiu à experiência de 1935, furioso e estridente.

– Parece que há algum exagero, aparteei. Não é tanto
assim.

– Exagero? Então o senhor não sabe onde vive? O senhor está
no meio dos maiores canalhas deste país.

O desaforo saiu com arrepio e gritos. Gikovate avizinhou-se: – Professor,
acalme-se.

– Vá para a puta que o pariu. Você também é um
filho da puta, como os outros.

– Puxa! Que ferocidade! segredei ao médico. E afastei-me com ele.

– A culpa foi minha, que o contrariei.

– Fiz mal em meter-me na vida alheia, murmurou o judeu pálido e encabulado.
Não esperava aquela zanga. Está doente do ovário, sem
dúvida.

Castro Rebelo excitava-se com rapidez incrível e não tinha
papas na língua: expandia-se em fortes desconchavos, indiferente ao
lugar, sem receio de atrair inimigos. Não atraía: os companheiros
suportavam as cóleras maciças, que findavam logo.

Andei à toa de um lado para outro, folheei jornais. Ao cabo de meia
hora encontrei-o razoável e normal, em palestra com Luís Lins
de Barros, como se nada houvesse acontecido. Admirei a palavra sossegada,
lenta. E ainda mais a mudança que percebi no interlocutor. Meses atrás
esse moço me causara impressão lastimosa. Modos sornas, o olhar
baixo, mordia um sorriso insignificante e expressava-se em voz bamba e vazia.
Qualquer pergunta o deixava perplexo. Arrastava-se nos cubículos do
Pavilhão como sombra, mosca-morta isenta de querer e pensar. Agora
apresentava idéias, questionava. A fala era mofina e branda, mas num
instante o homem suprimia um juízo firmado em observação
longa. Retirou-se – e confessei o meu espanto: – É estranho. Julguei
até hoje esse rapaz um imbecil. Castro deu uma gargalhada, chamou:
– Luís, chegue cá, ouça isto. E quando o outro voltou:
– Aqui o nosso amigo supunha que você era imbecil. – Mas ele está
certo, respondeu Luís de Barros, mole e vago. Sou realmente um imbecil.

– Para que finge? perguntei quase com raiva. Essa constante simulação
deve fatigar.

– Não é simulação, tornou baixinho o original
personagem. Acredite, sou um imbecil.

– Para o diabo.

Afastei-me. Que precisão tinha o homem de induzir a gente em erro?
Se tinha receio de comprometer-se, evitaria sem esforço os cochichos
revolucionários isolando-se, como Sérgio, comunista a princípio,
depois trotskista, indeciso afinal, propenso a confusos estudos sobre feitiços
do Egito. Aquele engenho de ator, faculdade horrível de mascarar-se,
despersonalizar-se, aterrava-me. Procurei desanuviar-me na companhia de indivíduos
regulares. Ao centro, uma longa mesa, havia sempre alguns tabuleiros de xadrez.
Pompeu Accioly apoderava-se de um, resolvia problemas difíceis, explicava
a embasbacados pexotes os lances de partidas célebres. Perto, uma vitrola
moía discos. Vergílio Benvenuto, o pijama aberto a exibir o
peito cabeludo, saracoteava, balançava a enorme gordura, amolecido
com os sambas de Carmen Miranda.

– É deliciosa, murmurava de olho aceso, como se visse a cantora.

No Pavilhão retraía-se, fugia às conversas, e durante
semanas foi apenas o advogado de Agildo. Ambientava-se na Sala da Capela.
Manifestava rara perícia no jogo de crapaude referia-se a um penoso
exílio na Europa, efeito da bagunça de São Paulo em 1932.
Imitava a pronúncia lisboeta com perfeição. Vivia atenazado
por imagens femininas. Sabendo-me de Alagoas, perguntou-me se conhecia uma
sigiraita rica, amiga de aventuras fáceis.

– Sim, de vista. É medonha, um estrepe.

– É deliciosa, protestou Vergílio mordendo os beiços.
Distraí-me ouvindo coisas desse gênero. Mas precisava sentar-me:
as pernas moviam-se com dificuldade nas tábuas movediças. Refugiei-me
no extremo da sala, onde alguns metros de mosaico me davam sensação
de firmeza. Apporelly, embrenhado na paciência, arrumava cartas na mesinha
redonda; Moreira Lima, à esquerda, tossia, pigarreava, dizia a alguém
pedaços de sua extensa viagem pelo interior, na Coluna Prestes; à
direita, Maurício Lacerda riscava uma página de livro, riscava
em demasia. Para que riscar tanto? Mais tarde acharia quase todas as linhas
com riscos, e não descobriria nelas nenhum interesse.

A narrativa de Moreira Lima chegava-me incompleta e rouca. Depois de falar
a um chefe de tribo nu e emplumado, o intérprete velho, meio selvagem,
dissera a Prestes: – “Generá, tuxaua quer que você dê
a ele fumo, cachaça e dinheiro. Cachaça e fumo pode dar, mas
dinheiro dá para mim: caboclo brabo não tem que fazer com dinheiro.”
Bororo estragado pela civilização.

Na cama de Maurício Lacerda havia uma colcha de seda rósea,
escandalizando os nossos lençóis ásperos, as mantas de
lã grosseira. Um tabique ao fundo. Cheguei-me a ele, descerrei uma
portinhola, vi um altar, velas queimadas, santos a esconder-se na igreja mudada
em prisão. Fechei a porta, voltei a aperuar o xadrez, a entreter-me
com as músicas da vitrola. Embora a fome canina tivesse desaparecido,
almocei e jantei. Mas à hora do chá as pernas se negaram a descer
a escada. Arriei na cama, a gemer, não consegui dormir.

Apagaram-se as luzes. Os gemidos subiram, e assaltou-me a recordação
viva do hospital. Era assim que me comportava naqueles dias pavorosos, a barriga
aberta, um pedaço de borracha a furar-me as entranhas. Impossível
calar-me. Os gritos renovavam as torturas do hospital. Não havia meio
de contê-los. Castro Rebelo, Cascardo, Moura Carneiro e Orlando Melo,
deitados nas camas próximas, ficariam a noite acordados por minha causa.
A certeza disso me destruía. Forçavam-me a perturbar o sono
dos outros. Suponho que essa miserável idéia aumentava as dores.
Ergui-me, capenguei até a saleta, caí numa espreguiçadeira.
Um guarda amparou-me: – Que é? Conhecendo-me os sofrimentos, andou
algum tempo a sair e a entrar. Envolveu-me as pernas, colocou-as em cima de
um tamborete, puxou uma cadeira, sentou-se junto a mim.

Estava de vigilância, à porta, mas afastou-se dali dois metros
para fazer-me companhia. E entrou a conversar, lento, grave e enrugado. Pouco
a pouco serenei, pude atentar nas palavras do homem. Resvalamos no diálogo.
Era português, chamava-se Marques, tinha trinta anos de serviço.
Levantava-se de quando em quando, trazia-me uma xícara de café.
– Obrigado, seu Marques. Não se incomode.

– Ora essa! Beba. Não me custa. Os senhores não são
presos, são hóspedes. Janelas sem grades. Então? As grades
são lá embaixo. Cá em cima não há grades.
Hóspedes. E nós estamos aqui para servi-los.

Esse disparate fez-me rir e afugentou a lembrança do hospital: –
Hóspedes à força. Bonito.

– Ah! Isso é outra coisa. Não sei da vida dos senhores lá
fora. Nem quero saber. Aqui são hóspedes.

Major Nunes apareceu, estranhou ver-me desperto à meia-noite, as
pernas entrapadas: – Doente? – É. Deve ser falta de nutrição.
Uns quinze dias sem comer.

– Pois não há motivo para uma pessoa morrer de fome; disse
o velho. A comida chega para todos. Eu ainda não recebi verba para
alimentar vocês. Os presos políticos estão sendo sustentados
com a bóia dos presos comuns. E o que temos dá de sobra.

– Onze mil-réis por dia para a manutenção de um homem.
Ouvi dizer. Na Colônia Correcional não gastamos a décima
parte disso. E éramos novecentos. Bom negócio a nossa morte.

O diretor saiu, demorou-se um pouco no exame do longo dormitório.
Achou as coisas em ordem. Voltou, correu a vista pelos instrumentos da marcenaria
improvisada e retirou-se. Nunca vi funcionário compenetrar-se tanto
dos seus deveres, sempre disposto a infringi-los. Parece que o regulamento
lhe servia para fazer tudo pelo avesso. Como um pai de família bonachão
e confiante, deixava ao alcance dos nossos instintos formões, goivas,
escopros e martelos. Não se conservaria no cargo, disse comigo. Na
Detenção haviam-nos tomado até cordas.

Fugia-me o sono, mas provavelmente não me achava tão mal como
supunha no isolamento e no escuro, a rolar no colchão e a gritar. Podia
ficar imóvel, ouvir as histórias do guarda, a vida de criminosos
exaltados muitos anos antes na crônica policial. Curvado nas pranchas
dos cavaletes, Nemo Canabarro Lucas se embebia num grosso volume, à
luz curta da lâmpada envolta na pantalha de jornal. Com certeza se enchia
de matemática. Barulho de passos: Amadeu Amaral Júnior andava
inquieto, surgia à porta como um grande fantasma, desaparecia na sombra.
Dormira o dia inteiro, nem tinha descido para as refeições;
homem de imprensa, habituara-se a viver à noite. Alguém exigia
silêncio. Amadeu Amaral Júnior não fazia caso disso. Sentava-se
afinal perto de Nemo, escrevia rápido, como se estivesse numa redação.
Levantava-se, ia procurar assunto no ruidoso passeio, novamente abancava,
o grosso punho movia-se no papel. Marques narrava-me a existência dos
presidiários e concluía: – Antigamente eles não tinham
essa liberdade que têm hoje. Fumam na presença de um guarda,
parecem donos disto.

Ia buscar uma xícara de café, ajeitava-me nas pernas a manta,
volvia à idéia suspensa.

– Existia disciplina. Acabou-se a disciplina. Fumam na presença de
um guarda. Está errado.

Pretendi convencê-lo de que estava certo; Marques não admitia
razões.

– Quantos crimes se davam aqui por mês naquele tempo? – Alguns – E
atualmente? – Ora! Não se trata disso. Já não há
crimes, é verdade, mas precisamos disciplina.

O ótimo sujeito ganhara cabelos brancos e rugas no ofício
desagradável, e para agüentar-se nele julgava necessário
exibir aspereza. Estendendo-me a xícara de café, perguntava
com voz dura: – Está melhor? Essa incongruência manteve-me acordado
várias horas. Amorteciam-se as dores; as lembranças do hospital
atenuavam-se. Adormeci pela madrugada.

4

A LEMBRANÇA, do hospital se agravava quando me abatia preguiçoso
no colchão, de barriga para cima, a olhar os casebres do monte, os
indivíduos que subiam e desciam a ladeira vermelha. E o desejo me chegou
de narrar sonhos, doidice, rumor de ferros na autoclave, os gritos horríveis
de uma criança, um rosto sem olhos percebido na enfermaria dos indigentes
e as ronceiras pancadas de um relógio invisível. Já me
surgira a idéia de escrever isto. Voltava agora com insistência.
Naquele tempo, no delírio, julgava-me dois. A parte direita não
tinha nada comigo e se chamava Paulo. Estava podre. Clemente Silveira poderia
facilmente separá-la de mim, serrar-me pelo meio, deixar o lado ruim
no mármore do necrotério, deixar o outro viver. Essa estupidez,
que me assaltara na Colônia, regressava com força grande, impunha-se.
Homem sem olhos, pavorosa máscara de esparadrapo, horas a pingar fanhosas
num relógio invisível; o pensamento louco de conseguir desdobrar-me,
enviar ao cemitério a banda estragada. Porcaria. Enfim a necessidade
urgente de escrever dois contos: pegar de qualquer jeito o relógio
do hospital e Paulo. Seriam contos? Não sei fazer contos: precisava
livrar-me daquilo, afastar o hospital g dormir. Dormir, não ver o morro
que me perseguia, barracos ocultos em folhagem, o burro e a cabra imóveis,
transeuntes a descer, a subir Desenrosquei-me, desci da cama, tirei da valise
os petrechos fornecidos por Moreira, o guarda moço de olho vivo, fui
sentar-me bambo a mesa do centro, junto a baralhos sujos e tabuleiros de xadrez.

– Uma partida de crapaud, Jorge, convidavam na vizinhança.

Jorge El-Jaick, um árabe esgrouviado, concordava sempre – Sim, podemos.

Nunca lhe ouvi outras palavras depois do convite. Nascido no Brasil, perfeitamente
nacional, já nem sabia que era filho de mouros. Perto dele, de Pompeu
Accioly, entrei a mexer no relógio do hospital, vagaroso. Vagarosos,
eu e o relógio. O tique-taque se arrastava com preguiça, e a
composição também rolava assim. Duas, três linhas,
suspensão e bocejos. Desviava-me da folha, distraía-me ouvindo
os comentários de Pompeu Accioly ao jogo famoso de Capablanca. Imergia
depois no trabalho, jogava com esforço no papel o homem sem olhos,
máscara de esparadrapo vista na enfermaria dos indigentes, a agonia
da criança, os ferros na autoclave, delírios, a impertinência
do mecanismo roufenho e desconchavado. Francisco Mangabéira, Chiquinho
Égalité, como dizia Gikovate, mudava os discos da vitrola. Os
irmãos Cunha respondiam a consultas de Hermes Lima. O professor Leônidas
Resende, inerte e silencioso, escondia-se debaixo do lençol e do sorriso
cortês e frio. Amadeu Amaral Júnior, descoberto e quase nu, ressonava.
A composição me trazia enorme cansaço, deve ter rolado
bem uma semana. De quando em quando emperrava. Certa manhã, depois
do café, esbaforia-me nela enquanto em roda se espalhava uma desordenada
mistura de conversas. Com a mão a pesar-me no ombro, Agildo Barata
seguia a escrita.

– Isto é contra mim? disse alguém.

Suspendi a tarefa, divisei a figurinha do major Nunes junto à mesa.

– Não, não vale a pena. De repente chegam as transferências
e perco a minha literatura sobre cadeias. Já me aconteceu isso duas
vezes. Estou arrumando coisas inocentes.

– Esteve aqui um sujeito. Fulano. Conhece? Filho da puta. Em poucos meses
conseguiu liberdade e atacou-me num livro. Esses jornalistas são uns
filhos das putas.

– O homem andou com acerto, respondi. É o que vou fazer quando estiver
solto. Não há lá fora o risco de nos tomarem os originais.

O velho riu grosso. E, falando sério: – Como é que você
pode escrever no meio deste barulho, o Agildo pendurado num ombro? Saiu, voltou,
chamou-me à saleta, abriu uma porta vizinha a escada, introduziu-me
numa oficina de encadernação. Todas as mesas estavam ocupadas,
máquinas e operários moviam-se ruidosos.

– O serviço acaba às três horas, explicou major Nunes.
Traga para cá os seus troços à tarde. Chame um faxina,
mande fazer café no maçarico, tranque-se. Ninguém o incomoda.
Fica em sossego até a noite.

Agradeci. Boa idéia. Mas despedi-me inquieto. E a inquietação
muitas vezes reapareceu no futuro. Ser-me-ia possível, recebendo o
favor e os sorrisos, ver com imparcialidade aquela personagem? Se tentasse
descrevê-la, talvez propendesse a exagerar-lhe a benevolência.
Parecia-me injustà a acusação do jornalista, embora não
a tivesse lido. Isso me perturbava, levava-me a buscar refúgio em pensamento
oposto, dizer a mim mesmo que um funcionário da polícia nenhum
obséquio nos fazia em ser lhano e com certeza se mos trava generoso
para amolecer-nos, comprar-nos. Inclinava-me então a escusar a dureza
do jornalista. Se exibíssemos ao público as amabilidades imprevistas,
acabaríamos por tornar a cadeia um lugar desejável, mostraríamos
conivência infeliz com os nossos opressores. Da vaga narrativa que me
flutuava no espírito resolvia-me a afastar uma bondade suspeita. Reconsiderei-
a falta de sinceridade estragaria sem dúvida a história. Afinal
o bom trato que me concediam ressaltava os dias intermináveis de jejum,
o sono curto no chão molhado, a ficha amarela, as grosserias de selvagens
bêbedos. Impossível esquecer o porão do Manaus e a Colônia
Correcional. Achava-me doente, arrasado, vivia com uma teimosa resistência.
O guarda zarolho confessara abertamente o desejo de matar-nos. A oferta do
major, as xícaras de café e a paciência do velho Marques
não eliminavam esse desígnio sinistro. Nem atenuavam sérias
amolações que ali existiam, apesar de estarmos agora em ambiente
civilizado. Era penosa a convivência inevitável com pessoas diferentes
de mim; certas opiniões afligiam-me; a voz áspera de Amadeu
Amaral Júnior intensificava-me as dores. E atenazava-me o receio de
voltar à Colônia, viajar outra vez no porão do Manaus.

Duas semanas, ausentes os encadernadores, ia isolar-me na sala atravancada,
apossava-me de uma banca pulverosa e embrenhava-me a custo em sofrimentos
velhos. Findei o “Relógio do Hospital” e o desvario que me
desdobrara. Iniciei o terceiro conto. Mas esse era lastimoso e pingava com
extrema dificuldade. Realmente a composição marchava sem dar-me
interesse; absorvia-me nela para livrar-me das conversas tumultuosas, de confidências
e planos insensatos Desânimo. Pouco provável quererem os jornais
brasileiros aceitar-me a colaboração. Restava-me passar os contos
a minha mulher, pedir-lhe que os datilografasse e enviasse a uma revista argentina.
Pagar-me-iam setenta e cinco pesos por eles.

5

AS VISITAS se realizavam às sextas-feiras, no Cassino, pavimento superior
de uma casa vizinha à nossa prisão. Embaixo, uma sapataria,
de rendimento escasso. Perto, a alfaiataria, dirigida pelo Sousa, um tipo
digno em excesso. Metido na roupa ignominiosa, onde as listras, muito lavadas
com ácido cítrico, desmaiavam, tinha a grave compostura de um
negociante próspero; e exibia um desinteresse na verdade estranho naquele
meio. Os faxinas me pareciam gananciosos, estavam sempre a receber pequenas
gorjetas. Com vergonha de apresentar no Cassino a roupa machucada, suja, um
rasgão considerável no forro do paletó, pedi ao alfaiate
que a endireitasse. O homem fez o trabalho e recusou o pagamento.

– Ora essa! teimei surpreso e um pouco humilhado. Faça o favor de
dizer quanto devo.

E estendi-lhe uma nota. Sousa nem a olhou: deu-me as costas, a apresentar
zanga. Sexta-feira, logo depois do café, iniciávamos os arranjos.
Largavam-se os trapos ordinários, amarravam-se gravatas, o barulho
dos tamancos se reduzia, na saleta indivíduos se barbeavam com exagerada
pressa. Melhorávamos o exterior e íamos debruçar-nos
às janelas, examinar o pátio, esperando que algum parente ou
amigo conseguisse avistar-nos antes da hora. Os casais separados viviam a
imaginar encontros de exceção, forjavam-se pretextos engenhosos
para obtê-los. O diretor se deixava engabelar às vezes: — Qual
é a mentira de hoje? Festa de aniversário, viagem, profissão?
A companheira de um oficial ia ao extremo nesses embustes.

– Eu alcanço tudo, confessou em voz baixa na secretaria. O major
é uma banana.

Alguém escutou a frase, e o cochicho infeliz chegou aos ouvidos do
major, que desabafou mais tarde: – Que é que vem pedir? Qual é
a mentira? Você me chamou banana.

A criatura empalideceu e tremeu.

– Pois eu lhe vou provar… tornou o velho furioso. Preste atenção.
Vou provar… que sou uma banana mesmo. Que é que você quer?
Ao meio-dia escancaravam-se os portões, e de longe percebíamos
saias em quantidade e uma algazarra alegre. Poucos homens. Descíamos
rápidos, em alvoroço, passávamos grades de ferro, subíamos
uma escada, entrávamos no Cassino. E os pare! se formavam nas filas
de cadeiras juntas aos muros longos. Esquecíamos o ambiente e resvalávamos
nos casos pessoais; era como se não estivéssemos em público.
Expansões íntimas, beijos, segredos a rolar num burburinho.
Era enervante o ruidoso prazer minguado. Uma linda rapariga se altruçava
a um tenente. Pobrezinha. Casara no mês anterior à desordem,
e só podia ver o marido naquela situação precária.
Suspiros, soluços estrangulados, espasmos lentos.

A pequena distância dos amores incompletos zumbiam conversas ponderadas,
arrastavam-se negócios, projetos realizáveis num futuro cheio
de incertezas. Numa dessas reuniões, a primeira ou segunda em que figurei,
minha mulher apresentou-me alguns livros e uma revista literária. Abri
um volume, Usina, de José Lins, vi uma imprudência: dedicatória
a mim. Além disso o escritor me remetia um desconchavo a lápis
na capa da revista. Bobagem. Rasguei a página, meti-a no bolso, joguei
um conselho: – Diga a José Lins que deixe de ser burro. Dedicar-me
o romance quando eu estava na Colônia foi temeridade, não valia
a pena arriscar-se. E enviar bilhetes é doidice. Se ele quiser falar
comigo, mande um recado por seu intermédio. Coisa verbal, nada de escrita.
Pedacinhos de papel como este, caindo em certas mãos, trazem uma pessoa
para cá. E não nos interessa a companhia de José Lins.

Estive a folhear os outros volumes: novelas estrangeiras oferecidas por
José Olímpio, Mar Morto, de Jorge Amado, a Luz no Subsolo, de
Lúcio Cardoso. Pensei nos meus originais encalhados na tipografia,
pedi notícias: – E essa droga não vai para diante? Ainda em
provas. Diabo. As amostras de ficção nacional pesavam-me nos
joelhos e me traziam desassossego. Estaria o editor com receio de comprometer-se,
perder a tiragem? A infeliz idéia me frustrava o desejo de emendar
os contos: não seriam publicados. E a preguiça tinha desculpa.
Retirei-me num desânimo estúpido. Aquela hora Vergílio
Benvenuto arrimava-se a uma janela, estendia os olhos às visitantes
que regressavam, desapareciam no lusco-fusco além dos portões.
Ficara ali de pijama, a chatear-se, pôr discos na vitrola, remoer lembranças.
Via saias distantes e expandia a irritação numa aspereza segredada:
– Malucos. Excitam-se, excitam as mulheres à toa e vêm deitar-se.
Elas saem para a rua num fogo dos diabos. Precisam corneá-los, está
visto. De quem é a culpa? Deles.

Abandonei o conto chinfrim, meti-me alguns dias na leitura dos romances.
Estranhei ver José Lins afastar-se da bagaceira e do canavial, tratados
com segurança e vigor em obras anteriores, discorrer agora sobre Fernando
de Noronha, onde nunca esteve. Um crítico absurdo o julgara simples
memorialista, e o homem se decidia a expor imaginação envolvendo-se
em matéria desconhecida. Pessoa de tanta experiência, de tanto
exame, largar fatos observados, aventurar-se a narrar coisas de uma prisão
distante. O indivíduo livre não entende a nossa vida além
das grades, as oscilações do caráter e da inteligência,
desespero sem causa aparente, a covardia substituída por atos de coragem
doida. Somos animais desequilibrados, fizeram-nos assim, deram-nos almas incompatíveis.
Sentimos em demasia, e o pensamento já não existe: funciona
e pára. Querem reduzir-nos a máquinas. Máquinas perras
e sem azeite. Avançamos, recuamos – nem sabemos para onde nos levam.
Zanguei-me com José Lins. Porque se havia lançado àquilo?
O admirável romancista precisava dormir no chão, passar fome,
perder as unhas nas sindicâncias. A cadeia não é um brinquedo
literário. Obtemos informações lá fora, lemos
em excesso, mas os autores que nos guiam não-jejua ram, não
sufocaram numa tábua suja, meio doidos. Raciocinam bem, tudo certo.
Que adianta? Impossível conceber o sofrimento alheio se não
sofremos. O começo do livro de José Lins torturava-me. Quase
desejei ver o meu amigo preso. Recusei a afirmação de que a
presença dele não nos interessava. Se ele estivesse conosco,
jogaria no papel com firmeza as nossas almas aflitas, a morte a pingar, dias,
meses, em porões, em cárceres úmidos. Lembrei-me das
palavras de Medina, alguns dias antes da minha viagem à Colônia.
Seria bom eu viver lá, observar aquilo. Engano. Arrasara-me, o espelho
me exibira um vagabundo monstruoso – e as notas arrumadas com lentidão
estavam debaixo da esteira, na cama suja de hemoptises. Esforço perdido.
Não me seria possível reconstituir Gaúcho, Paraíba,
seu Mota, guardas ébrios, o diretor magro, Alfeu a dar pontapés
num molambo de gente. Isso era trabalho para José Lins, retratista
de almas, capaz de movimentar uma sociedade. Senhores de engenho, trabalhadores
do eito, sinhás-moças, negras velhas mais ou menos escravas,
mexiam-se à vontade na obra séria do romancista excelente. Bueiros,
caminhos, árvores e rios, canaviais. E pessoas vivas. Tudo vivo. A
tia medonha, as primas, estavam vivas. E os lugares também viviam.
Agora, comprometido e célebre, dava-nos coisas mortas. Para que, Deus
do céu? A exigência do leitor ou do crítico não
deveria levá-lo a desonestidade. Afastei a palavra dura. Não
era bem isso. Ingenuidade, sim, ingenuidade. Esperávamos dele a experiência.
Surpreendi-me a dizer coisas tolas: – Somos sapateiros. Devemos fazer sapatos,
bons sapatos. Para que fabricar pulseiras e brincos? Sapateiros, bons sapatos.

Os meus sapatos ainda apresentavam nódoas de lama vermelha. Necessário
engraxá-los. Essa mistura me desagradava. Finda a leitura, mandei encadernar
o volume, com a idéia de recolher autógrafos nele. Perdidas
as notas, essas letras me avivariam recordações mais tarde.
Sem dúvida muitos caracteres se diluiriam no tempo, casos miúdos
se esfumariam sem deixar vestígio, mas talvez resistissem as personalidades
fortes, ações firmes, um diálogo, um gesto inesperado.
E iniciei a colheita por Walter Pompeu. Walter agarrou a pena, encheu uma
página de frases amáveis. Folheio agora o livro, e reaparecem-me,
logo no começo, Agildo Barata, Castro Rebelo, Gikovate, Cascardo, Moura
Carneiro, Maurício Lacerda, Karacik. As assinaturas vão até
a folha 257 Algumas são curiosas. A de Moreira Lima hesita e ondula,
quase ilegível; a de Apporelly encerra-se numa oval; a de Francisco
Mangabeira está feita em duas linhas. Consegui mandar o romance ao
Pavilhão dos Primários, e recebi os nomes dos companheiros de
lá, Benjamin Snaider, Rodolfo Ghioldi, Sérgio, Valério
Konder, os dois Campos da Paz, Lacerdão. Realmente numerosas criaturas
desbotam hoje no papel e dentro de mim. Outras surgem com relevo. A folha
249, Agrícola Baptista, o Tamanduá, aparece-me de volta da Colônia,
meio nu, sujo, magro, barbudo, o crânio liso. Um sujeito causoume surpresa.

– Deixe aqui o seu jamegão, Luís.

Luís de Barros pegou o livro, esteve alguns minutos a percorrê-lo,
minucioso, e perguntou com voz dormente: – Para quê? – Ora essa! Quero
guardar uma lembrança de vocês. O homem recusou-se: – Não
topo. Não caio em provocação. Ressenti-me: – Qual é
a provocação? Maluqueira.

– Sou prudente, não sei para que é que isso vai servir. –
Está bem. Não insisto.

Luís de Barros continuou a eximir-se, afetando excessivo receio O
fingimento, dias antes percebido, me enjoava.

– Não devemos confiar em ninguém. É preciso termos
prudência.

Ficou dez minutos a explicar-se, mordendo um sorriso, mastigando as palavras.
Em seguida escreveu o nome com muita clareza na folha 25.

6

AMADEU AMARAL Júnior anunciou-me ruidoso uma novela. Era nisso que
trabalhava à noite. Durante o dia roncava, branco e nu, mordido pelos
percevejos. Erguia-se, arreliava-se à toa, dizia algumas inconveniências,
tornava a deitar-se. Depois das onze mexia-se para um lado e para outro, os
pés enormes batendo os tamancos sujos com grande barulho. Não
dormia nem deixava os vizinhos dormirem. Nunca vi pessoa tão egoísta.
Abeirava-se da mesa, sentava-se num banco, mastigava fatias de salame, escrevia
junto a Nemo Canabarro Lucas, uma estátua curvada sobre o compêndio.

Novela. Resignei-me a escutar a novela; realmente com má vontade,
lembrando-me do conto lido meses atrás no Pavilhão. Naquele
tempo grassava na cadeia uma epidemia literária. Os militares abandonavam
a tática e a estratégia, pendiam para a ficção;
Agildo Barata e Álvaro de Sousa tinham feito romances, na verdade relatórios
sobre a luta no 3.° Regimento. O de Agildo não era muito ruim,
tinha pelo menos um capítulo razoável. A história de
Amadeu Amaral Júnior deixou-me enervado e besta. Não estava
mal escrita – nem bem escrita. Não havia nela um chavão – nem
uma idéia. Pronomes no lugar direito, o pequeno vocabulário
em ordem, nada mais. Uma dessas coisas que nos dão azia e contrações
no diafragma. Que diabo queria Amadeu Amaral Júnior dizer com aquilo?
Finda a leitura, fiquei em silêncio, de cabeça baixa, procurando
um elogio em vão, estúpido. Nunca me comporto assim. No desagradável
papel de juiz em casos de literatura incipiente, reduzo os defeitos e exagero
as coisas boas que porventura existam. Arrisco alguns conselhos, depois me
desdigo posso estar enganado Os principiantes não devem confiar nas
minhas fracas luzes obtidas com vagar no interior e na solidão. Posso
estar em erro. Enfim não sou franco. E é bom não sermos
francos, suponho. Ignoramos as possibilidades da criatura que nos exibe um
trabalho ordinário. Hoje é trôpega e amanhã dá
um salto. Desenvolvemo-nos em saltos imprevisíveis. Aliás os
autores novos querem apenas enganar-se quando nos exigem sinceridade: valorizam
a aprovação infalível, não têm força
para andar e buscam arrimar-se numa autoridade imaginária. Se fôssemos
honestos, zangar-se-iam. Fizeram obra excelente e desejam que afirmemos isto.
A novela de Amadeu Amaral Júnior deixou-me em horrível constrangimento
Vazia e de vacuidade contagiosa. A minha frieza levou o rapaz à cólera.
Já se havia comportado assim no Pavilhão, ao mostrar-me o conto
Era um escritor, e as opiniões dos outros não tinham para ele
nenhuma importância. Era um escritor. Causava-me desgosto a repetição
burlesca e estridente; não me aparecia o mínimo desejo de oferecer
ao moço uma generosa mentira. A vaidade inconcebível mantinha-me
em reserva hostil. Uma dúvida me chegou: seria a composição
que me desagradava ou o homem? A voz áspera me arranhava os ouvidos
como lixa, era-me impossível ouvi-Ia sem irritar-me, e isto me prejudicava
o julgamento. Considerava-me injusto. A novela não prestava, mas talvez
não fosse tão má como eu supunha. Apesar disso, a impressão
ruim permaneceu e afastou-me da criatura que se gabava. Um escritor. A pimponice
ridícula me aborrecia. Perfeito exemplar da raça nórdica,
superior. Olhos azuis, músculos rijos, pés enormes nos tamancos
sujos, barulhentos. E era aquilo: nem me dava a oportunidade comum de largar,
condescendente, alguns adjetivos malucos.

Fui refugiar-me no fim da sala, na firmeza do mosaico, perto do altar. O
soalho instável fazia-me pensar no porão do Manaus. E as palavras
de Amadeu Amaral Júnior agravavam-me as dores, feriam-me, entravam-me
nos ossos como pregos. Os meus ossos decompunham-se; esta miserável
impressão continuava a perseguir-me; ia mudar-me numa trouxa bamba,
sem esqueleto. Agora já não era preciso mexer-me em pranchas
movediças; pisando terreno firme, consolidava-me um pouco. Maurício
Lacerda riscava sem descanso as páginas da brochura. Sentado à
mesinha redonda, Apporelly arrumava cartas. Homem capaz, não se resolvia
a parir o excelente livro que tinha na cabeça, desperdiçava
as longas horas consultando o baralho. Ainda uma vez considerei-me injusto,
desarrazoado. Como julgar boa a obra de Apporelly, ainda não escrita?
Devia ser boa. Possibilidade, probabilidade. A de Amaral era horrível,
não porque estivesse mal escrita, mas porque não tinha nada
no interior. Havia-me sujeitado a ouvi-Ia sem atenção, predisposto
a julgá-la ruim E inclinava-me a supor que a obra de Apporelly fosse
magnífica, obra ainda vagamente planeada. Pensamentos anteriores, dois,
três anos anteriores às tábuas carunchosas, davam-me a
certeza de que ele faria, se quisesse, coisa séria. Surpreendi-me a
comparar essa coisa séria, nebulosa, com outra realizada, a história
chinfrim de Amadeu Amaral Júnior, ouvida com desgosto. Achava-me a
comparar trabalhos inexistentes, alargava-me em opiniões sobre eles.
Como estabelecer a comparação? E enraivecia-me ver Apporelly
gastar precioso tempo no exame de cartões pintados e Amadeu consumir
noites em cima dos cavaletes, enchendo papel com tolices, mordendo fatias
de salame e aperreando Nemo Canabarro Lucas, embrenhado na matemática.

7

WALTER POMPEU cortou-me o almoço e o jantar. Sentava-se à minha
direita, na primeira mesa. E, percebendo o horror que me inspira o homossexualismo,
iniciou um jogo desonesto no refeitório. O horror se atenuava naquele
meio; a relatividade moral se impunha, era absurdo pretender que indivíduos
sujeitos anos e anos ao regime carcerário procedessem como pessoas
livres. Necessário justificá-los. Mas isso ficava em explicação,
e afastava-me dos corpos imundos com excessivo nojo. Esforçava-me por
vencer a repugnância. Poderia dizer onde estava o normal, o anormal?
Certo dia, barbeando-me na saleta, vi no espelho o mulato Pernambuco, faxina,
em namoro com um rapazola penteado e lânguido. Pernambuco acendia os
olhos, cofiava os bigodes, um sorriso largo a espalhar-se em toda a cara;
o outro, encostado a uma janela, cruzava as mãos no peito, inclinava
a cabeça, afetando maneiras pudicas e virginais. O safadinho percebeu
que estava sendo observado e entrou a fazer sinais ao amigo, apontando-me.
Nessa altura Moreira entrou, viu a manobra e desatinou: – Cachorro, sem-vergonha.

0 casal escapuliu-se, desceu a escada.

– Ora essa! intervim. Para que esses excessos? Não há motivo.

– É um sem-vergonha, insistiu o guarda. Tentei defender o rapaz.

– Não é ele só. Qual é a proporção
dos pederastas aqui? – Nem sei. Uns noventa por cento, mais ou menos. – Então?
Quase tudo.

– Mas esse é um porco. – Tudo é porcaria.

– Não senhor. A porcaria desse é pior que as outras. A severidade
me surpreendeu. Moreira admitia o principal e recusava a minúcia. Afinal
o procedimento daqueles indivíduos explicava-se pela necessidade, mas
seria preciso imaginar que também os atos do garoto, julgados porcos
sem nenhuma explicação, deviam constituir uma necessidade para
ele. Comentei isso com vários companheiros, esforçando-me por
desculpar os infelizes e sem poder ocultar uma profunda aversão. Gikovate
admirava-se. Não estava provado que Pernambuco e os outros fossem infelizes.
E o nojo violento era absurdo: eu dava a impressão de inocentá-los
e condená-los. Distanciando-me deles, o normal seria conservar-me indiferente.
Walter Pompeu tirou vantagem das minhas disposições contraditórias.
Abancava a meu lado e, antes de iniciarmos a refeição, indicava
o moço que nos servia: – Olhe a cara do Aleixo. Coitado, é um
infeliz. Você tem razão.

Ficava um instante a comiserar-se, hipócrita. E, em seguida: – Você
tem coragem de comer isso? Vou jurar que os talheres estão sujos de
esperma.

Rosnando impropérios, desviava-me do. prato, nauseado: – Canalha.
Filho de uma puta.

Walter ria como um doido. Consumia voraz a ração, depois se
apoderava da minha. Tentei localizar-me noutra mesa, Walter ameaçou
acompanhar-me. E a mudança não valia nada, explicou: todos os
copeiros eram como Aleixo. Essa brincadeira se fazia uma, duas vezes por semana.
Erguia-me zangado, voltava à sala; a zanga desaparecia logo: ao cabo
de meia hora a pirraça de caserna me causava riso. Atraía-me
na verdade aquele espírito alegre, de uma alegria ruidosa e inconveniente,
amigo de provocações ingênuas e engraçadas. De
ordinário só se aproximava de mim para dizer qualquer coisa
desagradável. Expandia-se, azuretado e sonso – Aqui você está
bem. Amigos, gente da sua classe, muitos literatos: Leônidas, Castro
Rebelo, Hermes, Gikovate, Apporelly, está bem. Mas não demora.
Com certeza vão mandá-lo de novo para a Colônia. Isto
é uma suspensão. Vai ganhar força para morrer devagar.
A comida é boa. Indignava-me: – Tenha vergonha. Como fala em comida,
se me toma o prato e me deixa de estômago vazio? Preciso alimentar-me,
Walter, estou arrasado.

Walter fingia condoer-se: – É o diabo. Afinal você engordou.
Não come porque tem nojo do Aleixo. Mas está bem. As conversas
do Castro, seu vizinho, são magníficas, aprendemos com elas.
Sabe o que ele me disse? Aqui todos têm derrapagens sexuais. A sua.
..

– Qual é a minha, Walter, na opinião de Castro Rebelo? Sou
homossexual? – Não. Ele acha que você é um depravado com
mulheres. Admite excessos horríveis.

Atirava palavrões cabeludos: – Foi o que ele me disse – Espere, Walter,
interrompi quando o oficial me falou assim pela primeira vez. Vou tirar isso
a limpo.

E avizinhei-me de Castro Rebelo. Nas pausas das minhas dores, entretivera-me
a falar com ele a respeito das anomalias existentes na cadeia. Os atos me
pareciam anômalos por exercer-se entre indivíduos do mesmo sexo,
mas se se realizassem entre pessoas de sexo diferente, não seriam anômalos.
Castro concordara. E não buscamos razões para isso. Dias depois,
num grupo, havíamos tocado o mesmo assunto. Eu sustentara a idéia,
contra a opinião geral. Castro me apoiara: – “Sem dúvida.
Num dos casos existe desvio de sentimento; no outro surge um sentimento novo.”
Não era o que eu pensava: esquecia-me dos sentimentos. Apenas o contato
de homem me produzia enjôo. O hábito nacional de nos abraçarmos
de leve é o simples aperto de mão me davam desgosto. Ao sentir
nos dedos um ombro suado, retraía-me cheio de asco: precisava lavá-los.
Contudo o suor da mulher me excitava e envolvia Recordava-me da nossa palestra,
chegando-me a Castro Rebelo.

– Muito obrigado. O Walter me transmitiu agora a sua classificação.
Disse onde o professor me colocou. Podia ser pior.

Castro Rebelo fechou a cara: – Isso é mentira de Walter. Não
falei no seu nome. Walter é um potoqueiro.

E, noutro tom: – Aliás o senhor não nega. Afastei-me rindo.

– Vão mandá-lo para a Colônia, insistia Walter Pompeu.
Esteja certo. Quando melhorar, embarca para a ilha Grande. Ou para Fernando
de Noronha, num porão.

– Bobagem. Não tenho processo.

– Com processo, havia a esperança de ser absolvido. Como está,
não há jeito: vai para a ilha Grande. Punha-me a refletir: –
É. Talvez seja o nosso fim.

– Nosso uma ova. O seu, o dos outros paisanos. Eu sou oficial do exército.
Comigo não mexem.

– Nessa pilhéria há realmente uma convicção,
um engano. Vocês, milicos, são incorrigíveis. Guardam
a prosápia que tinham na caserna.

Essas fumaças iam dissipar-se em breve, mas por enquanto os militares
ainda não se julgavam demitidos. Vestiam fardas, e nas assinaturas
deixadas no romance, dias atrás, muitos haviam conservado os postos:
capitão Moésia Rolim; José Gay da Cunha, segundo-tenente
de aviação; Álvaro Francisco de Sousa, capitão
do Terceiro Regimento, na Praia Vermelha; capitão José Leite
Brasil; Joaquim Santos, segundo-tenente do Exército Popular Nacional
Revolucionário. Certamente alguns esperavam tornar ao serviço.
A chegada de Sócrates Gonçalves esfriou-os um pouco. Sócrates
nos apareceu magro e sujo, com os punhos feridos: viajara muitos dias em caminhão,
os braços amarrados. Contou-me a sua pequena aventura chinfrim. Conseguira
passar a fronteira e fora agarrado no Paraguai. Recebendo ordem para varrer
a prisão, recusara-se, digno. Tinha graça um oficial do exército
brasileiro servir de faxina à polícia de um país vagabundo.
Suportara uma chuva de pancadas e resolvera abandonar a resistência,
pegar a vassoura.

– Eu andava cheio de preconceitos idiotas, explicou-me sério. Julgava-me
capitão. Deixei essa fantasia e varri.

Estávamos na calçada estreita do refeitório, à
sombra de uma árvore, olhando o pátio exíguo, onde uns
vinte rapazes faziam ginástica. A direita, o muro alto; à esquerda,
nas celas, um fervilhar de cortiço. As grades não se fechavam
durante o dia, e gente se movimentava sem cessar, dos cubículos para
a Sala da Capela. A escada velha se abalava com forte rumor, só à
noite repousava. Concluída a narrativa, Sócrates examinou o
muro, atento, como se o quisesse medir; deteve-se um instante nos cubículos,
na porta que nos separava da Casa da Ordem; voltou a correr o muro com a vista;
mergulhou os dedos na barba ruiva, muito crescida: – Precisamos arranjar meio
de sair daqui.

A barba o disfarçara algum tempo, era uma espécie de máscara.
Mas não servira: Sócrates estava preso e varrera uma prisão
no Paraguai.

– Ah! Preciso fugir. Não fico, não me submeto. Preciso fugir
de qualquer modo. Já pensou nisso? – Fugir? Não. Como? Não
pensei. Fugir como? Pretende escalar este muro? – Não pretendo coisa
nenhuma. Não. Mas de qualquer modo tenho de sair. Você tem processo?
– Não. Sou um pobre-diabo.

– Por isso fala assim. Mas eu vou agüentar pena dura. Preciso fugir.
Qual é o meio? – Sei lá. Nunca pensei na fuga. E lá fora
as coisas estão piores que aqui. Na opinião dos nossos companheiros,
o único lugar onde existe um pouco de liberdade é a cadeia.

Viver uma pessoa a esconder-se, com medo, sem achar trabalho, é horrível.

Sócrates não se convenceu.

– Tenho de sair de qualquer jeito.

Era uma idéia fixa: durante semanas voltou a ela várias vezes.
Uma sexta-feira entrou no Cassino, mudado, quase irreconhecível: trajava
à paisana e tinha raspado a cara.

Esteve a conversar com a mulher. A hora de se despedirem, deu-lhe o braço
e retirou-se como um dos outros visitantes. Passou diversos portões.
A marosca se evidenciou na secretaria, e Sócrates foi encafuar-se no
cubículo. Mas esse desastre não lhe matou os planos de evasão.

8

DURANTE o dia achava-me quase bem, chegava a esquecer as dores, mas a friagem
da noite me aluía, renovava o pensamento infeliz de que os ossos se
decompunham. O receio de incomodar os vizinhos arrastava-me à saleta,
jogava-me à espreguiçadeira. O velho Marques, áspero
e enrugado, não perdia a paciência.

– Vai ficar bom, afirmava enrolando-me as pernas, oferecendo-me a xícara
de café.

Aproximava a cadeira, repetia a vida de criminosos importantes e a disciplina
antiga.

– Não vá julgar, disse-me, que estou aqui ajeitando as suas
pernas porque tenho bom coração. É engano. Faço
isto por interesse.

– Que interesse tem o senhor? perguntei surpreso. Não tenho nada
para lhe dar.

– Hoje não tem. Mas eu sei lá se o mês vindouro o senhor
vai ser ministro? Esse disparate fazia-me rir e esquecer o sofrimento: – Que
idéia foi essa? – Tenho trinta anos de serviço e vi muita coisa.
Dr. Fulano e dr. Sicrano, figurões no governo, foram nossos hóspedes.
Amanhã rebenta uma revolução e o Ministério sai
daqui. Se o senhor for ministro…

– Isso é um absurdo, seu Marques. Sou pequeno domais e nenhuma revolução
me eleva.

– Não sei. O Ministério pode sair daqui.

– Mas eu estarei longe dele, homem de Deus. Olhe que dormi nas esteiras
da Colônia Correcional, entre vagabundos e malandros. Jogaram-me na
Sala da Capela por acaso.

– Não sei. Ignoro a sua vida, e é bom não me falar
nela, que não lhe faço perguntas. Se chegar a ministro… A
teimosia causava-me hilaridade.

– Perfeitamente, insistia o funcionário grave. Se chegar, hei de
ter precisão de um favor seu. E o senhor se lembra desta conversa e
diz: – “O velho Marques, quando eu estava doente na Sala da Capela, me
dava algumas xícaras de café. Não é mau sujeito.”
Já vê que tenho interesse. Uma reflexão desalentou-me
o riso. O guarda realmente desconhecia as minhas possibilidades, mas enxergava
ali uma loteria e era amável com todos nós, esperando acertar
num bilhete premiado. Tinha razão. Numa reviravolta política
Hermes Lima, Castro Rebelo e Cascardo recuperariam talvez a importância,
poderiam ser úteis a Marques. A excelente criatura ignorava isso e
era amável com todos: – “Se o senhor chegar a ministro…”
Expandia-se: – Não sei nem quero saber da sua vida. E não lhe
vou fazer perguntas, que não mereço confiança, é
claro: sou da polícia. Não me diga nada. Se eu souber qualquer
coisa, sou obrigado a falar. Aceite o conselho de um homem da polícia.
Feche-se, esconda-se. Se tem alguma culpa, não deixe escapar uma palavra.
Desconfie de todos. De mim, dos outros guardas, dos.faxinas. O senhor está
cercado de espiões. Mas desconfie principalmente dos seus companheiros.
Todos os dias sai daqui um relatório dizendo o que os senhores fazem.
Um relatório, compreende? Eu sou o portador. Hoje pela manhã,
ali na mesa dos jornais (indicou as tábuas onde Nemo Canabarro Lucas
estudava matemática e Amadeu Amaral Júnior comia salame e redigia
a novela chinfrim), o senhor levantou o braço e fechou o punho aos
homens do banho de sol, na Casa de Detenção. Lembra-se? Lembrava-me.
Depois do café, interrompendo a leitura dos jornais, entretivera-me
a olhar o terraço familiar, a ginástica, esforçando-me
por distinguir rostos conhecidos: Surgira a batina de um padre. Diabo. Tinham
levado para ali até padres. Que estupidez! A reação estava-se
prejudicando. Vozes confusas. Cem metros, duzentos metros. Impossível
determinar a distância. Percebiam-se as figuras, pedaços de figuras
que se misturavam. Campos da Paz Filho evidenciava-se por causa da gordura
do vulto enorme; o resto era massa indistinta. Um sujeito, por detrás
do eclesiástico, entregava-se a uma pantomima, fazendo cruzes no ar
e batendo nos peitos. Homens gritavam erguendo os punhos. Da mesa dos jornais
alguns responderam com o mesmo gesto.

– Lembra-se? – Mais ou menos. Devo ter levantado o braço.

– Pois isso foi contado no relatório de hoje, disse Marques. Eu não
estava de serviço àquela hora e não podia adivinhar que
o senhor tinha feito sinais à gente do Pavilhão.

Soube à tarde, quando li os papéis. Não lhe disse que
sou o portador? Já vê que tenho motivo para lhe dar conselho.
Esteve um minuto em silêncio, depois acrescentou: – E se eu lhe dissesse
quem manda esses relatórios, o senhor nem acreditava. Nenhuma suspeita.
É isto. O senhor se abre com um amigo, e o que diz vai direitinho à
polícia.

Realmente não me abria: era-me impossível qualquer revelação,
pois me faltavam segredos. E em geral as conversas me chateavam. Sucedia darem
às minhas palavras sentido estranho, responsabilizavam-me com freqüência
por idéias absurdas. Se tentava explicar-me, envolvia-me num cipoal
de equívocos. Além disso não havia jeito de habituar-me
à gíria dos rapazes que ainda viviam com um pé na caserna
e juntavam peças de roupas civis e fardamentos. Referindo-se a cérebro,
falavam em crânio. E tiravam daí um verbo estapafúrdio,
craniar, equivalente a estudar. Apareciam-me em grupos, atentos, rabiscando
pedaços de papel, craniando assuntos obscuros em debates cochichados.
As vezes se elevava do burburinho uma aprovação enérgica:
– “Batatal. Craniou batatalmente”. Essa linguagem feria-me os ouvidos
e afastava-me dos militares. A erudição de Castro Rebelo me
causava medo, e talvez se haja associado às minhas dores para retirar-me
da cama, jogar-me à saleta.

No meio heterogêneo, cheio de expressões técnicas e
frases obscenas, raros indivíduos me prendiam a atenção.
Agradava-me escutar os gracejos de Apporelly, fragmentos das viagens longas
do bacharel feroz, projetos literários de Hermes Lima. Também
me dava prazer a fala engrolada, rápida, baixa, de Gikovate. O judeu
passava os dias a ler, os óculos de míope juntos à página.
Preso às idéias gerais, esforçava-se por não deformar
um pensamento. A exatidão rigorosa era motivo para ele de longos rodeios:
não queria enganar-se. A minha ignorância revoltava-o. Abria
um livro, rolava um português áspero, gutural, abundante em rr.

– Leia em francês, Gikovate. Para que esse esforço? Leia como
está no papel.

Gikovate não ligava importância ao conselho e traduzia. Se
lhe faltava a expressão, largava pedaços na língua estranha,
sem se deter, e prosseguia num português avariado, misturando polaco,
alemão, francês, inglês, o diabo. A fala pegajosa ligava-se
às minhas orelhas, fazia-me cócegas. Finda a exposição
multilingüe, o homem se estendia em comentários minuciosos. A
palestra do judeu proporcionou-me censuras; notei em redor frieza e hostilidade,
enfim percebi que me consideravam trotskista. Esse juízo era idiota
e não lhe prestei nenhuma atenção. A vaidade imensa de
Trotski me enjoava; o terceiro volume da autobiografia dele me deixara impressão
lastimosa. Pimponice, egocentrismo, desonestidade. Mas isso não era
razão para inimizar-me com pessoas que enxergavam qualidades boas no
político malandro. A opinião delas, nesse ponto, não
me interessava. Nunca tentei coagir-me, transigir. Desviava-me da personagem
desagradável, impertinente, buscava matéria que não me
irritasse.

Expressava-me em voz alta, não era preciso ocultar-me; os bons desejos
do velho Marques perdiam-se. O autor do relatório me examinaria sem
proveito. A curiosidade me verrumava. Quem seria o autor do relatório?
Não sou curioso. E durante meses certos indícios me traziam
quase a certeza de achar-me entre espiões. Agora não havia indício:
ofereciam-me coisa concreta, e um sujeito me dizia: – “Olhe que eu sou
o portador.” Sem dúvida. Quem teria escrito o relatório?
Era bom não saber, mas a pergunta me espicaçava. Quem se teria
sujado naquela infâmia? Com certeza um dos tipos que escorregavam como
sombras, paravam junto às camas, sornas e bestas na aparência,
o ouvido à escuta. As histórias simples de Moreira Lima, as
brincadeiras de Apporelly, os planos literários de Hermes, as divagações
de Gikovate não lhe haviam fornecido nenhuma indicação.
Mas o movimento feito pela manhã junto à mesa dos jornais mencionava-se
à tarde. Castro Rebelo me dissera: – “O senhor está entre
os maiores filhos das putas deste país.” A generalização
era absurda. Entretanto havia alguns. Havia pelo menos um. Quem seria? A pergunta
voltava, embora me esforçasse por arredá-la. De fato seria um
desgosto conhecer aquele miserável.

9

VOU ARRANJAR-LHE um bom lugar para escrever em sossego, disse-me o diretor
uma noite. Aqui você não melhora. É necessário
tratar-se.

No dia seguinte, depois do café, levaram-me à enfermaria,
recinto acanhado, onde cubículos formavam círculo em torno do
banheiro, ordinariamente sem água, como notei de pois. Demorei-me numa
saleta, chamaram-me ao consultório médico e um rapaz taciturno
examinou-me, prescreveu injeções de vitamina e estricnina. Mas
não havia essas drogas na farmácia: era preciso que eu mandasse
comprá-las. Essa exigência indignou-me. A encrenca nas pernas
tinha-me aparecido em conseqüência do jejum na Colônia; não
me achava preso por gosto e julgava descaramento forçarem-me a gastar
dinheiro com remédio. Aperreei-me, aludi a isso por meias palavras.
O moço não quis entender: a farmácia estava desprovida.
Resignei-me, furioso: encomendaria sexta-feira à tarde as malditas
ampolas a minha mulher.

Saí, desemboquei na praça redonda, fui observar uma segunda
entrada, oposta à saleta, duas grades a limitai um pequeno vão.
No futuro aquele exagero de segurança espantou-me. Descerrava-se a
grade externa, fechava-se, abria-se a interna, de novo se trancava, e o guarda
surgia tilintando chaves. Precaução idiota num asilo de enfermos
incapazes de fuga. Na Sala da Capela homens válidos, desejosos de escapar-se,
iam e vinham à vontade. Encaminharam-me ao cubículo, o sétimo,
se não me engano. Uma cama de ferro, uma banca, um tamborete; ao fundo
o lavatório e a latrina. Enfim, depois de tantos meses atribulados,
senti o prazer de achar-me só; já não me pulverizava,
misturado a outras pessoas. As celas vizinhas estavam fechadas e silenciosas.
A distância, além do banheiro, no semicírculo feito entre
as duas passagens fronteiras, soavam gemidos, palavrões, tosse rouca.
Estive horas a reler, a emendar os contos. Os primeiros, observações
do hospital, não eram muito ruins. O terceiro, a minha cólera
impotente de testemunha num processo, ao ser interrogado por um bacharel malandro,
ainda não estava concluído. História péssima.
Em dez linhas terminei-a.

– Almoço, gritaram perto.

Onde? No refeitório comum, a sala estreita e longa, bancos sujos
ladeando cavaletes. Para lá me dirigi claudicando, fui sentar-me ao
pé de Walter, risonho e provocador: – Não tem nojo de pegar
nesse talher sujo de esperma? Sumiu-se o apetite. Miserável. Arrastara-me,
transpusera diversos portões – e, ao sentar-me diante das pranchas
nuas, lá vinha a lembrança torpe: louça imunda. Aleixo
não lavava as mãos. Sempre aquilo. Mas antes o meu esforço
era pequeno: descer, subir uma escada. Agora andava duzentos metros, capenga,
sentava-me, repelia a comida cheio de náusea. O estômago vazio
revoltava-se. Com os ossos a desfazer-se, precisava alimentar-me – e o vizinho
me desviava do prato, devorava faminto a minha ração. Nunca
a luta pela vida me pareceu tão feia e tão dura. Risonho, a
pilheriar, Walter matava-me. E era impossível zangar-me com ele, estabanado,
alegre, de uma alegria insensata porque andava a anunciar-nos desgraças.
Referia-se vaidoso a um livro que fizera: Ceará Moleque.

– As pontas da vanguarda… gritava Rollemberg na mesa próxima.

Cochichos de trotskistas pouco adiante, repulsa ao otimismo do capitão.
Ceará Moleque, título esquisito. Repugnância e fastio.
Vida porca. Movera-me uns duzentos metros. Para que andar tanto? Recordação
dos caminhos enlameados nos montes negros da ilha Grande.

As pernas arrastavam-se a custo. Novamente no cubículo da enfermaria.
A porta era uma chapa de ferro e tinha uma abertura a metro e meio do solo,
vigia de vinte centímetros, pouco mais ou menos. Por aí me podiam
fiscalizar de fora. A despesa exigida pelo médico ia desequilibrar-me
o orçamento. Sangria razoável, na infeliz situação
em que me achava. Necessário publicar os contos. Afirmava isto num
desânimo completo, estirado na cama, as pernas frias envoltas na manta
de lã grossa, olhando com desgosto os papéis abandonados em
cima da mesa. Não me decidia a retomá-los, continuar as emendas
iniciadas pela manhã. Numa transferência, ver-me-ia coagido a
atirá-los na água, escondê-los debaixo de uma esteira.
Julgava-me imprevidente, mas os braços estavam pesados e a cabeça
deserta. A míngua de recursos atenazava-me e não me dava nenhum
estímulo. Via-me reduzido a oferecer ao Coletivo dez tostões
por semana, a décima parte da contribuição dos primeiros
meses. O receio de que se puísse o fundilho da calça torturava-me.
E deixara de comprar cigarros: resolvera-me a adquirir mortalhas e pacotes
de fumo barato na vendinha estabelecida por um preso comum junto à
Casa da Ordem.

Tentei dissipar a morrinha, ergui-me com dificuldade, peguei o tamborete,
fui acomodar-me à porta. A dois ou três passos, um sujeito moreno,
pálido e magro se abatia, sentado no chão, as costas arrimadas
à parede. Puxei conversa, para matar tempo. O homem limitou-se a dar
resposta às minhas perguntas, a voz baixa, vagarosa, entrecortada por
acessos roucos de tosse. Respirava mal e parecia economizar força;
espalhava em torno olhares vagos, indiferentes; sem dúvida tinha preguiça
de falar. Chamava-se Vitorino. Levantou-se, foi a um cubículo afastado,
ao cabo de minutos exibiu-me vários objetos de chifre: pulseiras, botões,
caixas, enfeites miúdos.

– Não quer comprar? – Sim, vou ficar com uma lembrança de
vocês. É trabalho seu? Vitorino fez um gesto de afirmação
triste Escolhi uma espátula grosseira e romba.

– Quanto custa? – Dois mil-réis.

Fui deitar a lâmina entre as páginas de um volume, abri o porta-níqueis.
Vitorino recebeu a moeda, rosnou um agradecimento e retirou-se com as bugigangas.
A tarde um velho robusto, de farda a esgarçar, com remendos, a cabeleira
magnífica, uma bela pasta de algodão, anunciou-me o jantar.
E vendo-me em desalento, a encolher-me, insistiu amável e risonho.

– Obrigado. Não tenho fome.

Impossível andar duzentos metros. O guarda velho afastou-se, as horas
correram. Um rapaz vermelho passou a pequena distância, assobiando forte,
seguro aos varais de um carrinho de mão. Ignoro por onde entrou, por
onde saiu. O frio aumentou, as minhas desgraçadas canelas se entorpeceram,
a sombra caiu dissolvendo-me os ossos. Consegui mexer-me, sair dali, estender-me
no colchão, bambo, invertebrado. Enrolei-me na manta escura de lã;
os dentes chocavam-se, batendo castanholas. Hora do chá.

– Não. Muito agradecido.

Rumor lá fora, vozes femininas. O guarda velho veio trancar-me, disse
que duas mulheres tinham chegado. Nem procurei saber os nomes delas. A chapa
de ferro obstruiu-me a sepultura e a escuridão me envolveu, quebrada
apenas pela estreita faixa de luz procedente da vigia. Exaustão. Um
sono doloroso agarrava-me, partia-se e nos intervalos freqüentes dele
chegavam-me gemidos, queixas, um coro forte de tosses.

10

DESPERTARAM-ME os chilros dos pardais, assobios e o rumor forte de rodas
em solo pedregoso. Esses ruídos vinham do exterior; no pequeno recinto
circular havia silêncio. Com certeza o rapaz que na véspera assobiava
e impelia o carrinho de mão já começara o trabalho. Os
pássaros se esgoelavam num barulho dos diabos.

Ergui-me, avizinhei-me da pia. A fraqueza e o desânimo tinham diminuído
um pouco. Ao findar a escovação e a lavagem, ouvi passos, tinir
de chaves, lingüetas a ranger nos encaixes. A chapa de ferro se descerrou,
e achei-me fora, arriado no tamborete, as canelas nuas expostas ao sol minguado,
uma folha de papel sobre a mesinha onde a tinta branca rachava e descascava.
Escrevi algumas palavras.

Um homem de zebra chegou-se com um tabuleiro, esperou que eu bebesse um
caneco de leite, o café enjoativo e adocicado, retirou a louça
e foi servir outros doentes. Aparecera-me um esboço de conto, mas não
havia jeito de se fixarem as idéias, a atenção desviava-se
da tarefa no ambiente novo, os dedos emperravam na segunda linha. A certeza
de haver feito uma história chinfrim me perseguia e desencorajava;
nenhum desejo de realizar outra. Apesar disso, obstinava-me em desenferrujar
os miolos resistentes. Necessário mandar qualquer coisa aos jornais.
Quereriam aceitar-me a literatura chocha? O último cubículo,
junto à porta do fundo, se abriu; Nise da Silveira e Eneida, minhas
conhecidas da sala quatro, saíram. Um minuto depois, abancados à
mesa, resvalávamos em camaradagem a narrar os nossos achaques. Eneida
estava com os intestinos em cacos, o alimento ruim na Casa de Detenção
arrasara-a. Nise tinha um desarranjo nervoso, conseqüência provável
dos interrogatórios longos. A timidez agravava-se, fugia-lhe às
vezes a palavra e um desassossego verdadeiro transparecia no rosto pálido,
os grandes olhos moviam-se tristes. Recordei-me do nosso encontro meses antes.
Ao chegar ao Pavilhão, vira-me em atitude burlesca diante de Nise,
trepado a uma janela, agarrando-me a varões de ferro. Dois metros abaixo,
além de uma grade, ela me pedia notícias de Alagoas. O assunto
se esgotara logo e um constrangimento horrível nos prendera. Estávamos
agora à vontade. A barba crescida, os tamancos e o pijama curto já
não me vexavam; habituara-me ao desleixo, só me lembrava de
raspar a cara uma vez por semana, às sextas-feiras. Vendo o lápis
e o papel, as moças quiseram retirar-se. Declarei-me estúpido
em excesso e pedi-lhes que ficassem, contente por achar motivo para esquivar-me
ao dever maçador. O guarda naquele dia era um português moreno,
de feição obtusa; passava com freqüência perto de
nós, vagaroso, e parecia muito ocupado em fiscalizar-nos. Exigimos
banho. O sujeito deu uma ordem, os faxinas vieram carregados de latas.

As minhas visitantes foram buscar toalhas e dirigiram-se ao banheiro. Só,
ainda tentei arrumar vagos pensamentos rebeldes. Nada conseguindo, fui jogar
sobre a cama o lápis e a folha inúteis; achava-me na verdade
uma besta, invejava Hermes Lima e Gikovate, capazes de estudar, escrever horas
e horas na prisão, surdos ao rumor das controvérsias numerosas.
O diretor apareceu, escanchou-se num tamborete e disse: – Cometi uma irregularidade
ontem. – O senhor comete muitas, gracejei.

– É rigorosamente proibido juntar homens com mulheres. E eu pus essas
duas moças aqui. Tive confiança em você. – Muito obrigado.

– Vai-me fazer uma promessa.

E largou dois palavrões obscenos. Dei uma gargalhada. Em linguagem
correta, ele desejava que as minhas companheiras não inspirassem nenhum
desejo.

– Isso é um disparate, major. Prometo não realizar o ato.
Mas não sentir desejo? O senhor é bem exigente.

O velho sacudia-se num largo riso, os olhinhos vivos brilhavam com ingênua
malícia.

– Está bem, está bem.

Esperou a volta das mulheres, esteve alguns minutos a conversar com elas
e despediu-se: – Cuidado com a promessa. – Não se preocupe.

Fui lavar-me. Ausência de chuveiro. Apenas uma bacia de água
morna e um caneco. Ao sair, encontrei Nise sentada à mesa com dois
baralhos.

– Você sabe jogar crapaud? Eu não sabia.

– Então vai aprender.

E deu-me as primeiras lições do jogo que me iria desviai das
letras nacionais. Arranjando as cartas, fornecia-me as regras com paciência,
às vezes falava a um preso comum atento à partida, negro pequeno,
de focinho impudente, inclinado a familiarizar-se. Embirrei com esse tipo,
abomino liberdades, mas Nise estava sempre a desenvolver-lhe a partida e a
fazer-lhe perguntas. Pai João apresentou-se e referiu-se, vaidoso,
às suas habilidades: fora salteador e operara nas matas de Piraí.

– Trabalhava só, Pai João? – Só, com Deus. Precisava
um revólver, mais nada. A alguns metros de nós, Vitorino se
arrimava à parede como no dia anterior. O guarda apareceu e foi repreendê-lo,
a exagerar uma acusação, insistente e áspero. Vitorino
defendeu-se: não incorrera em nenhuma falta. De cabeça baixa,
exprimia-se em voz dormente, como num solilóquio; fingia respeito,
mas não se calava. O outro, em zanga rija, invocou o regulamento.

– É o diabo, zumbiu Vitorino. Esse regulamento foi feito para mim.
Para mais ninguém.

A réplica enfureceu o português. Vitorino calmo, a vista no
chão, continuava a repelir as censuras de manso. Nunca vi uma pessoa
justificar-se daquele modo. Acabou fatigando o adversário. Quando este
saiu, Pai João, que se havia afastado, veio de novo aperuar o jogo,
abelhudo e risonho. Não busquei dissimular a antipatia; as amabilidades
de Nise ao negro chateavam-me. A minha aversão estaria hoje provavelmente
esquecida se tempo depois não me causasse um ligeiro transtorno, bom
para esclarecer várias coisas ali.

O almoço pôs fim à primeira lição. Vieram
bandejas, a professora recolheu-se e marchei para o refeitório, capenga
e faminto. Consegui resistir às pilhérias de Walter, agora o
apetite fechava-me os ouvidos.

Regressei, passamos a tarde em cavaqueira animada: o crapaud nos desatara
as línguas. Eneida não se expandia, um sofrimento vivo no rosto
descorado. Sentava-se, dizia meia dúzia de palavras, erguia-se inquieta,
fechava-se no cubículo; reaparecia, tornava a sentar-se, rugas na testa,
os beiços contraídos num sorriso difícil. Animava-se
de leve, não queria exibir-nos a dor e o desassossego. Nise palrava
como se nos conhecêssemos de velha data; nenhum sinal do acanhamento
que nos tolhera à minha entrada no Pavilhão. Tinham-me dito
dela, anos atrás: mulher de grande inteligência e grande caráter.
Renovei a frase, mencionando o autor.

– Lamento isso, murmurou Nise com ar arrepiado. – Porquê? – Porque
tenho dessa criatura uma opinião muito diferente. Não acho nenhum
caráter nela.

A doença e a modéstia esgarçaram-se, num instante a
severa disposição alterou a fisionomia suave.

– Puxa! Não a imaginava capaz de tanta aspereza.

– Que hei de fazer? Era preferível eu desconhecer o elogio. Enfim
esses juízos fáceis não podem transformar-me. Onde fui
achar inteligência? Mas realmente a fraqueza de caráter é
horrível.

Examinei a figurinha combalida, magra; o desejo de afastar o louvor importuno
sufocava-a; os dedos finos tremiam.

11

A CONFIANÇA do major Nunes, exposta com obscenidades naquele dia,
não se depositou em mim apenas: novos doentes surgiram e em pouco tempo
a enfermaria se avivou. Certamente ouviram também palavrões
cabeludos e afirmaram proceder bem com as mulheres. Sisson, meu vizinho à
esquerda, transformou a sala em biblioteca: pôs na vigia um pedaço
de cartão, para fugir aos olhos indiscretos do guarda, e entrou a ler,
a traçar planos irrealizáveis num conforto escandaloso. Mais
longe foram viver Alcedo Cavalcante e Sussekind de Mendonça, professores
gordos, risonhos, serenos, o primeiro militar, o segundo paisano. Sussekind
tinha uma úlcera duvidosa no estômago, e cultivava essa probabilidade
com alegria e requintes, esforçando-se por acreditarmos nela. Os faxinas
de línguas penas, não sabendo pronunciar-lhe o nome, deram-lhe
uma alcunha: Dr. Úlcera. No arco à direita do meu cubículo
vieram alojar-se o tenente Pais Barreto e Henrique Dantas, alto funcionário
de um banco, homem triste, silencioso e resignado. Dantas nunca se queixava,
apesar de ter os pulmões decompostos. Arfando na dispnéia, friorento,
passava horas ao sol, a consumir-se devagar, sem nenhuma esperança.
Animava-se um pouco e, em voz lenta e baixa, gastava os restos de vida em
dissertações lacunosas sobre economia política. Gikovate
e Amadeu Amaral Júnior estiveram conosco alguns dias. Os hóspedes
do lado oposto se isolavam de nós pelo banheiro e pela condição:
eram homens de zebra, arredios e tristes. Raro transpunham a linha divisória
estabelecida entre as duas portas. Também não andávamos
por lá. Discutíamos política, jogávamos crapaud,
tentávamos perceber nos jornais alguma notícia animadora. A
guerra da Espanha nos excitava, e no mais simples avanço dos republicanos
queríamos ver a próxima derrota do fascismo. Certo dia, lendo
uma folha argentina, tive a idéia de recorrer às luzes de Alcedo
Cavalcante: – Venha trocar isto em miúdos, Alcedo. Não entendemos
de marchas nem de cercos. Você, major e professor, pode traduzir-nos
este negócio de estratégia em língua de cristão.

Formamos roda em torno da mesinha do jogo, afastamos os baralhos, Sisson
foi buscar um mapa e iniciamos a leitura, interrompida pelas demoradas explicações
do major. Uma crítica otimista em demasia. O triunfo era certo; mouros,
italianos e alemães estavam sendo varridos da península; dentro
em pouco os traidores seriam fuzilados. De repente o homem recusou um telegrama
de Burgos.

– Adiante, adiante. Isso não vale nada.

– Ora essa! estranhou Eneida. Nós desejamos um comentário
imparcial. Se você só se ocupa de uma das partes, estamos a perder
tempo.

– Não, teimou Alcedo, ranzinza. Nem as mentiras de Burgos nem as
bobagens desse pau-d’água de Sevilha. Tudo isso é balela.
Só examino o que vem da Catalunha e de Madrid.

O nosso interesse esfriou. Esperávamos, ouvir o homem reduzir as
vitórias de Franco, aumentar as da república, e a observação
unilateral nos causava surpresa e desânimo. Provavelmente ele receava
privar-se de uma certeza, ou antes de uma crença. Desenvolviam-se e
fixavam-se ali convicções na verdade singulares. Ociosos e ausentes
do mundo, precisávamos fazer esforços para não nos deixarmos
vencer por doidos pensamentos. Causavam-me espanto os devaneios dos outros,
às vezes me sentia resvalar numa credulidade quase infantil, e era
doloroso notar os escorregos do espírito. Nise ficava uma hora a matutar
nos programas de cinema, exigia a minha opinião, grave. Entrávamos
a escolher fitas, enfim nos decidíamos: – Vamos ao Metro.

Esse exercício estava sempre a repetir-se, e nem sei se era apenas
brincadeira, se não chegávamos a admitir a possibilidade maluca
de atravessar paredes e grades, sair à rua, tomar o ônibus, entrar
nas lojas, nos cafés, nas livrarias e nos cinemas. Sisson me comunicou
um projeto de admirável insensatez. Era manhã, achava-me à
porta do cubículo, bebendo café. O vizinho descerrou a chapa
de ferro e veio sentar-se junto de mim. Não dormira, passara a noite
a imaginar uma organização que se dedicaria a estudos sociológicos
e se estenderia por todas as bibocas do Brasil, a esmerilhar cartórios
e igrejas. Comissões distritais esmiuçariam a papelada antiga
que lhes caísse nas unhas e enviariam o material selecionado a comissões
municipais; estas se subordinariam a outras mais complexas, estaduais; e afinal,
a dirigir tudo, 0 organismo central, com sede no Rio, ali na Casa de Correção.
Alarmei-me: – Aqui? Você está falando sério? – É.
Nós é que vamos fazer o trabalho definitivo. – Mas quem nos
traz esses documentos, Sisson? – As nossas mulheres, nos dias de visitas.

– Coitadinhas. Vão suportar uma carga enorme, toneladas de velharias.

– Não é tanto assim. Haverá lá fora um expurgo
severo. Nós só receberemos coisas definitivas.

– E você acha que nos cafundós do Amazonas e de Mato Grosso
há gente capaz dessa tarefa? – Para as comissões de primeiro
grau bastam pessoas dispostas a copiar o que forem descobrindo. A depuração
começa nas cidades e acaba nas capitais.

Vencidas as minhas réplicas, o estranho homem recolheu-se e, num
entusiasmo vivo, entrou a redigir o seu plano, desenvolveu-o num calhamaço
cheio de minúcias, que foi exposto ao Coletivo. Ninguém quis
reparar no imenso absurdo; tomaram-no em consideração; eu e
Gikovate recebemos a incumbência de estudá-lo. Esquivei-me, negligente,
mas o judeu meticuloso embrenhou-se na leitura, rabiscando notas, arrazoando,
como se se tratasse de caso muito importante. Logo embirrou com o título
da sociedade, propôs a eliminação de um adjetivo: popular.

– No entender da polícia, comunista e popular têm a mesma significação.

Sisson emperrou, obstinou-se na defesa da palavra e, encontrando resistência
no médico, tentou convencer-me. Indolente e vago, suponho que findei
por dar razão mais ou menos aos dois. Reunimo-nos à tarde, oito
ou dez sujeitos, numa das celas próximas ao refeitório. A vasta
composição foi desenvolvida com segura energia pelo autor. Em
seguida Gikovate engrolou o relatório na sua língua morna, carregada
de rr duros. Pontos essenciais foram sapecados, minudências se estiraram
e o nome da associação provocou intenso debate. O criador dela
agarrou-se com vigor ao seu rótulo, como se o corte do infeliz apêndice
lhe inutilizasse todos os pensamentos. Vários indivíduos se
manifestaram, a contenda generalizou-se, e a vantagem ou desvantagem de três
miseráveis sílabas deixou na sombra a análise do projeto.
Ninguém se lembrou de perguntar se era exeqüível. Submeteram
a julgamento o pobre adjetivo, e nós o condenamos por unanimidade.
O meu voto arrancou de Sisson um berro furioso.

– Você também? exclamou erguendo-se, um brilho de indignação
nos olhos.

Balancei a cabeça: – Também.

O homem largou uma expressão torpe e concluiu: – De duas uma: ou
eu sou muito burro ou você é doido. Hoje de manhã concordava
comigo.

– É engano. Eu estava com preguiça de argumentar. Saímos.
E não tornamos a falar no assunto. A Sociedade Popular nasceu morta.

12

A porta do cubículo, tomei o caneco de leite e mastiguei pedaços
de pão com manteiga rançosa. Depois bebi o café nauseante,
adocicado. Nise abriu a porta, chegou-se vagarosa e pálida, sentou-se
à mesinha. O faxina trouxe-lhe a refeição da manhã.

– Que põem neste café, Nise? É ruim.

– Deve ser brometo, respondeu a moça. Anafrodisíaco. – Diabo!
exclamei afastando o caneco. Isto é permanente, Nise? – Não,
é transitório. Suspenda o café.

– Claro. Não torno a olhar esta porcaria.

O copeiro voltou para recolher as bandejas, e pedi-lhe que nunca mais me
trouxesse aquela infâmia.

– Que brincadeira besta! Lembrei-me do conselho de outro faxina, à
minha chegada ao Pavilhão dos Primários: – “Se o senhor
soubesse o que há nisso, não bebia tanto.” Um abrandamento
geral me envolvera, mas não me viera a idéia de relacionar isso
com a bebida. A observação do homem de zebra me escorregara
no espírito desatento. E não me abstivera. Um grande torpor
amarrara-me durante meses, desaparecera na Colônia Correcional, mas
isto passara quase despercebido, pois as mulheres estavam longe, e nem havia
tempo de pensar nelas Agora não me achava entanguido E davam-me de
novo a beberagem adocicada.

– Faça o favor de não me trazer isto. Vamos jogar crapaud,
Nise? Pouco a pouco sosseguei O frio na carne e a imobilidade tinham-se esvaído
Imagens lascivas surgiam-me às vezes; com a supressão do café,
iriam crescer. Esforçava-me por desviá-las, pensando nos rapazes
que, mergulhados num erotismo doloroso, viam figuras de atrizes nuas em revistas.
Os médicos da Sala da Capela tentavam livrá-los da obsessão.
Podiam livrar-se: o ato julgado vício considerava-se higiene em determinadas
circunstâncias. O mal não estava na coisa física, mas
nos distúrbios que os desejos insatisfeitos causavam. A maior parte
dos militares ria desse conselho, aplicava nomes indecentes nos doutores bem
intencionados. E continuava a admirar no papel seios, nádegas, pernas
nuas. O exame disso me desgostava. Agora, vindo a explicação
de Nise, quase me convencia de que a beberagem anafrodisíaca tinha
efeito misericordioso.

As visitas na enfermaria davam-nos torturas verdadeiras. Os casais se juntavam
na saleta próxima ao consultório médico, passavam horas
num constrangimento horrível, cochichando, medindo gestos, procurando
migalhas de expansões difíceis, os olhos nas portas. Se o português
moreno estava de serviço, esses encontros eram muito desagradáveis:
o canalha, perturbador, ia e vinha, multiplicava-se na fiscalização,
chamava os presos comuns para auxiliá-lo. Duas criaturas necessitadas
amolavam-se, de nenhum modo conseguiam ficar à vontade. Havia espionagem
constante. Aquelas horas, desejadas, sonhadas uma semana, perdiam-se, neutras
e insípidas, em conversas moles. O português moreno fiscalizava
com os olhos numerosos.

A primeira visita de minha mulher foi um desastre. Avizinhávamos
as cadeiras, tínhamos depois precisão de afastá-las,
buscávamos assuntos que desviassem a forte necessidade: a linguagem
violenta da imprensa reacionária, a credulidade e a indiferença
do público. Éramos uns monstros e o governo, isolando-nos, salvava
o país. Abandonávamos essa matéria, entrávamos
em negócios particulares. O dinheiro sumia-se. Falávamos nele
indiretamente, receando com certeza a desaparição completa.
0 romance enganchado na composição roubava-nos alguns minutos.
Não acabariam de rever as malditas provas? Impacientava-me a demora,
e logo me chegava um contentamento provisório por não se exibir
aquela porcaria. Contudo isso era necessário, porque os restos da pecúnia
se evaporavam. O naufrágio literário me daria alguma tranqüilidade:
ser-me-ia possível obter cuecas, um pijama e lenços; estavam-me
faltando esses troços; muitas coisas perdiam-se nas mudanças,
a valise se esvaziava. E havia a caixa de injeções exigida pelo
médico. Desaforo. Isso me tornava incapaz de comprar cigarros, obrigava-me
a usar pacotes de fumo ordinário. E o diabo do livro não saía,
emperrava desgraçadamente. De fato não haveria naufrágio:
ninguém ligara importância à minha literatura, achava-me
ali mais ou menos inédito. Novo malogro não me pesaria muito.
Um pobre-diabo sem dinheiro, nulo, forçado a comprar injeções,
a fazer cigarros de fumo ruim com mortalhas que se rasgavam. Os tamancos endureciam-me
os pés crescidos. Ali na sala pequena, os sapatos calçados uma
vez por semana reduziam-se, magoavam-me, faziam-me calos. A publicação
da história chinfrim atenazava-me. Prendia-me a esse último
recurso com desespero. Durante alguns minutos o guarda interrompia a fiscalização
– e as preocupações de ordem econômica debandavam. Esquecíamos
o livro, juntávamos as cadeiras. Mas era uma trégua insignificante.
Na calçada, a dois ou três metros, um homem de roupa zebrada
passeava lento, as mãos atrás das costas. Ia e vinha. Passava
diante de nós com regularidade exasperadora, retardava a caminhada
e pregava-nos os olhos suspeitosos. Éramos observados pela frente e
pela retaguarda.

Assim decorreram algumas visitas. Um dia, porém, achava-me fraco
em excesso, não pude ir à saleta, e minha mulher teve licença
para avistar-se comigo à porta do cubículo.

O português moreno estava ausente, o guarda do serviço era
o velho Bragança, o amorável sujeito de cabelos de algodão,
risonho e paciente, o grande amigo de Nise. Afeiçoara-se a ela de supetão
e uma vez lhe dissera triste: – Doutora, senti muita alegria ontem. Vi na
rua uma senhora que era o seu tipo, disse comigo: “A doutora saiu.”
Mas o engano durou pouco.

Naquela tarde quente eu e minha mulher conversávamos numa nesga de
sombra, encostados ao muro. Os outros doentes recolheram-se discretos. O velho
apareceu, dirigiu-se a mim, puxou conversa: – Preciso aposentar-me. Não
agüento mais o trabalho. – Cansado, seu Bragança? – Setenta anos.
E quase cego. O senhor está aí falando, e eu não enxergo
nada, só vejo uma nuvem. Nem sei se a porta está aberta.

Deu uma risadinha e afastou-se. – Obrigado, seu Bragança.

Um instante depois eu e minha mulher pela primeira vez nos sentíamos
sós. Entramos no cubículo, cerramos a chapa de ferro.

13

ESTEVE conosco na enfermaria um belo sírio moço, desempenado,
alto, simpático, olhos vivos e francos. Substituíra o nome estranho
por um de pronúncia mais fácil: Paulo Antônio. Mas na
cadeia haviam modificado a tradução: era simplesmente Paulo
Turco. Ignoro o crime dele, coisa grave, sem dúvida, pois estava condenado
a mais de vinte anos. Na vestimenta branca, muito limpa, onde as riscas ignominiosas
esmoreciam, quase invisíveis, tinha a aparência grave de um funcionário.
As sextas-feiras iam visitá-lo duas mulatinhas novas, escuras, pálidas
e feias. Assisti a um desses encontros. As meninas usavam roupinhas de tecido
ordinário e calçavam sapatos de tênis. O rapaz examinou-as
descontente, fechou a cara, repreendeu-as enérgico: – Vocês não
têm sapatos? Não me apareçam com isso outra vez. Indecência.

Entregou-lhes dinheiro, esteve algum tempo a desenvolver recomendações
minuciosas a uma pessoa ausente. As meninas olhavam de cabeça baixa
os sapatos de pano, as meias grosseiras, e ouviam atentas, e envergonhadas,
as ordens rijas do pai severo. Comportavam-se exatamente como filhas, mas
com certeza não havia ali parentesco. Cinzentas, desbotadas e nacionais,
muito diferiam do oriental, semita puro. Porque razão o grande nariz
adunco se aproximava das ventinhas chatas? Mais tarde explicaram-me a relação
curiosa. Paulo Turco tinha uma pequena indústria, como outros, e o
bom procedimento fazia que o empregassem às vezes em serviços
externos. As autoridades economizam com esses trabalhos, e os presos vêem
neles um prêmio, sentem-se quase livres durante algum tempo. Num dos
periódicos regressos à vida, o sírio pintava portas ou
caiava muros quando uma preta velha se chegara a ele e pedira esmola. O homem
dera-lhe cinco mil-réis: era o que tinha. No dia seguinte a mendiga
voltara acompanhada por duas netas, uma de três, outra de quatro anos.
Fizera nova colheita, habituara-se. E, finda a caiação ou pintura,
as pobrezinhas tinham ido avistar-se com o protetor na Casa de Correção.
Depois disso Paulo Turco possuía uma família, família
distante que o via uma vez por semana, às sextas-feiras, mas esse ligeiro
contato lhe bastava para dedicar-se inteiramente a ela. Fazia vários
anos que aquilo rolava, oito ou dez: as garotas haviam terminado o curso primário.
Iam estudar coisa mais séria a expensas e sob a fiscalização
rigorosa de uma criatura ausente do mundo.

Esse caso me preocupou em demasia. Sempre me parecera que os criminosos
não se diferençavam muito da gente comum, mas ali me surgia
um deles superior aos outros homens. Paulo Turco era, se não me engano,
assassino e ladrão. Contudo inspirava respeito. E aquele procedimento
levava-me a admirá-lo. A extraordinária antinomia me assombrou:
um vivente nocivo, capaz de matar, roubar, sacrificava-se para manter e educar
pessoas encontradas por acaso, muito diferentes dele. E perguntei a mim mesmo
se a virtude singular não compensava as faltas anteriores. Uma dúvida
me torturava: se Paulo Turco se libertasse, praticaria novos crimes ou buscaria
ofício honesto para sustentar as pobres? Na reclusão, as despesas
deviam pesar-lhe em demasia, nem sei como se agüentava. Fazia gaiolas,
como depois notei, mas certamente não amparava três vidas com
o produto dessa exígua indústria. Possuía outras habilidades,
sem dúvida. Aqueles homens adquirem talento para explorar negócios
que não imaginamos cá fora. Jogam e como isto é proibido,
realizam transações absurdas, perfeitos disparates. Um guarda
vai atravessar um portão. Dois sujeitos apostam: um acha que ele passa
com a perna esquerda, outro escolhe a direita. Valores miúdos circulam
sem descontinuar. Pai João era contrabandista de álcool. Tinha
ocupação no exterior, saía com regularidade, voltava
com frascos de aguardente nos bolsos; necessitava algumas viagens para encher
uma garrafa, que vendia com lucro de cento por cento. Assim, os habitantes
da Sala da Capela tinham meio de infringir o regulamento. Como as exigências
ali são reduzidas, essas miudezas se acumulam, e os presos econômicos
chegam a constituir modestos pecúlios. O que mais me surpreendia no
caso de Paulo Turco era ele obter recursos para realizar gastos, anos a fio,
num ambiente diverso, onde as nossas migalhas de pecúnia se desvalorizavam.
O esquisito devotamento e as possibilidades imprevistas alarmavam-me. Ignoramos
o que somos, até onde podemos ir. Cercados, confinados, precisamos
ver qualquer coisa além das grades. A imaginação vai
longe; coisas externas crescem, desenvolvem-se; um barraco erguido na favela
toma cores vivas, e duas mulatinhas pestanejam em cima de livros, na véspera
de exame, à luz do querosene; na cozinha de tábua e lata uma
negra velha cochila. Vive para resguardar essas três insignificâncias,
entrega-se a elas inteiramente, fabricando gaiolas, um homem duro, mãos
tintas de sangue, dedos hábeis no manejo de instrumentos ilegais.

Afinal a virtude me escapava. Quem me provava que os indivíduos supressos
pelo sírio faziam falta num mundo cheio de excrescências? Talvez
não fizessem. E era-me indiferente estar a propriedade aqui ou ali.
Não aprovei as aventuras de Gaúcho, meu amigo na Colônia
Correcional; não as aprovei por serem perigosas. Gaúcho não
produzia riqueza. Muitos não a produzem, e contudo acham maneira de
apropriar-se dela sem arriscar-se. Gaúcho e Paulo Turco haviam pelo
menos revelado coragem. E em situação difícil achavam
maneira de praticar ações generosas, incompreensíveis.

14

ENFIM o romance encrencado veio a lume, brochura feia de capa azul. A tiragem,
de dois milheiros, rendia-me um conto e quatrocentos e esta ninharia ainda
significava para mim grande vantagem. Minha mulher apareceu com alguns volumes.
Guardei um e distribuí o resto na enfermaria e na Sala da Capela, mas
logo me arrependi desses oferecimentos. A leitura me revelou coisas medonhas
pontuação errada, lacunas, trocas horríveis de palavras.
A datilógrafa, o linotipista e o revisor tinham feito no livro sérios
estragos. Onde eu escrevera opinião pública havia polícia;
remorsos em vez de rumores. Um desastre. E nem me restava a esperança
de corrigir a miséria noutra edição, pois aquilo não
se reeditaria. Eu próprio dissera ao editor que ele não venderia
cem exemplares. Contudo alguns leitores fizeram vista grossa aos defeitos
e me condenaram firmes o pessimismo. Nise interrompia o crapaud, esforçava-se
por mostrar na minha narração capenga belezas que eu nem de
longe percebia. Certa manhã Eneida saiu do cubículo e avizinhou-se
de mim, pálida, os olhos fundos: – Li o teu romance de cabo a rabo,
e não dormi um instante, apanhei uma insônia dos diabos. Pavoroso!
Essas manifestações me surpreenderam, mas a princípio
julguei-as amabilidades. Pouco a pouco moderei o juízo severo e cheguei
a supor que a obra, apesar de tudo, causava interesse e roubava o sono às
pessoas. As palavras de Nise, repetidas, levavam-me a considerar bons alguns
capítulos. Um deles me custara vinte e oito dias de trabalho rijo,
fora depois recomposto e emendado. Tratava-se de um crime difícil,
meio inconcebível, e, se não me precatasse, ter-me-ia afundado
na literatura de folhetim. Essa longa passagem não estava muito mal
arranjada. Assaltavam-me depois cóleras fortes à lembrança
dos disparates mais graúdos expostos nas folhas escuras de papel ordinário.
As falhas eventuais reforçavam outras, essenciais, e achava-me em desânimo
completo.

Por alguns dias afastei-me da Sala da Capela, receando comentários,
certamente agradáveis e falsos. Não vamos dizer cara a cara
a um sujeito o que achamos de uma produção dele. Atenuamos as
fraquezas, pomos em evidência as paginas menos ruins; se os autores
não forem burros, compreenderão bem a nossa hipocrisia. Atenazava-me
a idéia de ver Castro Rebelo, catedrático exigente, folhear
a brochura, erguer os ombros, fungar um risinho de escárnio. Quando
as nossas camas eram próximas, no velho salão de tábuas
vacilantes, eu lhe fizera um pedido: – “Professor, tem por acaso aí
o seu Mauá? Ainda não o li.” Castro Rebelo abrira a mala,
dera busca entre panos e me estendera o volume. Tomara-o em seguida, percorrera-o
e, com uma gilete, raspara meticuloso uma vírgula. Que diria o homem
rigoroso das minhas vírgulas, deslocadas na tipografia e na revisão,
a separar sujeito de verbos, estupidamente? Vi nos jornais cinco ou seis colunas
a respeito do caso triste, em geral favoráveis. Não diziam grande
coisa. Limitavam-se a jogar louvores fáceis, pareciam temer ferir-me
apontando os erros, como se fosse um estreante, e desviavam-se da matéria.
Arriscara-me a fixar a decadência da família rural, a ruína
da burguesia, a imprensa corrupta, a malandragem política, e atrevera-me
a estudar a loucura e o crime. Ninguém tratava disso, referiam-se a
um drama sentimental e besta em cidade pequena. Admirou-me depois o excessivo
número de críticas à minha história sombria, e
espantei-me de vê-Ia bem aceita e reproduzida, mas ali na cadeia apenas
me surgiu a meia dúzia de artigos. Um era insensato. Dedicava-me alguns
elogios sem pé nem cabeça, punha-me de lado e atacava furioso
um escritor que nenhuma relação tinha comigo. Outro me declarava
autor de um formoso romance. Ao ler isso, escondi a folha debaixo do colchão
e deitei-me, a estalar de raiva.

– Que é que você tem? perguntou-me da porta a ótima
Nise. Piorou? – Não. Estou bem.

Nise ficou um instante a olhar-me séria, de repente deu uma risada:
– Já sei. Foi o artigo de Fulano. Ergui-me: – Ele tem razão.
É o que é realmente aquela porcaria. Um formoso romance.

A excelente amiga saiu, trouxe os baralhos, arrastou-me para a mesinha e
desviou-me do espírito o desagradável sucesso. Estava sempre
a comentar com exagero, mencionando autoridades, a minha personagem criminosa
e meio doida. Eu lhe esfriava o entusiasmo, brincava com ela citando a frase
de um advogado que lhe pedira o exame de um cliente: – “A senhora, grande
psicopata…” – Ele está certo, Nise. Você se julga psiquiatra.
Mas é engano. Você é maluca.

Nise ria. Considerava-me um dos seus doentes mais preciosos.

15

TOMEI o copo de leite, fui ao consultório, onde o médico me
aplicou a injeção de vitamina. Ao regressar, notei que haviam
recolhido a mesinha do crapaud deixada à porta.

– Vá tomar banho e mudar a roupa, disse-me Eneida. Você não
vai receber sua mulher assim vestido em pijama. O diretor me anunciara na
véspera uma visita para aquela manhã. Achava-me com bastante
preguiça: – Minha mulher não é de cerimônia. Já
me viu deste jeito muitas vezes.

– Não senhor. Mude a roupa – Que impertinência! Vá lá.

Agora conseguia mexer-me, já não precisava amolar os faxinas
pedindo as latas de água morna. Com duas ou três semanas de tratamento,
as pernas pareciam consolidar-se, mas as picadas renitentes no pé da
barriga ainda continuavam a importunar-me.

– Está bem.

Peguei a toalha, saí da enfermaria, encaminhei-me aos banheiros distantes,
arrimado ao muro que nos separava da Casa de Detenção. Viagem
longa e desagradável: havia no caminho vários portões,
alguns fechados, e era-me necessário esperar que os guardas os viessem
abrir. Lavei-me, fiquei minutos a conversar em gritos com os homens do Pavilhão
dos Primários, debruçados lá em cima, no terraço.
Chegando à enfermaria, encontrei a minha cela transformada. A cama,
pouco antes em desordem, estava refeita; desaparecera a confusão de
jornais velhos, papéis e livros deixados pelos cantos; e a mesinha
se enfeitava com vasos de flores.

– Que presepada é esta? Compreendi porque Eneida teimara em afastar-me.
A minha surpresa aumentou quando me deram esclarecimento: ia haver uma espécie
de festa em honra do livro infeliz. Tinha sido uma lembrança do major,
afirmou Nise.

– História, resmunguei contendo o mau humor. É uma pilhéria
de vocês duas. Não dou para essas coisas.

Os preparativos deixaram-me sombrio.

– Ó Nise, será que têm a intenção de fazer
discursos? Se fizerem, vou ficar numa atrapalhação medonha:
sou incapaz de juntar meia dúzia de palavras em público.

A moça tentou desvanecer o perigo, mas realmente só consegui
destoldar-me um pouco ouvindo a promessa clara de Sussekind e Sisson: ninguém
falaria. Não se dissiparam todas as nuvens. Sisson, criatura verbosa,
iria pregar-me talvez uma peça. Vesti-me apreensivo, condenando a manifestação
doida: com certeza a maior parte das pessoas associadas a ela me desconhecia
a literatura. No trajo civilizado, limpo, cosido pelo Sousa na alfaiataria,
achei-me em condição de receber visita. Ao sair da cela, encontrei
minha mulher, que me ofereceu um pacote cilíndrico e pesado. Tirei
os barbantes, o invólucro de papel escuro, uma delgada pasta de algodão,
e descobri uma garrafa de aguardente.

– Como é que você pôde meter isto aqui, filha de Deus?
Natural. Na secretaria, um empregado se informara, e ela estendera o embrulho
com ingênua impudência: – “Algodão.” O homem
se contentara com a resposta. Lembrei-me de uma cena, meses antes, no Pavilhão
dos Primários. A notícia infeliz me surgira de chofre, numa
esquina: – “Revista.” Escondera-me por detrás de Euclides
de Oliveira e, sem nenhuma precaução, metera debaixo da camisa
um envelope que Agildo Barata me confiara. A dez passos, minha mulher tinha
percebido o movimento, e um minuto depois me perguntava: – “Que é
da carta?” Mas a polícia não se preocupava com tais minúcias.
Tocava-nos de leve os bolsos, buscava rápida armas impossíveis.
Se eu não fosse um maluco, teria salvo as folhas escritas na Colônia,
deixadas estupidamente debaixo da esteira, na cama suja de hemoptises. Bastava
uni-Ias à barriga, sob a cueca, prendê-las com o cinto; aí
não me viriam fazer investigações. Vivíamos a
criar fantasmas. Por isso as notas se haviam perdido.

Traziam-me agora o líquido valioso e proibido. Arranjei meio de espatifar
a rolha, enchi um caneco, fui pr&ooacute;digo. Doentes e abstêmios, os
companheiros se recusaram. Pais Barreto, porém, avizinhou-se de mim
numa calorosa amizade, não expressa antes nem depois disso. Num instante
bebemos quase meia garrafa, e tive de ocultar o resto, fechar a porta. O tenente
não se deu por achado: entrou a rondar o cubículo, esperando
o momento de insinuar-se nele, indiferente às conversas literárias
que fervilhavam em redor. Também me distraía. Fossem para o
diabo as letras nacionais: o meu intuito era defender a garrafa. Essa propriedade
fugia-me: às vezes a exigência do moço explodia, e era-me
preciso descerrar a chapa de ferro, deitar nos canecos duas doses escassas,
medidas: – É necessário fazer economia.

Tolice. A sede forte de Pais Barreto obrigava-me a encharcar-me, para que
ele não bebesse tudo; assim, à hora do almoço, sentia-me
vago e toldado, superior aos aconteci mentos, sem saber direito porque haviam
juntado as mesas, numa refeição extraordinária. Melhorara-se
a bóia. Tinham encomendado vinho a Pai João. Enfim um banquete,
o banquete possível. Não houve discursos, mas a ausência
deles nem foi notada: não me lembrava de que os oradores me causavam
receio pela manhã. O álcool me dispunha a soltar a língua,
atacar alguma coisa, a literatura reacionária, por exemplo. Na meia
liberdade provisória que nos concediam, terminamos o almoço
e, quase alegres, ficamos a papaguear nos tamboretes brancos, em algumas espreguiçadeiras,
feitas certamente na pequena oficina estabelecida na saleta do café.
Os meus olhos fechavam-se, abriam-se; as idéias avivavam-se, morriam.
A conversa animada escorregava-me no espírito obtuso. Que dizia aquela
gente? Chegavam-me pedaços dela, envoltos em bruma, vozes confusas.
Interessava apenas os manejos de Pais Barreto: andava a rondar o cubículo,
o pensamento numa garrafa escondida sob o colchão. Erguia-me com pena
dele e pena de mim mesmo. Nessas viagens a garrafa se esvaziou.

As horas passavam rápidas, a sombra se alargava na calçada
estreita. Recolhi-me tonto, minha mulher acompanhou-me, esteve uns dez minutos
deitada. Era um sacrifício, pois abominava o álcool; em tempo
normal vivia a despropositar comigo por causa disso. Voltamos ao grupo. Ela
pintou os beiços e retirou-se.

Chegaram as luzes. Passou o momento de se fecharem os cubículos,
e surpreendeu-me ver o guarda imóvel, a espiar-nos de longe. Alguém
trouxe um rádio. Envolto nas grossas mantas, a defender-nos da friagem,
ali nos conservamos longamente, ouvindo uma ópera que se representava
no Municipal e a sábia crítica de Sussekind à música
de Wagner. Cerca de meia-noite as chaves tilintaram e a pequena sociedade
pouco a pouco se dissolveu.

16

ANDAVAM na enfermaria alguns tipos curiosos. Nestor, faxina, era um mulato
cor de cinza, magro, banguelo, um sorriso impudente fixo nos beiços
grossos. Comportava-se bem e esperava conseguir livramento condicional utilizando
o saber de Leônidas Resende. Sumiu-se um anel caro na Sala da Capela,
suspeitaram dele, mas os outros faxinas o julgaram incapaz de tocar em objeto
alheio. Contudo estava a cumprir sentença por arrombamento.

– Veja o senhor, disse-me um dia. Trabalhei quinze anos só, aqui
e em Niterói; nunca ninguém desconfiou de mim. Quando tomei
um ajudante, o miserável me denunciou.

As vezes o sorriso permanente franzia-lhe o rosto, uma sombra de amargura
o envolvia.

– Está ali quem sabe tirar cadeia, murmurava apontando a gata Malandrinha,
mascote da prisão, achada na rua, vinda num carro de lixo.

O animal vagabundo acostumara-se logo à vida sedentária e
nenhum desejo tinha de recuperar a liberdade. Ronronava ao sol, obeso, desenroscava-se
em bocejos enormes, preguiça enorme. Reconhecia-se importante, sem
dúvida, e esta convicção lhe dava o ar de saciedade,
os movimentos vagarosos. Nestor largava um suspiro, invejando o sossego do
bicho: – É como a gente devia ser.

Júlio, figura sinistra, vinha trazer-me a bandeja pela manhã.
Bebendo o leite, mastigando o pão, tentei falar com ele. Respondia
breve, iludindo as perguntas, os olhos baixos, constrangido. Nunca se referia
ao crime que o inutilizara, desejava provavelmente esquecê-lo. Á
reserva excessiva trazia-me ao espírito Gaúcho, Paraiba, Pai
João, alguns ladrões menores, dispostos a revelar-se com franqueza
e gabolice. Um deles, de boca imensa, a cara estúpida, vangloriava-se
contando a Eneida mentiras palmares. Enganando-nos e enganando-se com aventuras
e riscos, esses homens chegavam a descobrir mérito no seu ofício.
Júlio não era um profissional. Matara a mulher em ciúme
furioso, e não podia livrar-se da horrível dúvida: fora
justo? Fora injusto? De pé, junto à bandeja, tinha no chão
os olhos enevoados. Fora justo? Fora injusto? Baixo, atarracado, lívido.
Impossível avizinhar-se dos companheiros. Homem solitário, preso
ao passado, a inocentar-se, a arrepender-se. Nunca me surgira oportunidade,
ali ou fora dali, de perceber vestígio de remorso em ninguém.
Remorso era apenas um assunto literário. Os indivíduos capazes
de matar, roubar, incendiar, violar, achavam razão para isso. Júlio
não conseguia justificar-se – e vivia abatido e mecânico, a transportar
a bandeja para aqui, para ali, surdo e cego.

Muito diferia dele Barbadinho, o rapaz que andava a rodar a carroça
nas pedras com assobios estridentes. Era o meu despertador. As cinco horas
o assobio forte e o barulho de rodas nas pedras, casados ates chilros dos
pardais, levantavam-me. As aves e n rapaz abreviavam-me o sono. Escovar os
dentes, lavar o rosto. Descerrava-se a chapa de ferro. Na frescura da manhã,
arriado no tamborete, os cotovelos sobre a mesinha, em vão me esforçava
por arrancar de uma figura sombria qualquer coisa. Hábito velho de
observação, inútil agora. Júlio era uma estátua
dolorosa; só recobrava o movimento quando se esvaziava o caneco de
leite. Perto, um rapaz, quase criança, passava agarrado aos varais
de uma carrocinha. O assobio não desanimava. Porque tinham levado para
ali aquele garoto? No ambiente sujo, o menino queria viver, a alegria se espalhava
na cara aberta, peluda, escura. A abundância de cabelos motivara a alcunha.
Os olhos fuzilavam, o corpo agitava-se, rápido, como se estivesse a
nadar. Barbadinho ausentava-se do meio, estava numa aurora permanente. O assobio
agudo feria-me os ouvidos. A criatura viva, moça, forte, mergulhava
no trabalho como peixe na água. Infelizmente o trabalho era aquilo:
rodar uma carroça o dia inteiro. Pobre menino. Quando se libertasse,
não acharia lá fora nem o miserável exercício
que lhe facultava o rumor excessivo, o riso franco, o estouvamento. Regressaria,
acabar-se-ia em desânimo, obeso e nulo, como a gata Malandrinha, amando
uma réstia de sol e a imobilidade.

Tipo esquisito era o sujeito que nos lavava a roupa. Fornido, branco, de
gestos ondulantes, olhares equívocos, desagradáveis, sujos.
Tinham-lhe dado a alcunha de Maria Gorda. Certo dia o acharam metido em veste
feminina, a saracotear-se, a requebrar-se. Lavador, amava a profissão,
gostava de mexer em panos. Ao trazer-nos cuecas, lenços, pijamas, estendia-os
na cama, retardava-se a acariciá-los com os dedos grossos, nojentos.
Um companheiro brigara com ele, e vendo-o chorar, covarde e bambo, invectivara-o:
– “Que é isso? Homem não chora.” E o desgraçado
respondera, no longo pranto: – “Você não sabe que eu não
sou homem?” 17

UM DIA, à hora de nos destrancarem, Sisson me apareceu encabulado
e sombrio: – Sou um idiota. Não devia ter feito aquilo. Perdi os estribos,
e nem sei o que disse.

Atentei no homem com espanto: – Que foi? – Não ouviu? – Quê?
Não ouvi nada.

Sisson recusou durante algum tempo a minha declaração: – Um
barulho tão grande! – Não percebi nenhum barulho, Sisson. Estava
dormindo. Ignoro o que você quer dizer.

Enfim, depois de muita fala inútil, o arestoso amigo se explicou.
Tivera na véspera, fechado o cubículo, arenga feia com um preso
comum que servia na farmácia. Era estranho haver rixa entre indivíduos
tão diversos, um oficial de marinha, homem culto, burguês, e
um ladrão vagabundo. Através da chapa de ferro, pelo buraco
de vinte centímetros, em geral oculto por um pedaço de papelão,
tinham cambiado grossos desaforos: – “Cachorro, sem-vergonha.” –
“Marinheiro safado.” – Oh, Sisson! murmurei. Você cair nisso!
Discutir com um tipo assim! – Não refleti. Foi burrice.

No mesmo dia Sisson voltava à Sala da Capela. Como de ordinário,
não lhe expuseram motivos. Somente ordem para arrumar a bagagem. Os
mapas e os abundantes papéis sumiram-se; o meu vizinho da esquerda,
antes de curar-se, afastou de nós as suas idéias complicadas
e numerosas. A queixa de um malandro ocasionara a transferência. Outros
companheiros haviam saído.

As minhas pernas se arrastavam no ócio, do consultório médico
para a cela. Agora estavam menos trôpegas e insensíveis; já
não era preciso estirá-las ao sol de manhã, envolvê-las
à tarde na manta pesada e escura. Não se lavava aquela manta,
acho que não se lavou enquanto vivi na Casa de Correção.
Por ser quase negra, ocultava a sujeira, e permanecia na cama estreita semanas
longas, como os dois trapos que, meses atrás, me enrolavam numa esteira.
Apenas a imundície da Colônia Correcional era visível,
muito vermelha. As conversas boas de Nise afugentavam-me a lembrança
ruim. A pobre moça esquecia os próprios males e ocupava-se dos
meus.

– Vamos ao cinema hoje? – Vamos, Nise. Por enquanto vamos ao crapaud. Quer?
Íamos ao crapaud. As partidas lentas davam-me remorso. O terceiro conto,
mau e incompleto, escondia-se na valise, sob cuecas e meias. Seria preciso
concluí-lo e endireitar os outros, mas a literatura desgraçada
me causava engulhos. Assaltava-me com freqüência um desânimo
profundo.

– Porque é que indivíduos como eu escrevem? Para quê?
perguntava a mim mesmo.

Quando esmoreciam as dores, procurava defender-me estabelecendo comparações
frágeis: – Afinal o Brasil é uma tristeza. Estas misérias
são iguais a várias que por aí circulam. Escrevemos à
toa, e ainda achamos quem nos elogie.

Decidia-me com esforço a desenterrar as miseráveis folhas,
rabiscava algumas linhas chochas. Para quê? Lá fora gente como
eu estaria fazendo coisa semelhante. E refugiava-me nas cartas. Infelizmente
Nise começou a dizer que eu furtava no jogo. Professora incapaz, utilizava
esse recurso desonesto se perdia, e alargava-se em comentários injustos
com Pai João. Atenazavam-me as brincadeiras dela, expostas ao negrinho
descarado, horrivelmente feio. Uma espécie de macaco, e às vezes
me espantava de que o mostrengo pudesse falar. A cabeça era uma insignificância,
os dedos curtos e nodosos mexiam-se como se estivessem a manejar o revólver
nas matas de Piraí. Um bicho. E, dos ladrões observados naquele
tempo, o mais antipático. Fora-me possível admitir Gaúcho,
Paraíba, Cubano, e via-me forçado a admirar Paulo Turco. A figura
simiesca irritava-me. Nise dirigia-se a ela, apontando no baralho, a rir,
os meus furtos inexistentes. Zangava-me, cochichava: – Como diabo se interessa
você por um tipo como esse? Nise continuava a rir, a atacar-me. E Pai
João andava em roda, aos pulinhos, rombo e torpe, a grunhir, repetindo
as palavras dela: – Furtou, furtou.

Uma vez não me contive: – Sabe que não gosto dessas intimidades?
– Hem? fungou o animal desfranzindo o riso parvo. – Não gosto disso.
É bom vivermos separados.

O focinho de Pai João tomou pouco a pouco uma dureza fria, a boca
apertou-se com ódio, os olhos miúdos fuzilaram. O negro deu-me
as costas em silêncio, e nunca mais o vi. A tarde me vieram anunciar
mudança. Peguei os troços, despedi-me da gente que andava no
pátio circular, e um guarda acompanhou-me à Sala da Capela.
Na viagem recordei a zanga do velho Marques ao ver-me estender o maço
de cigarros a um faxina. Aqueles homens eram nossos criados. Ri-me atravessando
os portões de ferro. Criados bem singulares. Executavam serviços
rudes e recebiam gorjetas, mas eram em grande número, ambientavam-se
em anos de pena, e nós, cem ou duzentas pessoas, estávamos ali
de passagem, e infringíamos sem querer as regras. Pela denúncia
de um deles, vinham-nos dificuldades: cautelosa, a administração
receava desgostar os moradores velhos da casa.

18

NA SALA da Capela havia agora três fileiras de camas separadas por
estreitas passagens de meio metro. Deram-me a última do centro, metade,
mais ou menos, das laterais. Lugar incômodo. O espaço minguava;
só no fim do salão, junto às mesas de leitura e jogo,
podíamos andar livremente. Depois do jantar, arriei os ossos no colchão,
tentei repousar, debalde: o rumor dos tamancos e o zumbir das conversas agitavam-me,
e abriam-me os olhos e os ouvidos. Inclinando-me para a direita, via as criaturas
que pisavam rijo, abalando o soalho. A pequena distância, indivíduos
atentos, curvados sobre tabuleiros, moviam símbolos de madeira: – “Xeque.”
Os cotovelos fixos na armação bamba dos cavaletes, figuras indistintas
mexiam papéis. A vitrola remoia discos. Virava-me para o outro lado,
e percebia ao fundo, perto do altar, alguns doentes, Apporelly dispondo as
cartas na paciência interminável, Moreira Lima a ajustar a funda
complicada. Enfim as luzes se apagaram e consegui dormir. Levantei-me cedo
e vi na cama vizinha um rapaz de rosto para cima, um frasco na mão,
esforçando-se por umedecer os olhos inflamados e vermelhos. Desistiu
da operação custosa: o líquido se derramava nas pálpebras
roxas e opadas.

– Quer fazer-me o favor de me deitar aqui um pouco de colírio? pediu-me
Enchi o conta-gotas. Mas, diante dos bugalhos sangrentos, uma névoa
de lágrimas toldou-me a vista, os dedos tremeram-me: – Não posso.
Um instante.

Fui chamar Gikovate, que fez o curativo e afastou-se. O desconhecido, loquaz,
antes de poder enxergar-me, entrou a papaguear e resvalou em assunto perigoso.
Quis saber a causa da minha prisão. Desgostoso com a resposta vaga
atirou-me de chofre: – O nosso chefe é um gênio. O senhor não
acha? – Como? – Prestes é um gênio.

Mais tarde compreendi que o sujeito não era espião: era apenas
meio doido. Naquele momento, porém, julguei-o instrumento da polícia,
embora se mostrasse de inabilidade incrível.

– Qual é a sua opinião? – Nenhuma. Li dele dois ou três
manifestos, ali por 1931. Somente.

O homem passou o lenço na cara molhada, dirigiu-me as postas rubras:
– Então, se o senhor não considera Prestes um gênio, que
faz aqui? O senhor não é do Partido Comunista? Não esteve
na Aliança Nacional? – Não estive em nada.

O tipo começou a borboletear. E, de repente: – Apporelly é
um gênio, o senhor não acha? Na manhã fria o ruído
começava: sons duros de tamancos abafando as vozes dos pardais. O café,
o banho. Apporelly, no fim do alojamento, mudava a roupa devagar.

– Apporelly é um gênio. Que é que o senhor acha? Cautela
exagerada levava-me a precaver-me contra o indivíduo inofensivo: –
O senhor gosta de gênios. Talvez sejamos todos gênios. Gênios
em cueca, jogando o xadrez e a paciência. Pus-me a rir; o tipo se desviou,
macambúzio. E nunca mais se entendeu comigo. Na manhã seguinte
pegou o remédio e dirigiu-se, meio cego, a alguém que lhe deitasse
pingos nos olhos arruinados.

Passaram-se dias, semanas. As minhas pernas andavam quase sem dor no soalho,
na escada estreita, no pátio onde os militares faziam ginástica.
Percebi que várias pessoas começavam a esquivar-se de mim. Com
certeza, imaginei, se ressentiam por eximir-me de realizar tarefas desagradáveis.
Pediam-me conferências, artigos sobre romances novos, e não justificavam
a minha incapacidade. Feria-me a incompreensão. Era-me realmente impossível
fazer qualquer trabalho. E admiravam-me a pertinácia e a firmeza de
alguns homens que pareciam não descansar. Agildo Barata me dava a impressão
de uma aranha diligente, a fabricar dia e noite, meses e meses, a teia difícil.
As visitas, às sextas-feiras, levavam para o exterior os fios de uma
vasta composição que se alargava pela cidade, pelo país.
Criaturas dessa natureza não me desculpariam facilmente a inércia.
Devia estar aí a causa do afastamento. Enganei-me. Um companheiro veio
contar-me que alguém afirmara ter-me ouvido, em zanga indiscreta, dizer
de Prestes cobras e lagartos. O informante queria saber se aquilo era verdade.
Rejeitei o miserável assunto: – Não dou explicação.
Isso é uma estupidez, não perco tempo com mexericos idiotas.

As minhas palavras foram tomadas como evasivas, presumo, pois continuaram
arredios, a exibir carrancas. Estava claro: o sem-vergonha da oftalmia semeara
intriga, e meia dúzia de malucos admitia que eu fosse bastante leviano
para confiar nele. A credulidade me irritava. Para o diabo. Não me
fazia falta a convivência daqueles ingênuos. Uma tarde quente
peguei a toalha e encaminhei-me aos banheiros. Fechados. De regresso, avistei
uma torneira e resolvi utilizá-la. Acabava de lavar-me, enxugar-me,
quando alguns militares passaram e fingiram não ver-me. Euclides de
Oliveira deixou o grupo, chegou-se a mim: – Então esses moços
não falam com você? – Que se há de fazer, meu caro? –
Qual é a razão disso? – Não sei, nem procuro saber. Acreditaram,
suponho, em burrices, em safadezas. Deixá-los.

Vesti-me, saímos juntos.

– Isso é uma peste! exclamou o oficial.

A indignação dele compensou todos os desentendimentos. Pensei
na minha briga com Euclides no primeiro dia em que o vi. Reconhecendo-se injusto,
logo confessara o erro, desculpara-se firme, sem nenhum constrangimento, num
instante me aniquilara a fúria besta. De novo se patenteava a alma
nobre. Euclides não aceitaria sem exame as balelas de um desconhecido.

19

VAGOU uma cama perto do altar, e, receando vizinhança desagradável,
Apporelly me pediu que me transferisse para lá.

– Venha logo, antes que chegue um intruso.

Os bugalhos do provocador já não eram vermelhos; recobrada
a vista, o sujeito mexia-se com pés de gato, cochichando pelos cantos,
a semear discórdia, sem dúvida. Bom livrar-me dele. Aceitei
o convite, fui alojar-me a um passo de Apporelly, nos cinco metros de mosaico.
Só ali tínhamos sensação de estabilidade; o soalho,
batido pelos tamancos, balançava como um navio. Aos pés da cama,
no aperto, o humorista colocara uma pequena mesa redonda e passava os dias
debruçado nela, arrumando as cartas na paciência longa. A esquerda,
magro, a cor terrosa, a cabeça ainda raspada, acomodava-se Aristóteles
Moura, de quem me despedira, meses atrás, na Colônia Correcional.
Um pouco distantes, Moésia Rolim, Maurício Lacerda e Moreira
Lima. Ia-se renovar o Coletivo, e as opiniões se dividiram, empenhadas
em forte cabala. Uma intensa propaganda exaltava os espíritos como
se se tratasse de escolher o governo da república. No dia da eleição
procurei Agildo, perguntei os nomes dos candidatos, e ele me respondeu que
os dois grupos tinham chegado a um acordo. A hora ao chá, Ivan me falou
à porta do refeitório: – Você com certeza vota conosco.

– Espere, homem, não estou compreendendo. Agildo me disse que já
não há dissidência.

Ivan ignorava o ajuste e insistiu no pedido. – Pois sim. Que é da
chapa? O moço não tinha chapas naquele momento. Lá em
cima informei-me. Existia unanimidade, repetiram-me. Nem me lembrei de comparar
as cédulas; estava certo de que eram iguais. Recebi uma, guardei-a
sem examiná-la; a escolha não tinha para mim nenhum interesse.
Reunimo-nos em torno da mesa onde se jogava crapaud, recolheram-se os pedaços
de papel, em meio de forte vozeria. A apuração revelou discrepância:
três nomes alcançaram todos os sufrágios, mas para os
dois cargos restantes eles se dispersaram entre quatro pessoas.

– Oh, diabo! exclamei. Há divergência.

– Não sabia? chasqueou um sujeito à cabeça da mesa.
– Não. Garantiram-me que tinham feito combinação. – Quanta
ingenuidade! murmurou o tipo fechando a cara.

Irritei-me: – Eu não sou forçado a entusiasmar-me com insignificâncias.

Mais um inimigo, supus. E não me enganei. No dia seguinte Ivan chegou-se
a mim no pátio: – Você ontem me prometeu votar conosco. E votou
contra.

– Eu mesmo não tenho a certeza disso: nem li a chapa. Tomei uma ao
acaso, pode ter sido a sua. Findas as desavenças, não se justificavam
compromissos. Eu as julgava findas, como lhe disse.

– Não, replicou o tenente. Você prometeu.

– E eu fui testemunha, asseverou um companheiro ao lado.

O aparte me assombrou: a nossa conversa fora rápida, em voz baixa,
e aquele homem não estava presente. A zanga de Ivan compreendia-se,
de nenhum modo o julguei desleal.

Imaginei um equívoco, não nos tínhamos explicado bem.
Mas a declaração da testemunha impediu-me a fala, deixou-me
tonto.

– Estarei doido? perguntei a mim mesmo. Terei perdido a memória?
Restabeleci-me a custo, respirei. A memória funcionava direito: a afirmação
do indivíduo era falsa.

– As nossas relações estão cortadas, bradou o oficial.
Aprovei com um movimento de cabeça.

– E também as nossas, ajuntou o comparsa.

– Elas nunca existiram, resmunguei afastando-me. Recolhi-me aperreado. Bate-bocas
idiotas por uma eleição do Coletivo, sem importância.
Não era isso, refleti. Havia ali pretexto para luta: uma chapa vermelha,
outra rósea, com duas figuras anódinas. Porque não tinham
sido francos? Eu votaria na chapa do Partido, é claro. E deixavam-me
na ignorância quando buscava orientar-me. Em conseqüência,
vinham inimizades. Ivan tentou reaproximar-se de mim ao cabo de alguns dias:
com certeza havia reconsiderado, visto que um caso tão simples não
merecia rancor. Isso me pareceu honesto. Achava-me, por desgraça, cheio
de ressentimento e desviei-me com meia dúzia de palavras chochas. Aborrecia-me
a folhear um livro ruim e desejava matar o autor daquilo. Ivan chegou, sentou-se
na cama à direita, entrou a conversar com Apporelly. Receando ser indiscreto,
larguei a brochura, ergui-me. O tenente pediu-me que ficasse. Tornei a sentar-me,
reabri o volume, um romance pavoroso, continuei a ler por hábito, indiferente
à prosa escrita e à falada. A indiferença não
era completa: chegavam-me os períodos longos do rapaz e voltava-me
a impressão recebida meses antes: – “É o militar que sabe
sintaxe.” Depois de consultar Apporelly, o moço quis ouvir a minha
opinião. Escusei-me frio, alegando não conhecer bem o assunto.
E não nos tornamos a falar enquanto ali vivi.

Excessivo melindre me levava quase ao isolamento, apesar de saber que Ivan
Ramos Ribeiro procedera com decência. Afinai era absurdo zangar-me por
alguns rapazes me evitarem, desconfiados. Realmente não conheciam o
sujeito dos olhos purulentos; também não me conheciam. Naquele
meio fecundo em ratoeiras uma palavra bastava para nos fecharmos arrepiados.
A pergunta do oftálmico dera-me a certeza de me achar d?ante de um
espião; a denúncia dele atirara sobre mim várias suspeitas.
Só entre os comunistas havia confiança, mas ainda aí
surgiam às vezes surpresas. O dirigente de importância se chegava
a polícia. Miranda me parecera, não sei porque, um tipo duvidoso.
Observação involuntária. A pimponice, a mentira, a exposição
vaidosa de ferimentos leves deixavam-me com a pulga atrás da orelha.
Uma ligeira conversa – e separação definitiva. Tempo depois
o miserável andava a elogiar Hitler, a dizer que o verdadeiro comunismo
se realizava em Berlim. Certas pessoas ali esperavam de mim comportamento
igual, e isto me aborrecia, não por me considerar uma perfeita dignidade,
mas por me faltar vocação para traidor. E se pudesse resolver-me
a trair, que diabo iria contar? Encolhido, ignorava tudo. Toquei vagamente
nisso a Aristóteles Moura:
– Uma peste!
– Você não tem serenidade para julgar, respondeu Moura. Não
temos serenidade.

A segunda afirmação do homem tranqüilo, de juízo
claro, quase me fazia rir.

– O Partido não está aqui. Lá fora você acha
coisa muito diversa. Há entre nós verdadeiros comunistas, e
é preciso não confundi-los com simpatizantes cheios de intransigência.

Essa opinião otimista de um homem que tinha, recentes, no corpo magro
vestígios da Colônia me restituía o sossego. O horror
daquele inferno, daquela ignomínia, não o desviara da linha
reta; impossíveis discrepâncias funestas.

– Vivemos numa desgraçada fase de confusão, e é natural
que todos se previnam.

Concordei: havia asseverado isso com freqüência, e fortalecia-me
a corroboração do meu pensamento. Indispensável um apoio
exterior. A esquerda, essa firmeza resistente às misérias da
Colônia. A direita, o meu pobre amigo Apporelly, a sofrer, amável
e risonho, lançando trocadilhos em atitude profissional. Doía-me
a paciência triste dele, aparentemente alegre. Não passava mal
o dia, mas á noite, apagadas as luzes, entrava a aperrear-se, em forte
agitação. De repente erguia-se num tremor convulso, batendo
os dentes, a arquejar. Isso me dava um sono incompleto. Abandonava o travesseiro,
agarrava o doente até que ele se acalmasse. Atormentava-me. Iria Apporelly
morrer-me nos braços? Por fim o meu ato era mecânico: ao despertar,
já me achava seguro a ele, tentando um socorro impossível. (amos
ao consultório médico pela manhã, tomar injeções.
As minhas pernas ainda estavam ruins. Descíamos a escada, lentos, amparando-nos;
chegávamos ao pátio, enfrentando numerosos obstáculos.
Apporelly trauteava uma canção briosa, enérgica, atirada
com fogo desde o Pavilhão dos Primários. Era engraçado
vê-lo, arrimando-se, capengando, insistir na marcha difícil.
Ao chegar a um portão, lançava o estribilho:
– Aqui não há quem nos detenha,
Não há quem vença a nossa galhardia.

Ficava assim minutos a esgoelar-se, até que o guarda nos abrisse
passagem.

20

UMA NOITE chegaram-nos gritos medonhos do Pavilhão dos Primários,
informações confusas de vozes numerosas.

Aplicando o ouvido, percebemos que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues
à Gestapo: àquela hora tentavam arrancá-las da sala 4.
As mulheres resistiam, e perto os homens se desmandavam em terrível
barulho. Tinham recebido aviso, e daí o furioso protesto, embora a
polícia jurasse que haveria apenas mudança de prisão.

– Mudança de prisão para a Alemanha, bandidos. Frases incompletas
erguiam-se no tumulto, suspenso às vezes com a transmissão de
pormenores. Isso durou muito. Pancadas secas nos mostravam de longe homens
fortes balançando varões de grades, tentando quebrar fechaduras.
No dia seguinte vários cubículos estariam arrombados, imprestáveis
algum tempo. Na Sala da Capela um rumor de cortiço zangado cresceu
rápido, aumentou a algazarra. Apesar da manifestação
ruidosa, inclinava-me a recusar a notícia: inadmissível. Sentado
na cama, pensei com horror em campos de concentração, fornos
crematórios, câmaras de gases. Iriam a semelhante miséria?
A exaltação dominava os espíritos em redor de mim. Brados
lamentosos, gestos desvairados, raiva impotente, desespero, rostos convulsos
na indignação. Um pequeno tenente soluçava, em tremura
espasmódica:
– Vão levar Olga Prestes.

A queixa lúgubre deixava-me em situação penosa; esforçava-me
por extingui-Ia. Nenhuma verossimilhança: com certeza aquilo era boato,
conseqüência de imaginações des regradas. Vivíamos
num ambiente de fantasmagorias. Asserções imprevistas me deixavam
zonzo, entre a realidade e o sonho, a perguntar a mim mesmo, considerando
um homem que se transformava em duende: – “Estará doido? Ou serei
doido eu?”
Dias antes, ao apagarem-se as luzes, deixara-me ficar num banco, debruçado
nas tábuas dos cavaletes, lendo sob o quebra-luz de papel. De repente,
barulho no fundo escuro da sala. José Brasil se erguera excitado, acendera
todas as lâmpadas: – “Acordem, abram os ouvidos. Há metralhadoras
lá embaixo, assestadas contra nós. É estúpido
morrer como carneiros. Não ouviram? Acordem, vamos preparar a defesa.”
Várias pessoas roncavam; outras se moviam chateadas, esfregando os
olhos; algumas se deixavam contagiar, admitiam perigos indeterminados. E José
Brasil comandava, indicava posições: – “Fiquem aqui, resguardem-se.
Não passem diante das janelas.” Feitas indagações,
descobrira-se enfim a origem das metralhadoras: os ratos, no altar, haviam
roído uma estante, derrubado um missal, causado o enorme espalhafato.
Devia agora existir uma ilusão dessa espécie: alguém
se embrenhara em fantasia maluca, achara adeptos, e ao cabo de uma hora as
duas casas estavam contaminadas pela estranha loucura.

Em roda entraram a sacudir as persianas velhas, jogaram no pátio
as moringas: privaram-nos de água. Os tamancos batiam firmes no chão
movediço. Doía-me saber que essas rijas manifestações
não teriam nenhum efeito no exterior. As duas mulheres sairiam do Brasil
se a covardia nacional as quisesse entregar ao assassino estrangeiro. A idéia
repelida voltava; enfraquecia o desejo de amortecê-la. Para que buscar
a gente enganar-se? Eram capazes de tudo. O rumor crescia, as vozes aumentavam.
Em ligeiras pausas nessa borrasca inútil, engarrafada, chegavam-nos
informes que, para ser compreensíveis a tal distância, vinham,
julguei, dos pulmões, poderosos como foles, do tremendo Lacerdão.
Nesses hiatos visitava-me a esperança de que os bichos antipáticos
se houvessem retirado Meia dúzia de palavras aniquilava-me o otimismo.

Em duro silêncio, fumando sem descontinuar, sentia na alma um frio
desalento. Mas porque, na horrível ignomínia, haviam dado preferência
a duas criaturas débeis? Elisa Berger, presa, era tão inofensiva
quanto o marido, preso também. Contudo iam oferecê-la aos carrascos
alemães, e Harry Berger permanecia aqui, ensandecido na tortura. O
nazismo não exigia restos humanos, deixava que eles se acabassem devagar
no cárcere úmido e estreito. A noite, na sala 4, Elisa despertava
banhada num suor de agonia, os olhos espavoridos. A lembrança dos tormentos
não a deixava; um relógio interior indicava o instante exato
em que, meses atrás, a seviciavam na presença de Harry, imóvel,
impotente. Olga Prestes, casada com brasileiro, estava grávida. Teria
filho entre inimigos, numa cadeia. Ou talvez morresse antes do parto. A subserviência
das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza
e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à
ditadura ignóbil. Nasceria longe uma criança, envolta nas brumas
do norte; ventos gelados lhe magoariam a carne trêmula e roxa. Miséria
– e nessa miséria abatimento profundo.

A cabeça entre as mãos, os olhos fixos no mosaico, tentava
desviar-me dali, fugir ao pesadelo. Acendia um cigarro, jogava-o fora, acendia
outro. Esse exercício, único, enervava-me. Não seria
possível fazer outra coisa? A brasa do cigarro a queimar-me os dedos
convencia-me de que não me achava adormecido. Era uma vigília,
sem dúvida, infelizmente diversa de outras aparecidas meses antes,
quando a polinevrite me lançava à espreguiçadeira, na
saleta do café. Idéias fúnebres iam, vinham, engrossavam-me
o coração. Miseráveis. O campo sórdido, o opróbrio,
a dor. E depois os fornos crematórios, as câmaras de gases. Outras
figuras em roda permaneciam inertes como eu, cabisbaixas, olhos no chão
Carlos Prestes, isolado, estaria assim, mas ignorava as ameaças à
companheira. Chegar-lhe-ia aos ouvidos um som confuso do imenso clamor. De
que se tratava? Pegaria um livro, mergulharia no estudo vagaroso e tenaz.
A vozearia abafada não tinha para ele significação. E
passaria meses sem poder inteirar-se da enorme desgraça. O tenente
gemia, e as palavras invariáveis pareciam ter apagado as outras, escorregavam
num soluço:
– Vão levar Olga Prestes.

Era afinal um desafogo manifestar-se alguém, insurgir-se de qualquer
forma. Os utensílios da marcenaria malhavam as portas, abafavam às
vezes o ,lamento do rapaz. Havia uma suspensão, e as sílabas
chorosas reapareciam. Os indivíduos expansivos imaginavam talvez estar
sendo razoáveis: pancadas e gestos de indignação serviriam
para alguma coisa. Horrível era o desânimo de muitos, a certeza
de que a cidade se afastava de nós, indiferente.

– Para que isso? perguntava a mim mesmo impacientando-me. Ignoram tudo,
e a imprensa, vendida, nos enegrece.

A lamúria do rapaz mexia-me os nervos. Lembrei-me da viagem à
Colônia Correcional. Demorara-me diante dos cubículos, a despedir-me
dos companheiros. No pavimento de baixo, ao transpor a larga porta, lembrara-me
de ver as mulheres da sala 4: encaminhara-me à direita, subira a escada.
No atordoamento, não me era possível examiná-las direito.
Estavam à grade, em filas, umas no solo, outras suspensas, os tamancos
pisando as traves, as saias entaladas, as pernas entre os varões de
ferro, seguras a eles. – “Adeus.” – “Boa viagem.” Pedaços
de rostos, mãos, coxas, tamancos, frases amáveis, sorrisos,
misturavam-se, vagos, inconsistentes. Na ala inferior, branca e serena, Olga
me atirara alguns sons guturais, provavelmente a expressão de bom desejo,
difícil de perceber aquela situação. A pequena distância,
os bugalhos de Nise e os lábios sangrentos de Valentina. Desviara-me
zonzo, descera, levando fragmentos vivos, a grulhada imperceptível
e, dominando tudo, a fisionomia tranqüila, a alvura de nata, algumas
palavras lançadas com pronúncia exótica. Certa manhã,
na enfermaria, Elisa Berger surgira de repente na entrada ao fundo. Havia
ali duas grades, a limitar um vão diminuto, e pelo menos uma estava
sempre fechada. Naquele dia as duas se achavam destrancadas, exatamente quando
Elisa passava por elas, dirigindo-se ao gabinete do dentista. Rápida,
-a mulher entrara e, examinando cautelosa os arredores, estendera um envelope
a Eneida, cochichara um instante e sumira-se, dando-me apenas o tempo necessário
para notar que estava mais abatida e mais grisalha. Pouco depois as chaves
tilintavam nas fechaduras. E sexta-feira à tarde os papéis fraudulentos
haviam deixado a prisão, na bolsa de uma espanhola sonsa, que dizia
ao velho, Nunes quando obtinha visita extraordinária. – “Nossa
Senhora é quem lhe há de pagar, seu major.”
Agora, sentado na cama, esforçava-me por escapar ao charivari embalando-me
num pensamento que várias vezes me havia ocorrido. Era estranho as
duas grades, em geral trancadas, fiscalizadas, se abrirem à passagem
de Elisa Berger, em seguida se fecharem como se nada irregular existisse.
A coincidência trazia-me dúvida e espanto. Seria coincidência?
Um minuto de abandono, suficiente para o contrabando; nenhum vigia no recinto
circular. Finda a manobra, um guarda viera de supetão, rigoroso e desconfiado,
metera as lingüetas nos encaixes. Mas porque se ausentara quando a ausência
dele favorecia uma infração? Conveniência. Esta idéia
me assaltara e fixava-se, embora me apoiasse em meros indícios. Uma
débil esperança animou-me: outros cúmplices tentariam
salvar as infelizes. Abafei com desânimo a ilusão: se algum doido
quisesse arriscar-se por elas, inutilizar-se-ia sem nada conseguir. Enfim
não se tratava de obséquio miúdo: retirar-se uma pessoa,
voltar ao cabo de um instante, com firmeza e energia, receosa de comprometer-se.

As horas arrastavam-se, vagarosas, a balbúrdia aumentava um pouco,
diminuía. Em frente à sala 4, a polícia jurava que as
duas vítimas não sairiam do Brasil. A promessa nos era transmitida
com hiatos, abafada e rouca. Espaçavam-se os gritos, as forças
minguavam, não se prolongaria a resistência.

Tarde, a matilha sugeriu um acordo: Olga e Elisa seriam acompanhadas por
amigos, nenhum mal lhes fariam. Aceita a proposta, arrumaram a bagagem, partiram
juntas a Campos da Paz Filho e Maria Wemeck. Ardil grosseiro. Apartaram-nos
lá fora. Campos da Paz e Maria Werneck regressaram logo ao Pavilhão
dos Primários. Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas.
Soubemos depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração
na Alemanha.

21

UM JUIZ do Tribunal Especial veio interrogar os presos que tinham processo.
Mandou chamá-los à secretaria. Ninguém foi lá
Era paisano e bacharel, e os militares se encarregaram de ridicularizá-lo
muito depressa.

Acomodatício, o homem se instalou a alguns passos dos cubículos
onde se arrastavam discussões trabalhosas e se compunham relatórios,
manifestos, correspondência todas as se manas entregues aos correios
de saias que nos visitavam no Cassino. Numerosos convites foram feitos, repisados
com paciência. Nenhum transtorno aos rapazes. Atravessariam de relance
o pátio miúdo e, descerrando um portão, entrariam numa
sala, diriam meia dúzia de palavras necessárias. Só.
Nem precisavam mudar a roupa. Concessão temerária: insinuavam-lhes
falar quase nus à autoridade, o que realmente se deu pouco depois.
Naquele momento rejeitaram a condescendência, intratáveis, duros,
e insubordinaram-se. O local das reuniões secretas, vizinho ao refeitório,
semelhava um cortiço de abelhas assanhadas. Não se reconhecia
o Tribunal Especial, cópia do fascismo. Aquela gente anfíbia,
que ainda misturava peças de farda ao vestuário civil, calejava
nos exercícios e tinha o coração perto da goela. Ia e
vinha, subia e descia a escada, empurrava com força os dois portões
fronteiriços, simulava não enxergar o magistrado paciente e
chinfrim da justiça reacionária.

Três ou quatro dias as mesmas cenas se renovaram: intimações,
recusas, o sujeito da lei nova abancado horas a fio, surdo a remoques, seguro
ao osso miserável do emprego. Surgiu-nos, com certeza por isso, um
funcionário de modos policiais. Chegou-se com pés de gato às
tábuas dos cavaletes, abriu uma pasta, desdobrou papéis, rosnou
sons indistintos. Aproximando-me, conheci o intuito dele: convidava algumas
pessoas a prestar declarações. Pegou uma lista e iniciou a chamada:
– Lourenço Moreira Lima.

Isso não produziu nenhum efeito. Em redor, indiferentes, jogavam
xadrez, percorriam jornais, como se nada tivessem ouvido. Na frieza e na falta
de respeito à ordem, o tipo gaguejou o apelo com voz mais forte. De
camisa e cueca, sentado na cama junto ao altar, Moreira Lima tossiu, levou
a mão à orelha, informou-se:
– An! Comigo! Não temos negócios não. Passe adiante.
O funcionário fez ouvidos moucos à negativa e prosseguiu a leitura,
fria, mecânica, profissional; os indivíduos mencionados pareciam
distantes dali. Aquilo iria ter conseqüências desagradáveis,
sem dúvida; se pudessem, alguns procurariam evitá-las, mas receavam
mostrar-se covardes. A rebeldia inicial originava repulsa unânime, dava-nos
fugitiva impressão de fortaleza. O instrumento da polícia arrumou
as folhas e retirou-se. Que diabo nos aconteceria?
O juiz flexível cansou na espera inútil, desapareceu, foi substituído
por outro, severo, intransigente, de maus bofes, oficial do exército.
Esse usou método rápido e eficaz. Inteirou-se da oposição,
entendeu-se com o diretor e ordenou conciso o arrastamento dos cabeçudos
ao interrogatório. Como os guardas eram incapazes da tarefa, requisitou
a polícia especial, que veio numerosa e bruta, invadiu as celas, distribuiu
pancadas, malogrou a resistência.

Da saleta do café, ouvi um barulho feio. Entrei na oficina de encadernação,
abri uma veneziana, vi Sócrates passar, de cueca e tamancos, agarrado
por dois ferrabrases patibulares. Um tipo surgiu, bem vestido, solto, na disciplina
da caserna, a publicar a dissidência amarga que fermentava na prisão.

Afastei-me, fui debruçar-me a uma das janelas próximas aos
cavaletes. Lá embaixo havia metralhadoras dirigidas a nós, e
homens fortes de bíceps enormes, cabeças vermelhas de galo-de-campina,
andavam firmes, a expor energia. Pensei na extravagância de José
Brasil, motivada pelos ratos, quando as luzes se apagavam. Já não
era preciso buscarmos perigos insensatos no escuro da noite. A alguns metros,
dia claro, lá estavam armas reais, indubitáveis, as bocas erguidas,
e rijos latagões de cócoras, acertando a pontaria.

Essa fanfarronada impressionou menos que a fantasia louca de José
Brasil. Diante das máquinas de aço a imaginação
e a curiosidade esmoreceram. A princípio ainda chegá vamos ao
parapeito, ficávamos algum tempo a observar a rumorosa exposição
de força, na verdade inofensiva. Queriam apenas amedrontar-nos. Convencia-me
disso vendo os gestos ásperos, as carrancas e os longos manejos invariáveis
das robustas crianças perversas. Logo nos habituamos: no dia seguinte
era como se o aparato marcial sempre nos tivesse feito a ameaça inútil.
Conservaram-se ali talvez uma semana; praticadas as violências profissionais,
retiraram-se, e a polícia da casa pôde levar os moços
exaltados ao juiz escabroso.

Certa manhã, depois do café, anunciaram-me visita. Arranjei-me
à pressa, desci, fui ver minha mulher na alfaiataria, onde se realizavam
esses encontros irregulares, frutos de engenhosos pretextos, renovados, modificados
com êxito. Sentamo-nos em cadeiras de vime, o Sousa alfaiate arredou-se
discreto. Algumas perguntas e respostas chochas revelavam-me, nesses momentos
de exceção, que a mulher gastara energia sem proveito. Como
estava a saúde? Havia notícia das crianças? Que diziam
de nós lá fora? Éramos uns patifes, segundo os jornais.
Informando-me, queria saber se o juízo severo continuava firme na opinião
pública ou se se notava qualquer mudança. Os meninos, sem novidade.
E passávamos bem. Minha mulher não tinha doença. As dores
das pernas já não me atormentavam, os cabelos cresciam: era-me
possível usar pente. O vagabundo repulsivo, de cor terrosa e bochechas
cavadas., visto no espelho meses atrás, desaparecera. Sentia-me lerdo
e começava a engordar; apraziam-se a inércia, a cama, os cochilos;
o menor esforço fatigava-me.

Naquela manhã, narrados os últimos sucessos, internos e externos,
repisamos assuntos, caímos em silêncio. De repente ouvimos altos
brados. Erguemo-nos, chegamos á porta, enxergamos à direita
um grupo confuso. Já me habituara a cenas iguais: iam levando um acusado
ao interrogatório. Trouxemos cadeiras para a calçada, aí
nos instalamos curiosos. Um novelo de corpos agitados passava diante de nós,
a pequena distância. Arregalando os olhos, distingui Álvaro de
Sousa, suspenso, a debater-se com desespero, nas mãos de quatro homens
que lhe seguravam rijo os braços e as pernas. A cabeça, desgovernada,
subia, descia, em duros solavancos, tentava equilíbrio; o rosto se
avermelhava furioso; a boca torcia-se, vomitava injúrias ao governo,
à justiça nova, ao exército. Alongando o pescoço,
mostrava a cicatriz da navalha que lhe cortara músculos importantes,
modificara a fisionomia. Batida pelo sol, aparentava insana mistura de raiva
e escárnio. Os insultos não diminuíam. E transportaram
assim o capitão Álvaro de Sousa, meio despido, a exibir marcas
de tiros na barriga e no tórax, fardo incômodo.

Afastara-se, o barulho declinou, sumiu-se. Diante do vulto escuro, turbulento,
recobramos idéias e ânimo; reapareceram as palavras fugitivas.
Parecia-nos que Alvaro se abalava à toa, desperdiçava forças
dele e de outros. A coragem louca perdia-se. Berros, esgares, movimentos de
bicho feroz dominado a custo, seriam indistinto rumor além dos muros
da prisão. E nada valiam serem percebidos: o juízo venenoso
dos jornais insinuava-se nos espíritos.

Novo magote nos perturbou a conversa, mas esse mexia-se tardo, em desânimo
visível. Ainda uma pessoa, chamada a prestar declarações,
resolvera deitar-se, e não houvera meio de colocá-la em posição
vertical. Necessário transportá-la daquele jeito, provisoriamente
aleijada. Espantou-me nela a ausência de contorções, uma
serenidade a contrastar com os destemperos de Álvaro, pouco antes.
Os carregadores moviam-se vagarosos, sem esforço, e outros indivíduos
vinham atrás, como gatos-pingados a realizar um enterro pobre. Tínhamos
na verdade a impressão de nos acharmos num cemitério. No primeiro
momento não reconheci a figura inerte, franzina, leve, metida num pijama
de riscas. A alguns metros do portão a carga exígua deu sinal
de vida e chegou-me a voz metálica de Agildo, cortante como lâmina:
– Bem. Já fiz o meu protesto. Larguem-me, vou levantar-me.

Não pedia: apesar de falar baixo, dava uma ordem, concisa e dura.
Três homens o soltaram; o quarto, um negro alto e magro, continuou a
segurar-lhe a perna direita.

– Larguem-me, repetiu o,moço, as costas no chão, uma banda
meio levantada.

Não alcançando, na situação desfavorável,
a obediência a que se habituara, encolheu-se, retesou os músculos
e jogou um vigoroso pontapé na cara do negro. A ponta do tamanco
feriu carne, cartilagens, e o infeliz recuou limpando as ventas ensangüentadas.
Finda essa proeza, rápido bote de cobra, Agildo retomou o sossego.
Um instante depois marchava seguido pelos guardas, lento, economizando energia
para ofensas acres ao juiz atrabiliário.

22

UMA NOITE, depois do chá, os militares trouxeram para o salão
todos os bancos do refeitório. Alinharam perto dos cavaletes esses
móveis toscos e em poucos minutos se formou um tablado, que mantas
e lençóis ocultaram, seguros a cordas presas às paredes
e às janelas. Num quarto de hora a prisão se mudou em teatro;
íamos assistir a uma comédia. A peça não fora
escrita: examinara-se o assunto nos cubículos, à tarde, e os
atores, de improviso, desenvolveriam em liberdade os seus talentos no decurso
da representação.

Enquanto se arranjava a cena, um grupo cochichava os últimos retoques
à obra de arte composta de afogadilho. A platéia se organizou;
os artistas muniram-se de cadeiras, de instrumentos necessários, subiram
ao palco, afastando as cortinas grosseiras. Não havia ponto nem contra-regra:
subordinando-se ao plano, cada qual teria o direito de entrar, sair, dizer
qualquer coisa ou não dizer nada. Os papéis cresceriam, diminuiriam,
conforme as circunstâncias. Que iria sair dali? Provavelmente não
sairia nada, mas estávamos de pé, olhos e ouvidos atentos, longe
do crapaud, do xadrez, da paciência. O ensaio geral se realizava lá
dentro, num burburinho.

Súbito o pano de boca se descerrou e distinguimos uma caricatura
do tribunal que nos chateara uma semana. Em torno de uma pequena mesa, alguns
sujeitos exibiam influência e carranca: Flávio Poppe, Rollemberg,
outros, fardados, à paisana. Faziam sinais, folheavam papéis,
sérios, atentos, em discussão muda. Ao centro, enrolado num
paletó negro, uma pasta de algodão na gola, fingindo arminho,
Apporelly coçava a barba e presidia, com bocejos. Diante dele, os braços
amarrados às costas, um lenço a tapar-lhe a boca, erguia-se
um tenentezinho débil, insignificância, tão magro e baixo
que o tratavam por filhinho do Agildo. Pegara a alcunha: miúdo, franzino,
Agildo se avantajava ao rapaz em músculo e estatura. Ao fundo, um tipo
se agachava, as abas do chapéu a cobrir-lhe o rosto; fumava e cuspia
no chão e nas paredes de pano.

– É o tira, disse Flávio Poppe a um vizinho, indicando esse
espantalho sombrio, de cara invisível.

Durante algum tempo os juízes mexeram nos autos, a murmurar segredos.
Aquietaram-se, e Apporelly entrou a resmungar uma extensa arenga, de que não
se distinguia uma palavra. Zangava-se, batia na mesa, dirigia-se interrogativamente
à figurinha amordaçada e imóvel. Depois de muito rosnar
sons indistintos, balbuciou uma ordem pastosa:
– Defenda-se.

A criatura deu um passo, diligenciou levantar as mãos presas, estirou
o pescoço, um gorgorejo rouco esmoreceu-lhe na garganta.

– Defenda-se, covarde, gritou Apporelly, esmurrando o ar, bravio.

Conteve-se, esperou, esfregando o pelame revolto da cara; dirigiu-se aos
colegas:
– Não quer defender-se. Precisamos nomear-lhe um advogado.

Os outros concordaram, mas a escolha de patrono razoável originou
um diálogo cheio de qüiproquós. Avançavam, recuavam;
o presidente, amolado, assentia, dissentia, embrulhava-se, ajeitava na gola
a pasta de algodão rebelde, pregava os olhos no acusado, aproximava
dele as cerdas longas e ásperas de javali:
– Defenda-se, canalha.

O tenente permaneceu quieto na mordaça e na corda.

– Não é possível ser julgado sem defesa, tartamudeou
Apporelly.

Agarrou uma folha e, vagaroso, tremelicou a redigir, riscar, de espaço
a espaço virando-se para os lados, em consultas breves e moles aos
figurantes do tribunal. Chamou o tira, ofegou um mandado bambo. O funcionário
moveu-se, capengou, recebeu o papel, retirou-se pela porta única, ao
fundo, a cuspir, a derrear-se, embicando o chapéu. O presidente esganiçou
um risinho de aprovação babosa à força material
e esfregou as mãos alegre, como se os muques da segurança pública
fossem dele. Um minuto os juízes se entretiveram em conversa animada
e silenciosa. O polícia, rebocando um homem, veio interrompê-los:
– Entra, chefe. O doutor chamou.

Só aí, pela voz rouca, distingui o indivíduo oculto
sob as abas imensas do chapéu: era Morais Rego, um oficial de intendência,
teimoso em excesso. Meses atrás, na enfermaria, nunca deixava de contrariar-nos
lançando idéias extravagantes; se acaso pensávamos como
ele, mudava de opinião. Encolheu-se, foi representar, exímio,
o seu papel de cão de fila.

E Ivan Ribeiro surgiu, chegou-se ao réu, entabulou um discurso em
linguagem profundamente revolucionária, sem nenhuma deferência
aos magistrados. Jogou em cima deles
pedaços do programa da Aliança Nacional Libertadora e frases
que diariamente se renovavam para animar os espíritos vacilantes. Pão,
terra e liberdade – exigiu firme. Arrojou-se a atacar o governo e apresentou
como herói o vivente mesquinho, deslocado nas ataduras. Foi pouco além
do intróito. Logo aos primeiros arremessos, os julgadores alarmaram-se,
arrepiaram-se como se os mordessem pulgas; entenderam-se à pressa,
com visível receio de que tais desconchavos fossem ouvidos lá
fora. A um gesto de Apporelly, Morais Rego chegou-se a Ivan, segurou-lhe um
braço, indicando a porta: – Anda, chefe. O doutor mandou.

O inconveniente defensor prosseguiu nas horríveis diatribes; levado
aos empurrões, saiu a vociferar desacatos furiosos à justiça.
Pancadas, berros, luta a esmorecer, a distanciar-se; veio o silêncio,
quebrado agora por um forte pigarro nos bastidores. Esse rumor conhecido revelou
a nova personagem. O polícia voltou; falou baixo ao presidente, foi
agachar-se à entrada, apontou a mesa com o polegar, dirigindo-se a
uma pessoa invisível. E Moreira Lima apresentou-se, curvo, temperando
a garganta, a apalpar as virilhas, a ajeitar a funda. Avançou, cumprimentou,
digno.

– É outro advogado que vem patrocinar a causa deste miserável,
bocejou Apporelly, sonolento, aos parceiros.

E, voltando-se para o recém-chegado: – Tem a palavra.

– Senhores membros do colendo Tribunal Especial, começou o bacharel
feroz aproximando-se da mesa.

Pegou um caderno, abriu-o enfastiado, largou-o:
– Eu nem preciso examinar o processo, pois este caso é notório.
O réu presente não esconde os seus crimes. Atentou contra as
nossas instituições, conspirou, usou bombas e combateu as forças
legais – todo o mundo sabe. Tomou parte na insurreição de Natal
e sublevou-se em Pernambuco – todo o mundo sabe. Envolveu-se no barulho do
3.° Regimento, não pode negar – todo o mundo sabe. No mesmo dia
insurgiu-se na Escola de Aviação todo o mundo sabe. Redigiu
manifestos sediciosos, organizou comícios, pichou muros e escreveu
artigos violentos em jornais clandestinos – todo o mundo sabe.

A cavernosa tosse costumeira algumas vezes interrompia as afirmações
decisivas.

– Mas, senhores juízes, arquejou o extraordinário rábula,
o acusado mostra pelo menos uma virtude: não procura inocentar-se Obrigado
a interrogatório, permaneceu quieto, e a denúncia está
sólida. As faltas dele são graves – todo o mundo sabe. E no
estado em que se acha não lhe seria possível negá-las.
Além disso, devemos reconhecer, temos diante de nós um irresponsável.
É um infeliz, um pobre-diabo, ruína física. Pela cara
vemos perfeitamente: um imbecil, um idiota. Sem dúvida obedeceu às
instruções dos agentes de Moscou. Assim, venerandos juízes,
não venho pedir justiça, que este indivíduo é
um canalha – todo o mundo sabe. Espero clemência, e baseio-me nas tradições
misericordiosas da nossa cultura ocidental. Uma pena suave, meritíssimos
juízes, aí uns trinta anos, porque enfim este bandido serviu
de instrumento.

A defesa calou-se. A presidência esfregou o queixo barbudo, sorriu,
alvitrou:
– Acho bom atendermos ao pedido, sermos generosos. Trinta anos. Que dizem?
Há na verdade atenuantes. Apenas trinta anos, na ilha Grande. Uma sentença
módica.

– Excelente, concordaram todos os comparsas levantando-se.

– Morais Rego moveu-se, caxingou, deu uns safanões no condenado,
arrastou-o:
– Anda, chefe.

As cortinas cerraram-se. A platéia ria. Na saleta do café,
os guardas riam.

23

HOUVE efervescência nos cubículos, um rumor espalhou-se, encheu
o pátio, o refeitório, a escada, os banheiros, a saleta do café
– e a novidade precisou-se afinal: iam fazer a greve da fome.

– Doidice, afirmaram sujeitos graves, inimigos de abalos, ostentando experiência.

A medida extrema exigia preparação, alimento poupado em dias
e meses, gasto pouco a pouco nas horas difíceis, para dar lá
fora a impressão de que algumas dezenas de pessoas queriam na verdade
morrer em suicídio lento. Nunca me haviam ocorrido essas cautelas.
Os jornais me haviam imposto a incrível resistência de certos
organismos, e isto me ajudava a suportar às vezes semanas de fastio.
Comparado à rigorosa abstinência em duras prisões da Europa
e da Ásia, o meu sacrifício no porão do Manaus e na Colônia
Correcional fora pequeno. Davam-me notícia agora de uma técnica
nas privações, dosadas convenientemente, se era possível
comunicá-las ao exterior, mandá-las a outros países em
telegramas.

Estaríamos em condições de utilizar essa arma? Pensei
na defesa dela, exposta por Medina, sustentada por Bagé, no terraço
do Pavilhão dos Primários. Bagé rosnara motivos sem pé
nem cabeça, a gaguejar, e um vizinho me tocara o braço, indignado:
– “Provocação.” Mas faltara-lhe ânimo para manifestar-se
em voz alta. As caras em redor se anuviavam, quase todos se opunham, e quase
todos, confusos, tinham aprovado maquinalmente o jejum. Finda a votação,
Rodolfo Ghioldi se revelara, confessando-se vencido. Que vantagem podíamos
esperar? Obteríamos publicidade? Como? A imprensa nos atacava: não
éramos vítimas na opinião dela, fôramos agressores.
Os deputados capazes de arriscar uma palavra a nosso favor estavam presos.
Quem se interessaria por nós? O protesto ficaria em silêncio.
O juízo divergente ocasionara modificação radical na
assembléia, e o primeiro a desdizer-se fora Bagé, com um risinho
besta, inofensivo. Não reparara naquilo, enganara-se. Leviandade. Segunda
votação condenara unanimemente a coisa resolvida. Que diabo!
Dependíamos de criaturas levianas. Depois, no colchão duro,
na preguiça regulamentar, com freqüência uma idéia
me assaltara, desagradável, misturada a conversas chatas e a percevejos.
Homens vaidosos e ingênuos. Seriam realmente ingênuos? A quem
aproveitava a ingenuidade? – “Enganei-me.” Engano suspeito. Se o
conselho rebelde se efetuasse, alguns de nós iriam resfriar-se no chão
molhado, em celas escuras. Um sopro me ‘deixara no ouvido o aviso severo:
– “Provocação.”
Esse caso infeliz ressurgia enquanto os rapazes se agitavam semeando razões
para greve. Achei-as bem fracas, mas afastei a idéia de existirem provocadores
entre os homens que as defendiam. Vários deles eram meus inimigos,
e isto deve ter-me levado a esforçar-me por ser imparcial. Não
me sentia propenso a cultivar ódios. Certos indivíduos tinham
sido injustos e grosseiros comigo. Teriam sido? Grosserias e injustiças
esfumavam-se, vapor, sumiam-se rápido no ambiente a que nos submetiam-
Ganhavam raízes os fuxicos de um energúmeno meio cego que via
gênios em toda a parte. Mole, deixando a enfermaria antes da cura, desanimava-me
a ler desgraças na Espanha. Enxergava ali uma derrota provisória:
ainda amargaríamos tempos duros. – “Então você não
acredita na vitória da revolução?” perguntara-me
um oficialzinho cheio de susto. – “Não acredito em nada, meu caro.
Não sou crente. Julgo infalível a vitória da revolução,
hoje, amanhã, não sei quando. Isto não é crença.
É certeza. Se eu pudesse acreditar, acreditaria nos anjos, em Deus,
que têm pelo menos a vantagem de ser velhos.” Dizendo tais horrores,
furtava-me a explicações – e era razoável evitarem-me.
Além disso recusara-me a fazer conferências, a escrever um artigo
e não atentara na eleição do Coletivo. Em suma: reacionário
pessimista. Walter Pompeu buscava exasperar-me narrando comentários
arrasadores. Paciência. Muitos vinham da caserna, tinham hábitos
diversos dos meus, eram rigorosos com as pessoas indiferentes às canções
patrióticas. Isso nos afastava, mas de nenhum modo me levava a supor
que eles quisessem mandar-me pata a Colônia Correcional. Pensando bem,
sentia-me perplexo, custava-me a ver em Mediria um provocador. Também
ele fora enviado à Colônia. De volta, achara bom trancarem-me
lá, darem-me assunto para um livro. Debaixo de ramos que nos importunavam,
a bater asas, a trilar, desejara que me deixassem uns dias faminto, no barracão
sórdido. Sairia dali uma história magnífica. Esse prognóstico
amável não me seduzia. Preferível deixarem-me em paz,
longe de trabalhos inúteis e responsabilidades. Bagé sumira-se,
mas este propriamente não vivia, era simples apêndice. Finda
a inexperiência, inclinava-me a agradecer a Mediria os bons propósitos.
Irrealizáveis, sem dúvida. Cubano e Gaúcho ficariam desconhecidos,
ou apareceriam deformados e imóveis, esboços feitos a custo,
na ignorância. Não me seria desagradável tornar a vê-los,
completar observações, aprender alguma coisa. Voltar à
Colônia, deitar-me na esteira podre, na cama suja de hemoptises, falar
a Cubano, embalar-me nas aventuras de Gaúcho, saber como ele fugira
de Fernando de Noronha. Esvaíra-se o princípio dessa fuga arriscada
– e era-me preciso reconstituí-la. Embora o pormenor não tivesse
importância, agarrava-me a ele, queria debalde lembrar-me de uma frase
duvidosa, em gíria. Provavelmente as narrações de Gaúcho
eram mentiras, e isto me prendia – e nos aproximava. Que havia nos meus livros?
Mentiras. A necessidade horrível de entrar no galpão imundo,
conversar com os meus amigos, perseguia-me. Os políticos me condenavam
essa fraqueza – porque enfim Gaúcho, Cubano, Paraiba e seu Mota eram
rebotalhos sociais, criaturas perdidas. Eu próprio havia dito isso
quando França diligenciava meter idéias revolucionárias
no espírito rombo de um infeliz como Paulista. Achava-me incoerente,
a acusar e a inocentar Medina e Bagé. A greve falhara. Esboçava-se
outra
Idas e vindas para cima e para baixo, murmúrios, constante barulho
de tamancos na escada, argumentos sagazes – e o plano se desenvolveu pouco
a pouco. Uns doidos, opinava firme Vergílio Benvenuto, largando a vitrola,
os jornais, os retratos de mulheres nuas. Resolviam-se de improviso, sem método.
A prudência de Rodolfo Ghioldi fazia-me observar com desgosto os preparativos.
Havia ensejo de publicidade? Logo notei que os rapazes dos cubículos
não causariam transtorno a outros indivíduos: seriam eles os
prejudicados. A gente da Sala da Capela refugou o convite, fria. Vantagens
indecisas, remotas, exibidas com ânimo, foram vãs. Eram recentes
as desordens praticadas nas barbas do tribunal, as conseqüências
delas estavam bem vivas. Teríamos de novo no pátio os bichos
fortes de cabeças vermelhas, a apontar-nos metralhadoras; safanões,
resistência, gritos, baques, protestos ineficazes, homens em desespero,
quase nus, levados à força. Imaginávamos as cenas desagradáveis,
invariáveis; já nem sequer nos atraía a novidade. A coragem
cega de Álvaro de Sousa e a dureza metálica de Agildo perderiam
com a repetição. Esbanjaram-se alguns dias em extensas arengas
– e as duas sociedades próximas não chegaram a entender-se.
Vários dos meus vizinhos resignar-se-iam sem dificuldade ao projeto
insano, mas eram pouco numerosos e nem conseguiram manifestar-se. A maioria,
composta de engenheiros, médicos, jornalistas, advogados, intelectuais
mais ou menos desiludidos em contatos rápidos com operários
analfabetos e suspeitosos, reunia as suas ciências, entrincheirava-se
nelas, desprezando naturalmente os indivíduos alheios aos ofícios
complexos. No meio fecundo em autoridade e orgulho, barbas severas, gestos
altivos, períodos longos, silêncios eruditos, quebravam-se as
decisões dos moços do andar inferior, amigos da ginástica,
ruidosos, espalhafatosos, sempre dispostos a levar as questões mais
simples às vias de fato. Esses não se detinham em raciocínios
lentos, na regra: às vezes mandavam à fava as premissas, iam
direito a conclusões apressadas, inconseqüentes. As recusas expostas
em voz alta encobriam as diferenças de temperamento e educação;
e mais fortes, mais decisivas, havia as discórdias, meses antes apenas
entrevistas, depois claras, indisfarçáveis. O malogro inicial
fez-me presumir uma desistência: não quereriam exibir a falta
de solidariedade. Enganei-me. Findas as consultas, o refeitório se
despovoou.

Ao descer para o café, notei nos bancos muitos claros, podíamos
mexer-nos à vontade, pôr os cotovelos em cima das tábuas.
Perto um rumor ia crescendo até mudar-se em gritos, baixava, tornava
a subir, e percebia-se na algazarra um estribilho concebido para amolar a
administração. Aquilo, repisado no mesmo tom, era irritante.
O velho Nunes, coitado, ia ver-se em talas. Não nos queixávamos
dele, e era difícil arranjar-se um pretexto razoável para a
rebeldia. Lá em cima as conversas, o pezunhar dos tamancos, os discos
da vitrola sufocavam a balbúrdia, mas da saleta do café ouvia-se
distintamente o refrão insensato. Ignoro que exigência formulavam.
Se não me equivoco, alguns receavam debilitar-se, enxergar no major
um tipo amorável, propenso a condescender. Lembrei-me do Pavilhão
dos Militares, besuntado, lavado, esfregado, muito diferente da Sala da Capela.
Dormíamos no chão; à noite, o frio intenso nos mordia
a carne. Debaixo, dos lençóis curtos, precisávamos encolher-nos,
batíamos os dentes como caititus. Agulhas picavam-me as orelhas; as
minhas mãos geladas procuravam aquecer-se entre as coxas insensíveis.
Na perna direita a insensibilidade aumentava, descia ao joelho, passava daí.
Pela manhã os pardais nos levantavam. Conversas bambas, anedotas ingênuas,
esperanças débeis, os óculos, o ronrom asmático
e a fraqueza de seu Eusébio. A comida excessiva e gordurosa causava
náuseas. Um dia os homens fortes, Cabezon, Petrosky, Zoppo, imóveis
na digestão do almoço, não tinham conseguido jantar.
E um guarda correra a perguntar se a devolução das marmitas
significava indisciplina. Que idéia! Significava que os presos estavam
pesados, fartos como jibóias. Um diretor invisível nos ameaçava.
Outro agora, apreensivo, esforçava-se por trazer ao bom caminho algumas
dezenas de viventes extraviados.

Passaram-se dias. E a resistência continuava. Apenas as vozes enrouqueciam,
os gritos se espaçavam, o longo estribilho exigente perdia o vigor.
Os comentários à desordem, severos e monótonos, aborreciam-me.
Para evitá-los, ia esconder-me na oficina de encadernação
quando os operários saíam, tentava refugiar-me na leitura. Uma
tarde, frases coléricas, arrogantes, soaram perto, afastaram-me do
livro. Ergui-me, cheguei a uma janela, vi lá embaixo a mulher do major
Nunes, uma virago terrivelmente fornida. Tinha um prato na mão, queria
passá-lo entre os varões de uma cela próxima: – Gay,
tu vais comer isto.

Não se ouvia a resposta de José Gay da Cunha. Certamente se
calava, no horrível constrangimento, e a oposição muda
exacerbava a pobre senhora:
– Tu és meu filho, Gay. Tua mãe foi minha amiga, era como se
fosse irmã. E tu és meu filho, aqui tu és meu filho.
Toma, obedece.

A teimosia do rapaz magoava a excelente criatura como ofensa pessoal, causava-lhe
exaspero. Tive a impressão de que ela ia meter os braços fortes
entre os ferros da grade e puxar as orelhas do menino ingrato. Homem de revolução,
José Gay da Cunha, tímido, risonho, muito branco, tinha na verdade
a aparência de uma enorme criança. Fazia um ano que nos conhecíamos.
E durante esse tempo, amável e arredio, Gay me tratava com cerimônia,
como se me visse pela primeira vez. Imaginei-o confuso e pálido, a
sussurrar agradecimentos difíceis e trêmulos, tentando esquivar-se
à bondade violenta. A zanga rija caiu, a fala imperiosa abrandou, esmoreceu
num pedido afetuoso:
– Aceita, filho. Tu não podes continuar assim. Toma. Fui eu que te
preparei a comida.

Inúteis os conselhos e a dureza, a mulher deu o prato a um faxina,
retirou-se em desespero, enxugando os olhos. Essa lastimosa cena deve ter
contribuído para vencer a resistência dos grevistas. Fazia mais
de uma semana que se obstinavam; já nem podiam gritar. Veio a renúncia
uma noite. As grades se descerraram. Os homens dirigiram-se ao refeitório,
magros, cadavéricos, silenciosos. Alguns, arrimando-se aos ombros dos,
guardas, a arrastar as pernas, foram levados à enfermaria.

24

MINHA mulher entregou-me um papel, pediu-me que o assinasse. Formalidade:
a assinatura na linha onde havia uma cruz a lápis.

– Espera. É necessário ver de que se trata, murmurei aborrecido
com a tentativa de me despersonalizarem. Preciso ver. Que diabo é isso?
Li a folha: uma procuração a constituir o doutor Sobral Pinto
meu advogado. Estupidez. Sobral Pinto defendia Prestes e Berger, tinha para
nós grande importância; era idiota supor que fosse tratar de
casos mesquinhos, insignificantes. Liberal, católico, homem de pensamento
e homem de ação, afastava-me.

– Quem se lembrou disso? perguntei quase irritado. Fora José Lins,
o amigo insensato que me escrevia bilhetes em beiras de jornais, arriscando-se
a entrar na cadeia sem motivo. José Lins e certos camaradas nunca vistos
anteriormente. Alguns escritores, muito poucos, haviam confiado no meu último
livro, esperavam coisa menos besta no futuro e desejavam soltar-me. Daí
a resolução de me entregarem às luzes de Sobral Pinto.
A princípio esse cavalheiro não inspirava confiança.
Berger o tratara secamente, num inglês misturado com alemão:
suspeitava de uma defesa imposta pelas autoridades. E Sobral, sem se ofender,
gastara meses num trabalho áspero, provara enfim não ser um
funcionário nomeado para afligir as criaturas. Prestes se havia tornado
amigo dele. Surgira, após diversas entrevistas, um terreno escasso,
estreita faixa neutra, onde o materialista e o espiritualista conseguiam mexer-se.
Larguei a folha, aperreado:
– José Lins é um maluco. Não escrevo isto. Para que me
metem nessa encrenca? O doutor Sobral Pinto deve ser rico, e eu nem tenho
dinheiro para pagar os selos da procuração. Deixem-me em paz.
Não posso entender-me com essa gente. Diga a José Lins que vá
para o inferno. Estou bem; não se importem comigo.

Sentia-me fraco, em desânimo excessivo. O espelho da saleta mostrava-me
às sextas-feiras uma cara gorda e mole. Arrastava-me lento, as pernas
bambas. A perspectiva de liberdade assustava-me. Em que iria ocupar-me?

Era absurdo confessar o desejo de permanecer ali, ocioso, inútil,
com receio de andar nas ruas, tentar viver, responsabilizar-me por qualquer
serviço. Longo tempo me esforçara por justificar a preguiça:
todos os caminhos estavam fechados para mim, nenhum jornal me aceitaria a
colaboração, inimigos ocultos iam prejudicar-me. Escasseavam
agora as evasivas covardes. A coragem de um editor, elogios fáceis
na imprensa, vagas esperanças na minha literatura de carregação
e afinal os bons propósitos de indivíduos estranhos revelavam-me
solidariedade. As loucuras de José Lins não me surpreendiam:
tínhamos sido companheiros na redação e no café.

Mas novas camaradagens acenavam-me de longe, tão inesperadas como
os obséquios de malandros e vagabundos na Colônia Correcional.
Não podia encerrar-me no pessimismo; indispensável regressar
à humanidade, fiar-me nela; impossível satisfazer-me com partículas
de humanidade, poeira. Muito embaixo, na lama e na chuva, o frio a partir-me
os ossos, um sujeito anônimo e sem rosto amparara-me, desviara-me da
treva e da morte. Revolucionários infiltravam-se na polícia
e procediam dessa maneira, discretos e silenciosos. Outros indivíduos
chamavam-me de cima. Outros indivíduos. Como seriam eles? Imaginei-os
Cubanos civilizados e brancos, desgostosos por saber-me inerte, a bocejar.
As informações minguavam. Sobral Pinto não se distinguia
bem do soldado paciente que me arrastara quilômetros no aguaceiro. Essa
comparação atenazava-me. Achava-me propenso a misturar homens
discrepantes, inconciliáveis, superiores, inferiores.

Várias vezes afirmei que não assinaria o papel, mas a afirmação
era mecânica. Enquanto expunha motivos para não assinar, deixava-me
levar por motivos opostos, não expressos. Reli a procuração
e, numa incongruência aparente, lancei o meu nome na linha indicada.
Minha mulher ia sem dúvida considerar-me estulto. Nunca me explicava,
e os atos divergiam com freqüência das palavras. Certamente era
pusilanimidade resignar-me à prisão, engordar, enfraquecer,
jogar crapaud. Uma idéia me afligiu naqueles instantes de indecisão:
temi, recusando a oferta, ser grosseiro com os amáveis desconhecidos.

Respirei, mudei de assunto, livre de pensamentos contraditórios.
Dias depois chamaram-me à secretaria. Aí se apresentou um cidadão
magro, de meia altura, rosto enérgico, boca forte, olhos terrivelmente
agudos. Sobral Pinto. Inquietou-me vê-lo perder tempo em visita a um
preso vagabundo, refugo da Colônia Correcional: imaginara que apenas
redigisse ou mandasse redigir uma petição de habeas-corpus.
Estragava a manhã vindo falar-me. O advogado sentou-se, afastou essas
lamúrias com um gesto seco, abriu a pasta e começou a interrogar-me.
Era o primeiro interrogatório a que me submetiam. Ouvi perguntas e
dei respostas embrulhadas; maquinalmente peguei uma folha de papel e um lápis;
mas achava-me tão confuso que, referindo-me à Casa de Detenção,
fiquei sem saber se devia escrever detenção com s ou ç.
Risquei, tornei a riscar – a incerteza permaneceu. No cipoal de questões
enrasquei-me: – Ora, doutor, para que tantas minúcias? Como é
que o senhor vai preparar a defesa se não existe acusação?
O advogado estranhou a minha impertinência. Em que país vivíamos?
Era preciso não sermos crianças.

– Não há processo.

– Dê graças a Deus, replicou o homem sagaz espetando-me com
o olhar duro de gavião. Porque é que o senhor está preso?
– Sei lá! Nunca me disseram nada.

– São uns idiotas Dê graças a Deus. Se eu fosse chefe
de polícia, o senhor estaria aqui regularmente, com processo. – Muito
bem. Onde é que o senhor ia achar matéria para isso, doutor?
– Nos seus romances, homem. Com as leis que fizeram por aí, os seus
romances dariam para condená-lo.

Não me ocorrera tal coisa. Os meus romances eram observações
frágeis e honestas, valiam pouco. Absurdo julgar que histórias
simples, produto de mãos débeis e inteligência débil,
constituíssem arma. Não me sentia culpado. Que diabo! O estudo
razoável dos meus sertanejos mudava-se em dinamite. O duro juízo
do legista esfriou-me: – Está bem. Não tinha pensado nisso.

Realmente pensava no prejuízo que me forçavam a causar ao
paradoxo vivo ali sentado em frente de mim. Não havia dinheiro nem
para os selos. Porque tirar da cadeia um pobre como eu? Sobral Pinto me fez
outras visitas. Palavra aqui, palavra ali – notei que ele era pobre também.
E por isso queria libertar-me. As nossas idéias discrepavam. Coisa
sem importância. Sobral Pinto, homem de caridade perfeita, queria tirar
da cadeia um bicho inútil, na minha opinião, um filho de Deus,
na opinião dele.

25

U MA NOITE de calor, suando no colchão duro, chateava-me a folhear
um romance idiota. Alguém, na cama vizinha, interrompia-me afirmando
com enorme certeza que aquilo era uma bíblia. Desenvolvia motivos,
indicava passagens onde se arrumavam belezas imperceptíveis. Aborrecia-me:
– Está bem. Isso mesmo.

Impossível descobrir alguma vantagem no livro espesso, bem construído,
científico em demasia. As personagens, terrivelmente sábias,
expunham temas difíceis, causavam-me dor de cabeça. Os insensatos
elogios irritavam-me: – Isso mesmo. Sem dúvida.

Calor horrível. Morriam-me nos ouvidos sons abafados, as luzes das
lâmpadas tremiam. Percevejos líquidos e ardentes fervilhavam-me
por baixo do pijama; a respiração encurtava-se. As figuras em
redor perdiam a consistência; o discurso pedante do otimista pouco a
pouco se desalentou e afinal as idéias sumiram-se dele. Falta de ar.
De repente as letras começaram a mexer-se, a dançar, as linhas
torceram-se doidas, deixando largos espaços vagos no papel amarelo.
Esfreguei as pálpebras. As janelas estavam longe, as lâmpadas
subiam. Na mesinha redonda, ao centro, jogavam bridge. Distingui os parceiros
pela conversa abalizada: – Dizem os tratadistas…

Cascardo, Barreto Leite e Hermes Lima estavam ali, mexendo cartas, discutindo,
invisíveis; o quarto jogador apagava-se no silêncio.

– Xeque.

O tabuleiro de xadrez, a alguns passos, desaparecia em sombra compacta.
Uma nuvem cortada por faixas vermelhas cobria os objetos. Cheguei a página
aos olhos, afastei-a, buscando ansioso juntar os caracteres rebeldes. Vários
deram-me a impressão de reunir-se, formando um contra-senso: dettera.
Que diabo significava dettera? Parecia italiano, mas, por muito que me esforçasse,
não me lembrava de ter visto semelhante palavra. Demais o livro ali
aberto era escrito em português. Que vinham fazer nele as estranhas
sílabas? Procurei-as, e não houve meio de achá-las. Certamente
não existiam, embora um minuto antes se houvessem mostrado claras,
os dois tt negros e fixos. Ilusão, mas ilusão bem esquisita,
com aparência de verdade. O negror e a fixidez tinham-se esvaído,
agora as manchas cresciam na folha, os traços vermelhos angustiavam-me
espalhando os sinais caprichosos.

Soltei a brochura, ergui-me, um peso enorme no coração: julgava-me
inútil, condenado para o resto da vida a guiar-me pelos outros. Esqueci
o otimista facundo, avancei alguns metros no soalho, orientando-me por indecisas
claridades, atingi a mesa do crapaud, sentei-me num banco, tentei enganar-me
fingindo seguir os lances de uma partida. Uma voz engrolada, cheia de rr,
convidou-me para o jogo, senti os baralhos debaixo dos dedos.

– Obrigado. Não posso.

Levantei-me, peguei um braço, desviei-me tateando na penumbra e na
aflição: – Venha cá, Gikovate. Parece que estou cego,
não consigo ler. Que diabo será isto? Não era nada, respondeu
calmo o rapaz tentando sossegar-me. A evasiva, a maneira rápida e fácil
de eliminar um fato negando-o, agravou-me a inquietação. Como
não era nada? Pouco antes achava-me tranqüilo, a bocejar diante
de um livro. Súbito as linhas se haviam deslocado, e em largos espaços
desertos mexiam-se letras vagabundas. Algumas se juntavam, formando uma palavra
sem pé nem cabeça, e manchas rubras corriam na página.
Tinha-me sem dúvida aparecido qualquer desgraça. Não
seria bom consultar outros médicos? Fazendo a pergunta, convencia-me
da inutilidade evidente dela. Com certeza alguns dos vultos indecisos, atentos
no xadrez e nos jornais, podiam examinar-me, traçar um diagnóstico,
mas não tinham recurso para suprimir a horrível névoa
espessa.

O judeu excelente achou desnecessária a consulta: dentro de meia
hora aquilo ia passar. Usou expressões técnicas, aconselhou-me
repouso, e a voz calma, segura, incutiu-me esperança. Lembrei-me de
haver experimentado coisa semelhante anos atrás. Ocupava-me em redigir
um vago esboço literário, destinado ao fogo, naturalmente: quando
as gavetas se abarrotassem, seria preciso, como de ordinário, esvaziá-las,
destruir as composições medíocres. O exercício
longo, paciente, fixara-se, convertera-se em hábito, e em vão
queria livrar-me dele. Desde a infância entregava-me ao dever estéril.

Naquele dia o caso novo me alarmara: a folha esmorecera, fundira-se às
tábuas da mesa, e nessa pasta nebulosa a minha ficção
capenga se dispersara, coberta de nódoas vermelhas. Esforçara-me
por dominá-la, escancarando os olhos, aproximando, afastando o papel.
A escuridão se prolongara cerca de meia hora. O prognóstico
de Gikovate avivava-me a cegueira provisória e reduzia-me o susto.
Meia hora. Talvez o rapaz desejasse apenas enganar-me, estabelecesse o prazo
à toa, mas a coincidência levava-me a confiar nele. Dentro de
meia hora a neblina se adelgaçaria, novamente me seria possível
agarrar pedaços de verdade nos telegramas divergentes da Espanha.

– Vou deitar-me. Venha comigo, não enxergo o caminho.

O companheiro guiou-me entre os móveis confusos. Estirei-me na cama,
enrolei a cabeça no lençol.

– Obrigado. Faça o favor de apagar a lâmpada.

Só, busquei distrair-me apanhando migalhas de conversas no burburinho.
A gargalhada rouca de Moésia cortava a narrativa de Moreira Lima, várias
vezes repetida; Apporelly arrumava a paciência vagarosa, ouvia-se distintamente
o chiar das cartas na mesinha; e Aristóteles Moura, solícito,
cochichava-me oferecimentos indefinidos. Os receios desbotaram, fugiram lentos,
chegou a inconsciência, resvalei no sono.

Levantei-me dia claro, respirei com alívio pensando na aflição
da véspera, e a manhã luminosa a entrar pelas janelas banhou-me
como um favor. Pestanejei: as manchas tinham-se esvaído sem deixar
vestígio. Faixas de sol forte avançavam no soalho. Os homens
iam e vinham, perfeitamente visíveis, entregues às insignificâncias
da rotina. Longe, avultava a massa pedregosa da Favela, com a casaria indecisa
espalhada em cinzentas ladeiras, transeuntes a subir, a descer, mulheres avizinhando-se
da igreja fina e amável pregada no cume. Tinham vivido ali possivelmente,
preguiçando em botequins sórdidos, bebendo cachaça, tocando
violão, alguns dos vagabundos agora comprimidos na piolheira da Colônia
Correcional. Pensei nessas esquisitas personagens, incapazes de trabalho,
expostas a uma contínua perseguição, comparei-as aos
doutores que folheavam jornais nas tábuas dos cavaletes. Hermes Lima
embebia-se nos seus cadernos de alemão. Pompeu Accioly resolvia problemas
de xadrez. De volta do café, Maurício Lacerda encostava-se a
um parapeito à esquerda e atirava aos pardais miolo de pão.
Esse hábito diário constituía quase um dever, e na execução
dele ratazanas enormes emboscavam-se entre blocos de cantaria, aguardando
ensejo de assaltar as aves. Os bichos repulsivos, gordos, vorazes, reduziam
bastante os intuitos benévolos do homem. Necessário fugir, era
a opinião de Sócrates Gonçalves, repetida muitas vezes.
Marteladas, uma serra a chiar na pequena marcenaria da saleta.

Abri o volume abandonado com desespero à noite, reli a página
duvidosa e opaca onde três sílabas se tinham agrupado, a zombar
de mim. Nenhum sinal delas. Apenas uma w)rosa insulsa e pedante.

26

ENTRANDO no salão, vi na cama de Luís de Barros, fronteira
à porta, um fardo trêmulo: agüentando o rijo calor de meio-dia,
alguém se enrolava num cobertor de lã. – Que é isso,
Luís? Suadouro? O moço descobriu o rosto pálido, murmurou
débil: – Não. Medo.

Abafei numa gargalhada a confissão intempestiva, não porque
se tratasse de coisa rara, mas pela simplicidade com que se expunha. Evitamos
referir-nos a tais fraquezas, embora não haja motivo para nos envergonharem.
Lembrei-me do abafamento, aparecido às vezes como epidemia: ficávamos
inúteis, sem apetite, os músculos bambos, a vontade suspensa.
Na Colônia Correcional apavorava-me diante de um selvagem bêbedo.
E a operação dos ratos levara uma noite José Brasil a
perceber metralhadoras na sombra, assestadas contra nós. No estado
normal, talvez nos espantássemos se alguém nos viesse falar
nesses desconchavos, mais ou menos apagados; não seríamos capazes
de amofinar-nos assim. Continuava a rir-me examinando a figura empacotada.
Os olhos escancaravam-se, os beiços contraíam-se, os dedos apertavam
com força a orla do pano abaixo do queixo.

– Largue esse cobertor, homem. Você se derrete nesta quentura dos
diabos.

O rapaz mexeu a cabeça, espalhou a vista pelos arredores com jeito
cômico: – Não brinque. Estou morto de medo. Covardia.

Era como se estivesse a indicar ameaças em roda, mas isto se mudava
em truanice. Não havia ali sinal da esquisita fraqueza que de longe
em longe nos contaminava; os jogos, os trabalhos desenrolavam-se monótonos,
as conversas zumbiam. Nenhum soldado bruto viria trazer-nos exigências
alarmantes. E rumores indefinidos não alvoroçavam as criaturas
sugestionáveis; no sossego das tocas os ratos dormiam; impossível
imaginar canos de armas, inimigos ocultos, na claridade intensa que inundava
o pátio.

– Recebeu alguma notícia desagradável? inquiri afugentando
razões imediatas.

Devia ser isto: desgosto de família, embaraços econômicos,
obstáculos imprevistos surgidos no processo, encrencas sutis, esmorecimento
do advogado. No ócio obrigatório e no ramerrão, esses
contratempos se exageravam, roubavam-nos o sono.

– Seus parentes lhe disseram alguma coisa? Não. Tudo em ordem. Mas
estou com medo. Nem sei de quê.

As pálpebras caídas ergueram-se leves, um olhar rápido
fuzilou, nos lábios frouxos correu momentâneo o sorrisinho malandro.
Um instante depois lá estava no rosto bambo a máscara deplorável:
rugas, o nariz longo, dois sulcos fundos a prolongar a boca. A tremura sacudia
os músculos, e no pescoço os dedos crispavam-se agarrando o
pano.

– Estou com frio.

Para o diabo. Ainda uma vez a criatura desassisada se entretinha a zombar
de mim. Durante meses se apagara, anônima e sem cor, os modos lorpas,
gaguejando ninharias. E afetara excessiva cautela sem nenhuma razão.
Não iria comprometer-se deixando a assinatura numa folha de romance?
Agora simulava covardia. Ao sentir-me novamente logrado, achava-me crédulo,
simples objeto de brincadeiras nas mãos de um sujeito ordinário.
Repetia a mim mesmo essa injúria, e zangava-me por afirmai uma injustiça.
O homem possuía grande talento, mas era estúpido viver ã
esbanjá-lo representando papéis ridículos. Notando a
fraude, julgava-me denso e lerdo; com certeza outros indivíduos me
enganavam também, e era-me impossível ajustar-me ao ambiente
desgraçado. Tocaias. Pessoas a deslizar na sombra.

Afastei-me desgostoso, pensando que de fato procedíamos ali como
se nos escondêssemos, em permanentes emboscadas. Veio-me ao espírito
o juízo cínico de Walter Pompeu, desenvolvido meses atrás
no cubículo 35 do Pavilhão dos Primários. Nordestino,
bárbaro, acomodado à civilização, Walter admitia
a negaça e a fraude, meios de suprimir um inimigo com pouco esforço.
A lei dos cangaceiros. – “É assim que se faz na guerra. Qual é
o objetivo? Matar. Bem. Matamos reduzindo as probabilidades de risco. O homem
sensato não se afoita em campo descoberto: resguarda-se junto a uma
árvore, o olho na pontaria, o dedo no gatilho, o rifle apoiado a uma
forquilha, e espera momento favorável. Um tiro, e acabou-se. O duelo
é uma estupidez. Bobagem morrer à toa. Cavalheirismo, fanfarronada,
isto é literatura besta.” Recordando a opinião crua, vassourada
razoável em muitas coisas vistas na aula primária, guardadas
sem exame, surpreendia-me a argüir o oficial e a dar-lhe razão.

Literatura besta. A frase reaparecia, insistente. Ensinavam-nos a exibir
os nossos intuitos, a proceder com dignidade e honra – e com isto se resumia
o trabalho da polícia. Evidentemente. Se cometêssemos um crime,
o remorso nos obrigaria a confessá-lo. Mas na guerra não existia
remorso, os deveres ordinários findavam – e Walter Pompeu queria meter
nas relações civis a moral e os hábitos da guerra.

Havia saltos nas minhas idéias, lacunas e discrepâncias. Farrapos
de idéias. Afinal estávamos em guerra. Num banco estreito, em
carro de segunda classe, inteirara-me disso lendo um jornal, entre dois fuzis.
O Congresso Nacional prorrogara o estado de guerra. O disparate me indignara,
arrancara-me pragas interiores. Agora, sentado na cama, olhando o monte vizinho,
aplicava-me em reconsiderar. Havia na verdade um conflito a generalizar-se,
briga invisível, e, em conseqüência, era natural que, por
qualquer suspeita, nos tirassem do mundo. A esquerda, mulheres a descer a
ladeira vermelha e pegajosa, na manhã clara, um burro e uma cabra quase
imóveis, casas de tábua e lata, a envergonhar-se, a encobrir-se
nas ramagens, panos estendidos, crianças nuas. Paz. Em frente, a massa
escura da Favela, a igrejinha alta e magra no topo, figuras vagas a achatar-se
nos declives ásperos da pedra, tetos ariscos. Paz. E em redor, na sala
extensa, o zumbido monótono das conversas, a leitura paciente de Maurício
Lacerda, o riso de Jorge El-Jaick, o pigarro de Moreira Lima, chiar de serra
e marteladas na pequena oficina de amadores. Paz. A guarita próxima,
erguida no muro alto, parecia deserta; a sentinela devia cochilar pacificamente,
esquecida a vigilância. Contudo, no sossego aparente vivíamos
inquietos. Olhos atentos nos sondavam por detrás de óculos escuros,
a gente se mexia entre ciladas, uma frase leviana figurava nos relatórios
que indivíduos insuspeitos mandavam á polícia. O velho
Marques me avisara: – “O senhor hoje pela manhã, ali na mesa dos
jornais, cumprimentou com a mão fechada os rapazes do banho de sol.
Um dos seus companheiros escreveu isso e eu fui portador da informação.
Desconfie de toda a gente, de mim e dos outros, mas desconfie mais dos seus
amigos.” Isso nos envenenava. Afinal já nem sabíamos quem
era amigo, quem era inimigo. Um sorriso nos envolvia, nos anestesiava, ocultando
um punhal de assassino. Dias depois, feridos na sombra, seríamos postos
num alojamento sujo de moribundos. Centenas de organismos a desconchavar-se
lentos, envoltos em farrapos; pernas convulsas a estirar-se, finas como cambitos;
bugalhos a rolar em desvario. Gemidos, roncos de agonia – um infeliz a acabar-se,
a barriga aberta, jorros de sangue escuro e podridão cheia de bichos,
sob o vôo das moscas. Poderíamos findar assim. E poderíamos
resistir, livrar-nos, acomodar-nos outra vez, mais fracos e sem alma, junto
ao altar, no quadrado firme de mosaico, lendo romances tolos, vendo a igreja
fina e distante, animais e -crianças nuas em cima da ladeira vermelha
e, perto, longe do mundo, homens atentos no jornal e no jogo. Alguns suportariam
miséria e fome, dentro de meses voltariam, como Aristóteles
Moura, o crânio pelado, mais pálidos e magros, mover-se-iam tranqüilos,
em paz. Paz no vasto salão de tábuas vacilantes, no morro vermelho,
nas casas escondidas entre ramagens, nas pedras da Favela, nas guaritas pequenas
trepadas no muro largo. Outros ficariam na ilha fúnebre, desmanchar-se-iam
anônimos em covas abertas nas escarpas duras e negras, debaixo das piteiras
luminosas nos crepúsculos cor de sangue. Emboscadas. O ranger das portas
anunciava estalos de gatilhos; nas dobras das roupas escassas havia navalhas
e facas. José Brasil se alucinara uma noite, percebera armas na treva.

Luís de Barros não se afligia com esses perigos complicados,
mas enxergava possivelmente outros perigos. Retraía-se, envolvia-se
em dúvidas: todos nós éramos capazes de prejudicá-lo.
Enrolava-se no cobertor pesado, a queixar-se de frio e medo. Cercavam-no delatores.
Semanas depois as grades se descerraram para ele. Vestiu-se cuidadoso, arrumou
a bagagem, despediu-se mastigando o sorriso parvo, que me atenazava. Naquele
momento era dispensável a constante falsidade. Acompanharam-no ruidosos,
com demonstrações vivas de alegria revolucionária. Luís
de Barros andava de cabeça baixa, em silêncio. Parou à
saída, virou-se, endireitou a visagem burlesca. Certamente ia fazer
um discurso – Obrigado, murmurou. A comoção e a prudência
embargam-me a voz.

27

HOUVE luta física na Sala da Capela, e isto me alarmou, pois nunca
me viera a suposição de que desavenças miúdas
tomassem vulto, chegassem ao pugilato. Quais eram afinal os motivos dos rijos
dissídios? Palavras. As discórdias começavam por elas,
embrulhavam-se na significação delas, aprofundavam-se, alargavam-se.
Porquê? Exatamente porque faltava razão para se alargarem, aprofundarem.
Se houvesse razão, os adversários conseguiriam provavelmente
superá-la, julguei. Repeti a mim mesmo que a dificuldade estava em
darem à mesma coisa nomes diversos, darem a várias coisas um
nome só. Impossível entenderem-se.

Haviam pedido a Leônidas Resende um curso de economia política.
Leônidas enfermara, vivia estirado na cama, friorento, apesar do calor.
Nas horas das refeições, erguia-se mole, descia trôpego
ao refeitório, em desânimo. Se lhe falávamos, respondia
com um sorriso murcho e balofo. Professor, homem de saber e método,
apagava-se; não lhe reconheceriam valor se não aparecesse na
encadernação um volume fornido com o nome dele. Daí o
convite. Amável e paciente, Leônidas resignara-se às lições.
A noite, no rumor das conversas e da vitrola, fazia-me pena vê-lo recostar-se
ao travesseiro, ampliar a voz fraca, desenvolvendo a matéria, como
se ainda se achasse na cátedra. Desatento à força do
trabalho, ao mercado, à super-valia, o auditório bocejava. E,
ao cabo de alguns dias, os alunos pouco a pouco se dispersavam, iam estudar
coisa menos chata, ensinando uns aos outros, com lápis e folhas de
papel, em grupos animados, pelos cantos. Não haviam entendido bem o
professor claro e minucioso; acabariam não se entendendo.

Apareciam-me de longe divergências em esboço, e éramos
forçados a reconhecer que ninguém tinha culpa. Estávamos
feitos daquele jeito, cada um de nós estava feito de certo modo – e
em vão tentávamos explicar uns aos outros que a leitura de um
artigo não nos transformava. Numerosos degraus. Homens ásperos,
intolerantes; homens simples, cheios de ódio. Lembrava-me do beato
José Inácio, baixo e grosso, um rosário de ave-marias
brancas e padre-nossos azuis no peito cabeludo, a mão curta a mover-se
com raiva: – “Quando fizermos a nossa revolução, ateus
como o senhor serão fuzilados.” Havia na Sala da Capela indivíduos
assim, não tão rudes, mas férteis em absurdos e inconciliáveis.
Tornaram-se comuns as falas estridentes, e como andávamos quase despidos,
as almas enfim surgiram também meio nuas. Porque diabo me indispusera
com algumas pessoas? Afligia-me não achar resposta, e talvez esses
inimigos imprevistos fizessem debalde a mesma pergunta. Já na eleição
do Coletivo aparecera no fim da sala, perto do altar, um princípio
de bagunça, enquanto se apuravam as cédulas. Berros, palavrões,
xingamentos, eleitores assanhados agarrando-se. E por esses votos insignificantes
diversos militares me haviam torcido o focinho. Estupidez.

Agora as coisas pioravam. Certo dia dois sujeitos se engalfinharam. Um deles
se desprendeu, foi à saleta, voltou armado com um formão, envolveu-se
outra vez na desordem. Ao cabo de instantes desviou-se do grupo uma figura
ensangüentada: na ação rápida os pacificadores não
tinham conseguido meio de evitar o golpe. Gritos, barulho de tamancos, chaves
a abrir maletas, passos na escada. O faxina trouxe uma bacia de água;
Flávio Poppe, Gikovate e outros médicos estriparam rolos de
algodão, e ocupavam-se na lavagem do ferimento quando o major chegou,
acompanhado por guardas. Em silêncio, o velho estendeu o olhar severo
em redor, ficou algum tempo a examinar a criatura esmorecida e cabisbaixa
que se deixava manusear, um filete rubro a correr de uma brecha pequena aberta
na fronte. Nenhuma censura, apenas a carranca desgostosa. Mas isso nos causava
aborrecimento e confusão, agravados pelo ar escarninho dos funcionários.
Um deles guinchava olhando a testa pálida, onde logo se estirou um
pedaço de esparadrapo. Guinchos, expressão velhaca e estúpida.
Uma cara obtusa, beiços grossos e escuros arregaçando-se. Animal.
Devia ser o tipo de que Agildo, levado a braços ao tribunal, se desembaraçara
com um pontapé. Zombava de nós. Que vergonha! O diretor afastou-se
ríspido, sem se despedir, rosnou uma ordem, e sumiram-se pouco depois
os utensílios da marcenaria. Dali em diante o chiar das serras e as
marteladas não nos embalariam, a dissipar os desejos vagos e o tédio.
Havia no alojamento um forte desânimo, e buscávamos reduzir a
tristeza e o vexame fugindo a comentários.

Correram semanas. Os debates azedavam-se, entusiasmos ardentes esfriavam.
Uma tarde nova desordem rebentou. Originou-se na saleta do café, cresceu
rápida. Envolvendo muitas pessoas, tornou-se uma onda raivosa, transbordou.
Sentado num banco, à mesa dos jornais, com um livro e um cigarro, vi,
sapecando períodos, o fuzuê desenrolar-se, atravessar a porta,
receber contingentes, espraiar-se. José Brasil se esgoelava, comandando,
querendo estabelecer disciplina e método na bagunça. Para começar
entalou o pescoço de um vizinho debaixo do braço, num truque
japonês, redemoinhou com o adversário, feito um boneco, sufocado
nessa gravata. Os bíceps contraíam-se, inchavam, molas duras,
e a voz áspera exigia sossego lançando injúrias e palavrões.

Ergui-me, sentei-me um pouco distante, reabri o volume, o desconchavo alcançou-me,
bateu-me nas pernas; levantei-me de novo, afastei-me alguns metros, esforcei-me
por adivinhar a página. Desviando-me da leitura, percebi que grande
número de militares aderia à briga. Aquilo para eles era esporte,
jogo necessário à saúde. Baques, desaforos; o combate
se generalizava, deslocava os móveis, alargara-se até o meio
da sala. Não me achando em segurança, fui acomodar-me ao fundo,
perto do altar. As camas restavam desfeitas; formavam-se partidos, a animar,
a desanimar os lutadores; e pessoas cautelosas se resguardavam junto às
janelas. A fúria coletiva decresceu, morreu, e os contendores desgrudaram-se.
Restabeleceu-se a ordem, arrumaram-se as peças nos tabuleiros de xadrez,
as cartas espalharam-se no crapaud e na paciência, os discos da vitrola
buscaram desfazer-nos a má impressão.

– Você tem sangue de barata, homem, veio dizer-me José Brasil.

– Porquê? – Ora porquê! Num barulho como este, fica sentado,
lendo, nem levanta a cabeça. Que diabo! Você não tem nervos.

– Pois sim! Vou lá meter-me em questão de soldados? Vocês
se entendem. Arranham-se, trocam murros, quinze minutos depois estão
amigos. E voltam-se contra os paisanos. Sou neutro. Arranjem-se.

O capitão arregalou o olho vivo, com espanto. Em seguida soltou uma
gargalhada: – Ótimo. É isso mesmo. Foi a opinião mais
sensata que já ouvi a nosso respeito.

EXPLICAÇÃO FINAL

RICARDO RAMOS

Faltava apenas um capítulo destas memórias, quando morreu Graciliano
Ramos. Escrevera todos os volumes em trabalho contínuo, lento é
verdade, mas sem interrupções. Uma viagem ao estrangeiro, no
entanto, ofereceu-lhe o suficiente para um novo livro, um livro que o interessou
e o fez abandonar – por algum tempo, supunha – a obra quase terminada. Já
doente, registrando com dificuldade as impressões que os países
visitados lhe haviam deixado, não tentou concluir suas “Memórias
do Cárcere”. E se às vezes procurávamos lembrar-lhe
esse fato, respondia: – Não há problema. É tarefa de
uma semana.

A atenção era desviada, falávamos de coisas diversas,
que na aparência o faziam esquecer os sofrimentos prolongados. Certa
manhã, encontrou-nos mexendo em seus papéis, lendo crônicas
antigas, publicadas em 1921, num jornal de Palmeira dos índios.

– Deixa isso! Resistimos, é claro. Continuamos a ler, ignorando a
raiva mansa. Demorou-se calado, finalmente inquiriu-nos sobre o tema. Referia-se
à semana santa no interior de Alagoas, apanhando os rituais, o jejum,
flagrantes inesperados.

– Então lê alto.

Obedecemos. Ouviu atento, meio desajeitado, sorrindo às passagens
que o agradavam. Finda a leitura, sugeriu uma segunda, outra, e assim ficamos
algum tempo, lembrando aspectos da cidade sertaneja.

Não está muito ruim, hem? Não estava.

– Você publicaria isso agora? Evidente. Apenas não tinha uma
justificativa.

– Mas depois… Vocês podem fazer o que entendam. Mudamos de conversa.
Vieram as suas edições, artigos recentes que mereciam exame.
Depois o livro da viagem, referências a Paris, à Geórgia.
E finalmente chegamos às memórias na cadeia.

– Que é que pretende com o último capítulo? Sensações
da liberdade. A saída, uns restos de prisão a acompanhá-lo
em ruas quase estranhas.

– Eu conhecia o Rio de 1915…

E procurava orientar-se através de reminiscências, sem examinar
as placas. A claridade forte, o movimento grande o atordoavam. Entrou num
café, e ao levantar-se arrastou os pés, como se ainda usasse
tamancos. Havia perguntas que se repetiam e esperava as respostas com impaciência,
olhando a valise. A mulher traria dinheiro bastante para o táxi? Aonde
iriam? Como poderia viver? – Um fim literário.

Sim. No começo do livro e também nos outros volumes já
fizera considerações numerosas, seria inútil concluir
dessa maneira. Talvez surgissem pontos acidentais, desdobrasse a matéria
em dois capítulos. Mas nada que pretendesse valorizar, tivesse influência
no conjunto. Somente as primeiras sensações da liberdade.

Antes que pedíssemos novo esclarecimento, menciona a revisão
necessária. Vários anos a escrever e nesse período fatos
que se modificaram, figuras apagadas vindo ao primeiro plano, outras a se
afastarem, transformando-se. Possivelmente essa leitura mostraria soluções
e caminhos diversos dos encontrados. Ainda questões de unidade, estrutura
da obra. Entretanto, se não pudesse fazer a versão definitiva,
ficariam as observações iniciais, talvez repetidas e não
inteiramente justas, mas que em princípio o satisfaziam.

– E o título? Não importava. “Memórias do Cárcere”
ou simplesmente “Cadeia”. Inclinava-se por um, mais tarde iria preferir
o outro. Não valia a pena forçar a escolha.

Estas as referências que ouvimos de Graciliano Ramos às suas
memórias, agora publicadas. Julgou-se precisa uma explicação
acerca do capítulo não escrito. Alinhamos as nossas recordações,
em seguida as comparamos às de outras pessoas da família. E
foi tudo o que pudemos trazer sobre o assunto.

Rio de Janeiro, 1953.

FIM DO VOL. II

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