O Povo Brasileiro – Darcy Ribeiro

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III – Processo
Sócio Cultural

IV – O Destino Nacional

 

 

PREFÁCIO

Escrever este livro foi o desafio maior que me propus. Ainda é. Há
mais de trinta anos eu o escrevo e reescrevo, incansável.

O pior é que me frustro quando não o faço, ocupando-me
de outras empresas.

Nunca pus tanto de mim, jamais me esforcei tanto como nesse empenho, sempre
postergado, de concluí-lo. Hoje o retomo pela terceira vez, isto se
só conto aquela primeira vez em que o escrevi e completei, e a segunda
em que o reescrevi todo, inteiro, esquecendo as inumeráveis retomadas
episódicas e inconseqüentes.

Ultimamente essa angústia se aguçou porque me vi na iminência
de morrer sem concluí-lo. Fugi do hospital, aqui para Maricá,
para viver e também para escrevê-lo.

Se você, hoje, o tem em mãos para ler, em letras de fôrma,
é porque afinal venci, fazendo-o existir. Tomara.

Acabo de ler, meio por cima, a última versão. Aquela que escrevi
no Peru e que até foi traduzida em castelhano, mas que eu vetei. Era
um bom livro, acho agora. Bem podia ter sido publicado tal qual era. Ou ainda
é, uma vez que aí está tal e qual: desafiante. Mas eu
não quis largá-lo. Pedia mais de mim, me prometia revê-lo,
refazê- lo, até que alcançasse aquela forma que devia
ter. Qual?

Creio que nenhum livro se completa. O autor sempre pode continuar, por um
tempo indefinido, como eu continuei com esse, ao alcance da mão, sem
retomá-lo. O que ocorre é que a gente se cansa do livro, apenas
isto, e nesse momento o dá por concluído. Não tenho muita
certeza, mas suspeito que comigo é assim.

Por que só agora o retomo, depois de tantos, tantíssimos anos,
em que me ocupei das tarefas mais variadas, fugindo dele? Não sei!
Não foi para descansar, certamente. Foi para me dar a outras tarefas.
Entre elas, a de me fazer literato e publicar quatro romances, retomando uma
linha de interesses que só me havia tentado aos vinte anos. Nessa longa
travessia, também politiquei muito, com êxito e sem êxito,
aqui e no exílio, e me dei a fazimentos trabalhosos, diversos. Inclusive
vivi, quase morri.

Nesses anos todos, o livro, este, ficou por aí, engavetado, amarelando,
esperando até hoje. Agora, estou aqui na praia de Maricá, para
onde trouxe as pastas com o papelório de suas várias versões.

A primeira tentativa de escrevê-lo, que nem chegou a compaginar-se,
se deu em meados da década de 50, quando eu dirigia um amplo programa
de pesquisas socio- antropológicas no órgão de pesquisas
do Ministério da Educação, o Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais (CBPE). Eu o concebia, então, como síntese daqueles
estudos, com todas as ambições de ser um retrato de corpo inteiro
do Brasil, em sua feição rural e urbana, e nas versões
arcaica e moderna, naquela instância que, a meu ver, era de vésperas
de uma revolução social transformadora.

Eu o abandonei, então – lá se vão trinta anos -, para
ocupar-me de planejar e implantar a Universidade de Brasília.

Esta tarefa me levou a outras, tais como as de ministro da Educação,
de chefe do Gabinete Civil do presidente João Goulart, com a missão
de concatenar o Movimento Nacional pelas Reformas de Base.

Tudo isso resultou, sabe-se, no meu primeiro exílio, no Uruguai.
Lá, a primeira versão deste livro, umas quatrocentas páginas
densas, tomou forma, depois de dois anos de trabalho intenso. Não era
já a síntese que me propusera. Era, isto sim, a versão
resultante de minhas vivências nos trágicos acontecimentos do
Brasil de que havia participado como protagonista. Esse era o nervo que pulsava
debaixo do texto, a busca de uma resposta histórica, científica,
na organização que nos fazíamos nós, os derrotados
pelo golpe militar. Por que, mais uma vez, a classe dominante nos vencia?
Na verdade, para escrevê-lo, mal compulsei os livros resultantes daquelas
pesquisas, que chegaram a ser publicados. Ele foi feito da leitura de quanto
texto me caiu nas mãos sobre o Brasil e a América Latina. Muitíssimos,
lembro-me bem, graças à magnífica Biblioteca Municipal
de Montevidéu.

Uma vez completado o livro, a primeira leitura crítica que consegui
fazer dele todo me assustou: não dizia nada, ou pouco dizia que não
tivesse sido dito antes. O pior é que não respondia às
questões que propunha, resumíveis na frase que, desde então,
passei a repetir: por que o Brasil ainda não deu certo? Meu sentimento
era de que nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis
em seus próprios termos, fundada em nossa experiência histórica.
As teorizações oriundas de outros contextos eram todas elas
eurocêntricas demais e, por isso mesmo, impotentes para nos fazer inteligíveis.
Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era
necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum.

Atrás de respostas a essas questões, mergulhei, nos anos seguintes,
em estudo e assombros. O que devia ser uma introdução teórica,
no meu plano de revisão do texto, foi virando livros. A necessidade
de uma teoria do Brasil, que nos situasse na história humana, me levou
à ousadia de propor toda uma teoria da história. As alternativas
que se ofereciam eram impotentes.

Serviriam, talvez, como uma versão teórica do desempenho europeu,
mas não explicavam a história dos povos orientais, nem o mundo
árabe e muito menos a nós, latino-americanos. A melhor delas,
representada pela nova versão compilada por Engels, nas Origens, e
por Marx, nas Formações, opondo-se uma à outra, deixavam
o tema em aberto.

O processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida,
quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito
ocidental, editada e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais
nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão
ambicioso me custou algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade,
que não admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses
debates, tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições,
também, dos comunistas, porque não era um livro marxista, e
dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso não
fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer
outro livro recente sobre o mesmo tema.

Mas o Processo não bastava. A explicação que oferece
para 10 mil anos de história é ampla demais. Suas respostas,
necessariamente genéricas, apenas dão tênues delineamentos
do nosso desempenho histórico. Era o que podia dar como alternativa
aos textos clássicos, com que geralmente se trabalhava esse tema. Um
esquema conceitual mais verossímil e mais explicativo do que os disponíveis,
através da proposição de novas revoluções
tecnológicas como motores da história, de novos processos civilizatórios
e de novas formações socioculturais. Vista sob essa luz, a nossa
realidade se retrata em seus traços mais gerais, resultando num discurso
explicativo útil para fins teóricos e comparativos, mas insuficiente
para dar conta da causalidade da nossa história.

Saí, então, em busca de explicações mais terra-a-terra,
em mais anos de trabalho. O tema que me propunha agora era reconstituir o
processo de formação dos povos americanos, num esforço
para explicar as causas do seu desenvolvimento desigual. Salto, assim, da
escala de 10 mil anos de história geral para os quinhentos anos da
história americana com um novo livro: As Américas e a civilização,
em que proponho uma tipologia dos povos americanos, na forma de uma ampla
explanação explicativa.

Esse meu livro anda aí, desde então, sendo traduzido, reeditado
e discutido, mais por historiadores e filósofos do que por antropólogos.
Esses meus colegas têm um irresistível pendor barbarológico
e um apego a toda conduta desviante e bizarra.

Dedicam seu parco talento a quanto tema bizarro lhes caia em mãos,
negando-se sempre, aparvalhados, a usar suas forças para entender a
nós mesmos, fazendo antropologias da civilização.

Ocorre, porém, uma vez mais, que, completada a tarefa, vejo os limites
daquilo que alcancei em relação ao que buscava.

Meu livro ajuda, é certo, a nos fazer inteligíveis, mas é
claramente insuficiente para nossas ambições. Mergulho outra
vez buscando, numa escala nova, sincrônica, as teorias de que necessitávamos
para nos compreender. Eram três as mais urgentemente requeridas para
tomar o lugar dos esquemas menos eurocêntricos do que toscos com que
se contava.

Uma teoria de base empírica das classes sociais, tais como elas se
apresentam no nosso mundo brasileiro e latino-americano. Visivelmente, o esquema
marxista aceito, sem demasiados reparos, no mundo europeu e no anglo-saxão
de ultramar, feito de povos transplantados, empalidece frente à nossa
realidade ibero-latina. Aqui, não havendo burguesias progressistas
disputando com aristocracias feudais, nem proletariados ungidos por irresistíveis
propensões revolucionárias, mas havendo lutas de classe, existiriam
blocos antagonistas embuçados a identificar e caracterizar.

Nos faltava, por igual, uma tipologia das formas de exercício do
poder e de militância política, seja conservadora, seja reordenadora
ou insurgente. Toda politicologia copiosíssima de que se dispõe
é feita de análises irrelevantes ou de especulações
filosofantes que nos deixam mais perplexos do que explicados.

Efetivamente, falar de liberais, conservadores, radicais, ou de democracia
e liberalismo e até revolução social e política
pode ter sentido de definição concreta em outros contextos;
no nosso não significa nada, tal a ambigüidade com que essas expressões
se aplicam aos agentes mais diferentes e às orientações
mais desconexas.

Faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da nossa realidade,
em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não-saber
popular alcança, contrastantemente, atitudes críticas, mobilizando
consciências para movimentos profundos de reordenação
social. Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita, feita
de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à criatividade
popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender
essa nossa nova versão do mundo e de nós mesmos? Para dar conta
dessa necessidade é que escrevi O Dilema da América Latina.
Ali, proponho novos esquemas das classes sociais, dos desempenhos políticos,
situando-os debaixo da pressão hegemônica norte-americana em
que existimos, sem nos ser, para sermos o que lhes convém a eles.

Num exercício puramente didático, resumi os corpos teóricos
desenvolvidos nesses três livros, para compor Os brasileiros: Teoria
do Brasil. Ele só traz de novo a teoria da cultura a que aludi. Não
a situei no Dilema, para não ter que tratar tema tão copioso
dentro da dimensão latino-americana.

Os índios e a civilização compõe, com os quatro
livros citados, meus Estudos de Antropologia da Civilização,
ainda que resultasse de uma pesquisa realizada anteriormente. O certo, porém,
é que seu corpo teórico é o mesmo, fundado no conceito
de transfiguração étnica. Vale dizer, o processo através
do qual os povos surgem, se transformam ou morrem.

Ocupado nessas escrituras “preliminares”, que resultaram em cinco
volumes de quase 2 mil páginas, descuidei desse livro que agora retomo.
Efetivamente, todos eles são fruto da busca de fundamentos teóricos
que, tornando o Brasil explicável, me permitissem escrever o livro
que tenho em mãos.

Foi o que tentei várias vezes no Peru, conforme dizia, chegando a
redigi-lo inteiro, já com base nos meus estudos teóricos. Não
me satisfazendo a forma que alcancei anos atrás, o pus de lado, cuidando
que, com uns meses a mais, o retomaria.

Não foi assim. Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida. Um câncer
me comia um pulmão inteiro e tive de retirá-lo. Para tanto,
retornei ao Brasil, reativando as candentes luzes políticas que dormiam
em mim nos anos de exílio. Tudo isso e, mais que tudo, uma compulsiva
pulsão romanesca que me deu, irresistível, assim que me soube
mortal e que, desde então, me escraviza, afastando-me da tarefa que
me propunha.

Agora, uma nova pulsão, mortal, reaviva a necessidade de publicar
este livro que, além de um texto antropológico explicativo,
é, e quer ser, um gesto meu na nova luta por um Brasil decente.

Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo,
sou homem de fé e de partido. Faço política e faço
ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo.
Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro
que quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira
a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo.

INTRODUÇÃO

O Brasil e os brasileiros, sua gestação como povo, é
o que trataremos de reconstituir e compreender nos capítulos seguintes.
Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor
português com índios silvícolas e campineiros e com negros
africanos, uns e outros aliciados como escravos.

Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses,
matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas,
formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar
lugar a um povo novo (Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação
societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada
culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada
por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição
de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê
a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano
diferente de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo modelo
de estruturação societária, que inaugura uma forma singular
de organização sócio-econômica, fundada num tipo
renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial.
Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade,
num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros.

Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer
dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que
não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis
pelo exercício da função de provedor colonial de bens
para o mercado mundial, através do desgaste da população
que recruta no país ou importa.

A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes
da versão lusitana da tradição civilizatória européia
ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos
e dos negros africanos. O Brasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado
de características próprias, mas atado genesicamente à
matriz portuguesa, cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer
só aqui se realizariam plenamente.

A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras
poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição
de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário,
uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito
dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não
se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais,
vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia
frente à nação.

As únicas exceções são algumas microetnias tribais
que sobreviveram como ilhas, cercadas pela população brasileira.
Ou que, vivendo’ para além das fronteiras da civilização,
conservam sua identidade étnica. São tão pequenas, porém,
que qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à
macroetnia em que estão contidas.

O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses
decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas
e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram
no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e,
ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou
e reuniu.

Essa unidade étnica básica não significa, porém,
nenhuma uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças
diversificadoras. A ecológica, fazendo surgir paisagens humanas distintas
onde as condições de meio ambiente obrigaram a adaptações
regionais. A econômica, criando formas diferenciadas de produção,
que conduziram a especializações funcionais e aos seus correspondentes
gêneros de vida.

E, por último, a imigração, que introduziu, nesse magma,
novos contingentes humanos, principalmente europeus, árabes e japoneses.
Mas já o encontrando formado e capaz de absorvê-los e abrasileirá-los,
apenas estrangeirou alguns brasileiros ao gerar diferenciações
nas áreas ou nos estratos sociais onde os imigrantes mais se concentraram.

Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos
de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos
do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do
Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além
de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc.

Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros,
do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais
ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação
que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população.

A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser,
contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem,
contudo, borrar suas diferenças. A industrialização,
enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas,
plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação
de massa estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras
de novas formas e estilos culturais.

Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções
ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos
povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e
se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale
dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma
língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados
que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradições
comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais
que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe
ou descendentes de uma das matrizes formativas.

Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional,
um povo-nação, assentado num território próprio
e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário
da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que
são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários
e, por isso mesmo, dilaceradas por conflitos interétnicos, os brasileiros
se integram em uma única etnia nacional, constituindo assim um só
povo incorporado em uma nação unificada, num Estado uni-étnico.
A única exceção são as múltiplas microetnias
tribais, tão imponderáveis que sua existência não
afeta o destino nacional.

Aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional – que são, sem
dúvida, a grande resultante do processo de formação do
povo brasileiro – não devem cegar-nos, entretanto, para disparidades,
contradições e antagonismos que subsistem debaixo delas como
fatores dinâmicos da maior importância. A unidade nacional, viabilizada
pela integração econômica sucessiva dos diversos implantes
coloniais, foi consolidada, de fato, depois da independência, como um
objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e da
sabedoria política de muitas gerações. Esse é,
sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas
classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante
da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a
que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária
importância desse feito.

Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação
política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão
de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão
de toda tendência virtualmente separatista.

Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar
uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação
potencializa e reforça, nessas condições, a repressão
social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente
republicanos ou antioligárquicos.

Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda
distância social, gerada pelo tipo de estratificação que
o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo
classista que corresponde a toda estratificação social aqui
se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso
da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis
que as diferenças raciais.

O povo-nação não surge no Brasil da evolução
de formas anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturam
em classes opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades
de sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração
de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos
mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos
de ordenação e repressão que constituíram, de
fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável.

Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre
as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando
as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural
e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático.
Em conseqüência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois
luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob
o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão
desse pavor pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer
insurgência e a predisposição autoritária do poder
central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente.
A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros
ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do
que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações
de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda
comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria
privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e
a deplora, como se esta fosse uma conduta natural. A façanha que representou
o processo de fusão racial e cultural é negada, desse modo,
no nível aparentemente mais fluido das relações sociais,
opondo à unidade de um denominador cultural comum, com que se identifica
um povo de 160 milhões de habitantes, a dilaceração desse
mesmo povo por uma estratificação classista de nítido
colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa
conceber.

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada,
como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos
abismos que aqui separam os estratos sociais.

O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes
a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os
ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente
se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres,
cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie
de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo,
vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria
contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido.
Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos
e, invariavelmente, imprevisíveis.

Essa alternidade só se potencializou dinamicamente nas lutas seculares
dos índios e dos negros contra a escravidão.

Depois, somente nas raras instâncias em que o povo-massa de uma região
se organiza na luta por um projeto próprio e alternativo de estruturação
social, como ocorreu com os Cabanos, em Canudos, no Contestado e entre os
Mucker.

Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada
pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência
emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões
anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente
é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as
classes dominantes pela manutenção da ordem. Sintoma peremptório
de que elas sabem muito bem que isso pode suceder, caso se abram as válvulas
de contenção. Daí suas “revoluções
preventivas”, conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que qualquer
remendo na ordem vigente.

É de assinalar que essa preocupação se assentava, primeiro,
no medo da rebeldia dos escravos. Dada a coloração escura das
camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos
sociais que ameaçam eclodir com violência assustadora. Efetivamente,
poderá assumir a forma de convulsão social terrível,
porque, com uma explosão emocional, acabaria provavelmente vencida
e esmagada por forças repressoras, que restaurariam, sobre os escombros,
a velha ordem desigualitária.

O grande desafio que o Brasil enfrenta é alcançar a necessária
lucidez para concatenar essas energias e orientá-las politicamente,
com clara consciência dos riscos de retrocessos e das possibilidades
de liberação que elas ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente,
um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem
registro na história, sem conseguir sair, através delas, da
situação de dependência e opressão em que vive
e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados e negros foram chacinados
aos milhões, sempre vencidos e integrados nos plantéis de escravos.
O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de milhares,
foi também sangrado em contra-revoluções sem conseguir
jamais, senão episodicamente, conquistar o comando de seu destino para
reorientar o curso da história. Ao contrário do que alega a
historiografia oficial, nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à
violência pela classe dominante como arma fundamental da construção
da história. O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos
sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda,
clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como
necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto
alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que
seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias.

Não é impensável que a reordenação social
se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático.
Mas ela é muitíssimo improvável neste país em
que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar
a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores
a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força
da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político
nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade,
as classes dominantes apelam para a repressão e a força.

Este livro é um esforço para contribuir ao atendimento desse
reclamo de lucidez.

Isso é o que tentei fazer a seguir. Primeiro, pela análise
do processo de gestação étnica que deu nascimento aos
núcleos originais que, multiplicados, vieram a formar o povo brasileiro.
Depois, pelo estudo das linhas de diversificação que plasmaram
os nossos modos regionais de ser. E, finalmente, por via da crítica
do sistema institucional, notadamente a propriedade fundiária e o regime
de trabalho – no âmbito do qual o povo brasileiro surgiu e cresceu,
constrangido e deformado.

I. O NOVO MUNDO

1. MATRIZES ÉTNICAS A ILHA BRASIL

A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada
por inumeráveis povos indígenas. Disputando os melhores nichos
ecológicos, eles se alojavam, desalojavam e realojavam, incessantemente.
Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi,
bons guerreiros, se instalaram, dominadores, na imensidade da área,
tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo
Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé,
o Tapajós, até suas nascentes.

Configuraram, desse modo, a ilha Brasil, de que falava o velho Jaime Cortesão
( 1958), prefigurando, no chão da América do Sul, o que viria
a ser nosso país. Não era, obviamente, uma nação,
porque eles não se sabiam tantos nem tão dominadores.

Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando
línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada
um dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam
a se diferenciar e logo se desconheciam e se hostilizavam.

Se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos
mais de liberdade e autonomia, é possível que alguns deles se
sobrepusessem aos outros, criando chefaturas sobre territórios cada
vez mais amplos e forçando os povos que neles viviam a servi-los, os
uniformizando culturalmente e desencadeando, assim, um processo oposto ao
de expansão por diferenciação.

Nada disso sucedeu. O que aconteceu, e mudou total e radicalmente seu destino,
foi a introdução no seu mundo de um protagonista novo, o europeu.
Embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar
era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas.
Principalmente como uma infecção mortal sobre a população
preexistente, debilitando-a até a morte.

Esse conflito se dá em todos os níveis, predominantemente
no biótico, como uma guerra bacteriológica travada pelas pestes
que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações
indenes. No ecológico, pela disputa do território, de suas matas
e riquezas para outros usos. No econômico e social, pela escravização
do índio, pela mercantilização das relações
de produção, que articulou os novos mundos ao velho mundo europeu
como provedores de gêneros exóticos, cativos e ouros.

No plano étnico-cultural, essa transfiguração se dá
pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua
e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico,
os negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era
o brasileiro que surgia, construído com os tijolos dessas matrizes
à medida que elas iam sendo desfeitas.

Reconstituir esse processo, entendê-lo em toda a sua complexidade,
é meu objetivo neste livro. Parece impossível, reconheço.
Impossível porque só temos o testemunho de um dos protagonistas,
o invasor. Ele é quem nos fala de suas façanhas. É ele,
também, quem relata o que sucedeu aos índios e aos negros, raramente
lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas. O que a documentação
copiosíssima nos conta é a versão do dominador. Lendo-a
criticamente, é que me esforçarei para alcançar a necessária
compreensão dessa desventurada aventura.

Tarefa relevantíssima, em dois planos. No histórico, pela
reconstituição da linha singular e única de sucessos
através dos quais chegamos a ser o que somos, nós, os brasileiros.
No antropológico, porque o processo geral de gestação
de povos que nos fez, documentadíssimo aqui, é o mesmo que fez
surgir em outras eras e circunstâncias muitos outros povos, como a romanização
dos portugueses e dos franceses, por exemplo, de cujo processo de fazimento
só temos notícias escassas e duvidosas.

A MATRIZ TUPI

Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eram
principalmente tribos de tronco tupi que, havendo se instalado uns séculos
antes, ainda estavam desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes
culturais. Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em
dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de
várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes (Fernandes 1949 ). Não
era pouca gente, porque Portugal àquela época teria a mesma
população ou pouco mais.

Na escala da evolução cultural, os povos Tupi davam os primeiros
passos da revolução agrícola, superando assim a condição
paleolítica, tal como ocorrera pela primeira vez, há 10 mil
anos, com os povos do velho mundo. É de assinalar que eles o faziam
por um caminho próprio, juntamente com outros povos da floresta tropical
que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição
selvagem para a de mantimento de seus roçados. Entre elas, a mandioca,
o que constituiu uma façanha extraordinária, porque se tratava
de uma planta venenosa a qual eles deviam, não apenas cultivar, mas
também tratar adequadamente para extrair-lhe o ácido cianídrico,
tornando-a comestível. É uma planta preciosíssima porque
não precisa ser colhida e estocada, mantendo-se viva na terra por meses.

Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata-doce, o cará,
o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão,
o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão,
a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas. Inclusive dezenas
de árvores frutíferas, como o caju, o pequi etc. Faziam, para
isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvores com seus
machados de pedra e limpando o terreno com queimadas.

A agricultura lhes assegurava fartura alimentar durante todo o ano e uma
grande variedade de matérias-primas, condimentos, venenos e estimulantes.
Desse modo, superavam a situação de carência alimentar
a que estão sujeitos os povos pré- agrícolas, dependentes
da generosidade da natureza tropical, que provê, com fartura, frutos,
cocos e tubérculos durante uma parte do ano e, na outra, condena a
população à penúria. Permaneciam, porém,
dependentes do acaso para obter outros alimentos através da caça
e da pesca, também sujeitos a uma estacionalidade marcada por meses
de enorme abundância e meses de escassez (Ribeiro 1970; Meggers 1971
).

Daí a importância dos sítios privilegiados, onde a caça
e a pesca abundantes garantiam com maior regularidade a sobrevivência
do grupo e permitiam manter aldeamentos maiores. Em certos locais especialmente
ricos, tanto na costa marítima quanto nos vales mais fecundos, esses
aldeamentos excepcionais chegavam a alcançar 3 mil pessoas. Eram, todavia,
conglomerados pré-urbanos (aldeias agrícolas indiferenciadas),
porque todos os moradores estavam compelidos à produção
de alimentos, só liberando dela, excepcionalmente, alguns líderes
religiosos (pajés e caraibas) e uns poucos chefes guerreiros (tuxáuas).

Apesar da unidade lingüística e cultural que permite classificá-los
numa só macroetnia, oposta globalmente aos outros povos designados
pelos portugueses como tapuias (ou inimigos), os índios do tronco tupi
não puderam jamais unificar-se numa organização política
que lhes permitisse atuar conjugadamente.

A atuação mais negativa dos jesuítas, porém,
se funda na própria ambigüidade de sua dupla lealdade frente aos
índios e à Coroa, mais predispostos, porém, a servir
a esta Coroa contra índios aguerridos que a defendê-los eficazmente
diante dela. Isso sobretudo no primeiro século, quando sua função
principal foi minar as lealdades étnicas dos índios, apelando
fortemente para o seu espírito religioso, a fim de fazer com que se
desgarrassem das tribos e se atrelassem às missões. A eficácia
que alcançam nesse papel alienador é tão extraordinária
quanto grande a sua responsabilidade na dizimação que dela resultou.

No segundo século, já enriquecidos de seu triste papel e também
representados por figuras mais capazes de indignação moral,
como Antônio Vieira, os jesuítas assumiram grandes riscos no
resguardo e na defesa dos índios. Foram, por isso, expulsos, primeiro,
de São Paulo e, depois, do estado do Maranhão e Grão-Pará
pelos colonos. Afinal, a própria Coroa, na pessoa do marquês
de Pombal, decide acabar com aquela experiência socialista precoce,
expulsando-os do Brasil. Então, ocorre o mais triste. Os padres entregam
obedientemente as missões aos colonos ricos, contemplados com a propriedade
das terras e dos índios pela gente de Pombal, e são presos e
recolhidos à Europa, para amargar por décadas o triste papel
de sujigadores que tinham representado.

O SALVACIONISMO

Nas décadas do achamento, descoberta ou invasão do Brasil,
surgiram descrições cada vez mais minuciosas das novas terras.
Assim, elas iam sendo apropriadas pelo invasor também pelo conhecimento
de seus rios e matas, povos, bichos e duendes.

Em princípio, pela absorção da copiosíssima
sabedoria indígena, que nos milênios anteriores se familiarizara
com o que era a natureza circundante, classificando e dando nomes aos lugares
e às coisas, definindo seus usos e utilidades. Depois, por sucessivas
redefinições, umas vezes retendo os antigos nomes, outras, rebatizando,
mas nos dois casos compondo um novo corpo de saber, voltado para valores e
propósitos diferentes.

Foi a gente aqui encontrada que provocou maior curiosidade. Os índios,
vistos em princípio como a boa gente bela, que recebeu dadivosa aos
primeiros navegantes, passaram logo a ser vistos como canibais, comedores
de carne humana, totalmente detestáveis. Com o convívio, tanto
os índios começaram a distinguir nos europeus nações
e caráteres diferentes, como estes passaram a diferenciá-los
em grupos de aliados e inimigos, falando línguas diferentes e tendo
costumes discrepantes.

Assim, foi surgindo uma etnologia recíproca, através da qual
uns iam figurando o outro. A ela correspondeu, na Europa, um compêndio
de interpretações das novidades espantosas que vinham nas cartas
dos navegantes, depois nas crônicas e testemunhos e, afinal, nessa etnologia
incipiente. A curiosidade se acendeu, inteira, no reino dos teólogos,
que começaram a se chocar com algumas novas, impensáveis até
então.

Aqueles índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e
os descreviam, mas também tão semelhantes, seriam eles também
membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de
Deus, à sua imagem e semelhança? Caíram na impiedade.

Teriam salvação? Ficou logo evidente que eles careciam, mesmo,
é de um rigoroso banho de lixívia em suas almas sujas de tanta
abominação, como a antropofagia de comer seus inimigos em banquetes
selvagens; a ruindade com que eram manipulados pelo demônio através
de seus feiticeiros; a luxúria com que se amavam com a naturalidade
de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada
de qualquer produção mercantil.

Essa curiosidade floresceu, logo, numa teologia bárbara, em que os
tratados de frei Francisco de Vitória, Nóbrega e, depois, os
de Vieira e tantos outros, compunham eruditos discursos em que os índios
contracenavam com razões teológicas, evangélicas, apostólicas,
providenciais, cataclísmicas e escatológicas. Assim é
que se foi compondo um discurso cada vez mais racional e cada vez mais insano,
frente à realidade do que sucedeu aos índios: esmagados e escravizados
pelo colonizador, cego e surdo a razões que não fossem as do
haver e do dever pecuniários.

Apesar dessas cruas evidências, uns santos homens, em sua alienação
iluminada, continuaram crendo que cumpriam uma destinação cristã
de construtores do reino de Deus no novo mundo, de soldados apostólicos
da cristandade universal. Logo compuseram uma teologia alucinada e messiânica,
que via na expansão ibérica, com a sucessiva descoberta de dilatadas
terras ignotas e de incontáveis povos pagãos, uma missão
divina que se cumpria passo a passo. Tordesilhas, nesse contexto, teria sido
uma visão profética sobre a destinação ibérica
de evangelização para criar uma Igreja, por fim, efetivamente
universal.

Esses discursos respondiam a uma necessidade igualmente imperativa. A de
atribuir alguma dignidade formal à guerra de extermínio que
se levava adiante, à brutalidade da conquista, à perversidade
da eliminação de tantos povos. O império ibérico,
sagrando-se sobre o novo mundo, se tingia com as tintas de Roma. Prometia
que, à torpeza índia, faria suceder a prudência e a piedade
cristãs, até converter os infiéis servos do demônio
em cristãos, tementes do pecado e da perdição, adoradores
do verdadeiro Deus.

O europeu que, forçando a tradição bíblica,
fizera do deus dos hebreus o rei dos homens, agora tinha de incluir aquela
indianidade pagã na humanidade do passado, entre os filhos de Eva expulsos
do Paraíso, e do futuro, entre os destinados à redenção
eterna.

A polêmica sobre esse tema se acendeu por toda a parte, discutindo
vivamente o que se podia debitar e creditar a eles da tradição
vetusta. O dilúvio ocorreu também para o Novo Mundo, com Noé
e seus bichos? Que pastores evangélicos tiveram a seu cargo levar para
lá a palavra de Deus? Por que fracassaram em sua missão evangélica
os companheiros de Cristo? Ou também os índios eram culpados
do pecado original? O próximo Messias irá salvar a eles também?
Os cataclismos apocalípticos e o Juízo Final valerão
para os índios, como para os brancos? Poderia, acaso, o anunciado Filho
de Deus, nascer índio entre eles? De todo o debate, só reluzia,
clara como o sol, para a cúpula real e para a Igreja, a missão
salvacionista que cumpria à cristandade exercer, a ferro e fogo, se
preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e da Igreja. Esse
era um mandato imperativo no plano espiritual. Uma destinação
expressa, uma missão a cargo da Coroa, cujo direito de avassalar os
índios, colonizar e fluir as riquezas da terra nova decorria do sagrado
dever de salvá-los pela evangelização.

Na ordem secular, a legitimidade da hegemonia européia se estabeleceu
soberana.

Na ordem divina, os jesuítas e os franciscanos pretenderam, porém,
afiançar que estavam destinados a criar repúblicas pias e seráficas
de santos homens com os índios recém-descobertos, a fim de que,
como prescrevia o Livro dos Atos, todos os que crêem vivessem unidos,
tendo todos os bens em comum.

Configuram-se, assim, duas destinações cruamente opostas,
desfrutando, cada qual, o predomínio na dominação do
Novo Mundo. De um lado, a dos colonos, à frente dos seus negócios.
Do outro lado, a dos religiosos, à frente de suas missões. Em
princípio, em terra tão vasta, trabalhando cada qual em sua
província, puderam crescer paralelamente, mas logo o contraste se converteu
em conflito aberto. Os colonos, trabalhando para reproduzir aqui um sadio
mundo mercantil, movidos por suas cobiças e usuras.

Os frades, fazendo ressoar no Novo Mundo antigas heresias joaquinistas.
Como a do infante d. Henrique, com sua pregação de que, uma
vez que era passado o tempo do Pai – de que rege o Velho Testamento – e também
o do Filho – de que trata o Novo Testamento -, era chegada a Era do
Espírito Santo, que instalará o milênio do amor e da alegria
neste mundo, com os índios conversos e convertidos em louvadores da
glória de Deus.

A história faria prevalecer o plano oposto, obrigando os próprios
evangelizadores a cumprir o projeto colonial através da guerra genocida
contra todos os índios e da ação missionária,
a seu pesar, etnocida.

Nas tarefas da conversão do gentio e sua integração
na cristandade, foram soldados principais o jesuíta, o franciscano
e o carmelita. Os inacianos, inspirando, apoiando, incentivando o braço
secular para que, guerreando e avassalando, pusessem os índios, humilhados,
a seus pés dentro das missões. Ali, aparentemente, eles iam
viver vidas de índios humildes, contritamente. Na verdade, eles estavam
inventando para os índios uma vida nova, triste vida de catecúmenos,
suportável apenas diante da alternativa que era caírem cativos
nas mãos do colono. Assim, foram edificando, dia a dia, ano a ano,
a Cidade Cristã, virtuosa e operativa, impensável no Velho Mundo,
mas factível aqui com o barro dócil que eram os índios.
Inocentes, simples e puros, sobretudo as crianças, ainda com dentes
de leite, como dizia Gilberto Freyre. Acabou ficando claro, para eles, que
nada se podia esperar da Europa, corrompida e corrupta. A esperança
única de salvação possível para ela seria o Apocalipse.
No Novo Mundo, ao contrário, eles viam confirmar, a cada dia, suas
esperanças de concretizar as profecias bíblicas.

A tarefa a que os missionários se propunham não era transplantar
os modos europeus de ser e de viver para o Novo Mundo.

Era, ao contrário, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores
potencialidades, para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária,
orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas. Essa utopia socialista e
seráfica floresce nas Américas, recorrendo às tradições
do cristianismo primitivo e às mais generosas profecias messiânicas.
Ela se funda, por igual, no pasmo dos missionários diante da inocência
adâmica e do solidarismo edênico que se capacitaram a ver nos
índios, à medida que com eles conviviam.

Os místicos franciscanos que se viam à frente do sistema de
castas de índios remanescentes das civilizações pré-colombianas
avançam, recrutando-os para converter pirâmides pagãs
em templos cristãos suntuosos, para maior glória de Deus.

Sonham ordenar a vida indígena segundo as regras da Utopia, de Morus,
inspirados anacronicamente na indianidade original. Acreditaram, mesmo, que
era possível abrir essa alternativa para a conquista, fazendo da expansão
européia a universalização da cristandade. Encarnada
nos corpos indígenas, a cristandade ingressaria no Milênio Joaquinista,
em que a felicidade se alcançaria neste mundo. No Brasil, os jesuítas
foram adiante no mesmo caminho, reinventando a história.

Essas utopias se opunham tão cruamente ao projeto colonial que a
guerra se instalou prontamente entre colonos e sacerdotes. De um lado, o colono,
querendo pôr os braços índios a produzir o que os enricasse,
ajudados por mundanos curas regulares dispostos a sacramentar a cidade terrena,
dando a Deus o que é de Deus e ao rei o que ele reclamava. Foi um desastre,
mesmo onde as missões se implantaram produtivas e até rentáveis
para a própria Coroa – como ocorreu com as dos Sete Povos, no sul,
e ao norte, na missão tardia da Amazônia – prevaleceu a vontade
do colono, que via nos índios a força de trabalho de que necessitava
para prosperar.

O espantoso para quem medita hoje esse drama é o vigor da fé
missionária daqueles santos homens, que chegaram até à
subversão na luta por seu ideal.

Depois de transigir sem limites, interpretando em tom transcendental a conquista
como mal necessário, a porta da estrada que se abriria ao caminho da
fé pelo flagelo, caíram em si e começaram a ver seu próprio
papel conivente.

Durante décadas não disseram nenhuma palavra de piedade pelos
milhares de índios mortos, pelas aldeias incendiadas, pelas crianças,
pelas mulheres e homens escravizados, aos milhões. Tudo isso eles viram
silentes. Ou até mesmo, como Anchieta, cantando essas façanhas
em milhares de versos servis. Para eles, toda aquela dor era dor necessária
para colorir as faces da aurora, que eles viam amanhecendo. Só tardiamente
caíram em si, vendo-se vencidos primeiro na evangelização,
depois na reclusão dos índios nas missões. Entretanto,
nenhum desastre histórico, nenhum projeto utópico anterior teve
tal altitude, porque nenhuma esperança até então fora
tão alentadora e pudera ser levada tão adiante, a demonstrar
a factibilidade de reconstruir intencionalmente a sociedade segundo um projeto.

A utopia jesuítica esboroou e os inacianos foram expulsos das Américas,
entregando, inermes, desvirilizados, os seus catecúmenos ao sacrifício
e à escravidão na mão possessa dos colonos. O mesmo aconteceu
com o sonho mirífico dos franciscanos, reduzido à visão
do que era a boçalidade do mundo colonial, ínvio, ímpio
e bruto.

É de perguntar, aqui, se não foi o próprio êxito
que levou os projetos utópicos de jesuítas e de franciscanos
ao fracasso. Vendo a incompatibilidade insanável entre eles e os colonos
e, por extensão, entre o projeto missionário e o real, se afastaram
para criar sua própria província européia. Queriam dar
à expansão ibérica a alternativa freiral de restauração
de uma indianidade cristianizada, que falaria as línguas indígenas
e só teria fidelidade a si mesma. Entre as duas proposições,
não havia dúvida possível.

As Coroas optaram, ambas, pelo projeto colonial.

Os místicos haviam cumprido já a sua função
de dignificar á ação conquistadora.

Agora, deviam dar lugar aos homens práticos, que assentariam e consolidariam
as bases do império maior que jamais se viu. Em lugar de sacros reinos
pios, sob reis missionários a serviço da Igreja e de Deus, os
reis de Espanha e de Portugal queriam é o reino deste mundo.

2. O ENFRENTAMENTO DOS MUNDOS

AS OPOSTAS VISÕES

Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso,
só assimilável em sua visão mítica do mundo. Seriam
gente de seu deus sol, o criador – Maíra -, que vinha milagrosamente
sobre as ondas do mar grosso. Não havia como interpretar seus desígnios,
tanto podiam ser ferozes como pacíficos, espoliadores ou dadores.

Provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os índios. Mesmo porque,
no seu mundo, mais belo era dar que receber. Ali, ninguém jamais espoliara
ninguém e a pessoa alguma se negava louvor por sua bravura e criatividade.
Visivelmente, os recém-chegados, saídos do mar, eram feios, fétidos e infectos.
Não havia como negá- lo. É certo que, depois do banho e da comida, melhoraram
de aspecto e de modos. Maiores terão sido, provavelmente, as esperanças do
que os temores daqueles primeiros índios. Tanto assim é que muitos deles embarcaram
confiantes nas primeiras naus, crendo que seriam levados a Terras sem Males,
morada de Maíra (Newen Zeytung 1515). Tantos que o índio passou a ser, depois
do pau-brasil, a principal mercadoria de exportação para a metrópole.

Pouco mais tarde, essa visão idílica se dissipa. Nos anos seguintes, se anula
e reverte-se no seu contrário: os índios começam a ver a hecatombe que caíra
sobre eles. Maíra, seu deus, estaria morto? Como explicar que seu povo predileto
sofresse tamanhas provações? Tão espantosas e terríveis eram elas, que para
muitos índios melhor fora morrer do que viver.

Mais tarde, com a destruição das bases da vida social indígena, a negação
de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam
em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer. Morriam
de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação mais horrível
do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira.

obre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a pregação
missionária, como um flagelo. Com ela, os índios souberam que era por culpa
sua, de sua iniqüidade, de seus pecados, que o bom deus do céu caíra sobre
eles, como um cão selvagem, ameaçando lançá-los para sempre nos infernos.
O bem e o mal, a virtude e o pecado, o valor e a covardia, tudo se confundia,
transtrocando o belo com o feio, o ruim com o bom. Nada valia, agora e doravante,
o que para eles mais valia: a bravura gratuita, a vontade de beleza, a criatividade,
a solidariedade. A cristandade surgia a seus olhos como o mundo do pecado,
das enfermidades dolorosas e mortais, da covardia, que se adonava do mundo
índio, tudo conspurcando, tudo apodrecendo. Os povos que ainda o puderam fazer,
fugiram mata adentro, horrorizados com o destino que lhes era oferecido no
convívio dos brancos, seja na cristandade missionária, seja na pecaminosidade
colonial. Muitos deles levando nos corpos contaminados as enfermidades que
os iriam dizimando a eles e aos povos indenes de que se aproximassem.

Mas a atração irresistível das ferramentas, dos adornos, da aventura, os
fazia voltar. Cada nova geração queria ver com seus próprios olhos o povo
estranho, implantado nas praias, recebendo navios cheios de bens preciosíssimos.

Alguns se acercavam e aderiam, preferindo a aventura do convívio com os novos
senhores, como flecheiros de suas guerras contra os índios arredios, do que
a rotina da vida tribal, que perdera o viço e o brilho.

Esse foi o primeiro efeito do encontro fatal que aqui se dera. Ao longo das
praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros
tal qual eram, a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes
mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente.
Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica,
escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser
a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada,
esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência,
viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar.

Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena dos seus ganhos,
em ouros e glórias, ainda que estas fossem principalmente espirituais, ou
parecessem ser, como ocorria com os missionários. Para alcançá-las, tudo lhes
era concedido, uma vez que sua ação de além-mar, por mais abjeta e brutal
que chegasse a ser, estava previamente sacramentada pelas bulas e falas do
papa e do rei. Eles eram, ou se viam, como novos cruzados destinados a assaltar
e saquear túmulos e templos de hereges indianos. Mas aqui, o que viam, assombrados,
era o que parecia ser uma humanidade edênica, anterior à que havia sido expulsa
do Paraíso. Abre-se com esse encontro um tempo novo, em que nenhuma inocência
abrandaria sequer a sanha com que os invasores se lançavam sobre o gentio,
prontos a subjugá-los pela honra de Deus e pela prosperidade cristã. Só hoje,
na esfera intelectual, repensando esse desencontro se pode alcançar seu real
significado.

Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver,
tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes,
que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta
gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia e singela, a vida era dádiva
de deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos, bons de andar, de correr,
de nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas as cores, suas luzes
e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes estridentes ou melódicas,
cantos graves e agudos e toda a sorte de sons que há. Narizes competentíssimos
para fungar e cheirar catingas e odores. Bocas magníficas de degustar comidas
doces e amargas, salgadas e azedas, tirando de cada qual o gozo que podia
dar. E, sobretudo, sexos opostos e complementares, feitos para as alegrias
do amor.

Os recém-chegados eram gente prática, experimentada, sofrida, ciente de suas
culpas oriundas do pecado de Adão, predispostos à virtude, com clara noção
dos horrores do pecado e da perdição eterna. Os índios nada sabiam disso.
Eram, a seu modo, inocentes, confiantes, sem qualquer concepção vicária, mas
com claro sentimento de honra, glória e generosidade, e capacitados, como
gente alguma jamais o foi, para a convivência solidária. Aos olhos dos recém-chegados,
aquela indiada louçã, de encher os olhos só pelo prazer de vê-los, aos homens
e às mulheres, com seus corpos em flor, tinha um defeito capital: eram vadios,
vivendo uma vida inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é
que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo
só lhes coubesse viver. Aos olhos dos índios, os oriundos do mar oceano pareciam
aflitos demais. Por que se afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam
tudo, gostando mais de tomar e reter do que de dar, intercambiar? Sua sofreguidão
seria inverossímil se não fosse tão visível no empenho de juntar toras de
pau vermelho, como se estivessem condenados, para sobreviver, a alcançá-las
e embarcá-las incansavelmente?

Temeriam eles, acaso, que as florestas fossem acabar e, com elas, as aves
e as caças? Que os rios e o mar fossem secar, matando os peixes todos?

“Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros
se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutan. Uma vez um velho perguntou-me:
Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar
lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi
que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como
ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles
com os seus cordões de algodão e suas plumas. Retrucou o velho imediatamente:
e porventura precisais de muito? – Sim, respondi- lhe, pois no nosso país
existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras
mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil
com que muitos navios voltam canegados. – Ah! retrucou o selvagem, tu me contas
maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera:
Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? – Sim, disse eu, morre
como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em
qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem
para quem fica o que deixam? – Para seus filhos se os têm, respondi; na falta
destes para os irmãos ou parentes mais próximos. – Na verdade, continuou o
velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs
sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como
dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para
vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos
nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem
amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu
também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados (Léry 1960:151-61
).”

Aquele desencontro de gente índia que enchia as praias, encantada de ver
as velas enfunadas, e que era vista com fascínio pelos barbudos navegantes
recém-chegados, era, também, o enfrentamento biótico mortal da higidez e da
morbidade. A indiada não conhecia doenças, além de coceiras e desvanecimentos
por perda momentânea da alma.

A branquitude trazia da cárie dental à bexiga, à coqueluche, à tuberculose
e o sarampo. Desencadeia-se, ali, desde a primeira hora, uma guerra biológica
implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes
a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado,
povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que
a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois,
pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravização. Entretanto,
esses eram tão-só os passos iniciais de uma escalada do calvário das dores
inenarráveis do extermínio genocida e etnocida. Para os índios, a vida era
uma tranqüila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária.
Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios,
em que se exerciam, valentes. Um guerreiro lutava, bravo, para fazer prisioneiros,
pela glória de alcançar um novo nome e uma nova marca tatuada cativando inimigos.
Também servia para ofertá-lo numa festança em que centenas de pessoas o comeriam
convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, para absorver sua valentia,
que nos seus corpos continuaria viva. Uma mulher tecia uma rede ou trançava
um cesto com a perfeição de que era capaz, pelo gosto de expressar-se em sua
obra, como um fruto maduro de sua ingente vontade de beleza. Jovens, adornados
de plumas sobre seus corpos escarlates de urucu, ou verde-azulados de jenipapo,
engalfinhavam-se em lutas desportivas de corpo a corpo, em que punham a energia
de batalhas na guerra para viver seu vigor e sua alegria. Para os recém-chegados,
muito ao contrário, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos
condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro. Envoltos em panos, calçados
de botas e enchapelados, punham nessas peças seu luxo e vaidade, apesar de
mais vezes as exibirem sujas e molambentas, do que pulcras e belas.

Armados de chuços de ferro e de arcabuzes tonitroantes, eles se sabiam e
se sentiam a flor da criação. Seu desejo, obsessivo, era multiplicar-se nos
ventres das índias e pôr suas pernas e braços a seu serviço, para plantar
e colher suas roças, para caçar e pescar o que comiam. Os homens serviam principalmente
para tombar e juntar paus- de-tinta ou para produzir outra mercadoria para
seu lucro e bem-estar. Esses índios cativos, condenados à tristeza mais vil,
eram também os provedores de suas alegrias, sobretudo as mulheres, de sexo
bom de fornicar, de braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para prenhar.
A vontade mais veemente daqueles herói d’além-mar era exercer-se sobre aquela
gente vivente como seus duros senhores. Sua vocação era a de autoridades de
mando e cutelo sobre bichos e matos e gentes, nas imensidades de terras de
que iam se apropriando em nome de Deus e da Lei. O contraste não podia ser
maior, nem mais infranqueável, em incompreensão recíproca. Nada que os índios
tinham ou faziam foi visto com qualquer apreço, senão eles próprios, como
objeto diverso de gozo e como fazedores do que não entendiam, produtores do
que não consumiam. O invasor, ao contrário, vinha com as mãos cheias e as
naus abarrotadas de machados, facas, facões, canivetes, tesouras, espelhos
e, também, miçangas cristalizadas em cores opalinas. Quanto índio se desembestou,
enlouquecido, contra outros índios e até contra seu próprio povo, por amor
dessas preciosidades! Não podendo produzi-las, tiveram de encontrar e sofrer
todos os modos de pagar seus preços, na medida em que elas se tornaram indispensáveis.
Elas eram, em essência, a mercadoria que integrava o mundo índio com o mercado,
com a potência prodigiosa de tudo subverter. Assim se desfez, uniformizado,
o recém- descoberto Paraíso Perdido.

RAZÕES DESENCONTRADAS

Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível seu
modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos primeiros
contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava
sua desumanização como bestas de carga. Nesse conflito de vida ou morte, os
índios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas energias,
armas e astúcias. Entretanto, cada tribo, lutando por si, desajudada pelas
demais – exceto em umas poucas ocasiões em que se confederaram, ajudadas pelos
europeus que viviam entre elas – pôde ser vencida por um inimigo pouco numeroso
mas superiormente organizado, tecnologicamente mais avançado e, em conseqüência,
mais bem armado. As vitórias européias se deveram principalmente à condição
evolutiva mais alta das incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitia
aglutinar-se em uma única entidade política servida por uma cultura letrada
e ativada por uma religião missionária, que influenciou poderosamente as comunidades
indígenas.

Paradoxalmente, porém, é o próprio atraso dos índios que os fazia mais resistentes
à subjugação, condicionando uma guerra secular de extermínio. Isso se verifica
comparando a rapidez da conquista e da pacificação onde o europeu se deparou
com altas civilizações – como no México e no Peru – com a lentidão da conquista
do Brasil, que prossegue até hoje com tribos arredias resistindo armadas à
invasão de seus territórios para além das fronteiras da civilização. As crônicas
coloniais registram copiosamente essa guerra sem quartel de europeus armados
de canhões e arcabuzes contra indígenas que contavam unicamente com tacapes,
zarabatanas, arcos e flechas. Ainda assim, os cronistas destacam com gosto
e orgulho o heroísmo lusitano. Esse é o caso das loas do padre Anchieta a
Mem de Sá, subjugador das populações aborígenes para escravizá-las ou colocá-las
em mãos dos missionários.

Anchieta, descuidado da cordura que corresponderia à sua futura santidade,
louva assim o bravo governador: “Quem poderá contar os gestos heróicos do
Chefe à frente dos soldados, na imensa mata: Cento e sessenta as aldeias incendiadas,
Mil casas arruinadas pela chama devoradora, Assolados os campos, com suas
riquezas, Passado tudo ao fio da espada.

Esses são alguns dos 2 mil versos de louvação escritos em latim por José
de Anchieta ( 1958:129 ) no poema “De Gestis Mendi de Saa” (circa 1560 ).
O elogio é tanto mais compreensível quando se recorda que Mem de Sá, com suas
guerras de sujigação e extermínio, estava executando rigorosamente o plano
de colonização proposto pelo padre Nóbrega em 1558. Esse plano inclemente
é o documento mais expressivo da política indigenista jesuítico-lusitana.
Em sua eloqüência espantosa, um dos argumentos de que lança mão é a alegação
da necessidade de pôr tetmo à antropofagia, que só cessará, diz ele, pondo
fim “à boca infernal de comer a tantos cristãos”. Outro argumento não menos
expressivo é a conveniência de escravizar logo aos índios todos para que não
sejam escravizados ilegalmente. Senão vejamos:

“[…] se S. A. os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve fazer
estender aos cristãos por a terra dentro e repartir-lhes os serviços dos índios
àqueles que os ajudarem a conquistar e senhoriar como se faz em outras partes
de terras novas […] Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de
haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos
legítimos, tomados em guerra justa e terão serviços de avassalagem dos índios
e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S. A. terá muita
renda nesta terra porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que
não haja muito ouro e prata. […]

Esse parece também o melhor meio para a terra se povoar de cristãos e seria
melhor que mandar povoadores pobres, como vieram alguns, e por não trazerem
com que mercassem um escravo, com que começassem sua vida, não se puderam
manter, e assim foram forçados a se tornar ou morrerem de bichos; e parece
melhor mandar gente que senhoreie a terra e folgue de aceitar nela qualquer
boa maneira de viver, como fizeram alguns dos que vieram com Tomé de Souza
[…] Devia de haver um protetor dos índios para os fazer castigar, quando
o houvesse mister, e defender dos agravos que lhes fizessem. Este deveria
ser bem salariado, escolhido pelos padres e aprovado pelo governador. Se o
governador fosse zeloso bastaria o presente. A 1ei que eles hão de dar é defender-lhes
comer carne humana e guerrear sem licença do governador, fazer-lhes ter uma
só mulher, vestirem-se, pois tem muito algodão, ao menos depois de cristãos,
tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos;
fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre
cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem e com esses padres da Companhia
para os doutrinar (Apontamentos de coisas do Brasil, 8 de maio de 1558 in
Leite 1940:75-87 ).”

Tal foi o alto plano jesuítico que regeu e ordenou a colonização. Um somatório
de violência mortal, de intolerância, prepotência e ganância. Todas as qualidades
mais vis se conjugaram para compor o programa civilizador de Nóbrega. Aplicado
a ferro e fogo por Mem de Sá, esse programa levou o desespero e a destruição
a cerca de trezentas aldeias indígenas na costa brasileira do século XVI.
O balanço dessa hecatombe nos é dado pelo próprio Anchieta nestas palavras.

“A gente que de vinte anos a esta parte é gastada nesta bahia, parece cousa
que não se pode crer, porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse
nunca. Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de
negros da Guiné e muito poucos da terra e se perguntarem por tanta gente,
dirão que morreu (Informação dos primeiros aldeamentos da Baía, circa 1587
in Anchieta 1933:377-8 ).”

Sem embargo, mais ainda que as espadas e os arcabuzes, as grandes armas da
conquista, responsáveis principais pela depopulação do Brasil, foram as enfermidades
desconhecidas dos índios com que os invasores os contaminaram. A magnitude
desse fator letal pode ser avaliada pelo registro dos efeitos da primeira
epidemia que atingiu a Bahia. Cerca de 40 mil índios reunidos insensatamente
pelos jesuítas nas aldeias do Recôncavo, em meados do século xvI, atacados
de varíola, morreram quase todos, deixando os 3 mil sobreviventes tão enfraquecidos
que foi impossível reconstituir a missão. Os próprios sacerdotes operavam
muitas vezes como contaminadores involuntários, como testemunham suas próprias
cartas. Em algumas delas comentam o alívio que lhes trazia ao “mal do peito”
os bons ares da terra nova; em outras, relatam como os índios morriam feito
moscas, escarrando sangue, podendo ser salvas apenas suas almas. Mais bárbaro
ainda era o projeto oposto, igualmente defendido no plano ideológico e muito
mais eficaz no campo prático. A melhor expressão dele se deveu a Domingos
Jorge Velho em carta a el-rei, datada de 1694, em que o grande capitão dos
mamelucos paulistas declara, soberbo, de seus combatentes, que “não é gente
matriculada nos livros de Vossa Majestade, não recebem soldo, nem ajuda de
pano, ou munição. São umas agregações que fazemos, alguns de nós, entrando
cada um com seus servos de armas que têm”. Acrescenta que não vão ao mato
cativar índios, como alguns “pretendem fazer crer a Vossa Majestade”, para
civilizar selvagens. Vão, com suas próprias palavras, “adquirir o tapuia gentio-brabo
e comedor de carne humana, para o reduzir para o conhecimento da urbana humanidade
e humana sociedade”.

Alega, ainda, que “em vão trabalha quem os quer fazer anjos, antes de os
fazer homens” (Carta a el-rei do outeiro do Barriga, de 15 de julho de 1694
in Ennes 1938:204-7 ). Em poucas décadas desapareceram as povoações indígenas
que as caravelas do descobrimento encontraram por toda a costa brasileira
e os primeiros cronistas contemplaram maravilhados. Em seu lugar haviam se
instalado três tipos novos de povoações. O primeiro e principal, formado pelas
concentrações de escravos africanos dos engenhos e portos. Outro, disperso
pelos vilarejos e sítios da costa ou pelos campos de criação de gado, formado
principalmente por mamelucos e brancos pobres. O terceiro esteve constituído
pelos índios incorporados à empresa colonial como escravos de outros núcleos
ou concentrados nas aldeias, algumas das quais conservavam sua autonomia,
enquanto outras eram regidas por missionários.

Apesar de o projeto jesuítico de colonização do Brasil nascente ter sido
formulado sem qualquer escrúpulo humanitário, tal foi a ferocidade da colonização
leiga, que estalou, algumas décadas depois, um sério conflito entre os padres
da Companhia e os povoadores dos núcleos agrário-mercantis. Para os primeiros,
os índios, então em declínio e ameaçados de extinção, passaram a ser criaturas
de Deus e donos originais da terra, com direito a sobreviver se abandonassem
suas heresias para se incorporarem ao rebanho da Igreja, na qualidade de operários
da empresa colonial recolhidos às missões. Para os colonos, os índios eram
um gado humano, cuja natureza, mais próxima de bicho que de gente, só os recomendava
à escravidão. A Coroa portuguesa apoiou nominalmente os missionários, embora
jamais negasse autorização para as “guerras justas”, reclamadas pelo colono
para aprisionar e escravizar tanto os índios bravos e hostis como os simplesmente
arredios. Quase sempre fez vista grossa à escravidão indígena, que desse modo
se tornou inevitável, dado o caráter da própria empresa colonial, especialmente
nas áreas pobres.

Impedidos de comprar escravos negros, porque eram caros demais, os colonos
de São Paulo e outras regiões se viram na contingência de se servir dos silvícolas,
ou de ter como seu principal negócio a preia e venda de índios para quem requeresse
seu trabalho nas tarefas de subsistência, que por longo tempo estiveram a
cargo deles. Em diversas regiões – mas sobretudo em São Paulo, no Maranhão
e no Amazonas – foram grandes os conflitos entre jesuítas e colonos, defendendo,
cada qual, sua solução relativa aos aborígenes: a redução missionária ou a
escravidão. A curto ou longo prazo, triunfaram os colonos, que usaram os índios
como guias, remadores, lenhadores, caçadores e pescadores, criados domésticos,
artesãos; e sobretudo as índias, como os ventres nos quais engendraram uma
vasta prole mestiça, que viria a ser, depois, o grosso da gente da terra:
os brasileiros. Quase todas as ordens religiosas aceitaram, sem resistência,
o papel de amansadoras de índios para a sua incorporação na força de trabalho
ou nas expedições armadas da colônia. Os jesuítas, porém, arrependidos de
seu papel inicial de aliciadores de índios para os colonos, inspirados na
experiência dos seus companheiros paraguaios, quiseram pôr em prática, também
no Brasil, um projeto utópico de reconstrução intencional da vida social dos
índios destribalizados. Tais foram suas missões, nas quais os índios eram
concentrados – depois de atraídos pelos padres ou subjugados pelo braço secular
– em comunidades ferreamente organizadas como economias auto- suficientes,
ainda que também tivessem alguma produção mercantil. Isso se daria na segunda
onda de evangelização, realizada na Amazônia. O projeto jesuítico era tão
claramente oposto ao colonial que resulta espantoso haver sido tentado simultaneamente
e nas mesmas áreas e sob a dominação do mesmo reino. Os conflitos resultantes
das disputas pelo domínio dos índios não permitiram que as missões jesuíticas
alcançassem, em terras brasileiras, a dimensão, quanto ao número de indígenas
reunidos, nem o nível de organização e prosperidade que a Companhia de Jesus
conquistou no Paraguai.

Contribuem para esse fracasso duas ordens de fatores. Primeiro, a referida
oposição frontal dos povoadores portugueses a um projeto que lhes disputava
a mão-de-obra indígena, e que era realizado nas mesmas áreas que eles ocupavam.
Segundo, as enfermidades trazidas pelo branco que, ao propagarem-se nas grandes
concentrações humanas das missões, provocavam enorme mortandade. Depois de
algumas décadas, os jesuítas reconheceram que, além de não conseguirem salvar
as almas dos índios pelo evidente fracasso da conversão – o que, de resto,
não era grave, porque “o despertar da fé é tarefa de Deus”, não do missionário
(Nóbrega, apud Dourado 1958:44 ) -, também não salvavam suas vidas. Ao contrário.
Era evidente o despovoamento de toda a costa e, vistos os fatos agora, não
se pode deixar de reconhecer, também, que os próprios jesuítas foram um dos
principais fatores de extermínio. Esse foi, de fato, o papel que eles representaram,
enquanto diplomatas-pacificadores, postos em ação sempre que os índios pudessem
ganhar uma batalha. Tal ocorreu em Peruíbe, quando Anchieta, fazendo-se passar
por um milagroso pai, corria de um lado a outro tentando dissuadir os índios
de atacar os portugueses, que, atacados naquele momento, poderiam ter sido
vencidos. De fato, se atribui a ele, com toda razão – a ele e a Nóbrega -,
haverem salvo, naquela ocasião, a São Paulo e à própria colonização portuguesa.

Também foi evidentemente nefasto o papel dos jesuítas, retirando os índios
de suas aldeias dispersas para concentrá-los nas reduções, onde, além de servirem
aos padres e não a si mesmos e de morrerem nas guerras dos portugueses contra
os índios hostis, eram facilmente vitimados pelas pragas de que eles próprios,
sem querer, os contaminavam. É evidente que nos dois casos o propósito explícito
dos jesuítas não era destruir os índios, mas o resultado de sua política não
podia ser mais letal se tivesse sido programada para isso.

A atuação mais negativa dos jesuítas, porém, se funda na própria ambigüidade
de sua dupla lealdade frente aos índios e à Coroa, mais predispostos, porém,
a servir a esta Coroa contra índios aguerridos que a defendê-los eficazmente
diante dela. Isso sobretudo no primeiro século, quando sua função principal
foi minar as lealdades étnicas dos índios, apelando fortemente para o seu
espírito religioso, a fim de fazer com que se desgarrassem das tribos e se
atrelassem às missões. A eficácia que alcançam nesse papel alienador é tão
extraordinária quanto grande a sua responsabilidade na dizimação que dela
resultou. No segundo século, já enriquecidos de seu triste papel e também
representados por figuras mais capazes de indignação moral, como Antônio Vieira,
os jesuítas assumiram grandes riscos no resguardo e na defesa dos índios.
Foram, por isso, expulsos, primeiro, de São Paulo e, depois, do estado do
Maranhão e Grão-Pará pelos colonos. Afinal, a própria Coroa, na pessoa do
marquês de Pombal, decide acabar com aquela experiência socialista precoce,
expulsando-os do Brasil. Então, ocorre o mais triste. Os padres entregam obedientemente
as missões aos colonos ricos, contemplados com a propriedade das terras e
dos índios pela gente de Pombal, e são presos e recolhidos à Europa, para
amargar por décadas o triste papel de sujigadores que tinham representado.

O SALVACIONISMO

Nas décadas do achamento, descoberta ou invasão do Brasil, surgiram descrições
cada vez mais minuciosas das novas terras. Assim, elas iam sendo apropriadas
pelo invasor também pelo conhecimento de seus rios e matas, povos, bichos
e duendes.

Em princípio, pela absorção da copiosíssima sabedoria indígena, que nos milênios
anteriores se familiarizara com o que era a natureza circundante, classificando
e dando nomes aos lugares e às coisas, definindo seus usos e utilidades. Depois,
por sucessivas redefinições, umas vezes retendo os antigos nomes, outras,
rebatizando, mas nos dois casos compondo um novo corpo de saber, voltado para
valores e propósitos diferentes. Foi a gente aqui encontrada que provocou
maior curiosidade. Os índios, vistos em princípio como a boa gente bela, que
recebeu dadivosa aos primeiros navegantes, passaram logo a ser vistos como
canibais, comedores de carne humana, totalmente detestáveis. Com o convívio,
tanto os índios começaram a distinguir nos europeus nações e caráteres diferentes,
como estes passaram a diferenciá-los em grupos de aliados e inimigos, falando
línguas diferentes e tendo costumes discrepantes. Assim, foi surgindo uma
etnologia recíproca, através da qual uns iam figurando o outro. A ela correspondeu,
na Europa, um compêndio de interpretações das novidades espantosas que vinham
nas cartas dos navegantes, depois nas crônicas e testemunhos e, afinal, nessa
etnologia incipiente. A curiosidade se acendeu, inteira, no reino dos teólogos,
que começaram a se chocar com algumas novas, impensáveis até então. Aqueles
índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também
tão semelhantes, seriam eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo
barro pelas mãos de Deus, à sua imagem e semelhança? Caíram na impiedade.
Teriam salvação? Ficou logo evidente que eles careciam, mesmo, é de um rigoroso
banho de lixívia em suas almas sujas de tanta abominação, como a antropofagia
de comer seus inimigos em banquetes selvagens; a ruindade com que eram manipulados
pelo demônio através de seus feiticeiros; a luxúria com que se amavam com
a naturalidade de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada
de qualquer produção mercantil.

Essa curiosidade floresceu, logo, numa teologia bárbara, em que os tratados
de frei Francisco de Vitória, Nóbrega e, depois, os de Vieira e tantos outros,
compunham eruditos discursos em que os índios contracenavam com razões teológicas,
evangélicas, apostólicas, providenciais, cataclísmicas e escatológicas. Assim
é que se foi compondo um discurso cada vez mais racional e cada vez mais insano,
frente à realidade do que sucedeu aos índios: esmagados e escravizados pelo
colonizador, cego e surdo a razões que não fossem as do haver e do dever pecuniários.
Apesar dessas cruas evidências, uns santos homens, em sua alienação iluminada,
continuaram crendo que cumpriam uma destinação cristã de construtores do reino
de Deus no novo mundo, de soldados apostólicos da cristandade universal. Logo
compuseram uma teologia alucinada e messiânica, que via na expansão ibérica,
com a sucessiva descoberta de dilatadas terras ignotas e de incontáveis povos
pagãos, uma missão divina que se cumpria passo a passo. Tordesilhas, nesse
contexto, teria sido uma visão profética sobre a destinação ibérica de evangelização
para criar uma Igreja, por fim, efetivamente universal.

Esses discursos respondiam a uma necessidade igualmente imperativa. A de
atribuir alguma dignidade formal à guerra de extermínio que se levava adiante,
à brutalidade da conquista, à perversidade da eliminação de tantos povos.
O império ibérico, sagrando-se sobre o novo mundo, se tingia com as tintas
de Roma. Prometia que, à torpeza índia, faria suceder a prudência e a piedade
cristãs, até converter os infiéis servos do demônio em cristãos, tementes
do pecado e da perdição, adoradores do verdadeiro Deus. O europeu que, forçando
a tradição bíblica, fizera do deus dos hebreus o rei dos homens, agora tinha
de incluir aquela indianidade pagã na humanidade do passado, entre os filhos
de Eva expulsos do Paraíso, e do futuro, entre os destinados à redenção eterna.

A polêmica sobre esse tema se acendeu por toda a parte, discutindo vivamente
o que se podia debitar e creditar a eles da tradição vetusta. O dilúvio ocorreu
também para o Novo Mundo, com Noé e seus bichos? Que pastores evangélicos
tiveram a seu cargo levar para lá a palavra de Deus? Por que fracassaram em
sua missão evangélica os companheiros de Cristo? Ou também os índios eram
culpados do pecado original? O próximo Messias irá salvar a eles também? Os
cataclismos apocalípticos e o Juízo Final valerão para os índios, como para
os brancos? Poderia, acaso, o anunciado Filho de Deus, nascer índio entre
eles?

De todo o debate, só reluzia, clara como o sol, para a cúpula real e para
a Igreja, a missão salvacionista que cumpria à cristandade exercer, a ferro
e fogo, se preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e da
Igreja. Esse era um mandato imperativo no plano espiritual. Uma destinação
expressa, uma missão a cargo da Coroa, cujo direito de avassalar os índios,
colonizar e fluir as riquezas da terra nova decorria do sagrado dever de salvá-los
pela evangelização.

Na ordem secular, a legitimidade da hegemonia européia se estabeleceu soberana.
Na ordem divina, os jesuítas e os franciscanos pretenderam, porém, afiançar
que estavam destinados a criar repúblicas pias e seráficas de santos homens
com os índios recém-descobertos, a fim de que, como prescrevia o Livro dos
Atos, todos os que crêem vivessem unidos, tendo todos os bens em comum. Configuram-se,
assim, duas destinações cruamente opostas, desfrutando, cada qual, o predomínio
na dominação do Novo Mundo. De um lado, a dos colonos, à frente dos seus negócios.
Do outro lado, a dos religiosos, à frente de suas missões. Em princípio, em
terra tão vasta, trabalhando cada qual em sua província, puderam crescer paralelamente,
mas logo o contraste se converteu em conflito aberto. Os colonos, trabalhando
para reproduzir aqui um sadio mundo mercantil, movidos por suas cobiças e
usuras.

Os frades, fazendo ressoar no Novo Mundo antigas heresias joaquinistas. Como
a do infante d. Henrique, com sua pregação de que, uma vez que era passado
o tempo do Pai – de que rege o Velho Testamento – e também o do Filho – de
que trata o Novo Testamento -, era chegada a Era do Espírito Santo, que instalará
o milênio do amor e da alegria neste mundo, com os índios conversos e convertidos
em louvadores da glória de Deus. A história faria prevalecer o plano oposto,
obrigando os próprios evangelizadores a cumprir o projeto colonial através
da guerra genocida contra todos os índios e da ação missionária, a seu pesar,
etnocida.

Nas tarefas da conversão do gentio e sua integração na cristandade, foram
soldados principais o jesuíta, o franciscano e o carmelita. Os inacianos,
inspirando, apoiando, incentivando o braço secular para que, guerreando e
avassalando, pusessem os índios, humilhados, a seus pés dentro das missões.
Ali, aparentemente, eles iam viver vidas de índios humildes, contritamente.
Na verdade, eles estavam inventando para os índios uma vida nova, triste vida
de catecúmenos, suportável apenas diante da alternativa que era caírem cativos
nas mãos do colono. Assim, foram edificando, dia a dia, ano a ano, a Cidade
Cristã, virtuosa e operativa, impensável no Velho Mundo, mas factível aqui
com o barro dócil que eram os índios. Inocentes, simples e puros, sobretudo
as crianças, ainda com dentes de leite, como dizia Gilberto Freyre. Acabou
ficando claro, para eles, que nada se podia esperar da Europa, corrompida
e corrupta. A esperança única de salvação possível para ela seria o Apocalipse.
No Novo Mundo, ao contrário, eles viam confirmar, a cada dia, suas esperanças
de concretizar as profecias bíblicas.

A tarefa a que os missionários se propunham não era transplantar os modos
europeus de ser e de viver para o Novo Mundo.

Era, ao contrário, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhores potencialidades,
para implantar, afinal, uma sociedade solidária, igualitária, orante e pia,
nas bases sonhadas pelos profetas. Essa utopia socialista e seráfica floresce
nas Américas, recorrendo às tradições do cristianismo primitivo e às mais
generosas profecias messiânicas. Ela se funda, por igual, no pasmo dos missionários
diante da inocência adâmica e do solidarismo edênico que se capacitaram a
ver nos índios, à medida que com eles conviviam.

Os místicos franciscanos que se viam à frente do sistema de castas de índios
remanescentes das civilizações pré-colombianas avançam, recrutando-os para
converter pirâmides pagãs em templos cristãos suntuosos, para maior glória
de Deus. Sonham ordenar a vida indígena segundo as regras da Utopia, de Morus,
inspirados anacronicamente na indianidade original. Acreditaram, mesmo, que
era possível abrir essa alternativa para a conquista, fazendo da expansão
européia a universalização da cristandade. Encarnada nos corpos indígenas,
a cristandade ingressaria no Milênio Joaquinista, em que a felicidade se alcançaria
neste mundo. No Brasil, os jesuítas foram adiante no mesmo caminho, reinventando
a história.

Essas utopias se opunham tão cruamente ao projeto colonial que a guerra se
instalou prontamente entre colonos e sacerdotes. De um lado, o colono, querendo
pôr os braços índios a produzir o que os enricasse, ajudados por mundanos
curas regulares dispostos a sacramentar a cidade terrena, dando a Deus o que
é de Deus e ao rei o que ele reclamava. Foi um desastre, mesmo onde as missões
se implantaram produtivas e até rentáveis para a própria Coroa – como ocorreu
com as dos Sete Povos, no sul, e ao norte, na missão tardia da Amazônia –
prevaleceu a vontade do colono, que via nos índios a força de trabalho de
que necessitava para prosperar. O espantoso para quem medita hoje esse drama
é o vigor da fé missionária daqueles santos homens, que chegaram até à subversão
na luta por seu ideal.

Depois de transigir sem limites, interpretando em tom transcendental a conquista
como mal necessário, a porta da estrada que se abriria ao caminho da fé pelo
flagelo, caíram em si e começaram a ver seu próprio papel conivente.

Durante décadas não disseram nenhuma palavra de piedade pelos milhares de
índios mortos, pelas aldeias incendiadas, pelas crianças, pelas mulheres e
homens escravizados, aos milhões. Tudo isso eles viram silentes. Ou até mesmo,
como Anchieta, cantando essas façanhas em milhares de versos servis. Para
eles, toda aquela dor era dor necessária para colorir as faces da aurora,
que eles viam amanhecendo. Só tardiamente caíram em si, vendo-se vencidos
primeiro na evangelização, depois na reclusão dos índios nas missões. Entretanto,
nenhum desastre histórico, nenhum projeto utópico anterior teve tal altitude,
porque nenhuma esperança até então fora tão alentadora e pudera ser levada
tão adiante, a demonstrar a factibilidade de reconstruir intencionalmente
a sociedade segundo um projeto. A utopia jesuítica esboroou e os inacianos
foram expulsos das Américas, entregando, inermes, desvirilizados, os seus
catecúmenos ao sacrifício e à escravidão na mão possessa dos colonos. O mesmo
aconteceu com o sonho mirífico dos franciscanos, reduzido à visão do que era
a boçalidade do mundo colonial, ínvio, ímpio e bruto.

É de perguntar, aqui, se não foi o próprio êxito que levou os projetos utópicos
de jesuítas e de franciscanos ao fracasso. Vendo a incompatibilidade insanável
entre eles e os colonos e, por extensão, entre o projeto missionário e o real,
se afastaram para criar sua própria província européia. Queriam dar à expansão
ibérica a alternativa freiral de restauração de uma indianidade cristianizada,
que falaria as línguas indígenas e só teria fidelidade a si mesma. Entre as
duas proposições, não havia dúvida possível. As Coroas optaram, ambas, pelo
projeto colonial.

Os místicos haviam cumprido já a sua função de dignificar á ação conquistadora.
Agora, deviam dar lugar aos homens práticos, que assentariam e consolidariam
as bases do império maior que jamais se viu. Em lugar de sacros reinos pios,
sob reis missionários a serviço da Igreja e de Deus, os reis de Espanha e
de Portugal queriam é o reino deste mundo.

3. O PROCESSO CIVILIZATÓRIO POVOS GERMINAIS

O processo civilizatório, acionado pela revolução tecnológica
que possibilitou a navegação oceânica, transfigurou as
nações ibéricas, estruturando-as como impérios
mercantis salvacionistas. Assim é que se explica a vitalização
extraordinária dessas nações, que de repente ganharam
uma energia expansiva inexplicável numa formação meramente
feudal e também numa formação capitalista. Mesmo porque
essas últimas só surgiram mais tarde, na Inglaterra e na Holanda.

De fato, as teorias explicativas da história mundial não oferecem
categorias teóricas capazes de explicar seja o poderio singular que
alcançou a civilização Árabe por mais de um milênio
de esplendor, seja a expansão ibérica, que criou a primeira
civilização universal. Essa carência é que nos
obrigou, em nosso estudo do processo civilizatório (Ribeiro 1968, 1972
), a propor, com respeito ao mundo árabe, a categoria de império
despótico salvacionista, enfatizando o caráter atípico
de seu salvacionismo, que nunca quis converter ninguém. Simplesmente
conquistavam a área, gritavam o Jihad e deixavam o povo viver.

A certa altura, como aconteceu com todas as civilizações,
entram em obsolescência e se feudalizam, abrindo espaço para
um novo gênero de salvacionismo. Ao mundo ibérico propusemos
a categoria de império mercantil salvacionista, gerado pela mesma revolução
tecnológica, a mercantil, que deu acesso ao ultramar. Tecnologia gerada
no mundo árabe e no mundo oriental, mas acolhida e concatenada primeiro
pelos portugueses.

Os iberos, num primeiro movimento, se livraram da secular ocupação
árabe e expulsaram seu contingente judeu, assumindo inteiro comando
de seu território através de u m poder centralizado que não
deixava espaço para qualquer autonomia feudal ou qualquer monopólio
comercial.

Num segundo movimento, se expandiram pelos mares, lançando-se em
guerras de conquista, de saqueio e de evangelização sobre os
povos da África, da Ásia e, principalmente, das Américas.
Estabeleceram, assim, os fundamentos do primeiro sistema econômico mundial,
interrompendo o desenvolvimento autônomo das grandes civilizações
americanas. Exterminaram, simultaneamente, milhares de povos que antes viviam
em prosperidade e alegria, espalhados por toda a terra com suas línguas
e com suas culturas originais.

Ao mesmo tempo, se plasmam a si mesmas como novas formações
socioeconômicas e como novas configurações histórico-culturais,
que cobrem áreas e subjugam populações infinitamente
maiores que a européia (Ribeiro 1970). É no curso dessa autotransformação
que as populações indígenas das Américas, do Brasil
inclusive, se vêem conscritas, a seu pesar, para as tarefas da civilização
nascente. Viabilizando-a na base dos saberes indígenas, que permitiram
a adaptação do europeu em outras latitudes, e provendo largamente
a força de trabalho que as inseriu no mercado mundial em formação.

Nações germinais, como Roma no passado, foram os iberos, os
ingleses e os russos no mundo moderno.

Cada um deles deu origem a uma variante ponderável da humanidade
– a latino- americana, a neobritânica e a eslava -, criando gentes tão
homogêneas entre si, como diferenciadas de todas as demais. Estranhamente,
a Alemanha, a França e a Itália, tão realizadas e plenas
como ramos da civilização ocidental, não foram germinais.

Fechadas em si, feudalizadas, ocupadas em dissensões com suas variantes
internas, elas não se organizaram como Estados nacionais nem exerceram
papel seminal.

Os eslavos, simultaneamente, se expandiram pelas suas estepes e tundras
e foram ter no Alasca. Mas, contidos pelo esclerosamento de sua sociedade
arcaica, rigidamente estratificada, refrearam seu elã de conquistar
novos mundos.

Os ingleses se expandiram como operosos granjeiros puritanos ou como uma
burguesia industrial e negocista, que calculava bem cada um dos seus lances.

Empenhados em outro gênero de colonização, sua tarefa
era a de transplantar sua paisagem mundo afora, recriando pequenas Inglaterras,
desatentos ou indiferentes ao que havia aonde chegaram. Negando-se a ver e
a entender as vetustas razões e justificações do Vaticano,
propõem-se simplesmente conquistar seu naco do bolo americano. Quando
menos fosse para lá derramar excedentes da humanidade famélica
de seus próprios reinos, dando-lhes novas pátrias por fazer.
Alcançaram, também, primeiro pelas mãos de piratas, de
corsários, de contrabandistas, quanto puderam tomar do ouro que os
ilhéus carreavam para o Velho Mundo. Depois, pelo mecanismo de intercâmbio
mercantil, se apossaram de parcelas ainda maiores dessas riquezas.

Mais tarde, se instalaram em áreas ao norte do continente como colônias
de povoamento. Vizinhos das ilhas caribenhas e de suas ricas plantações
escravistas de cana, eles eram os pobres e atrasados. Só floresceram,
lentamente, aurindo substância do comércio de alimentos e artefatos
com os senhores de escravos das ilhas, produzindo as mercadorias dos pobres.

Os iberos, ao contrário, se lançaram à aventura no
além-mar, abrindo novos mundos, atiçados pelo fervor mais fanático,
pela violência mais desenfreada, em busca de riquezas a saquear ou de
fazer produzir pela escravaria. Certos de que eram novos cruzados cumprindo
uma missão salvacionista de colocar o mundo inteiro sob a regência
católico-romana. Desembarcavam sempre desabusados, acesos e atentos
aos mundos novos, querendo fluí-los, recriá-los, convertê-los
e mesclar-se racialmente com eles. Multiplicaram-se, em conseqüência,
prodigiosamente, fecundando ventres nativos e criando novos gêneros
humanos.

Como se viu, a causa primeira da expansão ultramarina, e portanto
dos descobrimentos, fora a precoce unificação nacional de Portugal
e da Espanha, movidos por toda uma revolução tecnológica
que lhes deu acesso ao mundo inteiro com suas naus armadas, gestando uma nova
civilização. Libertos da ocupação sarracena, descansados
da exploração judaica, dirimidos dos poderios locais da nobreza
feudal, emergia em cada área um Estado nacional. Foram os primeiros
do mundo moderno.

Surgem, assim, entidades capazes de grandes empresas, como os descobrimentos
e o enriquecimento aurido no além-mar, bem como sua implantação
em império com hegemonia sobre a América, a Ásia e a
África. Seu poderio cresce tanto que a certa altura a Espanha se propõe
exercer sua soberania também sobre a Europa. Portugal se vê compelido
a aliar-se à Inglaterra, para manter sua independência.

Nesses conflitos de amplitude mundial, a Ibéria se debilita tanto,
que acaba por sucumbir como cabeça do Império mundial sonhado
tantas vezes. Sucumbe, porém, é lá nos conflitos com
seus pares. Cá, nos novos mundos, seus sêmens continuam fecundando
prodigiosamente a mestiçagem americana; sua língua e sua cultura
prosseguem expandindo-se. Nesse passo, se enriquecem para constituir, afinal,
uma das províncias mais amplas, mais ricas e a mais homogênea
da terra, a América Latina.

A Inglaterra, que foi a terceira nação a estruturar-se, assentada
nos capitais e nos saberes judaicos que acolheu, acaba por apossar-se da outra
metade das Américas, sobre a qual se expandira como uma segunda macroetnia,
imensamente homogênea e neobritânica.

As dimensões desses domínios eram as do orbe que acabavam
de ocupar. Sua heterogeneidade étnica original, ao contrário,
era sem paralelo na história humana. Só foi rompida e refundida
através do esforço continuado de séculos, anulando qualquer
veleidade étnica ou qualquer direito de autodeterminação
dos povos avassalados.

Assim é que a Ibéria e a. Grã-Bretanha, tão
recheadas de duras resistências dos povos que englobam em seus territórios,
que jamais conseguiram digerir, aqui deglutem e dissolvem quase tudo. Onde
se deparam com altas civilizações, seus povos são sangrados,
contaminados, decapitados de suas chefaturas, para serem convertidos em mera
energia animal para o trabalho servil. Essa gente desfeita só consegue
guardar no peito o sentimento de si mesmos, como um povo em si, a língua
de seus antepassados e reverberações da antiga grandeza.

No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também
radical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados
e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas
riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo-nação,
aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente
como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino. Claro
destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si
mesmos.

Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente,
ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena
e infiel a seu povo. No a á de gastar gentes e matas, bichos e coisas
para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra.

Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem
e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.

Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela,
a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável
hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-homogêneos
e solidários entre si, numa férrea união superarmada
e a tudo predisposta para manter o povo gemendo e produzindo. Não o
que querem e precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem,
indiferentes a seu destino.

Não alcançam, aqui, nem mesmo a façanha menor de gerar
uma prosperidade generalizável à massa trabalhadora, tal como
se conseguiu, sob os mesmos regimes, em outras áreas. Menos êxito
teve, ainda, em seus esforços por integrar-se na civilização
industrial. Hoje, seu desígnio é forçar-nos à
marginalidade na civilização que está emergindo.

O BARROCO E O GÓTICO

Dois estilos de colonização se inauguram no norte e no sul
do Novo Mundo. Lá, o gótico altivo de frias gentes nórdicas,
transladado em famílias inteiras para compor a paisagem de que vinham
sendo excluídos pela nova agricultura, como excedentes de mão-de-obra.
Para eles, o índio era um detalhe, sujando a paisagem que, para se
europeizar, devia ser livrada deles. Que fossem viver onde quisessem, livres
de ser diferentes, mas longe, se possível para outro além-mar,
Pacífico adentro.

Cá, o barroco das gentes ibéricas, mestiçadas, que
se mesclavam com os índios, não lhes reconhecendo direitos que
não fosse o de se multiplicarem em mais braços, postos a seu
serviço. Ao apartheid dos nórdicos, opunham o assimilacionismo
dos caldeadores.

Um é a tolerância soberba e orgulhosa dos que se sabem diferentes
e assim querem permanecer. Outro é a tolerância opressiva, de
quem quer conviver reinando sobre os corpos e as almas dos cativos, índios
e pretos, que só podem conceber como os que deverão ser, amanhã,
seus equivalentes, porque toda a diferença lhe é intolerável.

Atuando com a ética do aventureiro, que improvisa a cada momento
diante do desafio que tem de enfrentar, os iberos não produziram o
que quiseram, mas o que resultou de sua ação, muitas vezes desenfreada.
É certo que a colonização do Brasil se fez como esforço
persistente, teimoso, de implantar aqui uma europeidade adaptada nesses trópicos
e encarnada nessas mestiçagens. Mas esbarrou, sempre, com a resistência
birrenta da natureza e com os caprichos da história, que nos fez a
nós mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual somos, tão
opostos a branquitudes e civilidades, tão interiorizadamente deseuropeus
como desíndios e desafros.

Aqueles senhores góticos, de que suas novas pátrias não
esperavam riquezas, se deram terras para viverem probas existências
camponesas. Como não havia que sujeitá-los ao mundo europeu,
porque de lá saíram, nem era necessário sujeitá-los
ao trabalho escravo, porque eram incapazes de produzir qualquer mercadoria
prestante, lhes deram terra e liberdade.

Nada disso ocorre no mundo barroco. Aqui, a Europa se defronta com multidões
de povos exóticos, selvagens uns, civilizados outros, que podiam ser
mobilizados como a mão-de-obra indispensável para gerar riquezas
que ali estavam, à vista, ou que facilmente se podiam produzir.

Aqui, nenhuma terra se desperdiça com o povo que se ia gerando. De
toda ela se apropria a classe dominante, menos para uso, porque é demasiada
demais, mas a fim de obrigar os gentios subjugados a trabalhar em terra alheia.
Nenhuma liberdade se consente, também, porque se trata com hereges
a catequizar, livrando-os da perdição eterna.

Nada mais natural do que pensar assim para um ibero que acabava de expulsar
os hereges sarracenos e judeus, que os haviam dominado por séculos.
Ainda com o fervor das cruzadas gloriosas contra os mouros, eles se assanharam,
aqui, contra o gentio americano. O próprio Estado assume funções
sacerdotais, expressamente conferidas pelo papa, para cumprir seu destino
de Cidade de Deus contra a Reforma européia e contra a impiedade americana.
Para tanto, chega a transferir às coroas ibéricas o mais importante
de seus privilégios, que era o padroado papal, dando-lhes o direito
de nomear, transferir e revogar bispados e outras autoridades eclesiásticas.
Em contraparte, pelo que Deus lhes dava em riqueza e em vassalos nas antípodas,
Roma lhes sacramenta a possessão dos novos mundos com a condição
de que prossigam sobre eles a guerra dos mouros, na guerra e na conversão
dos novos infiéis recém- descobertos. Quem sabe até para
transformá-los, através de seus evangelizadores, na cristandade
terminal.

Em conseqüência, cá, em nosso universo católico
e barroco, mais do que lá, no seu mundo reformista e gótico,
as classes dirigentes tendem a definir-se como agentes da civilização
ocidental e cristã, que se considerando mais perfeitos, prudentes e
pios, se avantajavam tanto sobre a selvageria que seu destino era impor-se
a ela como o domínio natural dos bons sobre os maus, dos sábios
sobre os ignaros. Essa dominação se alcança pela ação
da guerra, pela inteligência nos negócios, pela conscrição
para o trabalho e pelo refúgio na missão. A seu ver, estavam,
simplesmente, forçando aquela indianidade inativa a viver um destino
mais conforme com a vontade de Deus e a natureza dos homens. O colono se enriquecia
e os trabalhadores se salvavam para a vida eterna.

Era a dialética do senhorio natural do cristão contra a servidão,
natural também, do bárbaro. Com o passar das eras, este acabaria
por sair da infância pagã, da indolência inata, da lubricidade
e do pecado.

Ideologia nenhuma, antes nem depois, foi tão convincente para quem
exercia a hegemonia, nem tão inelutável para quem a sofria,
escravo ou vassalo. Desapossados de suas terras, escravizados em seus corpos,
convertidos em bens semoventes para os usos que o senhor lhes desse, eles
eram também despojados de sua alma. Isso se alcançava através
da conversão que invadia e avassalava sua própria consciência,
fazendo-os verem-se a si mesmos como a pobre humanidade gentílica e
pecadora que, não podendo salvar-se neste vale de lágrimas,
só podia esperar, através da virtude, a compensação
vicária de uma eternidade de louvor à glória de Deus
no Paraíso.

Tal é a força dessa ideologia que ainda hoje ela impera, sobranceira.
Faz a cabeça do senhorio classista convencido de que orienta e civiliza
seus serviçais, forçando-os a superar sua preguiça inata
para viverem vidas mais fecundas e mais lucrativas. Faz, também, a
cabeça dos oprimidos, que aprendem a ver a ordem social como sagrada
e seu papel nela prescrito de criaturas de Deus em provação,
a caminho da vida eterna.

Essas linhas de formação correspondem, no lado nórdico,
à formação de um povo livre, dono do seu destino, que
engloba toda a cidadania branca. No nosso sul, o que se engendra é
uma elite de senhores da terra e de mandantes civis e militares, montados
sobre a massa de uma subumanidade oprimida, a que não se reconhece
nenhum direito. A evolução de uma e outra dessas formações
dá lugar, nas mesmas linhas, de um lado, ao amadurecimento de uma sociedade
democrática, fundada nos direitos de seus cidadãos, que acaba
por englobar também os negros. Do lado oposto, uma feitoria latifundiária,
hostil a seu povo condenado ao arbítrio, à ignorância
e à pobreza.

No plano histórico-cultural, os nórdicos realizam algumas
das potencialidades da civilização ocidental, como extensão
sensaborona e legítima dela. Nós, ao contrário, somos
a promessa de uma nova civilização remarcada por singularidades,
principalmente africanidades.

Já por isso, aparecemos a olhos europeus como gentes bizarras, o
que, somado à nossa tropicalidade índia, chega para aqueles
mesmos olhos a nos fazer exóticos.

Não somos e ninguém nos toma como extensões de branquitudes,
dessas que se acham a forma mais normal de se ser humano. Nós não.
Temos outras pautas e outros modos tomados de mais gentes. O que, é
bom lembrar, não nos faz mais pobres, mas mais ricos de humanidades,
quer dizer, mais humanos. Essa nossa singularidade bizarra esteve mil vezes
ameaçada, mas afortunadamente conseguiu consolidar-se.

Inclusive quando a Europa derramou multidões de imigrantes que acolhemos
e até o grande número de orientais adventícios que aqui
se instalaram. Todos eles, ou quase todos, foram assimilados e abrasileirados.

ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Em contraste com as etnias tribais que sobreviveram algum tempo a seu lado,
a sociedade colonial nascente, bizarra e precária, era e atuava como
um rebento ultramarino da civilização européia, em sua
versão portuguesa. Vale dizer, era já uma sociedade bipartida
em uma condição rural e outra urbana, estratificada em classes,
servida por uma cultura erudita e letrada, e integrada na economia de âmbito
internacional que a navegação possibilitara.

Essa posição evolutiva mais alta não representava,
obviamente, uma ascensão das sociedades indígenas originais
da sua condição tribal à de uma civilização
urbana e estratificada. Era uma simples projeção dos avanços
civilizatórios alcançados pelos europeus, ao saírem da
Idade Média, sobre os remanescentes da formação aborígene
precedente e dos negros aliciados na África como força de trabalho
escravo.

Estamos diante do resultado de um processo civilizatório que, interrompendo
a linha evolutiva prévia das populações indígenas
brasileiras, depois de subjugá-las, recruta seus remanescentes como
mão-de-obra servil de uma nova sociedade, que já nascia integrada
numa etapa mais elevada da evolução sociocultural. No caso,
esse passo se dá por incorporação ou atualização
histórica – que supõe a perda da autonomia étnica dos
núcleos engajados, sua dominação e transfiguração
-, estabelecendo as bases sobre as quais se edificaria daí em diante
a sociedade brasileira.

Tais bases se definiriam com claridade com a implantação dos
primeiros engenhos açucareiros que, vinculando os antigos núcleos
extrativistas ao mercado mundial, viabilizava sua existência na condição
socioeconômica de um “proletariado externo”, estruturado como
uma colônia mercantil-escravista da metrópole portuguesa.

No plano adaptativo – isto é, o relativo à tecnologia com
que se produzem e reproduzem as condições materiais de existência
– os núcleos coloniais brasileiros se estabeleceram nas seguintes bases:
– a incorporação da tecnologia européia aplicada à
produção, ao transporte, à construção e
à guerra, com uso de instrumentos de metal e de múltiplos dispositivos
mecânicos; – a navegação transoceânica que integrava
os novos mundos em uma economia mundial, como produtores de mercadorias de
exportação e como importadores de negros escravos e bens de
consumo; – o estabelecimento do engenho de cana, baseado na aplicação
de complexos procedimentos agrícolas, químicos e mecânicos
para a produção de açúcar; e, depois, a mineração
de ouro e diamantes que envolviam o domínio de novas tecnologias; –
a introdução do gado, que forneceria carne e couro – além
de animais de transporte e tração -, bem como a criação
de porcos, galinhas e outros animais domésticos que, associada à
lavoura tropical indígena, proveria a subsistência dos núcleos
coloniais; – a adoção e difusão de novas espécies
de plantas cultiváveis, tanto alimentícias quanto industriais,
que viriam a assumir, mais tarde, importância decisiva na vida econômica
de diversas variantesda sociedade nacional; – a singela tecnologia portuguesa
de produção de tijolos e telhas, sapatos e chapéus, sabão,
cachaça, rodas de carros, pontes e barcos etc.

No plano associativo – quer dizer, no que concerne aos modos de organização
da vida social e econômica -, aqueles núcleos se estruturaram
como implantação de uma civilização graças
à: – substituição da solidariedade elementar fundada
no parentesco, característica do mundo tribal igualitário, por
outras formas de estruturação social, que bipartiu a sociedade
em componentes rurais e urbanos e a estratificou em classes antagonicamente
opostas umas às outras, ainda que interdependentes pela complementaridade
de seus respectivos papéis; – introdução da escravatura
indígena, logo substituída pelo tráfico de escravos africanos,
que permitiu aos setores mais dinâmicos da economia prescindir da população
original no recrutamento de mão-de-obra; – integração
de todos os núcleos locais em uma estrutura sócio-política
única, que teria como classe dominante um patronato de empresas e uma
elite patricial dirigente, cujas funções principais eram tornar
viável e lucrativa, do ponto de vista econômico, a empresa colonial
e defendê-la da insurgência dos escravos, dos ataques indígenas
e das invasões externas; – disponibilidade de capitais financeiros
para custear a implantação das empresas, provê-las de
escravos e outros recursos produtivos e capacitados para arrecadar as rendas
que produzissem.

No plano ideológico – ou seja, o relativo às formas de comunicação,
ao saber, às crenças, à criação artística
e à auto-imagem étnica -, a cultura das comunidades neobrasileiras
se plas- ma sobre os seguintes elementos: – a língua portuguesa, que
se difunde lentamente, século após século, até
converter- se no veículo único de comunicação
das comunidades brasileiras entre si e delas com a metrópole; – um
minúsculo estrato social de letrados que, através do domínio
do saber erudito e técnico europeu de então, orienta as atividades
mais complexas e opera como centro difusor de conhecimentos, crenças
e valores; – uma Igreja oficial, associada a um Estado salvacionista, que
depois de intermediar a submissão dos núcleos indígenas
através da catequese impõe um catolicismo de corte messiânico
e exerce um rigoroso controle sobre a vida intelectual da colônia, para
impedir a difusão de qualquer outra ideologia e até mesmo do
saber científico; – artistas que exercem suas atividades obedientes
aos gêneros e estilos europeus, principalmente o barroco, dentro de
cujos cânones a nova sociedade começa a expressar-se onde e quando
exibe algum fausto.

Aquelas inovações tecnológicas, somadas às referidas
formas mais avançadas de ordenação social e a esses instrumentos
ideológicos de controle e expressão proporcionaram as bases
sobre as quais se edificou a sociedade e a cultura brasileira como uma implantação
colonial européia. Uma e outra, menos determinadas por suas singularidades
decorrentes de incorporação de múltiplos traços
de origem indígena ou africana, do que pela regência colonial
portuguesa que as conformou como uma filial lusitana da civilização
européia.

Isso explica a ausência de uma classe dominante nativa. Os que cumprem
esse papel, seja na qualidade de agentes da exploração econômica,
seja na qualidade de gestores da hegemonia política, são na
realidade prepostos da dominação colonial. As próprias
classes dominadas não compõem um povo dedicado a produzir suas
próprias condições de existência e nem sequer capacitado
para reproduzir-se vegetativamente.

São um conglomerado díspar, composto por índios trazidos
de longe, que apenas podiam entender-se entre si; somados à gente desgarrada
de suas matrizes originais africanas, uns e outros reunidos contra a sua vontade,
para se verem convertidos em mera força de trabalho escravo a ser consumida
no trabalho; gente cuja renovação mesma se fazia mais pela importação
de novos contingentes de escravos que por sua própria reprodução.

Com base nessa comunidade atípica e em seu acervo sociocultural,
as novas entidades puderam enfrentar prontamente dois desafios cruciais. Um
foi aniquilar os grupos indígenas que, não havendo sido apresados
e obrigados a trabalhar como escravos, se afastaram do litoral e hostilizavam,
desde o interior, os núcleos neobrasileiros assentados na costa. Outro
foi manter a regência colonial portuguesa sobre os núcleos neobrasileiros,
que cresceram mantendo sua estratificação social interna e sua
dependência com relação à metrópole.

II – GESTAÇÃO ÉTNICA

CRIATÓRIO DE GENTE O CUNHADISMO

A instituição social que possibilitou a formação
do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso indígena de incorporar
estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia
como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil
laços que o aparentavam com todos os membros do grupo.

Isso se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatório
dos índios, que relaciona, uns com os outros, todos os membros de um
povo. Assim é que, aceitando a moça, o estranho passava a ter
nela sua temericó e, em todos os seus parentes da geração
dos pais, outros tantos pais ou sogros. O mesmo ocorra em sua própria
geração, em que todos passavam a ser seus irmãos ou cunhados.
Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Nesse
caso, esses termos de consangüinidade ou de afinidade passavam a classificar
todo o grupo como pessoas transáveis ou incestuosas.

Com os primeiros devia ter relações evitativas, como convém
no trato com sogros, por exemplo. Relações sexualmente abertas,
gozosas, no caso dos chamados cunhados; quanto à geração
de genros e noras ocorria o mesmo.

Há amplo registro dessa prática entre os cronistas e também
avaliações de sua importância devidas a Efraim Cardoso
(1959), do Paraguai, e Jaime Cortesão ( 1964), para o Brasil. A documentação
espanhola, mais rica nisso, revela que em Assunção havia europeus
com mais de oitenta temericó. A importância era enorme e decorna
de que aquele adventício passava a contar com uma multidão de
parentes, que podia pôr a seu serviço, seja para seu conforto
pessoal, seja para a produção de mercadorias.

Como cada europeu posto na costa podia fazer muitíssimos desses casamentos,
a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento
de mão-de- obra para os trabalhos pesados de cortar paus-de-tinta,
transportar e carregar para os navios, de caçar e amestrar papagaios
e soíns. Mais tarde, serviu também para fazer prisioneiros de
guerra que podiam ser resgatados a troco de mercadoria, em lugar do destino
tradicional, que era ser comido ritualmente num festival de antropofagia.

Os índios não queriam outra coisa porque, encantados com as
riquezas que o europeu podia trazer nos navios, o usavam para se prover de
bens preciosíssimos que se tornaram logo indispensáveis, como
as ferramentas de metal, espelhos e adornos.

Quando ficaram bem providos dessas mercadorias, outras lhes foram ofertadas.
E, por fim, se teve que passar do cunhadismo às guerras de captura
de escravos, quando a necessidade de mão-de-obra indígena se
tornou grande demais.

A função do cunhadismo na sua nova inserção
civilizatória foi fazer surgir a numerosa camada de gente mestiça
que efetivamente ocupou o Brasil. É crível até que a
colonização pudesse ser feita através do desenvolvimento
dessa prática. Tinha o defeito, porém, de ser acessível
a qualquer europeu desembarcado junto às aldeias indígenas.
Isso efetivamente ocorreu, pondo em movimento um número crescente de
navios e incorporando a indiada ao sistema mercantil de produção.

Para Portugal é que representou uma ameaça, já que
estava perdendo sua conquista para armadores franceses, holandeses, ingleses
e alemães, cujos navios já sabiam onde buscar sua carga.

Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a criação
do Brasil. Os povoadores europeus que aqui vieram ter eram uns poucos náufragos
e degredados, deixados pelas naus da descoberta, ou marinheiros fugidos para
aventurar vida nova entre os índios. Por si sós, teriam sido
uma erupção passageira na costa atlântica, toda povoada
por giupos indígenas.

Com base no cunhadismo se estabelecem criatórios de gente mestiça
nos focos onde náufragos e degredados se assentaram. Primeiro, junto
com os índios nas aldeias, quando adotam seus costumes, vivendo como
eles, furando os beiços e as orelhas e até participando dos
cerimoniais antropofágicos, comendo gente. Então aprendem a
língua e se familiarizam com a cultura indígena. Muitos gostaram
tanto, que deixaram-se ficar na boa vida de índios, amistosos e úteis.
Outros formaram unidades apartadas das aldeias, compostas por eles, suas múltiplas
mulheres índias, seus numerosos filhos, sempre em contato com a incontável
parentela delas. A sobrevivência era garantida pelos índios,
de forma quase idêntica à deles mesmos.

Viabilizara-se, porém, uma atividade altamente nociva, a economia
mercantil, capaz de operar como agência civilizatória pela intermediação
do escambo, trocando artigos europeus pelas mercadorias da terra.

O primeiro e principal desses núcleos é o paulista, assentado
muito precocemente na costa, talvez até antes da chegada de Cabral.
Centrava-se ao redor de João Ramalho e de seu companheiro Antônio
Rodrigues. Parece especializar-se tanto no resgate de índios cativos
para vender às naus que o ancoradouro dos navios com que eles traficavam
passou a ser conhecido como Porto dos Escravos.

O povo do Ramalho, fundador da paulistanidade, teve vários visitantes
que o retrataram. O aventureiro alemão Ulrich Schmidel, que visitou
Santo André, povoação de João Ramalho em 1553,
disse que se sentia mais seguro numa aldeia de índios do que ali, naquele
covil de bandidos. Informa ainda que Ramalho era capaz de levantar 5 mil índios
de guerra, enquanto todo o governo português não conseguir ia
2 mil.

Sobre o próprio João Ramalho, o governador Tomé de
Souza, cheio de admiração, diz em carta ao Rei, de 1553: “[…] tem tantos filhos e netos, bisnetos e descendentes dele, que o não
ouso de dizer a Vossa Alteza. Não tem cãs na cabeça nem
no rosto e anda nove léguas a pé antes de jantar” (“Carta
de Tomé de Souza a el-rey com muitas notícias das terras do
Brasil”, 1 de junho de 1553 in Cortesão 1956:271).

Nóbrega, no mesmo ano, horrorizado com Ramalho, cuja vida considera
uma pedra de escândalo, acrescenta: “[…] é principal estorvo
para com a gentilidade que temos, por ele ser muito conhecido e muito aparentado
com os índios. Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs
e têm filhos delas, tanto o pai como os filhos. Vão à
guerra com os índios e as suas festas são de índios e
assim vivem andando nus como os mesmos índios. Por todas as maneiras
o temos provado e nada aproveita, até o deixamos de todo (carta ao
pe. Luís Gonçalves da Câmara, 15 de junho de 1553 in Nóbrega
1955:173-4 ).” Os jesuítas usaram de todas as artimanhas, primeiro
para atrair Ramalho e sua gente para junto deles, depois para fazê-lo
sair, tão vexatória era sua posição de mando indiscutível
sobre os índios e da expectativa de que tivesse uma atitude de submissão
diante dos padres. Estes não podiam prescindir dele em face da ameaça
que representavam os Tamoio, confederados contra o núcleo tupinambá
de São Paulo, e ultimamente instigados pelos franceses estabelecidos
na baía de Guanabara. Só com o apoio de Ramalho e seus aliados,
os jesuítas puderam enfrentar o inimigo que lhes causava mais horror,
que era a presença da Reforma, encarnada pelos calvinistas, ali, onde
eles, como a Contra-Reforma, tentavam criar um reino de homens pios.

Darcy Ribeiro

Outro núcleo pioneiro, de importância essencial, foi o de Diogo
Álvares, Caramuru, pai heráldico dos baianos. Ele se fixou,
em 1510, na Bahia, também cercado de numerosa família indígena.
Conseguiu manter certo equilíbrio entre a indiada com que convivia
cunhadalmente e os lusitanos que foram chegando. Converteu-se, assim, na base
essencial da instalação lusitana na Bahia. Ajudou até
mesmo os jesuítas e legou bens a eles em seu testamento.

Um terceiro núcleo de importância relevante foi o de Pernambuco,
em que vários portugueses, associados com os índios Tabajara,
produziram quantidade de mamelucos. Inclusive o célebre Jerônimo
de Albuquerque, grande capitão de guerra na luta da conquista do Maranhão
ocupado pelos franceses.

No próprio Maranhão, há notícia de um guerreiro
que sobreviveu de uma expedição fracassada graças às
suas habilidades artesanais, de nome Peró, que teria gerado também
quantidade de mamelucos, que representaram papel muito ativo na colonização
daquela área.

Os franceses, por igual, fundaram seus criatórios com base no cunhadismo.
Tantos, que, no dizer de Capistrano de Abreu, por muito tempo não se
soube se o Brasil seria português ou francês, tal a força
de sua presença e o poder de sua influência junto aos índios.
O principal deles foi o que se implantou na Guanabara, junto aos Tamoio do
Rio de Janeiro, gerando mais de mil mamelucos que viviam ao longo dos rios
que deságuam na baía. Inclusive na ilha do Governador, onde
deveria se implantar a França Antártica.

Outros mamelucos gerados pelos franceses foram com os Potiguara, na Paral’ba,
e com os Caeté, em Pernambuco. Alcançaram certa prosperidade
pelas mercadorias que eles induziram os índios a produzir e carrear
para numerosos navios.

Sua mercadoria era, principalmente, o pau-de-tinta, mas também barganhavam
a pimenta da terra, o algodão, além de curiosidades como os
soíns e papagaios.

Os espanhóis também participaram da fase cunhadística
da implantação européia na costa brasileira. As crônicas
falam de um Pero Galego, castelhano, intérprete dos Potiguara, que
vivia com os beiços furados como eles. Sua influência teria sido
grande, como se vê pelo papel que representou na expulsão dos
portugueses da Paraíba e, depois, nas lutas do Maranhão, sempre
ao lado dos franceses.

O GOVERNO GERAL

Para preservar seus interesses, ameaçados pelo cunhadismo generalizado,
a Coroa portuguesa pôs em execução, em 1532, o regime
das donatarias. Quase todos os contemplados vieram tomar posse com a função
de povoá-las e fazê-las produzir, elevando a economia colonial
a um novo patamar.

O projeto real era enfrentar seus competidores povoando o Brasil através
da transladação forçada de degredados. Na carta de doação
e foral concedida a Duarte Coelho ( 1534), se lê que el-rei atendendo
a muitos vassalos e à conveniência de povoar o Brasil, há
por bem declarar couto e homizio para todos os criminosos que nele queiram
morar, ainda que condenados por sentença, até em pena de morte,
excetuando-se somente os crimes de heresia, traição, sodomia
e moeda falsa (in Malheiro Dias 1924:III, 309-12).

As donatarias, distribuídas a grandes senhores, agregados ao trono
e com fortunas próprias para colonizá-las, constituíram
verdadeiras províncias. Eram imensos quinhões com dezenas de
léguas encrestadas sobre o mar e penetrando terra adentro até
onde topassem com a linha das Tordesilhas.

Algumas delas alcançaram êxito, como as de Pernambuco e de
São Vicente. Outras fracassaram desastrosamente, por vezes da forma
mais trágica, como a de Pereira Coutinho, em Ilhéus, que acabou
devorado pelos índios. Lopes de Souza desinteressou-se totalmente e
nem tomou posse da concessão que recebeu. Quase todas deixaram novos
povoadores europeus, organizados em bases completamente novas, nas quais o
índio já não era um parente, mas mão-de-obra recrutável
como escrava.

O sistema de donatarias foi implantado mais vigorosamente por Martim Afonso,
trazendo as primeiras cabeças de gado e as primeiras mudas de cana.
Não há registro de que tenha trazido negros africanos e os deixado
aqui. Mas, como os portugueses viviam cercados de escravos já em Lisboa,
é até improvável que ele e seus capitães não
tenham vindo acompanhados dos seus serviçais.

Pero Lopes registra nestas palavras a obra de Martim Afonso: “A todos
nós pareceu tam bem esta terra, que o capitam Martim Afonso determinou
de a povoar, e deu a todolos homês terras para fazerem fazendas: e fez
hua villa na ilha de Sam Vicente e outra 9 leguas dentro pelo sartam, á
borda d’hum rio que se chama Piratininga: e repartiu a gente nestas 2 villas
e fez nellas offciaes: e poz tudo em boa obra de justiça, de que a
gente toda tomou muita consolaçam, com verem povoar villas e ter leis
e sacreficios e celebrar matrimonios e viverem em comunicaçam das artes;
e ser cada um senhor do seu: e vestir as enjurias particulares; e ter todolos
outros bens da vida sigura e conversavel (apud Marchant 1943:68).” O
donatário era um grão-senhor investido de poderes feudais pelo
rei para goveroar sua gleba de trinta léguas de cara. Com o poder político
de fundar vilas, conceder sesmarias, licenciar artesãos e comerciantes,
e o poder econômico de explorar diretamente ou através de intermediários
suas terras e até com o direito de impor a pena capital.

Martim Afonso, o principal deles, veio com quatrocentos povoadores. Trouxe,
ainda, nove fidalgos cavaleiros, sete cavaleiros afidalgados, além
de dois moços da Câmara Real. Foi a maior injeção
de nobreza que o Brasil recebeu. De seus bagos veio a pretenciosa nobreza
nativa, quase toda fracassada.

O trabalho ao longo da costa se fazia cada vez mais intenso. Numerosíssimas
eram as naus que aportavam, mandadas por armadores de diversos países
europeus, principalmente da Holanda e Alemanha. A carga que levavam não
era pequena. Podia alcançar 3 mil toras de pau-brasil, 3 mil peles
de onça, muita cera e até seiscentos papagaios falantes. O equivalente
em ferramentas e quinquilharias devia ser algo respeitável. Juntar
tudo isso ocuparia quantidade de índios, largo tempo cortando árvores
a léguas de distância e transportando-as para a costa. Esforços
que contrastavam com o seu modo habitual de viver e produzir.

Cargas tão grandes como essas eram depositadas nas feitorias pelos
portugueses. Os franceses, não podendo mantê-las, usavam as próprias
naus para isso, ancorando-as durante o tempo necessário para que os
índios coletassem ou colhessem tudo que queriam traficar. Esse trabalho
se fazia, naturalmente, sob a direção imediata dos intérpretes
ou truchements, também chamados de caramelus pelos franceses, nome
mais tarde dado aos próprios mamelucos por eles gerados.

Múltiplas eram as dificuldades que iam surgindo com essa prosperidade
crescente. O fracasso se deu em grande parte pela hostilidade dos índios,
principalmente pelos que se estabeleceram em áreas de aliados aos franceses,
como Itamaracá, e em Ilhéus, onde o próprio donatário
acabou devorado.

A sorte corria variadamente em cada província quando a Coroa, descontente
com o que se alcançara, põe sob controle as donatarias que sobreviveram.
Implanta para isso um Governo Geral, com Tomé de Souza Agora, na forma
de vilas, com pelourinho, contingentes militares armados e fortificados, trazendo
ao Brasil numerosos povoadores.

O primeiro governador chega ao Brasil em 1549, em três naus, duas
caravelas e um bergantim. Traziam funcionários civis e militares, soldados
e artesãos. Mais de mil pessoas ao todo, principalmente degredados.
Com ele vieram novos colonos, bem como os primeiros jesuítas. Nóbrega,
mais velho e experiente, à frente, e mais três padres e dois
irmãos; Anchieta, um rapagão de dezenove anos, veio na leva
seguinte.

O governo instala-se na Bahia, construindo a cidade com a gente que trazia
e com o apoio dos índios e mamelucos de Caramuru. É assinalável
a quantidade e qualidade de profissionais que iam de cirurgiões, barbeiros,
sangradores, a quantidade de pedreiros, serradores, tanoeiros, serralheiros,
caldeireiros, cavaqueiros, carvoeiros, oureiros, calheiros, canoeiros, pescadores
e construtores de bergantins.

Não vieram mulheres solteiras, exceto, ao que se sabe, uma escrava
provavelmente moura, que foi objeto de viva disputa. Conseqüentemente,
os recém-chegados acasalaram-se com as índias, tomando, como
era uso na terra, tantas quantas pudessem, entrando a produzir mais mamelucos.
Os jesuítas, preocupados com tamanha pouca-vergonha, deram para pedir
socorro do reino. Queriam mulheres de toda a qualidade, até meretrizes,
porque “há aqui várias qualidades de homens […] e deste
modo se evitarão pecados e aumentará a população
no serviço de Deus” (carta de 1550 in Nóbrega 1955:79-80).
Queriam, sobretudo, as órfãs del-rei, que se casariam, aqui,
com os bons e os ricos. Poucas conseguiram. Em 1551, chegaram três irmãs;
em 1553, vieram mais nove; em 1559, mais sete. Essas pouquíssimas portuguesas
pouco papel exerceram na constituição da família brasileira.

Êxito discreto se alcançou na importação de trombadinhas
de Lisboa para conviverem com os indiozinhos nos colégios jesuíticos.

Em 1550, chegaram à Bahia um bando descrito como feito de “moços
perdidos, ladrões e maus, que aqui chamam patifes”. Para São
Vicente, foram dez ou doze no mesmo ano. Com eles é que os jesuítas
esperavam civilizar os curumins, e fazê-los, em aulas conjuntas, aprender
gramática latina. Tarefa difícil, como se pôde ver em
pouco tempo, quando esses pixotes, assediados pelas índias, não
resistiram à tentação, fugindo com elas. Os padres mudaram
logo de tática, abandonando o ensino de latim a fim de dedicar suas
energias à formação de irmãos leigos e de padres,
que dominassem bem a língua da terra, o tupi-guarani, para serem os
aliciadores dos índios para suas missões de doutrinação
religiosa.

Nóbrega assinala que para Pernambuco não era necessário
mandar mulheres nem meninos, por haverem muitas filhas de homens brancos e
de índias da terra, “as quais todas agora casarão, com
a ajuda do Senhor” (carta de 1551 in Nóbrega 1955:102).

Eram as mamelucas, ingressando na história do Brasil, como suas mães
primárias. Já não sendo índias, procuravam espaço
para ser alguma categoria de gente digna. A única que se lhes abria
era de fiéis contritas dos santos católicos, seguidoras entusiastas
dos cultos. Essa foi a única conversão que os padres alcançaram.
Elas foram, de fato, as implantadoras do catolicismo popular santeiro no Brasil,
como se documenta, pelo texto de Nóbrega que se segue: “As índias
forras, que há muito que andam com os cristãos em pecado, trabalhamos
por remediar por não se irem ao sertão já que são
cristãs, e lhes ordenamos uma casa à custa dos que as tinham
para nela as recolher e dali casarão com alguns homens trabalhadores
pouco a pouco. Todas andam com grande fervor e querem emendar-se de seus pecados
e se confessam já as mais entendidas e sabem-se mui bem acusar.

Com se ganharem estas se ganha muito, porque são mais de quarenta
só nesta povoação, afora muitas outras que estão
pelas outras povoações, e acarretam outras do sertão
assim já cristãs como ainda gentias. Algumas destas mais antigas
pregam às outras. Temos feito uma delas meirinha, a qual é tão
diligente em chamar à doutrina, que é para louvar a N. Senhor
(carta “Aos padres e irmãos de Coimbra, Pernambuco”, 13 de
setembro de 1551 in Nóbrega 1955:92-3 ).” O osso mais duro de
roer para o novo governador, e principalmente para os jesuítas, foi
o enfrentamento com a França Antártica, implantada quase simultaneamente
na baía da Guanabara, com base nos numerosos núcleos de franco-mamelucos
que lá viviam. Vieram com Villegaignon uma dezena de calvinistas e
uma massa maior de gente que ele descreve como rústica, sem honra nem
civilidade, composta de marinheiros e línguas normandos e bretões.
Somariam seiscentos os que vieram com o próprio Villegaignon, militares
e artesãos principalmente. Com Léry vieram trezentos mais, inclusive
cinco jovens noivas, que depois de muita disputa se casaram ali.

No fracasso da França Antártica representou papel relevante
o ardor religioso de Villegaignon, metade monge, metade soldado. Estalaram
logo os conflitos entre huguenotes, calvinistas e católicos, e dilaceraram
a comunidade nascente. A situação se agravou com a revolta dos
índios que se negavam a aceitar o novo papel que lhe atribuíam
na colonização do Brasil.

A convivência cordial e igualitária do cunhadismo ia dando
lugar à disciplina de uma comunidade pia, num clima insuportável
de tensão. Os pastores, querendo acalmar os fervores mais eróticos
que religiosos de seus fiéis, enforcaram uns quantos deles, castigando
também as índias com que transavam.

Nessa situação crítica é que os franceses tiveram
que fazer frente ao ataque das forças índias dosjesuítas,
que nisso puseram todo o ardor. Eles, que haviam sido criados como soldados
da anti-Reforma, deparavam aqui na terra nova com a Reforma, pretendendo criar
sua própria utopia com a indiada nativa.

Uma verdadeira revolução econômica se dá é
com o salto da múltipla roça indígena, que se cultivava,
misturando dezenas de plantas, para a fazenda de monótonos canaviais
açucareiros. Era o passo da fartura-fome para quem lavrava, porque
iam deixando de cultivar o que se comia e usava, para produzir mercadoria.

Por longo tempo foi fácil aliciar índios para esses imensos
esforços, tal era a atração das ferramentas e bugigangas.
Com os anos, surgiram dificuldades, porque os índios queriam melhor
retribuição por seus serviços, seja porque os paus-de-tinta
ficavam cada vez mais escassos e longínquos; seja porque as roças
que abriam para os brancos em troca do escambo tinham que ser cada vez maiores,
dado o aumento crescente do número deles; seja porque os índios
estavam saciados dos artigos que os brancos lhes davam. Nessa altura, a escravidão
começou a impor-se, como forma de conscrição da mão-de-obra.

Os registros mostram que, efetivamente, começa a crescer o número
de escravos índios trabalhando para os donatários. Em São
Vicente, havia perto de 3 mil escravos índios trabalhando em seis engenhos
de açúcar. Aumentam, também, os enfrentamentos de índios
vizinhos para o resgate como escravos e cresce, a partir daí, cada
vez mais, o número de bandeiras de enfrentamentos para buscá-los
cada vez mais longe.

Quando da chegada de Mem de Sá como governador, a situação
era crítica na Bahia, assolada pela epidemia e pela fome ( 1563-4 ).
Os índios, rebelados contra os colonos, se negavam a plantar, acossados
em terras mais para o interior. Era ainda mais grave a situação
da Guanabara, onde se consolidava a ocupação francesa, fortemente
apoiada pelos índios.

Mem de Sá, aconselhado pelos jesuítas, apela simultaneamente
para as guerras mais cruéis contra os índios vizinhos e para
a paz do vencedor, que foi sua entrega aos missionários. Cerca de 34
mil índios são agrupados em onze paróquias, sob a direção
dos jesuítas, dando nascimento às missões, ou reduções,
e povoações organizadas como vilas, com pelourinho.

Ali, toda a vida indígena é regulada para grupos por sexo
ou por idade, que tinham tarefas prescritas a cumprir, desde a madrugada até
o anoitecer, em horários assinalados por sinos: hora de trabalhar na
roça, na caça, na pesca, na fiação, na tecelagem
etc. Hora de ler, hora de rezar, hora de fornicar, porque a população
diminuía visivelmente. Para atender ao reclame de braço dos
colonos, o governador proclamou estado de guerra contra os Caeté. Desencadeou-se
a dissídia, porque os colonos, em lugar de atacar aqueles índios
nas suas aldeias longínquas, foram caçar os já pacificados,
que viviam dentro das missões jesuíticas. Essas se despovoaram
rapidamente.

Missões com cerca de 12 mil almas viram-se, em pouco tempo, reduzidas
a mil.

Nessa situação desesperadora é que ocorrem as epidemias
de varíola, de 1562 a 1563, que não atingem os portugueses,
mas em três meses matam mais de 30 mil índios e negros. Surge
uma nova epidemia na qual morreu mais de um quarto da população
indígena sobrevivente. As aldeias, cheias de mortos insepultos, de
gente faminta e desesperada, foram abandonadas por muitos índios, que
se entregavam aos brancos como escravos, em troca de um punhado de farinha.

Por todo o sertão, o desespero grassa também, seja porque
as epidemias os atingiram, seja porque os colonos assaltam suas aldeias. Salvos
ou induzidos, com toda forma de truques, a ir para a Bahia, onde os escravizam.
Dados de Anchieta, em sua “Informação dos primeiros aldeamentos”,
registram que a população indígena dos arredores da Bahia,
avaliada em 80 mil pessoas, se viu reduzida a menos de 10 mil. Às epidemias
de varíola, se somou a de febres malignas, completando a destruição.

Antonio Blasquez assim a descreve: “Neste tempo não se viam
entre eles nem ouviam os bailes e regozijos acostumados, tudo era choro e
tristeza, vendo-se uns sem pais, outros sem filhos, e muitas viúvas
sem maridos, de maneira que, quem os via neste seu desamparo, recordando-se
do tempo passado, e quão muitos eram então e quão poucos
agora, e como d’antes tinham o que comer e ao presente morriam de fome, e
como antes viviam com liberdade e se viam, além de sua miséria,
a cada passo assaltados e cativos à força pelos cristãos;
considerada e rumiada esta súbita mudança, não podiam
deixar de lastimar-se e chorar muitas lágrimas de compaixão
(Carta de 1564 in Blasquez 1931:405 ).” Ao tempo de Mem de Sá
foi que mais se assanharam as três pragas do homem branco, representadas
pelas pestes, pela guerra e pela escravização, que se abateram
mortais sobre os Tupinambá. Ao final, vencidos, seus remanescentes
foram compelidos até a pagar tributos na reconstrução
de fortalezas ou de engenhos.

Um novo inimigo surge aí: os Aimoré e outros Tapuia que, até
então contidos pelos Tupinambá, começam a atacar os colonos,
despovoando áreas antes prósperas, como Ilhéus. Vencidos
os índios, consolidam-se, daí por diante, a Bahia e suas projeções
no Espírito Santo, em São Vicente e Piratininga e suas extensões
para o sul. Também em Pernambuco que, depois de liquidar a resistência
dos Caeté e aliados, dos franceses na Paraíba e no Ceará,
se, imporia adentro, no Maranhão. Só aí, e com índios
daqui para lá transladados, fugidos dos brancos, é que os jesuítas
iriam encontrar mais índios para catequizar. Também eles, em
toda a costa atlântica, estavam vencidos como alternativa para a colonização
do Brasil.

Em 1570, a dominação portuguesa estava assentada, solidamente,
em oito implantações, com cerca de 4 mil vizinhos (oito a doze
pessoas cada), que correspondiam a uma população de 30 ou 40
mil habitantes. E aqueles eram na maioria mamelucos, porque todos os portugueses
que se encontravam no Brasil não somam uma quarta parte. Destacam-se,
nesse conjunto, quatro implantações: Bahia, Pernambuco, Espírito
Santo e São Paulo com a prosperidade crescente.

Três outras começaram a decair e iriam desaparecer completamente:
Itamaracá, que chegou a Ter prosperidade, foi abandonada pelos portugueses
em razão dos ataques de índios aliados dos franceses. O mesmo
sucedeu a Ilhéus e a Porto Seguro, que chegaram a ter, cada uma delas,
mais de duzentos vizinhos, mas também sucumbiram acossadas pelos Aimoré.

Acossada pelos mesmos índios, Espírito Santo conseguiu sobreviver,
mesmo porque, implantada numa ilha, não teve que destruir seus índios
vizinhos, contou indiretamente com eles.

A capitania de São Paulo, composta por três vilas à
beira-mar, São Vicente, Santos e Iperoig e, uma serra acima, pela então
Piratininga, representava um implante medíocre. Os engenhos de açúcar
não prosperaram nem surgiram outras lavouras.

Mesmo a produção de pau-brasil foi sempre medíocre
comparada com a de outras províncias. As missões jesuíticas
também ali se desenvolveram pouco, reunindo apenas um bloco de índios.
Forte em São Paulo foi a associação dos mamelucos com
índios livres e escravos. Vivendo todos, conjuntamente, uma mesma forma
de vida, acabam se expandindo na tarefa de capturar índios para o uso
ou para venda.

O Rio de Janeiro português, fundado depois da expulsão dos
franceses, 1565, vive em paz com os índios Tupinambá, seus aliados,
porque contavam com quantidade de escravos entre os Tamoio vencidos. Os jesuítas
tinham, fora da cidade, duas missões com cerca de 3 mil índios.

A Bahia era o maior núcleo português. Conseguia manter ao redor
da cidade, sob o controle dos jesuítas, diversas comunidades indígenas
que ajudavam na defesa da cidade e a proviam de braços e de mantimentos.
Havia trinta e tantos engenhos, movidos por 3 ou 4 mil escravos negros e 8
mil índios. Nessa proporção, o componente negro-africano
iria aumentar cada vez mais.

O mesmo havia sucedido com Pernambuco, que tinha mais de mil vizinhos concentrados
nas ilhas de Olinda e Igaraçu e comunidades vizinhas. Contava já
com dois engenhos altamente produtivos, movidos principalmente por mão-de-obra
africana.

Sua população original havia sido praticamente exterminada
pelas guerras, pela fome, pelas pestes e, também, pelas secas. Eram
tão poucos que os jesuítas não puderam criar ali nenhuma
missão. Os dois portos da baía de Pernambuco começavam
a ser as bocas de entrada da mão-de-obra que iria, daí em diante,
edificar quanto se edificou, produzir quanto se produziu no Brasil, que eram
os negros africanos.

Os jesuítas, sob forte disciplina inaciana, conseguiam alcançar
certa prosperidade, de tipo diferente da do colono, porque voltada fundamentalmente
para prover aos próprios índios, assegurando amplitude e alguma
suntuosidade nas suas edificações.

Cada missão tinha, também, homens e armas para acudir ao governador
sempre que solicitados, e foram muitas vezes contra outros índios,
assim como contra negros escravos alçados. Disso proviam alimentos,
mantimentos. As cidades, mediante um sistema complexo de escambo de mão-de-obra,
tanto para as vilas como para os engenhos, através de negociações
cada vez mais difíceis, foram fazendo com que os colonos desistissem
dessa fonte de trabalho. A maioria dos índios desapareceu, uma parcela
maior do que quantos foram incorporados, nos estabelecimentos portugueses,
porque havia bem perto o mato para reorganizar sua vida sertão adentro.

Simultaneamente, ia surgir no Nordeste açucareiro uma nova formação
de brasileiros. Compostos originalmente de mamelucos ou brasilíndios,
gerados pela mestiçagem de europeus com índios, logo se desdobrou
pela presença precoce e cada vez mais maciça de escravos africanos.
Inclusive umas contadas mulheres que passaram a gerar mulatos e mulatas que
já nasciam protobrasileiros por carência, uma vez que não
eram assimiláveis aos índios, aos europeus e aos africanos e
aos seus mestiços. Em razão dessa presença negra e mulata,
e sobretudo pelo reconhecimento posteriormente alcançado, aquela matriz
logo se singularizou profundamente.

Surge, assim, a área cultural crioula, centrada na casa-grande e
na senzala, com sua família patriarcal envolvente e uma vasta multidão
de serviçais. Estes, muito semelhantes aos brasilíndios de São
Paulo, se diferenciavam também pela especialização subalterna
como gente de serviço, provedores de gêneros e pescadores.

Uma fração dessa matriz, assumindo a função
de criadores de gado, também se diferencia, afeiçoando-se às
lides pastoris. Diferencia-se, ainda, porque entra em contato sucessivamente
com vários povos tapuias de cultura especializada à aridez das
caatingas, com as quais se cruza profundamente, o que dá lugar a um
fenótipo novo, o cabeça-chata nordestino.

No plano lingüístico, o tupi-guarani, como língua-geral,
permaneceu sendo por séculos a fala dos brasilíndios paulistas.
E no Nordeste açucareiro foi prontamente suplantado pelo português.
Isso porque sua população principal de escravos e mestiços,
sendo compelida a adotar a fala do capataz para se comunicar com os outros
escravos, realizou o papel de consolidar a língua portuguesa no Brasil.
Mais tarde, a escravaria maciça, conduzida para a região mineira
no centro do país, cumpriria a mesma função de introdutora
da língua portuguesa. A primeira onda de povoamento, constituída
por paulistas, deu a quase todas as águas, serras e acidentes assinaláveis
nomes em tupi, língua jamais falada pelos índios nativos da
região. O brasilíndio do Nordeste seco, que foi quem ocupou
as maiores áreas do Brasil, tangendo gado, não adotou nenhuma
língua das regiões que habitou, mas foi outro difusor da língua
portuguesa, porque seguramente já saíram do litoral lusitanizados.

Desse modo é que, ao longo de décadas e séculos, vão
surgindo modos brasileiros tão diferenciados uns dos outros, por suas
singularidades, como homogeneizados pelo muito mais que têm em comum.
Tais são, por exemplo, o baiano da Bahia gorda; o pernambucano do massapê;
o são-franciscano da Bahia do bode; o sertanejo nordestino.

Outras variantes iriam surgir nas mesmas linhas, entre elas o caboclo amazonense
adaptado à vida nas florestas e aos aguais, que foi quem mais guardou
a herança indígena original. Onde suas comunidades originais
se mantêm vivas e a se exercer sobre o mundo, através de múltiplas
e rigorosíssimas formas de ação sobre o meio, que dão
à sua vida e à sua cultura não só um sabor indígena
mas sua extraordinária riqueza. Olhando todo o mundo só comparo
os caboclos aos campesinos franceses, pela riqueza extraordinária de
sua cultura de pequenos agricultores. Os queijos de cabra, os vinhos, os patês
e tanta coisa mais são equivalentes europeus ao tacacá no tucupi,
da maniçoba, da sopa de muçuam. Lamentavelmente, essa riqueza
culinária nossa se está esvaindo com a decadência da cultura
cabocla, enquanto a francesa floresce cada vez mais.

Outra variante típica do modo dé ser brasileiro é a
dos gaúchos, especializados no pastoreio, mas com dois componentes
diferenciadores, o da briosa gente de fronteira e de guerra e, sobretudo,
o de caçadores de gado, mais que de criadores, que cresce explorando
os rebanhos que multiplicavam nos campos do Sul, cujo valor principal como
mercadoria era o couro.

CATIVEIRO INDÍGENA

A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primeiro
século. Só no século xvtl a escravidão negra viria
a sobrepujá-la, conforme assinala Brandão.

“[…] em algumas capitanias há mais deles que dos naturais
da terra, e todos os homens que nela vivem tem metida quase toda sua fazenda
em semelhante mercadoria (Brandão 1968:115 ).” Ainda assim, subsistiu
nas áreas pioneiras como estoque de escravos baratos utilizáveis
para funções auxiliares.

Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mão-de-obra
indígena, embora preferisse a escravatura negra para a produção
mercantil de exportação. O índio era tido, ao contrário,
como um trabalhador ideal para transportar cargas ou pessoas por terras e
por águas, para o cultivo de gêneros e o preparo de alimento,
para a caça e a pesca. Seu papel foi também preponderante nas
guerras aos outros índios e aos negros quilombolas.

A documentação colonial destaca, por igual, as aptidões
dos índios para ofícios artesanais, como carpinteiros, marceneiros,
serralheiros, oleiros. Nas missões jesuíticas tiveram oportunidade
de se fazerem tipógrafos, artistas plásticos, músicos
e escritores.

A função básica da indiada cativa foi, porém,
a de mão-de-obra na produção de subsistência. Para
isso eram caçados nos matos e engajados, na condição
de escravos, índios legalmente livres, mas apropriados por seus senhores
através de toda sorte de vivências, licenças e subterfúgios.

A partir da carta régia de 1570, em que d. Sebastião autorizava
o apresamento de índios em guerras justas, a uma lei de alforria se
seguia outra, autorizando o cativeiro através de procedimentos paralegais
como os leilões oficiais para venda de índios, as taxas cobradas
por índio vendido como escravo, as ordens reais para preia e venda
de lotes de índios para custear obras públicas e até
para construir igrejas, como ocorreu com a catedral de São Luís
do Maranhão.

A rigor, apesar da copiosíssima legislação garantidora
da liberdade dos índios, se pode afirmar que o único requisito
indispensável para que o índio fosse escravizado era ser, ainda,
um índio livre. Mesmo os já incorporados à vida colonial
– como ocorreu com os recolhidos às missões – inúmeras
vezes foram assaltados e acossados.

Isso foi o que sucedeu, por exemplo, quando Mem de Sá autorizou uma
guerra de vingança para escravizar os índios Caeté por
haverem comido o bispo Fernandes Sardinha.

Os colonos, com base nessa ordem de vingança, caíram sobre
as missões jesuíticas e dos 12 mil catecúmenos sobraram
apenas mil, quando a ordem foi revogada.

Milhares de índios foram incorporados por essa via à sociedade
colonial.

Incorporados não para se integrarem nela na qualidade de membros,
mas para serem desgastados até a morte, servindo como bestas de carga
a quem deles se apropriava.

Assim foi ao longo dos séculos, uma vez que cada frente de expansão
que se abria sobre uma área nova, deparando lá com tribos arredias,
fazia delas imediatamente um manancial de trabalhadores cativos e de mulheres
capturadas para o trabalho agrícola, para a gestação
de crianças e para o cativeiro doméstico.

Custando uma quinta parte do preço de um negro importado, o índio
cativo se converteu no escravo dos pobres, numa sociedade em que os europeus
deixaram de fazer qualquer trabalho manual. Toda tarefa cansativa, fora do
eito privilegiado da economia de exportação, que cabia aos negros,
recaía sobre o índio.

O apresamento sempre foi tido como prática louvável e até
mesmo como técnica de conversão. O próprio Nóbrega,
nos seus planos de colonização, desaconselha a vinda de colonos
tão pobres que não pudessem comprar logo índios cativos
para pôr a seu serviço, sugerindo que só fossem mandados
para cá os abonados que tivessem condições de adquiri-los.
É certo que ele, como os outros jesuítas, quiseram pôr
termo à ganância dos colonos que degenerara em práticas
que estavam esgotando a população indígena em prejuízo
para a colonização. Ainda que fosse por sua posição
de competidor, uma vez que tinha outra destinação a dar aos
índios, o certo é que tinha a visão clara sobre a necessidade
de grande concentração .de índios nas vilas missionárias
e a serviço dos fazendeiros, como o principal mecanismo consolidador
da empresa colonial.

O apoio da Coroa aos jesuítas, aos seus esforços por regulamentar
o cativeiro dos índios, não se fundava sempre nas razões
religiosas e morais que alegava. Tinha base, de fato, no interesse da administração.
Com efeito, as aldeias missionárias eram concentrações
de gente recrutável e disponível a qualquer tempo, a custo nulo
para as guerras aos índios hostis, ao invasor estrangeiro e aos negros
alçados. Era também uma importante fonte de provimento de gêneros
a uma população famélica, porque se ocupava fundamentalmente
da produção de gêneros alimentícios. Os engenhos
só cuidavam das mercadorias de exportação. A concentração
de índios nas missões coincidiu também, muitas vezes,
com os interesses dos escravizadores que, num só ataque, faziam farta
colheita de cativos.

A contradição entre os propósitos políticos
da Coroa e dos jesuítas, de um lado, e o imediatismo dos traficantes
de índios, do outro, não se resolveu nunca por uma decisão
real pela liberdade ou pelo cativeiro. A legislação que regula
a matéria é a mais contraditória e hipócrita que
se possa encontrar. Decreta dezenas de vezes guerra justa contra índios
tidos como culpados de grandes agravos ou simplesmente hostis para, a seguir,
coibi-las e, depois, tornar a autorizá-las, num ciclo sem fim de iniqüidade
e falsidade.

Os atos administrativos que regiam a escravidão dos índios
são igualmente um vai-e- vem de engodos e chicanas que, proibindo o
cativeiro, de fato o instituíam. O índio podia ser legalmente
escravizado porque aprisionado numa guerrajusta; ou porque obtido num justo
resgate; ou porque capturado num ataque autorizado; ou porque libertado do
cativeiro de alguma tribo que ameaçava comê-lo; ou ainda porque
compunha um lote de que se pagara o Tquinto ao governo local.

“Chegaram finalmente os missionários e, não podendo contrastar
o sentimento geral [em favor da escravização indígena],
pactuaram com ele. Por uma dessas capitulações de consciência,
em que os jesuítas são exímios, acharam meio de entender
que “quanto mais larga fosse a porta dos cativeiros lícitos, tanto
mais escravos entrariam na Igreja e se poriam a caminho da salvação”
(Vieira, Resposta aos Capítulos, 25).” Assim, concordando com
a prática da escravidão, acompanhavam as tropas e, como árbitros,
decidiam da justiça das presas. Nessa concessão estava a ruína
da sua obra e, o que mais foi, também da sua fama. Ninguém jamais
os livrará da pecha de haverem diretamente concorrido para a destruição
da raça infeliz, que pretendiam salvar (Azevedo 1930:169).” Mas
isso não é tudo. Instituiu-se também a escravidão
voluntária de índios maiores de 21 anos que, em caso de necessidade
extrema, estavam autorizados a se vender a si mesmos a quem tivesse a caridade
de comprá-los, depois de bem esclarecê-los sobre que coisa era
ser escravo (Leite 1965:119,124). Era lícito, também, a compra
de meninos índios a seus pais para criá-loslos e treiná-los
para o trabalho, o que representa o cúmulo da desfaçatez, uma
vez que não há gente mais extremosamente apegada aos filhos
do que as sociedades fundadas no parentesco. Era também legal e até
meritório comprar meninos trazidos por bugreiros ou regatões,
para instruí-los na fé cristã, o que sucede até
hoje nos cafundós da Amazônia. Era igualmente lícito reter
como cativo o índio que se acasalava com uma escrava e ainda registrar
como escravo o filho gerado desse casamento.

É muito difícil avaliar o número de índios escravizados,
desgarrados de suas tribos.

Se contará, certamente, por milhões quando a avaliação
for feita de forma criteriosa.

Isso é o que indicam as poucas aproximações com que
contamos, como a de Simonsen, que avalia em 300 mil os índios capturados
e escravizados pelos bandeirantes paulistas, uma terça parte deles
destinados ao tráfico, exportado para outras províncias. Ou
nos dados de Justo Mancilla e Simon Masseta (1951:I, 337), que supôs
que sobre as missões jesuíticas do Paraguai, no século
XVII, os paulistas tinham arrancado 200 mil cativos. Os descimentos que anualmente
se faziam de índios dos altos rios da Amazônia, ao longo dos
séculos, para as missões e, principalmente, para o cativeiro,
não terão recrutado quantidade menor.

O Brasil central, a zona da mata de Minas, do Espírito Santo e da
Bahia, bem como as regiões de araucária do Sul do Brasil deram,
também, larga provisão de braços cativos, à medida
que foram sendo devassadas. Em todas essas áreas, o cativeiro a povos
índios que resistiam à expansão foi decretado pelo rei
de Portugal como legal, porque obtido em guerras justas. Como o índio
capturado é uma fração da tribo avassalada, porque muitíssimos
deles morrem na luta pela própria liberdade, outros fogem nos caminhos
ou morrem de maus-tratos, de revolta e de raiva no cativeiro, o processo de
apresamento como forma de recrutar a mão-de-obra nativa para a colonização
constituiu um genocídio de proporções gigantescas.

A amplitude das diversas formas de legitimação do cativeiro
se expressa bem no caso dos paulistas que juntavam em casa tantos índios
escravizados de tantos tipos que tiveram de desenvolver toda uma nomenclatura
para escriturá-los como peça dos seus inventários. Assim
é que falam de peças de serviços, gente roja, serviços
obrigatórios, gente do Brasil, servidores (Machado 1943:31-6, 165-76).
Tudo isso para que as mencionadas peças sucedessem de pai a filho como
propriedade privada, sem falar em escravidão.

A própria redução jesuítica só pode ser
tida como uma forma de cativeiro. As missões eram aldeamentos permanentes
de índios apresados em guerras ou atraídos pelos missionários
para lá viverem permanentemente, sob a direção dos padres.
O índio, aqui, não tem o estatuto de escravo nem de servo. É
um catecúmeno, quer dizer, um herege que está sendo cristianizado
e assim recuperado para si mesmo, em benefício de sua salvação
eterna. No plano jurídico, seria um homem livre, posto sob tutela em
condições semelhantes à de um órfão entregue
aos cuidados de um tutor.

Para os padres, eles seriam almas racionais mas transviadas, postas em corpos
livres, mas carentes de resguardo e vigilância. Estando ali, porém,
deviam trabalhar para seu sustento e para fazer próspera a comunidade
de que passavam a fazer parte. Também podiam ser recrutados a qualquer
hora para a guerra contra qualquer força que ameaçasse os interesses
coloniais, porque esses passavam a ser os seus próprios.

Podiam também ser mandados às vilas para trabalho compulsório
de interesse público na edificação de igrejas, fortalezas,
na urbanização de cidades, na abertura de estradas ou como remeiros
e cozinheiros, ou serviçais nas grandes expedições ou
no que mais lhe fosse indicado, sempre em benefício da coletividade
que passara a integrar.

Podiam, fmalmente, ser arrendados aos colonos mediante salários de
duas varas de pano de algodão, formando assim um pecúlio que,
se chegasse a ser recebido, eles aprenderiam com o padre a gastar criteriosamente,
quem sabe em alguma obra de caridade.

Pior, ainda, que os jesuítas foram os outros missionários,
uma vez que nenhum deles jamais entrou em qualquer conflito com quem quer
que fosse por manifestar indignação contra o extermínio
ou cativeiro dos índios. Mais ainda que os jesuítas, os curas
regulares foram acusados reiteradamente de cobiça vil, chegando alguns
a serem disciplinados e punidos pelo governo colonial pelo abuso com que exploravam
os índios que caíam em suas mãos.

Expulsos os jesuítas, a situação piorou muito, porque
as suas missões foram entregues, ao Norte, às familias de contemplados
que passaram a explorá-las como fazendas privadas. Nas outras regiões,
algumas missões foram entregues a ordens religiosas consentidas nessa
função, porque eram ainda mais propensas a servir ao governo
e aos colonos do que seus escravos pela Companhia.

Alguns foram postos sob a direção de administradores civis
que, podendo cobrar porcentagem sobre os índios que arrendavam ou colocar
os índios a trabalhar em suas próprias fazendas, fizeram disso
um alto negócio. Tão bom que alguns deles se esforçaram
e lograram o supremo favor de se tornarem hereditários das antigas
missões. A quantidade de índios explorados dessa forma terá
sido muito grande, uma vez que documentos do fim do século xvü
falam de quatrocentas aldeias com administradores civis em São Paulo
e de 4 mil nas outras capitanias (Gorender 1978).

A expulsão pombalina que visava, nominalmente, liberar os índios
das missões jesuíticas, integrando-os como iguais e até
com certos privilégios na comunidade colonial, representou enorme logro.
O regulamento que então se baixou aboliu o trabalho compulsório
bem como os turnos semestrais alternados de trabalho na missão de fora
ou de arrendamento para as diferentes colônias.

Na realidade, essa prática somente se aprofunda daí em diante,
lançando os índios nominalmente livres numa condição
generalizada de cativeiro mais grave que o anterior. A situação
desses índios arrendados era pior que a dos escravos tidos pelo senhor
a título próprio, uma vez que estes, sendo um capital humano
que se comprara com bom dinheiro, devia ser zelado, pelo menos para preservar
seu valor venal; enquanto o índio arrendado, não custando senão
o preço de seu arrendamento, daria tanto mais lucro quanto menos comesse
e quanto mais rapidamente realizasse as tarefas para que era alugado. Esse
desgaste humano do trabalhador cativo constitui uma outra forma terrível
de genocídio imposta a mais de um milhão de índios.

2 MOINHOS DE GASTAR GENTE OS BRASILÍNDIOS

A expansão do domínio português terra adentro, na constituição
do Brasil, é obra dos brasilíndios ou mamelucos. Gerados por
pais brancos, a maioria deles lusitanos, sobre mulheres índias, dilataram
o domínio português exorbitando a dação de papel
das Tordesilhas, excedendo a tudo que se podia esperar.

Os portugueses de São Paulo foram os principais gestadores dos brasilíndios
ou mamelucos. O motor que movia aqueles velhos paulistas era, essencialmente,
a pobreza da feitoria paulistana, mera vilazinha alçada no planalto,
a quatro dias de viagem do mar, que se alcançava dificultosamente através
da selva e de águas tormentosas, subindo e descendo escarpadas morrarias.
No dizer de Sérgio Buarque de Holanda, os impelia a “[…] exigência
de um triste viver cotidiano e caseiro: teimosamente pelejaram contra a pobreza,
e para repará-la não hesitaram em deslocar-se sobre espaços
cada vez maiores, desafiando as insídias de um mundo ignorado e talvez
inimigo (Holanda 1986:26).” O que buscavam no fundo dos matos a distâncias
abismais era a única mercadoria que estava a seu alcance: índios
para uso próprio e para a venda; índios inumeráveis,
que suprissem as suas necessidades e se renovassem à medida que fossem
sendo desgastados; índios que lhes abrissem roças, caçassem,
pescassem, cozinhassem, produzissem tudo o que comiam, usavam ou vendiam;
índios, peças de carga, que lhes carregassem toda a carga, ao
longo dos mais longos e ásperos caminhos.

Desgastadas as tribos escravizáveis que viviam por perto, os brasilíndios
paulistas os foram buscar nos esconsos em que estivessem. Para isso, se organizavam
em bandos imensos de mamelucos e seus cativos que, por meses e até
anos, se deslocavam a pé, descalços, nas bandeiras ou remando
as canoas das monções. Nas entradas mais profundas e pioneiras
que duravam anos, viajavam uns quantos meses e acampavam para plantar e colher
roças com que se supriam de mantimentos para prosseguir viagem sertão
adentro, através de matas e de campos naturais. Vanguardas avançadas
sondavam o caminho, procurando aldeias indígenas ou missões
de índios capturáveis, ou se precavendo contra assaltos de índios
hostis. Esse ofício de caçadores de gente se converteu em gênero
de vida dos paulistas, em cujo desempenho se fizeram respeitáveis,
destacando-se com altas honras, a seus próprios olhos, os mais valentes
e briosos.

Os mais bem-sucedidos deles alcançavam não só a prosperidade
que essa pobre economia podia dar, mas também o reconhecimento público
de suas façanhas e o mais alto contentamento consigo mesmos. Era um
modo de vida raro, inusitado, não há dúvida, mas contrastante
com qualquer outro tal como gênero de vida camponês ou pastoril
e igualmente remarcado de singularidade.

Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas
espanhóis horrorizados com a bruteza e desumanidade essa gente castigadora
de seu gentio materno.

Nenhuma designação podia ser mais apropriada. O termo originalmente
se referia a uma casta de escravos que os árabes tomavam de seus pais
para criar e adestrar em suas casas-criatórios, onde desenvolviam o
talento que acaso tivessem.

Seriam janizaros, se prometessem fazer-se ágeis cavaleiros de guerra,
ou xipaios, se covardes e servissem melhor para policiais e espiões.
Castrados, serviriam como eunucos nos haréns, se não tivessem
outro mérito. Mas podiam alcançar a alta condição
de mamelucos se revelassem talento para exercer o mando e a suserania islâmica
sobre a gente de que foram tirados. É evidente que o apelido aplicado
aos paulistas expressa o ressentimento amargo de um jesuíta – provavelmente
o padre Ruiz de Montoya, autor da Conquista espiritual que relata o padecimento
terrível das missões jesuíticas paraguaias assaltadas
pelos bandeirantes paulistas.

Nossos mamelucos ou brasilíndios foram, na verdade, a seu pesar,
heróis civilizadores, serviçais del-rei, impositores da dominação
que os oprimia. Seu valor maior como agentes da civilização
advinha de sua própria rusticidade de meio-índios, incansáveis
nas marchas longuíssimas e sobretudo no trabalho de remar, de sol a
sol, por meses e meses. Afeitos à bruteza selvagem da selva tropical,
herdeiros do saber milenar acumulado pelos índios sobre terras, plantas
e bichos da Terra Nova para os europeus, mas que para eles era a morada ancestral.

Outro valor assinalável era sua flexibilidade de gente recém-feita,
moldável a qualquer nova circunstância, “com a consistência
do couro, não a do ferro e do bronze, cedendo, dobrando-se, amoldando-se
às asperezas de um mundo rude”, como diz Sérgio Buarque
de Holanda ( 1986:29 ).

Os brasilíndios ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas
rejeições drásticas. A dos pais, com quem queriam identificar-se,
mas que os viam como impuros filhos da terra, aproveitavam bem seu trabalho
enquanto meninos e rapazes e, depois, os integravam a suas bandeiras, onde
muitos deles fizeram carreira. A segunda rejeição era a do gentio
materno. Na concepção dos índios, a mulher é um
simples saco em que o macho deposita sua semente. Quem nasce é o filho
do pai, e não da mãe, assim visto pelos índios.

Não podendo identificar-se com uns nem com outros de seus ancestrais,
que o rejeitavam, o mameluco caía numa terra de ninguém, a partir
da qual constrói sua identidade de brasileiro.

Assim é que, por via do cunhadismo, levado a extremo, se criou um
gênero humano novo, que não era, nem se reconhecia e nem era
visto como tal pelos índios, pelos europeus e pelos negros. Esse gênero
de gente alcançou uma eficiência inexcedível, a seu pesar,
como agentes da civilização. Falavam sua própria língua,
tinham sua própria visão do mundo, dominavam uma alta tecnologia
de adaptação à floresta tropical. Tudo isso aurido do
seu convívio compulsório com os índios de matriz tupi.

Sua vida venturosa devia ser mais atrativa para jovens índios do
que a pasmaceira de suas aldeias. Assim é que há vasta documentação
do aliciamento espontâneo de índios que preferiam viver o destino
dos brasilíndios, produzindo eles próprios seus índios
de cativeiro.

Ao contrário do espanhol, que sempre que pôde comandou como
um cavaleiro, o mameluco abriu seu mundo vasto andando de pé descalço,
em fila, por trilhas e estreitos sendeiros, carregando cargas no próprio
ombro e no de índios e índias cativos.

Estes eram os transportadores de tudo, de enfermos e até de mortos,
mas também de damas e muitos reinóis que se faziam carregar
por índios em redes e cadeirinhas.

Friederici ( 1967 ), comparando-os com seus êmulos do Canadá,
os coureurs de boi, que se multiplicaram nos primeiros séculos, supõe
que não se lhes abriria outro caminho histórico senão
o extermínio quando sociedades européias mais estruturadas,
fundadas em famílias regulares, colonizaram aquelas áreas.

É pelo menos curioso o contraste entre o desempenho histórico
daqueles mateiros nortistas, vestindo roupas de couro, calçando mocassins
e só falando as línguas indígenas, em comparação
com a energia pungente dos mamelucos ou brasilíndios que vieram a fazer
o Brasil.

Esses mateiros do norte representaram papel capital. Foram eles que devassaram
o Canadá e o ocuparam até a venda do território aos ingleses.
Creio que são descendentes deles os Kevekuá, que amargam uma
vizinhança hostil com os anglo- canadenses que ocuparam o território,
numa colonização feita por famílias regulares.

Outros mamelucos foram os que abriram o que é hoje o terntório
argentino, uruguaio e paraguaio. Muitos deles podem ser vistos em Buenos Aires,
onde são tratados por cabecitas negras e malvistos pelos milhões
de gringos que os sucederam. Todos ignoram, na Argentina, que o país
foi realmente conquistado, organizado e conduzido à independência
por cerca de 800 mil mamelucos.

No Brasil seu êxito foi imensamente maior, porque passaram a constituir
o cerne mesmo da nação e, somando uns 14 milhões, juntamente
com os negros abrasileirados, puderam suportar a invasão gringa mantendo
sua cara e sua identidade.

O brasilíndio, como gênero novo de gente, chegou mesmo a definir
uma ideologia própria, oposta à do cura e à do neolusitano.
A melhor expressão dela se encontra na citada carta em que Domingos
Jorge Velho, o principal dos paulistas, reclama ante o rei quanto à
inépcia e hipocrisia dos que se opunham à ação
mameluca.

Não foi tarefa nada fácil ao mameluco se fazer agente principal
da história brasileira.

Enfrentaram, de um lado, a odiosidade jesuítica e a má vontade
dos reinóis e, do outro, todas as dificuldades imensas de sua dura
vida de sertanistas. Inclusive a hostilidade dos índios arredios –
tais como os Aimoré da Bahia; os Botocudo de Minas e do Espírito
Santo; os Kaingang e Xokleng do Sul; os Xavante de Mato Grosso; e, sobretudo,
os Bororo e Kayapó, que se moviam por extensas áreas, através
dos cerrados, além dos rios Araguaia e Tocantins -, cientes do destino
trágico que teriam se capturados.

Esses Tapuia eram, principalmente, povos de sistema adaptativo ajustado
às condições do cerrado, muito contrastante com o modo
de vida dos agricultores da floresta tropical. Sua própria forma de
fazer a guerra era outra, preferindo desfechar golpes de tacape ou varar o
inimigo com lanças. Como cativos, eram quase inúteis por não
terem familiaridade nenhuma com os hábitos agrícolas dos Tupi-Guarani
adotados pelos mamelucos, mas, sobretudo, por exigirem vigilância permanente
para não fugirem, matando, se possível, seu captor.

Habituados a percorrer imensas distâncias em seus deslocamentos, os
Tapuia, principalmente os Kayapó, atacavam sempre inesperadamente nos
lugares mais distantes, fazendo prisioneiros sempre que podiam, sobretudo
meninas e mulheres que incorporavam à tribo. Essa característica
os converteu no pavor dos bandeirantes e, depois, através de séculos,
das populações sertanejas que estavam a seu alcance.

Frente a esses índios, escolados no enfrentamento com agentes da
civilização, mesmo as vantagens inicialmente indiscutíveis
das armas de fogo se anularam.

Sagacíssimos e manhosos, eles percorriam longas distâncias
a partir de suas aldeias para atacar gente desprevenida com chuvas de suas
flechas silenciosas, por vezes ervadas. Enquanto um bandeirante levantava
o clavinote, sustentado numa forquilha, e armava o complicado disparador,
o índio mandava de três a cinco flechadas.

Era indispensável, entretanto, passar sobre os territórios
desses índios hostis para alcançar as tribos de plantadores
de mandioca e milho, mais dóceis como escravos e mais úteis,
desde a primeira hora, nas tarefas corriqueiras. Isso porque a cultura adaptativa
básica daqueles índios era e permaneceu sendo, por séculos
afora, a dos povos Tupi, cuja língua foi a fala dos brasilíndios
e cujos hábitos e práticas eram quase os mesmos.

A vida do índio cativo não podia ser mais dura como cargueiro
ou remador, que eram seus trabalhos principais. Pertencente a quem o apresasse,
ele era um bem semovente, desgastado com a maior indiferença, como
se isso fosse o seu destino, mesmo porque havia um estoque aparentemente inesgotável
de índios para repor os que se gastavam.

Alguns textos coloniais, concernentes a grupos indígenas que facilitaram
o assentamento do europeu e aceitaram colaborar com eles, exigem algumas ponderações,
principalmente as de que, acossados por outras tribos indígenas, pudessem
eles achar menos terrível a dura vida e os sofrimentos debaixo dos
cristãos que a permanência na terra em guerra contra seus inimigos.
É também de supor que um jovem índio, recrutado por um
bandeirante como guerreiro, se pudesse destacar, preando outros índios
e sendo premiado por isso ou louvado como extraordinário caçador,
como guia e mateiro, de olhos vivos e de grande sabedoria para atravessar
florestas e cerrados.

Alguns grupos tribais, ainda que conscritos à economia colonial,
lograram manter certa autonomia na qualidade de aliados dos brancos para suas
guerras contra outros índios. O relevante nesse caso é que,
em lugar de amadurecerem para a civilização – passando progressivamente
da condição tribal à nacional, da aldeia à vila,
como supuseram tantos historiadores -, esses núcleos autônomos
permaneceram irredutivelmente indígenas ou simplesmente se extirìgüiram
pela morte de seus integrantes. Onde quer que se tenha dados concretos, se
pode observar que à coexistência da aldeia indígena com
o núcleo colonizador segue-se o crescimento deste e a extinção
daquela, cuja população vai diminuindo ano após ano,
até desaparecer. Nos raros casos em que logram sobreviver uns tantos
indígenas, todos eles mantêm sua identificação
étnica.

Pesquisas etnológicas empreendidas por mim mesmo revelaram o alto
grau de resistência destas etnias tribais, que continuam congregando
as lealdades dos seus membros e definindo-se como indígenas, mesmo
quando submetidas durante décadas a pressões aculturadoras e
assimiladoras (Ribeiro 1970). Contra esta resistência étnica
nada puderam ontem nem hoje todos os que contra ela se lançaram. Tão
inúteis foram as ameaças de chacinamento como as pressões
integradoras exercidas com total intolerância pelos missionários
e, também, os métodos ditos persuasórios dos órgãos
oficiais de assistência.

Índios e brasileiros se opõem como alternos étnicos
em um conflito irredutível, que jamais dá lugar a uma fusão.
Onde quer que um grupo tribal tenha oportunidade de conservar a continuidade
da própria tradição pelo convívio de pais e filhos,
preserva- se a identificação étnica, qualquer que seja
o grau de pressão assimiladora que experimente. Através desse
convívio aculturativo, porém, os índios se tornam cada
vez menos índios no plano cultural, acabando por ser quase idênticos
aos brasileiros de sua região na língua que falam, nos modos
de trabalhar, de divertir-se e até nas tradições que
cultuam. Não obstante, permanecem identificando-se com sua etnia tribal
e sendo assim identificados pelos representantes da sociedade nacional com
quem mantêm contato. O passo que se dá nesse processo não
é, pois, como se supôs, o trânsito da condição
de índio a de brasileiro, mas da situação de índios
específicos, investidos de seus atributos e vivendo segundo seus costumes,
à condição de índios genéricos, cada vez
mais aculturados mas sempre índios em sua identificação
étnica.

OS AFRO-BRASILEIROS

Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana.

Arthur Ramos ( 1940, 1942, 1946 ), prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues
( 1939, 1945 ), distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes
grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente,
pelos grupos Yoruba – chamados nagô -, pelos Dahomey – designados
geralmente como gegê – e pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como
mircas -, além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia,
Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao
Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga
e os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros
malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo
cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo- angolês,
provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a “Contra
Costa”, que corresponde ao atual território de Moçambique.

A contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação
daquela protocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar
a produção açucareira, comporia o contingente fundamental
da mão-de-obra. Apesar do seu papel como agente cultural ter sido mais
passivo que ativo, o negro teve uma importância crucial, tanto por sua
presença como a massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui
se fez, como por sua introdução sorrateira mas tenaz e continuada,
que remarcou o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores
mais fortes.

Tal como ocorreu aos brancos, vindos mais tarde a integrar-se na etnia brasileira,
os negros, encontrando já constituída aquela protocélula
luso-tupi, tiveram de nela aprender a viver, plantando e cozinhando os alimentos
da terra, chamando as coisas e os espíritos pelos nomes tupis incorporados
ao português, fumando longos cigarros de tabaco e bebendo cauim.

Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África,
foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos
e línguas não inteligíveis uns aos outros. A África
era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa
Babel de línguas. Embora mais homogêneos no plano da cultura,
os africanos variavam também largamente nessa esfera. Tudo isso fazia
com que a uniformidade racial não correspondesse a uma unidade lingüístico-cultural,
que ensejasse uma unificação, quando os negros se encontraram
submetidos todos à escravidão. A própria religião,
que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações,
constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de
unificá-los, então, os desunia. Foi até utilizada como
fator de discórdia, segundo con, fessa o conde dos Arcos.

A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros
introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que
eles traziam da África e à política de evitar a concentração
de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até
nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos
solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.

Encontrando-se dispersos na terra nova, ao lado de outros escravos, seus
iguais na cor e na condição servil, mas diferentes na língua,
na identificação tribal e freqüentemente hostis pelos referidos
conflitos de origem, os negros foram compelidos a incorporar-se passivamente
no universo cultural da nova sociedade.

Dão, apesar de circunstâncias tão adversas, um passo
adiante dos outros povoadores ao aprender o português com que os capatazes
lhes gritavam e que, mais tarde, utilizariam para comunicar-se entre si. Acabaram
conseguindo aportuguesar o Brasil, além de influenciar de múltiplas
maneiras as áreas culturais onde mais se concentraram, que foram o
nordeste açucareiro e as zonas de mineração do centro
do país. Hoje, aquelas populações guardam uma flagrante
feição africana na cor da pele, nos grossos lábios e
nos narigões fornidos, bem como em cadências e ritmos e nos sentimentos
especiais de cor e de gosto.

Nos dois casos, o engenho e a mina, os negros escravos se viram incorporados
compulsoriamente a comunidades atípicas, porque não estavam
destinados a atender às necessidades de sua população,
mas sim aos desígnios venais do senhor. Nelas, à medida que
eram desgastados para produzir o que não consumiam, iam sendo radicalmente
deculturados pela erradicação de sua cultura africana.

Simultaneamente, vão se aculturando nos mo dos brasileiros de ser
e de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural simplificado
dos engenhos e das minas. Têm acesso, desse modo, a um corpo de elementos
adaptativos, associativos e ideológicos oriundo daquela protocélula
étnica tupi que se consentiu sobreviver nas empresas, para o exercício
de funções extraprodutivas.

Só através de um esforço ingente e continuado, o negro
escravo iria reconstituindo suas virtualidades de ser cultural pelo convívio
de africanos de diversas procedências com a gente da terra, previamente
incorporada à proto-etnia brasileira, que o iniciaria num corpo de
novas compreensões mais amplo e mais satisfatório. O negro transita,
assim, da condição de boçal – preso ainda à
cultura autóctone e só capaz de estabelecer uma comunicação
primária com os demais integrantes do novo contorno social – à
condição de ladino -já mais integrado na nova sociedade
e na nova cultura.

Esse negro boçal, que ainda não falava o português ou
só falava um português muito trôpego, era entretanto perfeitamente
capaz de desempenhar as tarefas mais pesadas e ordinárias na divisão
de trabalho do engenho ou da mina.

Concentrando-se em grandes massas nas áreas de atividade mercantil
mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o negro exerceria
um papel decisivo na formação da sociedade local. Seria, por
excelência, o agente de europeização que difundiria a
língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém-chegados
as técnicas de trabalho, as normas e valores próprios da subcultura
a que se via incorporado. Consegue, ainda assim, exercer influência,
seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja impregnando todo o seu contexto
com o pouco que pôde preservar da herança cultural africana.
Como esta não podia expressar-se nas formas de adaptação
– por diferir, consideravelmente, no plano ecológico e tecnológico,
dos modos de prover a subsistência na África -, nem tampouco
nos modos de associação – por estarem rigidamente prescritos
pela estrutura da colônia como sociedade estratificada, a que se incorporava
na condição de escravo -, sobreviveria principalmente no plano
ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer
dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas,
a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu
destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira.

Junto com esses valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito
de si,.tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes
e gostos culinários.

Essa parca herança africana – meio cultural e meio racial -, associada
às crenças indígenas, emprestaria entretanto à
cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural.
Nessa esfera é que se destaca, por exemplo, um catolicismo popular
muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãs tão
perseguidas em Portugal.

Conscritos nos guetos de escravidão é que os negros brasileiros
participam e fazem o Brasil participar da civilização de seu
tempo. Não nas formas que a chamada civilização ocidental
assume nos núcleos cêntricos, mas com as deformações
de uma cultura espúria, que servia a uma sociedade subalterna. Por
mais que se forçasse um modelo ideal de europeidade, jamais se alcançou,
nem mesmo se aproximou dele, porque pela natureza das coisas, ele é
inaplicável para feitorias ultramarinas destinadas a produzir gêneros
exóticos de exportação e de valores pecuniários
aqui auridos. Seu ser normal era aquela anomalia de uma comunidade cativa,
que nem existia para si nem se regia por uma lei interna do desenvolvimento
de suas potencialidades, uma vez que só vivia para outros e era dirigida
por vontades e motivações externas, que o queriam degradar moralmente
e desgastar fisicamente para usar seus membros homens como bestas de carga
e as mulheres como fêmeas animais. As diferenças entre os dois
modelos, não sendo degradações nem enfermidades, não
podiam jamais ser reestruturadas ou curadas. De fato, era o Brasil que se
construía a si mesmo como corresponde à sua base ecológica,
o projeto colonial, a monocultura e o escravismo do que resulta uma sociedade
totalmente nova.

A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos
através da violência mais crua e da coerção permanente,
exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó
desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido
a essa compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando
de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido
a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois,
para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo
senhor, que é a mais compatível com a preservação
dos seus interesses.

O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho
deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém,
mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no
fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída,
entretanto, uma vez que da condição de escravo só se
sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto,
muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista
do suicídio, que era muito freqüente, ou da fuga, mais freqüente
ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal.
Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente
audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante
seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de
estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser
alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que
alimentar um negro inútil.

Uma morte prematura numa tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a
vida do escravo trazido de tão longe para cair no inferno da existência
mais penosa. Sentindo que é violentado, sabendo que é explorado,
ele resiste como lhe é possível. “Deixam de trabalhar bem
se não forem convenientemente espancados”, diz um observador alemão,
“e se desprezássemos a primeira iniqüidade a que os sujeitou,
isto é, sua introdução e submissão forçada,
devíamos de considerar em grande parte os castigos que lhes impõem
os seus senhores” (Davatz 1941:62-3 ). Aí está a racionalidade
do escravismo, tão oposta à condição humana que
uma vez instituído só se mantém através de uma
vigilância perpétua e da violência atroz da punição
preventiva.

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada
numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos
– para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas.
Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros
negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio,
era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo
espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio
da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía
no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo
magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era
arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro,
ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que
lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por
dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar
faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua
capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.

Sem amor de ninguém, sem familia, sem sexo que não fosse a
masturbação, sem nenhuma identificação possível
com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de
infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento
e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta
era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para
trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico,
para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía
sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos,
do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os
dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob
trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinqüenta chicotadas
diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado
com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola
de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de
uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através
de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós,
brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados.
Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os
supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram
para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível
e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores
de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em
nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer
mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres,
sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar
sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir
na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje,
em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar
os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando
crescente indignação nos dará forças, amanhã,
para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

OS NEOBRASILEIROS

Graças à auto-identificação própria e
nova que iam assumindo e, também, ao acesso a múltiplas inovações
socioculturais e tecnológicas, as comunidades neobrasileiras nascentes
se capa citaram a dar dois passos evolutivos. Primeiro, o de abranger maior
número de membros do que as aldeias indígenas, liberando parcelas
crescentes deles das tarefas de subsistência para o exercício
das funções especializadas. Segundo, incorporar todos eles numa
só identidade étnica, estruturada como um sistema socioeconômico
integrado na economia mundial.

Apesar de terem um alto grau de auto-suficiência, dependiam de certos
artigos importados, sobretudo de instrumentos de metal, sal, pólvora
e outros mais, que não podiam produzir. Já não viviam,
portanto, como indígenas encerrados sobre si mesmos e voltados fundamentalmente
ao provimento da subsistência. Ao contrário, mantinham vínculos
mercantis externos para prover-se dos referidos bens em troca do seu principal
artigo de exportação, que fora, inicialmente, o pau-de-tinta,
depois, o índio apresado como escravo e, afmal, a produção
de alguma mercadoria de exportação. Produzir essa mercadoria
passou a ser sua razão de viver.

Por longo tempo, contudo, a população básica desses
núcleos coloniais neobrasileiros exibiria uma aparência muito
mais indígena que negra e européia, pelo modo como moravam,
pelo que comiam, por sua visão do mundo e pelo idioma que falavam.
Tal indianidade era, sem dúvida, mais aparente que real, porque o apelo
às formas indígenas de adaptação à natureza,
a sobrevivência das antigas tradições, o próprio
uso da língua indígena, estavam postos, agora, a serviço
de uma entidade nova, muito mais capaz de crescer e expandir-se. Conforme
assinalamos, enquanto o aumento da população indígena
só conduzia à partição das tribos em microetnias
tendentes a diferenciar-se, independentizar-se e dispersar-se, as novas comunidades
constituíam unidades operativas capazes de crescer conjugadamente na
forma de uma macroetnia.

O idioma tupi foi a língua materna de uso corrente desses neobrasileiros
até meados do século XVIII. De fato, o tupi, inicialmente, se
expandiu mais que o português como a língua da civilização
(sobre a formação e a difusão da língua geral
ver Cortesão 1958 e Holanda 1945 ). Com efeito, a língua geral,
o nheengatu, que surge no século XVI do esforço de falar o tupi
com boca de português, se difunde rapidamente como a fala principal
tanto dos núcleos neobrasileiros como dos núcleos missionários.

Cumpre, primeiro, a função de língua de comunicação
dos europeus com os Tupinambá de toda a costa brasileira, logo após
o descobrimento. Depois, a de língua e dispersar-se, as novas comunidades
constituíam unidades operativas capazes de crescer conjugadamente na
forma de uma macroetnia.

O idioma tupi foi a língua materna de uso corrente desses neobrasileiros
até meados do século XVIII. De fato, o tupi, inicialmente, se
expandiu mais que o português como a língua da civilização
(sobre a formação e a difusão da língua geral
ver Cortesão 1958 e Holanda 1945 ). Com efeito, a língua geral,
o nheengatu, que surge no século XVI do esforço de falar o tupi
com boca de português, se difunde rapidamente como a fala principal
tanto dos núcleos neobrasileiros como dos núcleos missionários.

Cumpre, primeiro, a função de língua de comunicação
dos europeus com os Tupinambá de toda a costa brasileira, logo após
o descobrimento. Depois, a de língua materna dos mamelucos da Bahia,
Pernambuco, Maranhão e São Paulo. Mais tarde, se ex-pande juntamente
com a população, como língua corrente tanto das reduções
e vilas que os missionários e os colonos fundaram no vale amazônico,
como dos núcleos gaúchos que se fixaram no extremo sul, frente
aos povoadores espanhóis. É de notar que, sendo a língua
geral uma variante muito pouco diferenciada do guarani falado naqueles séculos,
tanto em território paraguaio onde se converte em língua materna
como no que viria a ser a Argentina e o Uruguai de hoje, estamos, como se
vê,, frente a uma enorme área lingüística tupi-guarani.
Seguramente, a mais ampla das áreas lingüísticas americanas.

Assim era já antes da chegada do europeu, uma vez que tribos do tronco
tupi ocupavam quase todo o litoral atlântico do Brasil atual e subiam,
terra adentro, pelo sistema fluvial do Prata, ocupando vastas regiões
do vale do Amazonas. Esta área lingüística corresponde,
grosso modo, aos territórios atuais do Brasil, do Paraguai e do Uruguai.
Essa é a que os neobrasileiros fizeram sua, falando tupi para se comunicar
com as tribos que ali viviam e a que eles sucederiam ecologicamente no mesmo
espaço.

A substituição da língua geral pela portuguesa como
língua materna dos brasileiros só se completaria no curso do
século XVIII. Mas desde antes vinha se efetuando, de maneira mais rápida
e radical onde a economia era mais dinâmica e, em conseqüência,
era maior a concentração de escravos negros e de povoadores
portugueses; e, mais lentamente, nas áreas economicamente marginais,
como a Amazônia e o extremo sul.

No rio Negro, até o século xx, se falava a língua geral,
apesar de que os Tupi jamais tivessem chegado ao norte do Amazonas. Introduzido
como língua civilizadora pelos jesuítas, o nheengatu permaneceu,
depois da expulsão deles, como a fala comum da população
brasileira local e subsistiu como língua predominante até 1940
(Censo Nacional 1940 ).

No Sul, a presença de uma vasta área guaranítica na
bacia do Prata se comprova, de um lado, pela toponímia predominantemente
guarani das zonas de antiga ocupação do Uruguai e da Argentina,
e, de outro lado, pela presença atual do guarani como a língua
vernácula do Paraguai.

O mesmo processo de sucessão ocorre com a tecnologia produtiva. Inicialmente
quase só indígena, ela vai sendo substituída, com o passar
dos séculos, por técnicas européias, tanto mais rapidamente
quanto mais completamente se integra cada zona na economia mercantil e se
moderniza. Ainda assim, ao longo dos séculos, a tecnologia do Brasil
rústico foi e continua sendo basicamente indígena, no que diz
respeito à subsistência – baseada no cultivo e no preparo da
mandioca, do milho, da abóbora e das batatas, e de muitas outras plantas
– bem como às técnicas indígenas de caça e de
pesca.

Essa base tecnológica indígena, desde o primeiro momento,
vem sendo enriquecida por contribuições européias que,
pouco a pouco, aumentaram a sua produtividade.

Tal era o caso dos instrumentos de ferro – machados, facas, facões,
foices, enxadas, anzóis -; das armas de fogo para a caça e para
a guerra; de aparelhos mecânicos, como a prensa, que às vezes
substituiu o tipiti indígena trançado de palha; do monjolo,
grande morteiro de água com que se pila o milho; das moendas de espremer
cana; da roda hidráulica, do carro de boi, da roda do oleiro, do tear
composto, do descaroçador de algodão e, ainda, dos tachos e
panelas de metal, que substituíam o torrador de cerâmica para
o tratamento da farinha de mandioca; e, por fim, dos animais do mésticos
– galinhas, porcos, bois, cavalos -, utilizados para a alimentação,
caça, transporte e tração.

As casas dos novos núcleos se reduzem enormemente de dimensão
em relação às malocas indígenas porque, em lugar
de acolherem famílias extensas, abrigando centenas de pessoas, agora
acolhem famílias menores ou a escravaria. Melhora, porém, a
técnica de edificação com o emprego da taipa e do adobe
cru na construção das casas mais humildes, e de tijolos, pedras,
cal e telhas para as senhoriais.

Simultaneamente, as residências da gente mais rica se engalanam com
um mobiliário mais elaborado, deslocando as redes de dormir para dar
lugar a catres; as cestas trançadas, substituídas por canastras
de couro ou arcas de madeira; a que, mais tarde, se somariam mesas, bancos,
armários e oratórios. A tudo isso se acrescentam, logo, as técnicas
de preparo e de uso do sal e do sabão, da aguardente, das lâmpadas
de azeite, dos couros curtidos, de novos remédios, de sandálias
e de chapéus.

Os principais elementos aglutinadores dos novos núcleos são
um comando administrativo e político, representado localmente pelas
autoridades seculares e eclesiásticas, e uma gerência socioeconômica
a cargo do empresariado de produtores e comerciantes. A unidade de comando
dessa estrutura do poder permitiu às comunidades nascentes crescerem
e se diferenciarem, cada vez mais, num componente rural e outro urbano. O
primeiro assentado principalmente nas fazendas, sob o mando de seus proprietários,
mas trabalhadas por escravos negros ocupados na produção mercantil
e por gente nascida na terra; estes últimos devotados a funções
administrativas e de defesa e à produção de alimentos.
O segundo era constituído pela parcela urbanizada da população,
regida por capitães e prelados e ativado por trabalhadores braçais,
artesãos, comerciantes, funcionários e sacerdotes. Sua função
era administrar o empreendimento colonial, conformá-lo como possessão
portuguesa, plasmá-lo dentro dos cânones da cultura lusitana
e totalmente fiel à Igreja católica apostólica e romana.

No conjunto dessa população colonial, destaca-se prontamente
uma camada superior, desligada das tarefas produtivas, formada por três
setores letrados, participantes de certos conteúdos eruditos da cultura
lusitana. Tais eram: uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia
as funções de governo civil e militar; outra religiosa, que
cumpria o papel de aparato de indoutrinação e catequese dos
índios e de controle ideológico da população,
sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava
a economia de exportação, representada por agentes de casas
financeiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portos
europeus importadores de artigos tropicais. Esses três setores, mais
seus corpos de pessoal auxiliar, instalados nos portos, constituíram
o comando da estrutura global. Compunha um componente urbano de montante tão
ponderável quanto o das sociedades européias da época;
formadas, elas também, por populações majoritariamente
rurais. Era, de fato, uma subestrutura da rede metropolitana européia,
menos independente que seus demais componentes, porque estava intermediada
por Lisboa.

OS BRASILEIROS

O processo de formação dos povos americanos tem especificidades
que desafiam a explicação. Por que alguns deles, até
mais pobres na etapa colonial, progrediram aceleradamente, integrando-se de
forma dinâmica e eficaz na revolução industrial, enquanto
outros se atrasaram e ainda se esforçam por modernizar-se? Evidentemente,
os povos transplantados, cuja identidade étnica já veio perfeitamente
definida da Europa, encontram em sua própria configuração
facilidades de incorporar-se a uma nova civilização surgida
no seio de suas matrizes. Outro é o caso de povos que estavam se fazendo
como uma configuração totalmente diferente de suas matrizes,
que enfrentava a tarefa de difundir os povos que reuniu, tão diversos
uns dos outros.

É tarefa sua, inclusive, definir sua identidade étnica, a
qual não pode ser a de meros europeus de ultramar.

Outra argüição posta pela história é sobre
a causa da uniformidade lingüística dos povos americanos. Tanto
no norte como no sul, as línguas que se falam em imensos territórios,
por milhões de pessoas, são as mesmas – o inglês, o espanhol,
o português -, que nem apresentam dialetos. Como nada disso ocorreu
em nenhum outro lugar da terra, cumpre indagar como se deu aqui.

O nome Brazil geralmente identificado com o pau-de-tinta é na verdade
muito mais antigo. Velhas cartas e lendas do mar oceano traziam registros
de uma ilha Brasil referida provavelmente por pescadores ibéricos que
andavam à cata de bacalhau (cf.

Gandia 1929 ). Mas ele foi quase imediatamente referido à nova terra,
ainda que o governo português quisesse lhe dar no mes pios, que não
pegaram. Os mapas mais antigos da costa já a registram como “brasileira”
e os filhos da terra foram, também, desde logo chamados “brasileiros”.
Entretanto, o uso do nome — Página 127 como gentílico, que
um povo atribua a si mesmo, só surgiria muito depois.

O gentílico se implanta quando se torna necessário denominar
diferencialmente os primeiros núcleos neobrasileiros, formados sobretudo
de brasilíndios e afro- brasileiros, quando começou a plasmar-se
a configuração histórico-cultural nova, que envolveu
seus componentes em um mundo não apenas diferente, mas oposto ao do
índio, ao do português e ao do negro.

A consciência plena dessa oposição só seria alcançada
muito mais tarde, mas a percepção dos antagonismos e diferenças
se dá desde as primeiras décadas. Revela-se na prevenção
do nativo com relação ao metropolitano e, como contrapartida,
no desprezo deste pela gente da terra. Evidencia-se na perplexidade do missionário
que, em vez de famílias compostas de acordo com o padrão europeu,
depara no Brasil com verdadeiros criatórios de mestiços, gerados
pelo pai branco em suas múltiplas mulheres índias. Denota-se,
na inquietação do funcionário real que, dois séculos
após a descoberta do Brasil, se pergunta se um dia chegará aquela
multidão mestiça, se entendendo em tupi-guarani, a falar português.

É bem provável que o brasileiro comece a surgir e a reconhecer-se
a si próprio mais pela percepção de estranheza que provocava
no lusitano, do que por sua identificação como membro das comunidades
socioculturais novas, porventura também porque desejoso de remarcar
sua diferença e superioridade frente aos indígenas.

Naquela busca de sua própria identidade, talvez até se desgostasse
da idéia de não ser europeu, por considerar, ele também,
como subalterno tudo que era nativo ou negro. Mesmo o filho de pais brancos
nascido no Brasil, mazombo, ocupando em sua própria sociedade uma posição
inferior com respeito aos que vinham da metrópole, se vexava muito
da sua condição de filho da terra, recusando o tratamento de
nativo e discriminando o brasilíndio mameluco ao considerá-lo
como índio.

O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio
mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se
com os que foram seus ancestrais americanos – que ele desprezava -, nem com
os europeus – que o desprezavam -, e sendo objeto de mofa dos reinóis
e dos luso-nativos, via-se condenado à pretensão de ser o que
não era nem existia: o brasileiro.

Através dessas oposições e de um persistente esforço
de elaboração de sua própria imagem e consciência
como correspondentes a uma entidade étnico-cultural nova, é
que surge, pouco a pouco, e ganha corpo a brasilianidade.

É bem possível que ela só se tenha fixado quando a
sociedade local se enriqueceu, com contribuições maciças
de descendentes dos contingentes africanos, já totalmente desafricanizados
pela mó aculturativa da escravidão. Esses mulatos ou eram brasileiros
ou não eram nada, já que a identificação com o
índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível.
Além de ajudar a propagar o português como língua corrente,
esses mulatos, somados aos mamelucos, formaram logo a maioria da população
que passaria, mesmo contra sua vontade, a ser vista e tida como a gente rasileira.
Ainda que a especialização produtiva ecológico-regional
– açúcar, gado, ouro, borracha etc. – conduzisse a diferenciações
locais remarcadas, aquela comunidade básica originalmente luso-tupi
se mantém, sempre dando uma linha de continuidade, que tanto destaca
sua especificidade étnica como opõe as matrizes das quais surgiu
e que matou ao constituir-se.

Aquela protocélula cultural, plasmada nas primeiras décadas,
quando o elemento africano ainda estava ausente ou era raro, operou, daí
em diante, como o denominador comum do modo de vida popular dos futuros brasileiros
de todas as regiões.

Seu patrimônio básico estava constituído pelas técnicas
milenares de adaptação dos povos Tupi à floresta tropical,
que se integraram na herança cultural do mameluco.

De fato, os novos núcleos puderam brotar e crescer em condições
tão inviáveis, e em meio tão diverso do europeu, porque
aprenderam com o índio a identificar, a denominar e a classificar e
usar toda a natureza tropical, distinguindo as plantas úteis das venenosas,
bem como as apropriadas à alimentação e as que serviam
a outros fins. Aprenderam, igualmente, com eles, técnicas eficazmente
ajustadas às condições locais e às diferentes
estações do ano, relativas ao cultivo e preparação
de variados produtos de suas lavouras, à caça na mata e à
pesca no mar, nas lagoas e nos rios. Com os índios aprenderam, ainda,
a fabricar utensílios de cerâmica, a trançar esteiras
e cestos para compor a tralha doméstica e de serviço, a tecer
redes de dormir e tipóias para carregar crianças. Foi, com os
índios, também, que aprenderam a construir as casas mais simples,
ajustadas ao clima, como os mocambos, com os materiais da terra, nas quais
viveria a gente comum; a fabricar canoas com casca de árvore ou cavadas
a fogo em um só tronco. Sobre essa base é que se acumulariam,
depois, as heranças tecnológicas européias que, modernizando
a sociedade brasileira nascente, permitiriam melhor integrá-la com
os povos de seu tempo.

Enfim, a atuar produtivamente sobre uma natureza diversa da européia
e da africana, em condições climáticas também
distintas, preenchendo os requisitos necessários à

sobrevivência nos trópicos. Essa herança técnico-cultural
em que se assentava a adaptação ecológica dos brasileiros
era essencialmente a mesma de todas as tribos agrícolas da floresta
tropical. Tinha, porém, muitas peculiaridades que a faziam reconhecível
como de origem tupi. Para tanto aqui se somam à língua falada
pelos neobrasileiros, o nheengatu, que era uma variante do tronco tupi; a
fórmula ecológica específica de sobrevivência nos
trópicos, com

base na agricultura deles, que era também tupi; e a própria
constituição genética dos núcleos mamelucos gerados
por pais europeus principalmente nas índias da costa, que eram predominantemente
tupi; para, tudo somado, dar aos brasileiros originais uma flagrante fisionomia
tupi.

Com efeito, enquanto neotupis é que os núcleos mamelucos brasileiros
opunham-se às outras matrizes indígenas – tratando-as genericamente
como tapuias -, desprezando-as etnocentricamente como gente inferior, porque
não falavam a mesma língua, não comiam farinha de mandioca,
nem se comportavam como era cabível a verdadeiros homens. Mesmo a etnologia
brasileira, só no presente século tornou-se capaz de distinguir
a multiplicidade de povos, confundida sob aquela designação
genérica, e de apreciar suas verdadeiras características culturais.
As pesquisas de Curt Nimuendaju demonstraram o caráter especializado
e relativamente avançado das culturas Jê.

Nesse sentido, o Brasil é a realização derradeira e
penosa dessas gentes tupis, chegadas à costa atlântica um ou
dois séculos antes dos portugueses, e que, desfeitas e transfiguradas,
vieram dar no que somos: uns latinos tardios de além-mar, amorenados
na fusão com brancos e com pretos, deculturados das tradições
de suas matrizes ancestrais, mas carregando sobrevivências delas que
ajudam a nos contrastar tanto com os lusitanos.

Como se vê, estava constituída já uma fórmula
extraordinariamente feliz de adaptação do homem ao trópico
como uma civilização vinculada ao mundo português mas
profundamente diferenciada dele. Sobre essa massa de neobrasileiros feitos
pela transfiguração de suas matrizes é que pesaria a
tarefa de fazer Brasil.

A assunção de sua própria identidade pelos brasileiros,
como de resto por qualquer outro povo, é um processo diversificado,
longo e dramático. Nenhum índio criado na aldeia, creio eu,
jamais virou um brasileiro, tão irredutível é a identificação
étnica Já o filho da índia, gerado por um estranho, branco
ou preto, se perguntaria quem era, se já não era índio,
nem tampouco branco ou preto. Seria ele o protobrasileiro, construído
como um negativo feito de sua ausência de etnicidade? Buscando uma identidade
grupal reconhecível para deixar de ser ninguém, ele se viu forçado
a gerar sua própria identificação.

O negro escravo, enculturado numa comunidade africana, permanece, ele mesmo,
na sua identidade original até a morte. Posto no Brasil, esteve sempre
em busca de algum irmão da comunidade longínqua com quem confraternizar.
Não um companheiro, escravo ou escrava, como ele próprio, mas
alguém vindo de sua gente africana, diferente de todos os que via aqui,
ainda que eles fossem negros escravos.

Sobrevivendo a todas as provações, no trânsito de negro
boçal a negro ladino, ao aprender a língua nova, os novos ofícios
e novos hábitos, aquele negro se refazia profundamente. Não
chegava, porém, a ser alguém, porque não reduzia jamais
seu próprio ser à simples qualidade comum de negro na raça
e de escravizado. Seu filho, crioulo, nascido na terra nova, racialmente puro
ou mestiçado, este sim, sabendo-se não-africano como os negros
boçais que via chegando, nem branco, nem índio e seus mestiços,
se sentia desafiado a sair da ninguendade, construindo sua identidade. Seria,
assim, ele também, um protobrasileiro por carência.

O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém,
etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para
livrar-se da ninguendade de não- índios, não-europeus
e não-negros, que eles se vêem forçados a criar a sua
própria identidade étnica: a brasileira.

O português, por mais que se identificasse com a terra nova, gostava
de se ter como parte da gente metropolitana, era um reinol e esta era sua
única superioridade inegável. Seu filho, também, certamente,
preferiria ser português. Terá sido assim, até que aqueles
mamelucos e índios e aqueles negros mestiçados ganhassem entidade,
como identificação coletiva para que o mazombo deixasse de permanecer
lusitano.

Temos aqui duas instâncias. A do ser formado dentro de uma etnia,
sempre irredutível por sua própria natureza, que amarga o destino
do exilado, do desterrado, forçado a sobreviver no que sabia ser uma
comunidade de estranhos, estrangeiro ele a ela, sozinho ele mesmo. A outra,
do ser igualmente desgarrado, como cria da terra, que não cabia, porém,
nas entidades étnicas aqui constituídas, repelido por elas como
um estranho, vivendo à procura de sua identidade. O que se abre para
ele é o espaço da ambigüidade. Sabendo-se outro, tem dentro
de sua consciência de se fazer de novo, acercando-se dos seus similares
outros, compor com eles um nós coletivo viável. Muito esforço
custaria definir essa entidade nova como humana, se possível melhor
que todas as outras. Só por esse tortuoso caminho deixariam de ser
pessoas isoladas como ninguéns aos olhos de todos.

Trata-se, em essência, de construir uma representação
coparticipada como uma nova entidade étnica com suficiente consistência
cultural e social para torná-la viável para seus membros e reconhecível
por estranhos pela singularidade dialetal de sua fala e por outras singularidades.
Precisava, por igual, ser também suficientemente coesa no plano emocional
para suportar a animosidade inevitável de todos os mais dela excluídos
e para integrar seus membros numa entidade unitária, apesar da diversidade
interna dos seus membros ser freqüentemente maior que suas diferenças
com respeito a outras etnias.

Quando é que, no Brasil, se pode falar de uma etnia nova, operativa?
Quando é que surgem brasileiros, conscientes de si, senão orgulhosos
de seu próprio ser, ao menos resignados com ele? Isso se dá
quando milhões de pessoas passam a se ver não como oriundas
dos índios de certa tribo, nem africanos tribais ou genéricos,
porque daquilo haviam saído, e muito menos como portugueses metropolitanos
ou crioulos, e a se sentir soltas e desafiadas a construir- se, a partir das
rejeições que sofriam, com nova identidade étnico-nacional,
a de brasileiros.

O fato, porém, é que uma representação coletiva
dessa identificação tem de existir fora dos indivíduos,
para que eles com ela se identifiquem e a assumam tão plausivelmente,
que os mais os aceitem numa mesma qualidade co-participada. Numa primeira
instância, essa função é o reconhecimento de peculiaridades
próprias que tanto diferencia e o opõe aos que a não
possuem, como o assemelha e associa aos que portam igual peculiaridade. Quando
se diz: nossos negros, a referência é a cor da pele; quando se
fala de mestiços, aponta-se secundariamente para isso. Mas o relevante
é que uns e outros são brasileiros, qualidade geral que transcende
suas peculiaridades.

O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e acolher
a gente variada que aqui se juntou, passa tanto pela anulação
das identificações étnicas de índios, africanos
e europeus, como pela indiferenciação entre as várias
formas de mestiçagem, como os mulatos (negros com brancos), caboclos
(brancos com índios), ou curibocas (negros com índios).

Só por esse caminho, todos eles chegam a ser uma gente só,
que se reconhece como igual em alguma coisa tão substancial que anula
suas diferenças e os opõe a todas as outras gentes. Dentro do
novo agrupamento, cada membro, como pessoa, permanece inconfundível,
mas passa a incluir sua pertença a certa identidade coletiva.

O SER E A CONSCIÊNCIA

Lamentavelmente, o processo de construção da etnia não
deixa marcas reconhecíveis senão nos registros de um grupo tão
exótico e ambíguo como os letrados. Esses, por duas razões,
além de poucos e raros, são fanaticamente identificados seja
com a etnia do colonizador português, seja com sua variante luso-jesuítica.

Preciosos, nesse sentido, são os comentários já referidos
de Nóbrega e Anchieta sobre João Ramalho. Mais expressivos ainda
são os textos de Gregório de Matos ( 1633-96 ), um dos primeiros
intelectuais brasileiros, que se pôs, na Bahia, a zombar gostosamente
de toda a gente daquela cidade nova e exótica ainda em ser. Sobre a
nobreza da Bahia, ele nos diz: “A cada canto um grande conselheiro, Que
nos quer governar a cabana, e vinha, Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro (Matos Guerra 1990:33 ).” Sobre os mestiços:
“Que é fidalgo nos ossos, cremos nós, que nisto consistia
o mor brasão […] daqueles que comiam seus avós (Matos Guerra
1990:637 ).”

Mostrando uma Bahia já cheia de negros e mulatos, Gregório
deixa um registro precioso de como eles eram vistos pelos brancos: “Não
sei, para que é nascer neste Brasil empestado um homem branco, e honrado
sem outra raça.

Terra tão grosseira, e crassa, que a ninguém se tem respeito
salvo quem mostra algum jeito de ser Mulato (Matos Guerra 1990:1164 ).”
O mundo multirracial da Bahia surge inteiro nessas estrofes de Gregório:

“Xinga-te o negro, o branco te pragueja; E a ti nada te aleija: E por
teu sem sabor e pouca graça, És fábula do lar, rizo da
praça.

Ah! Que a balla, que o braço te levára, Venha segunda vez
levar-te a cara! (Matos Guerra 1946:79 ).” Devemos também a ele
uma referência expressa aos mamelucos, ao retratar o governador da Bahia:
“Pariu a seu tempo um cuco, Um monstro, digo, inhumano, Que no bico era
tocano, E no sangue mamaluco […] Lhe veio, sem ser rogado Um troço
de fidalguia, Pedestre cavallaria, Toda de bico furado. […] Antes de se
pôr em pé, E antes de estar de vez, Não falava portuguez,
Mas dizia o seu cobé. […] Pagâmos, que é homem branco,
Racional como um calháo; Mamaluco em quarto gráo E maligno desde
o tronco. […] (Matos Guerra 1946:80-3 ).” Sobre os fidalgos da Bahia,
Gregório de Matos se rola de rir, mas também sofre porque os
versos transcritos a seguir lhe custaram a deportação para Angola.

“Um calção de pindoba a meia zorra; Camiza de urucu;
matéo de arara, Em logar de cotó, arco e tacoara; Penacho de
guarás, em vez de gorra; Furado o beiço, sem temer que morra
O pai, que lhe envarou com uma titára; Sendo a mãe a que a pedra
lhe aplicára Por reprimir-lhe o sangue, que não corra.

Alarve sem razão, bruto sem fé: Sem mais lei que a do gosto;
e quando erra, De fauno se tornou em abaeté.

Não sei como acabou, nem em que guerra: Só sei que deste Adão
de Maçapé, Uns fidalgos procedem desta terra (Matos Guerra 1946:148
).”

O melhor testemunho daqueles tempos se deve a frei Vicente do Salvador,
natural da Bahia. Foi o primeiro intelectual assumido como inteligência
do povo nascente, capaz de olhar nosso mundo e os mundos dos outros com olhos
nossos, solidário com nossa gente, sem dúvidas sobre nossa identidade,
e até com a ponta de orgulho que corresponde a uma consciência
crítica. A quase todos os escribas de depois, até hoje em dia,
faltam essas qualidades de amor à terra, que faz de nós um povo
descabeçado por falta de intelectualidade própria, nativista,
que iluminaria a visão do nosso povo entre os povos diante do nosso
destino.

Doutor em Coimbra, frade franciscano, frei Vicente ajudou a construir o
convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, e chegou a vigário-geral
de Salvador, numa carreira de grandes êxitos. Em 1627, deu por concluída
a sua História do Brasil dizendo: “Sou de 63 anos e já
é tempo de tratar só de minha vida e não das alheias”.

Vive dez anos mais na esperança de ver sua obra publicada, o que
só sucederia em 1888, numa primeira edição parcial de
Capistrano de Abreu, de excelente qualidade.

Nisso Portugal jamais falhou. Calava todas as vozes que falassem do Brasil,
principalmente as louvandeiras.

O frei devia ser homem de boa comicidade, pelo menos escrevia com muito
bom humor. Conta que seu pai foi salvo de um naufrágio quando vinha
para o Brasil fugindo da madrasta. Do governador Mem de Sá, matador
e fustigador de índios, revela que “morreu gozoso”

de suas vitórias. De Duarte Coelho, fundador de Pernambuco, único
donatário eficiente, conta que, voltando à metrópole,
“lá morreu, desgostoso por haver el-rei recebido com remoques
e pouca graça”. Acresce, ainda, à crônica colonial,
a notícia de que o poderoso Tomé de Souza, que esperou anos,
impaciente, a licença para voltar ao reino, ao recebê-la, teria
dito: “Verdade, é que eu desejava muito e me crescia a água
na boca quando cuidava em ir para Portugal. Mas não sei que é
que agora me seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso”
(Salvador 1982:18 ).

Mas frei Vicente também faz justiça. Por exemplo: de A1buquerque,
além de louvar a valentia sem paralelo, acresce que foi “sempre
muito limpo de mãos”, coisa rara, louvável até hoje,
entre nós.

Seu juízo sobre os colonos não é lisonjeiro. Para o
frei, os portugueses “não sabem povoar nem aproveitar as terras
que conquistaram”. E são muito ingratos “porque os serviços
no Brasil raramente se pagam”.

Em certos passos, nosso frei chega á queixar-se. É o que faz,
por exemplo, reclamando o descaso do rei por nós. Tamanho, que preferiu
ser senhor da Guiné que do Brasil.

Dos povoadores, ele nos diz ainda que, “por mais arraigados que na
terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se
as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe houveram
de ensinar a dizer como aos papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam
é: `papagaio real para Portugal’, porque tudo querem para lá;
uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários,
só para a desfrutarem e a deixarem destruída” (Salvador
1982:57-8 ). Sua história é em grande parte uma crônica
testemunhal. Além de viver meio século com olhos de ver tudo
o que sucedia a seu redor, ouviu numerosos velhos que podiam contar de experiência
própria o que sucedeu em eras anteriores.

Gaba nossos rios, suas matas de cedros, vinháticos e outros paus,
tantíssimos, que dão cipós de atar cercas e casas, estopas
de calafetar, caibros de entelhar e imensos madeiros escavados pelos índios
para fazer canoas de dez palmos de boca que comportavam vinte remeiros de
cada lado.

Ainda que sucinto, nosso frei se derrama também na apresentação
das resinas milagrosas, dos bálsamos medicinais, dos óleos cheirosos.
Encanta-se com o fruto de árvores possantes, como a massaranduba, mais
ainda com o jenipapo, cujo suco, tão aguado, tingia os índios
de negro por semanas. Agrada-se imensamente dos cajus e dos ananases. Os feijões
são incomparavelmente melhores que os do Reino. Até da sensitiva
dá notícia, com sua capacidade de encolher-se ao menor toque.
No capítulo dos mantimentos, gaba, principalmente, a mandioca e o aipim.

Falando dos bichos, nos apresenta os porcos do mato, capivaras, antas, tamanduás
comedores de formigas, onças capazes de derrubar e comer touros, raposas,
as variedades de macacos, e fala até de cobras. Relata inclusive o
mau hábito de uma delas. É o caso de uma dona de Pernambuco
“que estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em os peitos,
o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança e, depois
que conheceu o engano, o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte
e a matou” (Salvador 1982:72 ).

Saiu daí para os bichos-de-pé, piolhos e percevejos. Às
vezes exagera, quando fala por exemplo de homens marinhos que foram vistos
sair d’água atrás de índios para comer seus olhos e narizes.
Fala, copiosamente, dos peixes, mexilhões, caranguejos, e sobretudo
dos goiamuns azuis que, às primeiras chuvas, saem de suas tocas e vão
metendo-se nas casas.

Sua descrição dos índios é sumária, mas
chega a notar que “nem têm rei que lha dê e a quem obedeçam,
senão é um capitão, mais para a guerra que pera paz”
(Salvador 1982:78 ). Comenta, também, a saudação lacrimosa
com que os índios Tupi recebiam visitantes queridos, inclusive os portugueses
que falavam sua língua. Os recebiam chorando muito e lamentando “[…] a pouca ventura que seus avós e os mais antepassados tiveram que não
alcançaram gente tão valerosa como são os portugueses,
que são senhores de todas as coisas boas que trazem à terra,
de que eles dantes careciam e agora as têm com tanta abundância,
como são machados, foices, anzóis, facas, tesouras, espelhos,
pentes e roupas, porque antigamente roçavam os matos com cunhas de
pedra e gastavam muitos dias em cortar uma árvore, pescavam com uns
espinhos, faziam o cabelo e as unhas com pedras agudas, e quando se queriam
enfeitar faziam de um alguidar de água espelho, e que desta maneira
viviam mui trabalhados, porém agora fazem suas lavouras e todas as
mais coisas com muito descanso, pelo que os devem ter em muita estima (Salvador
1982:79 ).” Uma notícia importante é a de que um prisioneiro
de guerra, destinado a ser comido, valia um machado ou uma foice de resgate
com os portugueses. Como esses bens se tornaram rapidamente indispensáveis,
é de se supor a enorme quantidade de índios que foram salvos
assim do moquém para se perderem no cativeiro.

Malicioso, o frei se consente até em falar mal de Anchieta, relatando
um episódio vexatório nojustiçamento de um calvinista
francês. Ele nos diz: “Vendo ser o algoz pouco destro em seu ofício,
e que se detinha em dar a morte ao réu e com isso o angustiava e punha
em perigo de renegar a verdade que já tinha confessada, repreendeu
o algoz e o industriou pera que fizesse com presteza o seu ofício”.
E acrescenta, judicioso: “Casos como este são mais pera admirar
que pera imitar” (Salvador 1982:167 ).

Nosso frei antecipou de séculos um sentimento de brasilidade que
só iria amadurecer expressamente com os companheiros de Tiradentes,
que falam de brasileiros como designação política do
povo que eles queriam alçar.

Também o movimento nativista do século passado, identificado
como indianismo, foi uma assunção da qualidade de nativos não
portugueses que se achavam muito melhores do que os lusitanos. Muito se fala
de identidade em termos psicologísticos e filosóficos que pouco
acrescentam ao fato concreto e visível: é o surgimento do brasileiro,
construído por si mesmo, já plenamente ciente de que era uma
gente nova e única, se não hostil pelo menos desconfiada de
todas as outras.

3 BAGOS E VENTRES DESINDIANIZAÇÃO

Não contando com séries estatísticas confiáveis
para o passado – se não as temos nem no presente -, faremos uso aqui,
vastamente, do que eu chamo demografia hipotética. Vale dizer, séries
históricas compostas com base nos poucos dados concretos e completadas
com o que parece verossímil.

É de todo provável que alcançasse, ou pouco excedesse,
a cinco milhões o total da população indígena
brasileira quando da invasão. Seria, em todo o caso, muito maior do
que supõem as avaliações correntes, conforme demonstram
estudos de demografia histórica (Borah 1962,1964; Dobbyns e Thompson
1966 ). Baseados em análises da documentação disponível,
realizadas à luz de novos critérios, esses estudos multiplicaram
os antigos cálculos da população indígena original
das Américas.

Havia, tanto do lado português como do espanhol, uma tendência
evidente dos estudiosos para minimizar a população indígena
original. Seja por crer que houvesse exagero nas fontes primárias dos
cronistas, que efetivamente viram os índios com seu próprios
olhos, o que era um absurdo. Seja pela tendência prevalecente por muito
tempo – e ainda hoje perceptível – de dignificar o papel dos
conquistadores e colonizadores, ocultando o peso do seu impacto genocida sobre
as populações americanas, o que é mais absurdo ainda.
Não existem, ainda, estudos elaborados à luz dessa nova perspectiva
para reavaliar a população indígena original do território
brasileiro, paraguaio e do rio da Prata. Mas ela seria, certamente, superior
aos cálculos indiretos aparentemente mais bem fundamentados, como o
de Julian Steward ( 1949:666 ), que a estimou em 1 milhão e pouco;
Lugon ( 1968 ), que elevou este número a 3 milhões e Hemming
( 1978:487- 501 ), que o reduziu a 2,4 milhões.

O número de referência que utilizamos para toda a área
(5 milhões) deverá, por conseguinte, ser visto com reserva até
que contemos com estudos diretos sobre o tema, com base na documentação
disponível, de acordo com a nova metodologia da demografia histórica.
Trata-se, sem dúvida, de um número elevado, mesmo em comparação
com a população portuguesa de 1500, que pouco excedia a 1 milhão
de habitantes.

Entretanto, nossa avaliação da população indígena
original do Brasil não deve ser exagerada, porque ela é coerente
com as fontes primárias e, na hora de fixá-la, levamos em conta
as taxas da depopulação tribal que se segue ao primeiro século
de contato. Com efeito, os numerosos casos concretos que conhecemos diretamente
de depopulação resultante dos primeiros contatos (Ribeiro 1970:261
) confirmam as taxas dos estudos demográficos referidos, que é
da ordem de 25 por um. Esse cálculo se baseia, fundamentalmente, no
desmoronamento da população mexicana logo após a conquista,
que caiu de 25,3 milhões para 1 milhão entre 1519 e 1605 (Cook
e Borah 1957 ). Isso significa que os 100 mil indígenas brasileiros
que alcançaram a primeira metade do presente século seriam,
originalmente, ao menos 2,5 milhões. Como, entretanto, consideramos,
por um lado, uma área que inclui os territórios do Paraguai
e do Uruguai, muito populosos e, por outro lado, um período de quatro
séculos, no curso do qual foram extintos muitos grupos indígenas,
é de se supor que a população indígena original
tenha sido, de fato, muito maior, provavelmente o dobro, o que nos leva à
cifra com que trabalhamos.

Seguindo esse raciocínio, supomos que aqueles 5 milhões de
indígenas de 1500 se teriam reduzido a 4 milhões um século
depois, com a dizimação pelas epidemias das populações
do litoral atlântico, que sofreram o primeiro impacto da civilização
pela contaminação das tribos do interior com as pestes trazidas
pelo europeu e pela guerra. No segundo século, de 1600 a 1700, prossegue
a depopulação provocada pelas epidemias e pelo desgaste no trabalho
escravo, bem como o extermínio na guerra, reduzindo-se a população
indígena de 4 para 2 milhões.

Assim foi, então, o desgaste das tribos isoladas qué viviam
nas áreas de colonização recente e, sobretudo, na região
Sul, onde os mamelucos paulistas liquidaram as enormes concentrações
de índios Guarani das missões jesuíticas. É provável
que naquele século se tenham escravizado mais de 300 mil índios,
levados para São Paulo e vendidos na Bahia e em Pernambuco (Simonsen
1937 ). Essa captura de escravos se fazia, também, por intermédio
de muitíssimos índios cativos, aliciados nas bandeiras.

A proporção de índios para “brancos” nas
bandeiras foi de setecentos para duzentos na de Cristóvão de
Barros e de novecentos para 150 na de Antônio Dias Adorno, em 1574;
e de mil para duzentos na bandeira de Raposo Tavares às reduções
jesuíticas em Itatins ( 1648 ). O próprio Nassau mandou contra
Palmares, em 1645, uma expedição com setecentos índios
e cem mulatos para trezentos soldados holandeses, que aliás fracassou.
Os Palmares foram destruídos meio século depois por homens de
Jorge Velho, que seguiu do Piauí para combater, primeiro, os índios
Janduí ( 1688 ) e, depois, Palmares ( 1694 ) com uma tropa de 1300
índios para 150 “brancos”. Foi também de índios
o grosso das forças com que os portugueses lutaram contra os franceses
na Guanabara e, mais tarde, no Maranhão, assim como contra os holandeses,
na Paraíba.

No terceiro século, de 1700 a 1800, se teria gasto – conforme a bizarra
expressão dos cronistas coloniais – outro milhão, principalmente
no Maranhão, no Pará e no Amazonas, reduzindo-se o montante
de índios isolados de 2 para 1 milhão. Esse último milhão
vem minguando, desde então, com a ocupação de vastas
áreas florestais, paulatinamente exploradas, em Minas Gerais, São
Paulo, Paraná e Santa Catarina, e com a abertura de amplas frentes
de expansão no Brasil central e na Amazônia.

Em cada século e em cada região, tribos indígenas virgens
de contato e indenes de contágio foram experimentando, sucessivamente,
os impactos das principais compulsões e pestes da civilização,
e sofreram perdas em seu montante demográfico de quejamais se recuperaram.
O efeito dizimador das enfermidades desconhecidas, somado ao engajamento compulsório
da força de trabalho e ao da deculturação, conduziram
a maior parte dos grupos indígenas à completa extinção.
Em muitos casos, porém, sobrevive um remanescente que, via de regra,
corresponde àquela proporção de um por 25 da população
original. A partir desse mínirrro é que voltou a crescer lentissimamente.

Conforme se vê, a população original do Brasil foi drasticamente
reduzida por um genocídio de projeções espantosas, que
se deu através da guerra de extermínio, do desgaste no trabalho
escravo e da virulência das novas enfermidades que os achacaram. A ele
se seguiu um etnocídio igualmente dizimador, que atuou através
da esmoralização pela catequese; da pressão dos fazendeiros
que iam se apropriando de suas terras; do fracasso de suas próprias
tentativas de encontrar um lugar e um papel no mundo dos “brancos”.
Ao genocídio e ao etnocídio se somam guerras de extermínio,
autorizadas pela Coroa contra índios considerados hostis, como os do
vale do rio Doce e do Itajaí. Desalojaram e destruíram grande
número deles. Apesar de tudo, espantosamente, sobreviveram algumas
tribos indígenas ilhadas na massa crescente da população
iural brasileira. Esses são os indígenas que se integram à
sociedade nacional, como parcela remanescente da população original.

Já assinalamos que essa integração não corresponde
a uma assimilação que os converta em membros indiferenciados
da etnia brasileira. Significa, tão-somente, a fixação
de um modus vivendi precaríssimo através do qual transitam da
condição de índios específicos, com sua raça
e cultura peculiares, à de índios genéricos. Esses, ainda
que crescentemente mestiçados e aculturados, permanecem sempre “indígenas”
na qualidade de alternos dos “brasileiros”, porque se vêem
e se sofrem como índios e assim também são vistos e tratados
pela gente com que estão em contato.

Existe uma copiosíssima documentação, que vem do primeiro
século, sobre esses índios genéricos concentrados em
suas aldeias, algumas autônomas, outras administradas por missões
religiosas ou por serviços oficiais de proteção. Neles
sobrevivem por décadas, ou por séculos, sempre inassimilados,
os remanescentes da hecatombe que sofreram com o impacto da civilização.
Sempre irredutivelmente indígenas frente aos brasileiros. Não
encontra nenhuma base nos fatos, conforme se vê, a idéia de que
os índios, através de processos de aculturação,
amadureçam para a civilização.

A historieta clássica, tão querida dos historiadores, segundo
a qual os índios foram amadurecendo para a civilização
de forma que cada aldeia foi se convertendo em vila, é absolutamente
inautêntica. O estudo que realizamos para a unresco, esperançosos
de apresentar o Brasil como um país por excelência assimilacionista,
demonstrou precisamente o contrário. O índio é irredutível
em sua identificação étnica, tal como ocorre com o cigano
ou com o judeu. Mais perseguiçã0 só os afunda mais convictamente
dentro de si mesmos. Tal não conseguem os serviços oficiais
de proteção, geralmente entregues a missionários, e também
não conseguem esses últimos. Povos há, como os Bororo,
por exemplo, com mais de século e meio de vida catequética,
que permanecem Bororo, pouco alterados pela ação missionária;
ou os Guarani, com mais de quatro séculos de contato e dominação.

Algum êxito alcançam missões muito atrasadas, como os
salesianos do rio Negro, que, empenhados em ocidentalizar e catequizar os
índios daquela área, juntaram as crianças de tribos diferentes
nas mesmas escolas, preenchendo assim a condição essencial para
desindianizar os índios, que é a ruptura das relações
da velha transmissão de pais a filhos. O que alcançaram não
foram italianinhos, mas moças e rapazcs marginalizados, que não
sabiam ser índios nem civilizados, e lá vivem em vil tristeza.

A incorporação de indígenas à população
brasileira só se faz no plano biológico e mediante o processo,tantas
vezes referido, de gestação dos mamelucos, filhos do dominador
com mulheres desgarradas de sua tribo, que se identificavam com o pai e se
somavam ao grupo paterno. Por essa via, através dos séculos,
a mulher indígena veio plasmando o povo brasileiro em seu papel de
principal geratriz étnica. Numa sociedade com carência principalmente
de mulheres, os índios e negros aliciados como escravos raramente conseguem
uma companheira. Saint-Hilaire, falando da região do Rio Grande do
Sul, observa que os índios escravizados “se inutilizam para o
povoamento do solo, visto como longe de suas terras não encontram mulheres
com quem pudessem casar” (Saint-Hilaire 1939 ).

Na primeira década deste século, a situação
indígena brasileira era altamente conflitiva. Missionários se
apropriavam das terras dos índios que catequizavam e as estavam loteando,
com grande revolta dos índios. Vastas áreas entregues à
colonização estrangeira, principalmente alemã, viviam
convulsionadas por bugreiros pagos pelos colonos para limpar suas terras do
incômodo “invasor”. O próprio diretor do Museu Paulista
e eminente cientista pediu ao governo que optasse entre a selvageria e a civilização.
Se seu propósito era civilizar o país, cumpria abrir guerras
de extermínio com tropas oficiais para resolver o problema.

Nessa situação é que se levanta o principal dos humanistas
brasileiros, Cândido Rondon. Tendo muito mais experiência de trato
com os índios, porque havia estendido milhares de quilômetros
de linhas telegráficas em território indígena sem entrar
em conflito com eles, Rondon exigia do país respeito à sua população
original.

Seu apelo foi atendido não só pelo governo mas por dezenas
de oficiais das forças armadas e profissionais de toda a sorte, que
decidiram dedicar suas vidas à salvação dos povos indígenas.

Fundado nos princípios do positivismo de Augusto Comte, mas superando-os
largamente, Rondon e seus companheiros estabeleceram um corpo de diretrizes
que por décadas orientaram uma política indigenista oficial.
Eles afirmavam que o objetivo não podia ser exterminar ou transformar
o indígena, mas fazer dele um índio melhor, dando-lhe acesso
a ferramentas e a orientação adequada. O que cumpria fazer em
essência era assegurar aquele mínimo indispensável a cada
povo indígena, que é o direito de ser índio, mediante
a garantia de um território onde possam viver sossegados, a salvo de
ataques, e reconstituir sua vida e seus costumes. A necessidade de abrir novas
frentes de colonização tinha que ser precedida de um cuidadoso
trabalho junto aos índios.

A inovação principal de Rondon foi, porém, o estabelecimento
pioneiro do princípio, só hoje reconhecido internacionalmente,
do direito à diferença. Em lugar da fofa proclamação
da igualdade de todos os cidadãos, os rondonianos diziam que, não
sendo iguais, essa igualdade só servia para entregar os índios
a seus perseguidores. O que cumpria era fixar as normas de um direito compensatório,
pelo qual os índios tinham os mesmos direitos que os brasileiros –
de ser eleitor, de fazer serviço militar, por exemplo -, mas esses
direitos não lhes podiam ser cobrados como deveres.

Curt Nimuendaju, um dos maiores etnólogos e conhecedores dos índios
do Brasil, traça o perfil do índio civilizado: “[…] mais
do que em qualquer outra parte do Brasil por mim conhecida, achei no Içana
e Uaupés as relações entre índios e civilizados
– os brancos como ali se diz – irremediavelmente estragadas: um abismo se
abriu entre os dois elementos, à primeira vista, apenas perceptível,
encoberto pelo véu de um modus vivendi arranjado pelas duas partes,
mas mostrando-se logo em toda sua profundidade intransponível, assim
que se trata de conquistar a confiança dos índios e de penetrar
no íntimo da psique deles. Claro está que a maioria dos civilizados,
não compreendendo nem precisando de nada disto, nunca chega ao conhecimento
desse abismo, dando-se por muito satisfeita com o modus vivendi e o apresentando
muitas vezes orgulhosamente como resultado dos seus processos civilizadores
(“Viagem ao rio Negro”, relatório apresentado à Inspetoria
do Amazonas do Serviço de Proteção aos Índios,
datado de setembro de 1927 in Nimuendaju 1950:173 ).” Nos idos de 1954,
trabalhando na Organização Internacional do Trabalho (OIT) para
estabelecer os direitos dos povos indígenas, o pensamento rondoniano
ali apresentado impressionou tanto a dois intelectuais indianos, que eles
pediram intérprete e almoçaram comigo, querendo notícias
desse grande brasileiro que desconheciam. Eu lhes mostrei que não havia
nenhuma relação entre Rondon e Gandhi. Eram tão-só
dois humanismos paralelos. É curioso recordar que eles quiseram saber
se eu era um juramentado. A custo entendi sua pergunta, quando disseram que
eles próprios eram juramentados da causa dos povos minoritários
e oprimidos da Índia. Ou seja, prometeram que nos dez anos posteriores
à sua formatura universitária só dedicariam seu pensamento
e suas mãos a essa causa.

O INCREMENTO PRODIGIOSO

As grandes façanhas históricas brasileiras foram a conquista
de um território continental e a construção de uma população
que ultrapassa os 150 milhões. Nenhum desses feitos foi gratuito. Portugal,
que viveu mil anos na obsessão de fronteira, temeroso de ser engolido
pela Espanha, aqui, desde a primeira hora, tratou de marcar e alargar as bases
de suas posses territoriais. Plantou fortalezas a mil léguas de qualquer
outro povoador. Manteve pela guena, por séculos, pontos de fixação
de suas lindes, como a Colônia do Sacramento.

A construção da população se não se fez
como um propósito deliberado, foi resultante de uma política
demográfica espontaneísta de que resultou tanto a depopulação
de milhões de trabalhadores como o incremento de outros milhões.

No plano genésico, a população brasileira se constrói
simultaneamente pela dizimação mais atroz e pelo incremento
mais prodigioso. Utilizando largamente a imensa disponibilidade de ventres
de mulheres indígenas escravizadas, o incremento da população
mestiça foi nada menos que miraculoso.

Em 1584, o padre José de Anchieta avaliava a população
do Brasil em 57 mil almas, sendo 25 mil brancos da terra quer dizer, principalmente
mestiços de portugueses com índias -, 18 mil índios e
14 mil negros. O número seria muito maior se a avaliação
se referisse à área ocupada hoje pelo Brasil. E, sobretudo,
se incluísse os índios que, embora vivendo autonomamente, já
estavam em interação permanente com a sociedade nascente, avaliáveis
em pelo menos 200 mil. Anchieta, porém, só se referia à
população incorporada ao empreendimento colonial, que ocuparia,
naquela época, não mais de 15 mil quilômetros quadrados.

Essa população estava assentada, fundamentalmente, no Nordeste,
ocupada na economia açucareira em embrião e na exploração
do pau-de-tinta. Haveria, então, catorze vilas, sendo as principais
delas Olinda, com setecentos habitantes; a Bahia e o Rio de Janeiro, com quinhentos;
e as restantes, com uma média de quatrocentos, o que representava um
importante componente urbano articulador do empreendimento colonial.

Com base na avaliação de Anchieta e em dados de outros cronistas
contemporâneos, se pode admitir que, em 1600, a população
neobrasileira fosse de 200 mil habitantes (Capistrano de Abreu 1929:123 ).
Isto é, a população diretamente incorporada ao empreendimento
colonial, somada aos grupos indígenas que estavam em interação
direta e pacífica com os colonizadores e que representariam 120 mil.
Quanto aos contingentes não indígenas, teriam atingido cerca
de 50 mil os brancos por definição, quase todos mestiçados;
e 30 mil os negros escravos. O contingente urbano chegaria de 6 a 8 mil habitantes,
pelo crescimento das vilas, registrado por Anchieta, assim como a criação
de novos núcleos que estruturariam a ocupação de uma
área de 30 mil quilômetros quadrados.

Celso Furtado ( 1959 ) calcula que funcionariam, então,120 engenhos
de açúcar, e que o rebanho bovino atingiria, já, 680
mil cabeças. A produção anual de açúcar
teria alcançado 2 milhões de arrobas, cujo valor seria de 2,5
milhões de libras esterlinas daquele tempo. Como ele assinala, uma
renda tão extraordinariamente alta fazia do empreendimento colonial
português a empresa mais próspera da época. E, por isso
mesmo, a mais cobiçada por holandeses e franceses, que passariam, desde
então, a disputar sua posse.

O balanço demográflco deste primeiro século de ocupação
nos dá, como principal resultado, a dizimação de 1 milhão
de índios, mortos principalmente pelas epidemias que grassavam na costa,
atingindo logo o interior; no cativeiro das missões e nas guerras.
Simultaneamente, o índio e suas crias mestiças crescem como
uma virulência.

Em 1700, a população neobrasileira teria atingido uns 500
mil habitantes, dos quais 200 mil representados por indígenas integrados
ao sistema colonial, e havia dobrado sua área de ocupação.
Os negros seriam, talvez, 150 mil, concentrados principalmente nos engenhos
de açúcar, mas também nas zonas recentemente abertas
à mineração.

Uma parcela deles se refugiava em quilombos, para além das fronteiras
da civilização, mas Palmares, o principal núcleo, que
chegara a reunir 30 mil negros, acabava de ser destruído. A população
“branca”, que seria de 150 mil habitantes, formada majoritariamente
por mestiços de pais europeus e mães indígenas, falava
principalmente o nheengatu como língua materna. Contrasta cruamente
com esta parcela de brasilíndios um número ponderável
de mulatos originados por diversos cruzamentos – o banda forra (branco com
negro), o salta-atrás (mameluco com negro), o terceirão (recruzado
do branco com o mulato) – que, sendo muito aculturados e falando português,
ajudariam daí em diante o colonizador a impor-se culturalmente aos
mamelucos.

Tabela I BRASIL 1500 -1800

Crescimento da população integrada no empreendimento colonial
e diminuição dos contingentes aborígines autônomos:
1500 – “Brancos” do Brasil – 0; Escravos – 0; Índios
“integrados” – 0; Índios isolados – 5.000.000;
Total – 5.000.000 1600 – “Brancos” do Brasil – 50.000;
Escravos – 30.000; Índios “integrados” – 120.000;
Índios isolados – 4.000.000; Total – 4.200.000 1700 – “Brancos”
do Brasil – 150.000; Escravos – 150.000; Índios “integrados”
– 200.000; Índios isolados – 2.000.000; Total – 2.500.000
1800 – “Brancos” do Brasil – 2.000.000; Escravos – 1.500.000;
Índios “integrados” – 500.000; Índios isolados
– 1.000.000; Total – 5.000.000 A economia estava concentrada fundamentalmente
na produção açucareira, que liderava as exportações;
na criação de gado, que teria alcançado um rebanho de
1,5 milhão de cabeças e assumira certa importância como
fonte de exportação de couros; nas lavouras de tabaco, que também
se converteriam em um importante artigo de exportação, principalmente
para custear a importação de escravos africanos. A produção
de ouro dos veios recém-descobertos surgia com extraordinário
vigor e estava destinada a constituir-se, nas décadas seguintes, no
setor mais dinâmico da economia. Como tal, atrairia para as zonas auríferas
do centro do país grandes contingentes populacionais de brancos, vindos
do reino e das áreas de antiga ocupação, e, sobretudo,
de negros transladados dos engenhos ou diretamente importados da África.

Com efeito, a mineração de ouro ( 1701-80 ) e, depois, a de
diamante ( 1740-1828 ) vieram alterar substancialmente o aspecto rural e desarticulado
dos primeiros núcleos coloniais. Sua primeira conseqüência
foi atrair rapidamente uma nova população – mais de 300 mil
pessoas, nos sessenta primeiros anos – para uma área do interior, anteriormente
inexplorada, incorporando os territórios de Minas Gerais, Goiás
e Mato Grosso à vida e à economia da colônia.

Para avaliar a importância da atividade mineradora, é suficiente
considerar que teria produzido, em ouro, cerca de mil toneladas e, em diamante,
3 milhões de quilates, cujo valor total corresponde a 200 milhões
de libras esterlinas, o equivalente a mais da metade das exportações
de metais preciosos das Américas.

A região aurífera foi objeto da maior disputa que se deu no
Brasil. De um lado, os paulistas, que haviam feito a descoberta e reivindicavam
o privilégio de sua exploração. De outro lado, os baianos,
que, havendo chegado antes à região com seus rebanhos de gado,
tinham tido o cuidado de registrar suas propriedades territoriais – um certo
Guedes, tabelião da Bahia, registrou para si mesmo um fazendão
que ia da Bahia até o meio de Minas Gerais. A guerra entre os disputantes
agravou enormemente a violência, com traições, assassinatos
e roubos. Um pai mandou enforcar seu filho; um filho largou seu pai dentro
de um esquife maciço no rio das Velhas, rezando para que ele chegasse
ao mar e a Portugal.

Mas seu impacto foi muito maior. O Rio de Janeiro nasce e cresce como o
porto das minas. O Rio Grande do Sul e até a Argentina, provedores
de mulas, se atam a Minas, bem como o patronato e boa parte da escravaria
do Nordeste. Tudo isso fez de Minas o nó que atou o Brasil e fez dele
uma coisa só.

As terras eram tão ricas em ouro e tamanha era a sofreguidão
por alcançá-lo que os senhores venderam seus escravos a si mesmos
quando esses, além da produção ordinária, produziam
excedentes. Assim é que surgiram alguns bizarros nababos negros. Espantosa
também foi a fome de gente que comprava uma galinha por seu peso em
ouro.

Décadas de política habilidosa de delações e
subornos tranqüilizaram, afinal, a área, aquietando o gentio mineiro.
Não antes que quase tudo se perdesse para Portugal num complô
entre os mineiros e o governo norte-americano, regido pelos mais inverossímeis
subversivos, poetas, magistrados, militares, curas etc. O complô acabou
sendo abafado, enforcando e esquartejando o herói maior para escarmentar
o povo e deixando os outros conspiradores apodrecerem exilados na África.

Ali, em Ouro Preto e arredores, quando o ouro já não era tanto,
se viu florescer a mais alta expressão da civilização
brasileira. Com figuras extraordinárias de artistas, como Aleijadinho;
de poetas, como Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa. Releve, mas não
resisto à tentação de dar à sua leitura o capítulo
“Cal” de meu romance da mineiridade: Migo.

Vendo estas Minas tão mofinas, quem diria, desatinado, que escarmentado,
somos o povo destinado? Somos o tiôio povo dos heróis assinalados.
Eles aí estão, há séculos, a nos cobrar amor à
liberdade. Filipe grita, Joaquim José responde: – Libertas quae sera
tamen.

– Liberdade, aqui e agora. Já! A Filipe, esquartejado, como é
que o acabaram? Os cavalos mais fortes dos brasis lá estavam: mordendo
os freios, escumando, escoiceando na praça empedrada. Eram quatro.
Um cavalo foi atrelado no seu braço esquerdo. Outro cavalo, na perna
direita.

O terceiro cavalo, no braço direito. O último cavalo, na perna
esquerda. Cada cavalo, montado por um tropeiro encouraçado.

Açoitados, esporeados, os quatro cavalos dispararam, cada qual para
seu Iado. Mas lá ficaram parados, tirando faíscas com as ferraduras
no pedral, atados que estavam na carne rija de Filipe. Chicoteados, esporeados
de sangrar, afinal, com Filipe estraçalhado, partiu libertado o cavalo
do braço direito, levando com o braço um pedaço do peito.
Rápidos, instantâneos, os outros três cavalos dispararam,
despedaçando Filipe, cada qual com seu pedaço.

O que fizeram quando os cavalos suados já longe, pararam, cumprida
a ordem hedionda? Lá se foram, arrastando seus quartos pelas estradas,
para o monturo de um antigo cascalhal. Lá no buraco preto, já
pelo meio de cal, jogaram o que restava das carnes e ossos do herói
e mais cal lançaram por cima. Filipe ferveu nas carnes parcas sua morte
derradeira. Para todo o sempre, mataram Filipe. Mataram tão matado
que para todo o sempre será ele lembrado.

Meio século correu com o povo agachado até chegar a hora e
a vez de outro assinalado. O destino caiu, coroou desta vez a cabeça
de Joaquim José, condenado pela Rainha Louca a morrer morte natural
na forca, ser esquartejado e exposto para escarmento do povo. Despedaçado,
lá ficaram suas partes apodrecendo, até que o tempo as consuma
como queria dona Maria. Os quatro quartos plantados fedendo, na Estrada Real.
A cabeça com a cabeleira e a barba, bastas, alçada num poste
alto, em Ouro Preto, guardada por famintos urubus asas de ferro, bicos agudos:
tenazes. Estes foram, só eles, seus coveiros. Acabado assim tão
acabado, sem ao menos a caridade de cal virgem, Tiradentes não se acabou
nem se acaba. Prossegue em nós, latejando.

Pelos séculos continuará clamando na carne dos netos de nossos
netos, cobrando de cada qual sua dignidade, seu amor à liberdade.

As barba.s. As barbas. As barbas.

Aqui permanecerão À espera doutra cara e doutra vergonha.

Estes são nossos heróis assinalados, símbolos de uma
grandeza recôndita que havia.

Ainda há, eu quero crer, mais rara que os outros, por garimpar.

Maior que eles dois, porém, é a multidão que vou chamar.
Veja: – Venham, eu os convoco, venham todos. Venham aqui dizer da dor dos
nervos dilacerados, do cansaço dos músculos esgotados. Venham
todos, com suas tristes caras, com suas murchas ilusões, venham vestidos
ou nus, tal como foram enterrados, se foram.

Venham morrer aqui de novo suas miúdas mortes inglórias.

Venha primeiro você, você mineiro anônimo que furtou o
crânio de Tiradentes, rezou por sua alma e o sepultou. Mas venham todos!
Você os vê? Foram milhões de almas vestidas de corpos mortais,
doídos, os que aqui nessas Minas se gastaram. Olhe de novo pra eles,
olhe bem. Veja só. No princípio eram principalmente índios
nativos e uns poucos brancarrões importados.

Depois, principalmente negros, vindos de longe, africanos. Mas logo, logo,
veja só: eram já multidões de mestiços, crioulos,
daqui mesmo.

Esses milhões de gentes tantas são as mulas desta gueena de
lavar cascalhais. Vê você como eles todos nos olham, olhos baixos,
temerosos, perguntando calados: – Quem somos nós? Existimos, para quê?
Por quê? Para nada? Somos o povo dos heróis assinalados, mas
somos mesmo é o povo dessas multidões medonhas de gentes, enganadas
e gastadas. O povo escarmentado na carne e na alma.

Somos o povo que viu e que vê. O povo que vigia e espera.

Minas estelar, páramo, mãe do ferro, mãe do ouro e
do azougue. Mãe mineral, fulgor sulfúrico. Minas sideral, lusa
quina de rocha viva enterrada além-mar.

Minas antiga, cruel satrápia do fel e da agonia, sou eu que te peço:
ponha um final nesta agonia: relampeia. Relampeia agora, peça a morte.
Morra! Morra e renasça.

Rolem pedras saltadas do mar petrificado; rolem, arrombem o subterrâneo
paredão de granito que aprisiona o povo e o tempo, escravizando, sangrando,
esfomeando, assassinando.

Minas, árvore alta. Minas de sangue, de lágrima, de cólera.
Minas, mãe dos homens.

Minas do esperma, do milho, da pétala, da pá, da dinamite.
Minas carnal da flor e da semente. Minas mãe da dor, mãe da
vergonha. Minas, minha mãe crepuscular.

Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
(Ribeiro 1988:376-8 ).

Nossa glória maior como povo é eles terem existido e se expressado
de forma tão alta. Eles são nossa glória. Suas obras,
na forma de magnífica arquitetura e escultura, de música erudita
da mais alta qualidade, de poemas e livros, são nosso orgulho.

Essa explosão de prosperidade teria múltiplas conseqüências.
Entre outras, a de interiorizar o esforço colonizador que, até
então – antes das incursões dos bandeirantes -, havia se limitado
às terras do litoral, “contentando-se em arrastar-se ao longo
da costa como caranguejos”, disse frei Vicente do Salvador. E, sobretudo,
a de começar a articular os núcleos brasileiros dispersos na
uniftcação do terntório nacional.

Até então, o Brasil era um arquipélago de implantes
coloniais, ilhados e isolados uns dos outros por distâncias de milhares
de quilômetros. Agora se criava uma rede de intercâmbio comercial
que teria enorme importância no futuro, porque dava uma base econômica
à unidade nacional.

Outro efeito do auge aurífero foi reter no interior do país
uma massa de recursos que permitiu edificar rapidamente a ampla rede urbana
das zonas de mineração, criando cidades prodigiosamente ricas
e belas. Nela e nos antigos portos, floresce, então, uma civilização
do ouro que se expressa em templos e palácios suntuosos, cuja edificação
e decoração ocuparam uma vasta mão-de-obra especializada
de artesãos e de artistas.

Os ricos brasileiros se tornaram mais ricos e mais ostentatórios,
saindo da rudeza paulistana e da mediocridade pernambucana e baiana dos dois
primeiros séculos.

Com o esgotamento das jazidas de ouro, veio a diáspora. Aquela civilizadíssima
população de negros, mulatos e mestiços se dispersou
pelas sesmarias de Minas, implantando ali modos de viver, de comer, de vestir,
de calar, de entristecer-se e até de se suicidar que são únicos
no Brasil. É a mineiridade.

Mais significativa ainda foi a influência da segunda invasão
portuguesa. De um dia para outro, quase 20 mil portugueses, fugindo das tropas
de Napoleão, aportam à Bahia e ao Rio.

O sábio rei sabia bem que seu reino prestante estava aqui. Assim
é que, vendo Portugal invadido por Napoleão, veio ter aqui,
tangendo sua mãe louca. Trouxe consigo o melhor da burocracia portuguesa.
Foi um imenso empreendimento naval em que milhares de portugueses desembestaram
para o Brasil, disputando lugares a tapa nas naus inglesas convocadas para
a operação. Sua influência foi prodigiosa.

O Brasil que nunca tivera universidades recebe de abrupto toda uma classe
dirigente competentíssima que, naturalmente, se faz pagar apropriando-se
do melhor que havia no país. Mas nos ensina a governar.

Enquanto a América hispânica se esfacela e em cada porto se
inventa uma nação pouco viável, aqui, apesar das imensas
diferenças regionais, se mantém a unidade.

Cada levante, mesmo os tisnados de republicanos, era enfrentado pelos generais
do rei, levando numa mão os canhões e na outra dragonas e decretos
de anistia. É claro que muitas dessas lutas foram tão ferozes
que obrigaram el-rei a mandar fuzilar quantidades de curas, que eram os intelectuais
rebeldes de então. Mas terminada a refrega, tudo se reconciliava.

Em 1800, a população do território brasileiro recupera
seu montante original de 5 milhões. Mas o faz com uma composição
invertida. A metade é formada, agora, por “brancos” do Brasil,
predominantemente “pardos” – quer dizer, mestiços e mulatos
-, falando principalmente o português como língua materna, e
já completamente integrados à cultura neobrasileira. Os negros
escravos somam 1,5 milhão, sendo uma terça parte deles constituída
por “crioulos” – quer dizer, negros nascidos no Brasil e amplamente
aculturados. Os remanescentes da população indígena original,
que haviam sido subjugados e estavam integrados à população
neobrasileira como força de trabalho escrava, diretamente subjugada
ou incorporada ao sistema através das missões ou das diretorias
de índios, somariam meio milhão. Para além das fronteiras
da civilização, fugindo ou resistindo à conscrição
na força de trabalho e ao avassalamento, viveria mais 1 milhão
de índios arredios e hostis, concentrando-se principalmente na Amazônia,
mas disseminados por todo o país, onde quer que uma zona de matas indevassadas
lhes proporcionasse refúgio.

O ano de 1800 representou uma virada na história brasileira. A economia
exportadora atravessava um período de declínio, o que constituía,
certamente, um desafogo para a população. Com efeito, reduzido
o ritmo da produção açucareira e superada a época
de prosperidade das explorações de ouro e diamantes, que ocupavam
os principais contingentes de trabalhadores negros e brancos, estes se dispersaram
em busca de formas autárquicas de sobrevivência. A produção
açucareira, que se debatia na crise desencadeada com a expansão
dos novos centros produtores das Antilhas, passou a contribuir com metade
do valor da exportação, que também havia diminuído
bastante. A pecuária se estendeu prodigiosamente pelos sertões
interiores e pelas pastagens sulinas. O setor mais dinâmico era, então,
o cultivo de arroz e, depois, de algodão do Maranhão, cujo principal
comprador eram as manufaturas inglesas em conflito com os produtores norte-americanos.

O resultado fundamental dos três séculos de colonização
e dos sucessivos projetos de viabilização econômica do
Brasil foi a constituição dessa população – de
5 milhões de habitantes, uma das mais numerosas das Américas
de então -, com a simultânea deculturação e transfiguração
étnica das suas diversas matrizes constitutivas. Até 1850, só
o México ( 7,7 milhões) tinha maior população
que o Brasil ( 7,2 milhões).

O produto real do processo de colonização já era, naquela
altura, a formação do povo brasileiro e sua incorporação
a uma nacionalidade étnica e economicamente integrada. Esse último
resultado parece haver sido alcançado umas décadas antes, quando
quase todos os núcleos brasileiros já se integravam em uma rede
comercial interna e esta passara a ser mais importante que o mercado externo.
Os revezes experimentados pelas diversas economias regionais de exportação
e a conseqüente queda do poderio do empresariado latifundiário
e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a oportunidade
de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse
ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação
– o café -, que viria rearticular toda a força de trabalho para
um novo modo de integração no mercado mundial e de reincorporação
dos brasileiros na condição de proletariado externo.

Bem pode ser, porém, que, mesmo sem o auge do café, aquela
reversão dos brasileiros sobre si mesmos não se cumprisse. O
Brasil, produto da expansão da economia mundial, necessitaria profundas
transformações para subsistir fora dela. As decisões
indispensáveis para isso – abolição, reforma agrária,
industrialização autônoma – excediam à capacidade
daquele segmento social existente, uma vez que, para a classe dominante, permanecia
sendo lucrativa economicamente a importação de bens manufaturados
dos centros europeus e a exportação de produtos tropicais.

Acresce, ainda, que, não existindo então modelos de reconstrução
intencional da sociedade, uma reversão puramente autonomista teria
resultado, no máximo, em uma autarquia feudal. Como em todos os casos
de feudalização, isso representaria uma ruptura do sistema mercantil,
que tornaria impraticável a escravidão porque não haveria
como adquirir novos escravos e porque os tornaria inúteis em sua função
efetiva, que é a de produtores de mercadorias. Mas condenaria a sociedade
nascente a um retrocesso histórico que a tornaria, provavelmente, incapaz
de defender para si mesma a posse do território que ocupava e de evitar
as ameaças de cair sob a regência de outra dominação
colonial direta por parte de algumas das novas potências industriais
emergentes.

Quisesse ou não, o Brasil era um componente marginal e dependente
da civilização agrário-mercantil em vias de se industrializar.
Dentro de quaisquer desses tipos de civilização, o fracasso
de uma linha de produção exportadora só incitava a descobrir
outra linha que, substituindo-a, revitalizasse a economia colonial, fortalecendo,
em conseqüência, a dependência externa e a ordenação
oligárquica interna.

ESTOQUE NEGRO

O “branco” colonizador e seus descendentes aumentavam século
após século, não pelo ingresso de novos contingentes
europeus, mas, principalmente, pela multiplicação de mestiços
e mulatos. Os negros, por sua vez, cresceram passo a passo com os brancos,
mas, ao contrário destes, só o fizeram pela introdução
anual maciça de enormes contingentes de escravos, destinados tanto
a repor os desgastados no trabalho, como a aumentar o estoque disponível
para atender a novos projetos produtivos.

Reconstituiremos a seguir esse processo biótico de consumação
dos negros e de multiplicação discreta de mulatos, que te ve
lugar simultaneamente com sua deculturação e incorporação
na sociedade e na cultura brasileiras.

Os primeiros contingentes de negros foram introduzidos no Brasil nos últimos
anos da primeira metade do século xvi, talvez em 1538. Eram pouco numerosos
porém, como se deduz pelas dificuldades que têm os historiadores
em documentar esses primeiros ingressos. Logo a seguir, entretanto, com o
desenvolvimento da economia açucareira, passam a chegar em grandes
levas. A caçada de negros na África, sua travessia e a venda
aqui passam a constituir o grande negócio dos europeus, em que imensos
capitais foram investidos e que absorveria, no futuro, pelo menos metade do
valor do açúcar e, depois, do ouro.

A Coroa permitia a cada senhor de engenho importar até 120 “peças”,
mas nunca foi limitado seu direito de comprar negros trazidos aos mercados
de escravos. Com base nessa legalidade, os concessionários reais do
tráfico negreiro tiveram um dos negócios mais sólidos
da colônia, que duraria três séculos, permitindo-lhes transladar
milhões de africanos ao Brasil e, deste modo, absorver a maior parcela
de rendimento das empresas açucareiras, auríferas, de algodão,
de tabaco, de cacau e de café, que era o custo da mão-de-obra
escrava. Se calcula em 160 milhões de libras-ouro o custo pago pela
economia brasileira para a aquisição de escravos africanos nos
trezentos anos de tráflco.

O imenso negócio escravista raramente foi objeto de reser-. Ao contrário,
se considerava meritório realizar as caçadas humanas, matando
os que resistissem, como um modo de livrar o negro do seu atraso e até
como um ato pio de aproximá-los do deus dos brancos.

As primeiras estimativas relativas à quantidade de negros introduzidos
no Brasil durante os três séculos de tráfico variam muito.
Vão desde números exageradamente altos, como 13,5 milhões
para Calógeras ( 1927 ) ou 15 milhões para Rocha Pombo ( 1905
), até cálculos muito exíguos, como 4,6 milhões
para Taunay ( 1941 ) e 3,3 milhões para Simonsen ( 1937 ).

Lamentavelmente, não há estudos demográficos criteriosamente
elaborados que permitam substituir avaliações tão desencontradas
por um cálculo bem fundado. Em um estudo de P Curtin ( 1969 ), feito
com base nos registros oficiais arquivados na Bahia, foram consignados 959.600
escravos introduzidos de 1701 a 1760, 931.800 de 1761 a 1810 e, finalmente,
1.145.400 de 1811 a 1860. Quer dizer, um total de 3.036.800, que, somado aos
180 mil prováveis ingressos anteriores, nos daria um total de 3.216.800.
A utilização de dados fiscais, como base dos cômputos,
leva a supor que estes se situam muito abaixo da cifra verdadeira. Com efeito,
não se leva em conta, na devida proporção, o contrabando
e a ocultação de contingentes escravos para evitar o pagamento
de impostos, o que faz supor que o número real bem possa se aproximar,
até, do dobro do assinalado.

Uma estimativa próxima deste número, devida a M. Buescu (
1968 ), parece mais próxima do número real de escravos introduzidos
no Brasil. Partindo do total de escravos geralmente admitido nas fontes primárias
para cada século, Buescu aplica a taxa de reposição que
supõe ser necessária para manter o volume de população
– sabendo-se que seu crescimento vegetativo era negativo – e agrega taxas
adicionais para os períodos em que aumentou a massa escrava. Como resultado
de seus cálculos, considerando uma taxa anual decrescente de reposição,
que vai de 5% no século XVI a 2% no século XIX, admite um ingresso
global de 75 mil negros para o século XVI, 452.000 para o XVII, 3.621.000
para o XVIII e 2.204.000 para o século XIX, o que soma um total de
6.352.000 escravos importados de 1540 a 1860. Esses números, de demografia
hipotética, não contam com a quantidade geralmente admitida
nas fontes primárias.

A composição da população escrava por sexo e
por idade é ainda mais difícil de ser avaliada. Só se
conta, por isso, com estimativas vagas e com algumas séries dispersas
do número de negros locais que se registraram sobretudo em Minas Gerais.
Para o total e para grandes períodos temos de extrapolar, nos contentando
com vaguedades.

A proporção geralmente admitida de homens por mulheres na
importação é de quatro para um. Alguns autores, analisando
plantéis de escravos africanos, aceitam avaliações como
162% ou 138% de homens em áreas como Pernambuco, para meados do século
passado. Dados colhidos em Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, para o
mesmo período, admitem uma população equilibrada de homens
e mulheres.

Como teriam chegado aqui tantas mulheres, que as estatísticas dos
portos não registram? Tratava-se de negrinhas roubadas que alcançavam
altos preços, às vezes o de dois mulatões, se fossem
graciosas. Eram luxos que se davam os senhores e capatazes. Produziram quantidades
de mulatas, que viveram melhores destinos nas casas-grandes. Algumas se converteram
em mucamas e até se incorporaram às famílias, como amas
de leite, tal como Gilberto Freyre descreve gostosamente.

A negra-massa, depois de servir aos senhores, provocando às vezes
ciúmes em que as senhoras lhes mandavam arrancar todos os dentes, caíam
na vida de trabalho braçal dos engenhos e das minas em igualdade com
os homens. Só a esta negra, largada e envelhecida, o negro tinha acesso
para produzir crioulos.

Foi tentador demais o desejo de montar fazendas de criação
de negros para livrar os empresários das importações.
O negócio nunca deu certo. Os negrinhos, espertíssimos, que
ali se criavam, encontravam modos de ganhar o mundo fazendo-se passar por
negros forros, o que tornava o negócio muito oneroso. Acresce que,
o moleque que não entrasse no duro trabalho do canavial muito novinho,
doze anos presumivelmente, jamais se adaptaria à dureza desse trabalho.

Um parente meu guardou a carta de um capataz que calcula bem as vantagens
relativas de usar negros cativos ou importados, optando francamente por estes
últimos como os mais rentáveis.

Dispende-se mais com estes inúteis escravos para seu vestuário,
uns pelos outros, dois covados de baeta, e seis varas de pano de algodão
que não importa menos de 2$200 cada um, e todos, 290$400, perfazendo
o sustento, e vestuário anual, 3:181$200 réis, além dos
curativos das suas doenças, que sempre se gasta mais do que quando
gozam saúde.

Esta despesa faz anualmente o engenho com a criação dos meninos,
e com os inválidos, e decrépitos por obrigação
da caridade para com uns, e outros, esperando que os meninos de quinze anos
para diante sejam trabalhadores, e supram a falta dos africanos. É
sem controvérsia que a metade dos que nascem, morrem até a idade
de dez anos, e calculando a despesa de um escravo crioulo até dar serviço,
monta 24$600 por ano, que nos quinze anos de criação vem a ficar
pela quantia de 369$000 réis, quando um africano desta mesma idade
compra-se por 150$000 réis, e eis aqui o crioulo em mais carestia,
excedendo ao africano em 219$000 réis.

Outra observação provada pela experiência, que ao duro
trabalho dos engenhos resiste mais o escravo africano, do que o crioulo, por
ser de constituição menos robusta, e de cinqilenta anos para
diante não se pode contar em linha de serviços, contando-se
aliás o africano até sessenta e cinco, uns mais, e outros menos,
o que não sucede geralmente com os crioulos, mulatos e mestiços
(Tópico de cartas do administrador na Bahia aos senhores da Casa da
Ponte em Lisboa – “Engenho da Matta, janeiro de 1818. Desconto dos escravos
incapazes do agreste trabalho do engenho” in Ribeiro Pires 1979298 ).

III – PROCESSO SOCIOCULTURAL

1 AVENTURA E ROTINA

AS GUERRAS DO BRASIL

Às vezes se diz que nossa característica essencial é
a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil
e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos
de toda a ordem dilaceraram a história brasileira, étnicos,
sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável
é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores
dos outros.

O importante, aqui, é a predominância que marca e caracteriza
cada conflito concreto. Assim, a luta dos Cabanos, contendo, embora, tensões
inter-raciais (brancos versus caboclos), ou classistas (senhores versus serviçais),
era, em essência, um conflito interétnico, porque ali uma etnia
disputava a hegemonia, querendo dar sua imagem étnica à sociedade.
O mesmo ocorre em Palmares, tida freqüentemente como uma luta classista
(escravos versus senhores) que se fez, no entanto, no enfrentamento racial,
que por vezes se exibe como seu componente principal. Também os quilombolas
queriam criar uma nova forma de vida social, oposta àquela de que eles
fugiam. Não chegaram a amadurecer como uma alternativa viável
ao poder e à regência da sociedade, mas suas lutas chegaram a
ameaçá-las.

Um terceiro exemplo é Canudos, que também mostra essas três
ordens de tensão. A classista prevalece porque os sertanejos, sublevados
pelo Conselheiro, combatiam, de fato, a ordem fazendeira, que, condenando
o povo a viver num mundo todo dividido em fazendas, os compelia a servir a
um fazendeiro ou a outro, sem jamais ter seu pé- de-chão. Em
conseqiiência, não tinham qualquer possibilidade de orientar
seu próprio trabalho para o atendimento de suas necessidades. Mas lá
estavam pulsando os conflitos raciais e outros, inclusive o religioso.

O processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo
entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi, por
conseguinte, altamente conflitivo.

Pode-se afirmar, mesmo, que vivemos praticamente em estado de guerra latente,
que, por vezes, e com freqüência, se torna cruento, sangrento.

Conflitos interétnicos existiram desde sempre, opondo as tribos indígenas
umas às outras. Mas isto se dava sem maiores conseqüências,
porque nenhuma delas tinha possibilidade de impor sua hegemonia às
demais. A situação muda completamente quando entra nesse conflito
um novo tipo de contendor, de caráter irreconciliável, que é
o dominador europeu e os novos grupos humanos que ele vai aglutinando, avassalando
e configurando como uma macroetnia expansionista.

De 1500 até hoje, esses enfrentamentos se vêm desencadeando
através de lutas armadas contra cada tribo que se defronta com a sociedade
nacional, em sua expansão inexorável pelo território
de que vai se apropriando como seu chão do mundo: a base física
de sua existência. Os Yanomami e as emoções desencontradas
que eles provocam entre os que os defendem e os que querem desalojá-los
são apenas o último episódio dessa guerra secular.

O conflito interétnico se processa no curso de um movimento secular
de sucessão ecológica entre a população original
do território e o invasor que a fustiga a fim de implantar um novo
tipo de economia e de sociedade. Trata-se, por conseguinte, de uma guerra
de extermínio. Nela, nenhuma paz é possível, senão
com um armistício provisório, porque os índios não
podem ceder no que se espera deles, que seria deixar de ser eles mesmos para
ingressar individualmente na nova sociedade, onde viveriam outra forma de
existência que não é a sua. Os seus alternos, que são
os brasileiros, não abrem mão, também, do sentimento
de que, neste terntório, não cabe outra identificação
étnica que a sua própria, que tendo sido assumida por tantos
europeus, negros e asiáticos, deveria ser aceita também pelos
índios.

Esse conflito não se dá, naturalmente, como um debate em que
cada parte apresenta seus argumentos. O brasileiro que captura um índio
para usá-lo como escravo, o faz achando que seria uma inutilidade deixá-los
vivendo à toa. O índio, repelindo sua escravização
que o coisificaria, prefere a morte à submissão. Não
por qualquer heroísmo, mas por um imperativo étnico, já
que as etnias são por natureza excludentes.

As forças que se defrontam nessas lutas não podiam ser mais
cruamente desiguais.

De um lado, sociedades tribais, estruturadas com base no parentesco e outras
formas de sociabilidade, armadas de uma profunda identificação
étnica, irmanadas por um modo de vida essencialmente solidário.
Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na conquista e dominação
de um território, cujos habitantes, qualquer que seja a sua origem,
compõem uma sociedade articulada em classes, vale dizer, antagonicamente
opostas mas imperativamente unificadas para o cumprimento de metas econômicas
socialmente irresponsáveis. A primeira das quais é a ocupação
do território. Onde quer que um contingente etnicamente estranho procure,
dentro desse território, manter seu próprio modo tradicional
de vida, ou queira criar para si um gênero autônomo de existência,
estala o conflito cruento.

Mas há, também, conflitos virulentos entre os invasores. O
mais complexo deles, quanto a suas motivações, ainda que também
remarcado por componentes classistas, racistas e étnicos, foi a longa
guerra sem quartel de colonos contra os jesuítas. Muito cedo surgiram
desentendimentos entre o projeto comunitário dos inacianos para a indiada
nativa e o processo colonial lusitano que lhes reservava o destino de mão-de-
obra de suas empresas. Surgiram assim que os padres fugiram de sua função
prevista de amansadores de índios para se arvorarem a seus protetores.

Ao longo de dois séculos e meio, os conflitos se sucederam no plano
administrativo, chegando até à deportação dos
jesuítas, primeiro, de São Paulo e, depois, do Maranhão
e Grão-Pará pelos colonos, seguida de seu retorno por ordem
da Coroa.

Também graves foram os enfrentamentos entre catecúmenos e
colonos, dos quais os padres procuravam se .esquivar, dado o seu compromisso
de realizar uma conquista espiritual, sem jamais apelar para a força.

Desde os primeiros dias de colonização o projeto jesuítico
se configurou como uma alternativa étnica que teria dado lugar a um
outro tipo de sociedade, diferente daquela que surgia na área de colonização
espanhola e portuguesa.

Estrutura-se com base na tradição solidária dos grupos
indígenas e consolida-se com os experimentos missionários de
organização comunitária, de caráter proto-socialista.

Também por isso contrastava cnzamente com o modelo que o colono ia
implantando.

Essa divergência amadureceu completamente no caso das missões
paraguaias que alcançaram um alto grau de prosperidade e autonomia.
Mas a mesma oposição ficou evidente também no Brasil,
principalmente nas regiões onde as missões se implantaram com
mais êxito, sobretudo no baixo Amazonas. Nos dois casos, acrescia, de
forma mais ameaçadora, o fato de que a língua utilizada pelos
missionários jesuítas nas suas reduções para reordenar
os índios e civilizá-los não era o português nem
o espanhol, mas o nheengatu.

A motivação de maior importância, porém, fof
a cobiça despertada nos colonos com o enriquecimento extraordinário
de algumas das Missões. Explorando as terras indígenas e sua
força de trabalho, os jesuítas começaram a funcionar
como províncias prósperas que se proviam de quase tudo, graças
ao grande número de artesãos com que contavam, e ainda produziam
excedentes, explorando drogas da mata que, juntamente com o produto de suas
lavouras e com outras produções mercantis, faziam deles uma
das forças econômicas principais do incipiente mercado colonial.

Igualmente importantes como fontes de enriquecimento foram as ricas doações
que receberam de colonos, que tudo davam, pedindo a salvação
de suas almas. Várias doações ficaram célebres,
como aquela em que a Companhia se compromete a rezar cinco missas diárias
e mais uma missa cantada semanal, até o fim do mundo, pela salvação
da alma de Garcia D’Ávila.

O vulto do patrimônio jesuítico, ao tempo do seu confisco (
1760 ), era enormíssimo. Estendia-se de norte a sul do país,
na forma de missões e concessões territoriais concedidas pela
Coroa, onde instalavam suas cinqüenta missões de catequese, cuja
base material eram engenhos de açúcar (dezessete), dezenas de
criatórios de gado, com rebanho avaliado em 150 mil reses, além
de engenhos, serrarias e muitos outros bens.

A Companhia seria também a maior proprietária urbana, pelo
número de casas nas cidades que abrigavam os colégios, os seminários,
os hospitais, os noviciados, os retiros, regidos por 649 padres e irmãos
leigos. Só na Bahia, eles possuíam 186 casas, no Rio setenta
e em São Paulo lhes restava ainda cerca de seis, e muitas mais no Maranhão,
em Recife, em Belém e por toda a parte, das quais fluíam altas
rendas de aluguel.

A cobiça que provocou tamanha riqueza era, pelo menos, proporcional
a ela, fazendo crescer a cada dia os que exigiam sua desapropriação,
com esperança de apropriar-se, eles próprios, de tantos bens.
A necessidade dessa desapropriação era defendida pela burocracia,
revoltada contra o privilégio fiscal de não pagar impostos nem
dízimos. O sonho dos burocratas e dos colonos acabou por alcançar-se
e alguns deles se locupletaram como “contemplados” com os bens dos
padres e dos próprios índios, declarados livres, mas, de fato,
submetidos ao cativeiro, tão rígido como a escravidão
dos negros.

A saída dos jesuítas das aldeias de índios, de cujo
domínio haviam sido privados pouco antes da expulsão final,
foi marcada por um açodamento mercantil descrito por Lúcio de
Azevedo: “Alfaias, imagens e paramentos, tudo os sacerdotes carregavam
em barcos, muitas vezes oculto de maneira indecorosa, entre os gêneros
de comércio, resto das grangearias de que não queriam privar
a comunidade. Onde havia gados e canoas, isso vendiam a trôco de gêneros.
E, deslizando as embarcações, de tantas partes, rio abaixo,
a chapinhar com o peso das cargas, mais pareciam voltar de predatórias
incursões, que recolher ao cenóbio de catequistas, só
ocupados na pregação do Evangelho. […] e não somente
do terreno, com produtos da cultura, senão também dos índios
que o trabalhavam, escravos no dizer do jesuíta, transmudado do antigo
altruísmo, e objurgando já agora as liberdades. Ao rei e à
rainha, em lacrimosas súplicas, recorriam os padres, por outra parte,
das violências de Mendonça, asseverando que tirar-lhes os escravos
o mesmo era que privá-los dos últimos meios de subsistência
(Azevedo 1930:325-6 ).” A guerra dos Cabanos, que assumiu tantas vezes
o caráter de um genocídio, com o objetivo de trucidar as populações
caboclas, é o exemplo mais claro de enfrentamento interétnico.
Ali se digladiam a população antiga da Amazônia, caracterizável
como neobrasileira porque já não era indígena mas aspirava
viver autonomamente para si mesma, e a estreita camada dominante, fundamentalmente
luso-brasileira, formando um projeto de existência que correspondia
à ocupação das outras áreas do país. Esse
contingente civilizatório é que, ajudado por forças vindas
de fora, enfrentou os cabanos, destruindo-os núcleo a núcleo.
Os cabanos ganharam muitas batalhas, chegaram mesmo a assumir o poder central
na região, ocupando Belém, Manaus e outras cidades, mas viviam
o antiprivilégio dramático de não poder perder batalha
alguma.

Isso é o que finalmente sucedeu e eles foram dizimados.

Outra modalidade principal de conflito é a dos enfrentamentos predominantemente
raciais. Aqui, vemos opondo-se umas às outras todas as três matrizes
da sociedade, cada uma delas armada de preconceitos raciais contra as outras
duas. Esses antagonismos alcançam caráter mais cruento no enfrentamento
dos negros, trazidos da África para serem escravos, que se vêem
condenados a lutar por sua liberdade e, mesmo depois de alcançada a
abolição, a continuar lutando contra as discriminações
humilhantes de que são vítimas, bem como contra as múltiplas
formas de preterição.

As lutas são inevitavelmente sangrentas, porque só à
força se pode impor e manter a condição de escravo. Desde
a chegada do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para
fugir da inferioridade que lhes foi imposta originalmente, e que é
mantida através de toda a sorte de opressões, dificultando extremamente
sua integração na condição de trabalhadores comuns,
iguais aos outros, ou de cidadãos com os mesmos direitos.

Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter-racial. Ali, negros
fugidos dos engenhos de açúcar ou das vilas organizam-se para
si mesmos, na forma de uma economia solidária e de uma sociedade igualitária.
Não retornam às formas africanas de vida, inteiramente inviáveis.
Voltam-se a formas novas, arcaicamente igualitárias e precocemente
socialistas. Sua destruição sendo requisito de sobrevivência
da sociedade escravista, torna esses conflitos crescentes inevitáveis,
seja para reaver escravos fugidos, seja para precaver-se contra novas fugas.

Mas também para acautelar-se contra o que poderia vir a ser uma ameaça
pior do que as invasões estrangeiras, que seria a sublevação
geral dos negros.

Uma terceira modalidade de conflitos que envolvem as populações
brasileiras é de caráter fundamentalmente classista.

Aqui se enfrentam, de um lado, os privilegiados proprietários de
terras, de bens de produção, que são predominantemente
brancos, e de outro lado, as grandes massas de trabalhadores, estas majoritariamente
mestiças ou negras.

Ainda que nas outras duas formas de conflito sempre se encontrem componentes
classistas, mesmo porque em todas elas está presente a preocupação
com o recrutamento de mão-de-obra para a produção mercantil,
em certas circunstâncias elas ganham especificidade como enfrentamentos
interclassistas. Isso ocorre quando não são contingentes diferenciados
racialmente ou etnicamente que se opõem, mas conglomerados humanos
ou estratos sociais multirraciais e multiétnicos propensos a criar
novas formas de ordenação socioeconômica, inconciliáveis
com o projeto das classes dominantes.

Canudos é um bom exemplo dessa classe de enfrentamentos, como a grande
explosão dessa modalidade de lutas. Ali, sertanejos atados a um universo
arcaico de compreensões, mas cruamente subversivos porque pretendiam
enfrentar a ordem social vigente, segundo valores diferentes e até
opostos aos dos seus antagonistas, enfrentavam uma sociedade fundada na propriedade
territorial e no poderio do dono, sobre quem vivesse em suas terras. Desde
o princípio os fiéis do Conselheiro eram vistos como um grupo
crescente de lavradores que saíam das fazendas e se organizavam em
si e para si, sem patrões nem mercadores, e parecia e era tido como
o que há de mais perigoso.

Quando a situação amadureceu completamente, esse contingente
humano foi capaz de enfrentar e vencer, primeiro, as autoridades locais e
os fazendeiros, aliciando jagunços; depois, as tropas estaduais e,
por fim, diversos exércitos armados pelo governo federal.

Venceram sempre, até a derrota total, porque nenhuma paz era possível
entre quem lutava para refazer o mundo em nome dos valores mais sagrados e
as forças armadas que cumpriam seu papel de manter esse mundo tal qual
é, ajudadas nesse empenho por todas as forças da sociedade global.

Euclides da Cunha nos dá o retrato mais veemente daquele enfrentamento
inverossímil. Já ao fim das lutas, registra, dos poucos sobreviventes,
que não se via “[…] nem um rosto viril, nem um braço
capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador domado:
mulheres, sem número de mulheres, velhas espectraes, moças envelhecidas,
velhas e moças indistinctas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas,
filhos escanchados […] Canudos não se rendeu. Exemplo único
em toda a história, resistiu até ao esgottamento completo. Expugnado
palmo a palmo, na precisão integral do termo, cahiu no dia 5, ao entardecer,
quando cahíram os seus últimos defensores, que todos morreram.
Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma creança, na
frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados (Cunha 1945:606, 611
).” Os exemplos de conflitos continuados se multiplicam ao longo desse
texto. O que têm de comum e mais relevante é a insistência
dos oprimidos em abrir e reabrir as lutas para fugir do destino que lhes é
prescrito; e, de outro lado, a unanimidade da classe dominante que compõe
e controla um parlamento servil, cuja função é manter
a institucionalidade em que se baseia o latifúndio. Tudo isso garantido
pela pronta ação repressora de um corpo nacional das forças
armadas que se prestava, ontem, ao papel de perseguidor de escravos, como
capitães do mato, e se presta, hoje, à função
de pau-mandado de uma minoria infecunda contra todos os brasileiros.

A EMPRESA BRASIL

No plano econômico, o Brasil é produto da implantação
e da interação de quatro ordens de ação empresarial,
com distintas funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra
e diferentes graus de rentabilidade. A principal delas, por sua alta eficácia
operativa, foi a empresa escravista, dedicada seja à produção
de açúcar, seja à mineração de ouro, ambas
baseadas na força de trabalho importada da África. A segunda,
também de grande êxito, foi a empresa comunitária jesuítica,
fundada na mão-de-obra servil dos índios. Embora sucumbisse
na competição com a primeira, e nos conflitos com o sistema
colonial, também alcançou notável importância e
prosperidade. A terceira, de rentabilidade muito menor, inexpressiva como
fonte de enriquecimento, mas de alcance social substancialmente maior, foi
a multiplicidade de microempresas de produção de gêneros
de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes
formas de aliciamento de mão-de-obra, que iam de formas espúrias
de parceria até a escravização do indígena, cnza
ou disfarçada.

A empresa escravista, latifundiária e monocultora, é sempre
altamente especializada e essencialmente mercantil. A jesuítica, apropriando-se
embora de extensas áreas e produzindo mercadorias para o comércio
local e ultramarino, mais do que uma empresa propriamente era uma forma alternativa
de colonização dos trópicos pela destribalização
e integração da população original num tipo diferente
de sociedade, que se queria pura, pia e seráfica. A microempresa de
subsistência funcionou, de fato, como um complemento da grande empresa
exportadora ou mineradora que, graças a ela, se desobrigava de produzir
alimentos para a população e para seu próprio uso nas
quadras de maior prosperidade econômica, quando tinha que concentrar
toda a força de trabalho no seu objetivo essencial. Essas microempresas
é que fundaram, de fato, o Brasil-povo, gestando precocemente as células
que, multiplicadas, deram no que somos. Isso porque as missões teriam
gerado uma sociedade teocrática e as plantações nem sequer
sobreviveriam sem a viabilidade que lhes dava uma população
local de apoio e sustento.

Na realidade, competindo embora, essas três formas de organização
empresarial se conjugavam para garantir, cada qual no desempenho de sua função
específica, a sobrevivência e o êxito do empreendimento
colonial português nos trópicos. As empresas escravistas integram
o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos
ricos, fazendo do Brasil, para eles, um alto negócio. As missões
jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo
decisivamente para a liquidação, a começar pelos recolhidos
às reduções, afinal entregues inermes a seus exploradores.
As empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência de todos
e incorporaram os mestiços de europeus com índios e com negros,
plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro. Foram, sobretudo,
um criatório de gente.

Com efeito, o corpo do Brasil rústico, seus tecidos constitutivos
– carne, sangue, ossos, peles -, se estrutura, nessas microempresas de subsistência,
configuradas nas diversas variantes ecológico-regionais. É sobre
esse corpo, como mecanismo de sucção de sua substância,
mas também de ejeção sobre ele da matéria humana
emprestável para seus fins mercantis, que se instalam, como carcinomas,
as empresas agroexportadoras e mineradoras.

Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora,
uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros,
armadores e comerciantes de importação e exportação.
Esse setor parasitário era, de fato, o componente predominante da economia
colonial e o mais lucrativo dela. Ocupava-se das mil tarefas de intermediação
entre o Brasil, a Europa e a África no tráfico marítimo,
no câmbio, na compra e venda, para o cumprimento de sua função
essencial, que era trocar mais de metade do açúcar e do ouro
que aqui se produzia por escravos caçados na África, a fim de
renovar o sempre declinante estoque de mão-de-obra necessário
para a sua produção.

Essa intermediação alucinada foi, por séculos, o motor
mais poderoso da civilização ocidental. Aquele que mais afetou
o destino do gênero humano pelo número espantoso de povos e de
seres que mobilizou, desgastou e transfigurou. Foi exercido sempre eficazmente,
da forma mais impessoal e fria, por honrados dignatários, com o sentimento
de que se ocupavam de um negócio, muitas vezes, aliás, dignificado
como a grande missão do homem branco como herói civilizador
e cristianizador.

Tratamos até agora das cúpulas empresariais. Elas seriam inexplicáveis,
porém, sem a sua contraparte, que era o patriciado burocrático.
Toda a vida colonial era presidida e regida, de fato, pela burocracia civil
de funcionários governamentais e exatores, e pela militar dos corpos
de defesa e de repressão. A seu lado, operando de forma solidária,
estava a burocracia eclesiástica dos servidores de Deus, consagrando,
dignificando os que se ocupavam dos negócios terrenos, sobretudo captando
a maior parte dos recursos que ficavam na terra, para com eles exaltar a grandeza
de Deus nas casas e templos de suas ordens. Essa cúpula patricial,
cuja elite era quase toda oriunda da metrópole, formava com a cúpula
empresarial e, com a mercantil, a elite dominante da colônia, essencialmente
solidária frente aos outros corpos da sociedade, apesar de suas cruas
oposições de interesses.

Esta classe dominante empresarial-burocrático-eclesiástica,
embora exercendo-se como agente de sua própria prosperidade, atuou
também, subsidiariamente, como reitora do processo de formação
do povo brasileiro. Somos, tal qual somos, pela fôrma que ela imprimiu
em nós, ao nos configurar, segundo correspondia a sua cultura e a seus
interesses. Inclusive reduzindo o que seria o povo brasileiro como entidade
cívica e política a uma oferta de mão-de- obra servil.

Foi sempre nada menos que prodigiosa a capacidade dessa classe dominante
para recrutar, desfazer e reformar gentes, aos milhões. Isso foi feito
no curso de um empreendimento econômico secular, o mais próspero
de seu tempo, em que o objetivo jamais foi criar um povo autônomo, mas
cujo resultado principal foi fazer surgir como entidade étnica e configuração
cultural um povo novo, destribalizando índios, desafricanizando negros,
deseuropeizando brancos.

Ao desgarrá-los de suas matrizes, para cruzá-los racialmente
e transfigurá-los culturalmente, o que se estava fazendo era gestar
a nós brasileiros tal qual fomos e somos em essência. Uma classe
dominante de caráter consular-gerencial, socialmente irresponsável,
frente a um povo-massa tratado como escravaria, que produz o que não
consome e só se exerce culturalmente como uma marginália, fora
da civilização letrada em que está imersa.

Entre aquela estreita cúpula e esta larga base, um contingente de
escapados da miséria e da ignorância geral busca brechas institucionais
em que se possa meter para fazer o Brasil a seu jeito. No princípio
eram principalmente curas e militares subversivos, mesmo porque só
eles eram alfabetizados e minimamente informados naquele submundo da opressão
colonial.

AVALIAÇÃO

O padre Cardim, que foi reitor do Colégio da Bahia, gostava muito
de descrever o mundo que via. Foi, para meu gosto, um dos primeiros e mais
altos intelectuais brasileiros. Identificado com nossas coisas e nossa gente,
descreve encantado florestas, roças, pescarias, sempre com o mais vívido
interesse (Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil, 1584 ).

Não podia haver balanço crítico melhor que o dele sobre
a obra da Companhia, por um lado, e a dos colonos, do lado oposto. Ele consegue
manter uma extraordinária objetividade quando fala de uma e outro.
O contraste não podia ser mais cru. Os índios se acabando e
a prosperidade chegando feroz. Visitando as várias missões entre
os anos de 1583 e 1590, em companhia do padre Cristóvão de Gouveia,
o bom Cardim nos conta os poucos índios que aí estavam em cada
uma delas, todos vivendo na mais vil pobreza, simulando uma conversão
inverossímil, mas cheios de unção e até de adulação
diante dos padres.

Na sua história se inclui um balanço geral dos povos indígenas,
que viviam na costa do mar até o sertão onde chegaram os portugueses
e que ele divide em tupis e tapuias. Os primeiros, repartidos em dez nações
principais, que viviam de Pernambuco a São Vicente. Falavam “uma
só língua e esta é a que entendem os portugueses. É
facil e elegante, e suave; e copiosa. A dificuldade dela está em ter
muitas composições”. Acrescenta que os portugueses, quase
todos que estão no Brasil, “a sabem em breve tempo e seus filhos,
homens e mulheres, a sabem melhor” (Cardim 1980:101 ).

O que mais nos interessa no balanço de Cardim é o registro
da mortandade da população que vinha ocorrendo e diante da qual
ele próprio se espanta: “Eram tantos os dessa casta que parecia
impossível poderem-se extinguir, porém os portugueses lhes têm
dado tal pressa que quase todos são mortos e lhes têm tal medo,
que despovoam a costa e fogem pelo sertão adentro até trezentas
a quatrocentas léguas” (Cardim 1980:101 ).

A seguir, relacionando as nações de uma ou outra, assinala
o progressivo extermínio. Dos Viatã, da Paraíba, que
eram muitíssimos, diz que “já não há nenhuns
porque sendo eles amigos dos Potiguara e parentes os portugueses os fizeram
entre si inimigos, dando-lhos a comer para que dessa maneira lhes pudesse
fazer guerra e tê- los por escravos e, finalmente, tendo uma grande
fome, os portugueses em vez de lhes acudir, os cativaram e mandaram barcos
cheios a vender a outras capitanias”. Acrescenta que “assim se acabou
essa nação e ficaram os portugueses sem vizinhos que os defendessem
dos Potiguaras” (Cardim 1980:102 ). Sobre os Tupinaquins, que habitavam
toda a costa de Ilhéus, Porto Seguro até Espírito Santo,
informa que “procederam dos de Pernambuco e se espalharam por uma corda
do sertão, multiplicando grandemente mas já são poucos”
(Cardim 1980:102 ). Ainda sobre outra nação, parente desses
Tupinaquins, que habitava o sertão de São Vicente até
Pernambuco, os Tupiguae, Cardim diz que “são sem número.
Vão se acabando porque os portugueses os vão buscar para se
servirem deles e os que lhes escapam fogem para muito longe por não
serem escravos” (Cardim 1980:102 ). Outra nação, os Tememinó,
“já são poucos”. E, ainda, sobre os Tamuya do Rio
de Janeiro, acrescenta, “estes destruíram os portugueses quando
povoaram o Rio e deles há muito poucos” (Cardim 1980:103 ).

Nem ele, nem o visitador em nome de quem escreve se impressionam muito com
isso. Provavelmente se consolam com o que seria a vontade de Deus: um processo
de sucessão ecológica pelo qual a população original
da costa do Brasil, que alcançara 1 milhão de índios,
fora sucedida por umas poucas centenas que ali estavam se acabando.

Depois de avaliar o extermínio dos índios que primeiro tiveram
contato com os invasores, Cardim abre os olhos de contentamento diante das
futuras vítimas – os Carijó, que habitavam “além
de São Vicente, com 80 léguas, contrários aos Tupinaquins.
Destes, há infinidades, e correm pela costa do mar e sertão
até o Paraguai que habitam os Castelhanos” (Cardim 1980:103 ).
Já no seu tempo, esses Carijó ou Guarani, começavam a
ser as principais vítimas das caçadas de escravos dos paulistas,
principal objeto da conversão destribalizadora dos jesuítas.

Ainda mais expressivo é o retrato que nos traça Cardim dos
resultados concretos de três décadas de pregaçãojesuítica
na selva brasileira. Acompanhando o visitador principal da Companhia, ele
vai relatando, piedoso, o que vê, aldeia por aldeia, nas aldeias que
sobraram das reduções. Este o fruto da sofrida seara.

“A aldeia do Espírito Santo, sete léguas da Bahia, com
alguns trinta índios, que com seus arcos e flechas vieram para acompanhar
o padre e revezados de dois em dois o levavam numa rede. […] Chegamos à
aldeia à tarde; antes dela um bom quarto de légua, começaram
as festas que os índios tinham aparelhadas, as quais fizeram em uma
rua de altíssimos e frescos arvoredos, dos quais saíam uns cantando
e tangendo a seu modo, outros em ciladas saíam com grande grita e urros,
que nos atroavam e faziam estremecer. Os cunumis meninos, com muitos molhos
de flechas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam sua grita,
e pintados de várias cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas
receber a benção do padre, dizendo em português, “louvado
seja Jesus Cristo”. Outros saíram com uma dança d’escudos
à portuguesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da.viola,
pandeiro e tamboril e flauta, ejuntamente representavam um breve diálogo,
cantando algumas cantigas pastoris. Tudo causava devoção debaixo
de tais bosques, em terras estranhas e muito mais por não se esperarem
tais festas de gente tão bárbara (Cardim 1980:145 ).” Como
se vê, dos selvagens sobreviveram alguns costumes, convertidos em palhaçada.
Um deles era o temor ao odiado Anhangá, que ressurgia agora, saindo
do mato para assustar os índios, mas encarnado por um padre português.
Outro foi o cerimonial do Ereiupe, ou saudação lacrimosa, com
que os Tupi recebiam os visitantes queridos. No caso, ressurge na figura de
velhos morubixabas que saúdam ao visitante com o “vieste? e beijando-lhe
a mão recebiam a benção”. Enquanto isso, “as
mulheres nuas (cousa para nós mui nova) com as mãos levantadas
ao Céu, também davam seu Ereiupe, dizendo em português,
‘louvado seja Jesus Cristo’ ” (Cardim 1980,146 ).

Sobrevive, também, o costume soleníssimo do aconselhamento
Tupinambá, que era uma atribuição, talvez a principal,
do morubixaba. Diz Cardim: “Aquela noite, os índios principais,
grandes línguas, pregavam da vida do padre a seu modo, que é
da maneira seguinte: começavam a pregar de madrugada deitados na rede
por espaço de meia hora, depois se levantam, e correm toda aldeia pé
ante pé muito devagar, e o pregar também é pausado, freimático
e vagaroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade, contam nestas
pregações todos os trabalhos, tempestades, perigos de morte
que o padre padeceria, vindo de tão longe para os visitar, e consolar,
e juntamente os incitam a louvar a Deus pela mercê recebida, e que tragam
seus presentes ao padre, em agradecimento (Cardim 1980:146 ).” Uma bela
surpresa os aguarda na visita à aldeia de São Mateus, em Porto
Seguro.

Iam, o visitante e seus acólitos, calmos, pela alegre praia, “eis
que desce de um alto monte uma índia vestida como elas costumam, com
uma porcelana da Índia, cheia de queijadinhas d’ açúcar,
com um grande púcaro d’ água fria; dizendo que aquilo mandava
seu senhor ao padre provincial Joseph” (Cardim 1980:148 ). Este Joseph
não era menos que o próprio Anchieta, que vinha atrás
com a soitaina arregaçada, descalço e bem cansado, com seus
muitíssimos anos de vida e tantos anos de pregação no
Brasil.

Nessa aldeia e nas outras todas visitadas, viajando sempre de rede e carregado
pelos índios, que se revezavam para que nenhum ficasse sem a glória
do carreto, são recebidos com a mesma alegria pelos poucos índios
que sobreviviam. Nosso cândido Cardim não se cansa de pasmar,
seja ao confessar índios e índias através de intérpretes,
vendo que são “candidíssimos e vivem com muito menos pecados
que os portugueses”, seja com o candor da criançada. “Iam
conosco alguns sessenta meninos, nuzinhos, como costumam. Pelo caminho fizeram
grande festa ao padre, umas vezes o cercavam, outras o cativavam, outras arremedavam
pássaros muito ao natural; no rio fizeram muitos jogos ainda mais graciosos,
e têm eles n’água muita graça em qualquer coisa que fazem”
(Cardim 1980:155 ).

Longe dali, Cardim se encantaria ainda mais “com uma dança de
meninos índios, o mais velho seria de oito anos, todos nuzinhos, pintados
de certas cores aprazíveis, com seus cascavéis nos pés,
e braços, pernas, cinta, e cabeças com várias invenções
de diademas de penas, colares e braceletes” (Cardim 1980:169 ).

Sobre a rotina na vida das velhas missões, Cardim conta que “[…] nas aldeias, grandes e pequenos, ouvem missa muito cedo cada dia antes de
irem a seus serviços, e antes ou depois da missa lhes ensinam as orações
em português e na língua, e à tarde são instruídos
no diálogo da fé, confissão e comunhão. Alguns
assim homens como mulheres, mais ladinos, rezam o rosário de Nossa
Senhora; confessam-se a miúdo; honram-se muito de chegarem a comungar,
e por isso fazem extremos, até deixar seus vinhos a que são
muito dados, e é a obra mais heróica que podem fazer; quando
os incitam a fazer algum pecado de vingança ou desonestidade etc. respondem
que são de comunhão, que não hão de fazer a tal
cousa. Enxergam-se entre eles os que comungam no exemplo de boa vida, modéstia
e continuação das doutrinas; têm extraordinário
amor, crédito e respeito aos padres e nada fazem sem seu conselho,
e assim pedem licença para qualquer cousa por pequena que seja, como
se fossem noviços (Cardim 1980:156 ).” Seu principal lazer, agora,
diz Cardim, são as festas religiosas.

A primeira, é das fogueiras de São João, porque suas
aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva
a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro. A segunda festa é
a de ramos, porque é coisa para ver, as palavras, flores e boninas
que buscam, a festa com que os têm nas mãos ao ofício,
e procuram que lhes caia água benta nos ramos. A terceira, que mais
que todas festejam, dia de cinza, porque de ordinário nenhum falta,
e do cabo do mundo vêm à cinza, e folgam que lhes ponham grande
cruz na testa (Cardim 1980:156 ).

No comum das aldeias, “[…] há escolas de ler e escrever, aonde
os padres ensinam os meninos índios; e alguns mais hábeis também
ensinam a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e há já muitos
que tangem flautas, violas, cravos e oficiam missas em canto d’órgão,
coisas que os pais estimam muito. Estes meninos falam português, cantam
à noite a doutrina pelas ruas, e encomendam as almas do purgatório.

Nas mesmas aldeias há confrarias do Santíssimo Sacramento,
de Nossa Senhora, e dos defuntos. Os mordomos são os principais e mais
virtuosos; têm sua mesa na igreja com seu pano, e eles trazem suas opas
de baeta ou outro pano vermelho, branco e azul; servem de visitar os enfermos,
ajudar a enterrar os mortos, e às missas (Cardim 1980: I 55-6 ).”
Impressionante mesmo é o contraste entre esse panorama de pobreza e
humilhação e a glória e suntuosidade dos engenhos, que
alcançavam plena prosperidade. Ele viu, talvez, o momento mais faustoso
dessa história. Aquele que antecede às invasões holandesas,
as lutas internas e a competição internacional.

O fato é que o Brasil havia encontrado um filão de riquezas
que parecia inesgotável e que lhe dava, naqueles anos, a posição
de economia mais próspera e exibicionista do planeta. Acompanhemos
sua descrição.

Na Bahia ele encontra […] uma terra farta de mantimentos, carnes de vaca,
porco, galinha, ovelhas, e outras criações; tem 36 engenhos,
neles se faz o melhor açúcar de toda a costa; tem muitas madeiras
de paus de cheiro, de várias cores, de grande preço; terá
a cidade com seu termo passante de 3 mil vizinhos portugueses, 8 mil índios
cristãos, e 3 ou 4 mil escravos de Guiné; tem seu cabido de
cônegos, vigário geral provisor etc., com dez ou doze freguesias
por fora, não falando em muitas igrejas e capelas que alguns senhores
ricos têm em suas fazendas (Cardim 1980:144 ).

Também a Companhia de Jesus enriquecera notavelmente, como se vê
pela descrição do Colégio da Bahia feita por Cardim.

“Os padres têm aqui colégio novo quase acabado; é
uma quadra formosa com boa capela, livraria, e alguns trinta cubículos,
os mais deles têm as janelas para ao mar. O edifício é
todo de pedra e cal de ostra, que é tão boa como a pedra de
Portugal. Os cubículos são grandes, os portais de pedra, as
portas d’angelim, forradas de cedro; das janelas descobrimos grande parte
da Bahia, e vemos cardumes de peixes e baleias andar saltando n’água,
os navios estarem tão perto que quase ficam à fala. A igreja
é capaz, bem cheia de ricos ornamentos de damasco branco e roxo, veludo
verde e carmesim, todos de tela d’ouro; tem uma cruz e tursôulo de prata,
uma boa custódia para as endoenças, muitos e devotos painéis
da vida de Cristo e todos os Apóstolos.

Todos os três altares têm docéis, com suas cortinas de
tafetá carmesim; tem uma cruz de prata dourada, de maravilhosa obra,
com Santo Lenho, três cabeças das onze mil virgens, com outras
muitas e grandes relíquias de santos, e uma imagem de Nossa Senhora
de S. Lucas, mui formosa e devota (Cardim 1980:144 ).” Maior ainda era
a pompa dos engenhos que maravilharam Cardim.

“De uma coisa me maravilhei nesta jornada, e foi grande facilidadeque
têm em agasalhar os hóspedes, porque a qualquer hora da noite
ou do dia que chegávamos em brevíssimo espaço nos davam
de co- mer a cinco da Companhia (afora os moços) todas as variedades
de carnes, galinhas, perus, patos, leitões, cabritos, e outras castas
e tudo têm de sua criação, com todo o gênero de
pescado e mariscos de toda sorte, dos quais sempre têm a casa cheia,
por terem deputados certos escravos pescadores para isso, e de tudo têm
a casa tão cheia que na fartura parecem uns condes, e gastam muito
(Cardim 1980:157-8 ).” Era a Bahia gorda do recôncavo açucareiro,
tão oposta à Bahia de bode dos sertões são-franciscanos,
onde sobreviviam os Tapuia e os Cariri, então em plena guerra contra
o invasor. Nela a civilização se implantara, opulenta e refinada,
sobre o trabalho de escravos negros e índios.

“Grandes foram as honras e agasalhos, que todos fizeram ao padre visitador,
procurando cada um de se esmerar não somente nas mostras d’amor, grande
respeito e reverência, que no tratamento e conversão lhe mostravam,
mas muito mais nos grandes gastos das iguarias, da limpeza e conserto do serviço,
nas ricas camas e leitos de seda (que o padre não aceitava, porque
trazia uma rede que lhe serve de cama, e cousa costumada na terra) (Cardim
1980:157 ).” As recepções se sucedem: “[…] aquela
noite, fomos ter à casa de um homem rico que esperava o padre visitador:
é nesta Bahia o segundo em riquezas por ter sete ou oito léguas
de terra por costa, em a qual se acha o melhor âmbar que por cá
há, e só em um ano colheu oito mil cruzados dele, sem lhe custar
nada. Tem tanto gado que lhe não sabe o número, e só
do bravo e perdido sustentou as armadas d’el-rei. Agasalhou o padre em sua
casa armada de guadamecins com uma rica cama, deu-nos sempre de comer aves,
perus, manjar branco etc. Ele mesmo, desbarretado, servia a mesa e nos ajudava
à missa, em uma sua capela, a mais formosa que há no Brasil,
feita toda de estuque e timtim de obra maravilhosa de molduras, laçarias,
e cornijas; é de abóbada sextavada com três portas, e
tem-na mui bem provida de ornamentos. Nesta e outras ermidas me lembrava de
Vossa Reverência, e de todos dessa província (Cardim 1980:154
).” Em Pernambuco era maior ainda a suntuosidade e não foram menores
as galas, agrados e o encanto dos visitantes com a vila.

“Foi o padre mui freqüentemente visitado do sr. bispo, ouvidor
geral, e outros principais da terra, e lhe mandaram muitas vitelas, porcos,
perus, galinhas e outras coisas, como conservas etc.; e pessoa houve que da
primeira vez mandou passante de cinqüenta cruzados em carnes, farinhas
de trigo de Portugal, um quarto de vinho etc.; e não contentes com
isto o levaram às suas fazendas algumas vezes, que são maiores
e mais ricas que as da Bahia; e nelas lhe fizeram grandes honras e gasalhados,
com tão grandes gastos que não saberei contar, porque deixando
à parte os grandes banquetes de extraordinárias iguarias, o
agasalhavam em leitos de damasco carmesim, franjados de ouro, e ricas colchas
da Índia (mas o padre usava de sua rede como costumava) (Cardim 1980:161
).” O próprio Cardim disse missa solene na matriz de Olinda, “[…] à petição dos mordomos, que são os principais
da terra, e alguns deles senhores d’engenhos de quarenta e mais mi1 cruzados
de seu. Seis deles todos vestidos de veludo e damasco de várias cores
me acompanharam até o púlpito, e não é muito achar-se
esta polícia em Pernambuco (Cardim 1980:162 ).

A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de 40,
50, e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que
têm com escravaria de Guiné, que lhes morrem muito, e pelas demasias
e gastos grandes que têm em seu tratamento. Vestem-se, e as mulheres
e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm
grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito
devotas, nem freqüentam as missas, pregações, confissões
etc.: os homens são tão briosos que compram ginetes de duzentos
e trezentos cruzados, e alguns têm três, quatro cavalos de preço.
São mui dados a festas. Casando uma moça honrada com um vianês,
que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns
de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de
várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas
sedas que iam vestidos.

Aquele dia correram touros, jogaram canas, pato, argolinha, e vieram dar
vista ao colégio para os ver o padre visitador; e por esta festa se
pode julgar o que farão nas mais, que são comuns e ordinárias.
São sobretudo dados a banquetes, em que de ordinário andam comendo
um dia dez ou doze senhores de engenho juntos, e revezando-se desta maneira
gastam quanto têm, e de ordinário bebem cada ano 50 mil cruzados
de vinhos de Portugal; e alguns anos beberam 80 mi1 cruzados dados em rol.
Enfim em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa (Cardim 1980:164 ).”
Chegam, afinal, ao Rio de Janeiro, onde o encantamento de Cardim com a terra
brasílica atinge o auge. Vejamos só: “A cidade está
situada em um monte de boa vista para o mar, e dentro da barra tem uma baía
que bem parece que a pintou o supremo pintor e arquiteto do mundo do Deus
Nosso Senhor, e assim é coisa formosíssima e a mais aprazível
que há em todo o Brasil, nem lhe chega a vista do Mondego e Tejo; é
tão capaz que terá vinte léguas em roda cheia pelo meio
de muitas ilhas frescas de grandes arvoredos, e não impedem a vista
umas às outras que é o que lhe dá graça. Tem a
barra meia légua da cidade, e no meio dela uma lájea de sessenta
braças em comprido, e bem larga que a divide pelo meio, e por ambas
as partes tem canal bastante para naus da Índia; nesta lájea
manda el-Rei fazer a fortaleza, e ficará a cousa inexpugnável,
nem se lhe poderá esconder um barco; a cidade tem 150 vizinhos com
seu vigário, e muita escravaria da terra (Cardim 1980:170 ).”

Até no Rio o êxito era enorme. Aqui, com uma peculiaridade.
A população desindianizada, sobretudo o mulherio, procurando
uma identidade nova para si mesma, se identifica fervorosamente com a figura
de d. Sebastião.

D. Sebastião, o jovem rei perdido numa louca cruzada, em que levara
à morte a nobreza de Portugal, do que resultou a perda da independência
nacional e a entrega de Lisboa ao domínio de Madri. Mas, Sebastião
era também o santo romano, apresentado sempre como uma estátua
desnuda, sendo morto a pedradas.

“Os padres têm aqui melhor sítio da cidade. Têm
grande vista com toda esta enseada defronte das janelas: têm começado
o edifício novo, têm já treze cubículos de pedra
e cal que não dão vantagem aos de Coimbra, antes lhe levam na
boa vista. São forrados de cedro, a igreja é pequena, de taipa
velha. Agora se começa a nova de pedra e cal, todavia têm bons
ornamentos com uma custódia de prata dourada para as endoenças,
uma cabeça das onze mil virgens, o braço de S. Sebastião
com outras relíquias, uma imagem da Senhora de S. Lucas (Cardim 1980:171
).”

Aquele rei oráculo, que portugueses e brasileiros de cultura rústica
ainda esperam ver reencarnado, se funde com esse santo romano, provocando
efusões de fé religiosa. Ainda hoje, no Rio de Janeiro, a procissão
de São Sebastião mobiliza centenas de milhares de pessoas, que
não sabem nem no que crêem. Mas isso não importa, porque
o que querem é ter uma identidade própria, que por essa via
alcançam plenamente.

A referida relíquia de São Sebastião, trazida, aliás,
pelo visitador, era uma bela peça engastada num braço de prata.
Foi recebida com grande festança por ser esta cidade do seu nome e
ser ele o padroeiro e protetor.

“O padre visitador com o mesmo governador e os principais da terra
e alguns padres nos embarcamos numa grande barca bem embandeirada e enramada:
nela se armou um altar e alcatifou a tolda com um pálio por cima; acudiram
algumas vinte canoas bem equipadas, algumas delas pintadas, outras empenadas,
e’os remos de várias cores.

Entre elas vinha Martim Afonso, comendador de Cristo, índio antigo
abaetê e moçacára, grande cavaleiro e valente, que ajudou
muito os portugueses na tomada deste Rio. Houve no mar grande festa de escaramuça
naval, tambores, pífaros e flautas, com grande grita e festa dos índios;
e os portugueses da terra com sua arcabuzaria e também os da fortaleza
dispararam algumas peças de artilharia grossa e com esta festa andamos
barlaventeando um pouco à vela, e a santa relíquia ia no altar
dentro de uma rica charola, com grande aparato de velas acesas, música
de canto d’órgão etc. Desembarcando viemos em procissão
até à Misericórdia, que estájunto da praia, com
a relíquia debaixo do pálio; as varas levaram os da câmara,
cidadãos principais, antigos e conquistadores daquela terra. Estava
um teatro à porta da Misericórdia com uma tolda de uma vela,
e a santa relíquia se pôs sobre um rico altar enquanto se representou
um devoto diálogo do martírio do santo, com choros e várias
figuras muito ricamente vestidas; e foi asseteado um moço atado a um
pau: causou este espetáculo muitas lágrimas de devoção
e alegria a toda a cidade por representar ao vivo martírio do santo,
nem faltou mulher que não viesse à festa (Cardim 1980:169 ).”
Diferente é o retrato que nos dá de São Paulo e suas
quatro pobres vilas. São Vicente, “[…] situada em lugar baixo
manencolisado e soturno, em uma ilha de duas léguas de comprido. Esta
foi a primeira vila e povoação de portugueses que houve no Brasil;
foi rica, agora é pobre por se lhe fechar o porto de mar e barra antiga,
por onde entrou com sua frota Martim Afonso de Sousa; e também por
estarem as terras gastas e faltarem índios que as cultivem, se vai
despovoando; terá oitenta vizinhos, com seu vigário. Aqui têm
os padres uma casa aonde residem de ordinário seis da Companhia: o
sítio é mal-assombrado, sem vista, ainda que muito sadio (Cardim
1980:174 ).” Santos, “[…] oitenta vizinhos, com seu vigário.
Itanhaém, que é a terceira povoação da costa,
que terá cinqüenta vizinhos, não tem vigário. Os
padres visitam, consolam e ajudam no que podem, ministrando-lhes os sacramentos
por sua caridade (Cardim 1980:174 ).

Piratininga é vila da invocação da conversão
de São Paulo; está do mar pelo sertão dentro doze léguas;
é terra muito sadia, há nela grandes frios e geadas e boas calmas,
é cheia de velhos mais que centenários, porque em quatro juntos
e vivos se acharam quinhentos anos. Vestem-se de burel, e pelotes pardos e
azuis, de pertinas compridas, como antigamente se vestiam. Vão aos
domingos à igreja com roupões ou bérnios de cacheira
sem capa. A vila está situada em bom sítio ao longo de um rio
caudal. Terá cento e vinte vizinhos, com muita escravaria da terra,
não tem cura nem outros sacerdotes senão os da Companhia, aos
quais têm grande amor e respeito e por nenhum modo querem aceitar cura
(Cardim 1980:173 ).” Nenhum balanço crítico é melhor
que o de Cardim sobre o resultado prático das missões e da colonização.
Aquelas, tendo entregue seu sangue e sua energia para fazer a sociedade nova,
só sobreviviam nos corpos dos brasilíndios como um patrimônio
genético que se repetirá pelos séculos afora, remarcando
a fisionomia dos brasileiros.

Esta, quero dizer, a solução colonial, era o mais bem-sucedido
implante europeu no além-mar. Chegou a ter igrejas e colégios
suntuosos como não ocorreu em lugar nenhum mais. Viveu assim e ainda
vive a vida de um proletariado externo, cuja sorte depende das oscilações
do mercado mundial.

Podia-se dizer, talvez, que o fracasso maior foi do stalinismo jesuítico,
que tentou um socialismo precoce e inviável, e fracassou. Ao contrário,
o sucesso foi de seus opositores. Também fracassados, porque não
sendo um povo para si na busca de suas condições de prosperidade,
permanece sendo um povo para os outros.

A URBANIZAÇÃO CAÓTICA CIDADES E VILAS

Assinalamos que o Brasil, surgindo embora pela via evolutiva da atualização
histórica, nasceu já como uma civilização urbana.
Vale dizer, separada em conteúdos rurais e citadinos, com funções
diferentes mas complementares e comandada por grupos eruditos da cidade. A
primeira é Lisboa, que não conta. Nossa primeira cidade, de
fato, foi a Bahia, já no primeiro século, quando surgiram, também,
o Rio de Janeiro e João Pessoa. No segundo século, surgem mais
quatro: São Luís, Cabo Frio, Belém e Olinda. No terceiro
século, interioriza-se a vida urbana, com São Paulo; Mariana,
em Minas; e Oeiras, no Piauí. No quinto século, a rede explode,
cobrindo todo o território brasileiro.

No curso desses séculos as cidades cresceram e se ornaram como portentosos
centros de vida urbana, só comparáveis aos do México.
Os holandeses enriqueceram Recife. A riqueza das minas se exibiu em Ouro Preto
e outras cidades do ouro, engalanou a Bahia e, depois, o Rio. A valorização
do açúcar translada os senhores de engenho para Recife e para
a Bahia, onde ergueram seus sobrados e viveram a vida tão bem descrita
por Gilberto Freyre ( 1935 ). A independência derramou quantidades de
lusitanos Tabela 2 “BRASIL – REDE URBANA COLONIAL Fins do século
XVI: número de cidades – 3, número de vilas – 14 Fins do século
XVII: número de cidades – 7, número de vilas – 51 Fins do século
XVIII: número de cidades – 10, número de vilas – 60 População
das principais cidades e vilas Fins do século XVI: Salvador – 15.000,
Recife/Olinda – 5.000, São Paulo – 1.500, Rio de Janeiro – 1.000 Fins
do século XVII: Salvador – 30.000, Recife – 20.000, Rio de Janeiro
– 4.000, São Paulo – 3.000 Fins do século XVIII: Salvador –
40.000, Recife – 25.000, Rio de Janeiro – 43.000, Ouro Preto – 30.000, São
Luís – 20.000, São Paulo – 15.000 População do
Brasil: Fins do século XVI: 60.000 Fins do século XVII: 300.000
Fins do século XVIII: 3.000.000 Fonte: Estimativas baseadas em cronistas
contemporâneos.” por toda a parte, todos muito voltados ao comércio,
como agentes de empresas inglesas. A Guerra de Secessão nos Estados
Unidos fez crescer São Luís, que no censo de 1872 comparece
maior e mais rica que São Paulo. A abolição, dando alguma
oportunidade de ir e vir aos negros, encheu as cidades do Rio e da Bahia de
núcleos chamados africanos, que se desdobraram nas favelas de agora.

A crise de desemprego que ocorre na Europa na passagem do século
nos manda 7 milhões de europeus. Quatro e meio milhões deles
se fixaram definitivamente no Brasil, principalmente em São Paulo,
onde renovaram toda a vida econômica local.

Foram eles que promoveram o primeiro surto de industrialização,
que mais tarde se expandiria com a industrialização substitutiva
de importações.

Decuplica-se, como se vê, o contingente urbanizado, quando a população
total do país crescera de duas vezes e meia, passando de 30,6 milhões,
em 1920, para 70,9 milhões, em 1960. No mesmo período, a rede
metropolitana crescera de seis cidades maiores de 100 mil habitantes para
31. Maior, ainda, foi o incremento das cidades pequenas e médias, que
constituíam, em 1960, uma rede de centenas de núcleos urbanos
distribuídos por todo o país na forma de constelações
articuladas aos centros metropolitanos nacionais e regionais.

As cidades e vilas da rede colonial, correspondentes à civilização
agrária, eram, essencialmente, centros de dominação colonial
criados, muitas vezes, por ato expresso da Coroa para defesa da costa, como
Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Florianópolis
e outras. Exerciam, como função principal, o comércio,
através de importação e contrabando, e a prestação
de serviços aos setores produtivos, na qualidade de agências
reais de cobrança de impostos e taxas, de concessão de terras,
de legitimação de transmissões de bens por herança
ou por venda e de julgamento nos casos de conflito. Além dessas funções,
prestavam assistência religiosa, associada quase sempre com atividades
escolares de nível primário e propedêuticas do sacerdócio.
Proviam, também, assistência médica para os casos desesperados,
resistentes às mezinhas domésticas tradicionais. Sua vida girava
em torno dessas atividades e da segunda função básica,
que era a de empórios de importação de escravos e manufaturas
e de exportação do açúcar, mais tarde do ouro,
pedras preciosas e poucas outras mercadorias.

Suas principais edificações eram as igrejas, conventos e fortalezas,
que constituíam, também, seu principal atrativo. Por ocasião
das festas religiosas, a aristocracia rural deixava as fazendas para viver
ali um breve período de convívio urbano festivo. Afora estas
ocasiões, atravessavam uma existência pacata; só animada
pela feira semanal, pelas missas e novenas e pela chegada de algum veleiro
ao porto. A não ser isso, só se movimentavam com o trinar dos
cincerros das tropas de mulas que vinham do interior, ou com o rugido de atrito
dos carros de boi que chegavam dos sítios carregados de mantimentos
e de lenha.

A classe alta urbana era composta de funcionários, escrivães
e meirinhos, militares e sacerdotes – que também eram os únicos
educadores – e negociantes. Exceto a alta hierarquia civil

e eclesiástica, toda essa gente era considerada “de segunda”
em relação aos senhores rurais, orgulhosos de suas posses, do
seu isolamento e convictos de sua superioridade social. Uma camada intermediária
de brancos e mestiços livres, paupérrimos, procurava sobreviver
à sombra dos ricos ou remediados.

Cada fazendeiro ou comerciante tinha e mantinha esses agregados que os serviam
devotadamente sem qualquer salário, em contrapartida dos obséquios
que ocasionalmente recebiam e de que viviam. Essa gente enchia as casas, auxiliando
em todas as tarefas domésticas e no artesanato singelo de panos e redes,
de costura e bordado, do fabrico de sabão ou de lingüiça
e doces. Alguns artífices autônomos trabalhavam por encomenda,
em selas e tralha de montaria, em sapatos de couro, como ferreiros e mecânicos
ou nos ofícios ligados às construções. Abaixo
vinha a criadaria escrava destinada a abrilhantar a posição
dos.ricos e remediados, carregando a eles próprios, a seus objetos
e dejetos,amamentando os recém-nascidos, servindo- lhes, enfim, de
mãos e de pés.

O crescimento dos centros urbanos dá lugar a uma burocracia civil
e eclesiástica da mais alta hierarquia e a um comércio autônomo
e rico, integrado quase exclusivamente por reinóis. Mesmo estes, porém,
só alcançavam categoria social respeitável e se integravam
na classe dominante, quando se faziam também proprietários de
terra e fazendeiros. Só nas regiões mineradoras, como vimos,
se implanta uma verdadeira rede urbana independente da produção
agrícola, contando com uma ponderável camada intermediária
de modos de vida citadinos.

Aglomerados menores surgiram no interior de cada área produtiva para
exercer funções especiais, à medida que a população
aumentava e se concentrava. Tais são os vilarejos estradeiros, que
serviam de pouso nas longas viagens entre os núcleos ocupados do interior,
ou que apareciam onde se impusesse a necessidade de baldear cargas de uma
estrada a um rio navegável, ou para a travessia deste. É o caso,
também, das feiras de gado de todo o mediterrâneo interior, algumas
das quais alcançariam grande expressão, como a de Campina Grande,
Sorocaba, Feira de Santana, Campo Grande e outras. Contam-se, também,
as feiras de algodão, como a de Itapicuru-mirim, Caxias, Oeiras, Crato
etc.

A economia extrativista criou os portos de exportação de borracha
da Amazônia e sua constelação de vilas e cidades auxiliares.
E, finalmente, a rede de cidades que nasceram acompanhando a marcha do café,
a maioria das quais decairia depois, transformadas em cidades mortas, quando
a fronteira se distanciava, dando lugar a outras “bocas do sertão”.

Essas cidades e vilas, grandes e pequenas, constituíam agências
de uma civilização agrário-mercantil, cujo papel fundamental
era gerir a ordenação colonial da sociedade brasileira, integrando-a
no corpo de tradições religiosas e civis da Europa pré-
industrial e fazendo-a render proventos à Coroa portuguesa. Como tal,
eram centros de imposição das idéias e das crenças
oficiais e de defesa do velho corpo de tradições ocidentais,
muito mais que núcleos criadores de uma tradição própria.

Assim, apesar das imensas diferenças que mediavam entre as formações
socioculturais européias e as brasileiras, ambas eram fruto de um mesmo
movimento civilizatório. Com a industrialização se altera
essa constelação urbana no que tinha de fundamental, que era
sua tecnologia produtiva, transformando todo o seu modo de ser, de pensar
e de agir. Provocaria uma seqüência de alterações
reflexas nas sociedades dependentes, de natureza tanto técnica quanto
ideológica que, aqui também, transfiguraram o caráter
da própria civilização.

INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO

A industrialização e a urbanização são
processos complementares que costumam marchar associados um ao outro. A industrialização
oferecendo empregos urbanos à população rural; esta entrando
em êxodo na busca dessas oportunidades de vida. Mas não é
bem assim. Geralmente, fatores externos afetam os dois processos, impedindo
que se lhes dê uma interpretação linear. No século
XVI, são os carneiros ingleses que expulsam a população
do campo.

No Brasil, vários processos já referidos, sobretudo o monopólio
da terra e a monocultura, promovem a expulsão da população
do campo. No nosso caso, as dimensões são espantosas, dada a
magnitude da população e a quantidade imensa de gente que se
vê compelida a transladar-se. A população urbana salta
de 12,8 milhões, em 1940, para 80,5 milhões, em 1980. Agora
é de 110,9 milhões. A população rural perde substância
porque passa, no mesmo período, de 28,3 milhões para 38,6 e
é, agora, 35,8 milhões. Reduzindo-se, em números relativos,
de 68,7% para 32,4% e para 24,4% do total.

Conforme se vê, vivemos um dos mais violentos êxodos rurais,
tanto mais grave porque nenhuma cidade brasileira estava em condições
de receber esse contingente espantoso de população. Sua conseqüência
foi a miserabilização da população urbana e uma
pressão enorme na competição por empregos.

Embora haja variações regionais e São Paulo represente
um grande percentual nesse translado, o fenômeno se deu em todo o país.
Inchou as cidades, desabitou o campo sem prejuízo para a produção
comercial da agricultura, que, mecanizada, passou a produzir mais e melhor.
Se nosso programa fosse produzir só gêneros de exportação,
isso seria admissível. Como a questão que a história
nos põe é organizar toda a economia para que todos trabalhem
e comam, esse translado astronômico, da ordem de 80%, gera enormes problemas.

No presente século, teve lugar uma urbanização caótica
provocada menos pela atratividade da cidade do que pela evasão da população
rural. Chegamos, assim, à loucura de ter algumas das maiores cidades
do mundo, tais como São Paulo e Rio de Janeiro, com o dobro da população
de Paris ou Roma, mas dez vezes menos dotadas de serviços urbanos e
de oportunidades de trabalho. É um mistério inexplicado até
agora como vive o povaréu do Recife, da Bahia, com aquela trêfega
alegria, e, ultimamente, como sobrevivem sem trabalho milhões de paulistas
e cariocas.

Tabela 3

“2 BRASIL EVOLUÇÃO DA REDE DE CIDADES COM MAIS DE l00
MIL HABITANTES DE 1872 A 1991

Cidades com 100 a 500 mil habitantes: 1872: Recife – 117, Rio de Janeiro
– 275, Salvador – 129 1900: São Paulo – 240, Salvador – 206, Recife
– 113 1950: Natal – 103, João Pessoa – 119, São Luís
– 120, Maceió – 121, Manaus – 140, Curitiba – 181, Belém – 255,
Fortaleza – 270, B.Horizonte – 353, Porto Alegre – 394, Salvador – 417 1991:
Boa Vista – 143, Macapá – 179, Rio de Branco – 197, Florianópolis
– 255, Vitória – 258, Porto Velho – 286, Cuiabá – 401, Aracaju
– 402, João Pessoa – 497 Cidades com 500 mil a 1milhão de de
habitantes: 1900: Rio de Janeiro – 811 1950: Recife – 525 1991: Campo Grande
– 525, Terezina – 598, Natal – 607, Maceió – 629, São Luís
– 695, Goiânia – 921 Cidades com mais mais de 1 milhão: 1950:
São Paulo – 2.198, Rio de Janeiro – 2.377 1991: Manaus – 1.011, Belém
– 1.245, Porto Alegre – 1.263, Recife – 1.297, Curitiba – 1.313, Brasília
– l.598, Fortaleza – 1.766, Belo Horizonte – 2.017, Salvador – 2.072, Rio
de Janeiro – 5.474, São Paulo – 9.627 População do Brasil:
1872: 9.930.478 1900: 17.438.434 1950: 51.944.397 1991: 146.917.459 Fonte:
Anuário Estatístico do Brasil 1993, IBGE (população
residente).” Entre essas cidades, muitas foram criadas por atos de vontade,
como ocorrera com a velha Bahia; Belém do Pará, para fechar
a boca do Amazonas; e Sacramento, no sul, à frente da nascente Buenos
Aires, mantida em guerra pelos portugueses durante um século, para
marcar o limite sul do Brasil. E, ultimamente, Goiânia; Belo Horizonte
e, afinal, Brasília, criada no centro do Brasil, numa extraordinária
façanha da engenharia, para servir de pólo central ordenador
da vida brasileira.

Esse crescimento explosivo entra em crise em 1982, anunciando a impossibilidade
de seguir crescendo economicamente sob o peso das constrições
sociais que deformavam o desenvolvimento nacional. Primeiro, a estrutura agrária
dominada pelo latifúndio que, incapaz de elevar a produção
agrícola ao nível do crescimento da população,
de ocupar e pagar as massas rurais, as expulsa em enormes contingentes do
campo para as cidades, condenando a imensa maioria da população
à marginalidade. Segundo, a espoliação estrangeira, que
amparada pela política governamental fortalecera seu domínio,
fazendo-se sócia da expansão industrial, jugulando a economia
do país pela sucção de todas as riquezas produtivas.

O Brasil alcança, desse modo, uma extraordinária vida urbana,
inaugurando, provavelmente, um novo modo de ser das metrópoles. Dentro
delas geram-se pressões tremendas, porque a população
deixada ao abandono mantém sua cultura arcaica, mas muito integrada
e criativa. Dificulta, porém, uma verdadeira modernização,
porque nenhum governo se ocupa efetivamente da educação popular
e da sanidade.

Em nossos dias, o principal problema brasileiro é atender essa imensa
massa urbana que, não podendo ser exportada, como fez a Europa, deve
ser reassentada aqui. Está se alcançando, afinal, a consciência
de que não é mais possível deixar a população
morrendo de fome e se trucidando na violência, nem a infância
entregue ao vício e à delinqüência e à prostituição.
O sentimento generalizado é de que precisamos tornar nossa sociedade
responsável pelas crianças e anciãos. Isso só
se alcançará através da garantia de pleno emprego, que
supõe uma reestruturação agrária, porque ali é
onde mais se pode multiplicar as oportunidades de trabalho produtivo.

Não há nenhum indício, porém, de que isso se
alcance. A ordem social brasileira, fundada no latifúndio e no direito
implícito de ter e manter a terra improdutiva, é tão
fervorosamente defendida pela classe política e pelas instituições
do governo que isso se torna impraticável. É provável
que a União Democrática Ruralista (UDR), que representa os latifundiários
no Congresso, seja o mais poderoso órgão do Parlamento.

É impensável fazê-la admitir o princípio de que
ninguém pode manter a terra improdutiva por força do direito
de propriedade, a fim de devolver as terras desaproveitadas à União
para programas de colonização.

A indústria, por sua vez, se orienta cada vez mais para sistemas
produtivos poupadores de mão-de-obra, nos quais cada novo emprego exige
altíssimos investimentos. Isso ocorre, aliás, em todo o mundo,
mas de forma mais aguda no Brasil, em razão da massa de desocupados
que juntou e dos efeitos desastrosos do desemprego sobre a sociedade.

A moderna industrialização brasileira teve o seu impulso inicial
através de dois atos de guerra. Getúlio Vargas impôs aos
aliados, como condição de dar seu apoio em tropas e matériasprimas,
a construção da Companhia Sidenirgica Nacional em Volta Redonda
e a devolução das jazidas de ferro de Minas Gerais. Surgiram,
assim, imediatamente após a guerra, dois dínamos da modernização
no Brasil. Volta Redonda foi a matriz da indústria naval e automobilística
e de toda a indústria mecânica. A Vale do Rio Doce pôs
nossas reservas minerais a serviço do Brasil, provendo delas o mercado
mundial. Cresceu, assim, como uma das principais empresas de seu ramo. Além
dessas empresas, o Estado criou várias outras com êxito menor,
como a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Nacional de Alcalis.

Essa política de capitalismo de Estado e de industrialização
de base provocou sempre a maior reação por parte dos privatistas
e dos porta-vozes dos interesses estrangeiros.

Assim é que, quando Getúlio Vargas se prepara para criar a
Petrobrás e a Eletrobrás, uma campanha uníssona de toda
a mídia levou seu governo a tal desmoralização que ele
se viu na iminência de ser enxotado do Catete. Venceu pelo próprio
suicídio, que acordou a nação para o caráter daquela
campanha e para os interesses que estavam atrás dos inimigos do governo.

Em conseqüência, os líderes da direita não alcançaram
o poder e o candidato de centro-esquerda, Juscelino Kubitschek, foi eleito
presidente. Com ele, se desencadeia a industrialização substitutiva.
Num mundo em que nem Dutra nem Getúlio conseguiam qualquer investimento,
Jtc, abandonando a política de capitalismo de Estado, atrai numerosas
empresas para implantar subsidiárias no Brasil, no campo da indústria
automobilística, naval, química, mecânica etc. Para tanto,
concedeu toda a sorte de subsídios, tais como terrenos, isenção
de impostos, empréstimos e avais a empréstimos estrangeiros.
O fez com tanta largueza, que muita indústria custou a seus donos menos
de 20% de investimento real do seu capital (Tavares 1964 ).

O fundamento dessa política, formulada pelo Centro de Estudos para
a América Latina (CEPAL), era o de que, elevando as barreiras alfandegárias
para reservar o mercado interno às indústrias que aqui se instalassem,
se promoveria uma Revolução Industrial equivalente à
que ocorreu originalmente em outros países. Os resultados foram, por
um lado, altamente exitosos pela modernização que essas indústrias
substitutivas das importações promoveram, dinamizando toda a
economia nacional.

Por outro lado, concentrou-se tanto em São Paulo, que fez desse estado
um pólo de colonização interna, crescendo exorbitantemente
e coactando o desenvolvimento industrial de outros estados. Simultaneamente
com esse processo, as metrópoles do Brasil absorveram imensas parcelas
da população rural que, não tendo lugar no seu sistema
de produção, se avolumaram como massa desempregada, gerando
uma crise sem paralelo de violência urbana.

O Estado brasileiro não tem nenhum programa de reestruturação
econômica que permita garantir pleno emprego a essas massas dentro de
prazos previsíveis. Que fazer? Prosseguir o genocídio dos pioneiros,
que nas terras de ninguém da Amazônia procuram seu pé-de-chão?
Continuar castrando as mulheres de Goiás, por exemplo, para guardar
espaço brasileiro não se sabe para quem? Insistir num liberalismo
aloucado, que regeu a economia desde 64, enriquecendo os ricos e empobrecendo
os pobres? Continuar imbuídos da ilusão de que o melhor para
o Brasil é o espontaneísmo, regido pelo lucrismo dos banqueiros,
que acabará por resolver nossos problemas? Até quando este país
continuará sem seu projeto próprio de desenvolvimento autônomo
e auto-sustentável? Os tecnocratas dos últimos governos só
vêem saída na venda a qualquer preço das indústrias
criadas no passado com tão grandes sacrifícios, seguida do mergulho
da indústria brasileira no mercado global, confiante em que ele nos
dará a prosperidade, se não para o povo trabalhador, ao menos
para os que estão bem integrados no sistema econômico.

Se fôssemos uma pequena nação, seria uma fatalidade
para nós a integração no Colosso. Sendo o que somos,
não se pode adiar mais a formulação de um projeto próprio
que nos insira no contexto mundial, guardando nossa autonomia econômica
para um crescimento autônomo. O que nos falta hoje é maior indignação
generalizada em face de tanto desemprego, tanta fome e tanta violência
desnecessárias, porque perfeitamente sanáveis com alterações
estratégicas na ordem econômica. Falta mais, ainda, competência
política para usar o poder na realização de nossas potencialidades.

A história nos fez, pelo esforço de nossos antepassados, detentores
de um território prodigiosamente rico e de uma massa humana metida
no atraso mas sedenta de modernidade e de progresso, que não podemos
entregar ao espontaneísmo do mercado mundial. A tarefa das novas gerações
de brasileiros é tomar este país em suas mãos para fazer
dele o que há de ser, uma das nações mais progressistas,
justas e prósperas da terra.

DETERIORAÇÃO URBANA

A própria população urbana, largada a seu destino,
encontra soluções para seus maiores problemas. Soluções
esdrúxulas é verdade, mas são as únicas que estão
a seu alcance. Aprende a edificar favelas nas morrarias mais íngremes
fora de todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhe permitem viver
junto aos seus locais de trabalho e conviver como comunidades humanas regulares,
estruturando uma vida social intensa e orgulhosa de si. Em São Paulo,
onde faltam morrarias, as favelas se assentam no chão liso de áreas
de propriedade contestada e organizam-se socialmente como favelas. Resistem
quanto podem a tentativas governamentais de desalojá-las e exterminá-las.
Quem puder oferecer 1 milhão de casas, terá direito de falar
em erradicação de favelas. Outra expressão da criatividade
dos favelados é aproveitar a crise das drogas como fontes locais de
emprego. Essa “solução”, ainda que tão extravagante
e ilegal, reflete a crise da sociedade norte-americana que com seus milhões
de drogados produz bilhões de dólares de drogas, cujo excesso
derrama aqui.

É nessa base que se estrutura o crime organizado, oferecendo uma
massa de empregos na própria favela, bem como uma escala de heroicidade
dos que o capitaneiam e um padrão de carreira altamente desejável
para a criançada. Antigamente, tratava-se apenas do jogo do bicho,
que empregava ex-presidiários e marginais, lhes dando condições
de existência legal. Hoje em dia é o crime organizado como grande
negócio que cumpre o encargo de viciar e satisfazer o vício
de 1 milhão de drogados. Quem quiser acabar com o crime organizado,
deve conter o subsídio ao vício dado pelos norte-americanos.

Até então, o que temos são gestos vãos, de curta
duração, incapazes de conter por si os problemas das cidades.
É pensável uma reforma urbana. Hoje tão urgente quanto
a agrária. É também pensável uma economia de pleno
emprego, mas ninguém tem planos concretos, nesse sentido, que possam
ser postos em prática.

Outro processo dramático vivido por nossas populações
urbanas é sua deculturação.

Sua gravidade é quase equivalente à primeira grande deculturação
que sofremos, no primeiro século, ao desindianizar os índios,
desafricanizar os negros e deseuropeizar o europeu para nos fazermos. Isso
resultou numa população de cultura arcaica, mas muito integrada,
em que um saber operativo se transmitia de pais a filhos e em que todos viviam
um calendário civil regido pela Igreja, dentro de padrões morais
bem prescritos.

A questão hoje é mais grave. A luta dentro dessa massa urbana
é ferocíssima. Se associam, eventualmente, nos festivais, como
o Carnaval e cerimônias de Candomblé, como paixões esportivas
co-participadas e como os cultos de desesperados. Esses marginais não
devem, porém, ser confundidos com a secular população
favelada das grandes cidades, que de fato são suas principais vítimas.

O normal na marginália é uma agressividade em que cada um
procura arrancar o seu, seja de quem for. Não há famlia, mas
meros acasalamentos eventuais. A vida se assenta numa unidade matricêntrica
de mulheres que parem filhos de vários homens.

Apesar de toda a miséria, essa heróica mãe defende
seus filhos e, ainda que com fome, arranja alguma coisa para pôr em
suas bocas. Não tendo outro recurso, se junta a eles na exploração
do lixo e na mendicância nas ruas das cidades. É incrível
que o Brasil, que gosta tanto de falar de sua família cristã,
não tenha olhos para ver e admirar essa mulher extraordinária
em que se assenta toda a vida da gente pobre.

A anomia freqüentemente se instala, prostrando multidões no
desânimo e no alcoolismo. Muitas vezes se deteriora, também,
na anarquia, em gestos fugazes de revolta incontrolável.

Um corpo elementar de valores co-participados a todos afeta, oriundos principalmente
dos cultos afro-brasileiros, do futebol e do Carnaval, suas paixões.
As circunstâncias fazem surgir, periodicamente, lideranças ferozes
que a todos se impõem na divisão do despojo de saqueios. Essa
situação é agravada por uma lúmpen-burguesia de
microempresários que vivem da exploração dessa gente
paupérrima e os controla através de matadores profissionais,
recrutados entre fugidos da prisão e policiais expulsos de suas corporações.

O doloroso é que esses bandos se instalam no meio das populações
faveladas e das periferias, impondo a mais dura opressão para impedir
que escapem do seu domínio.

Isso é o que desejam muitas famílias pobres, geralmente desajustadas.

Paradoxalmente, confiam é no crime organizado, que costuma limpar
a favela dos pequenos delinqüentes mais irresponsáveis e violentos
e põe cobro à caçada de crianças pelos matadores
profissionais. Talvez, por isso, tanto se apeguem aos cultos evangélicos
que salvam os homens do alcoolismo, as mulheres da pancadaria dos maridos
bêbados, as crianças de toda sorte de violência e do incesto.
Os cultos católicos, regidos por sacerdotes bem formados, raramente
aparecem ali. Quem compete mais com os evangélicos são os cultos
afro-brasileiros, que com sua hierarquia rígida e com sua liturgia
apuradíssima abrem perspectivas de carreira religiosa e de vidas devotadas
ao culto.

Ultimamente, a coisa se tornou mais complexa porque as instituições
tradicionais estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrinação.
A escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não
politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação
de massa fazendo a cabeça das pessoas. Impondo-lhes padrões
de consumo inatingíveis, desejabilidades inalcançáveis,
aprofundando mais a marginalidade dessas populações e seu pendor
à violência. Algo tem que ver a violência desencadeada
nas ruas com o abandono dessa população entregue ao bombardeio
de um rádio e de uma televisão social e moralmente irrresponsáveis,
para as quais é bom o que mais vende, refrigerantes ou sabonetes, sem
se preocupar com o desarranjo mental e moral que provocam.

3 CLASSE, COR E PRECONCEITO CLASSE E PODER

Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos
conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários,
cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica;
e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general,
o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros.
Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada
patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê,
além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio.

Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho
nessa cúpula. É o estamento gerencial das empresas estrangeiras,
que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele emprega
os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião
pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com
desfaçatez cada vez mais desabrida.

Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas
de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo-clero
e similares. Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes,
procurando tirar disso alguma vantagem. Dentro dessa classe, entre o clero
e os raros intelectuais, é que surgiram mais subversivos em rebeldia
contra a ordem. A insurgência mesmo foi encarnada por gente de seus
estratos mais baixos. Por isso mesmo mais padres foram enforcados que qualquer
outra categoria de gente.

Seguem-se as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia
operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores
especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos
proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades
rurais etc.

Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das
classes sociais brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos
chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas
e periferias da cidade. São os enxadeiros, os bóias-frias, os
empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas,
quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu
desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável,
os situa na condição da classe intrinsecamente oprimida, cuja
luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a
sociedade para refazê-la.

Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como
um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são
as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classes
intermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas.
E seu componente majoritário são as classes oprimidas, só
capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta
de sua revolta.

Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da miserabilidade
em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar os donos
do poder.

O diagrama abaixo retrata a estratificação social brasileira
tal como a vemos, empiricamente. Aí estão seus quatro estratos
superpostos, correspondentes às classes dominantes, aos setores intermédios,
às classes subalternas e às classes oprimidas. Os primeiros,
cujo número é insignificante, detêm, graças ao
apoio das outras classes, o poder efetivo sobre toda a sociedade. Os setores
intermédios funcionam como um atenuador ou agravador das tensões
sociais e são levados mais vezes a operar no papel de mantenedores
da ordem do que de ativistas de transformações.

As classes subalternas são formadas pelos que estão integrados
regularmente na vida social, no sistema produtivo e no corpo de consumidores,
geralmente sindicalizados.

Seu pendor é mais para defender o que já têm e obter
mais, do que para transformar a sociedade. O quarto estrato, formado pelas
classes oprimidas, é o dos excluídos da vida social, que lutam
por ingressar no sistema de produção e pelo acesso ao mercado.
Na verdade, é a este último corpo, apesar de sua natureza inorgânica
e cheia de antagonismos, que cabe o papel de renovador da sociedade como combatente
da causa de todos os outros explorados e oprimidos. Isso porque só
tem perspectivas de integrar a vida social rompendo toda estrutura de classes.
Essa configuração de classes antagônicas mas interdependentes
organiza-se, de fato, para fazer oposição às classes
oprimidas – ontem escravos, hoje subassalariados – em razão do pavor-pânico
que infunde a todos a ameaça de uma insurreição social
generalizada.

DISTÂNCIA SOCIAL

Com efeito, no Brasil, as classes ricas e as pobres se separam umas das
outras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto
as que medeiam entre povos distintos. Ao vigor físico, à longevidade,
à beleza dos poucos situados no ápice – como expressão
do usufruto da riqueza social – se contrapõe a fraqueza, a enfermidade,
o envelhecimento precoce, a feiúra da imensa maioria – expressão
da penúria em que vivem. Ao traço refinado, à inteligência
– enquanto reflexo da instrução -, aos costumes patrícios
e cosmopolitas dos dominadores, corresponde o traço rude, o saber vulgar,
a ignorância e os hábitos arcaicos dos dominados.

Diagrama 1 “ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

– Classes dominantes: PATRONATO: Oligárquico – Senhorial Parasitário;
Moderno – Empresarial Contratista (Estamento Gerencial Estrangeiro PATRICIADO:
Estatal – Político Militar Tecnocrático; Civil – Eminências
Lideranças Celebridades – Setores intermediários: AUTÔNOMOS:
Profissionais liberais; Pequenos empresários DEPENDENTES: Funcionários;
Empregados – Classes subalternas: CAMPESINATO: Assalariados rurais; Parceiros;
Minifundistas OPERARIADO: Fabril; Serviços – Classes oprimidas: MARGINAIS:
Trabalhadores estacionais; Recoletores – Volantes; Empregados domésticos;
Biscateiros – Delinqüentes; Prostitutas – Mendigos”
Quando um indivíduo consegue atravessar a barreira de classe para ingressar
no estrato superior e nele permanecer, se pode notar em uma ou duas gerações
seus descendentes crescerem em estatura, se embelezarem, se refinarem, se
educarem, acabando por confundir-se com o patriciado tradicional.

Observando a massa .popular de aglomerados brasileiros, onde predomina um
ou outro estrato, se pode ver como se contrastaram gritantemente. A multidão
de uma praia de Copacabana e os moradores de uma favela ou subúrbio
carioca, ou mesmo o público em um comício de Natal ou em Campinas,
como representações dessas camadas opostas, se configuram ao
observador mais desavisado como humanidades distintas.

A estratificação social gerada historicamente tem também
como característica a racionalidade resultante de sua montagem como
negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida,
e aos demais subjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio. Esse
caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda hoje, menos
uma sociedade do que uma feitoria, porque não estrutura a população
para o preenchimento de suas condições de sobrevivência
e de progresso, mas para enriquecer uma camada senhorial voltada para atender
às solicitações exógenas.

Essas duas características complementares – as distâncias abismais
entre os diferentes estratos e o caráter intencional do processo formativo
– condicionaram a camada senhorial para encarar o povo como mera força
de trabalho destinada a desgastar-se no esforço produtivo e sem outros
direitos que o de comer enquanto trabalha, para refazer suas energias produtivas,
e o de reproduzir-se para repor a mão- de-obra gasta.

Nem podia ser de outro modo no caso de um patronato que se formou lidando
com escravos, tidos como coisas e manipulados com objetivos puramente pecuniários,
procurando tirar de cada peça o maior proveito possível. Quando
ao escravo sucede o parceiro, depois o assalariado agrícola, as relações
continuam impregnadas dos mesmos valores, que se exprimem na desumanização
das relações de trabalho.

Em conseqüência, nas vilas próximas às fazendas,
se concentra uma população detritária de velhos desgastados
no trabalho e de crianças entregues a seus avós. O grosso da
população em idade ativa passa a vida fora, sobre os caminhões
de bóias-frias ou como empregadas domésticas, prostitutas etc.

Nas metrópoles, essa situação se agrava e, também,
se abranda. Nas camadas mais pobres se podem distinguir famílias se
esforçando para ascender e outras tantas soterradas cada vez mais na
pobreza, na delinqüência e na marginalidade.

As classes sociais brasileiras não podem ser representadas por um
triângulo, com um nível superior, um núcleo e uma base.
Elas configuram um losango, com um ápice finíssimo, de pouquíssimas
pessoas, e um pescoço, que se vai alargando daqueles que se integram
no sistema econômico como trabalhadores regulares e como consumidores.
Tudo isso como um funil invertido, em que está a maior parte da população,
marginalizada da economia e da sociedade, que não consegue empregos
regulares nem ganhar o salário mínimo.

Diagrama 2 “REPRESENTAÇÃO DAS CLASSES SOCIAIS POR NÍVEIS
DE RENDA gravura muito difícil de ser explicada em palavras”

Diagrama 3 “PERFIS DO ÍNDICE DE CONFORTO DOMÉSTICO RURAL
E URBANO DE SEIS MUNICÍPIOS gravura muito difícil de ser explicada
em palavras”

Dada a diversidade de situações regionais, de prosperidade
e de pobreza, o simples translado de um trabalhador, que vá de uma
região a outra, pode representar uma ascensão substancial, se
ele consegue incorporar-se a um núcleo mais próspero.

Uma pesquisa que fiz realizar sobre as condições de existência
das camadas urbanas e rurais das várias regiões do Brasil nos
dá nítido perfil das condições de vida dessas
populações. O critério utilizado foi um índice
de conforto doméstico medido objetivamente pelos bens que havia na
vivenda. Uma trempe para cozinhar, um pote, um prato e alguns talheres podiam
valer quarenta pontos; enquanto uma casa cheia de todos os bens, com televisão,
geladeira, telefone e automóveis, podia valer até 2800 pontos.
As amostras de casas rurais e urbanas de catorze cidades foram utilizadas
para compor o índice e representá-lo graficamente (Ribeiro 1959;
Albershime 1962).

O perfil mais feio é o de Santarém, no Pará, região
extrativista em que a massa da população está soterrada
no nível mais baixo. Os gráficos seguintes mostram que a passagem
de Catalão, em Goiás – região de latifúndios pastoris
-, para Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul – lugar de sítios
e fazendas -, pode representar um grande progresso na vida. O translado para
Leopoldina, em Minas, pioraria a situação.

O perfil melhor é o de Ibirama, em Santa Catarina, região
granjeira que praticamente integrou toda sua população, de descendentes
de imigrantes alemães, ao sistema produtivo, dando-lhe melhores condições
de vida. Isso porque sucessivos governos, querendo atrair imigrantes europeus,
inclusive para melhorar a raça, a eles deu lotes de terra e ajuda econômica.
Coisa que nunca se fez, e até se proibiu fazer, para os brasileiros.

A superposição dos perfis de Ibirama, Mococa e Santarém
demonstra como a variação espacial afeta as condições
de vida da população e como essa é uma das razões
por que o brasileiro não pára, está sempre se transladando
de uma área a outra.

Essas diferenças sociais são remarcadas pela atitude de fria
indiferença com que as classes dominantes olham para esse depósito
de miseráveis, de onde retiram a força de trabalho de que necessitam.

É preciso viver num engenho, numa fazenda, num seringal, para sentir
a profundidade da distância com que um patrão ou seu capataz
trata os serviçais, no seu descaso pelo destino destes, como pessoas,
sua insciência de que possam ter aspirações, seu desconhecimento
de que estejam, eles também, investidos de uma dignidade humana.

A suscetibilidade patronal a qualquer gesto que possa ser tido como longinquamente
desrespeitoso por parte de um empregado contrasta claramente com o tratamento
boçal com que trata este. Exemplificativo disso é a diferença
de critérios de um policial ou de um juiz quando se vê diante
de ofensas ou danos feitos a um membro da classe senhorial ou a um popular.

Diagrama 4 “IBIRAMA – MOCOCA – SANTARÉM

gravura muito difícil de ser explicada em palavras” Isso e mil
síndromes mais – sobreviventes principalmente nas zonas rurais, mas
também presentes nas cidades – indicam como foi profundo o processo
de degradação do caráter do homem brasileiro da classe
dominante. Ele está enfermo de desigualdade. Enquanto o escravo e o
ex-escravo estão condenados à dignidade de lutadores pela liberdade,
os senhores e seus descendentes estão condenados, ao contrário,
ao opróbio de lutadores pela manutenção da desigualdade
e da opressão.

A classe dominante bifurcou sua conduta em dois estilos contrapostos. Um,
presidido pela mais viva cordialidade nas relações com seus
pares; outro, remarcado pelo descaso no trato com os que lhe são socialmente
inferiores. Assim é que na mesma pessoa se pode observar a representação
de dois papéis, conforme encarne a etiqueta prescrita do anfitrião
hospitaleiro, gentil e generoso diante de um visitante, ou o papel senhorial,
em face de um subordinado. Ambos vividos com uma espontaneidade que só
se explica pela conformação bipartida da personalidade.

A essa corrupção senhorial corresponde uma deterioração
da dignidade pessoal das camadas mais humildes, condicionadas a um tratamento
gritantemente assimétrico, predispostas a assumir atitudes de subserviência,
compelidas a se deixarem explorar até a exaustão. São
mais castas que classes, pela imutabilidade de sua condição
social.

A dignidade pessoal, nessas condições, só se preserva
através de atitudes evitativas, extremamente cautelosas na prevenção
de qualquer desentendimento. Essa é a explicação da reserva
e da desconfiança dos lavradores diante da classe patronal, fruto de
sua consciência de que, uma vez toldadas as relações,
só lhes resta a fuga, sem possibilidades de reclamar qualquer direito.
Aqueles que não conseguem introjetar essas atitudes, prontamente se
desajustam, saindo a perambular de fazenda a fazenda ou encaminhando-se às
cidades, quando não caem na anomia ou no banditismo. Na maior parte
das vezes, porém, o contexto sociocultural é suficientemente
homogêneo para induzir os indivíduos à acomodação,
só escapando delas as personalidades mais vigorosas, que, por sua própria
rebeldia, vão sendo excluídas das fazendas.

Os subprodutos mais característicos desse sistema foram o coronel
fazendeiro e o cabra, gerados socialmente como tipos humanos polarmente opostos,
substituídos hoje pelo gerente e pelo bóia-fria. O primeiro,
nas grandes cidades, comercia sua produção, onde vive temporadas
e educa seus filhos. É um homem em todo o valor da expressão,
um cidadão prestante de sua pátria. O segundo, nascendo e vivendo
dentro do cercado da fazenda, numa casa feita com suas próprias mãos,
só possuindo de seu a tralha que ele mesmo fabrica, devotado de sol
a sol a serviço do patrão, é mantido no analfabetismo
e na ignorância. Jamais alcança condições mínimas
para o exercício da cidadania, mesmo porque a fazenda é sua
verdadeira e única pátria. Escorraçado ou fugido dela
é um pária, que só aspira a ganhar o mato para escapar
ao braço punitivo do patrão, para se possível submeter-se
ainda mais solícito ao “amparo” de outro fazendeiro.

Ambos representam os produtos humanos naturais e necessários de uma
ordem que brilha no fazendeiro como a sua expressão mais nobre e se
degrada no lavrador como o seu dejeto, produzido socialmente para trabalhar
como enxadeiro, apenas aspirando a ascender a capataz na usina, a peão
na estância ou a cabra valente no sertão.

Dentro desse contexto social jamais se puderam desenvolver instituições
democráticas com base em formas locais de autogoverno. As instituições
republicanas, adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas
de exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus
agentes junto ao povo a própria camada proprietária. No mundo
rural, a mudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que,
dirigindo a seu talante as funções de repressão policial,
as instituições da propriedade na Colônia, no Império
e na República, exerceu desde sempre um poderio hegemônico.

A sociedade resultante tem incompatibilidades insanáveis.

Dentre elas, a incapacidade de assegurar um padrão de vida, mesmo
modestamente satisfatório, para a maioria da população
nacional; a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em conseqüência,
a inviabilidade de instituir-se uma vida democrática. Nessas condições,
a eleição é uma grande farsa em que massas de eleitores
vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários naturais.
Por tudo isso é que ela se caracteriza como uma ordenação
oligárquica que só se pode manter artificiosa ou repressivamente
pela compressão das forças majoritárias às quais
condena ao atraso e à pobreza.

Não é por acaso, pois, que o Brasil passa de colônia
a nação independente e de Monarquia a República, sem
que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas as nossas
instituições políticas constituem superfetações
de um poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato
fazendeiro.

A única saída possível para essa estrutura autoperpetuante
de opressão é o surgimento e a expansão do movimento
operário. Nas cidades, ao contrário da roça, o operário
sindicalizado já atua como um lutador livre diante do patrão,
chegando a ser arrogante na apresentação de suas reivindicações.
É por esse caminho que as instituições políticas
podem aperfeiçoar-se, dando realidade funcional à República.

CLASSE E RAÇA

A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa
e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação
que pesa sobre negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.

Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do que
deveria ser.

Não foi assim no passado. As lutas mais longas e mais cruentas que
se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e
a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos
do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico,
só se encerrou com a abolição.

Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para
a reconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias
dos quilombos, que se multiplicaram aos milhares.

Eram formações protobrasileiras, porque o quilombola era um
negro já aculturado, sabendo sobreviver na natureza brasileira, e,
também, porque lhe seria impossível reconstituir as formas de
vida da África. Seu drama era a situação paradoxal de
quem pode ganhar mil batalhas sem vencer a guerra, mas não pode perder
nenhuma. Isso foi o que sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal
deles, Palmares, que resistiu por mais de um século, mas afinal caiu,
arrasado, e teve o seu povo vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe.

Entretanto, a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes
brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de
participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado
à força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço,
se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em razão de sua
total desafricanização. A primeira tarefa cultural do negro
brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros
do capataz. Teve de fazê-lo para comunicar-se com seus companheiros
de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando
a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força
energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar a nova
língua, não só a refez, emprestando singularidade ao
português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão
por todo o território, uma vez que nas outras áreas se falava
principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani.

Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhões
de negros, desgastados como a principal força de trabalho de tudo o
que se produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. Ao fim do período
colonial, constituía uma das maiores massas negras do mundo moderno.
Sua abolição, a mais tardia da história, foi a causa
principal da queda do Império e da proclamação da República.
Mas as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema de recrutamento
da força de trabalho, substituindo a mão-de-obra escrava por
imigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente
e exportável a baixo preço.

O negro, condicionado culturalmente a poupar sua força de trabalho
para não ser levado à morte pelo chicote do capataz, contrastava
vivamente como força de trabalho com o colono vindo da Europa, já
adaptado ao regime salarial e predisposto a esforçar-se ao máximo
para conquistar, ele próprio, um palmo de terra em que pudesse prosperar,
livre da exploração dos fazendeiros.

O negro, sentindo-se aliviado da brutalidade que o mantinha trabalhando
no eito, sob a mais dura repressão – inclusive as punições
preventivas, que não castigavam culpas ou preguiças, mas só
visavam dissuadiar o negro de fugir -, só queria a liberdade. Em conseqüência,
os ex-escravos abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas
à procura de terrenos baldios em que pudessem acampar, para viverem
livres como se estivessem nos quilombos, plantando milho e mandioca para comer.
Caíram, então, em tal condição de miserabilidade
que a população negra reduziu-se substancialmente. Menos pela
supressão da importação anual de novas massas de escravos
para repor o estoque, porque essas já vinham diminuindo há décadas.
Muito mais pela terrível miséria a que foram atirados. Não
podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam, os fazendeiros
vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los,
uma vez que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda,
se caía fatalmente em outra.

As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos
senhores de escravos, guardam, diante do negro a mesma atitude de desprezo
vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera
força energética, como um saco de carvão, que desgastado
era substituído facilmente por outro que se comprava. Para seus descendentes,
o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há
de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade
inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como
culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características
da raça e não como resultado da escravidão e da opressão.
Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos
e até pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se
somam ao contingente branco para discriminar o negro-massa.

A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade,
nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse
de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que
pudesse educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência. Só
lhes deu, sobejamente, discriminação e repressão. Grande
parte desses negros dirigiu-se às cidades, onde encontrava um ambiente
de convivência social menos hostil. Constituíram, originalmente,
os chamados bairros africanos, que deram lugar às favelas. Desde então,
elas vêm se multiplicando, como a solução que o pobre
encontra para morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça
de serem erradicados e expulsos.

O negro rural, transladado às favelas, tem de aprender os modos de
vida da cidade, onde não pode plantar. Afortunadamente, encontram negros
de antiga extração nelas instalados, que já haviam construído
uma cultura própria, na qual se expressavam com alto grau de criatividade.
Uma cultura feita de retalhos do que o africano guardara no peito nos longos
anos de escravidão, como sentimentos musicais, ritmos, sabores e religiosidade.

A partir dessas precárias bases, o negro urbano veio a ser o que
há de mais vigoroso e belo na cultura popular brasileira.

Com base nela é que se estrutura o nosso Carnaval, o culto de Iemanjá,
a capoeira e inumeráveis manifestações culturais. Mas
o negro aproveita cada oportunidade que lhe é dada para expressar o
seu valor. Isso ocorre em todos os campos em que não se exige escolaridade.
É o caso da música popular, do futebol e de numerosas formas
menos visíveis de competição e de expressão. O
negro vem a ser, por isso, apesar de todas as vicissitudes que enfrenta, o
componente mais criativo da cultura brasileira e aquele que, junto com os
índios, mais singulariza o nosso povo.

O enorme contingente negro e mulato é, talvez, o mais brasileiro
dos componentes de nosso povo. O é porque, desafricanizado na mó
da escravidão, não sendo índio nativo nem branco reinol,
só podia encontrar sua identidade como brasileiro. Vale dizer, como
um povo novo, feito de gentes vindas de toda parte, em pleno e alegre processo
de fusão. Assim é que os negros não se aglutinam como
uma massa disputante de autonomia étnica, mas como gente intrinsecamente
integrada no mesmo povo, o brasileiro.

O mulato, participando biológica e socialmente do mundo branco, pode
acercar-se melhor de sua cultura erudita e nos deu algumas das figuras mais
dignas e cultas que tivemos nas letras, nas artes e na política. Entre
eles, o artista Aleijadinho; o escritor Machado de Assis; o jurista Rui Barbosa;
o compositor José Maurício; o poeta Cruz e Sousa; o tribuno
Luís Gama; como políticos, os irmãos Mangabeira e Nelson
Carneiro; e, como intelectuais, Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos. Teve,
também, por sua vivacidade e pela extraordinária beleza de muitos
deles – sobretudo das mulatas -, resultantes do vigor híbrido, maiores
chances de ascensão social, ainda que só progredisse na medida
em que negava sua negritude. Posto entre os dois mundos conflitantes – o do
negro, que ele rechaça, e o do branco, que o rejeita -, o mulato se
humaniza no drama de ser dois, que é o de ser ninguém.

Nos últimos anos, por efeito do sucesso do negro americano, que foi
tido pelos brasileiros como uma vitória da raça, mas principalmente
pela ascensão de uma parcela da população de cor, através
da educação e da ampliação das oportunidades de
emprego, o negro brasileiro vem tomando coragem de assumir orgulhosamente
sua condição de negro.

O mesmo ocorreu a muitos mulatos que saltaram para o lado negro de sua dupla
natureza. Essa passagem, de fato, era muito difícil, em razão
da imensa massa negra, afundada na miséria mais atroz, com que não
podia se confundir. Massa que compõe a imagem popular do negro, cuja
condição é absolutamente indesejável, porque sobre
ela recai, com toda dureza, o pauperismo, as enfermidades, a criminalidade
e a violência.

Isso ocorre numa sociedade doentia, de consciência deformada, em que
o negro é considerado como culpado de sua penúria. Nessas circunstâncias,
seu sofrimento não desperta nenhuma solidariedade e muito menos a indignação.
Em conseqüência, o destino dessa parcela majoritária da
população não é objeto de nenhuma forma específica
de ajuda para que saia da miséria e da ignorância.

Prevalece, em todo o Brasil, uma expectativa assimilacionista, que leva
os brasileiros a supor e desejar que os negros desapareçam pela branquização
progressiva. Ocorre, efetivamente, uma morenização dos brasileiros,
mas ela se faz tanto pela branquização dos pretos, como pela
negrização dos brancos. Desse modo, devemos configurar no futuro
uma população morena em que cada família, por imperativo
genético, terá por vezes, ocasionalmente, uma negrinha retinta
ou um branquinho desbotado.

É verdade que com os maiores índices de fertilidade dos pretos,
em razão de sua pobreza e da conduta que corresponde a ela, os negros
iriam imprimir mais fortemente sua marca na população brasileira.
Não é impossível que, lá pelos meados do próximo
século, num Brasil de 300 milhões, haja uma nítida preponderância
de pretos e mulatos.

A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele
não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua
pele. Nessa escala, negro é o negro retinto, o mulato já é
o pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara,
já passa a incorporar a comunidade branca. Acresce que aqui se registra,
também, uma branquização puramente social ou cultural.
É o caso dos negros que, ascendendo socialmente, com êxito notório,
passam a integrar grupos de convivência dos brancos, a casar-se entre
eles e, afinal, a serem tidos como brancos. A definição brasileira
de negro não pode corresponder a um artista ou a um profissional exitoso.
Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro,
o pintor Santa Rosa, com um jovem, também negro, que lutava para ascender
na carreira diplomática, queixando-se das imensas barreiras que dificultavam
a ascensão das pessoas de cor. O pintor disse, muito comovido: “Compreendo
perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro”.

Já no século passado, um estrangeiro, estranhando ver um mulato
no alto posto de capitão-mor, ouviu a seguinte explicação:
“Sim, ele foi mestiço, mas como capitão- mor não
pode deixar de ser branco” (Koster 1942:480).

A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação
em que a mestiçagem não é punida mas louvada. Com efeito,
as uniões inter-raciais, aqui, nunca foram tidas como crime nem pecado.
Provavelmente porque o povoamento do Brasil não se deu por famílias
européias já formadas, cujas mulheres brancas combatessem todo
o intercurso com mulheres de cor.

Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos com
multidões de mulheres índias e negras.

Essa situação não chega a configurar uma democracia
racial, como quis Gilberto Freyre e muita gente mais, tamanha é a carga
de opressão, preconceito e discriminação antinegro que
ela encerra. Não o é também, obviamente, porque a própria
expectativa de que o negro desapareça pela mestiçagem é
um racismo. Mas o certo é que contrasta muito, e contrasta para melhor,
com as formas de preconceito propriamente racial que conduzem ao apartheid.

É preciso reconhecer, entretanto, que o apartheid tem conteúdos
de tolerância que aqui se ignoram. Quem afasta o alterno e o põe
à distância maior possível, admite que ele conserve, lá
longe, sua identidade, continuando a ser ele mesmo. Em conseqüência,
induz à profunda solidariedade interna do grupo discriminado, o que
o capacita a lutar claramente por seus direitos sem admitir paternalismos.
Nas conjunturas assimilacionistas, ao contrário, se dilui a negritude
numa vasta escala de gradações, que quebra a solidariedade,
reduz a combatividade, insinuando a idéia de que a ordem social é
uma ordem natural, senão sagrada.

O aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá
de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro
para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições
de terrível violência a que é submetido. É de assinalar,
porém, que a ideologia assimilacionista da chamada democracia racial
afeta principalmente os intelectuais negros. Conduzindo-os a campanhas de
conscientização do negro para a conciliação social
e para o combate ao ódio e ao ressentimento do negro. Seu objetivo
ilusório é criar condições de convivência
em que o negro possa aproveitar as linhas de capilaridade social para ascender,
através da adoção explícita das formas de conduta
e de etiqueta dos brancos bem-sucedidos.

Cada negro de talento extraordinário realiza sua própria carreira,
como a de Pelé, a de Pixinguinha ou a de Grande Otelo e inumeráveis
outros esportistas e artistas, sem encontrar uma linguagem apropriada para
a luta anti-racista. O assimilacionismo, como se vê, cria uma atmosfera
de fluidez nas relações inter-raciais, mas dissuade o negro
para sua luta específica, sem compreender que a vitória só
é alcançável pela revolução social.

A Revolução Cubana veio demonstrar que os negros estão
muito mais preparados do que se pode supor para ascender socialmente. Com
efeito, alguns anos de escolaridade francamente aberta e de estímulo
à auto-superação aumentaram, rapidamente, o contingente
de negros que alçaram aos postos mais altos do governo, da sociedade
e da cultura cubanas. Simultaneamente, toda a parcela negra da população,
liberada da discriminação e do racismo, confraternizou com os
outros componentes da sociedade, aprofundando assinalavelmente o grau de solidariedade.

Tudo, isso demonstra, claramente, que a democracia racial é possível,
mas só é praticável conjuntamente com a democracia social.
Ou bem há democracia para todos, ou não há democracia
para ninguém, porque à opressão do negro condenado à
dignidade de lutador da liberdade, corresponde o opróbio do branco
posto no papel de opressor dentro de sua própria sociedade.

4 ASSIMILAÇÃO OU SEGREGAÇÃO RAÇA E COR

A análise do crescimento da população brasileira e
de sua composição segundo a cor é altamente expressiva
das condições de opressão que o branco dominador impôs
aos outros componentes. Avaliamos em 6 milhões o número de negros
introduzidos no Brasil como escravos até 1850, quando da abolição
do tráfico; em 5 milhões o número mínimo de índios
com que as fronteiras da civilização brasileira se foram defrontando,
sucessivamente, no mesmo período; e em 5 milhões, no máximo,
o número de europeus vindos para o Brasil até 1950. Destes 5
milhões, apenas 500 mil ingressaram no Brasil antes de 1850. De seus
bagos viemos. Considerada a composição da população
em 1950 (os censos de 1960 e 1970 não trazem dados referentes à
raça ou à cor), verifica-se que os índios de vida tribal,
mais ou menos autônomos, estavam reduzidos a cerca de 100 mil (Ribeiro
1957 ); os negros terão alcançado um máximo de 5,6 milhões;
enquanto os que se definem como pardos (mulatos) seriam 13,7 milhões;
e os brancos (que são principalmente mestiços) ascenderiam a
32 milhões. Os índios inesperadamente se triplicaram de 1950
a 1990, provavelmente por se terem adaptado às moléstias dos
brancos e por efeito da proteção oficial, que diminuiu substancialmente
as chacinas.

Tabela 4

“1 BRASIL CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA SEGUNDO
A COR (em Milhares)

Brancos 1872: 3.854 ( 38%) 1890: 6.302 ( 44%0 1940: 26.206 ( 63%) 1950: 32.027
( 62%) 1990: 81.407 ( 55%) Pretos 1872: 1.976 ( 20%) 1890: 2.098 ( 15%0 1940:
6.644 ( 15%) 1950: 5.692 ( 11%) 1990: 7.264 ( 5%)

Pardos (Englobamos nesta parcela (pardos) os contingentes designados como
amarelos nos censos brasileiros, representados principalmente pelos nipo-brasileiros
e os índios, que não alcançam 5% dos totais) 1872: 4.262
( 42%) 1890: 5.934 ( 41%0 1940: 8.760 ( 21%) 1950: 13.786 ( 26%) 1990: 57.822
( 39%) Totais: 1872: 9.930 1890: 14.333 1940: 41.236 1950: 51.922 1990: 147.306
Fontes: IBGE: Conselho Nacional de Estatística (Laboratório
de Estatística),1961; e Anuário Estatístico do Brasil,
1993.” Apesar das deformações que são impostas pela
confusão bem brasileira da condição social com a cor,
discrepâncias censitárias tão espantosas não se
explicam simplesmente por isso, nem por taxas diferenciais de fecundidade,
mas por fatores ecológicos e sociais. A própria miscigenação
deve ser analisada em relação à circunstância de
que todos os contingentes alienígenas eram constituídos principalmente
por homens que tinham de disputar as mulheres da terra, as índias.
É sabido quanto foi insignificante a proporção de mulheres
brancas vindas para o Brasil.

Nessas condições, recaiu sobre a mulher indígena a
função de matriz fundamental, geralmente fecundada pelo branco.

Assim se explica, em parte, a branquização dos brasileiros,
já que os mestiços de europeu com índio configuram um
tipo moreno claro que, aos olhos e à sensibilidade racial de qualquer
brasileiro, são puros brancos.

Os censos refletem, como se vê na tabela 4, um decréscimo progressivo
da proporção de negros na população brasileira,
que passa de um quinto para um vigésimo da população
no último século. Também em números absolutos
houve queda, porque depois de um ascenso de 2 a 6,6 milhões, nos cinqüenta
anos posteriores à abolição, caiu para 5,6 milhões
em 1950 e apenas alcança 7,2 milhões em 1990. É presumível
que muito negro se tenha classificado como pardo, porque cada pessoa escolheu
sua cor ou a de seu grupo doméstico.

É evidente, porém, o contraste da progressão do grupo
negro com o grupo branco, que salta de 38%, em 1872, para 62%, em 1950, e
para 55%, em 1990.

Numericamente, de 3,8 para 32 e para 81,4 milhões no mesmo período.
O alto incremento do contingente branco não é explicável
pelo crescimento da migra&ccedccedil;ão européia, a partir de 1880.
O vulto desta nunca alcançou um nível que permitisse influir
decisivamente sobre a composição da população
original. A explosão demográfica dos “brancos” brasileiros
só é inteligível, pois, em termos de um crescimento vegetativo
muito intenso, em números absolutos. É prodigiosamente grande
em relação às outras parcelas da população,
propiciado pelas melhores condições de vida que fruíam
em relação aos negros e aos pardos; aqui também atuou,
provavelmente, a tendência a classificar como brancos todos os bem-
sucedidos.

Quanto ao contingente indígena, contamos com estudos dos fatores
responsáveis por seu extermínio, entre os quais sobrelevam,
no nível biótico, os efeitos das moléstias introduzidas
pelo europeu e, no nível social, as condições de opressão
a que foi submetido (Ribeiro 1956 ). Pouco se sabe com respeito aos negros,
sendo, porém, admissível uma ação igualmente deletéria
dos mesmos fatores, preponderando, talvez, as condições de opressão
sobre os efeitos letais das enfermidades. Isto porque, já na África,
eles estavam expostos ao mesmo circuito de contágio de doenças
que os europeus. Depois da abolição da escravatura, continuaram
atuando sobre o negro livre, como fatores de redução de sua
expansão demográfica, as terríveis condições
de penúria a que ficou sujeito. Basta considerar a miserabilidade das
populações brasileiras das camadas mais pobres, dificilmente
suportável por qualquer grupo humano, e que afeta ainda mais duramente
os negros, para se avaliar o pesó desse fator.

BRANCOS VERSUS NEGROS

O censo de 1950 permite algumas comparações significativas
entre as condições de vida e de trabalho de negros e brancos
na população brasileira ativa. Considerando, por exemplo, o
grupo patronal em conjunto, verifica-se que as possibilidades de um negro
chegar a integrá-lo são enormemente menores, já que de
cada mil brancos ativos maiores de dez anos, 23 são empregadores, contra
apenas quatro pretos donos de empresas por cada mil empregados.

Comparando a posição ocupacional dos 4 milhões de pretos
maiores de dez anos de idade com o milhão de estrangeiros registrados
pelo mesmo censo, verifica-se que, enquanto os primeiros contribuem com apenas
20 mil empregadores, os últimos detém 86 mil propriedades. É
visível que esses estrangeiros, vindos ao Brasil nas últimas
décadas como imigrantes, encontraram condições de ascensão
social muito mais rápida que o conjunto da população
existente, porém enormemente mais intensa que o grupo negro.

Segundo os dados do mesmo censo, no conjunto das ocupações
de alto padrão havia um empregador preto para cada 25 não pretos;
e um preto para cada cinqüenta profissionais liberais. Coerentemente,
nas categorias profissionais mais humildes, se encontrava um preto para cada
sete operários fabris de outras cores e, o que é muito expressivo,
um preto para cada quatro outros lavradores do eito.

Examinando a carreira do negro no Brasil se verifica que, introduzido como
escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução
das tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos os setores
produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade
de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava
precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo
à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição,
o negro se viajungido a novas formas de exploração que, embora
melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade
e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um
subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava
sendo principalmente o de animal de serviço.

Enquanto escravo poderia algum proprietário previdente ponderar,
talvez, que resultaria mais econômico manter suas “peças”
nutridas para tirar delas, a longo termo, maior proveito. Ocorreria, mesmo,
que um negro desgastado no eito tivesse oportunidade de envelhecer num canto
da propriedade, vivendo do produto de sua própria roça, devotado
a tarefas mais leves requeridas pela fazenda. Liberto, porém, já
não sendo de ninguém, se encontrava só e hostilizado,
contando apenas com sua força de trabalho, num mundo em que a terra
e tudo o mais continuava apropriada. Tinha de sujeitar-se, assim, a uma exploração
que não era maior que dantes, porque isso seria impraticável,
mas era agora absolutamente desinteressada do seu destino. Nessas condições,
o negro forro, que alcançara de algum modo certo vigor físico,
poderia, só por isso, sendo mais apreciado como trabalhador, fixar-se
nalguma fazenda, ali podendo viver e reproduzir. O débil, o enfermo,
o precocemente envelhecido no trabalho, era simplesmente enxotado como coisa
imprestável.

Depois da primeira lei abolicionista – a Lei do Ventre Livre, que liberta
o filho da negra escrava -, nas áreas de maior concentração
da escravaria, os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas
próximas, as crias de suas negras que, já não sendo coisas
suas, não se sentiam mais na obrigação de alimentar.
Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre ( 1871 ), fundaram-se nas
vilas e cidades do estado de São Paulo dezenas de asilos para acolher
essas crianças, atiradas fora pelos fazendeiros. Após a abolição,
à saída dos negros de trabalho que não mais queriam servir
aos antigos senhores, seguiu-se a expulsão dos negros velhos e enfermos
das fazendas. Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à
entrada das vilas e cidades, nas condições mais precárias.
Para escapar a essa liberdade famélica é que começaram
a se deixar aliciar para o trabalho sob as condições ditadas
pelo latifúndio.

Com o desenvolvimento posterior da economia agrícola de exportação
e a superação conseqüente da auto-suficiência das
fazendas, que passaram a concentrar-se nas lavouras comerciais (sobretudo
no cultivo do café, do algodão e, depois, no plantio de pastagens
artificiais), outros contingentes de trabalhadores e agregados foram expulsos
para engrossar a massa da população residual das vilas. Era
agora constituída não apenas de negros, mas também de
pardos e brancos pobres, confundidos todos como massa dos trabalhadores “livres”
do eito, aliciáveis para as fainas que requeressem mão-de-obra.
Essa humanidade detritária predominantemente negra e mulata pode ser
vista, ainda hoje, junto aos conglomerados urbanos, em todas as áreas
do latifúndio, formada por braceiros estacionais, mendigos, biscateiros,
domésticas, cegos, aleijados, enfermos, amontoados em casebres miseráveis.
Os mais velhos, já desgastados no trabalho agrícola e na vida
azarosa, cuidam das crianças, ainda não amadurecidas para nele
engajar-se.

Nessas condições é que se deve procurar a explicação
da gritante discrepância entre a expansão do contingente branco
e do negro no desenvolvimento da população brasileira, permitindo
ao primeiro crescer, nos últimos séculos, na proporção
de um para nove e, ao outro, apenas de um para dois e meio, reduzindo seu
montante tanto percentualmente como em números absolutos, porque caíram
de 6,6 milhões, em 1940, para 5,7 milhões, em 1950, voltando
a aumentar para apenas 7,2 milhões, em 1990.

Também nas cidades e mesmo nas áreas industriais que absorveram,
nas últimas décadas, enormes massas rurais, incorporando-as
ao operariado, a integração do contingente negro não
parece ter sido proporcional ao seu vulto na população total.

Pesquisas sobre as relações inter-raciais no Brasil revelam
que se somam, no caso, fatores de despreparo do negro para a integração
na sociedade industrial e fatores de repulsão, que tornam mais difícil
o caminho da ascensão social para as pessoas de cor (Pierson 1945;
Costa Pinto 1953; Nogueira 1955; Ianni 1962; Cardoso 1962; Fernandes 1964
).

A situação de inferioridade dos pardos e negros com respeito
aos brancos persiste em 1990. Os poucos dados disponíveis mostram que
12% dos brancos maiores de sete anos eram analfabetos, mas os negros eram
30% e os pardos 29%. Por outro lado, o rendimento anual médio (em Cr$
) de pessoas de mais de dez anos era de 32.212 para os brancos, de 13.295
para os pretos e de 15.308 para os pardos (Anuário Estatístico
do Brasil, IBGE, 1993 ). Lamentavelmente, as informações quanto
à cor para 1990 são muito mais escassas que para 1950.

Assim, o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pela industrialização,
ameaça não romper com a superconcentração da riqueza,
do poder e do prestígio monopolizado pelo branco, em virtude da atuação
de pautas diferenciadoras só explicáveis historicamente, tais
como: a emergência recente do negro da condição escrava
à de trabalhador livre; uma efetiva condição de inferioridade,
produzida pelo tratamento opressivo que o negro suportou por séculos
sem nenhuma satisfação compensatória; a manutenção
de critérios racialmente discriminatórios que, obstaculizando
sua ascensão à simples condição de gente comum,
igual a todos os demais, tornou mais difícil para ele obter educação
e incorporar-se na força de trabalho dos setores modernizados.

As taxas de analfabetismo, de criminalidade e de mortalidade dos negros
são, por isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso da sociedade
brasileira em cumprir, na prática, seu ideal professado de uma democracia
racial que integrasse o negro na condição de cidadão
indiferenciado dos demais.

Florestan Fernandes assinala que “enquanto não alcançarmos
esse objetivo, não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia.
Por um paradoxo da história, o negro converteu-se, em nossa era, na
pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse suporte
da civilização moderna” ( 1964:738 ).

Apesar da associação da pobreza com a negritude, as diferenças
profundas que separam e opõem os brasileiros em extratos flagrantemente
contrastantes são de natureza social. São elas que distinguem
os círculos privilegiados e camadas abonadas – que conseguiram, numa
economia geral de penúria, alcançar padrões razoáveis
de consumo – da enorme massa explorada no trabalho, ou até dele excluída
por viver à margem do processo produtivo e, em conseqüência,
da vida cultural, social e política da nação. A redução
dessas diferenças constitui o mais antigo dos desafios que reptam a
sociedade brasileira a promover uma reordenação social que enseje
a integração de todo o povo no sistema produtivo e, por essa
via, nas diversas esferas da vida social e cultural do país.

Assim, os brasileiros de mais nítida fisionomia racial negra, apesar
de concentrados nos estratos mais pobres, não atuam social e politicamente
motivados pelas diferenças raciais, mas pela conscientização
do caráter histórico e social – portanto incidental e superável
– dos fatores que obstaculizam sua ascensão. Não é como
negros que eles operam no quadro social, mas como integrantes das camadas
pobres, mobilizáveis todas por iguais aspirações de progresso
econômico e social. O fato de ser negro ou mulato, entretanto, custa
também um preço adicional, porque, à crueza do trato
desigualitário que suportam todos os pobres, se acrescentam formas
sutis ou desabridas de hostilidade.

É assinalável, porém, que a natureza mesma do preconceito
racial prevalente no Brasil, sendo distinta da que se registra em outras sociedades,
o faz atuar antes como força integradora do que como mecanismo de segregação.
O preconceito de raça, de padrão anglo-saxônico, incidindo
indiscriminadamente sobre cada pessoa de cor, qualquer que seja a proporção
de sangue negro que detenha, conduz necessariamente ao apartamento, à
segregação e à violência, pela hostilidade a qualquer
forma de convívio. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo,
diferencialmente, segundo o matiz da pele, tendendo a identificar como branco
o mulato claro, conduz antes a uma expectativa de miscigenação.
Expectativa, na verdade, discriminatória, porquanto aspirante a que
os negros clareiem, em lugar de aceitá-los tal qual são, mas
impulsora da integração (Nogueira 1955 ).

Acresce, ainda, que, conforme assinalamos repetidamente, mais do que preconceitos
de raça ou de cor, têm os brasileiros arraigado preconceito de
classe. As enormes distâncias sociais que medeiam entre pobres e remediados,
não apenas em função de suas posses mas também
pelo seu grau de integração no estilo de vida dos grupos privilegiados
– como analfabetos ou letrados, como detentores de um saber vulgar transmitido
oralmente ou de um saber moderno, como herdeiros da tradição
folclórica ou do patrimônio cultural erudito, como descendentes
de famílias bem situadas ou de origem humilde -, opõem pobres
e ricos muito mais do que negros e brancos.

Assim é que mais facilmente se admite o casamento e o convívio
com negros que ascendem socialmente e assumem as posturas, os maneirismos
e os hábitos da classe dominante, do que com o pobre rude e grosseiro,
seja ele negro, branco ou mulato, por sua efetiva discrepância social,
e sua evidente marginalidade cultural. Brancos e negros, vivendo juntos essas
mesmas condições, tendem a lutar, juntos também, pela
supressão da pobreza, entrelaçando-se e se mesclando como um
caudal socialmente uniforme que, forçando conjuntamente sua ascensão
a melhores condições de vida, forçam, ao mesmo tempo,
a reordenação social.

Gilberto Freyre ( 1954 ) se enlanguece, descrevendo a atração
que exercia a mulher morena sobre o português, inspirado nas lendas
da moira encantada e até nas reminiscências de uma admiração
lusitana à superioridade cultural e técnica dos seus antigos
amos árabes. Essas observações podem até ser verdadeiras
e são, seguramente, atrativas como bizarrices. Ocorre, porém,
que são totalmente desnecessárias para explicar um intercurso
sexual que sempre se deu no mundo inteiro, onde quer que o europeu deparasse
com gente de cor em ausência de mulheres brancas. Assim foi mesmo na
África do Sul, entre ingleses ou holandeses e mulheres hotentotes,
por exemplo, cujos traços físicos discrepantes explicariam certa
reserva. Ainda assim, eles se mesclaram por longo tempo, gerando uma vasta
camada mestiça que continuou até que a população
branca se homogeneizasse pela composição equilibrada de homens
e mulheres, criando um ambiente cultural e moral capaz de operar como barreira
ao intercurso.

Assinale-se, também, que as relações entre brancos
e escravas negras registram-se em todas as áreas e não apenas
nas de colonização portuguesa. Aí estão, para
comprová-lo, os mestiços norte-americanos, por exemplo, mais
numerosos hoje do que os negros mesmo, gerados, evidentemente, pelo intercurso
sexual do puritanismo protestante e apesar da ausência das lendas sobre
moiras encantadas.

O que os fatos parecem indicar é a existência de graus de permeabilidade
da barreira racial, em lugar da oposição de um padrão
de abstinência completa e um outro de intercurso generalizado Onde quer
que povos racialmente diferenciados entraram em contato, gerou-se uma camada
mestiça maior ou menor. O que diferencia as condições
de conjunção interacial no Brasil das outras áreas é
o desenvolvimento de expectativas reciprocamente ajustadas, mais incentivadoras
que condenatórias do intercurso. O nascimento de um tìlho mulato
nas condições brasileiras não é nenhuma traição
à matriz negra ou à branca, chegando mesmo a ser motivo de especial
satisfação.

Essa ideologia integracionista encorajadora do caldeamento é, provavelmente,
o valor mais positivo da conjunção inter-racial brasileira.
Não conduzirá, por certo, a uma branquização de
todos os negros brasileiros na linha das aspirações populares
– afinal racistas, porque esperam que os negros clareiem, que os alemães
amorenem, que os japoneses generalizem seus olhos amendoados -, mas tem o
valor de reprimir antes a segregação que o caldeamento.

É de se supor que, por esse caminho, a população brasileira
se homogeneizará cada vez mais, fazendo com que, no futuro, se torne
ainda mais co-participado por todos um patrimônio genético multirracial
comum. Ninguém estranha, no Brasil, os matizes de cor dos filhos dos
mesmos pais, que vão, freqüentemente, do moreno amulatado, em
um deles, ao branco mais claro, no outro; ou combinam cabelos lisos e negros
de índio ou duros e encaracolados de negro, ou sedosos de branco, de
todos os modos possíveis; com diferentes aberturas de olhos, formas
de boca, conformações nasais ou proporções das
mãos e pés.

Na verdade, cada família brasileira de antiga extração
retrata no fenótipo de seus membros características isoladas
de ancestrais mais próximos ou mais remotos dos três grandes
troncos formadores. Conduzindo, em seu patrimônio genético, todas
essas matrizes, os brasileiros se tornam capazes de gerar filhos tão
variados como variadas são as faces do homem.

O que caracteriza o português de ontem e o brasileiro de classe dominante
de hoje é a duplicidade de seus padrões de relação
sexual: um, para as relações dentro de seu círculo social,
e outro, oposto, para com a gente de camadas mais pobres. Nesse caso, se particulariza,
pela desenvoltura no estabelecimento de relações sexuais do
homem com a mulher de condição social inferior, movida pelo
puro interesse sexual, geralmente despido de qualquer vínculo romântico.
Sem corte prévia, o homem de condição social superior
tenta relações com a negra, a índia, a mulata cativante,
sempre que se apresenta uma ocasião propícia. O apego, o amor
de caráter lírico entre pessoas de nível social díspar,
é fato raro, excepcional.

As relações sexuais, nessas circunstâncias desigualitárias,
nem mesmo geram intimidade, permanecendo a mulher servil ou dependente, tão
igualmente respeitosa antes como depois das relações, dada sua
posição social assimétrica em relação ao
homem. Onde e quando permanece na condição de dependência
servil, tem de aceitar o homem que lhe impõem para gerar mais escravos,
ou o branco que dela se queira servir. Uma vez livre, já pode aspirar
a relações mais igualitárias. Nas condições
prevalentes de pobreza, porém, essas se conformam como relações
ocasionais ou amasiamentos temporários. Nessas circunstâncias,
a família se estrutura centrada na mulher, que gera filhos de diferentes
homens, a cujo cuidado se desvela, freqüentemente desajustada pelos diversos
pais.

Somente quando ascende da pobreza a certa suficiência econômica
é que a mulher alcança condições mínimas
para aspirar a uma vida sentimental autônoma, para impor dignidade às
relações sexuais, conduzindo-as à forma de um jogo co-participado
e, finalmente, à oportunidade de estruturar uma vida familiar estável,
revestida dos símbolos religiosos e legais do reconhecimento social.
O novo padrão de relações prevalece já para a
parcela da população negra, branca ou mestiça integrada
na matriz moderna da sociedade nacional. Mas conforma um ideal ainda longínquo
para os enormes contingentes de brasileiros socialmente marginalizados.

Sem dúvida, nos últimos anos, graças à modernização
e à difusão de novas atitudes, inspiradas sobretudo no revivalismo
do negro norte-americano, se observa uma veemente afirmação
de negros e mulatos, afinal orgulhosos de si mesmos e às vezes até
compensatoriamente racistas em sua negritude. A transformação
dos padrões de relações inter-raciais parece tender,
não a uma simples generalização a todos os valores que
presidem as relações entre a gente das classes dominantes, mas
a abrandar a rigidez de expectativas destas quanto à virgindade e a
limitar a desenvoltura masculina para o intercurso sexual livre e irresponsável
com mulheres de posição social inferior.

Nessas novas condições, a mulher de cor, que sempre foi parceira
desejada e até especialmente apreciada para relações
eventuais, passará a competir com todas as outras para conformar relações
estáveis e igualitárias. Assim, se poderá superar, um
dia, a estrntura prevalente da família brasileira, que sempre foi matricêntrica.
Para isso será indispensável que se supere, antes, a condição
de marginalidade socioeconômica da maioria da população,
que é o fundamento da paternidade irresponsável. É provável
que, então, se atenuem os ideais de branquização do negro
como forma de preconceito, mas que prossiga a tendência às relações
inter-raciais, que continuariam a representar um importante papel no processo
integrativo. Bem pode ocorrer, entretanto, que surjam novas e maiores tensões
propensas a desacelerar o caldeamento, pela resistência em todos os
níveis sociais à ascensão maciça do contingente
mais negro, em competição com o menos negro, e pela nova atitude,
mais exigente, da mulher de cor no estabelecimento de relações.

A massa de brasileiros mulatos é, porém, tão grande
e tão amplamente distribuída pelos estratos das classes média
e baixa, que já será capaz, certamente, de presidir o processo,
operando como geratriz de novos contingentes mais morenos que brancos, mantendo
e fomentando a tendência caldeadora. Seu papel é tanto mais importante
porque os grupos privilegiados – predominantemente brancóides ou tendentes
a identificar sua cor cobriça por uma ancestralidade antes indígena
do que negra -, afetados pela ideologia segregacionista, já exibem
posturas intolerantes caracteristicamente racistas.

Entretanto, o vigor da ideologia assimilacionista, assentada na cultura
vulgar e também ensinada nas escolas, e das atitudes que começam
a generalizar-se entre todos os brasileiros de orgulho por sua origem multirracial,
e dos negros por sua própria ancestralidade, permitirão, provavelmente,
enfrentar com êxito as tensões sociais decorrentes de uma ascensão
do negro, que lhe augure uma participação igualitária
na sociedade nacional. É preciso que assim seja, porque somente assim
se há de superar um dos conflitos mais dramáticos que desgarra
a solidariedade dos brasileiros.

IMIGRANTES

O contingente imigratório europeu integrado na população
brasileira é avaliado em 5 milhões de pessoas, quatro quintas
partes das quais entraram no país no último século (sobre
o papel da imigração no Brasil, ver Ávila 1956; Carneiro
1950; Martins 1955; Cortes 1954; Saito 1961; Waibel 1949; Willems 1946; Laytano
1952; Diégues Jr.1964; Ianni 1966). É composto, principalmente,
por 1,7 milhão de imigrantes portugueses, que se vieram juntar aos
povoadores dos primeiros séculos, tornados dominantes pela multiplicação
operada através do caldeamento com índios e negros.

Seguem-se os italianos, com 1,6 milhão; os espanhóis, com
700 mil; os alemães, com mais de 250 mil; os japoneses, com cerca de
230 mil e outros contingentes menores, principalmente eslavos, introduzidos
no Brasil sobretudo entre 1886 e 1930. Os diversos censos nacionais registram
na população presente porcentagens de estrangeiros e brasileiros
naturalizados que sobem de 2,45% em 1890 a 6,16% em 1900, caindo, depois,
sucessivamente, de 5,11 % em 1920, a 3,91 % em 1940, a 2,34% em 1950 e a 0,8%
em 1970.

Tabela 5 “2 BRASIL DISTRIBUIÇÃO DOS CONTINGENTES IMIGRATÓRIOS
POR PERÍODOS DE ENTRADA (em Milhares)

1851 – 1885: Portugueses – 237, Italianos – 128, Espanhóis – 17,
Japoneses – 0, Alemães – 59, Totais – 441 1886 – 1900: Portugueses
– 278, Italianos – 911, Espanhóis – 187, Japoneses – 0, Alemães
– 23, Totais – 1.398 1901 – 1915: Portugueses – 462, Italianos – 323, Espanhóis
– 258, Japoneses – 14, Alemães – 39, Totais – 1.096 1916 – 1930:
Portugueses – 365, Italianos – 128, Espanhóis – 118, Japoneses – 85,
Alemães – 81, Totais – 777 1931 – 1945: Portugueses – 105, Italianos
– 19, Espanhóis – 10, Japoneses – 88, Alemães – 25, Totais –
247 1946 – 1960: Portugueses – 285, Italianos – 110, Espanhóis – 104,
Japoneses – 42, Alemães – 23, Totais – 564 Totais: Portugueses:
1.732 Italianos: 16.19 Espanhóis: 694 Japoneses: 229 Alemães:
250 Totais: 4.523″ Apesar de numericamente pouco ponderável, o
papel do imigrante foi muito importante como formador de certos conglomerados
regionais nas áreas sulinas em que mais se concentrou, criando paisagens
caracteristicamente européias e populações dominadoramente
brancas. Conquanto relevante na constituição racial e cultural
dessas áreas, não teve maior relevância na fixação
das características da população brasileira e da sua
cultura. Quando começou a chegar em maiores contingentes, a população
nacional já era tão maciça numericamente e tão
definida do ponto de vista étnico, que pôde iniciar a absorção
cultural e racial do imigrante sem grandes alterações no conjunto.

Não ocorre no Brasil, por conseguinte, nada parecido com o que sucedeu
nos países rio-platenses, onde uma etnia original numericamente pequena
foi submetida por massas de imigrantes que, representando quatro quintos do
total, imprimiram uma fisionomia nova, caracteristicamente européia,
à sociedade e à cultura nacional, transfigurando-os de povos
novos em povos transplantados. O Brasil nasce e cresce como povo novo, afirmando
cada vez mais essa característica em sua configuração
histórico-cultural. O assinalável no caso brasileiro é,
por um lado, a desigualdade social, expressa racialmente na estratificação
pela posição inferiorizada do negro e do mulato. E, por outro
lado, a homogeneidade cultural básica, que transcende tanto as singularidades
ecológicas regionais, bem como as marcas decorrentes da variedade de
matrizes raciais, como as diferenças oriundas da proveniência
cultural dos distintos contingentes.

Apesar da desproporção das contribuições – negra,
em certas áreas; indígena, alemã ou japonesa, em outras
-, nenhuma delas se autodefiniu como centro de lealdades étnicas extranacionais.
O conjunto, plasmado com tantas contribuições, é essencialmente
uno enquanto etnia nacional, não deixando lugar a que tensões
eventuais se organizem em torno de unidades regionais, raciais ou culturais
opostas.

Uma mesma cultura a todos engloba e uma vigorosa autodefinição
nacional, cada vez mais brasileira, a todos anima.

Esse brasileirismo é hoje tão arraigado que resulta em xenofobia,
por um lado, e, por outro lado, em vanglória nacionalista. Os brasileiros
todos torcem nas copas do mundo com um sentimento tão profundo como
se se tratasse de guerra de nosso povo contra todos os outros povos do mundo.
As vitórias são festejadas em cada família e as derrotas
sofridas como vergonhas pessoais.

Pude sentir, no exílio, como é difícil para um brasileiro
viver fora do Brasil. Nosso país tem tanta seiva de singularidade que
torna extremadamente difícil aceitar e desfrutar do convívio
com outros povos. O prefeito de Natal morreu em Montevidéu de pura
tristeza. Nunca quis aprender espanhol, nem o suficiente para comprar uma
caixa de fósforo. Alguns se suicidaram e todos sofreram demais. Basta
ver uma reunião de brasileiros, do meio milhão que estamos exportando
como trabalhadores, para sentir o fanatismo com que se apegam a sua identidade
de brasileiros e o rechaço a qualquer idéia de deixar-se ficar
lá fora.

5 ORDEM VERSUS PROGRESSO ANARQUIA ORIGINAL

A contraparte dialética da intencionalidade do projeto colonial é
o caráter anárquico; selvagem e socialmente irresponsável
da expansão dos núcleos brasileiros. Atuando sobre uma realidade
diferente, que obrigava a buscar soluções próprias ajustadas
à sua natureza e agindo longe das vontades oficiais, a ação
do colono exerceu-se quase sempre improvisadamente e ao sabor das circunstâncias.
Sendo imprevisível, ela crescia desgarrada até que, por reiteração,
constituísse uma pauta de ação suscetível de ser
copiada e regulada.

Em muitos campos a regra jamais vingou. Um bom exemplo é a fornicação
com as índias na gestação prodigiosa de mestiços
fora de qualquer regra canonizável que se teve de admitir e generalizar.
Outro exemplo nos dá a bandeira, como operação guerreira
de preia de escravos índios para usar e para vender. O bandeirante,
agente de uma violência privada, passa a ser agente da Coroa. É
ele quem viabiliza, por sua ação e com seus meios, a vida econômica
nas regiões pobres e a apropriação física do Brasil.
Embora a ilusão oficial fosse dar aos índios o nobre destino
copiosamente alegado nos documentos oficiais, a metrópole jamais opôs
qualquer obstáculo sério ao cativeiro.

Mais tarde, quando os bandeirantes tropeçam com ouro e, depois, com
diamantes nos ermos onde andavam, é que vem a Coroa legalizar a posse
das catas, impondo formas de exação cada vez mais escorchantes.
No caso dos diamantes – tal como ocorrera antes com o tabaco e o sal – decreta
o monopólio real para que ninguém mais lucrasse com a riqueza
nova, convertendo os garimpeiros em contrabandistas condenados pelo furor
fiscal ao exercício clandestino de suas atividades.

Nós somos resultantes do embate daquele racionalismo burocrático,
que queria executar na terra nova um projeto oficial, com esse espontaneísmo
que a ia formando ao deus-dará, debaixo do poderio e das limitações
da ecologia tropical e do despo- tismo do mercado mundial.

Quem somos nós, os brasileiros, feitos de tantos e tão variados
contingentes humanos? A fusão deles todos em nós já se
completou, está em curso, ou jamais se concluirá? Estaremos
condenados a ser para sempre um povo multicolorido no plano racial e no cultural?
Haverá alguma característica distintiva dos brasileiros como
povo, feito que está por gente vinda de toda parte? Todas essas argüições
seculares têm já resposta clara encontrada na ação
concreta.

Nesse campo de forças é que o Brasil se fez a si mesmo, tão
oposto ao projeto lusitano e tão surpreendente para os próprios
brasileiros. Hoje somos, apesar dos lusos e dos seus colonizadores, mas também
graças ao que eles aqui nos juntaram, tanto os tijolos biorraciais
como as argamassas socioculturais com que o Brasil vem se fazendo.

Assim é que, embora embarcados num projeto alheio, nos viabilizamos
ao nos afirmar contra aquele projeto oficial e ao nos opor aos desígnios
do colonizador e de seus sucessores. Pela vontade deles, os índios,
os negros e todos nós, mestiços deles, recrutados pela empresa
colonial, prosseguiríamos na função que nos foi prescrita
de proletariado de ultramar, destinado a produzir mercadoria exportável,
sem jamais chegar a ser gente com destino próprio. Às vezes
penso que continuamos cumprindo esse desígnio mesmo sem os portugueses,
debaixo do guante da velha classe dominante de descendentes dos senhores de
escravos que se seguiu a eles no exercício do poder e das novas elites
cujo setor predominante é, hoje, o corpo gerencial das multinacionais.
Os mesmos tecnocratas ainda meninos mas já aconselhando governos se
afundam ainda mais no espontaneísmo do mercado e na irresponsabilidade
social do neoliberalismo.

O maior susto que tiveram os portugueses, no passado, foi ver a força
de trabalho escrava, reunida com propósitos exclusivamente mercantis
para ser desgastada na produção, insurgir-se, pretendendo ser
tida como gente com veleidades de autonomia e autogoverno. Do mesmo modo,
a grande perplexidade das classes dominantes atuais é que esses descendentes
daqueles negros, índios e mestiços ousem pensar que este país
é uma república que deve ser dirigida pela vontade deles como
seu povo que são.

Não é tarefa fácil definir o caráter atípico
de nosso processo histórico, que não se enquadra nos esquemas
conceituais elaborados para explicar outros contextos e outras seqüências.
Com efeito, surgindo no leito do cunhadismo, estruturando-se com base numa
força de trabalho africana, o Brasil se configura como uma coisa diferente
de quantas haja, só explicável em seus termos, historicamente.

Velhas questões institucionais, não tendo sido resolvidas
nem superadas, continuam sendo os principais fatores de atraso e, ao mesmo
tempo, os principais motores de uma revolução social. Com efeito,
a grande herança histórica brasileira é a façanha
de sua própria constituição como um povo étnica,
nacional e culturalmente unificado. É, também, o malogro dos
nossos esforços de nos estruturarmos solidariamente, no plano socioeconômico,
como um povo que exista para si mesmo. Na raiz desse fracasso das maiorias
está o êxito das minorias, que ainda estão aí,
mandantes. Em seus desígnios de resguardar velhos privilégios
por meio da perpetuação do monopólio da terra, do primado
do lucro sobre as necessidades e da imposição de formas arcaicas
e renovadas de contingenciamento da população ao papel de força
de trabalho superexplorada.

Como não há nenhuma garantia confiável de que a história
venha a favorecer, amanhã, espontaneamente, os oprimidos; e há,
ao contrário, legítimo temor de que, também no futuro,
essas minorias dirigentes conformem e deformem o Brasil segundo seus interesses;
torna-se tanto mais imperativa a tarefa de alcançar o máximo
de lucidez para intervir eficazmente na história a fim de reverter
sua tendência secular.

Esse é nosso propósito.

O ARCAICO E O MODERNO

A passagem do padrão tradicional, tornado arcaico, ao padrão
moderno opera a diferentes ritmos em todas as regiões, mas mesmo as
mais progressistas se vêem tolhidas e reduzidas a uma modernização
reflexa. Isso não se explica, contudo, por qualquer resistência
de ordem cultural à mudança, uma vez que um veemente desejo
de transformação renovadora constitui, talvez, a característica
mais remarcável dos povos novos e, entre eles, os brasileiros. Mesmo
as populações rurais e as urbanas marginalizadas enfrentam resistências,
antes sociais do que culturais, à transfiguração, porque
umas e outras estão abertas ao novo. São, de fato, antes atrasadas
do que conservadoras. Cada estrada que se abre, quebrando o isolamento de
uma “ilha arcaica”, atrai novos contingentes ao circuito de comunicação
interna.

Dada a homogeneidade cultural da sociedade brasileira, cada um dos seus
membros tanto é capaz de comunicar-se com os contingentes modernizados,
como se predispõe a aceitar inovações. Não estando
atados a um conservadorismo camponês, nem a valores tradicionais de
caráter tribal ou folclórico, nada os apega às formas
arcaicas de vida, senão as condições sociais que os atam
a elas, a seu pesar. Essa atitude receptiva à mudança, em comparação
com o conservadorismo que se observa em outras configurações
histórico-culturais, não é suficiente, porém,
por si só, para promover a renovação. A família
mais humilde, do interior mais recôndito, vê no primeiro caminhão
que chega uma oportunidade de libertação. Seus membros mais
jovens só aspirarão a fazer-se motoristas e todos quererão
antes partir do que ficar, prontos que estão a se incorporar aos novos
modos de vida.

Esse é o resultado fundamental do processo de deculturação
das matrizes formadoras do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano
cultural com relação a seus ancestrais europeus, africanos e
indígenas, o brasileiro comum se construiu como homem tábua
rasa, mais receptivo às inovações do progresso do que
o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário
ou o negro tribal.

As formas futuras que deverá assumir a cultura brasileira com o desenvolvimento
conduzirão, seguramente, ao reforço da unidade étnico-nacional
pela maior homogeneização dos modos de fazer, de interagir e
de pensar. Mas comportarão, por muito tempo ainda, variedades locais,
certamente menos diferenciadas do que as atuais porque os fatores especializantes
do meio são menos poderosos que os uniformizantes da tecnologia produtiva
e de comunicação, apesar do processo transformador operar sobre
contextos culturais previamente diferenciados. Assim, se preservará,
possivelmente, algo do colorido mosaico que hoje enriquece o Brasil pela adição,
às diferenças de paisagem, de variações de usos
e costumes de uma região a outra, através da vastidão
do território.

A resistência às forças inovadoras da Revolução
Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram,
portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência
das classes dominantes. Particularmente nos seus interesses e privilégios,
fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz
de articulação com a economia mundial, que atuam como um fator
de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra
qualquer mudança. Esse é o caso da propriedade fundiária,
incompatível com a participação autônoma das massas
rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar as oportunidades de
trabalho adequadamente remuneradas oferecidas à população.
É também o caso da industrialização recolonizadora,
promovida por corporações internacionais atuando diretamente
ou em associação com capitais nacionais. Embora modernize a
produção e permita a substituição das importações,
apenas admite a formação de um empresariado gerencial, sem compromissos
outros que não seja o lucro a remeter a seus patrões. Estes
se fazem pagar preços extorsivos, onerando o produto do trabalho nacional
com enormes contas de lucros e regalias. Seu efeito mais danoso é remeter
para fora o excedente econômico que produzem, em lugar de aplicá-lo
aqui. De fato, ele se multiplica é no estrangeiro.

A mais grave dessas continuidades reside na oposição entre
os interesses do patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses
do povo brasileiro. Ela se mantém ao longo de séculos pelo domínio
do poder institucional e do controle da máquina do Estado nas mãos
da mesma classe dominante, que faz prevalecer uma ordenação
social e legal resistente a qualquer progresso generalizável a toda
a população. Ela é que regeu a economia colonial, altamente
próspera para uma minoria, mas que condenava o povo à penúria.
Ela é que deforma, agora, o próprio processo de industrialização,
impedindo que desempenhe aqui o papel transformador que representou em outras
sociedades.

Ainda é ela que, na defesa de seus interesses antinacionais e antipopulares,
permite a implantação das empresas multinacionais, através
das quais a civilização pós-industrial se põe
em marcha como um mero processo de atualização histórica
dos povos fracassados na história.

Modernizada reflexamente, apesar de jungida nessa institucionalidade retrógrada,
a sociedade brasileira não conforma um remanescente arcaico da civilização
ocidental, cujos agentes lhe deram nascimento, mas um dos seus “proletariados
externos”, conscritos para prover certas matérias-primas e para
produzir lucros exportáveis. Um proletariado externo atípico
com respeito aos protagonistas históricos, assim designados por A.
Toynbee ( 1959 ), porque não possui uma cultura original e porque sua
própria classe dirigente é o agente de sua dominação
externa.

Ao contrário do que ocorre nas sociedades autônomas, aqui o
povo não existe para si e sim para outros. Ontem, era uma força
de trabalho escrava de uma empresa agromercantil exportadora. Hoje, é
uma oferta de mão-de-obra que aspira a trabalhar e um mercado potencial
que aspira a consumir. Nos dois casos, foi sempre uma empresa próspera,
ainda que só o fosse para minorias privilegiadas. Como tal, manteve
o Estado e enriqueceu as classes dominantes ao longo de séculos, beneficiando
também os mercadores associados ao negócio e a elite de proprietários
e burocratas locais. A mão-de-obra engajada na produção,
como tra-livres, apenas pode sobreviver e procriar, reproduzindo seus modestos
modos de existência. Os trabalhadores conscritos como escravos nem isso
alcançavam, porque eram uma simples fonte energética gasta para
manter o sistema global e fazê-lo gerar prosperidade para outros.

Entretanto, essa população constituída pelos descendentes
dos contingentes aliciados para o projeto agromercantil exportador acaba por
assumir o caráter de uma etnia nacional nova, aspirante à autonomia,
que, por fim, se independentiza do vínculo colonial. Aos primeiros
intentos de ruptura, muitos senhores nativos e todos os lusitanos reagem com
perplexidade, indagando, espantados, como feitorias podiam confundir-se com
nações, reivindicantes de autonomia e até aspirantes
a constituir cidadanias autênticas.

Quando é declarada a independência, a classe dominante local
se nacionaliza alegremente, preparando-se para lucrar com o regime autônomo,
tal como lucrara com o colonial. Apropriada por essa classe, a independência
não representou nenhuma descolonização do sistema que
permitisse transformar o proletariado externo em um povo para si, voltado
ao preenchimento de suas próprias condições de existência
e de progresso. Representou o translado da regência política,
encarnada por um rei português, sediado em Lisboa, para seu filho, assentado
agora no Rio de Janeiro, de onde negociaria a independência nacional
com a potência hegemônica da época, que era a Inglaterra.
Uma vez reconhecida externamente e imposta internamente a legitimidade de
seu poder, passa a reger daqui a sociedade brasileira, feita nação,
contra os interesses de seu próprio povo.

Nessas circunstâncias, o Estado apresenta também mais continuidades
do que rupturas, estruturando-se como uma máquina político-administrativa
de repressão, destinada a manter a antiga ordenação,
operando nas mesmas linhas a serviço da velha elite, agora ampliada
pelas famílias fidalgas que vieram com o monarca e por novos- ricos
que surgem com a modernização. O povo reage ao longo de quase
todo o país contra a estreiteza dessa independência, exigindo
a expulsão dos agentes mais visíveis da velha ordem, que eram
os comerciantes lusitanos. A repressão mais cruenta o compele a submeter-se.

O Estado monárquico se consolida, renova e amplia nas décadas
seguintes.

Anteriormente, uns quantos clérigos e alguns administradores coloniais,
uns poucos militares profssionais e bacharéis com formação
universitária, graduados no Reino, podiam dar conta das necessidades.
Agora, torna-se indispensável criar escolas médias e superiores
que formem as novas gerações de letrados para a magistratura
e o Parlamento, de bacharéis nativos, de engenheiros militares para
a defesa, e de médicos para cuidar da saúde dos ricos. A cultura
vulgar e, com ela, a maioria das técnicas produtivas, entregues a seus
produtores imediatos, só muito lentamente começaria a modernizar-
se. Como à criação das escolas para as elites não
correspondeu qualquer programa de educação de massas, o povo
brasileiro permaneceu analfabeto.

Apesar de tudo, as novas forças unificadoras não conseguem
anular as diferenças regionais da sociedade nacional, que são
formas de adaptação especializada da configuração
histórico-cultural. Embora tenham mais de comum que de peculiar, nelas
se registram modos próprios de adaptação à natureza
no processo produtivo, formas particulares de regulação das
relações sociais e econômicas, devidas ao atendimento
dos imperativos oriundos do gênero de produção a que se
dedicam, bem como da sobrevivência de representações típicas
de sua visão particular do mundo.

O entendimento de cada uma dessas variantes importa na necessidade de analisar
simultaneamente tanto o papel diferenciador do esforço adaptativo como
a força unificadora da tecnologia produtiva, dos modos de associação
e das criações ideológicas que conferem um patrimônio
comum a todas as áreas (tentativas de classificação das
áreas culturais do Brasil se encontram em Diégues Jr. 1960 e
em Wagley e Harris 1955 ). Essa análise deve ser feita tanto sincronicamente
– mediante cortes do continuum histórico-cultural, para focalizar
as relações que se apresentam num momento dado entre os modos
de adaptação, as formas de sociabilidade e o mundo das representações
mentais -, como diacronicamente, aprofundando a pesquisa histórica
para alcançar uma perspectiva de tempo que permita verificar como surgiram
e se generalizaram as técnicas em uso, as relações vigentes
de trabalho, a visão do mundo e os outros aspectos essenciais do modo
de ser dessas variantes da sociedade nacional.

Composta como uma constelação de áreas culturais, a
configuração histórico- cultural brasileira conforma
uma cultura nacional com alto grau de homogeneidade.

Em cada uma delas, milhões de brasileiros, através de gerações,
nascem e vivem toda a sua vida encontrando soluções para seus
problemas vitais, motivações e explicações que
se lhes afiguram como o modo natural e necessário de exprimir sua humanidade
e sua brasilidade. Constituem, essencialmente, partes integrantes de uma sociedade
maior, dentro da qual interagem como subculturas, atuando entre si de modo
diverso do que o fariam em relação a estrangeiros. Sua unidade
fundamental decorre de serem todas elas produto do mesmo processo civilizatório
que as atingiu quase ao mesmo tempo; de terem se formado pela multiplicação
de uma mesma protocélula étnica e de haverem estado sempre debaixo
do domínio de um mesmo centro reitor, o que não enseja definições
étnicas conflitivas.

Com efeito, essa regência comum englobava desde o princípio
a todos os componentes e, quando necessário, usava da repressão
policial-militar. Ainda assim, por força do isolamento, da especialização
ou da atuação de outros fatores, algumas unidades se diversificaram
suficientemente para tenderem à cissiparidade ou à reordenação
do contexto global, segundo seus interesses imediatos. Via de regra, essas
tendências autonomistas apenas se esboçavam, voltando à
unidade e à uniformidade tanto pela pressão das forças
repressivas como em virtude do papel integrador do sistema econômico
e, sobretudo, da homogeneidade cultural básica alcançada precocemente.

O sistema econômico e político, gerando o mesmo tipo de estratificação
e de ordenação cívica, criou em cada unidade a mesma
forma de hierarquização que qualificava, face à sociedade
total, as camadas dirigentes de cada variante como componentes da mesma estrutura
de poder, e as fez essencialmente solidárias frente à ameaça
comum representada pelo antagonismo das classes oprimidas. O patronato, na
função de coordenador das atividades produtivas, e o patriciado,
no exercício do papel de ordenador da vida social, puderam assim fazer
frente a todas as tendências dissociativas, preservando a unidade nacional.

O senhor de engenho, ao contrário, já surge como o proprietário
de um negócio que incluía as terras, as instalações
e as gentes de seu domínio, exercendo seu comando para conduzi-las

a uma atividade econômica exógena. Assumia, assim, uma atitude
mercantil face às pessoas, sobretudo à escravaria, menos gente,
a seus olhos, do que instrumentos eficazes ou não, lucrativos ou dispendiosos
de negócio. Desenvolvia, desse modo, um agudo sentido pecuniário,
pela contingência de obter lucros para mais enriquecer ou perdê-los,
na competição com outros produtores autônomos, na disputa
com os participantes da comercialização do produto e na dependência
de complexos sistemas fmanceiros e fiscais que o exploravam.

A diferença essencial dos dois sistemas está, porém,
no papel e na função da população envolvida: no
primeiro caso, sobreviver de acordo com sua concepção de vida;
no segundo, produzir lucros, como se fora uma fábrica moderna, e integrar-se
na condição de vida que lhe era imposta como camada subalterna
de uma sociedade colonial.

Em seu desdobramento posterior, o sistema feudal e o sistema de plantação
geram complexos socioeconômicos inteiramente diferentes. O primeiro,
desfazendo-se à medida que crescia o setor comercial externo a ele,
dá lugar a um campesinato livre co-participante, pela propriedade de
sua gleba, do sistema capitalista nascente. O segundo, evoluindo congruentemente
com o sistema colonial-escravista, que o gerara, passa do escravismo, que
era seu conteúdo mais obsoleto, a formas capitalistas de contingenciamento
da força de trabalho, jamais colocando em causa a distribuição
da terra como questão crucial, mas, ao contrário, tendendo à
concentração da propriedade, à preservação
do domínio empresarial e ao fortalecimento, cada vez maior, do seu
caráter de entidade comercial e industrial.

Pelo mesmo caminho, o sistema preserva, também, sua característica
mais negativa: a ordenação da economia segundo solicitações
externas, que o induz a servir não aos que nele estão engajados
como força de trabalho, mas ao enriquecimento do proprietário
e ao abastecimento do mercado mundial. Mesmo após a decadência
em que descamba a produção açucareira das velhas áreas,
o engenho continuará representando um bom negócio para os situados
na posição de donos. Seu fracasso essencial, como veremos, está
na sua incapacidade de abrir perspectivas de integração da sua
massa trabalhadora numa economia de consumo, capaz de proporcionar-lhe um
padrão de vida mais digno.

Representa papel relevante na formação desse núcleo
básico da cultura crioula a circunstância de o fazendeiro ou
senhor de engenho residir na fazenda. Esse fato importaria em proporcionar
ao mundo do engenho açucareiro uma outra dimensão, não
apenas produtiva, que visava a prover a família senhorial de confortos
e gozos que sua posição e riqueza permitiam fruir. Essa dimensão
é que produziu no engenho a casa-grande, com seus amplos espaços,
seu rico mobiliário, sua tralha de conforto, sua “civilização”.
E diferenciou a escravaria do eito – atirada na senzala e desgastada como
bestas de carga – do círculo das mucamas e criados domésticos,
escolhidos dentre os negros e negras de aspecto mais agradável, nascidos
já no engenho, para servir à família senhorial.

O caráter familiar da empresa açucareira daria continuidade
a essa relação, fazendo sucederem-se gerações
de senhores e de escravos sob o mesmo domínio, cada vez mais afeitos
uns aos outros e mais especializados devotados a suas respectivas tarefas
e também cada vez mais impregnados por aquele complexo cultural. Assim,
um patrimônio social de usos, de atitudes e de procedimentos comuns
se plasma e se transmite de geração a geração,
emprestando sabor e congruência aos destinos daqueles que nasciam e
morriam naquele mundo original, voltado por inteiro a produzir açúcar
que se exportava, e reproduzir modos de vida tão extremamente opostos,
primeiro de senhores e escravos, depois dos mesmos senhores e de uma força
de trabalho já não escrava, mas submetida quase às mesmas
condições de existência.

Na orla dos engenhos, a sociedade da área cultural crioula cresce
também e se diferencia, produzindo brancos e mestiços livres
devotados a cultivos secundários e a tarefas mais humildes que raramente
compensavam pagar o braço escravo, pelo menos o escravo africano. Essa
população era constituída, na zona rural, por famílias
de granjeiros e de parceiros, dedicados a lavouras comerciais, como o tabaco,
ou de subsistência; os primeiros para consumo interno e exportação;
os últimos para serem levados semanalmente às feiras. Algumas
dessas produções de tabaco cresceram tanto como cultivo quanto
na industrialização, exigindo recrutamento de mão-de-obra
e uma base de organização empresarial. Já não
era a produção de tabaco para o consumo, mas para exportação,
que constituiu, aliás, a principal moeda de troca para compra de escravos
na África. E nas vilas e cidades, outros contingentes complementares
desse sistema econômico eram constituídos por funcionários,
clérigos, negociantes, arte sãos, serviçais dos transportes
e carregadores do porto.

Comunidades especializadas e autárquicas eram formadas por pescadores
que, combinando técnicas nativas e a técnica portuguesa, proviam
ao mercado um produto mercarltil específico e acessível. Elas
se distribuíram em aldeias pelas praias, dando uma ocupação
humana permanente ao litoral. Constituía uma outra economia da pobreza,
que possibilitaria maior fartura alimentar mas não ensejava riqueza.

Tão opressivo se tornara, porém, o domínio da grande
fazenda como instituição central ordenadora, que toda essa orla
conduzia-se como força auxiliar na manutenção da ordem
açucocrática. Cada comerciante, cada padre e cada oficial da
Coroa tinham como ideal supremo chegar, um dia, a fazer-se também senhores
de engenho; e enquanto não o alcançassem, honrá-los com
o seu apoio, sua admiração e respeito, como aos donos da vida.
Essa subserviência elevava o senhor de engenho à categoria de
setor predominante da classe dominante cuja hegemonia se projetava sobre a
sociedade inteira, submetendo todos à estrutura hierárquica
do engenho e a englobando, num sistema coeso e unificado.

Sua hegemonia só não era completa porque eles dependiam, por
sua vez, dos dois outros corpos da classe dominante. Em primeiro lugar, do
patronato parasitário de armadores e negociantes de importação
e exportação que relacionavam a economia açucareira com
o mercado mundial. Também dependente da prosperidade da economia açucareira,
que era sua fonte de riqueza, esse patronato urbano se impunha aos senhores
de engenho, que mantinham atados através de um endividamento permanente,
mas atuavam sempre na defesa dos interesses comuns do negócio.

Dependiam, em segundo lugar, do outro corpo da classe dominante formado
pelo patriciado governamental que organizava, regia e defendia o empreendimento
colonial, tudo fazendo também pela prosperidade da economia açucareira.
Entretanto, os burocratas; o eclesiástico, querendo mais óbulos
para a glória de Deus e a salvação das almas; o militar,
pedindo ajuda nas obras de engenharia de defesa; o clero comum; e até
alguns poetinhas, intrigando e falando mal da vida alheia, freqüentemente
se opunham aos interesses imediatos dos dois patronatos.

Como se vê, encontramos no Brasil, desde os primeiros anos, uma classe
dominante partida em dois corpos: o patronal e o patricial, o primeiro deles
dividido, por sua vez, em empresários produtores e negociantes parasitários.
Conforme assinalamos, essas diferenças, sem dúvida importantes,
nunca chegaram, porém, a constituir um antagonismo irredutível,
porque todas elas formavam, em essência, a cúpula homogênea
e coesa de um mesmo sistema de dominação externa e de exploração
interna.

Algumas características da nova sociedade assomariam claramente no
limiar do século xvll, quando os holandeses assaltam e se apoderam
da principal zona açucareira do Nordeste brasileiro.

Esses invasores eram os antigos sócios e financiadores dos portugueses
na implantação dos engenhos de açúcar, cuja distribuição
haviam praticamente monopolizado. Expulsos do negócio pela absorção
de Portugal pela Coroa espanhola, os holandeses procuravam recuperar, pela
conquista, o centro de produção de açúcar do seu
sistema comercial. Depois de alguma luta, a nova metrópole colonial
impõe tranqüilamente seu domínio por cinco lustros, sem
que os senhores de engenho lhe opusessem grande resistência.

É que, após um século de esforços, os colonos
se haviam constituído numa sociedade rigidamente estratificada que,
ao contrário dos ocupantes originais da costa brasileira, contava com
camadas subalternas preparadas a prestar serviços a qualquer senhorio
e com uma camada senhorial pronta a negociar e a se acomodar diante de qualquer
conquistador vitorioso. Aos olhos de muitos desses senhores deve ter parecido
melhor uma sujeição comercial a uma Holanda próspera
que a um Portugal falido e submetido à Espanha.

Os holandeses, com seu maior desenvolvimento capitalista, sua posição
de verdadeiros controladores do mercado europeu de.açúcar –
que apenas passava pelos portos portugueses para onerar-se com taxas – e de
detentores de um sistema fmanceiro mais provido de capitais, pareciam abrir
aos senhores de engenho perspectivas mais alvissareiras de melhorar o negócio.
E, efetivamente, os negócios melhoraram prontamente. Os produtores
receberam os financiamentos de que necessitavam para reequipar suas instalações,
renovar sua escravaria e prover de comodidades industriais as suas casas-grandes
mediante o comprometimento de futuras safras. A ruptura só se dá
quando, mais congruentemente capitalista, a administração holandesa
passa a exigir o pagamento pontual dos créditos concedidos, executando
as dívidas pela expropriação dos engenhos dos devedores
remissos.

Então, alguns dos mais afoitos em colaborar na primeira fase se fizeram
mais patriotas e mais pios na defesa da pátria portuguesa e da religião
católica.

Unidos os remissos – liderando a população combatente, engajável
então como o fora antes – expulsaram o invasor. O episódio teve
várias conseqüências, sendo a principal delas a transferência
dos capitais holandeses para a abertura de novas plantações
açucareiras nas Antilhas, que, uma década mais tarde, disputariam
o mercado mundial, acabando por dominá-lo. No período de entendimentos
amistosos, o holandês se assenhoreava das técnicas de plantio
e de fabrico, habilitando-se para abrir a nova frente produtora.

A açucocracia só encontrou resistência efetiva e enfrentou
oposição ativa por parte do negro escravo, que lutou por sua
liberdade não apenas contra o amo mas contra toda a sociedade colonial,
unida e coerente na defesa do sistema. Foi uma luta longa e terrível
que se exprimiu de mil modos. Diariamente, pela resistência dentro do
engenho, cujo funcionamento exigiu o pulso e o açoite do feitor para
impor e manter o ritmo de trabalho. Episodicamente, pela fuga de negros já
conhecedores da terra para territórios ermos onde se acoitavam, formando
quilombos.

O mais célebre deles, Palmares, sobreviveu, combatendo sempre, por
quase um século, reconstituindo-se depois de cada razzia. Ao fmal,
concentrava cerca de 30 mil negros em diversas comunidades e dominava uma
enorme área encravada na região mais rica da colônia,
entre Pernambuco e a Bahia. Sua destruição exigiu armar um exército
de 7 mil soldados, chefiado pelos mais experimentados homens de guerra de
toda a colônia, principalmente paulistas.

Palmares, como dezenas de outros quilombos surgidos na área das diversas
regiões onde se concentravam núcleos escravos, estruturava-se
dentro dos moldes culturais neobrasileiros e não como restauração
de culturas africanas. Suas casas, seus cultivos, a língua que falavam,
todo o seu modo sociocultural de ser era essencialmente o mesmo de toda a
área crioula. No Nordeste, como por todo o país, o negro fora
deculturado de suas matrizes originais e aculturado à etnia neobrasileira,
que alcançou prontamente a saturação dos traços
africanos que podia absorver.

Os cultos fundados em conteúdos religiosos africanos, ainda hoje
vívidos nas zonas que receberam maiores contingentes negros, se constituíram
em outro reduto da resistência escrava. Estruturam-se principalmente
nas grandes cidades, onde o negro gozava de maior independência e onde
seu esforço por ascender socialmente encontrava, por um lado, chances
de alentá-lo e, por outro, resistências que mais o apicaçavam.
Com o aprofundamento dessas duas tendências opostas e complementares
e graças à liberdade que o negro pôde gozar após
a abolição, os cultos afro-brasileiros foram alcançando
importância crescente.

O negro, que no fim do período colonial se integrara nas organizações
religiosas católicas tradicionais – uma das poucas instituições
que aceitavam sua participação, definindo-lhe um lugar e um
papel -, as foi abandonando, progressivamente, sobretudo nos centros metropolitanos,
em favor dos cultos afrobrasileiros. Eles são, hoje, provavelmente
mais poderosos do que em qualquer tempo do passado.

Contribuiu para isso, no campo religioso, o esforço da Igreja católica
por imprimir uma maior ortodoxia ao culto e, no campo social, as condições
de penúria e insegurança que enfrentam os negros e as camadas
mais humildes que formam a massa principal desses cultos. Nas cidades da Bahia,
do Recife, de São Luís, do Rio de Janeiro, o candomblé,
o xangô, a macumba constituem os centros de vida religiosa mais ativa
das populações pobres, tanto pretas e pardas como brancas.

A economia açucareira do Nordeste colonial, fundada no sistema de
fazendas, foi a mais bem-sucedida das formas de colonização
das Américas nos primeiros dois séculos. Em meados do século
xvii, a exportação de açúcar gerava uma renda
interna líquida anual superior a 1 milhão de libras-ouro, grande
parte da qual ficava em mãos dos senhores de engenho. Era aplicada
na ampliação sucessiva da capacidade produtora, no custeio dos
fatores de produção que eram importados, sobretudo da escravaria,
e na manutenção do sistema externo de financiamento e comercialização
(Furtado 1959:59-61 ). Criou-se, assim, uma enorme disponibilidade para gastos
gerais e suntuários, permitindo aos proprietários altos níveis
de consumo.

Essa riqueza exprimiu-se principalmente na edificação das
cidades do Recife, Olinda e da Bahia, que mais tarde, com o aporte da riqueza
proveniente da mineração, se ergueriam como os maiores e mais
ricos centros urbanos das Américas, excetuada a Cidade do México.
As enormes, numerosas e riquíssimas igrejas e conventos dessas cidades,
sobretudo da Bahia, sua vida urbana brilhante e ostentória, eram a
alta expressão da civilização crioula que tinha sua contraparte
na vida e na morte iníqüa do escravo do eito, sobre cujas costas
pesava aquela opulência.

Nos séculos seguintes, a competição com a nova área
produtiva das Antilhas desloca o Nordeste dos mercados mundiais e provoca
uma deterioração crescente dos preços, que geraria uma
crise crônica na região açucareira. O sistema implantado
se revelaria, entretanto, perfeitamente capaz de enfrentar essa crise e a
exacerbação da única contradição ativa,
que era a rebeldia escrava, cruamente subversiva e atentatória à
ordem social, cuja repressão estava a cargo do Estado. Assim sobrevive
o sistema por séculos, apesar da queda constante da rentabilidade.
Para isso, porém, é compelido a adotar formas cada vez mais
autárquicas de produção, utilizando o escravo disponível
nas épocas de recessão para prover não só a própria
subsistência alimentar, mas os panos que vestia, os equipamentos desgastados
de engenho e até as alfaias. Em certos períodos de agravamento
da crise o engenho como patrimônio familiar se salva pela venda de parte
da escravaria que ele próprio produzia aos empresários da região
mineradora, para a qual se transferira o fulcro da economia colonial.

O impacto das forças transformadoras da Revolução Industrial
desencadeia uma era de revoluções sociais em todo o mundo, antes
de cristalizar-se numa nova ordenação social estável.
Entre elas se contam as insurreições, inconfidências e
levantes que antecedem a independência brasileira e que se seguem a
ela. Todas buscavam os caminhos de uma reordenação da sociedade
que, rompendo com a trama constritiva da dominação colonial
e com a estreiteza da ordenação classista interna, abrissem
ao povo melhores condições de desempenho na civilização
emergente. Essas forças renovadoras, atuando sobre o contexto da área
cultural crioula abrem, pela primeira vez, às suas populações
urbanas, oportunidades de rebelar-se contra a velha ordem.

Estalam, em conseqüência, múltiplas insurreições
nas quais lideranças encarnadas, principalmente, por padres libertários
aliciam e põem em ação massas irredentas, desde São
Luís do Maranhão até o Recife e a Bahia. Nessas eclosões,
múltiplas tensões subjacentes e jamais manifestas se expressam
ruidosamente. A ojeriza do povo ao negociante lusitano em que ele vê
seu explorador imediato. A animosidade do pobre ao rico. O antagonismo do
empresário nativo ao estrangeiro. O ressentimento do negro para com
o mulato e o ódio de ambos ao branco. Entretanto, o grande antagonismo
que pulsava debaixo de todas essas tensões e oposições,
o do escravo ao senhor, mal pode expressar-se, porque a condição
de homens livres dos brancos e mulatos os unificava mais que seu denominador
comum de gente pobre e explorada. E porque os ideais libertários dos
líderes insurgentes tinham um limite no sacrossanto respeito à
propriedade, que in cluía a escravaria.

Nas insurreições levantava-se uma primeira liderança
nativa oposta tanto à dominação colonial quanto à
velha estratificação social interna que, mesmo entre os homens
livres, estabelecia distâncias abismais entre os pobres e os ricos.
Essas lideranças, porém, se apavoram diante dos riscos de generalizar-se
a convulsão social, ensejando à massa escrava a oportunidade
de manifestar seus rancores seculares, que ensangüentariam toda a sociedade
numa guerra de castas. A imagem da revolta do Haiti pairava sobre os insurgentes
brasileiros, aterrorizando a quase todos eles. Com alguma razão, é
certo, dada a carga enorme de ressentimento racial que, pulsando contida no
peito da maioria da população, podia explodir a qualquer momento.
José Honório Rodrigues ( 1965:38 ) cita uma quadra, cantada
em 1823 pelos insurgentes de Pernambuco, que opunha os marinheiros (reinóis)
e caiados (brancos) aos pardos e pretos: “Marinheiros e caiados Todos
devem se acabar Porque os pardos e pretos O país hão de habitar.”
O país já habitavam; sua aspiração era mandar.
Era refazer a ordenação social segundo seu próprio projeto.
É fácil imaginar e está bem documentado o pavor pânico
provocado por essas expressões de insurgência dos pretos e dos
pardos, ensejadas por sua participação nas lutas políticas.
As classes dominantes viam nela a ameaça iminente de uma “guerra
de castas” violenta e terrível pelo ódio secularmente contido
que faria explodir na forma de convulsões sociais sangrentas. E, a
seus olhos, tão mais terrível porque qualquer debate ou redefmição
da ordem vigente conduziria, fatalmente, a colocar em questão as duas
constrições fundamentais: a propriedade fundiária e a
escravidão.

Nessas circunstâncias, é compreensível que os mais brancos
e os privilegiados terminassem por se convencer de que seus interesses eram
coincidentes com uma independência formal, monárquica e lusófila,
porque só esta estava armada com o velho aparato repressivo e era essencialmente
solidária com o latifúndio e a escravidão.

Enfeixadas dentro desses limites, aquelas revoltas tumultuárias de
barbeiros, boticários, sangradores, ferradores, alfaiates, artesãos,
muleiros, e toda a multidão de gentes livres e pobres armadas de trabucos,
albardas e chuços, sempre puderam ser dominadas e reprimidas. Algumas
vezes com o simples concurso de gente submissa trazida dos engenhos para reforçar
as tropas profissionais. Outras vezes, porém, foi necessário
travar verdadeiras batalhas e verter efusões de sangue.

A principal delas ocorreu em Pernambuco, em 1817, onde os insurgentes conquistaram
o poder e só puderam ser desalojados dele depois de combates em que
lutavam milhares de soldados e que custaram centenas de vidas. A vitória
da ordem oligárquica foi alcançada, afinal, sobre os corpos
de nove líderes enforcados em Pernambuco e quatro fuzilados na Bahia.
Mas nem assim os pernambucanos se aquietaram, porque poucos anos depois novas
revoltas, sob o mando de lideranças ainda mais radicais, foram reprimidas
com o fuzilamento de quinze patriotas. Cada crise surgida na estrutura do
poder enseja novas manifestações populares que estouram em levantes.
Assim é que, em 1831 e 1848, toda a área da cultura crioula
volta a convulsionar-se várias vezes, travando-se lutas com milhares
de combatentes que custaram milhares de vidas, novas prisões, execuções
e degredos.

Estavam, então, claramente postas em causa para as lide ranças
urbanas nordestinas as bases mesmas da ordenação social vigente.
Entre essas a convicção da necessidade imperativa de abolir
a escravidão e a percepção da urgência de uma reforma
agrária que ampliasse as bases econômicas da sociedade. O deputado
pernambucano Antonio Pedro de Figueiredo, em meados do século passado,
advogava para o Brasil a adoção da solução norte-americana
para o problema da terra: “[…] 200 ou 300 mil dos nossos concidadãos,
mais por ventura, vivem em terras de que podem ser despedidos dentro de poucas
horas; humildes vassalos do proprietário, cujos ódios, partido
político etc. são obrigados a esposar. Nesse fato da grande
propriedade territorial, nesses novos latifundia, deparamos nós a base
desta feudalidade que mantém diretamente sob jugo terrível,
metade da população da província, e oprime a outra metade
por meio de imenso poder que 1he dá esta massa de vassalos obediente”
(apud Rodrigues 1965:61 ).” A vitória da velha ordem se impôs,
porém, a todos os revoltosos, consolidando a monarquia lusitana e,
com ela, a escravidão e o latifúndio. A abolição
da escravidão só viria décadas depois. Embora tardia,
mergulha o sistema de fazendas numa séria crise estrutural. Entretanto,
a circunstância de que o ex-escravo não tinha para onde dirigir-se
a fim de trabalhar para si mesmo, num mundo em que a terra fora monopolizada,
o compeliria a permanecer no eito. Mudaria talvez de amo, para não
servir como homem livre àquele de quem fora escravo. A liberdade, todavia,
se reduziria à assunção desse escravo à posição
de parceiro: receberia um trato de terra para lavrar, a fim de produzir a
comida escassa que, agora, ninguém lhe dava, com a obrigação
de fazer os mesmos serviços de outrora, mediante um pagamento que lhe
permitia comprar o sal, os panos e as pouquíssimas outras coisas indispensáveis
para cobrir a nudez e satisfazer às necessidades elementares de sua
vida frugal.

Assim, o mesmo modelo estrutural desenvolvido antes da abolição
para incorporar ao trabalho a gente pobre e livre – o sistema de parceria
por meação ou o regime de agregados que trabalham em terra alheia
– é que se apresenta ao ex-escravo como seu horizonte de ascensão
social e de integração nacional.

Enquanto prevaleceu a escravidão, os agregados dos engenhos e das
fazendas representavam um duplo papel. Eram os cooperadores menores do processo
produtivo, encarregados de tarefas menos lucrativas, como o provimento da
subsistência das fazendas monocultoras e das vilas. E eram também
os aliados do proprietário na repressão aos freqüentes
alçamentos da escravaria. Existe documentação indicativa
de que muitos proprietários facilitavam a instalação
em suas terras de índios, mestiços e brancos, localizando-os
na orla da exploração intensiva entregue ao braço escravo,
como auxiliares eventuais dos capatazes na sujigação do negro
à disciplina do trabalho no eito. Com a abolição, os
negros somaram-se a esses brancos e pardos pobres que, para enfatizar sua
superioridade de homens de tez mais clara, por vezes lhes agiam mais odientos
que os brancos ricos. A integração de uns e outros na massa
marginal da sociedade brasileira ainda se processa em nossos dias, dificultada
por hostilidades que disfarçam sua identidade fundamental de interesses,
como camada explorada.

Esse novo homem livre, preto ou branco, formado no mundo do engenho açucareiro
com sua hierarquia remarcada, enquanto nele permanece mergulhado é
quase tão igualmente respeitoso e servil ao senhor e ao feitor quanto
o antigo escravo, mesmo porque não conta com qualquer perspectiva de
sobreviver fora das fazendas.

Essas condições tornaram o negro mais resignado com seu destino,
agora melhorado pela assunção à dignidade de ser humano
e ainda mais indoutrinável a uma concepção do mundo que
explica a ordem social como sagrada, e a riqueza do rico e a pobreza do pobre
como destinações inapeláveis.

A economia açucareira experimenta um segundo impacto inovador, a
partir de meados do século XIX, quando a tecnologia da Revolução
Industrial invade seu domínio. Tal se dá com a substituição
do engenho de roda-d’água ou de tração animal por instalações
movidas a vapor, de eficiência e produtividade enormemente maiores.
Começa com a implantação de centrais de fabrico que adquirem
a cana cultivada nas áreas vizinhas, transformando os antigos senhores
de engenho em meros fornecedores. Segue-se a concentração da
propriedade das terras em mãos das centrais, que tomam a forma de grandes
usinas modernas, instaladas à custa de empréstimos a banqueiros
estrangeiros e estruturadas como sociedades anônimas. Os senhores de
engenho, que sobrevivem no negócio como donos ou como cotistas das
novas empresas, transferem-se para as cidades, entregando a casa-grande ao
administrador e utilizando novos meios de transporte, como o trem e, mais
tarde, o automóvel, para visitar periodicamente a propriedade.

A essa crise se soma outra, decorrente da disputa do mercado interno com
novas zonas produtoras de açúcar instaladas no Sul, no Rio e
em São Paulo, próximas aos centros consumidores. Nessa etapa,
assume papel decisivo a posição social conquistada e, apesar
de tudo, mantida pela oligarquia patricial do açúcar, que passaria
a utilizá-la cada vez mais para pleitear favores governamentais. A
indústria açucareira do Nordeste se mantém, doravante,
graças à ajuda oficial, na forma de empréstimos de favor,
moratórias e privilégios de mercado. Acaba, porém, por
burocratizar-se pela interferência sempre mais impositiva de organizações
oficiais controladoras da produção e da comercialização.
Nessas novas condições, como proprietário de terras e
máquinas hipotecadas – obtendo rendimentos garantidos pelo Estado -,
o que possibilita a sobrevivência da oligarquia açucareira é,
principalmente, sua capacidade de ação política, seu
controle do sistema partidário local e da votação de
seus empregados. O velho senhor de engenho é substituído por
um patronato gerencial de empresas que caíram em mãos de firmas
bancárias.

Os filhos bacharéis dos antigos senhores, todos eles citadinos, têm
agora como sua “fazenda” a cota de ações que restou
da propriedade familiar e, sobretudo, o erário público de que
se torna uma das principais clientelas.

A área de cultura crioula assentada, embora, na economia açucareira
abrange várias atividades ancilares que complementam com outras formas
de produção suas condições de existência
e dão lugar a variantes rurais e urbanas de seu modo de vida.

Dentre outras, se contam diversas especializações produtivas
que diversificaram certas parcelas da população e certas zonas,
configurando intrusões dentro da área.

Tais são, principalmente, os núcleos litorâneos de pescadores
– os jangadeiros nordestinos -, de salineiros e as subáreas de cultivo
do cacau e do tabaco e as explorações de petróleo do
recôncavo baiano. Apesar das diferenças de seus modos de produção,
essas intrusões representam, pela composição de seus
contingentes populacionais, por seu patrimônio de saber, de normas e
de valores, meras variantes da cultura crioula.

Depois da independência, muito poucas alterações afetam
a vida da massa assalariada que permanece atada às plantações
e submetida ao mando imediato dos capatazes. Só recentemente, com um
rompimento episódico da hegemonia política do patronato açucareiro,
surgiram novas fontes de poder influentes sobre o Estado, que ameaçam
impor uma reordenação do sistema.

De fato, entre 1960 e 1964, se começou a rever as condições
do trabalho rural, já não levando em conta exclusivamente os
interesses oligárquicos. Assim, se estabelece um sistema de comunicações
que defendia novos valores, representados politicamente por lideranças
que falavam outra linguagem. Empenhavam-se, nessa luta, lado a lado, lideranças
de esquerda e um novo clero que volta a despertar para suas responsabilidades
sociais e para o combate contra a velha ordem. Nesse movimento foram criadas
centenas de ligas camponesas e de sindicatos rurais que abriram ao ativismo
político o quadro social nordestino como jamais ocorrera antes.

Em 1963, se alcançou, por essa via, impor o pagamento em dinheiro
do salário mínimo regional, mediante uma elevação
do preço do açúcar destinada a custear esses gastos,
tal como se fez, antes, em benefício exclusivo dos usineiros. Como
seria de esperar, essas medidas subversivas provocaram a reação
mais indignada do patronato, que se uniu em protestos contra essa intervenção
“abusiva” no seu mundo privativo, que lhe prevê as rendas
que usufrui e lhe proporciona os votos que negocia, permitindo manter os privilégios
que desfruta por direito de herança e por força de sua hegemonia
política.

Essas transformações pareciam anunciar a morte do patronato
açucareiro, de há muito ocorrida no plano econômico, mas
que conseguira manter a face e o prestígio pela preservação,
mediante processos políticos, da antiga dominação. Anunciava,
também, no Nordeste açucareiro, a obsolescência de uma
cultura crioula tradicional, tornada arcaica, e a emergência de uma
cultura moderna, de base industrial, que parecia destinada a reordenar as
velhas formas de vida social.

Por esse caminho se ia gerando no trabalhador analfabeto e miserável
uma nova consciência do mundo e de si mesmo. Criavam-se condições
para substituir a antiga resignação e passividade em face do
grande mundo dos poderosos e a concepção sagrada da ordem social
por uma atitude cada vez mais inconformada com a pobreza que se começava
a explicar em termos seculares e dinâmicos. Desse modo, aos poucos se
ia preenchendo as condições para a integração
das populações rurais nordestinas nas formas de vida de trabalhadores
livres e para o exercício do papel de cidadãos de seu país.

Todas essas esperanças se frustraram, porém, com a derrubada
do governo reformista, que propiciara essa mobilização, e o
retorno à estrutura do poder, por mãos do regime militar, da
velha oligarquia, para defender a perpetuação de seus interesses
minoritários.

Há quem suponha que a repressão à rebeldia nordestina
tenha sido das piores que o Brasil sofreu e que, nela, milhares de camponeses
e seus companheiros de luta foram torturados, dizimados, mortos e dispersados.

3. O BRASIL CABOCLO

“[…] e toda aquela gente se acabou ou nós a acabamos; em pouco
mais de trinta anos […] eram mortos dos ditos índios mais de dois
milhões […] Pe. Antônio Vieira, 1652” A área de
floresta tropical da bacia amazônica cobre quase metade do território
brasileiro, mas sua população mal comporta 10% da nacional.
Sua incorporação ao Brasil se fez por herança do patrimônio
colonial português, pela unidade de formação cultural
fundada nas mesmas matrizes básicas, e pela emigração
de cerca de meio milhão de nordestinos conduzidos à Amazônia
nas últimas décadas do século passado e nas primeiras
deste, para a exploração, dos seringais nativos. Essa integração
territorial, cultural e humana se vem fazendo orgânica, nos últimos
anos, graças às comunicações diretas estabelecidas
através dos rios que correm do planalto central para o Amazonas e das
rodovias recém-abertas para ligar Brasília ao Rio-Mar e, incipientemente,
para cortar transamazonicamente a floresta, de norte a sul, de leste a oeste.

Hoje, a Amazônia se oferece ao Brasil como sua grande área
de expansão, para a qual inevitavelmente milhões de brasileiros
já estão se transladando e continuarão a se transladar
no futuro. A floresta vem sendo atacada em toda a sua orla e também
desde dentro num movimento demográfico poderoso, movido por fatores
econômicos e ecológicos. Mais de metade da população
original de caboclos da Amazônia já foi desalojada de seus assentos,
jogada nas cidades de Belém e Manaus. Perde-se, assim, toda a sabedoria
adaptativa milenar que essa população havia aprendido dos índios
para viver na floresta.

Os novos povoadores tudo ignoram; vêem a floresta como obstáculo.
Seu propósito é tombá-la para convertê-la em pastagens
ou em grandes plantios comerciais. A eficácia desse modo de ocupação
é de todo duvidosa, mas sua capacidade de imporse é inelutável,
mesmo porque conta com as graças do governo. A ditadura militar chegou
mesmo a subsidiar grandes empresários estrangeiros, atraídos
pela doação de imensas glebas de terra e com financiamentos
a juros negativos dos empreendimentos que lançassem. Devolvia, inclusive,
o imposto de renda de grandes grupos empresariais do sul do país que
prometessem aplicá-lo na Amazônia. Esses programas levaram a
um redondo fracasso. Não assim a invasão sorrateira de toda
a floresta por gente desalojada dos latifúndios e até dos minifúndios
de todo o Brasil, que ali está aprendendo a viver na mata, criando
um novo gênero de ocupação que ainda não se configurou.

O sistema fluvial Solimões-Amazonas percorre mais de 5 mil quilômetros
em território brasileiro, desde a fronteira peruana até o delta,
na ilha de Marajó.

Representa, para a navegação, uma extensão do litoral
atlântico, continente adentro, por onde podem entrar grandes navios.
Seus principais afluentes decuplicam a extensão navegável, formando
a mais ampla das redes fluviais.

Toda a área era ocupada, originalmente, por tribos indígenas
de adaptação especializada à floresta tropical. A maioria
delas dominava as técnicas de lavoura praticadas pelos grupos Tupi
do litoral atlântico, com que se depararam os descobridores. Em algumas
várzeas e manchas de terra de excepcional fertilidade e de fácil
provimento alimentar, através da caça e da pesca, floresceram
culturas indígenas de mais alto nível tecnológico, como
as de Marajó e de Tapajós, que podiam manter aldeamentos com
alguns milhares de habitantes.

Eram, todavia, sociedades de nível tribal, classificáveis
como aldeias agrícolas indiferenciadas, porque não chegaram
a desenvolver núcleos urbanos, nem se estratificaram em classes, já
que todos estavam igualmente sujeitos às tarefas de produção
alimentar, nem tinham corpos diferenciados de militares e de comerciantes.

Ensejavam, porém, condições de convívio social
amplo e de domínio de extensas áreas. Os cronistas, que documentaram
aqueles aldeamentos após os primeiros contatos com a civilização,
ressaltaram o vulto das populações, que se contavam por milhares
em cada aldeia, a fartura alimentar e a alegria de viver que gozavam. Estudos
arqueológicos recentes estão revelando a extraordinária
qualidade do seu artesanato, sobretudo da cerâmica modelada e colorida.

Essa afirmação dificilmente poderia ser repetida, hoje, para
qualquer dos contingentes populacionais da Amazônia, todos engolfados
na mais vil penúria. Em nenhuma outra região brasileira a população
enfrenta tão duras condições de miserabilidade quanto
os núcleos caboclos dispersos pela floresta, devotados ao extrativismo
vegetal e, agora, também ao extrativismo mineral do ouro e do estanho.

Os seus modos de vida constituem uma variante sociocultural típica
da sociedade nacional que, embora comporte algumas diferenciações
funcionais, segundo o tipo de produção em que se engaje a população,
apresenta suficiente uniformidade para ser tratada em conjunto como uma área
cultural.

A característica básica dessa variante é o primitivismo
de sua tecnologia adaptativa, essencialmente indígena, conservada e
transmitida, através de séculos, sem alterações
substanciais. E a inadequação desse modo de ação
sobre a natureza para prever condições de vida satisfatórias
e um mínimo de integração nas modernas sociedades de
consumo. Na verdade, a civilização não se revelou capaz,
até agora, de desenvolver um sistema adaptativo ajustado às
condições da floresta tropical, multiplicável através
de um modelo empresarial que lhe assegure viabilidade econômica.

O correspondente amazônico do engenho açucareiro, da grande
lavoura comercial ou da fazenda de criação de gado das áreas
pastoris é uma empresa extrativista florestal, incipientemente capitalista:
o seringal. Ele só pôde operar economicamente enquanto manteve
o monopólio da produção mundial da borracha, fazendo-se
pagar preços dez vezes mais altos do que os atuais. Com o surgimento
de seringais cultivados no Oriente e da borracha sintética, a exploração
da borracha nativa tornou- se economicamente inviável. Desde então,
o seringal só sobrevive graças a um protecionismo estatal que
o mantém artificialmente, subvencionando o patronato seringalista,
mas sem a preocupação de amparar a massa de trabalhadores nele
engajada. Esta situação permanece inalterável há
meio século, submetendo as populações da Amazônia
à maior miséria, sem lhes ensejar uma alternativa de inserir-
se em outras formas de produção econômica.

A compreensão do modo de vida das populações amazônicas
e dos problemas com que se defrontam exige, porém, um breve exame histórico
de como chegaram elas à presente situação e das principais
forças sociais que atuaram para conformar o seu destino. Esse exame
mostra que a penetração e a exploração do vale
se fizeram como grandes empreendimentos, seguidos sempre de largos períodos
letárgicos, até atingir o último, que já dura
quase um século. Os protagonistas desses esforços foram alguns
lusitanos, muitos neobrasileiros mestiços, saídos daquelas primeiras
células- Brasil, e a indiada engajada como mão-de-obra escrava
para todas as tarefas pesadas e gasta nesse duro trabalho.

Com efeito, a ocupação portuguesa do rio Amazonas se faz,
inicialmente, visando a expulsar os franceses, holandeses e ingleses, deserdados
no Tratado de Tordesilhas, que procuravam instalar-se nas vizinhanças
de sua desembocadura. Para isso tiveram que travar lutas e construir fortificações.
Estas começaram a operar na região como feitorias, traficando
com os índios aliados as drogas da mata por bugigangas. Quando se aperceberam
do valor comercial das especiarias assim obtidas, substitutivas das que Portugal
trazia das Índias, um esforço deliberado se empreendeu para
racionalizar e ampliar o negócio. Como a única forma factível
de obter maior produção constituía a escravização
dos índios para os compelir a um trabalho regular, isso foi feito.
A maior dificuldade, porém, estava na contingência inevitável
de deixar os índios soltos, para juntar as cobiçadas especiarias
que crescem, ao acaso, na mata infinita. A solução consistiu
em escravizar aldeias inteiras, mantendo as mulheres e as crianças
praticamente como reféns, enquanto os homens trabalhavam nas expedições
que batiam a floresta.

A reação indígena a esse tratamento desencadeou a guerra
e o afastamento das tribos antes aliadas para refúgios em que se punham
a salvo da escravidão. Impondo- se ir buscá-los onde se acoitassem,
organizaram-se grandes expedições que subiam os rios na preia
aos índios arredios. Essas foram as tropas de resgate, solução
cara e precária, porque sempre ocupava mais gente na guerra que no
trabalho e matava mais índios do que escravizava, reduzindo-se, assim,
o contingente humano que deveria aliciar.

Uma solução melhor seria encontrada com a instalação
de núcleos missionários, principalmente jesuíticos mas
também carmelitas e franciscanos. Mas estes tiveram que lutar muito
com os próprios colonizadores para a impor como a mais racional e proveitosa.
O acordo se fez, afinal. Os catecúmenos de cada missão-aldeamento
eram divididos em três grupos. Um terço para os serviços
dos padres, incluindo de preferência os índios recém-preados,
aos quais não se poderia impor, ainda, todo o peso do guante escravizador.
Um outro terço para a edificação das obras públicas
e o serviço das autoridades da Coroa. E o terço restante para
ser distribuído entre os colonizadores nas quadras de coleta de drogas
da mata.

Para os índios condenados a uma escravidão ainda mais dura
em mãos dos colonizadores, o regime das missões, se não
representava uma amenidade, era todavia mais suportável. Permitia-lhes
sobreviver, por vezes conservar certa vida familiar, quando suas mulheres
não eram cobiçadas por algum português ou mestiço,
e manter um convívio comunitário que ensejava a transmissão
de suas tradições. Mas, mesmo assim, a população
indígena se desgastava rapidamente, exigindo constantes reposições.

Começa, então, a etapa dos descimentos, promovida pelos missionários,
para fazer baixar, pela persuasão ou pela força, malocas inteiras
refugiadas nos altos cursos dos rios para os aldeamentos-reduções.
Estes se fazem mistos, incorporando gente de diferentes tribos, de línguas
e costumes diversos, submetidos todos à mó civilizadora do trabalho
extrativista, do serviço obrigatório nas obras públicas
– construção de fortificações, portos, edifícios
administrativos, casas senhoriais -, bem como das lavouras de subsistência
dos próprios aldeamentos e da edificação de igrejas e
conventos.

A disciplina imposta por esses trabalhos e as condições de convívio
entre índios de diferentes matrizes impuseram a homogeneização
lingüística e o enquadramento cultural compulsório do indígena
no corpo de crenças e nos modos de vida dos seus cativadores. Sob essas
compulsões é que se tupinizaram as populações aborígenes
da Amazônia, em sua maioria pertencentes a outros troncos lingüísticos,
mas que passaram a falar a língua geral, aprendida não como um
idioma indígena, mas como a fala da civilização, como ocorria
então com quase toda a população brasileira.

A organização dos aldeamentos-reduções expandiu-se
por todo o vale, que se fazia brasileiro à medida que recrutava a massa
de trabalhadores indígenas indispensável para ampliar a produção
de drogas da mata, que Portugal negociava em toda a Europa. Tais eram o cacau,
ainda selvagem, o cravo, a canela, o urucu e a baunilha, além do açafrão,
da salsaparrilha, da quina, do puxuri e grande número de sementes,
cascas, tubérculos, óleos e resinas.

Os aldeamentos missionários, sobretudo jesuíticos, concentrando
grande número de índios, exerceram uma ação aculturativa
intensa, que permitiu difundir algumas técnicas artesanais, como a
tecelagem e a edificação com pedra e cal; novas espécies
de cultivo, como o arroz, a cana-de-açúcar e o anil; introduzir
a criação de animais domésticos, como o porco e a galinha
e, em certas áreas, iniciar a criação de gado maior.
Todavia, tiveram pouca relevância na criação de uma fórmula
de adaptação à floresta tropical, que permaneceu presa
às soluções indígenas originais, pela inadequação
das novas técnicas a um meio ecológico tão diferente
do europeu.

Mesmo as técnicas artesanais representaram um papel social pouco
relevante, porque os tecidos de qualidade, as casas de pedra e cal, as comidas
européias sempre se destinaram à estreita camada dominante,
não chegando jamais aos trabalhadores. Sua influência maior terá
sido o desenvolvimento de uma religiosidade folclórica e pouco ortodoxa,
que resultou numa crença popular de colcha de retalhos, fundada no
sincretismo da pajelança indígena com um vago culto de santos
e datas do calendário religioso católico.

Vivendo nas comunidades que cresciam em torno dos centros de autoridade
real e do comércio, contando, embora, com sua própria indiada
cativa ou dependente, os colonizadores viam limitadas suas perspectivas de
riqueza pelo crescimento do sistema de reduções, que aglutinava
a massa maior de índios. Conflitos semelhantes aos de outras áreas
irrompiam, periodicamente, entre essas duas faces da civilização,
apesar do modus vivendi que haviam alcançado. Por longo tempo cresceram,
lado a lado, as duas forças como mecanismos diferentes de sujigação
dos índios. Ambas reduzindo progressivamente as populações
tribais autônomas, pela incorporação no sistema de contágio
que as dizimava, vitimadas por enfermidades antes desconhecidas, pela guerra
e pelo engajamento e desgaste no trabalho.

Através desse processo foi surgindo uma população nova,
herdeira da cultura tribal no que ela tinha de fórmula adaptativa à
floresta tropical. Falava uma língua indígena, muito embora
esta se difundisse como a língua da civilização, aprendida
de brancos e mestiços. Identificava as plantas e os bichos da mata,
as águas e as formas de vida aquática, os duendes e as visagens,
segundo conceitos e termos das culturas originais.

Provia sua subsistência através de roçados de mandioca,
de milho e de algumas dezenas de outras culturas tropicais, também
herdadas dos índios. Do mesmo modo como os índios, caçava,
pescava, coletava pequenos animais, frutos e tubérculos.

Navegava pelos rios com canoas e balsas indígenas, construía
suas rancharias e as provia de utensílios segundo as velhas técnicas
tribais. Ainda como os índios comia, dormia, vivia, enfim, no mundo
de florestas e águas em que se ia instalando. Como os índios,
finalmente, localizava e coletava na mata as especiarias cujo valor comercial
tornava viável a ocupação neobrasileira da Amazônia
e a vinculara à economia internacional.

Mais do que transmissores de modos tradicionais de sobrevivência na
floresta úmida, desenvolvidos em milênios de esforço adaptativo,
os índios foram o saber, o nervo e o músculo dessa sociedade
parasitária. Índios é que fixavam os rumos, remavam as
canoas, abriam picadas na mata, descobriam e exploravam as concentrações
de especiarias, lavravam a terra e preparavam o alimento. Nenhum colonizador
sobreviveria na mata amazônica sem esses índios que eram seus
olhos, suas mãos e seus pés.

A Coroa portuguesa esforçou-se por estabilizar a sociedade nascente,
estimulando o cultivo de algumas plantas indígenas, como o tabaco,
o cacau e o algodão. Para essas tarefas produtivas e também
para consolidar o seu domínio da área disputada pelos espanhóis,
introduziu na Amazônia colonos das ilhas atlânticas, principalmente
dos Açores. Esse foi o único contingente colonizador trazido
para a Amazônia para transplantar um modo europeu de vida. Vinham estruturados
em famílias, trazendo, cada homem, sua mulher, seus filhos e, por vezes,
umas poucas cabeças de gado.

Formaram inicialmente alguns núcleos agrícolas, mas esses
foram ganhos progressivamente para os modos de vida da região, forçados
pelo maior valor adaptativo das fórmulas indígenas de trabalho
e de alimentação e, sobretudo, pelo atrativo econômico
da exploração das drogas da mata. Assim é que a maioria
desses núcleos acabou dispersando-se, engajados na economia extrativista.
Contudo, a existência de mercados urbanos locais permitiu a alguns desses
açorianos e a umas poucas missões religiosas fundar estabelecimentos
agrícolas de gado, que enriqueceram a economia com novos tipos de produção
alimentar e artesanal nas manchas de pastagem nativa de Marajó e do
Rio Branco. Surgiram, ali, esdrúxulas formas pastoris de “gaúchos”
amazônicos que montavam, indiferentemente, cavalos, bois ou búfalos
para cuidar de seus rebanhos, meio metidos na água.

A população neobrasileira da Amazônia formou-se também
pela mestiçagem de brancos com índias, através de um
processo secular em que cada homem nascido na terra ou nela introduzido cruzava-se
com índias e mestiças, gerando um tipo racial mais indígena
que branco. Incapaz de atender aos apelos da gente boa da terra, que pedia
mulheres portuguesas, a Coroa acabou por dignificar através da lei
e por estimular mediante regalias e prêmios o cruzamento com mulheres
da terra.

Independentemente dessa política oficial, porém, a mestiçagem
se vinha fazendo desde os primeiros tempos da colonização. A
novidade consistia, para o português, em tomar uma das índias
semicativas como esposa oficial, diferenciando os filhos desta como seus herdeiros
em detrimento do conjunto dos que gerava.

Desse modo, ao lado da vida tribal que fenecia em todo o vale, alçava-se
uma sociedade nova de mestiços que constituiria uma variante cultural
diferenciada da sociedade brasileira: a dos caboclos da Amazônia. Seu
modo de vida, essencialmente indígena enquanto adaptação
ecológico-cultural, contrastava flagrantemente, no plano social, com
o estilo de vida tribal. Em suas comunidades originais, voltadas exclusivamente
para o preenchimento das suas condições de existência,
os índios haviam conseguido, com as mesmas técnicas, uma grande
fartura alimentar e a manutenção de sua autonomia cultural.
Trasladada aos novos núcleos, a adaptação indígena
apenas permitia não morrer de fome, porque as novas comunidades se
ocupavam mais de tarefas produtivas de caráter mercantil, requeridas
pelo mercado externo, do que da própria subsistência. Uma e outra
se opunham tipologicamente como sociedades tribais autônomas de economia
comunitária e como núcleos locais de uma sociedade estratificada,
voltada para a produção mercantil e gerida por interesses exógenos.

O pleno amadurecimento da nova estrutura societária só se
deu com o rompimento da dualidade que a dividia em reduções
missioneiras e núcleos colonizadores. Tal se deu com a expulsão
dos jesuítas, que teve dois efeitos cruciais. Primeiro, derrubou as
barreiras opostas à completa sujigação do gentio e sua
integração compulsória na nova sociedade como trabalhadores
escravos. Segundo, fortaleceu a camada oligárquica da sociedade cabocla
nascente pela distribuição, entre funcionários e comerciantes,
das propriedades jesuíticas, com suas casas, lavouras e rebanhos de
gado vacum, além da indiaria. Esses sucessores dos missionários,
que assim se apropriaram de suas fazendas – só na ilha de Marajó
os padres tinham mais de 400 mil cabeças de gado -, vêm sendo
designados, desde então, como os “contemplados”.

Nesse período, a Coroa portuguesa, empenhada em consolidar a ocupação
da Amazônia, fez grandes investimentos na área, custeados pelo
ouro de Minas Gerais, construindo uma rede de cidades urbanizadas e dotadas
de serviços públicos e igrejas que chegaram a ser suntuosos
para a região. Alguns deles, construídos em cantaria importada
de Portugal, ainda estão de pé e constituem as melhores edificações
de certas áreas e o orgulho de sua civilização urbana.

O caráter distributivo dessa política atendeu inicialmente
às aspirações dos colonos, mas criou problemas posteriores
pela retração das tribos indígenas interioranas que os
jesuítas vinham atraindo para as reduções e integrando
na sociedade cabocla através da destribalização compulsória.
As atividades extrativistas decaíram e iniciou-se uma economia agrícola
de gêneros tropicais. Durante um breve período de crise no abastecimento
mundial de algodão e de arroz, provocado pelas lutas de independência
dos norte-americanos e depois pelas guerras napoleônicas, essa economia
vicejou, criando alguns centros de riqueza.

O principal deles implantou-se no Maranhão, fora do vale amazônico
mas contíguo a ele, que se desenvolvera paralelamente, através
do mesmo processo de integração dos índios, numa economia
extrativista florestal. O sucesso econômico do empreendimento foi possibilitado
pela introdução da mão-de-obra escrava africana, com
que se abria grandes lavouras comerciais, chegando a constituir, no fim do
século XVIII, o principal centro econômico da colônia.
Também o Pará beneficiou-se desse surto de prosperidade, recebendo
uma parcela de negros escravos para suas lavouras de algodão, arroz
e cacau. Restabelecidas, porém, as lavouras norte-americanas, os dois
centros entraram em decadência, voltando a economia extrativista a dominar
a exportação. Essas condições de exploração
provocaram o extermínio das populações aborígenes
e criaram um ambiente de extrema tensão interétnica. Mas a ordem
social pode ser mantida graças à implantação e
atuação, ao longo de séculos, do mais vasto aparelho
de destribalização e de conscrição violenta de
índios ao trabalho. O padre Antônio Vieira, que foi da Companhia
de Jesus, descrevendo no século XVII rios que ele visitara uma década
antes, se espanta com a quantidade de gente dizimada pelos colonos em nome
da civilização. Ele fala – certamente sem exagero – de 2 milhões
de índios que se teriam gasto e se continuavam gastando.

Mais do que ação repressiva, o que explica a manutenção
dessa ordem hedionda é, por um lado, a união do patronato ativo,
que vivia apavorado ante a possibilidade de uma rebelião geral dos
indígenas mas estava perfeitamente consciente de que sua única
fonte de riqueza era o desgaste de levas e levas de índios em condições
de trabalho às quais ninguém poderia sobreviver. É, por
outro lado, a servilidade a seus senhores dos caboclos aculturados ao sistema
e sua contraface: a atitude de crueldade brutal para com os índios
de que eram oriundos. Essa postura só é comparável à
de seus congêneres, os mamelucos paulistas, igualmente ferozes sujigadores
de índios. Representou, também, um papel da maior importância
a própria situação indefesa dos “tapuias” desgarrados
de suas tribos, divididos em lotes de gente de várias procedências,
que falavam línguas diferentes, tinham costumes diversos e eram hostis
uns aos outros.

Ao longo de cinco séculos surgiu e se multiplicou uma vasta população
de gentes destribalizadas, deculturadas e mestiçadas que é o
fruto e a vítima principal da invasão européia. Somam
hoje mais de 3 milhões aqueles que conservam sua cultura adaptativa
original de povos da floresta. Originaram-se principalmente das missões
jesuíticas, que, confinando índios tirados de diferentes tribos,
inviabilizavam as suas culturas de origem e lhes impunham uma língua
franca, o tupi, tomado dos primeiros grupos indígenas que eles catequizaram
um século antes em regiões longínquas.

Assim, uma língua indígena foi convertida pelos padres na
língua da civilização, que passou a ser a fala da massa
de catecúmenos. No curso de um processo de transfiguração
étnica, eles se converteram em índios genéricos, sem
língua nem cultura próprias, e sem identidade cultural específica.
A eles se juntaram, mais tarde, grandes massas de mestiços, gestados
por brancos em mulheres indígenas, que também não sendo
índios nem chegando a serem europeus, e falando o tupi, se dissolveram
na condição de caboclos.

A dupla função dessa massa cabocla foi a de mão-de-obra
da exploração extrativista de drogas da mata exportadas para
a Europa, que viabilizavam a pobre economia da região. Foi também
instrumento de captura e de dizimação das populações
indígenas autônomas, contra as quais desenvolveram uma agressividade
igual ou pior que a dos europeus e dos mamelucos paulistas.

Sobre os caboclos vencidos caíram duas ondas de violência.
A primeira veio com a extraordinária valorização da borracha
no mercado mundial, que os recrutou e avassalou, lançando simultaneamente
sobre eles gentes vindas de toda parte para explorar a nova riqueza.

Nessa instância, perderam sua língua própria, adotando
o português, mas mantiveram a consciência de sua identidade diferenciada
e o seu modo de vida de povo da floresta. A segunda onda ocorre em nossos
dias com a nova invasão da Amazônia pela sociedade brasileira,
em sua expansão sobre aquela fronteira florestal. Seu efeito maior
tem sido o desalojamento dos caboclos das terras que ocupavam, expulsando
mais de metade deles para a vida urbana famélica de Belém e
Manaus. Os índios que sobreviveramjá aprenderam a resistir ao
avassalamento. Os caboclos, não.

O processo histórico gerara na Amazônia três classes
de gente. Uma das quais majoritária e preparada para assumir o conjunto
daquela complexa sociedade, mas sem capacidade sociopolítica de fazê-lo.
Essas três categorias eram formadas pelo índio tribal, refugiado
nas altas cabeceiras, lutando contra todos que quisessem invadir seus núcleos
de sobrevivência para roubar mulheres e crianças e condená-las
ao trabalho extrativista. A segunda, pela população urbanizada,
muito heterogênea, mas que tinha de comum já falar predominantemente
o português e a capacidade de operar como base de sustentação
da ordem colonial.

O terceiro contingente era formado de índios genéricos, oriundos
principalmente das missões e da expansão dos catecúmenos
sobre toda a área, na gestação de outros tantos índios
genéricos. Tratava-se de um novo gênero humano, diferente dos
demais, só comparável aos mamelucos paulistas. Como esses, eram
extremamente combativos e eram os mais competentes para comandar a economia
da floresta. Efetivamente, tomaram o poder várias vezes, mas incapazes
de retê-lo se viram derrotados e reescravizados. Os mamelucos paulistas
encontraram uma função na caçada humana de caráter
mercantil, destinada a capturar índios silvícolas para vender,
e na sua segunda função, que era liquidar com os quilombos que
se multiplicavam prodigiosamente.

Tais eram tarefas da civilização que os mantiveram atados
ao empreendimento colonial para, a partir daí, mais uma vez transfigurar-se.

Essa ordem repressiva foi rompida no curso de dois movimentos insurrecionais
que, no século XIX, convulsionaram toda a Amazônia, dando lugar,
como não podia deixar de ser, porque contestavam a própria unidade
nacional, à mais cruel e sanguinária das conflagrações
que registra a história brasileira, com um número superior a
100 mil mortos. O primeiro foi a Cabanagem, do Pará e do Amazonas (
1834-40 ), que sublevou as populações rurais e urbanas. Primeiro,
como um movimento anticolonialista e, depois, como uma revolução
republicana e separatista.

A Cabanagem punha em causa uma forma alternativa de estruturação
do povo brasileiro gestada entre os índios destribalizados da Amazônia.
Foi a única luta que disputou, sem saber, a própria etnia nacional,
propondo fazer-se uma outra nação, a dos cabanos, que já
não eram índios, nem eram negros, nem lusitanos e tampouco se
identificavam como brasileiros.

A Cabanagem chegou a tomar o poder, dominando toda a província. Os
sublevados descem os rios, por onde antes subiam os escravizadores, destruindo
tudo com que deparam. Tomam, ocupam e saqueiam as capitais e as principais
cidades, e interrompem todo o comércio. As tropas que saíam
em busca dos revoltosos experimentam derrotas fragorosas. A luta durou vários
anos e prosseguiu outros tantos, em focos de resistência isola-os, cuja
redução foi extremamente difícil. Mas acabou sendo lograda.

Dois aspectos ressaltam na luta dos cabanos. Primeiro, o caráter
de guerra de castas, conscientemente conduzida como tal pelo comandante das
forças repressivas, que escreveu: “Todos os homens de cor nascidos
aqui estão ligados em pacto secreto, a darem cabo de tudo quanto for
branco […] É, pois, indispensável pôr a arma nas mãos
de outros: e é indispensável proteger por todos os modos a multiplicação
dos brancos (apud Moreira Neto 1971:15 ).”

A percepção que índios e caboclos tinham do inimigo
como seu opressor étnico adquire aqui a crueza de uma oposição
racista que engloba todos os “homens de cor” numa só categoria
de inimigos a serem exterminados.

O segundo aspecto a ressaltar é que essa insurreição,
praticamente vitoriosa, foi afinal vencida não somente pelas armas,
mas, talvez, principalmente pela inviabilidade histórica da luta dos
cabanos. Sua revolta secularmente acumulada contra a opressão e a discriminação
era uma razão suficiente ara desencadear a guerra. Mas não era
suficiente para propor e levar a cabo, depois de cada vitória, um projeto
alternativo de ordenação social para as gentes díspares
que engajavam na luta libertária. Tal como os negros dos quilombos,
apesar de seu primitivismo, as populações lideradas pelos cabanos
estavam já contaminadas de civilização. A mesma civilização
que para eles representava pestes mortíferas, escravidão e opressão
representava também o único modo praticável de articular-se
comercialmente com os provedores dos bens de que já não poderiam
prescindir, como as ferramentas, os anzóis, o sal, a pólvora.

Outro levante popular das povoações do Norte foi a Balaiada.
Os balaios eram, em essência, rebeldes da massa negra concentrada no
Maranhão para produzir algodão, os quais, igualmente deculturados
e desafricanizados, lutavam, tal como o faziam os quilombos, por uma ruptura
da ordem social que os fazia escravos. Claro que entre os cabanos havia negros,
ainda que esses mais vezes lutavam ao lado das tropas oficiais.

É também evidente que entre os balaios haveria índios
e ex-índios e muitos mamelucos do Maranhão.

Demasiado civilizados para voltar às velhas formas tribais de vivência
autárquica e demasiado primitivos para se propor uma reordenação
intencional da sociedade em novas bases, os cabanos e os balaios se viram
paralisados, esperando a derrota que os destruiria. O privilégio de
seus dominadores era o de poder experimentar muitas derrotas e sobreviver
a elas para refazer a trama constritiva. Para os cabanos, uma só derrota
seria a perdição, porque, uma vez submetidos, o inimigo voltaria
a impor, revigorada, e ainda mais endurecida, a velha ordenação
social opressora. De fato, a maior parte das dezenas de milhares de mortos
cabanos ocorreu depois que eles foram vencidos, no chacinamento de aldeias
indígenas inteiras, supostamente culpadas de haver combatido os opressores.
Essa dizimação premeditada só teve paralelo nas que tiveram
lugar nos séculos XVI e XVII no Nordeste brasileiro e, como aquelas,
só pode ser classificada como guerra genocida de extermínio
maciço de populações indígenas.

Só no último quartel do século passado a região
amazônica volta a experimentar uma quadra de prosperidade, motivada
agora pela crescente valorização nos mercados mundiais de um
dos seus produtos tradicionais de coleta: a borracha. O desenvolvimento da
indústria européia e norte-americana de automotores transforma
a borracha dos seringais amazonenses em matéria prima industrial de
enorme procura, dobrando, triplicando e mais que decuplicando seu preço.
A Amazônia, na qualidade de único, fornecedor, transforma toda
a sua economia no esforço de atender à solicitação
maciça. A população, concentrada nas margens dos rios
Amazonas e Solimões, dispersa-se pelo vale inteiro, subindo os altos
cursos, até então inatingidos, à procura das concentrações
de seringueiras nativas e das outras plantas gomíferas da floresta.
As cidades crescem, enriquecem e se transformam. Belém, no delta, e
Manaus, no curso médio do rio Amazonas, tornam-se grandes centros metropolitanos,
em cujos portos escalam centenas de navios que carregam borracha e descarregam
toda a sorte de artigos industriais. Uma ferrovia é construída
em plena mata, à custa de enormes sacrifícios humanos, a Madeira-Mamoré,
que ligaria concentrações de seringueiras de Porto Velho até
o rio Mamoré, na fronteira da Bolívia, região longínqua
desgarrada da Bolívia e incorporada ao Brasil.

Para esse esforço produtivo fora necessário resolver um problema
preliminar: o recrutamento maciço da mão-de-obra de que carecia
o vale para atender ao empreendimento e capaz de submeter-se às duras
condições de trabalho dos seringais.

Esse requisito foi preenchido com apelo às enormes reservas de mão-de-obra
acumuladas no Nordeste pastoril, assolado por uma seca prolongada, que ocasionara
mais de 100 mil mortes, e castigado por um sistema latifundiário primitivo
e terrivelmente espoliativo. Iniciou-se, assim, uma transladação
de populações que conduziria cerca de meio milhão de
nordestinos à Amazônia. Desembarcados nos dois portos, Belém
e Manaus, os sertanejos eram repartidos entre os patrões que já
estavam à sua espera. Cada lote, suprido de armas e munição
para caça e defesa contra o índio, de roupas e de singelo instrumental
do trabalho extrativo, era conduzido rio acima e floresta adentro, aos longínquos
seringais. Cada trabalhador ingressava no serviço com sua feira e seu
débito, que aumentaria cada vez mais com os suprimentos de alimentação,
de remédios, de roupas providas pelo barracão.

Dificilmente um seringueiro consegue saldar essa conta que, habilmente manipulada,
o mantém em regime de servidão virtual enquanto possa resistir
às terríveis condições de vida a que é
submetido.

A borracha, como todos os produtos nativos da floresta tropical, se distribui
irregularmente e com baixa concentração em meio a uma infinidade
de outras espécies. Mesmo nas zonas de maior densidade, os seringais
cobrem enormes extensões, impedindo que a população se
organize em núcleos consideráveis.

Essas condições determinaram a dispersão da população
amazonense

ao longo dos cursos d’água por todo o imenso vale, resultando uma
densidade demográfica de quase deserto e impondo a criação
de um sistema de comunicações baseado exclusivamente na navegação
fluvial, por meio de canoas e balsas.

Nessa economia, a terra em si não tem qualquer valor e a mata exuberante
que a cobre só representa obstáculo para alcançar aquelas
raras espécies realmente úteis.

Não se cogita, por isto, de assegurar a posse legal das terras, como
é o caso das regiões de economia agrícola e pastoril.
O que importa na Amazônia é o domínio da via de acesso
que leva aos seringais e a conscrição da força de trabalho
necessária para explorá-la. Esse domínio não assume,
senão acidentalmente, a forma de propriedade fundiária, sendo
obtido por concessão governamental, nos raros casos em que se torna
indispensável, e imposto efetivamente por quem dispõe dos meios
de transporte. A conscrição da mão-de-obra é alcançada
pelas formas mais insidiosas de aliciamento e mantida mediante o uso da força,
combinado com um sistema de endividamento do qual nenhum conscrito pode escapar.

Assim é que o seringal se implanta como uma empresa desvinculada
da terra. Seu elemento é o rio, no qual o homem não se fixa
como povoador, mas apenas se instala como explorador até o esgotamento
dos seringais. Então, vai adiante com seus próprios meios: as
canoas, o barracão de mercadorias e o livro de débito que mantém
presos os seringueiros a seu patrão. Em cada seringal, um grupo de
caboclos amazônicos exerce as funções de mestres que desasnam
os recém-chegados, os “brabos”. Ensinam a identificar a seringueira,
a sangrá-la diariamente sem afetar-lhe a vida, a colher o látex
e a defumá-lo cuidadosamente para formar as bolas de borracha.

Cada seringueiro assim instruído recebe sua estrada, que é
o caminho de árvore a árvore. Num percurso de dez a quinze quilômetros,
raramente se encontram duzentas delas, que, quando ligadas por uma picada,
constituem a unidade de exploração. O seringal é o conjunto
dessas estradas, comumente dispostas ao longo de um rio, distando horas e
mesmo dias de viagem umas das outras, conforme a região. Na desembocadura,
em guarda contra qualquer deserção de trabalhadores ou extravio
de mercadoria, fica a residência do patrão ou gerente. E o barracão,
com seu porto, seu depósito de bolas de borracha, seu armazém
provido de aguardente, tabaco, gêneros alimentícios, panos, munição,
água-de-cheiro e toda quinquilharia que possa estimular o trabalhador
a endividar-se.

O seringueiro deve percorrer duas vezes por dia a sua estrada. A primeira,
para sangrar as árvores e ajustar as tigelas ao tronco para receber
o látex. A segunda, para vertê-las num galão que trará
de volta ao rancho. Iniciando o trabalho pela madrugada, ao cair da noite
pode dedicar-se à tarefa de coagulação do látex.
Acresce, ainda, que além de coletor ele deve fazer-se também
caçador e pescador para não depender da comida enlatada que,
além de envenená-lo, o endivida. E deve estar sempre atento
ao índio, que, tocaiado em qualquer ponto da estrada, pode abatê-lo
com suas flechas. O conflito entre índio e seringueiro é geralmente
tão agudo que mata quem vê primeiro. A todas essas penas se soma,
ainda, a incidência de enfermidades carenciais, como o beribéri,
que alcançou caráter endêmico em toda a Amazônia,
e das chamadas moléstias tropicais, principalmente a malária,
que cobram alto preço em vidas e em depauperação física
à população engajada nos seringais.

Apesar de tudo, a miséria do sertão nordestino, somada aos
altos preços da borracha, que excediam a quinhentas libras esterlinas
por tonelada, estimulou esse fluxo humano, provendo a necessária mão-de-obra
à economia da borracha. Uns poucos que se fizeram bons caçadores
e pescadores amazônicos e, além disso, negociantes ladinos para
escaparem à exploração, alcançavam saldos que,
de volta ao Nordeste, permitiam dar notícias à terra do seu
sucesso, provocando novas migrações. Os demais, que eram a imensa
maioria, silenciavam seu fracasso. De fato, o que fazia os seringais atrativos
era a propaganda oficial e toda uma rede de recrutamento mantida no sertão
e nos portos, assim como a própria miserabilidade sertaneja, que não
oferecia outra alternativa senão a aventura amazônica. Assim,
depois de gastar a população indígena do vale, o extrativismo
vegetal desgastou também enormes contingentes nordestinos, sobretudo
sertanejos.

A prosperidade da economia extrativista interrompeu-se, porém, abruptamente
com a Primeira Guerra Mundial. Não se refaria jamais, por causa da
entrada no comércio mundial, logo depois do conflito, da produção
dos seringais plantados pelos ingleses no Oriente. Ao baixar o preço
a cem libras, torna-se inviável a exploração dos seringais
nativos, desmoronando a economia amazônica da borracha, que já
abarcava 40% do valor total das exportações brasileiras e ocupava
cerca de 1 milhão de pessoas dispersas por toda a região. No
auge da expansão extrativista ( 1872 ), toda a rede urbana regional
crescera a ponto de transformar Belém, o segundo porto da Amazônia,
em quarta cidade brasileira em população.

A crise sobrevem como uma catástrofe, pela incapacidade de colocar
a produção estocada durante a guerra e as novas safras que continuavam
descendo os rios.

Muitos seringais foram abandonados por patrões levados à falência,
sendo toda a gente aliciada entregue à sua própria sorte nos
ermos da floresta. Aos poucos, a população volta a concentrar-se
à margem dos grandes rios navegáveis, regredindo a uma economia
de subsistência e a condições de miserabilidade mais aguda
do que a dos sertões de onde havia fugido. E mais difícil que
a dos índios, em virtude de suas necessidades de gente “civilizada”,
que precisava vestir-se, curar as enfermidades com remédios comprados
e suprir-se de artigos comerciais.

Economicamente marginalizados, esses sertanejos acaboclados se integram
nas formas de vida regional, aprendendo a caçar com arco e flecha para
economizar munição; a lavrar os campos com estacas de madeira,
por não terem enxadas; a pescar com arpão e se alimentar com
as comidas da terra, incluindo a tartaruga e o jacaré em sua dieta.
Nas áreas mais arcaicas, como o rio Negro, onde ainda se falava a língua
geral como idioma básico de comunicação popular, passam,
eles também, a falar esse dialeto tupi, empobrecido e estropiado. Integram-se,
igualmente, nas práticas da pajelança e nos temores aos fantasmas
da mitologia indígena. Tornam-se, porém, arremedos de índios,
porque não contam com as motivações destes nem com sua
capacidade de adaptação à floresta tropical.

Anos depois, algumas medidas de amparo à produção da
borracha, principalmente o monopólio do suprimento do mercado nacional
a preços subsidiados, foram estatuídas pelo governo federal.
Estruturou-se, então, uma nova economia extrativista, aliciando a essa
população miserável para reconduzi-la a seringais, ainda
mais precários que os do passado.

A essa retomada dos seringais se somaria, durante a última guerra,
um novo surto de extrativismo que proporcionaria à Amazônia um
breve período de intensa atividade.

Isso se deveu ao fornecimento de borracha aos aliados, que, em virtude dos
ataques japoneses, se viram desprovidos da produção das plantações
orientais. O governo federal promoveu, então, como principal contribuição
brasileira ao esforço de guerra, uma outra transladação
de nordestinos à Amazônia. Estima-se que essa nova migração
tenha envolvido de 30 a 50 mil trabalhadores.

Efetivamente, as perdas brasileiras na chamada “guerra da borracha”
– tanto pela miséria a que foram lançados os trabalhadores como
pela morte conseqüente dela e do seu abandono nos seringais após
o conflito – foram muito superiores às baixas sofridas pelas tropas
brasileiras na Itália.

O caráter oficialista das novas ondas de extrativismo permitia ao
seringalista sobreviver através de procedimentos bancários de
favor, mas só aliciava seringueiros pela falta absoluta de outras oportunidades
de trabalho e os condenava à perpetuação da penúria.
Nesses seringais empobrecidos, o sertanejo acaboclado assim como o recém-conscrito
procuram cultivar uma roça de subsistência – embora a safra de
borracha coincida com a época de preparo da terra para o plantio -,
caçar e pescar segundo as técnicas indígenas tradicionais
para melhorar suas condições de existência.

Mas nas relações econômicas estão sujeitos a
patrões, cuja pobreza os condiciona a tornar mais escorchante a exploração.
Essas condições de miserabilidade e dependência são
agravadas por um acordo tácito, que vigorou desde sempre entre os donos
dos seringais, de não aceitar trabalhadores com dívidas não
saldadas. Quem quer que tenha viajado pelos seringais da Amazônia conhece
esses trabalhadores que aguardam anos a fio o papelucho libertador, em que
o patrão se dá por saldado de todos os fornecimentos.

Ao lado dos patrões dos seringais, os novos surtos de extrativismo
fazem reviver um outro personagem dessa economia primitiva. É o regatão.
Este vai onde não chega o seringalista. É o traficante que conduz
sua mercadoria no barco em que vive e com o qual singra cada rio, cada igarapé
onde haja alguma coisa para trocar por aguardente, sal, fósforos, panos,
anzóis, agulhas, linhas de coser, munição e outros artigos
dessa ordem.

Criador de necessidades e instrumentos para sua satisfação,
o regatão é o rei do igarapé. Grande parte de seu negócio
é o desvio da produção dos seringais, retirada a golpes
de audácia.

Nenhuma condição humana é talvez mais miserável
que a desses seringueiros, isolados nas suas cabanas dispersas pela mata,
trabalhando de estrela a estrela, maltrapilhos, subnutridos, enfermos e analfabetos
e, sobretudo, desenganados da vida, que não lhes oferece qualquer esperança
de libertação. Comparados com os índios tribais que os
antecederam como ocupantes do mesmo território, ou que ainda sobrevivem
nas zonas mais ermas, a gente atrasada e miserável é a “civilizada”,
lançada à pobreza mais vil, brutalizada pelo próprio
processo de integração civilizatória a que foi submetida.

Além dos seringueiros, a indústria extrativista da Amazônia
moderna inclui a outros coletores especializados em diversos produtos. Tais
são os balateiros, os castanheiros, os coletores de copaíba,
de pau-rosa, de piaçava, de murumuru, timbó, tucum e os caçadores
de jacarés, de pirarucu e de tartarugas. Todos tão miseráveis
quanto os seringueiros.

A grande novidade com respeito aos povos que sobreviveram aos séculos
de extermínio, até agora, é que vão sobreviver
no futuro. Ao contrário do que temíamos todos, estabilizaram-se
suas populações e alguns povos indígenas estão
crescendo em número. Jamais alcançarão o montante que
tinham nos primeiros tempos da invasão européia, perto de 5
milhões. Metade deles na Amazônia, cujos rios colossais abrigavam
concentrações indígenas que pasmaram os primeiros navegantes.
Foi realmente espantosa, até agora, a queda abrupta e contínua
de cada população indígena que se deparava com a civilização.
Mas veio a reversão, os índios brasileiros já superaram
muito os 150 mil a que chegaram nos piores dias. Hoje, ultrapassam os 300
mil e esse número vai crescer substancialmente.

Arrefeceu-se, como se vê, o ímpeto destruidor da expansão
européia e as populações indígenas, que decresciam
visivelmente, parecendo tendentes ao extermínio, entram agora num processo
discreto de crescimento demográfico. De fato, ninguém esperava
por essa mudança afortunada. Toda a antropologia brasileira e mundial
repetia dados inequívocos que demonstravam como, a cada ano, diminuía
o número de membros de cada tribo conhecida.

A morte parecia ser o destino fatal dos índios brasileiros e, de
resto, dos demais povos chamados primitivos. De repente, começou a
se ver a reversão desse quadro.

Os Nambiquara passaram a crescer altivos e determinados a permanecer em
suas terras a qualquer custo. Os Urubu-Kaapor, que chegaram a quatrocentos
em 1980, hoje são setecentos. Os Mundurucu já alcançam
a casa dos 5 mil. Os Xavante, que eram 2500 em 1946, somam 8 mil hoje.

Alguns povos indígenas alcançaram montantes suficientes para
se expandir e reorganizar suas instituições culturais. Os Tikuna,
do alto Solimões, no Brasil e no Peru, já ultrapassam os 20
mil; os Makuxi, dos campos de Roraima, alcançam os 18 mil; os Guajajara,
que vivem nas franjas orientais da Amazônia, são hoje 9 mil;
os Kayapó, recém-atraídos à civilização,
são 6 mil. Os Sateré-Maué, que vivem nos lagos e ilhas
das margens do Amazonas, somam hoje perto de 15 mil.

É certo que alguns povos indígenas estão diminuindo
e suas chances de sobrevivência são minúsculas. Os últimos
treze índios da tribo Jabuti estão buscando noivas, entre outros
índios de fala tupi-kawahib, para seus filhos se casarem. Disso, esperamos,
ressurgirá um novo povo indígena. Os Avá-Canoeiros, que
eram milhares de índios e dominavam o alto rio Tocantins, não
chegam a trinta pessoas. Vivendo em pequenos bandos, sem contato uns com os
outros, se especializaram em fugir da invasão branca. Dois índios
foram encontrados recentemente falando um dialeto ininteligível da
língua tupi. Ninguém sabe quem são, nem saberá
jamais.

Os Yanomami, que constituem hoje o maior povo prístino da face da
terra, começam a extinguir-se, vitimados pelas doenças levadas
pelos brancos, sob os olhos pasmados da opinião pública mundial.
São 16 mil no Brasil e na Venezuela.

Falam quatro variantes de uma língua própria, sem qualquer
parentesco com outras línguas, vivendo dispersos em centenas de aldeias
na mata, ameaçados por garimpeiros que, tendo descoberto ouro e outros
metais em suas terras, reclamam dos governos dos dois países o direito
de continuarem minerando através de processos primitivos, baseados
no mercúrio, que polui as terras e envenena as águas dos Yanomami.

A sobrevivência dos povos indígenas se explica, em grande parte,
por uma adaptação biótica às pestes do homem branco
– a varíola, o sarampo, as doenças pulmonares, as doenças
venéreas e outras. Cada uma delas liquidava metade das populações
logo ao primeiro contato com as fronteiras da civilização. A
varíola desapareceu, mas várias outras enfermidades continuam
fazendo danos, ainda que muito menores que no passado, mesmo porque a própria
medicina progrediu bastante.

Explica-se também por mudanças ocorridas nas frentes de expansão
da sociedade nacional que se lançam sobre os povos indígenas.
Apesar de muito agressivas e destrutivas, elas já não podem
exterminar, impunemente, tribos inteiras, como sucedeu no passado. Ainda recentemente,
o trucidamento de uma aldeia Yanomami converteu-se, de repente, num escândalo
mundial que paralisou a onda assassina.

As formas de contato e de coexistência sofreram, também, importantes
alterações. A evangelização, cruamente cristianizadora
e imperialmente europeizadora, perdeu o furor etnocida. Já não
há tantas missões religiosas roubando crianças indígenas
de diferentes tribos para juntá-las em suas escolas, que eram os mais
terríveis instrumentos de deculturação e de despersonalização.
Muitos dos poucos sobreviventes dessas escolas evangélicas, não
tendo lugar na sociedade tribal nem na sociedade nacional, caíam na
marginalidade e na prostituição. O paternalismo da proteção
ofcial do Estado, brutalmente assimilacionista, por doutrina ou por ignorância,
deu lugar a uma atitude mais respeitosa diante dos índios.

A mudança de maior espanto ocorreu com os próprios índios,
cuja atitude geral de submissão e humildade, que se seguia ao estabelecimento
de relações pacíficas, está dando lugar, muitas
vezes, a uma postura orgulhosa e afirmativa. Antigamente, quando os índios
recém-contatados se apercebiam da magnitude da sociedade nacional,
com sua população inumerável dominando áreas imensas,
percebendo sua própria insignificância quantitativa, caíam
em depressão, às vezes fatal. Hoje, vêem os brancos como
gente que pode ser enfrentada.

Nessas condições é que começa a surgir um novo
tipo de liderança indígena, sem nenhuma submissão diante
dos missionários, de seus protetores oficiais ou de quaisquer agentes
da civilização. Sabem que a imensa maioria da sociedade nacional
é composta de gente miserável que vive em condições
piores que a deles próprios.

Percebem ou suspeitam que seu lugar na sociedade nacional, se nela quisessem
incorporar-se, seria mais miserável ainda. Tudo isso aprofunda seu
pendor natural a permanecerem índios.

Em certas circunstâncias, a alternidade entre os índios e o
contexto nacional com que eles convivem chega a ser tão agressiva que
se torna assassina. É ela que leva jovens índios ao suicídio,
como ocorre com os Guarani, por não suportarem o tratamento hostil
que lhes dão os invasores de suas terras. Além de transformarem
todo o meio ambiente, derrubando as matas, poluindo os rios, inviabilizando
a caça e a pesca, esses vizinhos civilizados lançam sobre os
índios toda a brutalidade de um consenso unânime sobre sua inferioridade
insanável, que acaba sendo interiorizada por eles, dando lugar às
ondas de suicídios.

Nessas condições, as próprias tradições
indígenas se redefinem, às vezes, já não para
lhes dar sustentação moral e confiança em si mesmos,
mas para induzi-los ao desengano.

Esse é o caso dos mitos heróicos guaranis referentes à
criação do mundo, que se converteram em mitos macabros, em que
a própria terra apela ao criador que ponha um fim à vida porque
está cansada demais de comer cadáveres.

A decadência da economia da borracha matou também as cidades
que floresciam pela Amazônia inteira, provocando o completo abandono
de algumas e a deterioração das outras. As duas capitais regionais
perderam o luxo e o viço que as enchera de palácios suntuosos,
de teatros e obras urbanísticas nos tempos prósperos de borracha
alta. Sem produção básica para exportar, o comércio
decaía, sobrevivendo apenas com apelo à especulação
e ao contrabando. A população urbana, porém, continuou
crescendo por inchaço com o afluxo dos contingentes extrativistas para
seus subúrbios, ainda mais miseráveis que as mais pobres favelas
ou mocambos do país. Aí vegeta uma multidão subempregada,
refletindo condições de vida tão precárias que
seus índices de mortalidade geral e infantil, de morbidade e subnutrição
vêm a ser mais graves que os mais baixos do mundo.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, começou uma reordenação
da economia amazônica que está permitindo engajar uma parcela
da população em novos tipos de produção, como
os cultivos de juta e de pimenta-do-reino, introduzidos pelos japoneses, e
as lavouras de arroz das grandes várzeas. Nas cidades, um começo
de industrialização está provendo também algumas
oportunidades de trabalho. E, em algumas áreas, atividades de extração
mineral propiciam novos modos de existência.

As mais importantes delas aglutinam no território do Amapá
algumas dezenas de milhares de pessoas na exploração do manganês
e diversos grupos menores de mineradores de cassiterita em Rondônia
e no Amazonas.

Repete-se aí a aventura dos seringais prósperos do princípio
do século, porque se estão transladando para a América
do Norte, através de uma empresa monopolística, a Bethlehem
Steel, essas imensas jazidas, ao custo de sua extração e transporte.
Finda a exploração não restará qualquer nova fonte
de trabalho capaz de ocupar a população nem qualquer riqueza
local. Sua conseqüência provável será, portanto,
a de provocar uma crise idêntica à da borracha para que os Estados
Unidos cumpram seu desígnio de potência, que é se fazerem
os detentores exclusivos de manganês no hemisfério. Então,
o Brasil terá de importar o minério que agora cede ao preço
de sua extração e terá, ainda, de haver-se com uma vasta
população desgastada e miserabilizada.

O desequilíbrio da economia regional, suas dificuldades de integração
na vida do país e as precárias condições de existência
de suas populações levaram os constituintes de 1946 a destinar
uma parcela de 3% das rendas federais a um programa de valorização
econômica da Amazônia. Em 1950, uma comissão concluiu o
primeiro plano qüinqüenal de desenvolvimento, que, desde então,
percorre as comissões do Congresso sem alcançar aprovação.
As verbas são aplicadas na região e representam o principal
fator de equilíbrio entre o valor de suas exportações
e o vulto das importações. O abandono da planificação,
porém, transformou essas dotações na principal fonte
de renda de que se valem as classes dominantes para enriquecer mediante fornecimentos
e financiamentos de favor, controlados pelos políticos da região
com o mais desabusado clientelismo eleitoral. Tal como a pobreza do Nordeste
árido fez do amparo federal uma “indústria da seca”,
a penúria dos caboclos da Amazônia fez do “desenvolvimento
regional” um rico negócio e um mecanismo de consolidação
política da oligarquia local.

Entretanto, vitalizar a economia da Amazônia, promovendo o regresso
da região e sua incorporação à vida nacional como
uma população próspera, é, certamente, um dos
mais graves desafios com que se defronta o Brasil. Mais de uma vez a existência
dessa mancha florestal – a maior e a menos povoada do mundo – suscitou cobiças
internacionais. Foi recomendada, em certa ocasião, a Hitler como o
Lebensraum adequado para a expansão germânica. Mais tarde, foi
objeto de um verdadeiro projeto de expropriação, camuflado como
um instituto de pesquisas tropicais, no qual os norte-americanos envolveram
as Nações Unidas. Uma terceira tentativa de espoliação
assumiu a forma de uma proposta, apresentada à ditadura pelo governo
norte- americano, de arrendamento da área por 99 anos com o fim de
“estudá-la e comprovar experimentalmente as técnicas adequadas
para promover o seu desenvolvimento”. O governo brasileiro, engajado
nos princípios de limitação da soberania para a integração
do Brasil como satélite privilegiado do sistema hegemônico norte-americano,
se permitiu discutir a matéria. Alertado, porém, pela reação
da opinião pública, uma parcela da oficialidade advertiu a ditadura
que não admitiria aluguel ou empréstimo ou qualquer sorte de
negociação do território nacional.

Uma outra tentativa teve a linguagem de um plano mirabolante dos futurólogos
do Instituto Hudson para represar o rio Amazonas, inundando milhares de quilômetros
quadrados de mata para constituir usinas hidrelétricas que produziriam
dez vezes mais energia do que o Brasil consome. Atrás desse plano estava
o projeto mais realista de criar para os norte-americanos uma área
propícia à instalação de uma civilização
industrial para o caso de uma guerra nuclear.

Mas a Amazônia é, de fato, o maior desafio que o Brasil já
enfrentou. Sua ocupação se vem fazendo com uma dinâmica
de vigor incomparável. Estados maiores que a França, como Rondônia,
surgem abruptamente e se vão povoando a ritmo acelera do.

Projetos ambiciosos de estradas que atravessam toda a floresta são
postos em execução de forma tão inepta que depois de
investimentos astronômicos caem no abandono. Sonhos viáveis de
novas estradas que liguem a Amazônia ao Pacífico, para dar aos
chineses e japoneses não só as madeiras nativas que todo já
consome mas o que o grande vale venha a produzir, se esboçam e vêm
se viabilizando. Uma nova classe política e até uma nova geração
de militares, empolgados com o que a exploração econômica
da Amazônia pode render, se exacerbam contra os caboclos e contra os
índios, que ocupam parte ínfima da floresta mas se afiguram,
aos seus olhos, como obstáculos ao progresso.

Foi possível no passado liquidar a mais pungente floresta brasileira,
a do vale do rio Doce, convertida em ralas pastagens debaixo das quais a terra
é uma ferida exposta à erosão. Não é impossível
que alguma coisa assim ocorra à Amazônia, ainda que suas dimensões
gigantescas e suas enormes variações regionais apontem para
um futuro mais dinâmico. Por seus rios transita hoje meio milhão
de garimpeiros miseráveis que explorando ouro, cassiterita ou o que
quer que seja não alcançam uma renda equivalente a um salário
mínimo. Sua única eficácia se deve ao mercúrio
com que envenenam as águas, os peixes e a população ribeirinha.
No seu encalço, grandes empresas se preparam para explorar as jazidas
minerais das regiões, que são as maiores de que se tem notícia.
Abrirá isso uma perspectiva de se criar uma nova Minas Gerais, onde
de uma grande exploração secular de minérios só
resultaram uma população pobre e buracos, expondo outra vez
os interiores da terra à erosão? As perspectivas de retomar
velhos seringais e revitalizá-los para abrir melhores condições
de vida aos trabalhadores da floresta resultaram em conflitos, como aquele
mundialmente escandaloso que vitimou Chico Mendes. Entretanto, ele e seus
companheiros foram os únicos que apontaram concretamente para como
fazer a Amazônia habitável e rendosa, o que é perfeitamente
possível desde que se encontrem formas de manter assentamentos

humanos que possam ser subsidiados até amadurecerem seus plantios
de seringueiras e também de bosques onde floresçam as fruteiras
da Amazônia, que se oferecerão ao mundo como uma promessa de
gosto e doçura. Isso é totalmente impraticável através
do sistema empresarial privado, dado seu inevitável imediatismo. É
impraticável, também, através dos caboclos, que tão
bem saberiam fazê-lo, porque estes trabalham da mão para a boca,
tal é a sua penúria.

4. O BRASIL SERTANEJO

“De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão
duro, e mais tarde, a cama para os partos: de couro, todas as cordas, a borracha
para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a mala
para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo
em viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar
no mato, os banguês para curtume ou para apurar sal; para os açudes,
o material de aterro era levado em couros puxados por pontas de bois que calcavam
a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.

Capistrano de Abreu, 1954” Para além da faixa nordestina das
terras frescas e férteis do massapé, com rica cobertura florestal,
onde se implantaram os engenhos de açúcar, desdobram-se as terras
de uma outra área ecológica. Começam pela orla descontínua
ainda úmida do agreste e prosseguem com as enormes extensões
semi-áridas das caatingas. Mais além, penetrando já o
Brasil Central, se elevam em planalto como campos cerrados que se estendem
por milhares de léguas quadradas.

Toda essa área conforma um vastíssimo mediterrâneo de
vegetação rala, confinado, de um lado, pela floresta da costa
atlântica, do outro pela floresta amazônica e fechado ao sul por
zonas de matas e campinas naturais. Faixas de florestas em galeria cortam
esse mediterrâneo, acompanhando o curso dos rios principais, adensando-se
em capões de mata ou palmeirais de carnaúba, buriti ou babaçu,
onde encontra terreno mais úmido. A vegetação comum,
porém, é pobre, formada de pastos naturais ralos e secos e de
arbustos enfezados que exprimem em seus troncos e ramos tortuosos, em seu
enfolhamento maciço e duro, a pobreza das terras e a irregularidade
do regime de chuvas. Nos cerrados e, sobretudo, nas caatingas, a vegetação
alcança já uma plena adaptação à secura
do clima, predominando as cactáceas, os espinhos e as xerófilas,
organizadas para condensar a umidade atmosférica das madrugadas frescas
e para conservar nas folhas fibrosas e nos tubérculos as águas
da estação chuvosa.

No agreste, depois nas caatingas e, por fm, nos cerrados, desenvolveu-se
uma economia pastoril associada originalmente à produção
açucareira como fornecedora de carne, de couros e de bois de serviço.
Foi sempre uma economia pobre e dependente. Contando, porém, com a
segurança de um crescente mercado interno para sua produção,
além da exportação de couro, pôde expandir-se continuamente
através de séculos. Acabou incorporando ao pastoreio uma parcela
ponderável da população nacional, cobrindo e ocupando
áreas territoriais mais extensas que qualquer outra atividade produtiva.

Conformou, também, um tipo particular de população
com uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização
ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos
identificáveis no modo de vida, na organização da família,
na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos
estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa
religiosidade propensa ao messianismo.

O gado trazido pelos portugueses das ilhas de Cabo Verde vinha já,
provavelmente, aclimatado para a criação extensiva, sem estabulação,
em que os próprios animais procuram suas aguadas e seu alimento. Os
primeiros lotes instalaram-se no agreste pernambucano e na orla do recôncavo
baiano, suficientemente distanciados dos engenhos para não estragar
os canaviais. Daí se multiplicaram e dispersaram em currais, ao longo
dos rios permanentes, formando as ribeiras pastoris. Ao fim do século
XVI, os criadores baianos e pernambucanos se encontravam já nos sertões
do rio São Francisco, prosseguindo ao longo dele, rumo ao sul e para
além, rumo às terras do Piauí e do Maranhão. Seus
rebanhos somariam então cerca de 700 mil cabeças, que dobrariam
no século seguinte.

A expansão desse pastoreio se fazia pela multiplicação
e dispersão dos currais, dependendo da posse do rebanho e do domínio
das terras de criação. O gado devia ser comprado, mas as terras,
pertencendo nominalmente à Coroa, eram concedidas gratuitamente em
sesmarias aos que se fizessem merecedores do favor real. Nos primeiros tempos,
os próprios senhores de engenho da costa se faziam sesmeiros da orla
do sertão, criando ali o gado que consumiam. Depois, esta se tornou
uma atividade especializada de criadores, que formaram os maiores detentores
de latifúndios no Brasil. O mais célebre deles foi um baiano
tão rico que deixou em testemunho, a favor dos jesuítas, recursos
para rezarem missas por sua alma até o fim do mundo.

Através desse sistema, antes que o gado atingisse qualquer terra,
era ela acaparada legalmente pela apropriação em sesmaria. Como
os currais só se podiam instalar junto às raras aguadas permanentes
e não muito longe dos barreiros naturais onde o gado satisfazia sua
fome de sal e em virtude da qualidade paupérrima dos pastos naturais,
essas sesmarias se fizeram imensas. Cada uma delas com seus currais, por vezes
distanciados dias de viagem uns dos outros, entregues aos vaqueiros.

Estes davam conta do rebanho periodicamente, separando uma rês, como
pagamento, para cada três marcadas para o dono. Assim, o vaqueiro ia
juntando as peças do seu próprio rebanho, que levaria para zonas
mais ermas, ainda não conhecidas nem alcançadas pelas sesmarias.
O regime de trabalho do pastoreio não se funda, pois, na escravidão,
mas num sistema peculiar em que o soldo se pagava em fornecimento de gêneros
de manutenção, sobretudo de sal, e em crias do rebanho.

Em cada curral viviam as famílias do vaqueiro e dos seus ajudantes,
geralmente aprendizes, à espera de um dia receberem também uma
ponta do gado para criar e zelar. Periodicamente, passavam os boiadeiros que
arrebanhavam o gado para conduzi-lo, sertão afora, até a costa
onde seria vendido. Traziam o sal e poucas coisas mais do que necessitavam
os vaqueiros, afeitos à vida no ermo, moldados pela atividade pastoril,
tirando do gado quase tudo do que careciam.

Os núcleos formados nos currais plantavam roçados e amansavam
umas quantas vacas para terem leite, coalhada e queijos. Carneavam, por vezes,
uma rês, garantindo-se assim uma subsistência mais farta e segura
do que a de qualquer outro núcleo rural brasileiro. As relações.
com o dono das terras e do rebanho tendiam a assumir a forma de uma ordenação
menos desigualitária que a do engenho, embora rigidamente hierarquizada.
O senhor, quando presente, se fazia compadre e padrinho, respeitado por seus
homens, mas também respeitador das qualidades funcionais destes, ainda
que não de sua dignidade pessoal. Entretanto, tal como ocorre com os
povos pastoris, a própria atividade especializada destacava o brio
e a qualificação dos melhores vaqueiros na dura lida diária
do campo. Ensejavam-se, assim, comparações de perícia
e valor pessoal, fazendo-os mais altivos que o lavrador ou o empregado serviçal.
O sistema resultante aproxima-se mais à tipologia das relações
pastoris em todo o mundo que das relações de trabalho de plantação
escravocrata, embora se aproximasse dela pelo caráter mercantil do
pastoreio e pela dependência do regime latifundiário.

O criador e seus vaqueiros se relacionavam como um amo e seus servidores.

Enquanto dono e senhor, o proprietário tinha autoridade indiscutida
sobre os bens e, às vezes, pretendia tê-la também sobre
as vidas e, freqüentemente, sobre as mulheres que lhe apetecessem. Assim,
o convívio mais intenso e até a apreciação das
qualidades de seus serviçais não aproximavam socialmente as
duas classes, prevalecendo um distanciamento hierárquico e permitindo
arbitrariedades, embora estas estivessem longe de assemelhar-se à brutalidade
das relações prevalecentes nas áreas da cultura crioula.

O contraste dessa condição com a vida dos engenhos açucareiros
devia fazer a criação de gado mais atrativa para os brancos
pobres e para os mestiços dos núcleos litorâneos. Acresce
que o negócio açucareiro, além de exigir capitais enormes,
que excediam às possibilidades da gente comum, só admitia uns
poucos trabalhadores especializados entre a classe de senhores e a massa escrava.
A própria rigidez da disciplina de trabalho no engenho devia torná-lo
insuportável para o trabalhador livre e, mais ainda, para gente afeita
à vida aventurosa e vadia dos vilarejos litorâneos. Por tudo
isso, muitos mestiços devem ter-se dirigido ao pastoreio, como vaqueiros
e ajudantes, na esperança de um dia se fazerem criadores. Desse modo
proviam uma oferta constante de mão-de-obra, tornando dispensável
a compra de escravos.

Só assim se explica, de resto, o próprio fenótipo predominantemente
brancóide de base indígena do vaqueiro nordestino, baiano e
goiano. Tais características têm sido interpretadas, por vezes,
como resultado de uma miscigenação continuada com os grupos
indígenas dos sertões. A hipótese parece historicamente
insustentável em face da hostilidade que se desenvolveu sempre entre
vaqueiros e índios, onde quer que se defrontassem.

Disputando o domínio dos territórios tribais de caçadas
para destiná-los ao pastoreio e lutando contra o índio para
impedi-lo de substituir a caça que se tornara rara e arredia nos campos
povoados pela nova e enorme caça que era o gado, os conflitos se tornavam
inevitáveis. Acresce que a suposição é desnecessária,
porque partindo de uns poucos mestiços tirados das povoações
da costa – e aos quais não se acrescentou nenhum contingente imigratório
branco ou negro – teríamos, natural e necessariamente, pelo imperativo
genético da permanência dos caracteres raciais, a perpetuação
do fenótipo original. Tudo isso parece ser verdade. A antropologia,
porém, nega a história, mostrando a cabeça chata enterrada
nos ombros, que não pode vir do nada. É inevitável admitir
que, roubando mulheres ou acolhendo índios nos criatórios, o
fenótipo típico dos povos indígenas originais daqueles
sertões se imprimiram na vaquejada e nos nordestinos em geral.

Apesar das enormes distâncias entre os núcleos humanos desses
currais dispersos pelo sertão deserto, certas formas de sociabilidade
se foram desenvolvendo entre os moradores dos currais da mesma ribeira. A
necessidade de recuperar e apartar o gado alçado nos campos ensejava
formas de cooperação como as vaquejadas, que se tornaram prélios
de habilidade entre os vaqueiros, acabando, às vezes, por transformar-se
em festas regionais. O culto dos santos padroeiros e as festividades do calendário
religioso – centralizado nas capelas com os respectivos cemitérios,
dispersos pelo sertão, cada qual com seu círculo de devotos
representados por todos os moradores das terras circundantes – proporcionavam
ocasiões regulares de convívio entre as famílias de vaqueiros
de que resultavam festas, bailes e casamentos.

Afora essa convivência vicinal e que se circunscrevia aos vaqueiros
da mesma área, o que prevalecia era o isolamento dos núcleos
sertanejos, cada qual estruturado autarquicamente e voltado sobre si mesmo,
na imensidade dos sertões.

As atividades pastoris, nas condições climáticas dos
sertões cobertos de pastos pobres e com extensas áreas sujeitas
a secas periódicas, conformaram não só a vida mas a própria
figura do homem e do gado. Um e outro diminuíram de estatura, tornaram-se
ossudos e secos de carnes. Assim associados, multiplicando-se juntos, o gado
e os homens foram penetrando terra adentro, até ocupar, ao fim de três
séculos, quase todo o sertão interior. Como uma mercadoria que
se conduz a si mesma, o gado, apesar de cada vez mais distanciado do mercado
consumidor, ia sendo desbastado pelos abates.

No curso desse movimento de expansão, todo o sertão foi sendo
ocupado e cortado por estradas abertas pela batida das boiadas. Estas marchavam
de pouso em pouso, assentados todos eles nos locais de água permanente
e de boa pastagem, capaz de propiciar a recuperação do rebanho.
Muitos desses pousos se transformariam em vilas e cidades, célebres
como feiras de gado, vindo de imensas regiões circundantes.

Mais tarde, as terras mais pobres dos carrascais, onde o gado não
podia crescer, foram dedicadas à criação de bodes, cujos
couros encontraram amplo mercado. Esses bodes multiplicaram-se prodigiosamente
por todo o Nordeste. Crescendo junto ao gado, transformam-se mais tarde na
única carne ao alcance do vaqueiro.

Com o gado e com os bodes crescia a vaqueirada, multiplicando-se à
toa pelas fazendas, incapaz de absorver lucrativamente a tanta gente nas lides
pastoris, pouco exigente de mão-de-obra. Assim é que os currais
se fizeram criatórios de gado, de bode e de gente: os bois para vender,
os bodes para consumir, os homens para emigrar.

Contando com essa força de trabalho excedente, as fazendas deixaram,
primeiro, de pagar aos vaqueiros em reses, estabelecendo sistemas de salários
em dinheiro, que, computando o rancho e a alimentação, pouco
saldo asseguravam ao trabalhador. Depois, todo o Nordeste pastoril começou
a dedicar-se a atividades ancilares. A mais importante delas foi o cultivo
de um algodão arbóreo, nativo na região, o mocó,
cujo caráter xerófilo lhe permitia sobreviver e produzir, mesmo
nas áreas mais secas do sertão, um casulo de fibras longas com
ampla aceitação no mercado mundial. Esse cultivo associou-se
bem com o pastoreio pelo provimento ao gado de torta de sementes, que constitui
uma ração ideal, bem como pelo valor alimentício da palha
dos roçados de subsistência dos lavradores, nos quais o fazendeiro
solta o gado depois da colheita.

Cada criador procurou, então, fazer-se também lavrador de
mocó, ocupando nessa tarefa as famílias de seus vaqueiros e,
depois, gente especialmente atraída para os novos cultivos, povoando
ainda mais os sertões semi-áridos. Os cultivadores de algodão
ingressam no latifúndio pastoril como meeiros, vale dizer, recebendo
uma quadra de terra para cultivar o alimento que comeriam e outras para produzir
colheitas de mocó, de que deveriam entregar metade ao proprietário.
Assim, em cada fazenda, além da casa de telhas do criador, avarandada
e provida de portas e janelas, e das rancharias singelas de seus vaqueiros,
se acrescentavam as palhoças miseráveis que abrigavam os lavradores
de mocó.

Em outras áreas do Nordeste interior, populações excedentes
do pastoreio dedicavam-se a atividades extrativistas, como a exploração
dos palmais de carnaúba, para a produção de cera e de
artefatos de palha, sempre pelo mesmo regime de meação com o
proprietário. Essas atividades só puderam aliciar centenas de
milhares de trabalhadores em virtude da miserabilidade das populações
nordestinas, porque, mesmo combinadas com lavouras de subsistência,
provêm uma renda mínima que apenas permite sobreviver.

Em algumas manchas de terras úmidas salpicadas pelo mediterrâneo
sertanejo – os brejos, as serras e as várzeas – desenvolveu-se, ao
lado da criação, alguma lavoura comercial. É o caso da
zona do agreste nordestino, mais fresca e mais próxima de centros urbanos
consumidores, onde o pastoreio mesclou-se com uma lavoura de gêneros
alimentícios, sem contudo se associarem. Onde prevalece a agricultura,
confina-se o gado, onde prepondera o pastoreio, cercam-se os roçados.
Essa economia mais intensiva ensejou uma concentração demográfica
maior, aglutinando a população em vilas das quais saíam
para cultivar terras arrendadas pelo regime de meação e para
trabalhar nos engenhos, nas quadras de corte de cana.

Mais tarde, com o aumento da população, as zonas de pastoreio
transformaram-se, principalmente, em criatórios de gente, dos quais
saem os contingentes de mão-de- obra requeridos pelas demais regiões
do país. Assim, formaram-se os grupos pioneiros que penetraram na floresta
amazônica a fim de explorar a seringueira nativa e outras espécies
gomíferas. Assim ocorreu para a abertura de novas frentes agrícolas
no Sul. Assim, também, para engrossar as populações urbanas,
sempre que um surto de construção civil ou de industrialização
exigia massas de mão-de-obra não qualificada.

Os sertões se fizeram, desse modo, um vasto reservatório de
força de trabalho barata, passando a viver, em parte, das contribuições
remetidas pelos sertanejos emigrados para sustento de suas famílias.
O grave, porém, é que emigram precisamente aqueles poucos sertanejos
que conseguem alcançar a idade madura, com maior vigor físico,
tendendo a fixar-se nas zonas mais ricas do Sul aqueles nos quais a paupérrima
sociedade de origem investiu o suficiente para alfabetizar e capacitar para
o trabalho. Desse modo, o elemento humano mais vigoroso, mais eficiente e
mais combativo é roubado à região, no momento preciso
em que deveria ressarcir o seu custo social.

Apesar dessas sangrias em sua população, o sertão regurgita
de gente em relação ao baixo nível da tecnologia compatível
com a exploração pastoril latifundiária; à precariedade
das lavouras de mocó, aliás em plena decadência; às
miseráveis atividades extrativas que enseja e, sobretudo, às
difíceis condições de provimento da subsistência.
É de temer que essa imensa oferta de mão-de-obra ávida
por empregos contribua para a compressão dos salários no Brasil,
que para trabalho não qualificado são dos menores do mundo.
A presença desses excedentes humanos revela-se de forma dramática
por ocasião das secas que assolam periodicamente a região. Então,
levas de flagelados emergem do sertão esturricado pela seca e pelo
sol causticante, enchendo, primeiro, as estradas, depois as vilas e cidades
sertanejas com a presença sombria de sua miséria.

Desde a segunda metade do século passado, as secas nordestinas transformaram-se
num problema nacional a exigir do governo medidas de socorro e de amparo.
Entre o poder federal e a massa flagelada pela seca medeia, porém,
a poderosa cama da senhorial dos coronéis, que controla toda a vida
do sertão, monopolizando não só as terras e o gado, mas
as posições de mando e as oportunidades de trabalho que enseja
a máquina governamental. São os grandes eleitores dos deputados,
senadores e governadores; os manipuladores das autoridades municipais e estaduais,
sempre solícitas em atendê-los e dispostas a tudo fazer para
emprestar congruência e amplitude à autoridade fazendeira, estendendo-a
sobre toda a região. Esses donos da vida, das terras e dos rebanhos
agem sempre durante as secas, mais comovidos pela perda de seu gado do que
pelo peso do flagelo que recai sobre seus trabalhadores sertanejos, e sempre
predispostos a se apropriarem das ajudas governamentais destinadas aos flagelados.

Assim, a ordem oligárquica, que monopolizara a terra pela outorga
oficial das sesmarias durante a época colonial, continua conduzindo,
segundo seus interesses, as relações com o poder público,
conseguindo, por fim, colocar até mesmo as secas a seu serviço
e fazer delas um negócio.

Cada seca, e por vezes a simples ameaça de uma estiagem, transforma-se
numa operação política que, em nome do socorro aos flagelados,
carreia vultosas verbas para a abertura de estradas e, sobretudo, a construção
de açudes nos criatórios. Nas últimas décadas,
enormes somas federais concedidas para o atendimento das populações
nordestinas atingidas pelas secas custearam a construção de
milhares de açudes, grandes e pequenos, enriquecendo ainda mais os
latifundiários, assegurando a seu gado a água salvadora nas
quadras de estiagem e amplas estradas para movimentar os rebanhos em busca
de pastos frescos. Esses mesmos mecanismos retiveram os sertanejos sob o guante
dos patrões.

Chegou-se mesmo a implantar uma “indústria da seca”, facilmente
simulável numa enorme área de baixa pluviosidade natural, quando
para isso se associam os políticos, que, dessa forma, encontram modos
de servir sua clientela, os negociantes e empreiteiros de obras que passam
a viver e a enriquecer da aplicação de fundos públicos
de socorro e os grandes criadores pleiteantes de novos açudes, valorizadores
de suas terras e que nada lhes custam. Apesar dos planos governamentais consignarem
sempre a destinação dos açudes à irrigação
das terras para os cultivos de subsistência, na forma de pequenas propriedades
familiais, jamais um palmo das terras beneficiadas foi desapropriada com esse
objetivo, ficando as áreas irrigáveis sob o domínio dos
fazendeiros, para os usos que mais lhes convinham. Assim, todos os programas
de socorro aos flagelados resultaram em iniciativas consolidadoras do latifúndio
pastoril, salvaguardando o gado bovino dos fazendeiros, mas mantendo o sertanejo
nas mesmas condições precárias, cada vez mais indefesos
em face de uma exploração econômica mais danosa do que
as secas.

Um primeiro órgão federal permanente – o Departamento Nacional
de Obras Contra Seca (DNOCS) – criado para atender ao problema das secas transformou-se
numa agência de clientelismo descarado a serviço dos grandes
criadores e do patriciado político da região.

Mais tarde, foi necessário criar um segundo órgão,
a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), planejado
em bases modernas, relativamente liberado do clientelismo (que continuaria
sendo provido pela primeira instituição), para devotar-se à
implantação de uma infra-estrutura mais capaz de dinamizar a
economia regional. Como era previsível, o programa encontrou a maior
oposição das camadas senhoriais nordestinas e só pôde
ser posto em execução depois de demonstrar que não afetaria
a estrutura social, especialmente o regime de propriedade.

Desse modo, imensos recursos aplicados com alto padrão técnico
e moral beneficiaram ao Nordeste, produzindo, porém, efeitos sociais
muito menores do que uma parcela dos mesmos investimentos permitiria alcançar,
se se pudesse reordenar o regime de propriedade da terra. Todos os fatores
institucionais decisivos permaneceram, assim, sob a guarda de poderosas forças
políticas, cujos interesses são opostos aos da população
sertaneja, mas cujo domínio sobre a estrutura do poder é hegemônico.

Sob essas condições de domínio despótico, as
relações do sertanejo com seu patronato se revestem do maior
respeito e deferência, esforçando-se cada vaqueiro ou lavrador
por demonstrar sua prestimosidade de servidor e sua lealdade pessoal e política.
Temerosos de que qualquer atitude os torne malvistos, submetem-se à
proibição de receber visitantes de outras fazendas e, ainda
mais, de tratar com estranhos, além de toda uma série de restrições
à sua conduta pessoal e familiar. Seu temor supremo é verem-se
desgarrados, sem patrão e senhor que os proteja do arbítrio
do policial, do juiz, do cobrador de impostos, do agente de recrutamento militar.
Ilhados no mar do latifúndio pastoril dominado por donos todo-poderosos,
únicos agentes do poder público, têm verdadeiro pavor
de se verem excluídos do nicho em que vivem, porque isso equivaleria
a mergulhar na terra de ninguém, na condição dos fora-da-lei.

Paradoxalmente essa saída desesperada é a única que
enseja ao sertanejo libertar-se da opressão em que vive, seja emigrando
para outras terras, seja caindo no banditismo.

Com efeito, uma parcela enorme de sertanejos é compelida a engrossar
as frentes pioneiras lançadas à abertura de novas áreas
de exploração, para além das fronteiras dos territórios
de antiga ocupação. Por seus esforços é que se
tornaram conhecidas as zonas ermas que eles penetram, cultivam e ligam por
estradas precaríssimas ao mercado. Mas seu destino é o de eternos
itinerantes, criadores de nichos que devem fatalmente abandonar quando chega
o “dono legítimo” das terras que desbravam. A amarga experiência
de sucessivas expulsões os impede de, mesmo nesses ermos, tentar qualquer
cultivo que não seja do ciclo anual, agravando assim, ainda mais, sua
miserabilidade. Embora exista uma legislação de amparo a esses
desbravadores, que lhes assegura a posse da terra após uma década
de ocupação continuada, sua execução depende do
acesso a um aparato cartorial longínquo e inatingível ao sertanejo
comum.

O sistema prevalecente é, pois, essencialmente o mesmo das sesmarias
reais do período colonial, só que agora as concessões
de glebas dependem da prodigalidade de políticos estaduais. Em todos
os desvãos do Mato Grosso e Goiás, do Maranhão, do Pará
e do Amazonas, milhões de hectares de terras virgens foram concedidos,
nas últimas décadas, a “donos” que nunca as viram,
mas um dia se apresentam para desalojar os pioneiros sertanejos como invasores
que, tangidos por um movimento secular de expansão da ocupação
humana dos desertos interiores, as alcançaram, almejando nelas se instalarem
permanentemente.

Na vastidão do mediterrâneo interior configuram-se diversas
variantes de modos de vida que são adaptações locais
e funcionais dessa expansão sertaneja.

Assim, na orla da mata amazônica, uma frente humana se defronta com
a mata virgem, sem capacidade de penetrá-la por falta de modelos socioempresariais
e técnicas de fixação. Desenvolve-se aí a coleta
de coco babaçu e de drogas da mata, abrindo-se pequenos roçados
de subsistência.

Essa é uma frente pioneira ainda em fase formativa, acossada pelos
neoproprietários que, obtendo por outorga ou grilagem as terras recém-devassadas,
saem no encalço do sertanejo, expulsando-o sempre para mais longe.

Mais para o sul, nas matas de Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás,
o processo já se estabilizou. O fazendeiro contrata com famílias
pioneiras a derrubada de trechos da mata, sob a condição de,
após a terceira colheita de gêneros, semear capim.

Assim, cedendo gratuitamente a terra para lavrar umas poucas colheitas,
o fazendeiro obtém a execução gratuita da tarefa mais
onerosa, que é a derrubada da floresta para estender seus campos e
criação. Além da exploração brutal da massa
camponesa, esse sistema importa numa limitação progressiva da
área cultivável pelo confinamento das lavouras de gêneros
de consumo exclusivamente às áreas novas ainda indevassadas.

Desse modo, em lugar de ampliarem-se as áreas de cultivo de produtos
alimentícios, recuperando para isso os campos naturais, estes é
que avassalam a mata, alargando o pastoreio. Aqui se manifesta outra ação
deformadora dos privilegiados do sistema, que, fruindo a propriedade da terra
a , seu talante, chegam mesmo a negá-la ao cumprimento de sua função
precípua, que é dar de comer à população
brasileira.

Nos campos do Centro-Oeste, onde o pastoreio encontra boas pastagens e um
regime pluvial regular, a vida sertaneja assume outra feição.
As fazendas são cercadas por aramados, a exploração pastoril
se torna um negócio racionalizado, o vaqueiro se transforma num assalariado,
que deve comprar seus mantimentos, inclusive a carne.

O gado, mercê da qualidade dos pastos e do cruzamento com estirpes
indianas, cresce mais precocemente, alcança uma ossatura mais ampla
e se provê mais fartamente de carne. Nesse sistema pastoril mais avançado,
torna-se mais vantajoso para os criadores excluir a carne vacum da dieta do
vaqueiro. O homem, por isso, não cresce nem ganha vigor como o gado,
permanecendo seco e mirrado como nas áreas mais pobres. Continua preterido
em relação ao rebanho, como a espécie mais reles e menos
valiosa. Isto se pode ver de mil modos, mais expressivamente, talvez, nos
cuidados sanitários onerosos que se difundem na defesa do gado contra
epizootias, num mundo em que nada se faz para combater as endemias que assolam
a população.

Qualquer vaqueiro sabe, de experiência própria, quanto contrastam
as facilidades disponíveis para socorrer a um touro empestado com as
dificuldades que encontra para medicar um filho enfermo. Nas bacias leiteiras,
onde o gado é estabulado, ressaltam escandalosamente a fartura da ração
assegurada às vacas e a sovinice de mantimentos com que conta o peão.
Dessa forma, mesmo nas áreas pastoris mais ricas, a ordenação
social degrada ao homem, confirmando o primado empresarial do gado-mercadoria
sobre a comunidade humana.

Todavia, a situação do peão assalariado a um patrão
chega a ser de privilégio em relação às condições
da massa sertaneja sobrante, concentrada nos terrenos baldios ou vagante pelos
campos, em busca de trabalho eventual ou de terra para lavrar em qualquer
condição. A pequena capacidade de absorção de
mão-de-obra pelo pastoreio, combinada com a apropriação
das terras pelos criadores e com o movimento contínuo de expansão
do pastoreio sobre áreas florestais, conduz, assim, as populações
sertanejas a uma situação de indizível penúria.

Em vastas áreas do mediterrâneo interior, grandes contingentes
de sertanejos se dedicam ao garimpo de cristal-de-rocha, de pedras semipreciosas,
de ouro e de minerais raros.

Juntam-se, para isso, em corrutelas sempre provisórias e itinerantes,
que crescem e se desfazem segundo o ritmo de exploração de cada
garimpo, só deixando para trás a buracaria das explorações.

O garimpeiro ostenta um corpo de características peculiares decorrentes
tanto de sua proveniência sertaneja como de sua especialização
no extrativismo mineral, bem como das vicissitudes históricas da exploração
clandestina de diamantes, quando esta constituía monopólio da
Coroa portuguesa. Como resposta a esses condicionamentos, desenvolveram-se
dois traços peculiares: o trato austero que não admite quebra
de disciplina e que combate o roubo da forma mais drástica; e o espírito
aventureiro e nômade de quem trabalha ao sabor da sorte. Cada homem
se empenha duramente no serviço, movido sempre pela esperança
de enriquecer rapidamente com o grande achado de sua vida. Os ganhos reais
são, porém, apoucados e dispendidos prontamente em gastos suntuários,
para não estragar a sorte que o deverá contemplar, amanhã,
ainda mais generosamente.

Para isso, em todas as corrutelas de garimpos estão presentes os
mascates, com suas mercadorias chamativas de artigos supérfluos, e
os atravessadores, que às vezes financiam o trabalho, mas são,
essencialmente, os compradores locais da produção.

As populações sertanejas, desenvolvendo-se isoladas da costa,
dispersas em pequenos núcleos através do deserto humano que
é o mediterrâneo pastoril, conservaram muitos traços arcaicos.
A eles acrescentaram diversas peculiaridades adaptativas ao meio e à
função produtiva que exercem, ou decorrentes dos tipos de sociedade
que desenvolveram. Contrastam flagrantemente em sua postura e em sua mentalidade
fatalista e conservadora com as populações litorâneas,
que gozam de intenso convívio social e se mantêm em comunicação
com o mundo. Em muitas ocasiões, esse distanciamento cultural revelou-se
mais profundo que as diferenças habituais entre os citadinos e os camponeses
de todas as sociedades, fazendo explodir as incompreensões recíprocas
em conflitos sangrentos.

Na verdade, a sociedade sertaneja do interior distanciou-se não só
espacial mas também social e culturalmente da gente litorânea,
estabelecendo-se uma defasagem que as opõe como se fossem povos distintos.

O sertanejo arcaico caracteriza-se por sua religiosidade singela tendente
ao messianismo fanático, por seu carrancismo de hábitos, por
seu laconismo e rusticidade, por sua predisposição ao sacrifício
e à violência. E, ainda, pelas qualidades morais características
das formações pastoris do mundo inteiro, como o culto da honra
pessoal, o brio e a fidelidade a suas chefaturas.

Esses traços peculiares ensejaram muitas vezes o desenvolvimento
de formas anômicas de conduta que envolveram enormes multidões,
criando problemas sociais da maior gravidade. Suas duas formas principais
de expressão foram o cangaço e o fanatismo religioso, desencadeados
ambos pelas condições de penúria que suporta o sertanejo,
mas conformadas pelas singularidades do seu mundo cultural.

Até meados da década de 1930, quando se acelerou a construção
de estradas através do mediterrâneo sertanejo, operava, como
forma de revolta típica da região, o cangaço. Foi uma
forma de banditismo típica do sertão pastoril, estruturando-se
em bandos de jagunços vestidos como vaqueiros, bem-armados, que percorreram
as estradas do sertão em cavalgadas, como ondas de violência
justiceira. Cada integrante do bando tinha sua própria justificativa
moral para aliciar-se no cangaço. Um, para vingar uma ofensa à
sua honra pessoal ou familiar; outro, para fazer justiça com as próprias
mãos, em razão de agravos sofridos de um potentado local; todos
fazendo do banditismo uma expressão de revolta sertaneja contra as
injustiças do mundo.

Resultaram, por vezes, na eclosão de um tipo particular de heroísmo
selvagem que conduziu a extremos de ferocidade.

Tais foram os cangaceiros célebres que, se por um lado ressarciam
aos pobres de sua pobreza com os bens que distribuíam depois de cada
assalto, por outro, matavam, estropiavam, violentavam, em puras exibições
de fúria. É de assinalar que o cangaço surgiu, no enquadramento
social do sertão, fruto do próprio sistema senhorial do latifúndio
pastoril, que incentivava o banditismo, pelo aliciamento de jagunços
pelos coronéis como seus capangas (guarda de corpo) e, também,
como seus vingadores.

Freqüentemente, os fazendeiros aliciavam grandes bandos, concentrando-os
nas fazendas, quando duas parentelas de coronéis se afrontavam nas
freqüentes disputas de terra. Esses capangas, estimados pela lealdade
que desenvolviam para com seus amos, pela coragem pessoal e até pela
ferocidade que os tornava capazes de executar qualquer mandado, destacavam-se
da massa sertaneja, recebendo um tratamento privilegiado de seus senhores.
Acresce que cada bando de cangaceiros tinha seus coronéis coiteiros,
que os escondiam e protegiam em suas terras, em troca da segurança
contra o próprio bando, mas também para servirem-se deles contra
inimigos. Nessas condições, são condicionamentos sociais
do próprio sistema que alentaram e incentivaram a violência cangaceira.

Mais relevante, ainda, é o fato de que toda a população
sertaneja, renegando embora os jagunços pelo pavor que lhe infundiam,
tinha neles padrões ideais de honorabilidade e de valor, cantados nos
versos populares, e via, nos seus feitos mais violentos, modelos de justiça
realçados e louvados. Por tudo isso, o cangaço e seus jagunços,
sanguinários mas pios e tementes a Deus e aos santos de sua devoção,
temidos mas admirados, condenados mas também louvados, constituíram
um produto típico na sociedade sertaneja.

Uma outra expressão característica do mundo sociocultural
sertanejo é o fanatismo religioso, que tem muitas raízes comuns
com o cangaço. Ambos são expressões da penúria
e do atraso, que, incapaz de manifestar-se em formas mais altas de consciência
e de luta, conduziram massas desesperadas ao descaminho da violência
infrene e do misticismo militante.

O fanatismo baseia-se em crenças messiânicas vividas no sertão
inteiro, que espera ver surgir um dia o salvador da pobreza. Virá com
seu séquito real para subverter a ordem no mundo, reintegrando os humildes
na sua dignidade ofendida e os pobres nos seus direitos espoliados: “[…] o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão […]”.

Trata-se da ressonância no sertão brasileiro do messianismo
português referente ao rei d. Sebastião.

Periodicamente surgem anunciadores da chegada do messias, conclamando o
povo a jejuar, a rezar e a flagelar-se a fim de, purificando-se, desimpedir
os caminhos da reencarnação de velhos heróis míticos.

Um desses taumaturgos, em Pedra Bonita, Pernambuco, pedia sangue de crianças
inocentes para verter numa pedreira e, assim, despertar ao rei d. Sebastião
e seus cavaleiros, que ali estariam encantados com seus exércitos,
tombados nas cruzadas contra os mouros. Outro, José Lourenço
do Caldeirão, no Ceará, dirigia o culto a um boi milagreiro,
cuja urina era recolhida, com veneração, como medicina eficientíssima
contra qualquer enfermidade. Outros conduziam atrás de si, em marchas
infindáveis pelo sertão afora, multidões famélicas
de peregrinos que se exorcizavam e se flagelavam na esperança de milagres.
Outros, ainda, atraíam enormes romarias a seus paradeiros, onde rezavam,
confessavam, aconselhavam e, sobretudo, curavam os enfermos incuráveis
e infundiam esperanças aos desenganados.

Por vezes, resulta dessas concentrações – como ocorreu no
Juazeiro do padre Cícero – o aliciamento de sertanejos para trabalhar
anos a fio, gratuitamente, nas fazendas de parentes do milagreiro. Freqüentemente,
porém, assumiam feições mais trágicas, como nos
episódios provocados por Antônio Conselheiro em fins do século
passado.

Em torno desse taumaturgo, que combinava à paixão de profeta
talentos de reformador social, concentrara-se em Canudos, no alto sertão
são-franciscano, uma vasta população sertaneja incandescida
pelo seu misticismo. Os fazendeiros vizinhos viram imediatamente o caráter
intrinsicamente subversivo daqueles rezadores. O que estava atrás daquele
surto de religiosidade bíblica era o abandono das fazendas pela mão-de-obra
que as servia e que resultaria, fatalmente, na divisão das terras se
o mal não fosse erradicado.

Fracassaram, porém, diante do poder de liderança de Antônio
Conselheiro, fundado em sua capacidade de infundir esperança de salvação
e de uma vida melhor na própria terra, as massas sertanejas. Estas,
uma vez ativadas, se transfiguram e saltam de sua resignação
e humildade tradicional a uma combatividade extrema. Cada sertanejo que se
acerca do taumaturgo incandesce, transformando-se num justiçador divino,
só disposto a devotar-se às rezas e à reconstrução
da ordem social em novas bases.

Canudos, o centro do arraial sagrado, aliciando os homens das terras circunvizinhas,
já excedia de mil casas quando os fazendeiros reclamaram a intervenção
das tropas estaduais. Estas foram batidas. As autoridades do estado da Bahia
apelam então para o Exército, que envia dois grandes contingentes,
também vencidos pelos fanáticos, que, assim, se armam e municiam
para uma resistência maior. Surge, então, nos centros urbanos,
despertados para o problema pelo escândalo das vitórias militares
daqueles sertanejos-jagunços, a interpretação de que
se tratava de um couto de monarquistas, em rebelião contra o regime
republicano, orientados, talvez, por agentes lusitanos.

Arma-se, em 1897, um exército inteiro contra o arraial de Canudos,
dotado de todo apetrecho de guerra, inclusive artilharia pesada. Mesmo esse
exército profissional moderno, só depois de lutar arduamente,
consegue vencer a resistência obstinada dos fanáticos. Mas só
o pode fazer ao preço da dizimação de toda a população.

O episódio celebrizou-se por seu próprio vulto sinistro e,
também, pelo retrato candente desse desencontro entre as duas faces
da sociedade brasileira, deixado em Os sertões, de Euclides da Cunha,
escrito como um libelo terrível contra o genocídio que ali se
cometera.

“Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente
compensação a tão luxuosos gastos de combates, de revezes
e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana, do mesmo
passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes
pelos olhos, num longo enxurro de carcassas e mulambos (Cunha 1945:606 ).”
A memória de Canudos perpetuou-se, também, na tradição
oral das populações sertanejas, que recolheram os poucos sobreviventes
do morticínio e deles ouviram e guardaram os episódios heróicos
de resistência e de luta. E, sobretudo, a lição de esperança
dos ensinamentos do Conselheiro sobre a possibilidade de criar uma ordem social
nova, sem fazendeiros, nem autoridades.

Nos últimos anos vem se quebrando o isolamento dos sertões,
cujos fazendeiros todo poderosos do passado foram desarmados pelo governo
central e cujas fazendas se viram cortadas por estradas percorridas por milhares
de caminhões que conduzem gente, mercadorias e novas idéias,
ao mesmo tempo em que eram atingidos pela difusão radiofônica
e pelos cinemas das vilas, que vão familiarizando o sertanejo com o
grande mundo externo.

Nesse sertão devassado, onde uma autoridade política central
já se torna capaz de impor as leis e a justiça, embora só
o possa fazer ainda em cambalacho com o coronelato local, não há
mais lugar para jagunços e fanáticos. As tensões sociais
tendem a estruturar-se em novas formas. As próprias disputas políticas
já não se configuram exclusivamente como lutas de famílias
ou contendas de prestígio entre coronéis a exigirem a lealdade
de seus homens; mas se afirmam como oposições entre lideranças
nacionais, que aliciam os afazendados e seus dependentes em partidos políticos
opostos em tudo, exceto na sustentação da ordem fazendeira de
que todos, afinal, tiram seus votos e a maioria de seus quadros dirigentes.

Mais recentemente, se configurou uma nova polarização de forças
que opunha, de um lado, os partidos tradicionais, sustentadores da velha ordem
oligárquica, e, de outro, movimentos reformistas assentados no voto
independente das massas urbanas.

Enquanto prevaleceu essa polarização, os sertanejos foram
chamados a uma alternativa por novas vozes políticas que, saltando
os cercados das fazendas ou chegando até eles através da radiodifusão,
os aliciava para lutar por sua própria causa.

Chamado a tomar posição nessa nova polarização
de forças, o sertanejo vai adquirindo, gradativamente, consciência
social. Para isso contribuem também os imigrantes sertanejos que regressam
à terra, trazendo do sul a imagem de regiões progressistas,
onde prevalece um trato mais humano e mais justo, costumes mais livres e mais
abertos, sobretudo, um padrão de vida mais alto. Todos esses ingredientes
estão atuando ativamente como alargadores dos horizontes mentais dos
sertanejos e como aliciadores e reorientadores das energias antes voltadas
para o cangaço e o misticismo.

É de assinalar, porém, que o despertar da consciência
sertaneja para sua própria causa não assume, ainda, uma atitude
de rebeldia generalizada. Mas alcança já uma postura de inconformismo
que contrasta com a resignação tradicional. Não chega
a explicar a vida social em termos realistas de interesse em choque e, raramente,
põe em dúvida as representações sagradas do mundo
que explicam pela sorte e pela ajuda divina a riqueza dos ricos e a pobreza
dos pobres. Sua inconformidade revela-se, principalmente, por atitudes de
fuga: a idealização do passado como uma idade mirífica
em que o vaqueiro era pago em reses e em que as terras eram livres para quem
as quisesse ocupar e trabalhar; a idealização da vida em outras
regiões do país, onde a vida é fácil e um homem,
com pouco esforço, pode comer fartamente e viver com dignidade.

E a esperança de ver surgir um novo paternalismo governamental, que
seja mais sensível à sua causa do que aos interesses fazendeiros.
Essas atitudes, porém, antes conduzem ao abandono do sertão
por outras paisagens rurais e pelas cidades e a um redentorismo político
do que a uma pressão ativa pela reordenação da sociedade
sertaneja.

Para o conjunto dos sertões pastoris prevalece, ainda, esse inconformismo
primário e inativo que se explica pelo monopólio secular da
terra e pelo crescimento excessivo da população dentro de um
enquadramento socioeconômico que não possibilita uma renovação
tecnológica capaz de promover a fartura e o progresso. Esses condicionamentos
geram uma estreita dependência do sertanejo em relação
ao latifundiário, operando como um mecanismo de consolidação
do sistema.

Apesar da penúria em que vivem, tanto o sertanejo engajado como vaqueiro,
quanto o agregado ou o parceiro que cultiva terras alheias em regime de meação
sentem-se permanentemente ameaçados de se verem enxotados com suas
famílias e de caírem na condição ainda mais miserável
dos deslocados rurais. Abaixo de cada pessoa que consegue situar-se no sistema
produtivo existe toda uma massa marginalizada, ainda mais miserável,
onde qualquer um pode mergulhar.

Essas condições dificultam ao extremo a organização
política das populações sertanejas, perdidas no deserto
de terras devolutas ou engolfadas no latifúndio. Elas nascem, vivem
e morrem confinadas em terras alheias, cuidando do gado, de casas, de cercados
e de lavouras que têm donos ciosos. O próprio rancho miserável
em que vivem com suas famílias, construído por eles próprios
com barros e palhas do campo, não lhes pertence. Nada os estimula a
melhorá-lo e o proprietário não os autoriza a enriquecê-lo
com o plantio de fruteiras ou com a criação de animais de terreiro,
para que não faça jus à indenização no
momento em que devam ser despedidos.

Essa situação contrasta o lavrador e o vaqueiro sertanejo
com o camponês aldeão da Europa feudal que vivia numa comunidade
onde nasceram e morreram seus pais e avós, lavrando sempre a mesma
terra, todos devotados a um esforço continuado para prover sua subsistência,
pagando os foros devidos ao senhorio, mas melhorando sempre as condições
de vida e de trabalho no nicho em que se situavam, para torná-lo cada
vez mais habitável. Por mais anos ou gerações que permaneça
numa terra, o sertanejo é sempre um agregado transitório, sujeito
a ser desalojado a qualquer hora, sem explicações ou direitos.
Por isso, sua casa é o rancho em que está apenas arranchado;
sua lavoura é uma roça precária, só capaz de assegurar-lhe
um mínimo vital para não morrer de fome, e sua atitude é
a de reserva e desconfiança, que corresponde a quem vive num mundo
alheio, pedindo desculpas por existir. Quando, apesar de todos os seus cuidados
para viver desapercebido, torna-se objeto de atenção, é
para ver desencadearem-se sobre si novas iniqüidades, que só pode
enfrentar com a violência, agravando ainda mais suas desgraças.

Assim, somente o lavrador livre, que trabalha como arrendatário de
terras alheias ou se instala em terrenos baldios ou em arraiais, alcança
condições mínimas de interação social que
lhe permitem desenvolver-se politicamente e assumir uma conduta cidadã.

Somente esses manifestam sua revolta contra o sistema fundiário leiteando
claramente a propriedade da terra. Exemplificam essa situação
os sertanejos das comunidades mais livres do agreste nordestino que mantêm
uma vida social mais intensa e um certo convívio com populações
urbanas. Ali se multiplicaram as ligas camponesas de Francisco Julião,
com sede pública; primeiro, para impor aos senhores de terra condições
explícitas e menos espoliativas nos contratos anuais de arrendamento;
depois, para pleitear a própria posse das terras, através de
uma reforma agrária.

Esse movimento experimentou uma rápida expansão, tanto através
das ligas, como dos sindicatos rurais – estes principalmente nas usinas açucareiras,
onde se concentram grandes massas de assalariados agrícolas – organizados
por lideranças urbanas de diversas orientações políticas
que incluíam desde sacerdotes católicos até militantes
comunistas. Assentava-se, porém, na precária base de uma conjuntura
política transitória.

Quando esta foi derrubada pelo golpe militar, voltou o sertão a mergulhar
no despotismo latifundiário.

Nos últimos trinta anos, uma descoberta tecnológica abriu
novas perspectivas de vida econômica para os cerrados. Verificou-se
que aquelas imensidades de planícies ofereceriam condições
perfeitas para o cultivo de soja ou do trigo, à condição
de que fosse corrigida sua acidez. Assim é que os cerrados estão
sendo invadidos por grupos de fazendeiros sulinos, à frente de imensa
maquinária, para o cultivo de cereais de exportação.
Alguns poucos sertanejos estão aprendendo a ser tratoristas ou trabalhadores
especializados das grandes plantações. Para a massa humana do
sertão é que essa riqueza nova não oferece esperança
alguma.

Tenho em mente a imagem de uma fieira de nordestinos, adultos e crianças,
maltrapilhos, cabeça coberta com seus chapéus de palha e de
couro, agachados, olhando pasmos as imensas máquinas revolvendo a velha
terra do cerrado.

5. O BRASIL CAIPIRA

“[…] Metido pelos matos, à caça de índios e
índias, estas para os exercícios de suas torpezas e aqueles
para os granjeios de seus interesses […] nem sabe falar [o português] […] nem se diferencia do rnais bárbaro tapuia mais do que em dizer
que é cristão e não obstante o haver se casado de pouco
lhe as- sistem sete índias concubinas […] Bispo de Olinda sobre Domingos
Jorge Velho, o capitão bandeirante que liquidou o quilombo de Palmares,
1694” Enquanto os núcleos açucareiros da costa nordestina
cresciam e enriqueciam, a população paulista revolvia-se numa
economia de pobreza. Não tendo grandes engenhos de açúcar,
que eram a riqueza do tempo, tampouco tinham escravaria negra, e raramente
um navio descia até o ancoradouro de São Vicente. Ao fim de
um século e meio de implantação, os núcleos paulistas
mais importantes eram arraiais de casebres de taipa ou adobe, cobertos de
palha.

Os homens bons que integravam a Câmara e dirigiam as bandeiras de
devassamento dos sertões interiores viviam com suas famílias
em sítios no interior, em condições igualmente pobres.
Cada um deles servido pela indiada cativa que cultivava mandioca, feijão,
milho, abóbora e tubérculos, para comer com carne de caça
ou com pescado; além do tabaco para o pito, do urucu e da pimenta para
condimento e algumas outras plantas indígenas.

Em família e também nas relações entre paulistas,
só se falava a língua geral, que era uma variante do idioma
dos índios Tupi de toda a costa. Também indígenas eram
as técnicas da lavoura de coivara, bem como de caça, de pesca
e de coleta de frutos silvestres de que se sustentavam. A tralha doméstica,
de redes de dormir, gamelas, porongos, peneiras etc., pouco diferia da disponível
numa aldeia indígena.

Seus luxos em relação à vida tribal estavam no uso
de roupas simples, do sal, do toucinho de porco e numa culinária mais
fina; na posse de alguns instrumentos de metal e de armas de fogo; na candeia
de óleo para alumiar, nalguma guloseima, como a rapadura, e na pinga
de cana que sempre se destilou; além da atitude sempre arrogante. Cada
família fiava e tecia de algodão grosseiro as redes de dormir
e as roupas de uso diário – amplas ceroulas cobertas de um camisolão
para os homens, blusas metidas em saias largas e compridas, para as mulheres.
Todos andavam descalços ou usando simples chinelas ou alpercatas. Apenas
cobriam o corpo que os índios antes deixavam à mostra, sem pudor
mas com a faceirice das pinturas de urucum e jenipapo.

Essa pobreza, que está na base tanto das motivações
quanto dos hábitos e do caráter do paulista antigo, é
que fazia deles um bando de aventureiros sempre disponível para qualquer
tarefa desesperada, sempre mais predispostos ao saqueio que à produção.

Cada caudilho paulista de expressão podia levantar centenas e até
milhares de homens em armas; é verdade que a imensa maioria deles formada
por índios flecheiros.

Não necessitavam mais, porém, uma vez que os inimigos a enfrentar
eram índios tribais arredios, índios missioneiros desvirilizados
e negros quilombolas quase desarmados. Sua economia de subsistência
de base tribal e tupi prestava-se admiravelmente a manter esses centos de
índios combatentes, que só precisavam de um rancho que eles
mesmos faziam, de um pedaço de terra desmatada para roçados,
que eles próprios abriam, da caça e da pesca que também
eles mesmos agenciavam.

As contribuições fundamentais do paulista a esses núcleos
eram um disciplinamento militar superior ao tribal e as motivações
mercantis também mais bem ajustadas às circunstâncias.

É provável que o índio aliciado nesses bandos, depois
de suficientemente afastado de sua tribo para dissuadi-lo de retornar, neles
se integrasse sem dificuldades em virtude de sua singeleza quase tribal. Não
era submetido a uma disciplina rígida de trabalho, como no engenho,
mas às alternâncias de esforços e de lazer a que estava
habituado.

Sua condição seria provavelmente muito próxima da que
enfrentaria, por exemplo, o índio cativo de tribos guerreiras como
os Guaikuru, para servir como servo de um cacicato. Nos dois casos, encontrava
um papel social bem definido e uma possibilidade de integração
num novo mundo cultural, que, embora menos desejável que o tribal,
seria suportável. O inconveniente maior era a impossibilidade de ter
mulher (porque estas seriam muito disputadas) e também vida de família.

Esse modo de vida, rude e pobre, era o resultado das regressões sociais
do processo deculturativo. Do tronco português, o paulista perdera a
vida comunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrárias
tradicionais, o arado e a dieta baseada no trigo, no azeite e no vinho. Do
tronco indígena, perdera a autonomia da aldeia igualitária,
toda voltada para o provimento da própria subsistência, a igualdade
do trato social de sociedades não estratificadas em classes, a solidariedade
da família extensa, o virtuosismo de artesãos, cujo objetivo
era viver ao ritmo em que os seus antepassados sempre viveram.

Os núcleos paulistas, vinculados a uma economia mercantil externa
e motivados por ambições de enriquecimento, não queriam
apenas existir como os índios com os quais quase se confundiam. Integrados
na estrutura estamental da colônia, aspiravam a participar da camada
dominante, dar-se luxos de consumo e poder de influenciar e de mandar. Armados
de uma tecnologia rudimentar, mas muito superior à tribal, amalgamada
de elementos europeus e indígenas, seu destino era lançar-se
sobre as gentes e sobre as coisas da terra, apresando e saqueando o que estivesse
a seu alcance, para assim afirmar-se socialmente.

Por tudo isso é que os mamelucos paulistas se tornaram – como mateiros
e sertanistas ainda melhores que os próprios índios – o terror
dos grupos tribais livres e dos índios catequisados pelos jesuítas,
nesse processo desestimulados para a luta, e,mais tarde, dos negros fugidos
e concentrados em quilombos. Durante um século e meio, os paulistas
se fizeram cativadores de índios, primeiro, para serem os braços
e as pernas do trabalho de suas vilas e seus sítios; depois, como mercadoria
para venda aos engenhos de açúcar. Desse modo despovoaram as
aldeias dos grupos indígenas lavradores em imensas áreas, indo
buscá-los, por fim, a milhares de quilômetros terra adentro,
onde quer que se refugiassem.

Adestrados nessas práticas, os paulistas se lançam, no começo
do século XVII, contra as prósperas missões jesuíticas
do Paraguai, onde dezenas de milhares de índios sedentarizados e disciplinados
no trabalho agrícola, pastoril e artesanal se ofereciam como o saque
mais tentador. Os catecúmenos eram, então, especialmente valiosos
pela carência de negros escravos em que viviam os engenhos baianos,
em virtude do domínio holandês sobre as fontes supridoras da
África. Mas, além de índios a cativar, os paulistas encontravam
nas missões jesuíticas preciosos adornos de igrejas, ferramentas
e outras prendas de valor, ademais de muito gado.

Missões inteiras, das mais ricas e populosas, como Guaíra
(oeste paranaense), Itatim (sul do Mato Grosso) e Tapes (Rio Grande do Sul),
foram assim destruídas pelos bandeirantes paulistas, que saquearam
seus bens e escravizaram seus índios. É de supor que paulistas
tenham vendido mais de 300 mil índios, principalmente missioneiros,
aos senhores de engenho do Nordeste.

Cada uma dessas empresas de assalto às missões jesuíticas
do Paraguai exigia, por vezes, a mobilização de todos os paulistas
prestantes com sua indiada de confiança.

As maiores delas compreendiam cerca de 2 a 3 mil pessoas, uma terça
parte das quais era constituída de “brancos” que seriam quase
todos mamelucos. Iam homens, mulheres, velhos que ainda podiam andar e combater
e crianças, divididos por famílias, como uma vasta cidade móvel,
arranchando-se pelo caminho, fazendo roça, caçando e pescando
para comer, mas seguindo sempre em frente para acossar aos missioneiros em
seus redutos, vencê-los e apresá-los. Além do núcleo
guerreiro de combatentes, com sua hierarquia militar e seu incipiente aparato
legal e religioso, a bandeira transitava pelo sertão toda uma corte
de serviçais que carregavam as cargas de mantimentos e utensílios,
de índios que caçavam, pescavam e coletavam alimentos, de sertanistas
que abriam picadas e estabeleciam rumos.

Assim, num tempo em que as nações deserdadas na divisão
do mundo apelavam para a pirataria marítima dos corsários, os
paulistas, que eram os deserdados do Brasil, lançavam-se, também,
ao saque com igual violência e cobiça. Marginalizados do processo
econômico da colônia, em que quase todos estavam voltados para
as lucrativas tarefas pacíficas dos engenhos e dos currais de gado,
os paulistas acabaram por se especializar como homens de guerra. Cada vez
que na abertura de uma nova zona os índios apresentavam resistência
maior, requeria-se a mão sujigadora dos paulistas.

Igualmente, quando estalava uma rebelião escrava ou quando um grupo
negro se alçava implantando solidamente um quilombo resistente às
forças locais, para os paulistas é que se apelava.

Desse modo, troços de guerra de chefes paulistas com sua indiada
de combate andaram além dos sertões indevassados, que eram seu
campo habitual de trabalho, por todas as regiões prósperas do
país, empreitados para desalojar índios ou destruir quilombos.
Alguns desses sinistros bandeirantes de contrato traziam de volta dessas batalhas,
como prova de tarefa cumprida, milhares de pares de orelhas dos negros decapitados.
Nessas andanças, muitos paulistas acabaram por se fixar em regiões
distintas, fazendo-se criadores de gado ou lavradores. A maioria, porém,
voltava ao couto, reintegrando-se na vida penosa e rude de sua gente. Formavam
uma sociedade que, por ser mais pobre, era também mais igualitária,
na qual senhores e índios cativos se entendiam antes como chefes e
seus soldados, do que como amos e seus escravos.

A miscigenação era livre porque quase ninguém haveria,
dentre os homens bons, que não fosse mestiço. Nessas circunstâncias,
o filho da índia escrava com o senhor crescia livre em meio a seus
iguais, que não eram a gente da identidade tribal de sua mãe,
nem muito menos os mazombos, mas os chamados mamelucos, frutos de cruzamentos
anteriores de portugueses com índias, orgulhosos de sua autonomia e
de seu valor de guerreiros.

A família se estrutura patricêntrica e poligínica, dominada
pelo chefe como um grupo doméstico com pessoas de várias gerações;
essencialmente, o pai, suas mulheres com as respectivas proles e os parentes
delas. As índias atreladas ao grupo como cativas eram comborças
do pai e dos filhos destes. Só aos poucos o casamento religioso se
impõe como sacralização da mãe dos filhos legítimos,
entre as mulheres de cada homem. Muito paulista

velho consignava em seu testamento a parcela dos parcos bens que caberia aos
filhos legítimos e o montante a distribuir entre os outros, esclarecendo
bizarramente que tinha, por filhos seus, todos aqueles que as mães apontassem
como tais.

O regime de trabalho, voltado para o sustento e não para o comércio,
era quase o mesmo da aldeia tribal. Atribuía às mulheres as
cansativas tarefas rotineiras de limpeza da casa, do plantio, da colheita
e das roças, do preparo de alimentos, do cuidado das crianças,
da lavagem das roupas e do transporte de cargas. E, aos homens, os trabalhos
esporádicos que exigiam grandes dispêndios de energia, como o
roçado, a caça e a guerra, mas que permitiam depois de cada
façanha largos períodos de repouso e Essa posição
histórico-evolutiva é que lhe impunha, por um lazer. Nas longas
quadras de espera inativa entre as entradas do sertão, os homens ficavam
em casa, insofridos, como guerreiros em vígilia. Nesse ambiente estouravam,
com freqüência, conflitos sangrentos. Esses hábitos deram
aos antigos paulistas a reputação de gente birrenta e preguiçosa.

Apesar desse primitivismo, São Paulo quinhentista era também
um implante da civilização européia ocidental, um entreposto
mercantil mundial, um enclave colonial- escravista da formação
mercantil-salvacionista ibérica. Por todas essas qualidades, contrastava
flagrantemente com as organizações tribais das aldeias agrícolas
indiferenciadas, com as quais interagia, sem com elas confundir-se. Ao contrário,
lhes impunha sua dominação e as conduzia ao extermínio
físico para fazer surgir um outro povo no território até
então ocupado por elas.

Enquanto civilização, era um transplante tardio de uma romanidade
refeita por sucessivas transfigurações na península Ibérica,
que, a certa altura, adquire forma e vigor para expandir-se como uma macroetnia
conquistadora. Nesse sentido, repetiam- se em São Vicente – como de
resto em todo o Brasil – as situações em que conquistadores
cartagineses e romanos impuseram sua língua, religião e cultura
aos povos celtiberos, transfigurando-os etnicamente em lusos.

Nos dois casos estamos diante de uma mesma modalidade de trânsito
de uma etapa evolutiva a outra, aquela que se dá pela incorporação
histórica de um povo numa macroetnia conquistadora com perda de sua
própria autonomia cultural.

Isto significa que em São Paulo não se verificava um ascenso
da tribalidade à civilização, mas sim a edificação,
com gente desgarrada das tribos, de uma entidade étnica emergente que
nasce umbilicalmente ligada a uma sociedade e a uma cultura exógena
por ela conformada e dela dependente. São Paulo surge, por isso, com
uma configuração histórico-cultural de povo novo, plasmada
pelo cruzamento de gente de matrizes raciais díspares e pela integração
de seus patrimônios culturais sob a regência do dominador que,
a longo termo, imporia a preponderância de suas características
genéticas e de sua cultura.

Enquanto entreposto mercantil, São Paulo era um módulo da
trama econômica transatlântica de produção e comércio,
comunicada através de naus oceânicas. Sua principal mercadoria
eram índios caçados para vender como escravos aos núcleos
açucareiros do Nordeste e também para outros lugares. Capistrano
de Abreu, referindo-se a São Paulo, dizia que o Brasil, antes de importador,
fora exportador de escravos. Mas, ainda que produzisse para o mercado interno,
interagia em um circuito mercantil que lhe permitia prover-se de produtos
importados, principalmente armas e ferramentas. O próprio negócio
de vender índios como escravos era parte do tráfico mundial
escravista e tinha seu ritmo e êxito determinados pelos azares da preia
e exportação de africanos.

Enquanto formação, São Paulo não era uma reencarnação
de etapas pregressas da evolução humana. Era uma formação
colonial-escravista, estruturada como uma contraparte contemporânea
e coetânea da formação mercantil-salvacionista ibérica.

Essa posição histórico-evolutiva é que lhe impunha,
por um lado, sua característica básica de sociedade estratificada
em classes antagônicas e bipartida em componentes rurícolas e
citadinos, esses últimos liberados das tarefas de subsistência
para ocupar-se de outras funções, e, por outro lado, seu papel
de agência difusora da civilização ibérica e impositora
de sua dominação sobre o território brasileiro.

A grande esperança dos paulistas em suas entradas no sertão
sempre foi deparar com minas de ouro, prata ou pedras preciosas. A tanto os
apicaçava também a Coroa portuguesa, empenhada em que seu naco
das Américas produzisse as riquezas que os espanhóis arrancavam
do México e do Peru. Assim é que puderam alcançar apoio
e até alguma ajuda oficial para as entradas que visavam a descoberta
de metais preciosos.

O ouro acabou aparecendo nos sertões de Taubaté, primeiro
em garimpos pobres, que só estimulavam as buscas; depois em aluviões
prodigiosamente ricos das morrarias de Minas Gerais, cuja exploração
transfiguraria toda a sociedade colonial brasileira e, levado para a Europa,
alteraria o padrão monetário. Pandiá Calógeras
avalia em 1400 toneladas de ouro e em 3 milhões de quilates de diamantes
a riqueza carreada do Brasil no período colonial (Calógeras
1938:60-1 ).

Tais foram as zonas de mineração descobertas pelos bandeirantes
paulistas nas serrarias do interior do país ao alvorecer do século
XVIII, em Minas Gerais ( 1698 ), depois em Mato Grosso ( 1719) e, mais tarde,
em Goiás ( 1725 ). Desde as primeiras notícias dos descobrimentos
auríferos, multidões acorreram às áreas de mineração,
vindas de todo o Brasil e, posteriormente, também de Portugal. Em poucos
anos, aquelas regiões desertas transformaram-se na área mais
densamente povoada das Américas, concentrando cerca de 300 mil habitantes
por volta de 1750.

Os ricos vinham com toda sua escravaria, pleiteando grandes lavras; os remediados,
com o que tinham, e os pobres, com uns poucos negros, com apenas um, ou com
nenhum, mas também tentando a sorte. A transladação humana
alcançou tal vulto que a Coroa viu-se na contingência de sofreá-la,
baixando sucessivamente atos para evitar o êxodo dos engenhos e das
vilas das zonas de antiga ocupação.

A exploração começou pelo ouro de aluvião, que
se apresentava misturado às areias e ao cascalho do leito dos rios
(ouro de medra) e das sua margens (ouro de tabuleiro).

Aí tratava-se apenas de lavrar e batear as areias para catar as pepitas
e apurar o ouro em pó. Mais tarde, passou-se a explorar o ouro de grupiara,
que se encontrava nas serranias. Então, fez-se necessário um
processo mais complicado, que envolvia a canalização da água
de lavagem e o desmonte da piçarra, e freqüentemente a trituração
das pedras em que se engastava o ouro. Por fim, explorava-se também
o ouro de minas, cujos filões tinham que ser seguidos terra adentro,
exigindo mais trabalho e técnicas mais aprimoradas.

Inicialmente, porém, era enorme a quantidade de ouro que se encontrava
à flor da terra para ser simplesmente catado com bateias. Essa facilidade
de exploração conduziu ao pronto esgotamento dos aluviões,
obrigando os arraiais de mineradores a deslocar-se para novas áreas.
Alguns dos primeiros núcleos de exploração eram tão
ricos que as rancharias assentavam sobre o próprio terreno aurífero,
tendo de ser derrubadas, mais tarde, para prosseguir na lavagem do cascalho.
Assim se formaram arraiais que se tornariam vilas e, depois, cidades assentadas
literalmente sobre o ouro, como Vila Rica, Cuiabá, Vila Bela e Goiás,
entre muitas outras. Construídas com o barro rico, ainda hoje se pode
ver, nessas cidades, gente bateando as terras de um velho muro de adobe em
ruínas, à procura de pepitas.

O afluxo de gente para as áreas de mineração e a sofreguidão
com que todos se dedicavam à cata de ouro geraram graves problemas
sociais, fome e conflitos. Toda uma copiosa documentação histórica
mostra como se podia morrer de fome ou apenas sobreviver comendo raízes
silvestres e os bichos mais imundos, com as mãos cheias de ouro. Registra,
também, as contendas entre mineradores, travadas principalmente entre
os paulistas e adventícios.

Aqueles, considerando-se com maiores direitos, enquanto descobridores de
toda a nova riqueza, lutavam contra a invasão dos baianos, pernambucanos
e demais brasileiros, bem como contra os reinóis atraídos para
as minas. A chamada Guerra dos Emboabas ( 1710 ) foi o mais grave dos enfrentamentos
desse tipo.

Somente uma década depois da descoberta, as autoridades coloniais
fixaram-se com um poder efetivo sobre as novas regiões, tornando-se
capazes de compelir o cultivo de gêneros para garantir a subsistência,
de estancar os conflitos, de dirimir as lutas pelo domínio das águas
de lavagem e pela posse das matas mais ricas.

Começa, então, uma luta feroz entre os empresários
da terra e o patriciado lusitano, esforçando-se os primeiros por reter
e aumentar seus bens contra a sanha taxadora da Coroa. O escamoteio de ouro
e dos diamantes e a sonegação dos impostos prevalecem, desde
então, como o sentimento mais profundo dos corações mineiros
e como sua forma particular de rebeldia. A Coroa reage com as derramas, as
exações punitivas, os confiscos e a repressão, mas jamais
consegue pôr cobro à posse ilícita e ao contrabando, que
era a defesa dos brasileiros contra a espoliação. A população
revida com motins, por vezes prontamente aplastados, mas exigindo outras vezes
a mobilização de milhares de soldados para sufocá-los.
O principal deles, eclodido em 1720, termina com o esquartejamento de Felipe
dos Santos e a queima das casas dos revoltosos.

Ainda na primeira metade do século XVIII, a descoberta de uma riquíssima
região diamantífera promove nova transladação
humana.

Era, porém, aos olhos da Coroa, uma riqueza demasiado grande para
ficar em mãos de brasileiros. Sobre ela foi decretado o monopólio
real. Assim é que os diamantes seriam explorados, primeiro, por contratantes
reais; depois, diretamente por agentes da metrópole. O estanco (monopólio
real), apesar de decretado e imposto através do maior aparelho de repressão
montado no período colonial, não impediu a exploração
clandestina de diamantes. Esta continuou sendo feita, acabando por plasmar
um tipo social característico, o garimpeiro, que ainda hoje conserva
traços de independência, reserva e rebeldia, explicáveis
por essa origem clandestina.

Os primeiros povoadores levantavam e abandonavam continuamente rancharias,
à medida que as lavras eram descobertas e se esgotavam. Mas prontamente
se nuclearam, em princípio nos pousos mais próximos, onde se
instalava uma venda que depois se tornava estalagem e armazém. Ali
todos compravam ferramentas e utensílios, sal, pólvora, panos,
mantimentos e pinga, pagando tudo em onças de ouro em pó, que
era a moeda da terra. Essa riqueza atraiu negociantes importadores; comboieiros
que tangiam escravos desde a costa, acorrentados uns aos outros; tropeiros
que transportavam a lombo de burro, através de centenas de léguas,
toda a sorte de mercadoria. Alguns daqueles pousos se estabilizaram, tornando-se
arraiais e vilas capazes de prover, além das mercadorias, também
as necessidades da religião e da justiça da população.
Assim se constitui, com extraordinária rapidez, a base do que viria
a ser uma vasta e próspera rede urbana.

Os escravos das lavras viviam acumulados em choças levantadas nas
vizinhanças, trabalhando sob estrita vigilância de fiscais e
feitores atentos contra o extravio e até a deglutição
das pepitas maiores e, sobretudo, dos diamantes. Gozavam, porém, de
certas regalias em relação ao eito açucareiro, tendo
condições de cultivar seus roçados e, por vezes, de comprar
a própria liberdade se alcançassem uma produção
inusitada. Nesse mundo que requeria as aptidões técnicas mais
variadas, muito negro habilidoso se fez artífice. A eles se devem as
primeiras fundições de ferro, indispensáveis nas minas
para o fabrico do instrumental de trabalho, para ferrar as mulas das tropas
e as rodas dos carros.

Nas zonas de mineração, a sociedade brasileira adquire feições
peculiares como um desdobramento do tronco paulista, por influência
dos brasileiros vindos de outras áreas e de novos contingentes europeus
nele incorporados, e da presença de uma grande massa de escravos, tanto
africanos quanto nativos, trazidos das antigas zonas açucareiras. O
principal conformador dessa variante cultural foi a atividade econômica
inicial de mineração e a riqueza local que ela gerou, criando
condições para uma vida urbana mais complexa e ostentosa que
em qualquer outra região do país.

A abertura das regiões mineradoras teve algumas conseqüências
externas de importância capital, além das transladações
de população. Ensejou a transferência da capital colonial
da Bahia para o porto do Rio de Janeiro – que era um arraial paupérrimo,
como o velho São Vicente -, criando as bases para a implantação
de grande centro administrativo e comercial na costa sul, em cujas imediações
se desenvolveria um novo núcleo de economia agrária. Estimulou
a expansão do pastoreio nordestino pelos campos são-franciscanos
e do Centro-Oeste, assegurando- lhe um novo mercado consumidor, no momento
em que decaía o nordestino.

Finalmente, possibilitou a ocupação da região sulina,
conquistada pelos paulistas com a destruição das missões
jesuíticas -, para o pastoreio de gado vacum, que se dispersara pelos
campos, e, sobretudo, para a criação dos muares que abasteceriam
os tropeiros, os quais faziam todo o transporte terrestre do Brasil colonial.

Desse modo, a mineração, ademais de representar uma nova atividade
de maior rentabilidade econômica que as anteriores, ensejou a integração
na sociedade colonial, assegurando, assim, o requisito fundamental da unidade
nacional brasileira sobre a vastidão do território já
devassado.

Meio século depois da sua descoberta, a região das Minas já
era a mais populosa e a mais rica da colônia, contando com uma ampla
rede urbana. Nas décadas seguintes, se ativaria com uma vida social
brilhante, servida por majestosos edifícios públicos, igrejas
amplas de primorosa arquitetura barroca, casas senhoriais assobradadas e ruas
pedradas engalanadas com pontes e chafarizes de pedra esculpida.

Desenvolveu-se simultaneamente uma classe senhorial de autoridades reais
e eclesiásticas, de ricos comerciantes e mineradores, tanto brasileiros
como reinóis, acolitada por um amplo círculo de militares de
ofício, burocratas, ouvidores, contadores, fiscais e escrivães.
Dentro desse círculo, todos se davam um trato cordial de “urbanidade
sem afetação”, segundo um testemunho europeu. Os homens
levavam jaquetas e calças de flanela preta de Manchester. As mulheres
davam-se ao luxo de seguir modas francesas. Faziam arquitetura e pintura da
mais alta qualidade, criando uma variante brasileira do barroco; literatura
lírica e até política libertária; liam pensadores
revolucionários e compunham música erudita, primorosamente orquestrada.

A atividade mineradora, que mantinha esse fausto urbano, propiciou também
a criação de uma ampla camada intermediária entre cidadãos
ricos e os pobres trabalhadores das lavras. Eram artífices e músicos,
muitos deles mulatos e mesmo pretos, que conseguiam alcançar um padrão
de vida razoável e desligar-se das tarefas de subsistência para
só se dedicarem a suas especialidades. Para atender a esse grupo, fundam-se
suas próprias corporações de ofício, de molde
português, que se tornam poderosos núcleos de defesa dos interesses
profissionais, associando separadamente os ourives, os pedreiros, os carpinteiros,
os entalhadores, os ferreiros, os artistas, escultores, pintores e outros
artífices.

A atividade religiosa regia o calendário da vida social, comandando
toda a interação entre os diversos estratos sociais. Isso se
fazia através de diversas irmandades organizadas por castas, que reuniam
os pretos forros, os mulatos, os brancos, separando-os em distintas agrupações
mas também integrando a todos na vida social da colônia. Cada
uma delas tinha igreja própria, que era seu orgulho, cemitério
privativo e direito a pompas funerárias com a participação
de seus clérigos e de seus músicos profissionalizados. Os pretos
também, inclusive os escravos, criaram suas próprias corporações,
devotadas, como as outras, a algum santo. É o caso do suntuoso Santuário
do Rosário dos Pretos, de Ouro Preto.

O sustento dessa população urbana criou condições
para o surgimento de uma agricultura comercial diversificada, provedora de
mantimentos, de carne, de rapadura, de queijos, de toucinho e muitos outros
produtos. Pequena parcela da escravaria foi destinada a esses misteres, dado
o seu engajamento maciço na mineração. Deles ocupavam-se,
principalmente, os negros e mulatos forros e os brancos mais pobres, incapazes
de entrar no negócio das lavras, que já não era de simples
bateação, mas de mineração e desmonte de grupiaras,
exigindo, por isso, grandes capitais.

Lavrando principalmente terra alheia, por força do monopólio
que sobre ela exercia a gente fidalga, esses chacareiros trabalhavam, certamente,
sob algum regime de parceria, como os roceiros da região açucareira
dedicados ao provimento alimentar das vilas e cidades nordestinas. Abaixo
desses estratos intermediários, estava a camada dos mulatos e negros
forros mais humildes, representados nas irmandades mais pobres mas, ao menos,
aí integrados. Eram os serviçais domésticos ou trabalhadores
braçais, sobre cujos ombros recaíam as tarefas pesadas. Na base
da estratificação, como a camada mais explorada, sem qualquer
representação ou direito, ficava a grande massa escrava de trabalhadores
das minas, das lavouras e dos transportes.

Todo um aparato ostensivo de repressão vigiava, em cada vila, a esses
miseráveis, para prevenir as fugas de escravos, a vadiagem dos forros
que pudesse resultar em assaltos e, sobretudo, as rebeliões.

A sedição surge, porém, na própria classe alta,
de que se destaca uma elite letrada que se propõe formular e pôr
em execução um projeto alternativo ao colonial de reordenação
de sua sociedade. Trata-se do mais ousado dos projetos libertários
da história colonial brasileira, uma vez que previa estruturar uma
república de molde norte-americano que aboliria a escravidão,
decretaria a liberdade de comércio e promoveria a industrialização.
A eclosão insurrecional deveria ter lugar em 1789, aproveitando a revolta
dos “mineiros” contra a espoliação colonial, aumentada
por novas taxações já anunciadas sobre uma riqueza minguante.
Foi a malchamada Inconfidência Mineira, que, apesar de fracassada por
uma delação, nos revela o vigor do sentimento nativista nascente
e também o amadurecimento de uma ideologia republicana capacitada para
reordenar a sociedade em novas bases.

Tiradentes, a figura principal da conspiração, um militar
de ofício, tinha sempre em mãos um exemplar da constituição
norte-americana para mostrar como se devia e se podia reorganizar a vida social
e econômica depois da emancipação do jugo português.
Presos por denúncia, todos os inconfidentes foram desterrados para
a África, onde morreram. Exceto o próprio Tiradentes, enforcado
após três anos de cárcere e, depois, esquartejado e exposto
nos lugares onde antes conspirara, para escarmento da população.

Depois de algumas décadas de exploração intensiva e
desordenada, começam a esgotar-se os aluviões de Minas Gerais
e, mais tarde, os de Goiás e de Mato Grosso. Os mineradores voltam
às velhas paragens, relavando cascalho já trabalhado ou tentando
lavras abandonadas, por sáfaras. Tudo em vão; o ouro minguava
e com ele a sociedade fundada na dissipação da riqueza fácil.
Os mineradores insistiam, porém, labutando com os escravos envelhecidos
que não podiam renovar e endividando-se, mas persistindo sempre pela
incapacidade de se voltarem para outra atividade. Seu problema era determinar
que mercadoria se podia produzir naqueles ermos montanhosos, como transportá-la
até a costa distante e a quem vendê-la, se o único mercado
rico fora o das minas, agora empobrecidas.

Ao fim do século XVIII, a vida urbana ainda parecia ter viço
pelo brilho artístico que alcançara, pelo requinte que adquirira,
pelos hábitos mundanos que cultivava.

Mas já eram expressões da decadência, que pouco depois
desapareceriam também, mergulhando a todos na pobreza envergonhada
em que ainda vegetam os mineiros das antigas cidades do ouro e do diamante.

Nem Portugal conseguira reter a riqueza portentosa que carreara, criando
com ela novas fontes de produção. Um pacto de complementaridade
econômica com a Inglaterra – Tratado de Methuen -, que assegurava
taxas mínimas ao vinho do Porto e ao azeite português em troca
do livre comércio das manufaturas inglesas, transferia quase todo o
ouro para os banqueiros londrinos. O âmbito dessa transferência
pode ser avaliado em documentação da época, que indica
terem alcançado até 50 mil libras semanais os pagamentos portugueses
em ouro pelas importações que o reino e o Brasil faziam aos
industriais ingleses. Esse ouro contribuiria para custear as guerras contra
Napoleão e, sobretudo, para financiar a expansão da infra-estrutura
industrial da Inglaterra.

Com a decadência da mineração, toda a área submerge
numa economia de pobreza, com a regressão cultural resultante. Os mineradores
se fazem sitiantes, escondendo na fazenda a sua penúria.

O artesanato local de roupas rústicas e de utensílios volta
a ganhar terreno, e com ele uma economia autárquica para subsistência.
Todavia, a presença de contingentes europeus e africanos integrados
na sociedade mineira permite explorar algumas técnicas, como a fundição
de ferro, a edificação, a carpintaria fina, a indústria
de panos, bem como certo grau de erudição livresca que impediriam
a sociedade mineira decadente de regredir à rusticidade do tronco paulista.

Sua vocação histórica seria a industrialização,
para a qual estava quiçá tão habilitada como a colônia
norte-americana. Com efeito, somente a industrialização poderia
abrir novos horizontes de ocupação produtiva aos capitais acumulados
e, sobretudo, à massa antes engajada na mineração, que
estiolava agora nas cidades decadentes e nos campos paupérrimos. É
certo que a industrialização que se processava, então,
nos centros reitores da economia mundial envolvia conhecimentos técnicos
que nem Portugal dominara, além de exigir contatos internacionais e
recursos financeiros que talvez excedessem as possibilidades de uma província
colonial encravada no coração do continente. O obstáculo
fundamental à realização desse desígnio residia,
porém, numa proibição expressa. Efetivamente, as tentativas
mineiras de instalar fábricas toscas pareceram à Coroa tão
atentatórias aos seus interesses que todas elas foram destruídas
pelas tropas coloniais e se dispôs em 1785 que jamais se tornassem a
levantar.

Entrou, assim, em desagregação progressiva a economia e a
sociedade que edificara nas regiões mineiras seus arraiais e cidades,
formando o maior conglomerado demográfico e a maior rede urbana da
colônia. Antigos mineradores e negociantes se transformam em fazendeiros;
artesãos e empregados se fazem posseiros de glebas devolutas. Citadinos
ruralizados espalham-se pelos matos, selecionando as terras já não
pela riqueza aurífera, mas por suas qualidades para moradia e cultivo.
Fazem-se roceiros de lavouras de subsistência, criadores de gado, de
cavalos, de burros e de porcos, espraiando-se pelas vastidões dos vales
que descem e se abrem das serranias onde se explorava o ouro.

Buscando manter sua procedência social, muitas parentelas antes ricas,
mas de bens minguantes, emigraram com sua escravaria para sesmarias conseguidas
em territórios ermos. Aí reconstituem núcleos de vida
autárquica, novamente orgulhosos de só depender do comércio
para o provimento do sal, mal escondendo, atrás dessa vaidade, a sua
penúria. O núcleo fidalgo destas parentelas continuava cultuando
certa erudição. Os pais ensinavam a ler e a escrever aos seus
filhos varões, iniciando-os às vezes em rudimentos de latim
e de literatura clássica. Mesmo as camadas populares mantêm,
por algumas décadas, nesses núcleos de citadinos ruralizados,
certos traços culturais de extração urbana européia,
como a música erudita. Ainda no século XIX, músicos afeiçoados
a quartetos de corda surpreendem o sábio alemão Karl von Martius,
que atravessava a região, com convites para tertúlias de puro
gosto fidalgo, em pleno sertão mineiro.

A vida citadina se deteriora, conformando cidades mortas, cujas casas são
vendidas por preços muito inferiores ao que custaria edificá-las;
cujo comércio, instalado em lojas enormes, tem as prateleiras vazias;
cuja gente cada vez mais sovina vive de créditos e calotes, só
luzindo o antigo brilho nas procissões religiosas, organizadas ao gosto
antigo, em que todos trajam a única surrada roupa domingueira. Esta
é a Minas Gerais da decadência: conservadora, reservada, desconfiada,
taciturna e amarga. A atividade mais rendosa, porque a única paga em
dinheiro, virá a ser a burocracia sobrevivente de uns poucos cargos
públicos, disputados pela melhor gente.

Esgotado o impulso criador dos bandeirantes que se fizeram mineiros, toda
a economia da vasta população do CentroSul entra em estagnação.

Mergulha numa cultura de pobreza, reencarnando formas de vida arcaica dos
velhos paulistas que se mantinham em latência, prontas a ressurgir com
uma crise do sistema produtivo. A população se dispersa e se
sedentariza, esforçando-se por atingir níveis mínimos
de satisfação de suas necessidades.

O equilíbrio é alcançado numa variante da cultura brasileira
rústica, que se cristaliza como área cultural caipira. É
um novo modo de vida que se difunde paulatinamente a partir das antigas áreas
de mineração e dos núcleos ancilares de produção
artesanal e de mantimentos que a supriam de manufaturas, de animais de serviço
e outros bens.

Acaba por esparramar-se, falando afinal a língua portuguesa, por
toda a área florestal e campos naturais do Centro-Sul do país,
desde São Paulo, Espírito Santo e estado do Rio de Janeiro,
na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se ainda sobre
áreas vizinhas do Paraná. Desse modo, a antiga área de
correrias dos paulistas velhos na preia de índios e na busca de ouro
se transforma numa vasta região de cultura caipira, ocupada por uma
população extremamente dispersa e desarticulada. Em essência,
exaurido o surto minerador e rompida a trama mercantil que ele dinamizava,
a paulistânia se “feudaliza”, abandonada ao desleixo da existência
caipira.

O único recurso com que conta essa economia decadente são
as enormes disponibilidades de mão-de-obra desocupada e de terras virgens
despovoadas e desprovidas de qualquer valor, que os mais abonados obtêm
por concessão em enormes sesmarias e os mais pobres e imprevidentes
apenas ocupam como posseiros.

Com essa base se instala uma economia natural de subsistência, dado
que sua produção não podia ser comercializada senão
em limites mínimos. Difunde-se, desse modo, uma agricultura itinerante,
a derrubar e queimar novas glebas de mata para cada roçado anual, combinada
com uma exploração complementar das terras, das aguadas, das
matas, através da caça, da pesca e da coleta de frutos e tubérculos.
Sem nada vender, nada podiam comprar, voltando à vida autárquica
de economia artesanal doméstica que satisfazia, nos níveis possíveis,
às necessidades comprimidas a limites extremos.

Essas novas formas de vida importaram numa dispersão do povoamento
por grandes áreas, com o distanciamento dos núcleos familiais.
Não impuseram, porém, uma segregação, porque novas
formas de convívio intermitente foram estruturando as vi- zinhas em
unidades solidárias. Assim se formaram os bairros rurais, definidos
por um informante de Melo e Souza ( 1964 ) como naçãozinhas
ou grupos de convívio unificados pela base territorial em que se assentarti,
pelo sentimento de localidade que os identifica e os opõe a outros
bairros, e pela participação em formas coletivas de trabalho
e de lazer.

Para essas populações rarefeitas, que, via de regra, só
contavam para o convívio diário com os membros da família,
assumem importância crucial certas instituições solidárias
que permitem dar e obter a colaboração de outros núcleos
nos empreendimentos que exigem maior concentração de esforços.
A principal delas é o mutirão, que institucionaliza o auxílio
mútuo e a ação conjugada pela reunião dos moradores
de toda uma vizinhança para a execução das tarefas mais
pesadas, que excediam das possibilidades dos grupos familiares. Assim, os
moradores de um bairro sucessivamente se juntam para ajudar a cada um deles
na derrubada da mata para o roçado, para o plantio e a limpeza dos
cultivos, bem como para a bateação das safras de arroz e de
feijão e, eventualmente, para construir ou consertar uma casa, refazer
uma ponte ou manter uma estrada. Sempre que a tarefa interessava imediatamente
a um dos moradores, cumpria a este prover alimentação e, ao
fim dos trabalhos, oferecer uma festa com música e pinga. Assim, o
mutirão se faz não só uma forma de associação
para o trabalho, mas também uma oportunidade de lazer festivo, ensejando
uma convivência amena.

As vizinhanças mais solidárias organizam-se, ainda, em formas
superiores de convívio, como o culto a um santo poderoso, cuja capela
pode ser orgulho local pela freqüência com que promove missas,
festas, leilões, sempre seguidos de bailes. Cada núcleo, além
da produção de subsistência, que absorve quase todo o
trabalho, produz uns poucos artigos para o mercado incipiente, como queijos,
requeijões e rapaduras, farinha de mandioca, toucinho, lingüiça,
cereais, galinha e porcos. A eles se acrescentam os panos de algodão
grosseiro, de fabrico doméstico, que chegam a servir como unidade de
troca nessa economia não monetária.

A população caipira, integrada em bairros, preenche desse
modo suas condições mínimas de sobrevivência. Os
que se desgarram desse convívio, penetrando sós nos sertões
mais ermos, estão sempre ameaçados de cair em anomia, sendo
olhados por todos como gente rara, suspeita de incesto e de todas as formas
de alienação cultural.

A vida rural caipira, assim ordenada, equilibra satisfatoriamente quadras
de trabalho continuado e de lazer, permitindo atender às carências
frugais e até manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes
improdutivos. Condiciona, também, o caipira a um horizonte culturalmente
limitado de aspirações, que o faz parecer desambicioso e imprevidente,
ocioso e vadio. Na verdade, exprime sua integração numa economia
mais autárquica do que mercantil que, além de garantir sua independência,
atende à sua mentalidade, que valoriza mais as alternâncias de
trabalho intenso e de lazer, na forma tradicional, do que um padrão
de vida mais alto através do engajamento em sistemas de trabalho rigidamente
disciplinado.

Só nessas condições de recessão econômica
é que a população branca e mestiça pobre e os
mulatos livres têm acesso à terra.

Não por uma renovação institucional que garanta a propriedade
dos posseiros, mas simplesmente porque, quebrados os vínculos mercantis
pela inexistência de um mercado comprador, deixaria temporariamente
de ter sentido o monopólio da terra como mecanismo adicional de conscrição
da força de trabalho para as lavouras comerciais.

A liberdade incidental dessa existência autárquica duraria
pouco, porque logo surgiria outra forma de viabilização da economia
de exportação através da grande lavoura e, com ela, a
proscrição legal ( 1850 ) do acesso à propriedade da
terra pela simples ocupação e cultivo, através da obrigatoriedade
da compra ou de formas de legitimação cartorial da posse, que
eram inacessíveis ao caipira.

Com efeito, passadas as décadas de maior recesso ( 1790 a 1840 ),
surgem e se expandem novas formas de produção agroexportadora,
dando início a um lento processo de reaglutinação das
populações caipiras em bases econômicas mercantis.

Tal se dá com o surgimento de novos cultivos comerciais de exportação,
como o algodão e o tabaco e mais tarde o café, que reativariam
as regiões caipiras. As estradas melhoram e se refazem os sistemas
de transporte por tropas.

Simultaneamente, uma reordenação institucional se vai implantando
no nível civil e no eclesiástico: as vizinhanças se transformam
em distritos, os arraiais em cidades, providas já de certo aparato
administrativo que entra a examinar a legalidade das ocupações
de terras. A religiosidade espontânea se institucionaliza com a ereção
de freguesias e, depois, de paróquias com vigários permanentes.
Por fim, um poder estatal se instala, com serviços de polícia,
que se capacitam a acabar com o banditismo espontâneo e a soldo, que
se generalizara, aliciando aventureiros e vadios.

Essa penetração do poder público não se faz,
porém, como uma extensão da justiça ou como uma garantia
de bem comum.

O Estado penetra o mundo caipira como agente da camada proprietária
e representa para ele, essencialmente, uma nova sujeição. Desde
então, torna-se imperativo para cada pessoa colocar-se sob o amparo
de um senhorio que tenha voz frente ao novo poder para escapar às arbitrariedades
de que, doravante, está ameaçada. Para isso se fará compadre,
ou foreiro, ou sequaz, ou eleitor – geralmente tudo isto -, de quem lhe possa
assegurar a proteção indispensável.

Assim, o domínio oligárquico que remonopolizava a terra e
promovia o desenraizamento do posseiro caipira, com a ajuda do aparelho legal
administrativo e político do governo, ganha força e congruência,
passando a exigir também as lealdades do caipira. Tal como ocorre ao
sertanejo, seu pavor maior será doravante ver-se desgarrado, sem um
senhor poderoso que se interponha, se necessário, entre ele e essa
ordem impessoal, antipopular, todo-poderosa, que avança sobre o seu
mundo.

O fator básico dessa reordenação social e econômica
era o restabelecimento do sistema mercantil e com ele a valorização
das propriedades. Desencadeia-se a disputa pelas terras de melhor qualidade,
próximas das redes de transporte, utilizáveis para as lavouras
comerciais, cada vez mais amplas, de algodão e de tabaco e para as
novas lavouras de café, que começam a difundir-se. Nesse processo
os cartórios se ativam para avalizar títulos de velhas sesmarias,
verdadeiros ou falsificados, promovendo o desalojamento de antigos posseiros.

Todo um aparato jurídico citadino se coloca a serviço dessa
concentração de propriedade. Propriedades pulverizadas por efeito
de heranças sucessivas de famílias extensas se reconstituem
por compra das parcelas de exploração inviável. Entram
em ação os demarcadores de glebas a se fazerem pagar em terras
pelos que não têm dinheiro. Multiplicam-se os grileiros, subornando
juízes e recrutando as forças policiais das vilas para desalojar
famílias caipiras, declaradas invasoras de terras em que sempre viveram.
Postas fora da lei e submetidas à perseguição policial,
elas são, finalmente, escorraçadas das terras à medida
que sua exploração comercial se torna viável.

Com o crescimento prodigiosamente rápido das culturas de café,
se acelera esse processo de reordenação social. O caipira é
compelido a engajar-se no colonato, como assalariado rural, ou a refugiar-se
na condição de parceiro, transferindo-se para as áreas
mais remotas ou para as terras cujos proprietários não têm
recursos para explorar os novos cultivos. O caipira apega-se a essa saída
com todas as suas forças, procurando tornar-se parceiro, como meeiro,
financiado pelo proprietário a quem entrega metade da produção;
ou como terceiro, trabalhando por conta própria, mas pagando pelo direito
ao uso da terra um terço das colheitas.

Essa condição lhe permite preservar a autonomia na marcação
do ritmo de trabalho e lhe dá condições de manter suas
formas globais de adaptação e de vida. Assegura- lhe, ainda,
um status de quase proprietário, assim tratado pelos vendeiros, mediante
a garantia de crédito, de colheita a colheita, que não é
dado ao trabalhador assalariado.

A implantação do novo sistema produtivo se processa gradativamente,
admitindo, por algum tempo, a coexistência das lavouras comerciais com
a parceria tradicional. Isto porque o caráter mercantil da produção
só afetava inicialmente a atividade produtiva central do proprietário,
que não absorvia todas as terras, e até se conciliava bem com
a presença de uma reserva de mão-de-obra na própria fazenda,
aliciável para as tarefas que exigiam maior número de trabalhadores.

Aos poucos, porém, o novo sistema ganha força e congruência,
indo buscar e desalojar o caipira em qualquer ermo em que se embrenhe, pela
expansão contínua das áreas ocupadas pela economia de
fazenda, obrigando-o a renovar sua opção entre o engajamento
como assalariado rural ou novos deslocamentos, à procura de áreas
mais atrasadas, ainda compatíveis com a parceria. A própria
parceria se vai tornando menos satisfatória, confinada às terras
mais pobres e mais distanciadas do mercado e onerada com novas exigências.
Dentre elas o cambão, forma de corvéia que obriga o caipira
e sua família a dar dias de trabalho gratuito ao proprietário
e dias suplementares por cada animal de montaria que possua.

Apesar de todos esses óbices, o caipira espoliado de suas propriedades
e sucessivamente expulsado de suas posses continua resistindo a submeter-se
ao regime de fazenda. Toda a sua experiência o faz identificar o trabalho
de ritmo dirigido como uma derrogação de sua liberdade pessoal,
que o confundiria com o escravo. Mesmo depois de abolida a escravidão
( 1888), permanece esse critério valorativo, que considera humilhante
o trabalho com horário marcado por toque de sino e dirigido por um
capataz autoritário.

O caipira se marginaliza, apegando-se a uma condição e independência
inviável sem a posse da terra. Assim é que, apesar da existência
de milhões de caipiras subocupados, o sistema de fazendas teve de promover,
primeiro, uma intensificação do tráfico de negros escravos
e de apelar, depois, para a imigração européia maciça,
que coloca milhões de trabalhadores à disposição
da grande lavoura comercial.

Confinado nas terras mais sáfaras, enterrado na sua pobreza, o caipira
vê, impassível, chegarem e se instalarem, como colonos das fazendas,
multidões de italianos, de espanhóis, alemães ou poloneses
para substituírem o negro no eito, aceitando uma condição
que ele rejeita. Essa nova massa vinha, porém, de velhas sociedades,
rigidamente estratificadas, que a disciplinara para o trabalho assalariado,
e via na condição de colono um caminho de ascensão que
faria dela talvez, um dia, pequenos proprietários. O caipira, despreparado
para o trabalho dirigido, culturalmente predisposto contra ele, desenganado,
desde há muito, de tornar-se proprietário, resiste no seu reduto
de parceiro, que é para ele a condição mais próxima
do ideal inatingível de granjeiro em terra própria.

As páginas de Monteiro Lobato que revelaram às camadas cultas
do país a figura do Jeca Tatu, apesar de sua riqueza de observações,
divulgam uma imagem verdadeira do caipira dentro de uma interpretação
falsa. Nos primeiros retratos, Lobato o vê como um piolho da terra,
espécie de praga incendiária que atiçava fogo à
mata, destruindo enormes riquezas florestais para plantar seus pobres roçados.
A caricatura só ressalta a preguiça, a verminose e o desalento
que o faziam responder com um “não paga a pena” a qualquer
proposta de trabalho. Descreve-o em sua postura característica, acocorado
desajeitadamente sobre os calcanhares, a puxar fumaça do pito, atirando
cusparadas para os lados. Quem assim descrevia o caipira era o intelectual-fazendeiro
da Buquira, que amargava sua própria experiência fracassada de
encaixar os caipiras em seus planos mirabolantes.

O que Lobato não viu, então, foi o traumatismo cultural em
que vivia o caipira, marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente
ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modo tradicional
de vida. É certo que, mais tarde, Lobato compreendeu que o caipira
era o produto residual natural e necessário do latifúndio agroexportador.
Já então propugnando, ele também, uma reforma agrária.

O sistema de fazendas, que se foi implantando e expandindo inexoravelmente
para a produção de artigos de exportação, cria
um novo mundo no qual não há mais lugar para as formas de vida
não mercantis do caipira, nem para a manutenção de suas
crenças tradicionais, de seus hábitos arcaicos e de sua economia
familiar. Com a difusão desse sistema novo, o caipira vê desaparecerem,
por inviáveis, as formas de solidariedade vicinal e de compadrio, substituídas
por relações comerciais. Vê definhar as artes artesanais,
pela substituição dos panos caseiros por tecidos fabris, e,
com elas, o sabão, a pólvora, os utensílios de metal,
que já ninguém produz em casa e devem ser comprados.

A ocupação agrícola das terras, o cercamento dos latifúndios
com aramados, a expansão dos pastos e a presença do gado, mudando
as condições ecológicas, tornam impraticáveis
a caça e a pesca. Assim, perde o caipira um complemento alimentar básico
que permitia melhorar sua dieta frugal e carente. Ao fim do processo de implantação
do sistema de fazendas, mesmo nos ermos onde se acoitara, fugindo ao engajamento
compulsório, o caipira tenta manter uma condição tornada
obsoleta e inviável.

O golpe derradeiro na vida do caipira tradicional, que acaba por marginalizá-lo
definitivamente, se dá com a ampliação do mercado urbano
de carne, que torna viável a exploração das áreas
mais remotas e de terras pobres ou ricas para a criação do gado.
A partir de então, a cada roça de caipira ainda consentida para
derrubar a mata ou para desbastar capoeiras se segue o plantio de capim e
a desincorporação automática da área do sistema
antes prevalecente, para devotá-la ao pastoreio. As antigas propriedades
latifundiárias, que se faziam autárquicas com o concurso de
aglomerados de caipiras estruturados em bairros, vão sendo despovoadas
de gente para encher-se de gado. Nessas fazendas de criação,
uma parcela ínfima de trabalhadores substitui, como vaqueiros, a antiga
população residente que se vê, assim, expulsa. O novo
procedimento, estando ao alcance até mesmo dos latifundiários
menos providos de recursos, porque utiliza o próprio caipira e até
a parceria para liquidar com ele, importa numa limitação progressiva
das terras disponíveis para o trabalho agrícola.

Massas de caipiras são, assim, obrigadas a novas opções.
Agora já não se oferece nem mesmo a oportunidade de engajar-se
no colonato. Trata-se de escolher entre permanecer na própria parceria,
tornada precaríssima, em que ainda subsiste; mergulhar no mundo dos
posseiros invasores de terras alheias; concentrar se nos terrenos baldios
como reserva de mão-de-obra para servir às fazendas despovoadas,
nas quadras de trabalho intenso; ou, finalmente, incorporar-se às massas
marginais urbanas como aspirante à proletarização.

As instituições básicas da cultura caipira desintegraram-se
ao impacto da onda renovadora representada pelas novas formas de produção
agrícola e pastoril de caráter mercantil. Foram destruídas,
porém, sem que se ensejasse aos agregados rurais formas compensatórias
de acomodação que lhes garantissem um lugar e um papel na nova
estrutura. Esse papel teria sido sua integração na categoria
de pequenos proprietários que, talvez, lhes permitisse incorporar as
inovações tecnológicas, alargando as suas aspirações
à medida que se integrassem na economia nacional. O monopólio
da terra, fundado no domínio do centro do poder político pela
oligarquia agrícola, obliterou esse caminho.

Uma comunidade caipira que conserva as formas tradicionais de sociabilidade
é, hoje, uma sobrevivência rara, confinada às áreas
mais remotas e menos integradas no sistema produtivo. Todavia, o número
de trabalhadores autônomos rurais, em sua enorme maioria parceiros e
pequenos arrendatários, supera 5 milhões. Já não
são aqueles caipiras de modos de existência arcaica e pobre mas
satisfatória, a seu próprio juízo. Constituem uma vasta
camada marginal à estrutura e que suporta as mais penosas condições
de vida, ainda inferiores aos mínimos quase incomprimíveis da
economia caipira. E muito piores, porque subsistem face a face com condições
superiores de vida, de que têm notícia ou que podem apreciar
e que atuam como ideais conformadores de suas aspirações. É-lhes
impossível, todavia, integrar-se nesses novos estilos de consumo, pela
estreiteza da própria estrutura social em que estão inseridos,
fundada na propriedade latifundiária, incapaz de melhorar as condições
de vida da massa de parceiros e, também, de incorporá-los no
trabalho assalariado.

Caem, assim, na condição de trabalhadores eventuais, os bóias-frias.

A rapidez com que, em diversas regiões, nos últimos anos,
os parceiros se interessaram pelo movimento de sindicalização
rural, antecipando-se aos núcleos de assalariados agrícolas,
indica, de um lado, sua independência maior e sua capacidade de conduta
autônoma e, de outro, o grau de conscientização de sua
própria miséria e de revolta contra a ordem social que a sustenta.
Essa mole de milhões de caipiras, que são os verdadeiros camponeses
do Brasil, porque reivindicantes seculares da posse das terras que trabalham,
está como que à espera do surgimento das formas de luta que,
exprimindo sua inconformidade, desencadeiem a rebelião rural.

O sistema de fazendas alcançou, com a implantação das
grandes lavouras de café, um novo auge só comparável
ao êxito dos engenhos açucareiros. Seu efeito crucial foi reviabilizar
o Brasil como unidade agroexportadora do mercado mundial e como um próspero
mercado importador de bens industriais. Outro efeito da cafeicultura foi modelar
uma nova forma de especialização produtiva e configurar um outro
modo de ser da sociedade brasileira. Culturalmente, a nova feição
é basicamente caipira. Mas a essa matriz se acrescentam outras dimensões
pela incorporação, na primeira fase, de uma grande massa escrava
e, mais tarde, da contribuição de imigrantes europeus, integrados
maciçamente no colonato. A essas matrizes se somariam, ainda, elementos
tomados de outras variantes culturais brasileiras pela convergência
para as fazendas de gente vinda das diversas regiões do país.

O cultivo do café, que se praticava um pouco por todo o Brasil, como
raridade e para consumo local, ganha significação econômica
com as primeiras grandes lavouras plantadas na zona montanhosa próxima
ao porto do Rio de Janeiro. O sucesso das exportações – que
crescem de 3178 sacas, na década de 1820, a 51631 sacas, na década
de 1880 – promove rapidamente o novo cultivo à liderança em
que se manterá, daí em diante, como a atividade econômica
fundamental do Brasil, passando de 18,4 por cento do valor das exportações,
na primeira das citadas décadas, a 61,5 por cento, na última.

Para implantar o empreendimento cafeeiro contava-se com abundante disponibilidade
de terras apropriadas e de mão-de-obra escrava subutilizada desde a
decadência da mineração e, ainda, com um sistema adequado
de transporte e de comercialização.

O modelo empresarial que primeiro se impõe é a fazenda escravocrata,
que tem de comum com o sistema de plantação açucareira
a grande extensão territorial, o alto grau de especialização
e de racionalização das atividades produtivas, o caráter
mercantil do produto que exporta e a necessidade de concentrar nas fazendas
grandes contingentes de mão-de-obra servil, rigidamente disciplinada.
Exige também enormes investimentos financeiros, sobretudo para a aquisição
de terras que se valorizam rapidamente e para a compra da escravaria e sua
reposição, uma vez que as singelas instalações
de beneficiamento são construídas nas próprias fazendas.
O cafezal, como um plantio permanente, demanda grande concentração
de mão-de-obra na etapa preparatória da derrubada das matas
e de cuidados especiais nos primeiros quatro anos. Daí em diante, só
reclama grande quantidade de mão-de-obra por ocasião da colheita.

Nessas circunstâncias, a fazenda escravocrata conta sempre com um
excedente de trabalhadores utilizado nas tarefas de subsistência e no
artesanato. Estrutura-se assim, como grande unidade autárquica, em
que a atividade agrícola-mercantil é cercada por uma série
de atividades ancilares, cujo pessoal se mobiliza todo para a colheita.

As fazendas escravocratas de café da área montanhosa fluminense
alcançaram logo o vale do Paraíba e, daí, se irradiaram,
progressivamente, para as matas de Minas Gerais, do Espírito Santo
e de São Paulo, principalmente. As maiores delas eram comunidades de
quinhentas até 2 mil pessoas, sobretudo escravos, que produziam quase
tudo que consumiam, desde a roupa da escravaria, as casas, os mantimentos,
até as instalações e o mobiliário da própria
fazenda. Mas também adquirem muitos bens industriais, tanto para o
consumo dos fazendeiros como para o trabalho.

O recrutamento da força de trabalho servil para a cafeicultura se
fez, primeiro, regionalmente, com a aquisição dos negros excedentes
das zonas de mineração. O sucesso do empreendimento permitiu,
a seguir, a promoção de uma verdadeira drenagem de escravos
de outras áreas decadentes, como os algodoais maranhenses e os engenhos
açucareiros. A tudo isso se acrescenta, depois, a importação
direta de cerca de meio milhão de africanos. Apesar desses suprimentos,
as fazendas de café viviam em carência permanente de mão-de-obra,
em virtude de seu ritmo intenso de expansão e de desgaste da escravaria
no eito, expressivo das condições miseráveis de vida
e de trabalho a que eram submetidos. Nos cinco anos imediatamente anteriores
à proibição do tráfico ( 1850 ), entram oficialmente
nos portos brasileiros cerca de 250 mil escravos africanos, cujo preço
seria aproximadamente de 15 milhões de libras esterlinas, que equivaliam
a mais de 36 por cento do valor das exportações.

Nessa fase, o proprietário reside na fazenda, compondo o mesmo quadro
contrastante do Nordeste açucareiro, representado pela oposição
entre a vivenda senhorial e a senzala. Faz-se servir, também, de numerosa
criadagem doméstica a que acrescenta, por vezes, preceptores europeus
para a educação dos filhos na própria fazenda e padres
residentes para os serviços religiosos.

A partir da segunda metade do século passado, quando o café
já domina a economia brasileira, os cafeicultores se constituem numa
oligarquia nacional cada vez mais poderosa. Faz-se mais autêntica e
forte que a açucareira, porque domina todo o complexo econômico
do café, desde o plantio à exportação, enquanto
aquela sempre permaneceu submetida ao controle do patronato parasitário
de exportadores e, sobretudo, porque se capacita, prontamente, a utilizar
o poder político na defesa de seus interesses econômicos.

A proximidade da Corte imperial facilitava, também, o exercício
dessa influência, que acaba se tornando hegemônica.

Nessa camada senhorial hegemônica é que o império brasileiro
procurou fundar a nobreza que o sustentaria, distribuindo títulos nobiliárquicos
e recrutando nela os chefes de gabinete e ministros de Estado. Os cafeicultores
tornam-se, assim, os barões, viscondes, condes e marqueses do Império,
contraparte fidalga do sistema escravocrata, consciente de que não
sobreviveria à abolição, como efetivamente ocorreu quando
esta se tornou inevitável pela pressão da opinião pública
citadina.

A abolição, representando embora a simples devolução
do escravo à posse de si mesmo, importava em dois efeitos econômicos
cruciais e nas mais profundas conseqüências sociais. No plano econômico,
expropria a parcela maior de capital da principal classe proprietária,
arruinando-a, e a compele a uma mais ampla redistribuição da
renda com a remuneração do trabalho através do salário.
A ruína financeira dos barões do café provoca uma abrupta
substituição de proprietários dos cafezais com conseqüências
positivas para o sistema econômico global, dadas as características
modernas do novo empresariado e a vantagem que representaria para ele não
ter que investir recursos na compra de escravos. O segundo efeito teve conseqüências
sociais mais profundas, pela elevação que propiciaria do nível
de vida das populações, principalmente nos setores em que havia
disputa de mão-de-obra, como era o caso da cafeicultura. Para o escravo,
a abolição representou a oportunidade de exercer opções
sobre o seu destino e de reconquistar a dignidade humana e o auto-respeito
de que fora despojado. Essa liberdade seria, porém, limitada pelo monopólio
da terra, que o obrigaria a engajar-se no serviço de algum proprietário
e ater-se ao subconsumo a que sempre estivera submetido.

Com efeito, o negro escravo fora condicionado, por toda a sua experiência
anterior, a lutar contra o seu desgaste no trabalho, do qual procurou se poupar
de todos os modos, como medida elementar de autopreservação.
Fora igualmente habituado a uma dieta frugalíssima e a posses mínimas,
que se reduziam aos trapos que trazia sobre o corpo. E fora, ainda, reduzido
a si mesmo, como indivíduo, pela impossibilidade de manter vínculos
familiares, já que suas mulheres eram também coisas alheias
e seus filhos igualmente propriedade do amo.

Com as motivações elementares decorrentes desse condicionamento
o negro forro inicia sua integração no papel de trabalhador
livre. Sua reação inevitável é reduzir as obrigações
de trabalho disciplinado ao mínimo indispensável para prover
suas elementaríssimas necessidades. Nessas condições,
nenhum estímulo representado pela elevação do ganho o
atingirá. O valor fundamental que cultua é o ócio e a
recreação.

Seu nível de aspirações fora entorpecido pela inculcação
de valores que limitavam ao extremo o número de coisas desejáveis
e apropriadas à condição humana que ele se atribuía.
A construção de uma outra auto-imagem só seria alcançada
nas gerações seguintes, que, crescendo livres, se fariam progressivamente
mais enérgicas e ambiciosas. Assim, o negro retoma o trabalho no eito
como assalariado livre para exercê-lo com eficácia ainda menor
do que a que alcançara como escravo. E quando se encontra próximo
a áreas de terras desocupadas prefere caipirizar-se, integrando um
núcleo de economia de subsistência, a engajar-se na condição
de assalariado rural permanente.

Alarga-se, por esse processo, com a abolição, a camada marginal
absenteísta que refuga o trabalho nas fazendas. Aos caipiras originais,
brancos e mulatos, por vezes ex-proprietários ou posseiros, pleiteantes
eternamente insatisfeitos das terras em que trabalham, se soma essa nova camada
de marginalizados. Esses, em condições ainda mais precárias
porque, em lugar de reivindicar a posse da terra e uma condição
de dignidade superior à do colono, o que desejam é simplesmente
sobreviver, atendendo a seu horizonte limitadíssimo de aspirações.
Nessas circunstâncias, ao engrossarem a massa marginal, esses contingentes
negros alforriados se constituem num subproletariado que, além de mais
miserável, se veria segregado da primeira, predominantemente branca
e mestiça, pelo preconceito racial que dificultará a tomada
de consciência de todos eles sobre a exploração de que
uns e outros eram objeto.

A abolição, seguida do regime republicano que liquida com
a escravidão e com a fidalguia, não abala, porém, o reinado
do café, que se faz cada vez mais poderoso. É regido, agora,
por cafeicultores que se fazem os grandes próceres republicanos e por
um novo sistema de trabalho que se irá aproximando paulatinamente do
assalariado. É a cafeicultura do colonato que se encaminha para a monocultura
e se funda numa divisão de trabalho na qual os cuidados agrícolas
na plantação são entregues principalmente a imigrantes.
europeus e as outras tarefas a trabalhadores eventuais, de fora da fazenda.
A derrubada da mata para o plantio de novos cafezais fica a cargo de grupos
móveis especializados que trabalham, geralmente, por empreitada com
mão-de-obra ex-escrava ou de antigos parceiros. A colheita, exigindo
maior concentração de trabalhadores faz-se, também, com
a ajuda de estranhos aliciados nas mesmas fontes, que acabam por estabelecer-se
nas vizinhanças das fazendas como reservas de mão-de-obra.

As novas fazendas já se abrem na zona de matas do interior de São
Paulo, sendo por vezes antecipadas pelos trilhos das estradas de ferro que
lhes abrem caminho rumo a oeste. A introdução do trabalhador
europeu nas fazendas de café foi um processo lento, alcançado
pela pertinácia de cafeicultores empenhados na solução
de seu maior problema: a falta de mão-de-obra, agravada primeiro pela
proibição do tráfico e depois pela abolição.
As primeiras tentativas que procuravam sujigar o imigrante a um sistema renovado
da velha parceria provocaram reclamações consulares e escândalos
na imprensa européia, a que os brasileiros são especialmente
sensíveis. Eram prematuras, porque, apesar das condições
de penúria prevalecente na Europa, o imigrante não aceitava
a coexistência com o escravo. Somente após a abolição,
estabeleceu-se uma onda regular e ponderável de provimento de mão-de-obra
européia, que, em fins do século passado, atingia a 803 mil
trabalhadores, sendo 577 mil provenientes da Itália.

Essa disponibilidade de mão-de-obra européia correspondia
à marcha do capitalismo-industrial que ia desenraizando dos campos
e lançando às cidades mais gente do que as fábricas podiam
ocupar. Cada país europeu atingido pelo processo exportava milhões
de pessoas. Primeiro emigram das Ilhas Britânicas; depois da França,
mais tarde da Alemanha, e da Itália; por fim da Polônia, da Rússia
e de países balcânicos. Dá-se, assim, uma oferta de trabalhadores
europeus mais barata que os escravos africanos e também mais eficazes
por sua adaptação aos novos regimes produtivos.

Seu ingresso no mercado de trabalho brasileiro além de representar
a solução salvadora dos problemas da cafeicultura teve vários
outros efeitos. Entre eles, o de fator dissuasório da luta silenciosa
e incruenta que caipiras e negros forros travavam pela conquista da condição
de granjeiros. O de desvalorizar o trabalhador nacional, que, em face da disponibilidade
dessa força de trabalho mais qualificada, perde na competição
e se vê impedido de galgar aos poucos postos mais bem remunerados que
o sistema criaria. Finalmente, o de orientar para os seringais da Amazônia
o translado de sertanejos nordestinos, porque sua rota natural, que seria
a marcha para o sul, se vê obstruída pela saturação
por imigrantes europeus da busca de braços para a grande lavoura. Outro
resultado dessa incorporação maciça de trabalhadores
estrangeiros foi a de retardar a proletarização e conseqüente
politização como operários fabris dos antigos caipiras
e dos ex-escravos, que só teriam oportunidade de ascender aos setores
mais dinâmicos da economia modernizada depois de esgotada a disponibilidade
de mão-de-obra européia.

Os colonos eram contratados na Europa mediante o fornecimento de passagens
para a família, a garantia de ajuda de manutenção n,o
primeiro ano e o recebimento de um trato de terras para suas lavouras de subsistência.
A essas condições foi necessário acrescentar-se, mais
tarde, um salário anual fixo e um ganho variável segundo a produção.
Como as despesas de passagem eram cobertas pelo governo, só as outras
condições pesavam diretamente sobre o fazendeiro. Essas regalias,
muito superiores às oferecidas ao caipira, explicam-se pela capacidade
do colono – assistido pelos corpos consulares e apoiado pela imprensa de seus
países – para exigir melhores condições de trabalho.
Efetivamente, é o colonato imigrante que, por esse sistema, implanta
o regime assalariado na vida rural brasileira, aceitando uma rigorosa disciplina
de trabalho mas, em compensação, fazendo-se pagar efetivamente
e pagar mais. Movido por um horizonte mais amplo de aspirações
e contando com um melhor ajustamento ao trabalho assalariado, o imigrante
produzia mais e melhor. Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê
de sua capacidade de poupança, libertar-se da condi&ccediccedil;ão
de Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade
de poupança, libertar-se da condição de colono para se
fazerem pequenos empresários. Seus filhos já brasileiros seriam
operários dos centros nacionais industriais nascentes.

As novas fazendas estruturadas de acordo com o sistema de colonato se fazem
progressivamente monocultoras e, simultaneamente, acrescentam à plantação
um elemento a mais, que é o barracão. Aí, o fazendeiro
se faz comerciante para prover aos colonos de tudo que necessitam, mas também
para recuperar o máximo dos salários pagos. Assim, os contratos
mais vantajosos e já monetários passam a deteriorar-se para
o trabalhador rural, sujeitos a duas reduções. Primeiro, a inflação
que diminui substancialmente o valor dos contratos de plantio de café,
geralmente de quatro anos. Segundo, a exploração nos fornecimentos
feitos pelo barracão. Nessas circunstâncias, o colono só
conseguiria poupar à custa de uma compressão violenta de seus
gastos, permanecendo a maioria deles jungida ao sistema por dívidas
insaldáveis e vendo esvair-se sempre a suspirada oportunidade de se
fazerem granjeiros.

No sistema de colonato, o fazendeiro já é um absenteísta.
Reside na cidade e dirige sua propriedade através de administradores.
Mantém, contudo, no regime republicano, a posição hegemônica
conquistada no Império, perpetuando-se no poder um patriciado oligárquico,
que coloca a serviço do patronato cafeicultor toda a máquina
governamental. A própria autonomia dos estados, de que a primeira República
se fez tão zelosa, explica-se por esse esforço continuado do
cafeicultor de tudo submeter aos seus interesses. Entre eles, a transferência
ao Estado dos controles e da faculdade de dispor das terras devolutas, que
assumiram enorme importância nas áreas da cafeicultura.

Além do controle e do comando político que faziam sair de
suas hostes, quase todos os presidentes civis e a maioria dos ministros, os
fazendeiros de café não só mantiveram mas aprimoraram
seus velhos mecanismos de defesa como classe.

O principal deles era, talvez, o controle da taxa de câmbio – que
variava cada vez que caíam os preços internacionais do café
-, para continuar a pagar-lhes a mesma importância em moeda local. A
essa degradação da moeda, seguem-se empréstimos externos,
destinados a defendê-la, o que aumentava continuamente a dívi
da externa do país, mas permitia transferir os prejuízos do
setor exportador para a vasta camada importadora, constituída por toda
a população, num país sem indústria, que dependia
do comércio internacional para quase tudo.

Mais tarde, esses procedimentos seriam levados a extremos com a política
de “valorização”, que consistia na compra das safras
para estocar com recursos obtidos pelos governos estaduais, mediante empréstimos
no exterior. Quando sobreveio a crise de 1929, novas medidas se impuseram
em face da impossibilidade de obter empréstimos internacionais.

O governo federal foi induzido, então, a assumir o papel de comprador.
Quando os estoques alcançavam quantidades fabulosas, notoriamente invendáveis,
era levado a comprar o café para queimá-lo a fim de manter os
preços internacionais. Os principais efeitos dessa política
– além da socialização dos prejuízos pela transferência
para a coletividade das perdas decorrentes do subsídio à cafeicultura
– foram a expansão constante das plantações e, com elas,
da oferta, agravando-se cada vez mais o problema. Outra conseqüência
foi seu efeito de subvenção indireta à implantação
da cafeicultura em outros países pela manutenção de preços
atrativos, com o que o Brasil acabou por perder sua posição
quase monopolística.

Esses mecanismos, conduzindo à retração das rendas
públicas e às emissões para custear a compra das safras
e para dar cobertura aos déficits orçamentários decorrentes,
provocaram enorme pressão inflacionária, mantendo o país
em permanente crise financeira, de que só os exportadores conseguiam
safar-se.

Nenhuma força pôde, entretanto, opor-se a esses interesses
hegemônicos, cujo desatendimento conduziria a crises ainda mais graves
pela recessão, que resultaria do abandono das plantações,
principal fonte de trabalho remunerado e quase único setor de aplicação
de capitais.

A oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos
no período imperial e no republicano, é responsável por
algumas das deformações mais profundas da sociedade brasileira.
A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação
da renda nacional, da sua arraigada discriminação contra os
negros escravos ou forros e contra os núcleos caipiras que lhe resistiam,
bem como contra as massas pobres que cresciam nas cidades. Nessa disputa e
nessa discriminação senhorial é que devem ser procuradas
as razões pelas quais o Brasil se atrasou tão gritantemente
em relação aos demais países latino-americanos e a qualquer
outro povo do mesmo nível de desenvolvimento, tanto na abolição
da escravatura como na imposição ao Estado da obrigação
de assegurar educa ção primária à população
e na extensão aos trabalhadores rurais dos direitos de sindicalização
e de greve.

A Independência e a República, que em quase toda a América
deram lugar a um profundo esforço nacional por elevar o nível
cultural da população, capacitando-a para o exercício
da cidadania, não ensejaram um esforço equivalente no Brasil.
Esse descaso para com a educação popular bem como o pouco interesse
pelos problemas de bem-estar e de saúde da população
explicam-se pelo senhorialismo fazendeiro e pela sucessão tranqüila,
presidida pela mesma classe dirigente, da Colônia à Independência
e do Império à República. Não ensejando uma renovação
de liderança, mas simples alternância no mesmo grupo patricial
oligárquico, se perpetua também a velha ordenação
social.

Nessas condições, toda participação democrática
na vida política se reduz aos grupos de pressão oligárquicos
em disputa pelo controle das matérias que afetavam seus interesses.

Nessa república de fazendeiros, os problemas do bem público,
da justiça, do acesso à terra, da educação, dos
direitos dos trabalhadores eram debatidos tal como a democracia, a liberdade
e a igualdade. Isto é, como meros temas de retórica parlamentar.
A máquina só funcionava substancialmente para mais consolidar
o poder e a riqueza dos ricos. Como o resultado social dessa política
era um atraso vexatório com respeito aos Estados Unidos, por exemplo,
se desenvolve nas classes dominantes uma atitude de franco descontentamento
para com o próprio povo, cuja condição mestiça
ou negra explicaria o atraso nacional.

Em conseqüência, aos motivos econômicos se somam incentivos
ideológicos para a realização de enormes investimentos
públicos a fim de atrair ao país colonizadores brancos, na qualidade
de reprodutores destinados a “melhorar a raça”. E não
se queriam lusitanos porque também contra seus avós portugueses
se rebelava a alienação oligárquica, convencida de sua
própria inferioridade racial e que explicava seus êxitos pessoais
como exceções.

Examinando a expansão da economia cafeeira verifica-se que espacialmente
ela constituiu uma fronteira móvel que, envolvendo milhões de
pessoas, progrediu da costa fluminense para o oeste. Nessa marcha atingiu,
primeiro, as matas do estado do Rio de Janeiro, depois as do Espírito
Santo, mais tarde as da zona da mata do sul de Minas Gerais, por fim, as de
São Paulo. Essa marcha prosseguiu pelo noroeste do Paraná, penetrando
em território paraguaio, e subiu, depois, pelo Mato Grosso do Sul e
Rondônia.

Essa onda móvel difundiu-se envolvendo bolsões ocupados por
índios hostis até então inatingidos pela civilização,
nas matas de Minas Gerais e do Espírito Santo (1910) e de São
Paulo ( 1911 ), bem como formas antigas de ocupação econômica
como os núcleos caipiras, a tudo levando de roldão.

Avançou instrumentada por estradas de ferro e rodovias que a ligavam
aos portos, conduzindo, floresta adentro, um sistema comercial articulado
internacionalmente, semeando vilas e cidades onde se instalava. Representou,
por isso, um papel modernizador e integrador que acabou criando a área
econômica mais ampla e de maior densidade do país.

O café não se alastra, porém, sobre novas terras de
mata, mantendo as já conquistadas. Sua retaguarda é sempre o
deserto e neste fato se encontra o motor real do seu impulso itinerante.

Sendo a terra o fator mais abundante e relativamente menos oneroso da produção
cafeeira, sobre ela é que recai, sempre que possível, a poupança
empresarial. Derruba- se a floresta virgem e plantam-se novos cafezais sem
quaisquer cuidados culturais que importassem em ônus para o empresário,
usando e desgastando a terra num primitivismo tecnológico que quase
transformava a agricultura num extrativismo.

Assim é que só em zonas de excepcional fertilidade do solo,
os cafezais se fixam realmente como uma cultura permanente. O procedimento
comum foi sempre abrir as lavouras esperando obter safras por uma década
ou menos, até que uma geada destruísse a plantação
ou que o cafezal envelhecesse por desgaste do solo.

Operando através desse processo extrativista, a cafeicultura se estruturava
como uma fronteira viva que se movia sempre à frente, conduzindo consigo
os capitais, os trabalhadores e a riqueza; e deixando para trás enormes
áreas devastadas e erodidas.

Aí se instala o pastoreio, geralmente em mãos de outro proprietário,
que procura fazer vicejar capim onde outrora crescia o cafezal. A nova economia
não pode manter, porém, o mesmo nível de captação
de mão-de-obra; nem de utilização da estrada de ferro
que atravessara a mata a duras penas e a custos sociais altíssimos;
nem a rede urbana que se implantara. Toda a região entra, assim, em
decadência, configurando a paisagem típica das cidades mortas
e estabelecendo outra sociedade e cultura da pobreza.

Eventualmente, em algumas áreas se reativa uma nova produção
agrícola, como ocorre em algumas áreas que se tornam principais
produtoras de açúcar e álcool. No Paraná, a opção
pelo trigo e pela soja foi a solução, porque as melhores terras
estavam sujeitas a geadas. O preço dessa reversão foi a decadência
de uma zona rural de prosperidade generalizada, para uma outra paisagem monocultora,
que atirou mais de um milhão de lavradores à procura de novas
áreas tão distantes como Rondônia.

Para avaliar o preço social desse desgate de terras basta comparar
o número de trabalhadores que podem ser empregados numa mesma área
para as tarefas de derrubada da mata e do plantio dos cafezais; sua posterior
redução, quando cumpre apenas cuidar da plantação
e fazer as colheitas anuais; e, finalmente, quando desgastada é entregue
à criação de gado. A proporção – que é
de cem trabalhadores na primeira etapa para trinta na segunda e um, apenas,
na última – explica como e por que a fronteira móvel do café,
integrada por milhões de trabalhadores, segue sempre à frente,
deixando atrás de si um quase deserto humano. E, como conseqüência,
a morte das cidades, os déficits das ferrovias, a falência do
comércio.

Em certas áreas de terras mais pobres, como o nordeste de São
Paulo e algumas zonas paranaenses, as cidades nascentes da época da
derrubada e do plantio mal chegam a amadurecer pela rapidez com que o surto
as atravessa. Morrem antes de crescer, com suas igrejas incompletas, com o
casario que jamais se conclui, o comércio decadente, e todos os que
se agarram a esses bens lançados à miséria.

No Paraná, o café encontrou uma terra de promissão
na região de Londrina, pela qualidade extraordinária dos solos
e, sobretudo, porque ali a ocupação não se fez através
do latifúndio.

A zona foi colonizada por uma companhia inglesa na forma de pequenas propriedades,
ensejando a instalação, como proprietária, de milhares
de famílias empenhadas em defender um solo que é seu.

A sociedade resultante contrasta vivamente com as zonas cafeeiras do latifúndio,
revelando suas singularidades no nível de vida do povo, na prosperidade
crescente das cidades e do seu comércio, e na conduta política
autônoma, oposta às velhas oligarquias paranaenses e paulistas.
Para além da zona de Londrina, todavia, a fronteira móvel do
café prosseguiu por terras já impraticáveis e, geralmente,
pela expansão dos latifúndios. Nos últimos anos, essa
onda, que só tem diante de si o rio Paraná, começou a
penetrar no Paraguai.

O que não aconteceu com o Brasil aconteceu em São Paulo, que
se viu avassalado pela massa desproporcional de gringos que caiu sobre os
paulistanos. Em 1950, os estrangeiros, principalmente italianos e seus descendentes,
eram mais numerosos do que os paulistas antigos. A esse soterramento demográfico
corresponde uma europeização da mentalidade e dos hábitos.

A própria Semana de Arte Moderna, que foi uma reação
a esse avassalamento, foi também por seu estilo a forma mais expressiva
desse eurocentrismo. Tudo bem, porque essa gente quase toda acabou se abrasileirando
belamente. Restam, porém, aqui e ali, alguns alunados apátridas
que ainda não saíram do fundo do navio em que seus avós
vieram. Perderam sua pátria de origem e estão soltos à
busca de um pouso.

Seu único compromisso é consigo mesmos e com as vantagens
que possam ganhar.

Não têm nenhuma noção e muito menos orgulho da
façanha que representou construir e levar à independência
esse paísão que já acharam feito. Em conseqüência,
tal como os argentinos fazem com seus cabecitas negras, chegam a olhar os
trabalhadores nordestinos e inclusive os caipiras paulistas, a que chamam
baianos, com desprezo.

Ouvi um politicão paulista dizer que o que São Paulo tem de
analfabetismo e atraso é culpa dessa presença baiana, e propor
que se pagasse a viagem de volta deles para suas terras. Afortunadamente essa
é uma minoria.

6 BRASIS SULINOS: GAÚCHOS, MATUTOS E GRINGOS

“Essa indiada é toda gaúcha.

Dito gauchesco” A expansão dos antigos paulistas atingiu e ocupou
também a região sulina de prévia dominação
espanhola e a incorporou ao Brasil. Em interação com outras
influências, porém, deu lugar ali a uma área cultural
tão complexa e singular que não pode ser tida como um componente
da paulistânia. Ao contrário das outras áreas conformadas
pelos paulistas, como a de mineração, a de economia natural
caipira e a de expansão da cafeicultura, que, apesar de suas diferenciações
econômico-sociais, apresentam uma base cultural comum, na região
sulina surgiram modos de vida tão diferenciados e divergentes que não
se pode incluí-los naquela configuração e nem mesmo tratá-los
como uma área cultural homogênea.

A característica básica do Brasil sulino, em comparação
com as outras áreas culturais brasileiras, é sua heterogeneidade
cultural. Os modos de existência e de participação na
vida nacional dos seus três componentes principais não só
divergem largamente entre si como também com respeito às outras
áreas do país.

Tais são os lavradores matutos de origem principalmente açoriana,
que ocupam a faixa litorânea do Paraná para o sul; os representantes
atuais dos antigos gaúchos da zona de campos da fronteira rio-platense
e dos bolsões pastoris de Santa Catarina e do Paraná, e, finalmente,
a formação gringo-brasileira dos descendentes de imigrantes
europeus, que formam uma ilha na zona central, avançando sobre as duas
outras áreas.

A coexistência e a interação desses três complexos
opera ativamente no sentido de homogeneizá-los, difundindo traços
e costumes de um ao outro. A distância que medeia entre os respectivos
patrimônios culturais e, sobretudo, entre seus sistemas de produção
agrícola – a lavoura de modelo arcaico dos matutos, o pastoreio gaúcho
e a pequena propriedade explorada intensivamente dos colonos gringos – funciona,
porém, como fixadora de suas diferenças. Mesmo em face dos efeitos
homogeneizadores da modernização decorrentes da industrialização
e da urbanização, cada um desses complexos tende a reagir de
modo próprio, integrando-se com ritmos e modos diferenciados nas novas
formas de produção e de vida, dando lugar a estilos distintos
de participação na comunidade nacional.

O Brasil sulino surge à civilização pela mão
dos jesuítas espanhóis, que fazem florescer no atual território
gaúcho de missões a principal expressão de sua república
cristã-guaranítica. É certo que eles visavam objetivos
próprios, claramente alternativos à civilização
portuguesa e à espanhola. Mas, atuando a seu pesar como agentes da
civilização, por seu êxito e por seu malogro, contribuíram
para que aquelas alternativas se consolidassem.

Os jesuítas criaram um desses raros modelos utópicos de reorganização
intencional da vida social que efetivamente viabilizaram novas formas de existência
humana.

Apesar de sua inspiração antigentílica, o modelo de
estrutura social que criaram se caracterizava pelo alto sentido de responsabilidade
social diante das populações indígenas que aliciavam.
Ao contrário da formação colonial-escravista, que tratava
o índio como um fator energético para ser desgastado na produção
mercantil, o modelo jesuítico buscava assegurar-lhe uma existência
própria dentro de uma comunidade que existia para si, isto é,
que se ocupava fundamentalmente de sua própria subsistência e
desenvolvimento.

Duas outras características distintivas teriam, porém, efeitos
inesperados. Por um lado, sua eficácia destribalizadora, que permitia
atrair rapidamente para os núcleos missioneiros milhares de índios.
Pelo outro, sua eficácia econômica na produção
de artigos para os mercados regionais e externos, que permitia às missões
manter um ativo intercâmbio comercial, mediante o qual se proviam de
tudo que não podiam produzir.

A concentração de grandes massas de indígenas deculturados,
uniformizados culturalmente e motivados para o trabalho disciplinado teve
o efeito de desencadear sobre as missões toda a fúria dos mamelucos
paulistas que as viam como enorme depósito de índios facilmente
preáveis. Assim se liquidaram as primeiras missões pela escravização
dos catecúmenos e sua venda aos engenhos açucareiros do Nordeste.

Por outro lado, o êxito mercantil das novas missões, seu caráter
de modelo alternativo à colonização em curso provocou
invejas e cobiças locais e também na própria metrópole,
acabando por provocar a expulsão da Companhia de Jesus. A conseqüência
foi verem-se os ex-catecúmenos avassalados pelos fazendeiros que se
apropriaram das antigas missões. Nas duas instâncias, as missões
contribuem para a formação do Brasil sulino. Na primeira, como
depósito de escravos exportáveis ou subjugáveis, com
os quais se constituiu uma população subalterna local – os primeiros
gaúchos – que serviria de mão-de-obra à exploração
mercantil das vacarias.

Na segunda, pela apropriação por brasileiros das terras e
gado do território das Missões e pela assimilação
compulsória de grande parte da gente que nelas vivia.

O motor fundamental da formação do Brasil sulino foi, porém,
a empresa colonial portuguesa conduzida desde muito cedo com o propósito
explícito de levar sua hegemonia até o rio da Prata. Esse propósito
buscado inicialmente pela operação bandeirante de conversão
dos índios em mercadoria escrava, que estabeleceu o primeiro circuito
mercantil transbrasileiro, corporificou-se, a seguir, com a instalação
da Colônia do Sacramento no rio da Prata.

No século seguinte, o projeto português esteve seriamente ameaçado
de fracasso por falta de viabilidade econômica, já que a exploração
do gado selvagem para exportação de couro e de sebo, fazendo-se
principalmente sob controle dos colonos das áreas de dominação
espanhola, atraía os núcleos sulinos para sua órbita
de influência. A ameaça foi, contudo, superada por uma nova viabilização
econômica. Esta surge com a constituição do novo e rico
mercado da região mineira para o gado em pé, para bois de carro,
para cavalos de montaria e para muares de tração e carga.

Os índios escravos do século XVII e o gado do século
XVIII, sendo ambos mercadorias que podiam transportar-se a si próprias
ao mercado, por mais longínquo que fosse e através de qualquer
caminho ou vereda, dariam ao extremo sul condições econômicas
de vincular-se com o norte e com o centro do Brasil.

O esgotamento das minas representou um novo repto para o Brasil sulino,
que se veria condenado a uma regressão pré-mercantil ou a buscar
formas extrabrasileiras de viabilização econômica se não
aparecessem novos modos de vinculação com outras regiões
do Brasil. Estas surgem com a introdução pelos cearenses da
técnica de fabrico do charque, que não apenas valoriza os rebanhos
gaúchos como também os vincula ao mercado nordestino e ao amazonense
e, mais tarde, ao antilhano.

A integração econômica da região Sul do Brasil
se alcançou, como se vê, através da criação
de sucessivos vínculos mercantis que a ataram mais ao restante do país
do que às províncias hispano-americanas vizinhas. Todos esses
vínculos não seriam, porém, suficientes para garantir
uma verdadeira incorporação, se além deles não
operassem outras forças de unificação. Entre elas se
destaca, como vimos, a política portuguesa de potência, deliberada
a levar sua hegemonia ao rio da Prata, tanto através da manutenção
da Colônia do Sacramento, quanto pela realização do enorme
esforço representado pela colonização da área
com imigrantes açorianos; e por décadas de negociações
diplomáticas para a fixação das fronteiras.

Contribuiu, além disso, a postura “portuguesa” dos luso-brasileiros
do extremo sul frente à postura “castelhana” dos hispano-americanos
enm que se defrontavam, fixando uma identifcação étnica
tanto mais profunda porque permanentemente posta à prova. Esta auto
identificação se vê reforçada mais ainda porque,
estando associada às disputas hegemônicas das suas metrópoles,
compelia cada estancieiro não só a definir-se claramente por
uma ou outra como também, definida sua identidade, defender a bandeira
respectiva, fazendo da estância sua trincheira.

Apesar dessas forças integrativas, mais de uma vez se teve de apelar
ao uso das armas para manter o Brasil sulino atado ao Brasil. Sendo o único
núcleo populacional ponderável na imensa fronteira desabitada,
portugueses e castelhanos ali se defrontaram ao longo de séculos, sob
fortes tensões conflitivas que periodicamente explodiam em correrias.
Em função dessas tensões e das disputas que elas geravam,
o Brasil se viu diversas vezes envolvido nas guerras platinas. Em certas ocasiões,
movidas por ambições expansionistas próprias; em outras,
como partes que eram de um conjunto de nacionalidades em confronto no processo
de autodiferenciação, unificação e fixação
de suas fronteiras.

O poder central teve também de fazer frente e submeter pelas armas
movimentos aspirantes à autonomia da região, muito mais vigorosos
e instrumentados que os de outras áreas. Diversos fatores se conjugaram
para ativar essas tendências separatistas.

Entre eles, o fato de ser uma vasta e longínqua região com
interesses próprios irrenunciáveis e que, não sendo adequadamente
atendidos, ensejavam tensões disruptivas – conducentes à ruptura
com o poder central. Soma-se a isso a circunstância de viver apartada
do resto do Brasil e submetida a influências intelectuais e políticas
de centros urbanos culturalmente avançados, como Montevidéu
e Buenos Aires. Nessas condições, não podiam deixar de
surgir aspirações de independência, inspiradas às
vezes na concepção de que o Sul melhor realizaria suas potencialidades
como um país autônomo do que como um estado federado; motivadas
outras vezes por ideários políticos arrojados, como as lutas
anti- escravistas e a campanha republicana dos farrapos.

A condição de fronteira do Brasil sulino, fazendo concentrar
ali a maior parte das tropas do país, por uma parte deu continuidade
e função ao antigo ímpeto combativo do gaúcho
das correrias; por outra, conferiu um poderio maior ao Rio Grande do Sul,
no conjunto da nação, do que corresponderia à sua importância
econômica, tornando inevitável a imposição de candidatos
gaúchos ao poder central quando a escolha exorbitava dos meios institucionais
para ser decidida por considerações militares.

Paradoxalmente, também terá exercido um papel no abrasileiramento
do extremo sul o ingresso maciço de imigrantes centro-europeus promovido
depois da Independência. Situados nas zonas desabitadas entre as fronteiras
sulinas e os principais núcleos do país, eles ativaram economicamente
aquelas áreas, contribuindo para viabilizar e modernizar a economia
sulina e capacitá-la para melhores formas de intercâmbio com
o restante do país.

Sem essa presença estrangeira, mas compelida a identificar-se como
brasileira, sem sua postura de gente mais pacífica e trabalhadora que
desordeira e predisposta a gauchadas, teria sido mais difícil incorporar
ao conjunto do Brasil os brasis sulinos.

Incorporá-los, sobretudo, tal como se logrou: como componente igual
aos outros e preparado como os demais a viver um destino comum dentro do mesmo
quadro nacional.

Os gaúchos brasileiros têm uma formação histórica
comum à dos demais gaúchos platinos. Surgem da transfiguração
étnica das populações mestiças de varões
espanhóis e lusitanos com mulheres Guarani. Especializam-se na exploração
do gado, alçado e selvagem, que se multiplicava prodigiosamente nas
pradarias naturais das duas margens do rio da Prata. O principal contingente
foi formado na própria região de Tapes por índios missioneiros
Guarani ou guaranizados pelos jesuítas e, posteriormente, mestiçados
com espanhóis e portugueses. Outra fonte foi o núcleo neoguarani
de paraguaios de Assunção, que se expandiu sobre os campos argentinos
juntamente com o gado que ocuparia o pampa. Uma terceira fonte foi a prole
dos portugueses instalados na Colônia do Sacramento ( 1680 ) no rio
da Prata.

Os primeiros, após os ataques arrasadores dos bandeirantes paulistas
do século XVII e, sobretudo, da expulsão da Companhia de Jesus
( 1759 ), entraram em diáspora, procurando escapar aos espanhóis
e portugueses que os queriam avassalar, mas acabando por incorporar-se às
protocélulas das sociedades nacionais nascentes através do engajamento
compulsório em sua força de trabalho. Os últimos foram
agentes da reaglutinação dos remanescentes dos antigos catecúmenos
e de sua posterior integração nos quatro quadros étnico-nacionais
da bacia do Prata.

O gado que se multiplicara na banda oriental fora trazido principalmente
pelos jesuítas.

Era criado com o maior zelo por constituir um dos principais procedimentos
de sedentarização dos índigenas que, contando com uma
provisão regular de carne, podiam dedicar-se às lavouras e ao
artesanato, independizando-se da caça e da pesca.

Juntamente com o gado de outras origens, esse rebanho jesuítico,
expandindo-se enormemente, viria a constituir o manancial aparentemente inesgotável
das vacarias del Mar em que tanto índios missioneiros quanto gente
da outra ribeira do Prata, a Argentina, e mais tarde paulistas e portugueses
viriam recolher gado.

Os rebanhos prodigiosos passaram a ser acossados por uma população
que vivia deles, tal como os índios da pradaria norte-americana viveram
de seus búfalos.

Inicialmente, todos tratavam o gado como uma caça maior e menos arisca.
Mas, aos poucos, foram-se especializando à vida pastoril. Assim os
índios da região acabaram por se fazerem cavaleiros e comedores
de carne de rês. Mas continuavam hostilizando-se uns aos outros e fustigando
também os missioneiros Guarani, os brancos e seus mestiços.
Esses últimos constituíram o primeiro núcleo gaúcho
ao passarem de caçadores de gado para alimento a traficantes de couro,
devotando-se a partir daí a dizimar os rebanhos para aproveitar o courame.

Somam-se, assim, três fatores na formação da matriz
gaúcha. Primeiro, a existência do rebanho de ninguém sobre
terra de ninguém; segundo, a especialização mercantil
na sua exploração; terceiro, o grau de europeização
de uma parcela mestiça desse contingente que a fazia carente de artigos
de importação e capaz de estabelecer um sistema de intercâmbio
para trocar couros por manufaturas (Ribeiro 1970 ).

A toponímia guarani de todo o território das Vacarias del
Mar (o Uruguai de hoje) e a documentação histórica –
superficialmente examinada – indicam que esses gaúchos falavam melhor
o guarani do que o espanhol, sendo, desse modo, culturalmente próximos
dos paulistas dos séculos XVI e XVII (Holanda 1956:108-18 ) e dos paraguaios
modernos em sua linguagem, em seu modo de adaptação à
natureza para o provimento da subsistência, em suas formas de associação
e em sua visão do mundo.

Essa matriz guarani é que forjaria a proto-etnia gaúcha, que,
multiplicando-se vegetativamente e “guaranizando” outros contingentes,
povoou a campanha e veio a ser, depois, a matriz étnica básica
das populações sulinas. Posteriormente, sob a influência
de forças conformadas exógenas, essa matriz se dividiu para
atrelar-se às entidades nacionais emergentes, como argentinos, uruguaios,
paraguaios e brasileiros.

Originalmente, esses gaúchos não se identificavam como espanhóis
nem como portugueses, do mesmo modo como já não se consideravam
indígenas, constituindo uma etnia nascente, aberta à agregação
de contingentes de índios destribalizados pela ação missionária
ou pela escravidão, de novos mestiços de brancos e índios
desgarrados pela marginalidade, e de brancos pobres segregados de suas matrizes.

Esses eram os gaúchos originais, uniformizados culturalmente pelas
atividades pastoris, bem como pela unidade de língua, costumes e usos
comuns. Tais eram: o chimarrão, o tabaco, a rede de dormir, a vestimenta
peculiar caracterizada pelo xiripá e pelo poncho; as boleadeiras e
laços de caça e de rodeio; as candeias de sebo para alumiar
e toda a tralha de montaria e pastoreio feita de couro cru; a que se acrescentaram
as carretas puxadas por bois, os hábitos de consumo do sal como tempero,
da aguardente e do sabão e a utilização de artefatos
de metal principalmente a faca de carnear, as pontas das lanças, as
esporas e freios e uns poucos utensílios para ferver e para cozinhar.

A incorporação de uma parcela desses gaúchos à
etnia brasileira é um processo posterior, decorrente da disputa dos
paulistas por participar da exploração do gado sulino, da competição
entre portugueses e espanhóis pelo domínio da região
cisplatina e, sobretudo, da integração do Sul ao mercado provedor
de bestas de carga para as minas de ouro.

As primeiras penetrações brasileiras na área ocorreram
na primeira metade do século XVII através da ação
preadora dos índios pelos paulistas contra o Tape e outros núcleos
jesuíticos.

Elas não ensejavam, porém, qualquer ocupação,
apenas permitiam conhecer a região, arrebanhar índios para o
tráfico de escravos e dispersar os que lhe escapavam.

Entram, a seguir, os portugueses – num esforço oficial de colonização
– fundando, primeiro, São Francisco ( 1660 ) e Laguna ( 1676 ) para
dominar os campos curitibanos onde crescia gado deixado pelos jesuítas
e, depois, a Colônia do Sacramento ( 1680 ), já nas margens do
rio da Prata. Esse estabelecimento militar longínquo, destinado a ampliar
o domínio colonial português, manteve-se em território
inimigo, principalmente através da viabilidade econômica que
lhe conferiu a participação no negócio de couros de gado
selvagem das Vacarias del Mar.

No começo do século XVIII voltam os paulistas junto aos curitibanos
para se instalarem na região como criadores. Visavam, então,
arrebanhar e aquerenciar gado e, mais tarde, criar cavalos e muares para vender
aos novos mercados surgidos nas zonas de mineração de ouro.
A produção de muares é tão especializada e tão
oposta à exploração extrativista de gado alçado
que não se pode conceber que surgira espontaneamente na região.
O mais provável é que aqueles antigos provedores gaúchos
das minas fossem meros intermediários dos verdadeiros criadores. Estes
seriam estancieiros de Corrientes e Santa Fé, na Argentina, que se
tinham especializado na produção de animais de tropa para as
minas de prata de Potosi. A decadência da mineração espanhola,
antecedendo ao surto da brasileira, criaria uma oferta de muares de exportação
que encontraria um novo mercado em Minas Gerais.

Só muito mais tarde podem ter surgido no Rio Grande do Sul criações
de mulas de serviço.

Recrutam por toda a área gente afeita ao trato daquele gado alçado,
ou seja, gaúcho, falando um guarani que os mamelucos paulistas podiam
entender, fazendo roçados de mandioca, de milho e de abóboras,
e fabricando farinha, como todos os povos do tronco tupi. Esses gaúchos,
incorporados aos núcleos neobrasileiros que se começavam a fundar
na campanha, serviram como campeiros e aquerenciadores do gado, amansadores
de bois de serviço e como criadores de cavalos e de muares.

O novo tipo de exploração, que já não visava
somente o couro mas os animais inteiros e uma produção mais
trabalhosa, como os bois de carro e os muares de montaria e carga, que eram
levados junto com as boiadas para as minas, foi que fixou as populações
neobrasileiras na campanha sulina, incorporando, progressivamente, um contingente
gaúcho à sociedade brasileira.

Bem sabemos o quanto estão pouco documentadas as hipóteses
aqui levantadas.

Todavia, elas nos parecem válidas como pistas de investigação
e necessárias para explicar a formação do gaúcho
brasileiro. Esta não pode ser atribuída ao simplismo de uma
mera transladação de paulistas e seus índios para o Sul
com a agregação de alguns espanhóis. E, menos ainda,
a um amadurecimento progressivo para a civilização das tribos
Charrua e Minuano, antigos ocupantes das campinas. Esses índios, de
cultura pré-agrícola, foram minguando, vitimados por enfermidades
e caçados em grandes batidas pelo branco que ocupou seu território,
até desaparecerem. Algumas de suas mulheres terão, eventualmente,
gerado filhos mestiços que se integraram à população
gaúcha. Raros homens, escravizados, terão seguido o mesmo destino.
Eram culturalmente por demais diferentes dos núcleos guaranizados de
missioneiros, paraguaios, proto-rio-platenses e protobrasileiros, para com
eles conviver e se fundir.

A integração prosseguiu por um esforço lúcido
e persistente da Coroa portuguesa – nisso apicaçada pelos paulistas
– para a ocupação e apropriação da área.

Esta se faz através de dois procedimentos: a implantação
na faixa costeira de famílias transladadas das ilhas portuguesas, principalmente
dos Açores, para constituir um núcleo permanente de presença
portuguesa, e a concessão de sesmarias nas zonas de campo onde se instalavam
as invernadas, que se procedeu com desusada profusão. A esses açorianos
se somaram militares portugueses – recrutados principalmente no Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas – mandados para a Colônia do Sacramento
e para o antigo território dos Sete Povos das Missões.

A apropriação legal das terras começaria a transformar
as invernadas em estâncias, nelas fixando o proprietário e sua
gauchada. A distribuição das sesmarias, que começa nas
regiões de Viamão e rio Grande, estende-se depois aos campos
do rio Pelotas, atinge mais tarde, por um lado, a zona de Laguna e, por outro,
a área das antigas missões jesuíticas. Prosseguindo a
marcha apropriativa, integra, depois, ao sistema de propriedades a campanha
do Ibicuí, ao sul, e a Coxilha Grande, a oeste.

Por longo tempo, a atividade desses estancieiros fora aquerenciar o gado
selvagem arrebanhado nos próprios campos ou transladado das antigas
vacarias e, depois, criar cavalos e muares. Trabalhavam, sempre, com os olhos
postos no horizonte, de atalaia contra ataques castelhanos. A larga faixa
de fronteira indiferenciada, movendo- se conforme a pressão de um lado
ou do outro, ameaçava mais à estância e a seu gado do
que à pátria mesmo. Assim, cada estancieiro de um e outro lado
da fronteira se faz um caudilho, entrincheirado em seu rancho com seus gaúchos,
sempre pronto a engajar-se nas correrias que punham a salvo o seu rebanho
e às vezes permitiam acrescê-lo com o que arrebatasse da outra
banda.

O manancial de gado que parecia inesgotável, submetido à exploração
predatória dos couros para exportação e à perseguição
da cachorrada selvagem que também se multiplicara nos campos, alimentando-se
de bezerros e de novilhas, reduzia-se cada vez mais.

Os estancieiros começaram, então, a disputá-lo dos
dois lados da fronteira indefinida para fixá-lo em seus campos. Primeiro,
os paulistas que encontravam mercado para gado em-pé nas minas, centenas
de léguas terra adentro. Depois por todos, quando, ao fim do século
XVIII, se inicia o fabrico do charque. No lado espanhol, o novo produto torna-se
o principal artigo de exportação como alimento da escravaria
das Antilhas. No lado brasileiro, valoriza-se cada vez mais como carne para
as populações mineiras e, mais tarde, para as lavouras comerciais
que as sucederam e para os engenhos do Nordeste.

O aquerenciamento do gado nas estâncias aquerencia também o
gaúcho como campeiro e como combatente do seu patrão, que era
seu caudilho. Nas décadas seguintes, com os entendimentos diplomáticos
para a fixação da fronteira, processa-se a pacificação
progressiva das áreas mais próximas da linde, dando nascimento
ao Uruguai como um vasto territórito colocado entre os contendores
brasileiros e argentinos. Depois do período convulso de guerras externas
e de lutas de unificação nacional que conflagram os campos rio-platenses,
as estâncias brasileiras entraram numa fase de relativa tranqüilidade.

A esse tempo, o crescimento das charqueadas valoriza o gado e industrializa
sua exploração, fazendo do pastoreio cada vez menos uma aventura
e cada vez mais um negócio racional. Entretanto a charqueada introduz
na paisagem pastoril uma atividade nova, caracterizada pelo trabalho de ritmo
intenso e regulado por horário e obrigações rígidas,
a que não se ajusta o antigo gaúcho campeiro. Introduz-se, então,
o negro escravo, que era a mão-de-obra do tempo para todo trabalho
de gastar gente.

Essas comunidades de saladeiros, com seus empregados e sua escravaria, contrastando
flagrantemente com a estrutura social da campanha, constituíram um
enclave pré-industrial que se ampliaria, no futuro, através
de matadouros e frigorificos, como o novo centro reitor da atividade pastoril.

Desde então, já não é o caudilho-estancieiro
quem comanda a vida regional, mas um sistema mercantil-industrial mais complexo,
suscetível de ser regulamentado oficialmente, defendido contra o contrabando
e capacitado a introduzir inovações tecnológicas na campanha,
como os aramados.

Nesse processo, o estancieiro vai deixando de ser o caudilho para se tornar
o patrão de seus gaúchos. As regalias destes diminuem e, com
elas, a ração da carne para o churrasco e de mate para o chimarrão.
O distanciamento entre os papéis sociais do gaúcho antigo –
campeiro do gado de ninguém em terra sem dono – e do gaúcho
novo – o peão empregado da estância a cuidar do gado do patrão
– se vai alargando progressivamente. É atenuado, porém, estendendo
através de décadas o padrão de relações
caudilho-gaúcho, devido ao estado de convulsão em que vive a
zona pastoril, conflagrada pelas lutas de unificação nacional.

Os caudilhos sulinos, brasileiros porque espacialmente não castelhanos
e opostos a estes por suas antigas disputas, mas opostos também ao
Império longínquo – sem olhos e sensibilidade para seus problemas
-, configuram uma etnia ainda não inteiramente identificada com uma
brasilidade remota que apenas desabrochava. Seus conflitos fronteiriços
e sua independência frente ao Império mantêm toda a campanha
em pé de guerra, ao longo de décadas. É conflagrada pelas
lutas entre os caudilhos, nas célebres califórnias, em que disputavam
campos e rebanhos; dos caudilhos com os lavradores e comerciantes de origem
açoriana, assentados no litoral, apegados à autoridade central
e almejando impor ordem à campanha; e de parcelas de uns e outros contra
o domínio imperial, pela república ou por qualquer forma de
governo que atendesse melhor às suas aspirações.

Enquanto permaneceu esse ambiente de guerra, com a campanha dividida em
comandâncias e milícias, chefiados por estancieiros caudilhos
sempre prontos a sair ao combate, o gaúcho – porque menos peão
do que soldado – manteve certos privilégios de alimentação
e de trato.

Consolidada a posse de terras e rebanhos, pacificada a campanha e, depois,
cercadas as estâncias com aramados, o novo gaúcho sedentarizado
é compelido a assumir seu novo papel de simples peão. Ainda
cavaleiro campeia, garboso, o gado do patrão, com orgulho de seu ofício
e do seu domínio da montaria e do rebanho. Porém, cada vez mais
pobre e mais mal pago, come menos e vive mais maltrapilho. Os imensos campos
livres de outrora são, agora, retângulos divididos em estâncias
e subdivididos em potreiros. Entre as estâncias se estende, como terra
sem dono, tão-somente o corredor entre os aramados divisórios,
subindo e descendo pelas ondulações das coxilhas, para comunicar
e para apartar os mundos privados das estâncias.

O gaúcho montado em cavalo brioso, da bombacha e botas, de sombreiro
com barbicacho, de pala vistosa, revólver, adaga e o dinheiro metido
na guaiaca, de boleadeiras enroladas na cintura, lenço ao pescoço,
faixa na cintura em cima dos rins, esporas chilenas etc. ou é o patrão
fantasiado de campeiro ou é integrante de algum clube urbano de folcloristas.
O rancho do estancieiro se faz casa confortável; o galpão mesmo,
como orgulho da estância, cobre-se de telhas e se enriquece de ganchos
para pendurar arreios. Só a palhoça do gaúcho permanece
tal qual era e, dentro dela, a vida cada vez mais miserável.

A introdução de reprodutores de raça, de cuidados zootécnicos
e de melhoria das pastagens promove a renovação do gado, que
ganha peso, torna-se mais dócil e se faz leiteiro. Os rebanhos aumentam;
ao vacum se acrescenta o lanar. Novas áreas são conquistadas
para a expansão do pastoreio intensivo, com o gado semi-estabulado,
cujo crescimento é controlado pelas cabanhas de aprimoramento genético.
A diferença entre os bois e a vaqueirada vai se modulando como oposição
entre o gado do seu dono e um gado de ninguém, cuja eugenia, cuja saúde,
cuja ração constituem objeto das preocupações
mais díspares: o maior zelo para com a gadaria vacum e o maior descaso
com respeito ao contingente humano.

Permanecem, porém, como sobrevivências culturais, certas formas
de trato pessoal entre estancieiro e gaúcho que lembram as relações
do caudilho com seu combatente.

Unidos, ocasionalmente, nas cavalgadas do rodeio, entrando em emulação
de maestria como boleadores ou laçadores de reses bravias, apostando
carreiras – como ocorre, de resto, nas outras zonas pastoris – mantêm
um convívio cordial, porém, remarcadamente respeitoso e assimétrico,
como é devido nas relações entre patrões e empregados.
A roda de chimarrão se faz como sempre e é o círculo
de convívio social do gaúcho, freqüentado às vezes
pelo patrão para ali controlar a execução de suas ordens
e distribuir novos encargos. Alguns hábitos permanecem, como o gosto
do patronato gaúcho pelo convívio masculino e servil que faz
cada estancieiro viver cercado de peões-carrapatos. São os que
lhe misturam a erva, esquentam a água e provam o chimarrão;
os que lhe assam, cortam e servem o churrasco; os que lhe conchavam os encontros
com as chinas da vizinhança. O gaúcho-peão-de-serviço
vê de longe e olha mal essa única verdadeira intimidade, intrigante
e bajuladora.

Todavia, o peão de estância, ainda assim, é um privilegiado
na paisagem humana da campanha. Com o gado cresceu a população,
que, sobrante das singelas necessidades de mão-de-obra das lides pastoris,
foi sendo desalojada das estâncias. Amontoase pelos terrenos baldios,
ou onde os corredores se alargam em rancharias, que são malocas campestres.
Transformam-se assim os gaúchos em reservas de mão-de-obra em
que o estancieiro recruta os homens de que necessita quando vai bater os campos,
esticar um aramado, ou nas épocas de tosquia. São trabalhadores
de changa, biscateiros subocupados mas prolíficos, cujas famílias
crescem na penúria, vitimadas por moléstias carenciais, por
infecções, enfim, por todos os achaques da pobreza, como mais
um subproduto do latifúndio pastoril.

A maior parte dessa população de gaúchos-a-pé
se faz lavradora de terrenos alheios, ainda não engolidos pelo pastoreio,
através do regime da parceria. São os autônomos rurais
do sul, contrapostos à peonagem das estâncias, como o caipira
do centro se opõe ao assalariado rural das grandes culturas comerciais.
Igualmente dependentes do proprietário que Ihes cede as terras de cultivo,
cobrando por elas a meia ou a terça das colheitas, além de sua
lealdade pessoal e política. Também esses neogaúchos
vêem o Estado e o governo como um ente todo-poderoso e arbitrário
com que se entende o patronato e que se coloca efetivamente a seu serviço
como um sistema de milícias, de delegacias e de inspeções
destinado a manter a ordem do mundo tal qual é.

Onde a rede de apropriação das terras se esgarça pelo
abandono ocasional de uma fazenda, essa população desgarrada
ousa a invasão da terra baldia, contando durar no trato conquistado
até que venham os policiais e os doutores cerzir aquela ruptura da
teia inconsútil. Nessas circunstâncias, tanto o gaúcho
de estância quanto o gaúcho parceiro, imersos ambos no latifúndio
pastoril, não alcançam as condições mínimas
para uma conduta autônoma de cidadãos. São homens de seus
patrões, temerosos de perder um vínculo que lhes parece um amparo
em face da ameaça de se verem lançados em condições
ainda mais difíceis. Nos bolichos dispersos pelos corredores, ouvindo
os rádios sempre ligados e comentando as novidades, entre voltas de
chimarrão e de pinga, vive sua vida cívica essa subumanidade
marginal dos arranchamentos. Discutem política e políticos.
Falam de reforma agrária. Sempre sóbrios e severos. Aí
não se vê a alacridade folgazã das festas de estância,
onde mais bailam, riem e se regalam os estancieiros e seus convidados que
a gauchada posta a servir o churrasco, a cantar toadas antigas ao som de gaita,
de sanfona e viola.

Naqueles redutos estradeiros é que se vai forjando a consciência
do novo gaúcho sobre seu destino e fermentando um espírito de
rebelião ainda difuso e inconsistente.

Tal como ocorre nos sertões pastoris do Nordeste, a estância
do Sul é um criatório de gado como seus arraiais são
criatórios de gente. A população dessas rancharias se
constitui principalmente de velhos desgastados nas lides pastoris ou na parceria
e de crianças que se iniciam nas mesmas labutas, todos subnutridos,
maltrapilhos e descalços. A maior parte da gente jovem e sadia emigra
para outras áreas rurais ou para as cidades em busca de um destino
melhor. Assim é que o Rio Grande do Sul experimentou um profundo processo
de urbanização sem industrialização, vendo multiplicar-se
nas grandes e pequenas cidades uma massa enorme de subocupados, de mendigos
e prostitutas. Pela mesma razão se fez também povoador das zonas
rurais dos estados vizinhos e dos campos do sul de Mato Grosso. A influência
gaúcha em toda essa imensa área é visível no uso
do chimarrão, no gosto pelo churrasco de costelas e no linguajar entreverado
da fronteira.

Nos últimos anos, com o surgimento de um amplo mercado nacional,
a região sulina foi se especializando numa produção agrícola
não tropical, facilitada por suas condições ecológicas
e climáticas. Surge, assim, a triticultura, substitutiva de importações,
a rizicultura e o cultivo da soja para exportação, exploradas
todas, em larga escala, com técnicas modernas e certo grau de mecanização
nas coxilhas antes devotadas ao pastoreio. Raramente esse desdobramento de
atividades é processado pelo próprio latifundiário pastoril.
Via de regra, ele apenas arrenda parcelas de suas terras agriculturáveis,
reservando-se as demais para a exploração pastoril tradicional
que continua fazendo diretamente.

Para os novos cultivos, em lugar das formas tradicionais de parceria (a
meia e a terça) introduziu-se um sistema de arrenda mento pagável
em dinheiro pelo empresário.

Esse é freqüentemente um citadino com maior descortínio
mercantil que opera com base em financiamentos bancários ofciais e
privados. O caráter pioneiro dessa atividade e a extração
urbana dos arrendatários ensejam certo aventureirismo responsável
por graves deformações. Sobretudo pela incapacidade dessa camada
de contribuir para uma revisão do sistema fundiário, ou pelo
menos para modernizar as relações de trabalho de modo a integrar
organicamente a população rural numa economia mais próspera.
Utilizando maquinaria e técnicas agrícolas mais modernas, eles
contribuíram mais para a marginalização do gaúcho
que para sua melhor integração no setor mais produtivo da economia
agrária.

O alto preço dos arrendamentos – que parece constituir um dos principais
fatores do encarecimento da produção – de-corre do monopólio
da terra pela velha classe latifundiária. Fazendo-se pagar onerosamente,
esses proprietários acompanham a modernização da paisagem
rural, edificando casas confortáveis e fazendo melhorias nas estâncias,
não como empresários ativos senão como um percalço
que retarda a modernização. Por outro lado, as enormes despesas
de implantação dos grandes cultivos, em maquinaria, assistência,
irrigação, fertilizantes, tendo de ser enfrentadas por simples
empresários que operam em terra alheia, constituem um dos principais
óbices à expansão ordenada dos trigais e arrozais sulinos.
Acresce, ainda, que a associação recomendável desses
cultivos com outros, ou a sucessão de cultivos segundo as técnicas
de rotação de culturas, são também obstaculizadas,
onerando o custo da produção e sacrificando as terras.

É de assinalar, porém, que mesmo em tais condições,
essas atividades ensejam novas oportunidades de trabalho e melhores condições
de remuneração a uma parcela das massas rurais, principalmente
na etapa da colheita, em geral menos mecanizada.

Seu efeito social mais importante é, talvez, a diversi icação
da sociedade agrária sulina com a ampliação de um setor
intermemento pagável em dinheiro pelo empresário.

Esse é freqüentemente um citadino com maior descort&iaciacute;nio
mercantil que opera com base em fnanciamentos bancários oficiais e
privados. O caráter pioneiro dessa atividade e a extração
urbana dos arrendatários ensejam certo aventureirismo responsável
por graves deformações. Sobretudo pela incapacidade dessa camada
de contribuir para uma revisão do sistema fundiário, ou pelo
menos para modernizar as relações de trabalho de modo a integrar
organicamente a população rural numa economia mais próspera.
Utilizando maquinaria e técnicas agrícolas mais modernas, eles
contribuíram mais para a marginalização do gaúcho
que para sua melhor integração no setor mais produtivo da economia
agrária.

O alto preço dos arrendamentos – que parece constituir um dos principais
fatores do encarecimento da produção – de – corre do monopólio
da terra pela velha classe latifundiária. Fazendo-se pagar onerosamente,
esses proprietários acompanham a modernização da paisagem
rural, edificando casas confortáveis e fazendo melhorias nas estâncias,
não como empresários ativos senão como um percalço
que retarda a modernização. Por outro lado, as enormes despesas
de implantação dos grandes cultivos, em maquinaria, assistência,
irrigação, fertilizantes, tendo de ser enfrentadas por simples
empresários que operam em terra alheia, constituem um dos principais
óbices à expansão ordenada dos trigais e arrozais sulinos.
Acresce, ainda, que a associação recomendável desses
cultivos com outros, ou a sucessão de cultivos segundo as técnicas
de rotação de culturas, são também obstaculizadas,
onerando o custo da produção e sacrificando as terras.

É de assinalar, porém, que mesmo em tais condições,
essas atividades ensejam novas oportunidades de trabalho e melhores condições
de remuneração a uma parcela das massas rurais, principalmente
na etapa da colheita, em geral menos mecanizada. Seu efeito social mais importante
é, talvez, a diversificação da sociedade agrária
sulina com a ampliação de um setor intermediário entre
os proprietários e seus gaúchos, até agora extremamente
reduzido. Tais são os trabalhadores semi-especializados recrutados
para as tarefas da mecanização agrícola, do beneficiamento
das safras e de sua comercialização. Todavia, o próprio
grau de mecanização desses cultivos opera como um redutor das
possibilidades de emprego, que, em associação com o monopólio
da terra, contribui para manter marginalizada a maior parte da população
rural que continua sobrante das atividades pastoris e também excedente
das necessidades de mão-de-obra da nova economia agrícola.

Uma outra configuração histórico-cultural constitui-se
no Brasil sulino formada por populações transladadas dos Açores,
no século XVIII, pelo governo português. O objetivo dessa colonização
era implantar um núcleo de ocupação lusitana permanente
para justificar a apropriação da área em face do governo
espanhol e também para operar como uma retaguarda fiel das lutas que
se travavam nas fronteiras. Esses açorianos vieram com suas famílias
para reconstituir no Sul do Brasil o modo de vida das ilhas, atraídos
por regalias especialíssimas para a época. Prometiam-lhes a
concessão de glebas de terra demarcadas como propriedade de cada casal.
Ao instalar-se, deveriam receber mantimentos, espingarda e munição,
instrumentos de trabalho, sementes para cultivo, duas vacas e uma égua,
bem como sustento alimentar no primeiro ano. Para a gente paupérrima
das ilhas, essa dadivosidade parecia assegurar a riqueza. Alguns grupos estabeleceram-se
na faixa litorânea, nas terras marginais do rio Guaíba, outros
no litoral de Santa Catarina.

A colonização açoriana foi um fracasso no plano econômico,
como seria inevitável.

Ilhados em pequenos nichos no litoral deserto, despreparados, eles próprios,
para o trabalho agrícola em terras desconhecidas, estavam condenados
a uma lavoura de subsistência, porque não tinham mercado consumidor
para suas colheitas.

Depois de comer o suprimento de manutenção, deviam olhar-se,
perguntando o que fazer. Eram chamados a se tornarem granjeiros numa terra
em que o branco só admitia o status de senhor para dirigir a escravaria.
Entregues, porém, a seu próprio destino, acabaram aprendendo
os usos da terra que estavam a seu alcance, através do convívio
com os grupos já conformados pelas protocélulas brasileiras
que se vinham expandindo ao longo do litoral catarinense.

Fizeram-se matutos, ajustando-se a um modo de vida mais indígena
que açoriano, lavrando a terra pelo sistema de coivara, plantando e
comendo mandioca, milho, feijões e abóboras. Mesmo no artesanato
praticado hoje nos núcleos de seus descendentes, não se pode
distinguir peculiaridades açorianas. É essencialmente o mesmo
das populações caipiras e assim deve ter sido no passado, para
suprir suas necessidades de panos, de tralha doméstica feita de trançados
e de cerâmica e de instrumentos de trabalho.

Alguns açorianos empreendedores escaparam, porém, à
caipirização, seja levando adiante cultivos próprios
de cereais, principalmente de trigo, seja fazendo-se comerciantes dedicados
a traficar mantimentos com a gente da área pastoril. Nasceu, assim,
um movimento mercantil que deu alguma viabilidade aos vilarejos que surgiam
e começou a integrá-los dentro do sistema econômico incipiente
da região.

Sua contribuição à cultura neobrasileira foi nula porque
esta se havia saturado dos traços do patrimônio português
que podia absorver. Sua influência na cultura regional e seu papel social
foram, todavia, decisivos no aportuguesamento lingüístico e no
abrasileiramento cultural da campanha e, sobretudo, na constituição
do núcleo leal ao poderio português e, mais tarde, imperial,
que se requeria naquelas fronteiras, por um lado tão remarcadamente
castelhanas e, pelo outro, tão independentes em sua lealdade a caudilhos
autônomos.

Quando a região se convulsionou nos entreveros dos caudilhos que
disputavam terras e gados nas lutas de fronteira e, sobretudo, nas lutas autonomistas
de inspiração republicana contra o centralismo imperial, a população
matuta representou um papel capital. Opondo-se, naturalmente, ao gaúcho
árdego da campanha pastoril por seu modo de vida agrícola, sedentário
e pacíf co, sua aspiração era impor ordem à fronteira.
Funcionaram, assim, como a base de onde as forças imperiais partiam
para subjugar os caudilhos, onde se recolhiam quando acossados para se reabastecerem
e onde recrutavam parte de suas tropas.

As terras doadas aos açorianos, espoliadas nas áreas em que
alcançaram maior valorização com o surgimento de mercados
regionais ou fracionadas pela sucessão das heranças nas demais
áreas, configuram, hoje, zonas de latifúndios e minifúndios.

Os primeiros, estruturados numa economia de fazenda e, os últimos,
numa economia de subsistência. Com esssa progressão, o matuto
das fazendas tornou-se principalmente um parceiro rural, de características
muito próximas às dos caipiras, passando a constituir mais uma
reserva nacional de mão-de-obra, depreciada na região por seus
hábitos rudes e por seu apego às formas não salariais
de relação de trabalho. Os que não se engajaram no sistema
de fazendas, nem retiveram pequenas parcelas, foram obrigados a emigrar para
as rancharias dos corredores e para as cidades, engrossando a massa das populações
sulinas marginalizadas.

Alguns contingentes desses matutos especializaram-se em atividades produtivas
novas, surgidas com a ampliação do mercado nacional. Tais são
os núcleos de pescadores da costa e de mineiros de carvão do
interior. Uns e outros vivem nas mais precárias condições,
constituindo, provavelmente, um dos contingentes brasileiros mais vitimados
pela tuberculose e pela mortalidade infantil.

Também as massas matutas e gaúchas marginalizadas caíram
numa cultura da pobreza que acabou por uniformizá-las pela singeleza
do seu equipamento de vida e de trabalho. Vivem em ranchos que constróem
com suas próprias mãos, com os materiais mais humildes, que
tanto podem ser o barro, a palma ou o capim, nas zonas rurais, como tábuas
de embalagens, papelão e restos de chapas metálicas, nas zonas
suburbanas. Em lugar dos artefatos de cerâmica, de vimes, de fibras
e de couro, que antes fabricavam, usam, agora, como vasilhames e utensílios
para guardar, usar, comer e beber, a lataria dos monturos.

Analfabetos, numa sociedade já integrada por metade nos sistemas
letrados de comunicação, essas populações marginalizadas
perdem até mesmo suas seculares tradições folclóricas,
esquecidas e substituídas por novos corpos elementares de compreensões
e de valores auridos através do rádio e da transmissão
oral. Nessas condições, uma homogeneização cultural
processada pela pobreza – tal como uma deculturação uniformizadora
se processou, no passado, pela escravidão – unifica os brasileiros
mais díspares pelo denominador comum da penúria, pela comunidade
de hábitos e de costumes reduzidos à sua expressão mais
singela e pela difusão dos modernos meios de comunicação
que as atingem com músicas acessíveis e com apelos a um consumo
inacessível.

Essa homogeneização os está congregando, também,
face ao futuro, pela sua comunhão de destino, que é o enfrentamento
da ordem social responsável por sua proscrição do sistema
ocupacional e dos padrões de vida da parcela integrada nos setores
modernizados da sociedade nacional. As formas de expressão dessa destinação
insurrecional são ainda elementares, mas tendem a acentuar-se.

Tal como o campesinato europeu – nas primeiras fases de sua marginalização,
pela reordenação mercantil-capitalista – a rebeldia virtual
dessas massas marginais brasileiras, tanto as do Sul como as das demais áreas,
só encontra em seu patrimônio cultural formas arcaicas de expressão,
revestidas quase sempre de uma feição messiânica.

A principal delas eclodiu de 1910 a 1914, na zona fronteiriça entre
os estados do Paraná e de Santa Catarina, em virtude de uma suspensão
eventual da legitimidade das respectivas autoridades reguladoras da apropriação
das terras devolutas. Ao estabelecer-se a disputa entre os dois estados pelo
domínio da área contestada, esta ficou juridicamente em suspenso,
ensejando movimentos populares de ocupação das terras de ninguém
pela população matuta e de alargamento de suas posses, pelos
afazendados.

Dada a fome de terra das massas rurais circunvizinhas, a região povoou-se
rapidamente através da abertura de inúmeras clareiras na mata,
onde famlias de posseiros procuravam conquistar um nicho e organizar uma economia
independente de granjeiros. A violenta reação dos dois estados
em disputa diante dessa invasão e, depois, a intervenção
armada do governo federal lançaram aquelas populações
na ilegalidade, criando condições para o desencadeamento de
uma irrupção subversiva de tipo semelhante às que se
sucederam em outras regiões do país. Estudos desse surto de
messianismo se encontram em Maria Isaura Pereira de Queiroz ( 1957 e 1965
) e Maurício Vinhas de Queiroz ( 1966 ).

Tal como aquelas, esse movimento se definia como monarquista, porque era
chamada republicana a ordem latifundiária que lhes queria impor a ferro
e fogo. Tal como aquelas, era também messiânico, porque em seu
horizonte cultural uma reforma da sociedade fundada na propriedade latifundiária
só podia ser concebida como uma reordenação do mundo
legitimada em termos sagrados. O messianismo surge, aqui, como expressão
cultural de uma reordenação social em curso, através
da invasão das terras.

A ação concreta devolve significação e destino
a velhas crenças da religiosidade popular praticada desde sempre na
região, mas que são chamadas agora a inspirar lideranças
novas para uma guerra santa destinada a promover uma reestruturação
da sociedade.

O caráter subversivo do movimento é imediatamente identificado
pelos fazendeiros locais. É, em seguida, definido como tal pelos dois
corpos de autoridades regionais, que, embora impedidos de exercer sua função
de legitimadores da apropriação de terras devolutas, viam como
um abuso inadmissível os posseiros ocuparem as matas e nelas abrirem
seus roçados e organizarem suas formas de convívio. Por fim,
a invasão de terras é interpretada pela autoridade federal como
revolucionária, porque convulsionava uma área enorme; porque
defrontava posseiros com tropas estaduais em conflitos nos quais estas vinham
sendo derrotadas; porque se definia como movimento restaurador da monarquia
e, sobretudo, porque punha em causa a legitimidade da forma constitucional
de apropriação da terra.

Nessas condições é que se transfiguram e ganham sentido
revolucionário os antigos cultos oficiados pelos “monges”
caminheiros. Eram rezadores profissionais, não pertencentes a qualquer
congregação religiosa, que reuniam por onde passavam a gente
simples para rezar terços e novenas e para difundir versões
populares das crenças católicas e das ti-adições
bíblicas mais dramáticas. Especialmente as referentes a ameaças
de castigo e de cataclismos, ou às esperanças de salvação
coletiva e de restauração da idade do ouro.

Uma vez povoadas as matas por posseiros matutos e por gringos acaboclados,
criou-se um ambiente mais propício a essas andanças de “monges”.
Em toda parte eles eram recebidos e ouvidos com devoção por
uma população cujas crenças exaltavam e que os via como
milagreiros aptos a curar doentes incuráveis; sacerdotes habilitados
a casar e a encomendar almas, a perdoar pecados e a prescrever os caminhos
da salvação; e como videntes capazes de prever o futuro.

Esses “monges”, tornados conselheiros e guias dos posseiros, tanto
em assuntos religiosos como em qualquer outra matéria, foram seus líderes
quando os conflitos começaram a eclodir. Sob sua liderança,
a luta pela manutenção da posse contra uma ordem legal que os
queria expropriar se transforma numa guerra santa que se desenvolve, simultaneamente,
em duas esferas. Primeiro, a dos combates contra as tropas estaduais e, mais
tarde, contra o Exército nacional. Segundo, o esforço de reordenação
da sociedade segundo valores hauridos em profundos estratos da tradição
popular, respeitosa da propriedade dos fiéis que a possuíam
anteriormente, mas afirmatória do direito de cada um aos frutos de
seu trabalho, tendente a uma economia comunitária regulada por uma
organização de trabalho que prescrevia as atribuições
de cada pessoa e por um sistema redistributivo que a todos assegurava os bens
essenciais.

Sob a tensão da luta, os matutos liderados pelos “monges”
organizam dentro dessas linhas toda a vida social, desde a guerra ao trabalho
e ao culto, autodisciplinando-se através de uma rígida hierarquia
guerreiro-sacerdotal e impregnando todas as atividades de um redentorismo
que tudo submete ao juízo do “monge”, única autoridade
capaz de estabelecer os caminhos da salvação coletiva.

Diversas pessoas puderam encarnar o papel de “monges” antes e
durante a revolta messiânica do Contestado, porque eles eram, na verdade,
expressões das velhas tradições populares do “esperado”,
que viria para reordenar o mundo, acabando com a injustiça, com a pobreza,
com a enfermidade e com a tristeza. No curso da luta, os núcleos conflagrados
organizaram-se em “quadros santos” que procuravam ser reproduções
do paraíso perdido e antecipações do paraíso esperado.

Nesses núcleos, que aglutinavam a população antes dispersa
pelos latifúndios ou aglomerada nas rancharias miseráveis, desenvolveu-se
um convívio social intenso, remarcadamente igualitário, e implantou-se
uma economia natural em que o comércio estava proscrito, exceto para
a aquisição de bens fora dos núcleos sublevados. Neles
sejuntaram milhares de combatentes (entre 5 e 12 mil), armados de facões,
de espingardas de caça e, mais tarde, de fuzis que conseguiam tomar
em combate.

Lutavam e trabalhavam com o elã de quem cuida, a um tem o, de defender
uma vida terrena que se lhes afigura como o paraíso terrestre e de
zelar por sua salvação eterna.

Efetivamente, os matutos tinham o que defender; já não apenas
a terra de que se apossaram, mas o modo de vida que haviam criado – apesar
da guerra e em razão dela – que lhes assegurava oportunidades para
o lazer, para os cultos regidos por comandos de reza e para festas religiosas
de gosto popular, como as procissões, os casamentos e os batizados
que se sucediam quase diariamente. Apesar de proibidos os bailes e o consumo
de álcool, e perseguidos o adultério e a prostituição,
a vida nesses “quadros sagrados” era alegre e festiva como jamais
fora para essa população emergente do latifúndio, onde
vivia isolada, ou das rancharias miseráveis superdependentes dos latifúndios
circundantes. Seu encanto maior estava, talvez, nas oportunidades de convívio
social intenso, presidido por ideais igualitários e na sua estruturação
não mercantil, que permitia a cada núcleo devotar-se coletivamente
ao preenchimento de suas condições de existência.

Em contraste com a sua situação anterior, de camada subalterna
submetida ao regime de trabalho nas fazendas, que apenas lhe possibilitava
perpetuar suas condições miseráveis de existência,
a nova estrutura, assegurando a todos o acesso à terra, incentivando
a organização coletiva do trabalho e regulando-se por critérios
distributivos igualitaristas, lhes garantia uma fartura alimentar e uma alegria
de viver até então desconhecidas.

Por tudo isso, a erradicação dos “quadros santos”
integrados principalmente por matutos e por alguns imigrantes alemães,
poloneses, italianos e seus descendentes mais empobrecidos foi uma das campanhas
mais difíceis do exército brasileiro, que teve de mobilizar
milhares de homens, armá-los com artilharia pesada para fazer frente
à guerrilha dos “fanáticos”. Estes só foram
vencidos depois de três anos de combate em que cerca de 3500 pessoas
foram mortas. A esse custo se restaurou a ordem fazendeira, compelindo os
matutos a aceitar o lugar e o papel que lhes são prescritos dentro
dela.

Ainda hoje, porém, sobrevive nas camadas mais humildes da área
matuta a crença da volta do “monge”, que reimplantará
a fartura e a alegria, fará os velhos, jovens; os feios, bonitos; e
tornará Deus visível a todos. Em 1954, um embrião messiânico
ativou-se na região, reunindo diversas famílias matutas em cultos
pela volta do “monge” e obrigando as autoridades a intervir mais
uma vez, para fazê-los aceitar seu destino.

Levantes semelhantes se deram onde, outra vez, a terra latifundiária
se esgarçou, criando uma rede contestável entre Minas e Espírito
Santo. Ali, também, os sem-terra acorreram, reivindicando seu pé-de-chão,
mas antes que crescesse como novo Contestado, se viram dispersados. Episódio
semelhante se dá com os Mucker no Rio Grande do Sul.

A luta desses matutos, como a de Canudos, a Cabanagem, a dos Muckers, e
centenas de outras, têm um traço comum que cumpre assinalar.
Todas reivindicam a terra em que vivem e de que tiram sua subsistência.
Mas todos demonstram que são perfeitamente capazes de, sobre essa mesma
base, criar, senão a prosperidade, a fartura e uma vida social alegre
e satisfatória. O outro traço a ressaltar é a capacidade
da ordem vigente, armada de polícias e exércitos, de calar todos
esses clamores para reimplantar a tristeza da ordem latifundiária famélica
e degradante.

A terceira configuração histórico-cultural da região
sulina é constituída pelos brasileiros de origem germânica,
italiana, polonesa, japonesa, libanesa e várias outras, introduzidos
como imigrantes do século passado, principalmente nas suas últimas
décadas. Embora brasileiros como os demais, porque não saberiam
viver nas pátrias de seus pais e avós e porque são brasileiras
as suas lealdades fundamentais, configuram uma parcela diferenciada da população
por sua forma de participação na sociedade nacional. Distingue-os
o bilingüismo, com o emprego de um idioma estrangeiro como língua
doméstica, alguns hábitos que ainda os vinculam a suas matrizes
européias e, sobretudo, um modo de vida rural fundado na pequena propriedade
policultora, intensivamente explorada, e um nível educacional mais
alto do que o da população geral.

A colonização européia, iniciada no período
imperial, respondia a uma atitude comum da oligarquia das nações
latinoamericanas, alçada ao poder com a independência: sua alienação
cultural que a fazia ver a sua própria gente com olhos europeus. Como
estes, olhavam suspeitosos os negros e mestiços que formavam a maior
parte da população e explicavam o atraso prevalecente no país
pela inferioridade racial dos povos de cor. Sob a pressão desse complexo
de alta identificação “denigrante” puseram-se a campo
para substituir aos seus próprios povos, radicalmente se praticável,
por gente eugenicamente melhor. E essa seria a população alva
da Europa Central, que se transladava, então, em grandes contingentes
para a América do Norte, assegurando o seu progresso. O empreendimento
colonizador foi um dos objetivos mais persistentemente perseguido pelo governo
imperial, que nele investiu enormes recursos, assegurando aos colonos o pagamento
de transporte, facilidades de instalação e de manutenção
e concessões de terras.

Condições semelhantes jamais foram oferecidas a populações
caipiras brasileiras, que, então, formavam grandes massas marginalizadas
pelo latifúndio.

A população gringa resultante do empreendimento da colonização
branqueadora ocupa, hoje, uma vasta ilha nos centros dos estados do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que se vai alastrando pelas terras vizinhas,
além de pequenos enclaves enquistados em outras regiões, como
núcleos do Espírito Santo e de São Paulo. Na faixa leste,
se defrontam com as velhas áreas litorâneas de colonização
açoriana. A oeste e ao sul, com as zonas de pastoreio gaúcho.
Influenciam e são influenciados pelas duas áreas contíguas,
dando e recebendo contribuições culturais adaptativas, mas raramente
seus descendentes se fazem matutos ou gaúchos. Exceto aqueles que,
vendo-se marginalizados, participam, como vimos, de uma cultura de pobreza
comum a toda a região – e quase ao Brasil inteiro – pela uniformidade
mesma da sua regressão às formas mais primitivas e singelas
de subsistência e de vida.

O bolsão cultural gringo, formado por imigrantes oriundos de diferentes
etnias européias e asiáticas, exibe uma grande uniformidade
social no seu modo de vida, na paisagem humana que criou. Colorido, embora,
por diferenciações que permitem distinguir as subáreas
alemãs das italianas, ou as polonesas das russas, e todas das japonesas.
As uniformidades sociais decorrem essencialmente da forma de constituição
das colônias, pela concessão de terras em pequenas propriedades
de exploração familiar e pela habilitação prof
ssional que trouxeram os imigrantes para a prática de uma agricultura
intensiva de granjeiros. As culturais provêm da segregação
em que viveram nas primeiras décadas, como quistos implantados numa
sociedade profundamente diferente, com a qual não mantinham convívio.
Representou, também, um papel saliente na formação da
ilha gringa a circunstância de que as colônias sulinas não
confinavam com áreas de latifúndio pastoril ou agrário,
escapando, assim, do poderio e da arbitrariedade dos senhores de terra.

Cada grupo pode, por isso, organizar autonomamente sua própria vida,
instalar suas escolas e igrejas, constituir suas autoridades, formando as
primeiras gerações ainda no espírito e segundo as tradições
dos pais e avós imigrados. Vivendo ilhados, o próprio domínio
da língua portuguesa só seria alcançado muito mais tarde,
como meio de comunicação com os brasileiros e entre os próprios
colonos de diferentes idiomas.

Tensões herdadas do mundo europeu também opunham essas etnias
umas às outras, por discriminações que contribuíam
para segregá-las ainda mais. Os núcleos coloniais japoneses,
instalados fora da área sulina, concentrando-se muitas vezes nas proximidades
de grandes centros urbanos como produtores de legumes, tiveram envolvimento
paralelo, porém ainda mais marcado pela auto-segregação.

A primeira geração de imigrantes enfrentou a dura tarefa de
subsistir enquanto abriam clareiras na mata selvagem, enfrentando, por vezes,
índios hostis, de construir suas casas e estradas, vivendo uma existência
trabalhosa e severa. Sua luta foi ainda mais dificultada pela inexistência
de um mercado regular para a sua produção. A grande tarefa inicial
que cumpriram foi definir as atividades produtivas com que melhor poderiam
integrar-se na economia nacional. Somente a penúria que enfrentava
o campesinato de seus países de origem, desarraigados do campo pelos
efeitos reflexos da Revolução Industrial ou envolvidos nas crises
do período de consolidação das nacionalidades européias,
explica a persistência com que enfrentaram tão difíceis
condições. Aqui, porém, eram proprietários, é
verdade que de terras virgens e de quase nenhum valor, mas terras férteis
que eles confiavam valorizar pelo próprio esforço.

As gerações seguintes, beneficiárias dos resultados
desses sacrifícios pioneiros, encontraram condições mais
propícias.

Já eram filhos da terra, afeitos às tarefas que tinham que
exercer. Seu problema começa a ser o da disponibilidade de terras para
abrir novas clareiras para as famílias que se multiplicavam. Em princípio,
porém, toda a área circundante das colônias, constituídas
de terras devolutas ou acessíveis a baixo preço, operava com
uma fronteira aberta à sua expansão.

No período de transição entre a fase pioneira e a quadra
de prosperidade, algumas populações gringas mais isoladas entraram
também em processo de anomia de caráter messiânico, mas
diferente dos movimentos similares ocorridos no país por sua inspiração
bíblico-protestante e por seus conteúdos culturais oriundos
de tradições populares alemãs. Tal foi o que sucedeu
em 1872 com a erupção messiânica dos Mucker (santarrões)
do rio dos Sinos, a 35 quilômetros de Porto Alegre, a capital provincial
do Rio Grande do Sul, liderada principalmente por uma mulher-profeta que também
organizou uma comunidade igualitária e fanática. Em seu período
crítico, esse movimento revivalista ocasionou uma sucessão de
crimes e assassinatos e só foi erradi- cado através da chacina
da maioria dos crentes.

Apesar do isolamento, sabiam bem que aqui teriam de viver, tanto mudara
o seu país de origem e tanto haviam mudado eles próprios, afastando-se
dos padrões europeus, nos hábitos, na linguagem e nas aspirações.
Os novos contingentes recém-chegados serviam para contrastar o seu
sotaque e a sua ignorância do mundo cultural longínqüo de
que se desgarraram suas famílias. Mas o convívio simultâneo
com índios, matutos e gaúchos recordava-lhes, também,
quanto se diferenciavam dos antigos ocupantes da terra, por cujos modos de
vida miseráveis não podiam sentir qualquer atração.
Esses eram, de um lado, seus patrícios e, de outro, os brasileiros
que conheciam. Eles mesmos sentiam constituir uma terceira entidade, irredutível
a qualquer daquelas formas.

Essa situação de marginalidade étnica dos núcleos
de colonização, principalmente dos alemães, japoneses
e italianos, foi explorada antes e durante a última guerra mundial
pelos governos dos seus países de origem, criando graves conflitos
de lealdade étnico-social. Com esse objetivo, os movimentos nazista
e fascista bem como o governo japonês montaram aparatosos serviços
de propaganda e estimularam o surgimento de organizações terroristas
dedicadas a uma intensa doutrinação ideológica, nacionalista
e racista.

Criou-se, assim, uma situação de trauma que gerou sérios
atritos entre os luso- brasileiros, de um lado, e os gringo-brasileiros ou
nipo-brasileiros, de outro. As condições de relativa segregação
em que se desenvolveram esses núcleos, seu conservadorismo cultural
e lingüístico facilitavam essa ação dissociativa.

Para fazer-Ihes frente foi necessária uma maciça ação
oficial nacionalizadora que – como sempre ocorre nesses casos – agiu
muitas vezes desastradamente, agravando ainda mais os conflitos de lealdade.
Cumpriu, porém, uma função assimiladora decisiva, compelindo
o ensino da língua vernácula nas escolas, quebrando o isolamento
das comunidades e recrutando os jovens gringos e nipo-brasileiros para servir
nas forças armadas. Afastada para grandes centros urbanos, essa juventude
alargou seu horizonte cultural e sua visão do próprio Brasil,
contribuindo, no seu regresso, para facilitar uma identificação
nacional que já se tornava imperativa.

As diversas áreas de colonização européia formam,
hoje, uma região com f sionomia própria aglutinada em vilas
pela concentração de moradores em torno do comércio,
da igreja e da escola. Delas partem estradas inteiramente novas nas paisagens
brasileiras, correndo entre as cabeças dos lotes, densamente habitadas
de um e de outro lado e, por isso mesmo, cuidadosamente mantidas. Essas vilas
rurais formam redes encabeçadas por cidades cuja produção
se diversificou e se ajustou às condições do mercado,
somando atividades industriais de base artesanal às agrícolas.

Implantou-se, assim, uma economia regional próspera, numa paisagem
cultural europeizada dentro da relativa uniformidade luso-brasileira do país.

Os núcleos gringo-brasileiros tornaram-se importantes centros de
produção de vinho, mel, trigo, batatas, cevada, lúpulo,
legumes e frutas européias, além do milho para a engorda de
porcos, e da mandioca para a produção de fécula. Acrescentaram-
se, assim, à economia nacional os cultivos das zonas temperadas, aprimoraram
velhas lavouras e, sobretudo, demonstraram o alto padrão de vida que
podem fruir núcleos de pequenos proprietários quando habilitados
a cultivar intensamente a terra e a beneficiar sua produção
antes de comercializá-la. Consideradas as áreas ocupadas, essa
economia granjeira permite manter uma população muitas vezes
maior que a das zonas pastoris e mesmo das zonas agrícolas fundadas
no latifúndio e assegurar-lhe um padrão de vida também
muito alto.

Todavia, as colônias, em sua expansão, acabaram esbarrando
com o mundo do latifúndio, vendo esgotar-se, desse modo, sua fronteira
móvel. Não tendo como intensificar a produção,
entraram a subdividir antieconomicamente os lotes, abrigando duas e depois
quatro familias em áreas originalmente reservadas para uma apenas.
É o minifúndio que hoje persegue a população gringo-brasileira
tanto como o latifúndio que mantém o cerco à sua expansão.

Em virtude desse entrave latifundiário, nos próprios núcleos
coloniais que eram a região agroeconômica mais próspera
do país, surgiu também uma população marginal.
São os chamados “caboclos” da região colonial sulina.
Gringos acaboclados que, não possuindo terras, regridem também
a uma cultura da pobreza, confundindo- se com os matutos de origem açoriana
e com os gaúchos das rancharias, na disputa da terra para trabalhar
em parceria.

Seus hábitos de trabalho e de lazer, sua dieta, as palhoças
que lhes servem de moradia, a penúria em que vivem confundidos, os
tornam uma camada só: os marginais da região sulina.

A distinção se faz, hoje, tão evidente que colono,
na região gringa, é pequeno proprietário e caboclo é
o sem-terra. Em cada categoria confundem-se brasileiros de extração
gaúcha ou açoriana e brasileiros de extração gringa,
distingüíveis essencialmente por sua posição com
respeito à propriedade das terras que cultiva.

Essa camada de gringos acaboclados, assim como os demais contingentes marginais
do país, constitui uma reserva de mão-de-obra que opera como
uma classe infrabaixa, posta no campo abaixo dos assalariados agrícolas
e, nas cidades, abaixo dos integrados na força de trabalho com empregos
permanentes. A existência desse estrato social, em que todos estão
ameaçados de mergulhar se perderem sua posição ocupacional,
tem dois efeitos sociais gravíssimos. Funciona como redutor da combatividade
dos camponeses e operários pela melhoria de suas condições
de vida e como um indutor do conformismo, pela verificação de
que mesmo o trabalhador humilde tem ainda o que perder, porque pode cair numa
condição ainda mais degradada. Constituindo, por outro lado,
para os marginalizados, o patamar inferior da miséria, já incomprimível,
opera como uma incitação à rebeldia revolucionária,
já que somente uma reordenação social profunda pode abrir-Ihes
melhores perspectivas de vida.

Nos últimos anos, surgiu na zona colonial um desenvolvimento industrial
intensivo, originado no artesanato familiar, que já alcançou
a estatura de uma rede de instalações fabris de nível
médio, dedicada à produção metalúrgica,
à tecelagem e à indústria química, de couros,
cerâmica e vidreira. Algumas das antigas vilas coloniais gringas transformaram-se,
nesse processo, em importantes centros industriais regionais, como Caxias,
São Leopoldo, Novo Hamburgo, Blumenau, Joinville e Itajaí. Os
antigos colonos, transformados em empresários, não se circunscrevem,
porém, à sua área original.

Instalam suas indústrias também nas capitais regionais, fazendo-se
os principais empresários modernos do sul do país. Esse desenvolvimento
industrial ensejou a integração na força de trabalho,
como operários, de ponderáveis contingentes das populações
marginalizadas, tanto gringas quanto gaúchas e matutas.

Esse salto da agricultura granjeira à indústria artesanal
e, depois, à fabril, foi possibilitado pelo conhecimento por parte
dos colonos de técnicas produtivas européias singelas porém
mais complexas que as dominadas pelos outros núcleos brasileiros. Mas
ele se explica, principalmente, pelo bilingüismo, que lhes dava acesso
a melhores fontes de informação técnica e possibilitava
contatos europeus que permitiram importar equipamentos e pessoal qualificado,
quando necessário, e obter assistência na implantação
e expansão de suas indústrias. É de assinalar que esse
surto industrial ocorreu no mesmo período em que um grande parque têxtil
importado para regiões mais atrasadas do país (Minas Gerais)
obsolescia à míngua de capacidade de renovação
técnica e de falta de espírito empresarial moderno.

O progresso social e econômico das áreas de colonização
gringa e nipo-brasileira, bem como sua simultânea integração
nos mercados nacionais como produtores e consumidores, ensejou novos horizontes
de relações humanas e melhores condições de integração
cultural. Já, agora, a imagem do brasileiro, figurada pelo gringo ou
pelo nissei, não se confunde com as populações iziarginalizadas,
nem com a oligarquia latifundiária, mas com as populações
urbanas de vida moderna e progressista, em que eles se confundem como trabalhadores.
Simultaneamente, persuadiram-se de que já não pertencem ao mundo
cultural de seus antepassados, porquanto este também mudou, tornando
irreal qualquer identificação étnica não brasileira.

Nessas novas situações de contato e à luz dessa nova
compreensão, progrediu a auto-identificação dos descendentes
de colonos como brasileiros, diferenciados em seu modo de participação
na vida nacional, por sua origem e por sua experiência, mas brasileiros
tão-somente. Apenas os japoneses, por conduzirem uma marca racial diferenciadora,
tendiam a não ver reconhecida sua assimilação, mesmo
quando completada, como ocorre com aqueles que se urbanizaram. Essa característica,
que foi penosa enquanto os brasileiros identificaram os japoneses como gente
mestiça e atrasada, foi perdendo esse conteúdo em face ao prestígio
crescente do Japão e do êxito cultural e econômico dos
nisseis brasileiros. Com efeito, eles constituem, provavelmente, o grupo imigrante
que mais rapidamente ascendeu e se modernizou.

Não é raro que o neto do camponês nipônico seja
engenheiro, industrial ou executivo das grandes empresas japonesas instaladas
ultimamente no país, e que sua neta seja professora ou doutora.

IV – O DESTINO NACIONAL

AS DORES DO PARTO

O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente
tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois,
como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues
afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de
uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações
do seu povo jamais foram levados em conta, porque só se tinha atenção
e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora.
O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos dos matos
ou a importação de mais negros trazidos da África, para
aumentar a força de trabalho, que era a fonte de produção
dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando
todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar
de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar.

Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um sistema econômico
acionado por um ritmo acelerado de produção do que o mercado
externo dela exigia, com base numa força de trabalho afundada no atraso,
famélica, porque nenhuma atenção se dava à produção
e reprodução das suas condições de existência.

Em conseqüência, coexistiram sempre uma prosperidade empresarial,
que às vezes chegava a ser a maior do mundo, e uma penúria generalizada
da população local. A sociedade era, de fato, um mero conglomerado
de gentes multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos
daqui mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio
mais brutal na dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio
radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas
e africanos.

Alcançam-se, assim, paradoxalmente, condições ideais
para a trans iguração étnica pela desindianização
forçada dos índios e pela desafricanização do
negro, que, despojados de sua identidade, se vêem condenados a inventar
uma nova etnicidade englobadora de todos eles. Assim é que se foi fundindo
uma crescente massa humana que perdera a cara: eram ex-índios desindianizados,
e sobretudo mestiços, mulheres negras e índias, muitíssimas,
com uns pouquíssimos brancos europeus que nelas se multiplicaram prodigiosamente.

O núcleo luso, formado por muito poucos portugueses que aqui entraram
no primeiro século, e por mulheres mais raras ainda, que aqui vieram
ter, olhando a todos os mais desde a altura do seu preconceito de reinóis,
da força das suas armas, operacionava sua espoliação
econômica, querendo impor a todos sua fôrma étnica e sua
cara civilizatória. Ocorre, surpreendentemente, que esse povo nascente,
em lugar de uma Lusitânia de ultramar, se configura como um povo em
si, que luta desde então para tomar consciência de si mesmo e
realizar suas potencialidades.

Essa massa de mulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa
que falavam, pela visão do mundo, foram plasmando a etnia brasileira
e promovendo, simultaneamente, sua integração, na forma de um
Estado-Nação. Estava já maduro quando recebe grandes
contingentes de imigrantes europeus e japoneses, o que possibilitou ir assimilando
todos eles na condição de brasileiros genéricos.

Alguns, sobretudo japoneses, guardando marcas físicas indisfarçáveis
de suas origens, têm, em conseqüência, certa resistência
à plena assimilação ou ao reconhecimento dela quando
já está plenamente cumprida. Não deixam nunca de ser
nisseis, porque trazem isso na cara. Outros imigrantes, como os italianos,
os alemães, os espanhóis, apesar de brancarrões e de
portarem nomes enrolados, foram mais facilmente assimilados, sendo sua condição
de brasileiros plenamente aceita. Alguns até exacerbam, como o caso
do general Geisel, brasileiro de primeira geração, que nunca
entendeu por que os índios, aqui há tantos séculos, teimam
em não ser brasileiros.

Os árabes são os imigrantes mais exitosos, integrando-se rapidamente
na vida brasileira, participando das instituições políticas
e alcançando posições de governo.

Até esquecem de onde vieram e de sua vida miserável em seus
países de origem.

Cegos para o fato de que seu êxito se explica, em grande parte, pelo
desgarramento que faz com que eles vejam e atuem sobre a sociedade local armados
de preconceitos e incapazes de qualquer solidariedade, desligados de qualquer
lealdade, de obrigações familiares e sociais, para só
se concentrarem no esforço de enricar.

A atitude desses imigrantes é freqüentemente de desprezo e incompreensão.
Sua tendência é considerar que os brasileiros pobres são
responsáveis por sua pobreza e de que o fator racial é que afunda
na miséria os descendentes dos índios e dos negros.

Afirmam até que a religião católica e a língua
portuguesa contribuíram para o subdesenvolvimento brasileiro. Ignoram
que aqui chegaram a partir de crises que os tornaram excedentes, descartáveis,
da mão-de-obra de suas pátrias, e que aqui encontraram um imenso
país já aberto, de fronteiras fixadas, regendo autonomamente
seu destino.

Afortunadamente nenhum desses contingentes tem consistência suficiente
para se apresentar como uma etnia disputante ao domínio da sociedade
global, ou pretendentes a uma autonomia de destino.

Ao contrário do que sucede com outros países, que guardam
dentro do seu corpo contingentes claramente opostos à identificação
com a macroetnia nacional, no Brasil, apesar da multiplicidade de origens
raciais e étnicas da população, não se encontram
tais contingentes esquivos e separatistas dispostos a se organizar em quistos.

O que desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é a
estratificação de classes. Mas é ela que, do lado de
baixo, unifica e articula, como brasileiros, as imensas massas predominantemente
escuras, muito mais solidariamente cimentadas como tal, que enquanto negro
retinto ou branco de cal, porque nenhum desses defeitos é insanável.
O porta-voz mais brilhante dessa visão deformada de certos descendentes
de imigrantes foi o sábio Hermann von Ihering. Na sua paixão
por defender seus conterrâneos alemães, que estavam em guerra
contra os índios que viveram desde sempre nos terntórios doados
para colonizar, emprestou seu prestígio científico para duas
campanhas. A de pedir ao governo o extermínio dos índios como
requisito do progresso e da civilização, e a de acusar a gente
brasileira, que tinha feito esse país que o abrigava, como incapaz
de qualquer empreendimento.

“Os actuaes índios do Estado de S. Paulo não representam
um elemento de trabalho e de progresso. Como tambem nos outros Estados do
Brazil, não se póde esperar trabalho sério e continuado
dos índios civilizados e como os Caingangs selvagens são um
impecilio para a colonização das regiões do sertão
que habitam, parece que não ha outro meio, de que se possa lançar
mão, senão o seu exterminio.

A conversão dos indios não tem dado resultado satisfactorio;
aquelles indios que se uniram aos portuguezes immigrados, só deixaram
uma influencia malefica nos habitos da população rural. É
minha convicção de que é devido essencialmente a essas
circunstâncias, que o Estado de S. Paulo é obrigado a introduzir
milhares de immigrantes, pois que não se póde contar, de modo
efficaz e seguro, com os serviços dessa população indigena,
para os trabalhos que a lavoura exige (Ihering 1907:215).” Outros intérpretes
de nossas características nacionais vêem os mais variados defeitos
e qualidades aos quais atribuem valor causal. Um exemplo nos basta. Para Sérgio
Buarque de Holanda seriam características nossas, herdadas dos iberos,
a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidade lusitanas, bem
como o espírito aventureiro e o apreço à lealdade de
uns e outros e, ainda, seu gosto maior pelo ócio do que pelo negócio.
Da mistura de todos esses ingredientes, resultaria uma certa frouxidão
e anarquismo, a falta de coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência.
Mas derivariam delas, também, certo pendor para o mandonismo, para
o autoritarismo e para a tirania.

Como quase tudo isso são defeitos, devemos convir que somos um caso
feio, tamanhas seriam as carências de que padecemos. Seria assim? Temo
muito que não.

Muito pior para nós teria sido, talvez, e Sérgio o reconhece,
o contrário de nossos defeitos, tais como, o servilismo, a humildade,
a rigidez, o espírito de ordem, o sentido de dever, o gosto pela rotina,
a gravidade, a sisudez. Elas bem poderiam nos ser ainda mais nefastas porque
nos teriam tirado a criatividade do aventureiro, a adaptabilidade de quem
não é rígido mas flexível, a vitalidade de quem
enfrenta, ousado, azares e fortunas, a originalidade dos indisciplinados.

Fala-se muito, também, da preguiça brasileira, atribuída
tanto ao índio indolente, como ao negro fujão e até às
classes dominantes viciosas. Tudo isto é duvidoso demais frente ao
fato do que aqui se fez. E se fez muito, como a construção de
toda uma civilização urbana nos séculos de vida colonial,
incomparavelmente mais pujante e mais brilhante do que aquilo que se verificou
na América do Norte, por exemplo.

A questão que se põe é entender por que eles, tão
pobres e atrasados, rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque
em qualquer área de criatividade cultural, ascenderam plenamente à
civilização industrial, enquanto nós mergulhávamos
no atraso.

As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O
ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação
da sociedade, estruturada contra os interesses da população,
desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos
seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino
na busca de sua própria prosperidade.

O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada,
humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação
e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade,
sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social
vigente.

CONFRONTOS

Que é o Brasil entre os povos contemporâneos? Que são
os brasileiros? Enquanto povo das Américas contrasta com os povos testemunhos,
como o México e o altiplano andino, com seus povos oriundos de altas
civilizações que vivem o drama de sua dualidade cultural e o
desafio de sua fusão numa nova civilização.

Outro bloco contrastante é o dos povos transplantados, que representa
nas Américas tão-só a reprodução de humanidades
e de paisagens européias. Os Estados Unidos da América e o Canadá
são de fato mais parecidos e mais aparentados com a África do
Sul branca e com a Austrália do que conosco. A Argentina e o Uruguai,
invadidos por uma onda gringa que lançou 4 milhões de europeus
sobre um mero milhão que havia devassado o país e feito a independência,
soterrando a velha formação hispano-índia, são
outros transplantados. Só é de perguntar por que, com a economia
igual e até mais rica de produção de cereais, de carnes
e de lãs, não conseguem a prosperidade da Austrália e
do Canadá, que se enriqueceram com muito menos? Será o velho
Cromwell e a institucionalidade por ele criada, que ainda regem o norte, que
fazem a diferença? Os outros latino-americanos são, como nós
mesmos, povos novos, em fazimento.

Tarefa infinitamente mais complexa, porque uma coisa é reproduzir
no além-mar o mundo insosso europeu, outra é o drama de refundir
altas civilizações, um terceiro desafio, muito diferente, é
o nosso, de reinventar o humano, criando um novo gênero de gentes, diferentes
de quantas haja.

Se olhamos lá para fora, a África contrasta conosco porque
vive ainda o drama de sua europeização, prosseguida por sua
própria liderança libertária, que tem mais horror à
tribalidade que sobrevive e ameaça explodir do que à recolonização.
São ilusões! Se os índios sobreviventes do Brasil resistiram
a toda a brutalidade durante quinhentos anos e continuam sendo eles mesmos,
seus equivalentes da África resistirão também para rir
na cara de seus líderes neoeuropeizadores. Mundos mais longínquos,
como os orientais, mais maduros que a própria Europa, se estruturam
na nova civilização, mantendo seu ser, sua cara.

Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de
sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já
que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado.

Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos
oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência
de si, afundada na rünguendade.

Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional,
a de brasileiros.

Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os,
ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova
romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio
e sangue negro.

Com efeito, alguns soldados romanos, acampados na península Ibérica,
ali latinizaram os povos pré-lusitanos. O fizeram tão firmemente
que seus filhos mantiveram a latinidade e a cara, resistindo a séculos
de opressão de invasores nórdicos e sarracenos.

Depois de 2 mil anos nesse esforço, saltaram o mar-oceano e vieram
ter no Brasil para plasmar a neo-romanidade que nós somos.

É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes
tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais
homogêneos lingüística e culturalmente e também um
dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem
dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia,
nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro.

Nações há no Novo Mundo – Estados Unidos, Canadá,
Austrália – que são meros transplantes da Europa para amplos
espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste
mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui
vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem
com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa. É certo que às
vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição
grega. Raramente. São, a rigor, o oposto de nós.

Nosso destino é nos unificarmos com todos os latino-americanos por
nossa oposição comum ao mesmo antagonista, que é a América
anglo-saxônica, para fundarmos, tal como ocorre na comunidade européia,
a Nação Latino-Americana sonhada por Bolívar. Hoje, somos
500 milhões, amanhã seremos 1 bilhão. Vale dizer, um
contingente humano com magnitude suficiente para encarnar a latinidade em
face dos blocos chineses, eslavos, árabes e ngobritânicos na
humanidade futura.

Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como
um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil
e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia
e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas,
pela magnitude populacional, e começa a sê- lo também
por sua criatividade artística e cultural.

Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização,
para se fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado.
Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova
civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma.
Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades.
Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças
e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província
da Terra.

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