Obras – Clarice Lispector

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

PUBLICIDADE

 

A bela e a fera ou A ferida grande demais

“Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana
Palace Hotel. O chofer não estava lá. Olhou o relógio:
eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a “seu”
José para vir buscá-la às cinco, não calculando
que não faria as unhas dos pés e das mãos, só
a massagem. Que devia fazer? Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota
de quinhentos cruzeiros e o homem do táxi não teria troco. Trouxera
dinheiro porque o marido lhe dissera que nunca se deve andar sem nenhum dinheiro.
Ocorreu-lhe voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro. Mas – mas era
uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim
achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua – ao vento
que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última
vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela – com outros,
e nesses outros ela se refletia e os outros refletiam-se nela.”

A fuga

“Começou a ficar escuro e ela teve medo. A chuva caía
sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz
das lâmpadas. Passavam pessoas de guarda-chuva, impermeável,
muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo
asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente.

Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia a
chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo,
porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto
de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia
a marcha.

Estava cansada. Pensava sempre: “Mas que é que vai acontecer
agora?” Se ficasse andando. Não era a solução. Voltar
para casa? Não. Receava que alguma força a empurrasse para o
ponto de partida.”

Gertrudes pede um conselho

“Sentou-se de modo que seu próprio peso “passasse a ferro”
a saia amarrotada. Endireitou os cabelos, a blusa. Agora, só esperar.

Lá fora, tudo muito bom. Podia ver os telhados das casas, as flores
vermelhas duma janela, o sol amarelo derramado sobre tudo. Não havia
hora melhor que as duas da tarde.

Não queria esperar porque ficaria com medo. E assim não daria
à doutora a impressão que desejava causar. Não pensar
na entrevista, não pensar. Inventar depressa uma história, contar
até mil, recordar-se das coisas boas. O pior é que só
se lembrava da carta que mandara. “Minha senhora, eu tenho dezessete
anos e queria…” Idiota, absolutamente idiota. “Estou cansada de
andar de um lado para outro. Às vezes não consigo dormir, mesmo
porque minhas irmãs dormem no mesmo quarto e se remexem muito. Mas
não consigo dormir porque fico pensando nas coisas. Já resolvi
me suicidar, mas não quero mais. A senhora pode me ajudar? Gertudres.”

História interrompida

“Ele era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a
entender que seu maior defeito consistia na sua tendência para a destruição.
E por isso, dizia, alisando os cabelos negros como quem alisa o pêlo
macio e quente de um gatinho, por isso é que sua vida se resumia num
monte de cacos: uns brilhantes, outros baços, uns alegres, outros como
um “pedaço de hora perdida”, sem significação,
uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já espedaçados.

Eu, na verdade, não sabia o que retrucar e lamentava não ter
um gesto de reserva, como o seu de alisar o cabelo, para sair da confusão.
No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia,
é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça
profunda. Eu lhe respondia que mesmo destruindo ele construía: pelos
menos esse monte de cacos para onde olhar e de que falar. Perfeitamente absurdo.
Ele, sem dúvida, também o achava, porque não respondia.
Ficava muito triste, a olhar para o chão e a alisar seu gatinho morno.”

Mais dois bêbados

“Surpreendi-me. Não é que abusava de minha boa vontade?
Por que mantinha ele um ar de tão denso mistério? Podia contar
seus segredos sem receio de qualquer julgamento. Meu estado de embriaguez
me inclinava especialmente à benevolência e além disso,
afinal, ele não passava de um estranho qualquer… Por que não
falava ele de sua vida com a objetividade com que pedira o copo de chopp ao
garçom?

Recusava-me a conceder-lhe o direito de ter uma alma própria, cheia
de preconceitos e de amor por si mesmo. Um destroço daqueles, com a
inteligência suficiente para saber que era um destroço, não
deveria ter claros e escuros, como eu, que podia contar minha vida desde o
tempo em que meus avós ainda não se conheciam. Eu possuía
o direito de ter pudor e de não me revelar. Era consciente, sabia que
ria, que sofria, lera obras sobre o budismo, fariam um epitáfio sobre
meu túmulo quando morresse. E embebedava-me não puramente, mas
com um objetivo: Eu era alguém.”

O delírio

“O dia está alto e forte quando se levanta. Procura os chinelos
embaixo da cama, tateando com os pés, enquanto se aconchega no pijama
de flanela. O sol começa a cobrir o guarda-roupa, refletindo no chão
o largo quadrado da janela.

Sente a cabeça endurecida na nuca, os movimentos tão difíceis.
Os dedos dos pés são qualquer coisa gelada, impessoal. E os
maxilares presos, cerrados. Vai até a pia, enche as mãos de
água, bebe avidamente e ela se balança dentro dele como num
frasco vazio. Molha a testa e respira desafogado.

Da janela enxerga a rua clara e movimentada. Guris brincam de botão
à porta da Confeitaria Mascote, um carro buzina junto ao botequim.
As mulheres, de sacola na mão, suadas, vêm da feira. Pedaços
de nabos e alfaces se misturam à poeira da rua estreita. E o sol, puro
e cruel, espalhado por cima de tudo. ”

Obsessão

“Agora que já vivi o meu caso, posso rememorá-lo com mais
serenidade. Não tentarei fazer-me perdoar. Tentarei não acusar.
Aconteceu simplesmente.

Não me recordo com nitidez de seu início. Transformei-me independente
de minha consciência e quando abri os olhos o veneno circulava irremediavelmente
no meu sangue, já antigo no seu poder.

É necessário contar um pouco sobre mim, antes do me contato
com Daniel. Apenas assim conhecer-se-á o terreno em que suas sementes
foram jogadas. Embora não acreditasse que se pudesse compreender inteiramente
por que as sementes resultaram em tão tristes frutos.

Sempre fui sossega e nunca dei provas de possuir elementos que Daniel desenvolveu
em mim. Nasci de criaturas simples, instruídas naquela sabedoria que
se adquire pela experiência e se adivinha pelo senso comum.”

Um dia a menos

“Eu desconfio que a morte vem. Morte?

Será que uma vez os tão longos dias terminem?

Assim devaneio calma, quieta. Será que a morte é um blefe?
Um truque da vida? É perseguição?

E assim é.

O dia começara às quatro da manhã, sempre acordara cedo,
já encontrando na pequena copa a garrafa térmica cheia de café.
Tomou uma xícara morna e lá ia deixá-la para Augusta
lavar, quando se lembrou de que a velha Augusta pedira licença por
um mês para ver seu filho.

Teve preguiça do longo dia que se seguiria: nenhum compromisso, nenhum
dever, nem alegrias nem tristezas.”

A Imitação da Rosa

“Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada
e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender
o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço
dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?

Mas agora ele estava de novo “bem”, tomariam o ônibus, ela
olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam
com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade. Há
quanto tempo não via Armando enfim se recostar com intimidade e conversar
com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com
outro homem sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria
com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária
e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção
e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele
carinho perplexo e cheio de curiosidade – e vendo enfim Armando esquecido
da própria mulher.”

A menor mulher do mundo

“Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês
Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus
de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado
de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias.
Então mais fundo ele foi.

No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E – como
uma caixa dentro de uma caixa, dentro de uma caixa – entre os menores pigmeus
do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à
necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.

Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas
do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher
de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada.”

Amor

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana
subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.
Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia
satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam
banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha
era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros.
O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento
batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia
parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela
plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas
apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com
o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus
filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo
de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,
tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores
que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara
um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande
tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico
encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos;
com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima
desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento,
a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser
feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas.
E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num
destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.
O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram
filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença
de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem
a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas,
antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência,
continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para
sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas
vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo
enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da
tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada
membro da família distribuído nas suas funções.
Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um
pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse
ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que
as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer
compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família
à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças
vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila
vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.
Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem
arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes
negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim.
Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais
úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável.
Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu
rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha
tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente
parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era
um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma
coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava
chicles… Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam
jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado.
Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos
vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos
abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e
de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele
a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão
de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais
inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida
para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu
no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes
de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam
assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida.
Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe
com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais
ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de
jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera
a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando
inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da
rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu
a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia
nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o
mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima
como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um
fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma
estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito.
Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana
respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento
estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível…
O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam,
as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe
que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo
equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento
a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam
para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito
que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como
se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não
o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com
que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado,
tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários
da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as
grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles
mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia
a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor
que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou
o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no
filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana
caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não
explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa
das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se
escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se
seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E
através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce,
até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto
de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu
do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede
suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter
saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração
batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto
a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso
rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.
Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do
Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia
ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco
de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua
respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra
dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas
surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já
mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?
Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande
demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida.
Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel
um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso,
desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam
no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe
ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do
qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos
cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade
intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se
as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato
era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram
percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como
a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha
nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea
subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada.
A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia
nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias
boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe
pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição
era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça
rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A
brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro
adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra.
Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia.
Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada,
ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou
pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim
em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões
fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado
de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à
beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe
no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta
como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível,
seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas
brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava
— que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara
até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que
se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu,
que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se
tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora
criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas
ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação
da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto
de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo
Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo.
Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível,
disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria
sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava
deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança
entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou
o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se.
Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal
sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do
quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera.
Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha
vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia
como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já
não era mais piedade, não era só piedade: seu coração
se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas.
O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado
para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo
e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte
do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta?
Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã.
Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida
porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah!
era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não
fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas
mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo,
também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a
como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou
com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se
iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi
para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante.
O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão,
onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água
– havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às
suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto
da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato
da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam
na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos
besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente.
Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes,
mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os
mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão
crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a
quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os
filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia,
ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos,
o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas,
brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las
a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas.
Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não
discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo,
com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente
em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam
deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava
adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos
anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria
numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que
da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem
no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda
a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante
do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado,
com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma
coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico,
triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que
não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher,
levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho,
por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar,
como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Começos de uma Fortuna

Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar. E que mais se
assemelhavam à idéia que fazemos do tempo.

A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava do
jardim, como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia. Só
algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e sobrevoavam
o açucareiro. A essa hora, Tijuca não havia despertado de todo.
“Se eu tivesse dinheiro…” pensava Artur, e um desejo de entesourar,
de possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar desprendido e contemplativo.

— Não sou um jogador.

— Deixe de tolices, respondeu a mãe. Não recomece com
histórias de dinheiro.

Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa premente
que terminasse em soluções. Um pouco da mortificação
do jantar da véspera sobre mesadas, com o pai misturando autoridade
e compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios
básicos — um pouco da mortificação da véspera
pedia, no entanto, prosseguimento. Só que era inútil procurar
em si a urgência de ontem. Cada noite o sono parecia responder a todas
as suas necessidades. E de manhã, ao contrário dos adultos que
acordam escuros e barbados, ele despertava cada vez mais imberbe. Despenteado,
mas diferente da desordem do pai, a quem parecia terem acontecido coisas durante
a noite.

Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda
sonhadora, como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação.
Até tomarem café todos estavam irritados ou pensativos, inclusive
a empregada. Não era esse o momento de pedir coisas. Mas para ele era
uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios de manhã:
cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os dias anteriores.
Tanto o sono cortava suas amarras, todas as noites.

— Não sou um jogador nem um gastador.

— Artur, disse a mãe irritadíssima, já me bastam
as minhas preocupações!

— Que preocupações? perguntou ele com interesse.

A mãe olhou-o seca como a um estranho. No entanto ele era muito mais
parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família. Apertou
os lábios.

— Todo o mundo tem preocupações, meu filho, corrigiu-se
ela entrando então em nova modalidade de relações, entre
maternal e educadora.

E daí em diante sua mãe assumira o dia. Dissipara-se a espécie
de individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela.
Desde sempre, ou aceitavam-no ou reduziam-no a ser ele mesmo. Em pequeno brincavam
com ele, jogavam-no para o ar, enchiam-no de beijos – e de repente ficavam
“individuais” — largavam-no, diziam gentilmente mas já
intangíveis: “agora acabou”, e ele ficava todo vibrante de
carícias, com tantas gargalhadas ainda por dar. Tornava-se implicante,
mexia num e noutro pé, cheio de uma cólera que, no entanto,
se transformaria no mesmo instante em delícia, em pura delícia,
se eles apenas quisessem.

— Coma, Artur, concluiu a mãe e de novo ele já podia
contar com ela. Assim imediatamente tornou-se menor e muito mais malcriado:

— Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém
liga. Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar
ou para beber.

— Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar
ou para beber? disse o pai entrando na sala e encaminhando-se para a cabeceira
da mesa. Ora essa! que pretensão!

Ele não contara com a chegada do pai. Desnorteado, porém habituado,
começou:

— Mas papai! sua voz desafinou numa revolta que não chegava
a ser indignada. Como contrapeso, a mãe já estava dominada,
mexendo tranqüilamente o café com leite, indiferente à
conversa que parecia não passar de mais algumas moscas. Afastava-as
do açucareiro com mão mole.

— Vá saindo que está na sua hora, cortou o pai. Artur
virou-se para sua mãe. Mas esta passava manteiga no pão, absorta
e prazerosa. Fugira de novo. A tudo diria sim, sem dar nenhuma importância.

Fechando a porta, ele de novo tinha a impressão de que a cada momento
entregavam-no à vida. Assim é que a rua parecia recebê-lo.
“Quando eu tiver minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui
e farei visitas e tudo será diferente”, pensou.

A vida fora de casa era completamente outra. Além da diferença
de luz — como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia
e que disposições haviam tomado as circunstâncias durante
a noite — além da diferença de luz, havia a diferença
do modo de ser. Quando era pequeno, a mãe dizia: “fora de casa
ele é uma doçura, em casa um demônio”. Mesmo agora,
atravessando o pequeno portão, ele se tornara visivelmente mais moço
e ao mesmo tempo menos criança, mais sensível e sobretudo sem
assunto. Mas com um interesse dócil. Não era uma pessoa que
procurasse conversas, mas se alguém lhe perguntava como agora: “menino,
de que lado fica a igreja?”, ele se animava com suavidade, inclinava
o longo pescoço, pois todos eram mais baixos que ele; e informava atraído,
como se nisso houvesse uma troca de cordialidades e um campo aberto à
curiosidade. Ficou atento olhando a senhora dobrar a esquina em caminho da
igreja, pacientemente responsável pelo seu itinerário.

— Mas dinheiro é feito para gastar e você sabe com quê,
disse-lhe Carlinhos intenso.

— Quero para comprar coisas, respondeu um pouco vago.

— Uma bicicletinha? riu Carlinhos ofensivo, corado na intriga.

Artur riu desagradado, sem prazer.

Sentado na carteira, esperou que o professor se erguesse. O pigarro deste,
prefaciando o começo da aula, foi o sinal habitual para os alunos se
sentarem mais para trás, abrirem os olhos com atenção
e não pensarem em nada. “Em nada”, foi a resposta perturbada
de Artur ao professor que o interpelava irritado. “Em nada” era
vagamente em conversas anteriores, em decisões pouco definitivas sobre
um cinema à tarde, em — em dinheiro. Ele precisava de dinheiro.
Mas durante a aula, obrigado a estar imóvel e sem nenhuma responsabilidade,
qualquer desejo tinha como base o repouso.

— Você então não viu logo que Glorinha estava querendo
ser convidada pro cinema? disse Carlinhos, e ambos olharam com curiosidade
a menina que se afastava segurando a pasta. Pensativo, Artur continuou a andar
ao lado do amigo,olhando as pedras do chão.

— Se você não em dinheiro para duas entradas, eu empresto,
você paga depois.

Pelo visto, do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregá-lo
em mil coisas.

— Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo
ao irmão de Antônio, respondeu evasivo.

— E então? que é que tem! explicou o outro, prático
e veemente.

“E então”, pensou com uma pequena cólera, “e
então, pelo visto, logo que alguém tem dinheiro aparecem os
outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro.”

— Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você
ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.

Os dois riram. Depois disso ele ficou mais alegre, mais confiante. Sobretudo
menos oprimido pelas circunstâncias.

Mas depois já era meio-dia e qualquer desejo se tornava mais árido
e mais duro de suportar. Durante todo o almoço ele pensou com rispidez
em fazer ou não fazer dívidas e sentia-se um homem aniquilado.

— Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã,
disse a mãe. O fato é que acorda bem disposto mas aparece para
o almoço com essa cara pálida. Fica logo com as feições
duras, é o primeiro sinal.

— Não é nada, é o desgaste natural do dia, disse
o pai bem humorado.

Olhando-se no espelho do corredor antes de sair, realmente era a cara de
um desses rapazes que trabalham, cansados e moços. Sorriu sem mexer
os lábios, satisfeito no fundo dos olhos. Mas à porta do cinema
não pôde deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá
estava Glorinha com uma amiga.

— Vocês preferem sentar na frente ou no meio? perguntava Glorinha.

Diante disso, Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu disfarçado
o dinheiro da entrada de Glorinha.

— Pelo visto, o cinema está estragado, disse de passagem para
Carlinhos. Arrependeu-se logo depois de ter falado, pois o colega mal ouvira,
ocupado com a menina. Não era necessário diminuir-se aos olhos
do outro, para quem uma sessão de cinema só tinha a ganhar com
uma garota.

Na realidade o cinema só esteve estragado no começo. Logo depois
ele relaxou o corpo, esqueceu-se da presença ao lado e passou a ver
o filme. Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto
olhou-a disfarçado. Com um pouco de surpresa constatou que ela não
era propriamente a exploradora que ele supusera: lá estava Glorinha
inclinada para frente, a boca aberta pela atenção. Aliviado,
recostou-se de novo na poltrona.

Mais tarde, porém, indagou-se se tinha ou não sido explorado.
E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina
com uma cara de horror. O coração batia como um punho. Além
do rosto espantado, solto no vidro da vitrina, havia panelas e utensílios
de cozinha que ele olhou com certa familiaridade. “Pelo visto, fui”,
concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao perfil sem culpa
de Glorinha. Aos poucos a própria inocência da menina tornou-se
a sua culpa maior: “então ela explorava, explorava, e depois ficava
toda satisfeita vendo o filme?”. Seus olhos se encheram de lágrimas.
“Ingrata”, pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação.
Como a palavra era um símbolo de queixa mais do que de raiva, ele se
confundiu um pouco e sua raiva acalmou-se. Parecia-lhe agora, de fora para
dentro e sem nenhuma vontade, que ela deveria ter pago daquele modo a entrada
do cinema.

Mas diante dos livros e cadernos fechados, seu rosto desanuviava-se.

Deixou de ouvir as portas que batiam, o piano da vizinha, a voz da mãe
no telefone. Havia um grande silêncio no seu quarto, como num cofre.
E o fim da tarde parecia com uma manhã. Estava longe, longe, como um
gigante que pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos
que viravam e reviravam um lápis. Havia instantes em que respirava
pesado como um velho. A maior parte do tempo, porém, seu rosto mal
aflorava o ar do quarto.

— Já estudei! gritou para a mãe que interpelava sobre
o barulho da água. Lavando cuidadosamente os pés na banheira,
ele pensou que a amiga de Glorinha era melhor que Glorinha. Nem tinha procurado
reparar se Carlinhos “aproveitara” ou não da outra. A essa
idéia, saiu muito depressa da banheira e parou diante do espelho da
pia. Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados.

Não! não queria explicar-se com Carlinhos e ninguém
lhe diria como usar o dinheiro que teria, e Carlinhos podia pensar que era
com bicicletas, mas se fosse o que é que tem? e se nunca, mas nunca,
quisesse gastar o seu dinheiro? e cada vez ficasse mais rico?… que é
que há, está querendo briga? você pensa que…

— … pode ser que você esteja muito ocupado com os seus pensamentos,
disse a mãe interrompendo-o, mas ao menos coma o seu jantar e de vez
em quando diga uma palavra.

Então ele, em súbita volta à casa paterna:

— Ora a senhora diz que na mesa não se fala, ora quer que eu
fale, ora diz que não se fala de boca cheia, ora…

— Olhe o modo como você fala com sua mãe, disse o pai
sem severidade.

— Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas, papai,
como é promissórias?

— Pelo visto, disse o pai com prazer —, pelo visto o ginásio
não serve para nada.

— Coma mais batata, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar
os dois homens para si.

— Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim:
digamos que você tenha uma dívida.

Devaneio e embriaguez duma rapariga

“Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a
estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante
da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se
à frescurazita da tarde. Os olhos não se abandonavam, os espelhos
vibravam ora escuros ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta,
caiu à rua uma cousa pesada e fofa. Se os miúdos e o marido
estivessem à casa, já lhe viria à idéia que seria
descuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava
meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seis
entrecortados de várias raparigas.

“A Noite!”, gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua Riachuelo,
e alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira,
cantou absorta: “quem viu o pardal-zito… passou pela jane-la… voou
pr’além do Mi-nho!” – mas, colérica, fechou-se dura como
um leque.”

Feliz Aniversário

A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam
muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a
Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês
e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não
veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos.
Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados
— e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não
precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas
já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas
engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.

Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto
cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar,
a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se
numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição
de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a
Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e
o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude
tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu
vestido azul-marinho e com os paetês.

Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria
depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos
homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço
e tempo para alojar a aniversariante — e como Zilda estava na cozinha
a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora
de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao
lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com
o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá
ociosa e uniformizada, com a boca aberta.

E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta
e nove anos.

Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de
papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara
balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy
Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!” No centro
havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente,
enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à
parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a
mesa.

E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço.
Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche,
borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar
aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as
duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa
vazia, tesa na sala silenciosa.

De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um
ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando
aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o
vôo da mosca em torno do bolo.

Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a
de Ipanema.

Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo
mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria
— que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar
desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família.
E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa
se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em
afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando,
arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando
a festa.

Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam
mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava
era posta á cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente
e morena. Parecia oca.

— Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho
agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse
esfregando as mãos em admiração pública e como
sinal imperceptível para todos.

Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais
oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a
um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família
toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.

— Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José.
É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua
esposa.

A velha não se manifestava.

Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira,
uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho
de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si
mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse
realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava
os presentes, amarga, irônica.

— Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.

A velha não se manifestava.

Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não
adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse
junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros
sanduíches de presunto mais como prova de animação que
por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi
servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente
dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante,
que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia?
Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.

— Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje
não se fala em negócios!

— Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando
rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.

— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia
da mãe!

Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo
inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.

E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que
os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras,
então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela
do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89”.
Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada
se eles não estariam pensando que fora por economia de velas —
ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído
com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda,
servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração
revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder,
cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário
os mais hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!”
— e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada
pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado,
uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então
corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português,
e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em
inglês.

Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava
como junto de uma lareira.

Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora,
apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante
bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado
e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo
pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.

— Viva mamãe!

— Viva vovó!

— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.

— Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.

Bateram ainda algumas palmas ralas.

A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.

— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos,
é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo
e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou
de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!

E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação ,
como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira
talhada com punho de assassina.

— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia
se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.

— Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas
escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.

Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido
lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se
em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.

Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio
cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida
pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição
com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças
angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a
queda.

E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava
devorando o seu último bocado?

E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente
para todos, sorria.

— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios!
respondeu José radiante.

— Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador
sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel
sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos
da cara.

— Hoje é dia da mãe! disse José.

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela
era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo,
a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não
se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos,
a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe
de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e,
impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles
seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho,
pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único
a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura,
viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido
naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando,
ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava.
Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles seres
opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara
em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente,
ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os
partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos
e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera
ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor
roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas.
Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a
sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força
insuspeita cuspiu no chão.

— Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso,
mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar
os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como
se coubesse a ela dar educação à velha, e não
faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na
mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. —
Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. —
A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem,
queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira
vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando
ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo
que a velha não passava agora de uma criança.

— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando
contrita para todos.

Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.

Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora
crescidos — provavelmente já além dos cinqüenta anos,
que sei eu! — os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos.
Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais
fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas
finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta
a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não
sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias
de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.

— Me dá um copo de vinho! disse.

O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado
na mão.

— Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta
roliça e baixinha.

— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. —
Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá
um copo de vinho, Dorothy! — ordenou.

Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico
de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito
nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos
na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando
tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos,
com croquetes na mão. E olhavam impassíveis.

Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos
no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.

Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria
de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava
fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.

Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro
tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e
risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono
com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se
desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos
o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os
outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos
sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto
com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não
passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase
não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada!
Só comera uma coisa de cada, para experimentar.

E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas
benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si,
à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com
um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não
alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis,
gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras,
menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia,
Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha
o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade
negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não
responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade
da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram
mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo
de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava
pelas janelas como um peso.

— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo
os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.

A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão
infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas
palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final
arranco de efusão ao que não era mais senão passado:
a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então
mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já
estavam histéricas.

— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se
a velha nas suas profundezas.

Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que
junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que
parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada
sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua
última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria
apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a,
se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo
sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez
pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que
se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.

Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia
olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto
Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe
culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando
à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto
dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia
quis olhar.

Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira
da mesa.

Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo
a nora seguiu-o espantada.

— Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem
em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é
quem fazia os discursos.

— Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais
lenta riu sem achar graça.

— Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a
esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído
enxugando a palma úmida das mãos.

Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se
sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança
e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha.
Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga
fazia falta nessas horas — José enxugou a testa com o, lenço
— como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único
a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança.
E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre
sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele
mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os
sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José
enxugou a testa, heróico, risonho.

E de repente veio a frase:

— Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia,
encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz!
Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido.

Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais
um ano.

— No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor
o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até
o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado,
perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha
de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.

Então ela abriu a boca e disse:

— Pois é.

Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José
gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:

— No ano que vem nos veremos, mamãe!

— Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.

Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.

As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora
de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já
sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir
em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia,
e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar
a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio
os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua. Era noite,
sim. Com o seu primeiro arrepio.

Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram
rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade
sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu
à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na
despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer
aquela palavra a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente,
e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas
que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem
saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.

— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando
a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam.
Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração.
Até o ano que vem! gritou José eloqüente e grande, e sua
altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não
sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro.
Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira
na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar
diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua,
pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência
de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo menos
noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para
completar uma data bonita”, pensou sonhadora.

Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava
a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior
do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava
ela. A morte era o seu mistério.

Mistério em São Cristóvão

“Numa noite de maio – os jacintos rígidos perto da vidraça
– a sala de jantar de uma casa estava iluminada e tranqüila.

Ao redor da mesa, por um instante imobilizados, achavam-se o pai, a mãe,
a avó, três crianças e uma mocinha magra de dezenove anos.
O sereno perfumado de São Cristóvão não era perigoso,
mas o modo como as pessoas se agrupavam no interior da casa tornava arriscado
o que não fosse o seio de uma família numa noite fresca de maio.
Nada havia de especial na reunião: acabara-se de jantar e conversava-se
ao redor da mesa, os mosquitos em torno da luz. O que tornava particularmente
abastada a cena, e tão desabrochado o rosto de cada pessoa, é
que depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso nessa família:
pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças
têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios,
a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa, a mocinha está
se equilibrando na delicadeza de sua idade, e a avó atingiu um estado.”

O Búfalo

“Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da
leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só
o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico.
Depois o leão passeou enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente
reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. “Mas
isso é amor, é amor de novo”, revoltou-se a mulher tentando
encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e dois leões
se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si,
rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar.
Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às
vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura
de uma cova.”

O Crime do Professor de Matemática

“Quando o homem atingiu a colina mais alto, os sinos tocavam na cidade
embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava
a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um
saco pesado na mão.

Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar
e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças
espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons
mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia
imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta
com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó
agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou
os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos
na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram
sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens,
infamiliares.”

O jantar

“Ele entrou tarde no restaurante. Certamente ocupara-se até agora
em grandes negócios. Poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento,
de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e mãos potentes. Num dedo
o anel de sua força. Sentou-se amplo e sólido.

Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu.
Ela ria com a boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pão
com vigor e mecanismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo
e olhando. O garçom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho
mantinha os olhos fechados. A um gesto mais vivo do criado ele abriu os abriu
com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às
grandes mãos e um garfo caiu.”

OS Laços de Família (Resumo)

A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria
à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas
tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos
escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria
e frieza assistia.

— Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.

— Não, não, não esqueceu de nada, respondia a
filha divertida, com paciência.

Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe
e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha,
os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada
momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na
hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara
em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra
mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira
Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar
– perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”,
pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde
um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe,
e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé,
observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera
para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho
daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de rir tornou-se
mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de
rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se
mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía
um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira
pelos olhos, desde sempre fora estrábica.

— Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe
resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar
presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava
diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é
por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do
casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita
da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca
do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não
impedira que… – Catarina olhava-os e ria.

— O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi
avançava monótono.

— Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.

— Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso,
distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante,
dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões
de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com
a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a
proteger uma criança” …

— Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando
uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez
despencarem as malas. — Ah! ah! – exclamou a mãe como a um desastre
irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa,
de repente envelhecida e pobre. E Catarina?

Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também
a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela
ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível
remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria
inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa
intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem
pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado
ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe
enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando
em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi
e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não
chegavam logo à Estação?

— Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.

Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.

— Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.

— Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só
se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados
os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.

Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os
olhos brilhantes.

O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe
tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado
no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo
onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha
observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou
a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à
boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida
e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe.
Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa,
e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se
por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria
parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve
um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que
o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha.
Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes
a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina,
deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina
estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada…

— …não esqueci de nada? perguntou a mãe.

— Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa,
e ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido,
agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança
chorava, novamente a campainha da Estação soou… Mamãe,
disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era
tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe,
Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.

— Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.

— Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem
deixar porém de se preocupar com a própria aparência.
A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a
aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar
se fora feliz com seu pai:

— Dê lembranças a titia! gritou.

— Sim, sim!

— Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no
meio da fumaça as rodas já se moviam.

— Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro
solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe
até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já
andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e
reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado
caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto
estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.

No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as
sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos.
Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha
era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada
de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados
de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe
pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua
suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluia e refluia
no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste
momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde
nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia
o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com
insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer
ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros,
conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia;
nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse
mais um degrau misterioso nos seus dias.

O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto
se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir
da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia
no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado
sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a
retomava com prazer, junto à escrivaninha.

— “Ela” foi?

— Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho.
Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito.
Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme;
mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava
as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele
mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom
e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha
das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para
o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém
conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe
sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe,
disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele
dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma
constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha
com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas
não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse
explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para
secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera:
mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino
quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só
em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua
mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de
Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só
com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma
aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o
menino examinando-a.

— Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.

Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta
do apartamento.

Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa
espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o
ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo
e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher
e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina!
chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo.
Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e
seu filho na calçada.

Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de
súbito pondo-se em marcha.

Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança?
pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança
e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem
adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por
que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida
e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar,
pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos
da criança voavam…

O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase
cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava
a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu
alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”,
pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!”
Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe
esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem.
Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante
desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a
responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia
ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho
compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém
saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”,
pensou com cólera, “a criança é inocente!”
Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.

“Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora
sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe.
No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua
mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis
bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera.
Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação
de um marido moço e cheio de futuro – deprezava-a também, com
aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se.
Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso.
E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem.
Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente,
como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram
tão tranqüilas. Às vezes ele procurava humilhá-la,
entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava
ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia
que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se
habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já
agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações
pacíficas, e aquelas conversas em voz tranqüila que faziam a atmosfera
do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às
vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De
onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele
haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranqüilos que,
se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase
irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo,
não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vívido
desde sempre.

Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com
o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha.
Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão
com ela. E ela conseguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera
sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas
inquietava-se.

A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre
os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça
de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia
cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando
Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria
no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador
não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não
pararia um instante.

— “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem.
Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as
ondas nos rochedos do Arpoador.

Fonte: www.releituras.com

Os Laços de Família (Resumo)

Publicado em 1960, Laços de família é um dos pontos
máximos da prosa de Clarice Lispector, talvez o supra-sumo de seus
contos. As narrativas dessa obra usam constantemente o fluxo de consciência,
por meio do qual conhecemos o universo mais íntimo das personagens.
É um expediente que autoriza sua literatura a ser chamada ora de psicológica,
ora de introspectiva.

Suas personagens são sempre flagradas no momento em que, a partir
do cotidiano banal, alcançam o lado misterioso, inusitado, diferente
da existência humana, mesmo que não consigam entendê-lo.
No fim, acabamos nos deparando com histórias de exteriorização
do oculto, em que o protagonista termina buscando, nos elementos exteriores,
o seu interior. Ou seja, a busca da identidade passa pela busca do outro,
seja humano, animal ou objeto.

O primeiro conto é Devaneio e embriaguez de uma rapariga, que chama
a atenção pelo virtuosismo da autora de reproduzir com fidelidade
as expressões típicas de Portugal (lusitanismos) no fluxo de
consciência da protagonista, de fato portuguesa. Essa personagem está
entediada com seu papel de esposa e mãe de família, chegando
a relaxar em suas tarefas de tal forma que, presa à cama, o marido
pensa que está adoentada. É o tédio que se instala.

Uma mudança ocorre quando ela e o marido vão jantar com um
rico negociante. A protagonista embebeda-se, o que lhe abre caminho para a
explosão de vida, longe da mesmice do cotidiano. Fica sempre na vertigem
da saída de seus limites, algo até próximo do vexame,
mas sente-se segura por ser amparada pela presença de seu marido.

Sua felicidade chega a ser comprometida com a chegada no restaurante de uma
loira, dona de um padrão de beleza mais em voga na sociedade. A humilhação
parece ficar consagrada pelo fato de a nova figura portar chapéu, ao
contrário da portuguesa.

O jogo é virado quando a portuguesa percebe, ao olhar para a cintura
fina da moça, que esta estaria impossibilitada de parir. Conclui: bonita,
mas ineficiente no que seria sua função feminina. Isso talvez
explique a comparação que a protagonista faz entre si e uma
vaca: leite, maternidade, vida.

O resto do conto dedica-se ao triunfo da portuguesa, em meio a uma náusea
provocada pela bebedeira, que lhe faz sentir o corpo agigantado. Atinge, aí,
sua epifania. Sente-se bem. É esposa e mãe de família.
Em meio à sensação de que o leite está estourando
em seu seio, determina que arrumará sua casa, colocará seu lar
nos eixos. Assume majestosamente o seu papel feminino.

O segundo conto é Amor, cuja protagonista é outra dona de casa,
que passa sua vida cuidando do lar e da família, como uma maneira de
ocupar o tempo e fugir de si mesma. Nota-se, pois, que não está
feliz.
Numa tarde, enquanto todos estavam ausentes, resolve fazer compras. No caminho
de volta, no bonde, uma cena inusitada ocorre: vê um cego mascando chiclete.
Esse ato maquinal feito na escuridão talvez possa ser comparado ao
estilo de vida da protagonista. Com certeza, foi um detonador de desequilíbrio
na existência insossa da personagem, o que fica simbolizado no tranco
que o bonde dá, provocando a queda de suas compras.

Tão atrapalhada a personagem fica, que desce no ponto errado. Dirige-se
ao Jardim Botânico. É o momento e o lugar de sua epifania. Diante
das árvores, sua emoção é muito grande. Esses
vegetais davam frutos, mas também eram sugados por parasitas, o que
lhe deu um incômodo nojo (seria uma metáfora de sua condição
feminina?).

Perde tanto a noção do tempo que, quando se lembra de que tinha
uma família para cuidar, descobre que o parque estava fechado com ela
dentro. Enquanto se esforça para encontrar alguém que lhe permitisse
a saída, realiza uma inversão de valores. Se antes achava anormal,
loucura um cego mascando chiclete, agora é o seu próprio estilo
de vida, de dona de casa, mergulhado em rotinas domésticas, que se
torna uma loucura.
Consegue voltar, dedicando-se ao seu marido e aos seus filhos. Ama-os, mas
agora de uma forma incomodante; ama-os sentindo até nojo.

O terceiro conto, Uma galinha, pode ser resumido na seguinte indagação
do narrador: “Que é que havia nas suas vísceras que fazia
dela um ser?”. É a história de uma galinha que foi comprada
para servir de refeição a uma família, mas que consegue
fugir num vôo prodigioso e desajeitado. É a luta por vida, mesmo
que numa existência da forma mais instintiva.

No entanto, é perseguida pelo chefe da família, numa pândega
corrida pelos telhados da vizinhança, até ser agarrada. De volta
ao lar opressor, no meio do estresse misteriosamente a ave bota um ovo. Mais
uma vez a imagem da feminilidade associada à maternidade. Tal ato mostra-se
tão sagrado, pois que à véspera da morte ela dá
vida, que acaba sendo poupada, tornando-se o xodó da casa.

O tempo passa, e com ele talvez todo o aspecto divino de sua feminilidade.
Um dia acaba por servir de refeição.

O quarto conto é A imitação da rosa. Laura, sua protagonista
(outra dona de casa), é extremamente perfeccionista. É tão
metódica que arruma a casa e a si muito tempo antes do compromisso
que tem à noite, só para estar disponível para ajudar
o seu marido a se trocar de roupa.

O clímax surge quando vê um buquê de rosas, algo tão
comum, que pareceu naquele momento inusitado. É uma metáfora
da feminilidade e da perfeição. Quase uma representação
de Laura, que só não é completamente perfeita no seu
papel feminino porque não tem filhos.

Sente a tentação de mandar as flores para sua amiga Carlota,
que lhe é exatamente o oposto no quesito perfeição. Mas
por que dar algo que é o melhor de si? Por que não ficar elas?
Não teria mais direito? Até que conclui que seria coerente com
seu senso de perfeição enviá-las.

O quinto conto, Feliz aniversário, é sobre uma festa em comemoração
aos 89 anos de D. Anita. Toda a família reúne-se, todos ali
saídos, gerados da matriarca. No entanto, esses laços de família
são apenas formais, pois o grupo está presente apenas por obrigação.
Não há mais emotividade em relação à velha,
muito menos entre si. Tudo é artificial, forçado. D. Anita percebe
que todos ali lhe são alheios, não parecem terem saído
dela. É quando sente nojo. Em meio à festinha, cospe. Um ato
escandaloso, mas que acaba sendo desculpado em nome da idade da senhora.

Nesse momento D. Anita triunfa sobre sua família. Um dos seus filhos,
empolgado em fazer discursos, no final da festa despede-se com um “Até
o ano que vem”. Era um indicativo de que, apesar da mediocridade de sua
família, D. Anita os superava, estava acima deles.

A menor mulher do mundo, o sexto conto, é carregado de aspectos líricos
e simbólicos. Narra a descoberta da menor integrante de uma isolada
e frágil tribo africana de pigmeus, os Likoualas. É o elemento
mais pária dos párias. Assemelha-se à galinha do conto
Uma galinha, ou a Macabéa, de A hora da estrela. E o mais inusitado
é que Pequena Flor (este é o nome que ela recebeu) está
grávida. Carrega dentro de si o mais precioso segredo da feminilidade:
a maternidade.

A notícia da descoberta desse minúsculo ser humano espalha-se
pelos jornais, causando as mais diferentes reações em seus leitores,
desde a alienação, até o assombro, passando pelo lirismo,
revolta e encanto. Mas destaca-se o mal-estar do cientista-explorador que
a descobriu, pois sabe que o menor dos seres carrega uma vida, e a sagacidade
de uma senhora, que encerra o conto quando fecha o jornal que estava lendo
é diz: “Deus sabe o que faz”. Dentro de uma cena banal, o
mistério da vida.

O sétimo conto é O jantar. É o primeiro a apresentar
o foco narrativo centrado numa figura masculina, que se põe a observar
com detalhismo incrível um outro homem jantando. Na realidade, não
é uma simples janta, mas um espetáculo do vigor primitivo diante
do mais primordial ato da existência: alimentar-se. A metáfora
para isso está na mão pesada e cabeluda do faminto manipulando
os diferentes manjares.

Todo esse show esfria quando o degustador pede a sobremesa, que é
classificada como medíocre em comparação a toda a encenação
anterior, e principalmente quando põe óculos para pagar a conta.
Nesse momento o observado – talvez longe do aspecto mais primitivo – parece
ter envelhecido.

O oitavo conto, Preciosidade, tematiza delicadamente a iniciação
feminina. Sua protagonista é uma menina que vivia a constante tensão
de sempre se guardar. Sabia que possuía uma preciosidade, pois é
uma mulher, mas nem sequer pensava no potencial que ela permitia. Temia a
possibilidade dos homens por onde ela passava fazerem ou mesmo falarem alguma
coisa proibida. Vivia, pois, na tensão da possibilidade de um ataque
à sua feminilidade.

Flagramos a menina no início de um dia, preparando-se para ir à
escola. Notamos o seu caráter desleixado, pois, como tem de sair cedinho,
ninguém a vê e ninguém a fiscaliza. Por isso, não
tem que se preocupar em tomar banho.

Uma reviravolta acontece. Na escuridão do caminho, perde sua preciosidade:
é tocada. A cena transborda um mutismo tenso, não só
da vítima, mas também dos agressores. Tanto que estes fogem,
deixando-a por muito tempo paralisada, sem noção do tempo. Quando
volta a si, retoma seu caminho para a escola, chegando na terceira aula.

O fato de ter sido tocada indica ter sido desejada. Perdeu uma preciosidade,
que de certa forma era uma virgindade, mas acaba ganhando outra. Nasce mulher,
com desejos. Por isso pede a seus pais sapatos novos. Quer ser bonita, quer
aproveitar a vida, quer ser amada.

O nono conto, Os laços de família, inicia-se com a despedida
de Severina, que havia passado alguns dias na casa de sua filha, Catarina.
Enxerga-se aqui a riqueza das relações familiares, apesar das
comuns faltas de jeito, dos interditos, do silêncio. O marido de Catarina,
engenheiro (típico representante do pragmático, do certinho,
do ajustado), não se relacionava bem com a sogra, o que parecia ser
recíproco, mesmo que os conflitos se mostrassem surdos. No entanto,
na despedida, apresenta-se de ambos os lados uma cordialidade surpreendente.

Mais interessante é a relação entre mãe e filha.
Querem se despedir, mas não conseguem usar as palavras na adequada
sinceridade. É difícil para Catarina dizer para a mãe
que a ama. A mesma dificuldade deve estar do lado de Severina. Dessa forma,
tudo cai na formalidade dos laços de família, escondendo outros
laços mais fortes.

Voltando para casa, depois da partida da mãe, Catarina pensa em seu
filho, qualificado por Severina como uma criança nervosa. Encontra-o
ensimesmado, introspectivo, absorto. Dá trabalho libertá-lo
de seu mundo, chamar a sua atenção. Mas consegue. Resolve sair
com ele para um passeio, o que deixa o seu marido apreensivo. Misteriosamente
ele sabe da explosão de sentimento, de amor que a esposa está
tendo e que parece querer transferi-lo para o seu filho. Talvez por isso ele
exclame: “Catarina, esta criança ainda é inocente!”.
Mas sua frase cai no vazio. Está sozinho. Da janela do seu apartamento,
vê sua mulher e seu filho passeando. Intui o laço misterioso
que há entre eles. Sente-se mais solitário, por estar excluído
dessa ligação.

O décimo conto, Começos de uma fortuna, é diferente
do conjunto, pois apresenta uma personagem masculina, um adolescente. Trata-se
de Artur, alguém que luta por atenção, o que o faz adorar
trocas. Como numa psicanálise, o narrador entra na gênese desse
sentimento. Quando bebê, o menino adorava que as pessoas o abraçassem,
o acariciassem, apertassem sua bochecha. Mas estranhava que logo se cansavam
e o largavam, tão cheio de vida, tão carente, tão sedento
por mais atenção. Paravam, saciavam-se, mas ele não,
sempre ficando no vácuo.

A dúvida é se as relações baseadas na troca de
fato são autênticas. Parece ser esse o problema que atormenta
o garoto. Quer ir ao cinema com uma menina, mas não tem dinheiro para
tanto. Pede dinheiro para os pais (belamente duros e afetivos), no que é
negado. Há a possibilidade, que se concretiza, de conseguir emprestado
com um amigo, o que significa contrair dívidas. E não pára
de pensar em fazer fortuna, além de ficar na dúvida: não
sabe se foi explorado pela menina. Riqueza, dívida, exploração,
troca, afeto, todos são elementos que se misturam na mente de um adolescente
que ainda é o bebê carente pedindo mais atenção,
mais carinho.

O próximo conto é Mistério em São Cristóvão,
denso de simbologia. Em uma noite tranqüila de maio, uma família
composta de avó, mãe, pai, crianças e uma filha aproveitam
a abastança a que atingiram. A única insatisfação
está no coração da moça.

Quando de madrugada todos foram dormir, surgem três homens fantasiados
para um baile. Um galo, um touro (o mais gordo) e um cavaleiro. Passam diante
da casa abastada e admiram o jardim. Invadem-no, para colher um jacinto, curiosamente
a flor que chega a representar os prazeres da existência. A idéia
de equilíbrio, comodismo, abastança, é oposta à
de intensidade da vida. Viver é de fato um desequilíbrio.

Mas a flor não chega a ser de fato colhida. Fica pendurada no ramo
quebrado. É que no momento em que ia ser colhida, o homem-touro nota
que estão sendo observados, justo pela moça.

O lar desequilibra-se. Terror. Medo. Todos acordam, mas não conseguem
ver o motivo do desassossego da moça – os rapazes haviam fugido, entregando-se
desajeitadamente à festa que os esperava. A ex-abastada família
chega a duvidar que alguém tivesse estado lá, mas obtém
a certeza quando vê o talo quebrado da flor de jacinto. A partir desse
momento, todos se esforçam para reconquistar o equilíbrio em
suas vidas. Menos a moça, agora dotada de fios de cabelo branco.

O penúltimo conto é O crime do professor de Matemática,
dotado de elementos religiosos como missa, pecado, juízo final. Seu
protagonista, um professor de Matemática (símbolo da frieza,
precisão, objetividade) vai até a parte mais alta da cidade
enterrar um cachorro. É uma forma de compensar o seu cão de
estimação que havia abandonado. O que o animal havia feito de
errado? Nada. Apenas tinha feito do pedagogo o homem que seria seu dono. Ser
humano era uma tarefa que incomodava, assustava o mestre, principalmente quando
o bicho encarava, não cobrando nada, apenas humanidade.

No final, o homem desenterra o cão e se esquece do crime que havia
cometido (abandonar o cão ou não ter coragem de ser humano?).
Desce a montanha (como se estivesse em posição mais elevada,
mais consciente de suas falhas e caísse na alienação?)
e volta para o “seio de sua família”. Mergulha, provavelmente,
na apatia de sua existência.

O último conto é O búfalo. Nele a protagonista, vinda
de um fracasso amoroso de não ser correspondida, quer odiar. É
provavelmente um mecanismo de defesa, de acordo com uma frase que se fixa
em sua mente: “Onde aprender a odiar para não morrer de amor?”
Dirige-se, portanto, ao zoológico, na esperança de que, em contato
com formas tão primitivas, conseguisse tão destrutivo sentimento.

No entanto, não encontra esse sentimento, muito menos atenção.
Sua experiência parece fadada ao fracasso. Até que passeia na
montanha russa. Sentir-se jogada em todas as direções é
um solavanco semelhante ao vivenciado pela personagem de Amor. É um
desequilíbrio que abre caminho para experiências superiores.
Até que se depara com o torso volumoso de um búfalo, algo próximo
da simbologia sexual masculina. A protagonista parece desejá-lo, mas
momentaneamente cai na mesma armadilha do amar: é ignorada, pois o
animal lhe dá as costas.

No entanto, em pouco tempo, como que instintiva e intuitivamente, o animal
sente a presença da mulher. Aproxima-se dela e a encara. É um
contato fortíssimo, em que ela sente a explosão de algo como
um misto de ódio e amor, da forma mais primitiva e, talvez por isso,
mais intensa. É a sua epifania, que se assemelha a um êxtase
sexual. O conto termina com o desmaio da protagonista, que tem em seus últimos
momentos de consciência as idéias do céu e do búfalo
misturando-se.

Preciosidade

“De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar. O
que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos.

Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão
quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação.
E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava,
não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso como
uma jóia. Ela.

Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria que pegar um
ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. O que lhe daria uma hora.
De devaneio agudo como um crime. O vento da manhã violentando a janela
e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então
ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo.”

Uma Galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove
horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a
escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam
dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar
o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço.
Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito —
e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo
desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado,
hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com
urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé.
O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente
algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção
de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos
alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com
urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa.
De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco
afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por
si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça.
O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima
que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada.
Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto
o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento.
E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um
galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela
um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria
contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo
crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas
galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual
como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a.
Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma
asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa
violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs
um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida
que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada.
Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando
os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava
e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo.
Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém
conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e
saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs
um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.
Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre,
nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria
nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já
há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém
acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa
brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha
na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada,
deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com
a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe
sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se
lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha
tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a
cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de
apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga —
e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça,
pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se
rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já
mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se
recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado
às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais
contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça
se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho
— era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo
dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

A Explicação Inútil

“Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi
um conto ou um romance. Depois que se despegam de mim, também eu os
estranho. Não se trata de “transe”, mas a concentração
no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido
o escrever propriamente dito. Alguma coisa, porém, posso tentar reconstituir,
se é que importa, e se responde ao que me foi perguntado.

O que me lembro do conto “Feliz Aniversário”, por exemplo,
é da impressão de uma festa que não foi diferente de
outras de aniversário; mas aquele dia era um dia pesado de verão,
e acho até que nem pus a idéia de verão no conto. Tive
uma “impressão”, de onde resultaram algumas linhas vagas,
anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se sente.”

A Mudez Cantada, a Mudez Dançada

“Quase não era canto, no sentido em que este é aproveitamento
musical da voz. Quase não era voz, no sentido em que esta tende a dizer
palavras. É antes da voz ainda, é fôlego. Uma palavra
ou outra às vezes escapava, revelando de que era feita aquela mudez
cantada: de história de viver, amar, e morrer. Essas três palavras
não ditas eram interrompidas por lamentos e modulações.
Modulações de fôlego, primeiro estágio de voz que
capta o sofrimento no seu primeiro estágio de gemido, e capta a alegria
no seu primeiro estágio de gemido. E de grito. E mais outro grito,
este de alegria por se ter gritado. Em torno a assistência aconchegava-se
escura e suja. Depois de uma das modulações que de tão
prolongada morre em suspiro, o grupo esgotado como cantor murmura um “olé”
em amém, última brasa.

Mas há também o canto impaciente que a voz apenas não
exprime: então um sapateado nervoso e firme o entrecorta, o “olé”
que interrompe a cada instante não é mais amém, é
incitamento, é touro negro.”

A Vingança e a Reconciliação Penosa

“O forasteiro, tendo diante dos olhos essa beleza perfeita, não
saberá talvez elucidar o seu mistério: a cena suíça
tem um excesso de evidência de beleza. Após a primeira sensação
de facilidade, segue-se a idéia do indevassável. Cartão-postal,
sim. Mas aos poucos a imobilidade e o equilíbrio começam a inquietar.

Olhe-se para as montanhas ao longe, e é o tonto e tranqüilo espaço.
Mas na pequena cidade alta, de casas e igrejas apertadas por muros que já
tombaram, há uma concentração íntima e severa.
Na cidade de torres, becos, ogivas e silêncio, o Demônio terá
sido expulso para além dos Alpes. Sem o Demônio, restou uma paz
perturbadora, marcas de uma vida que se formou com dureza, o punho da Reforma,
sinais de conquista lenta, aperfeiçoamento obstinado e penoso.”

Berna

“O forasteiro, tendo diante dos olhos essa beleza perfeita, não
saberá talvez elucidar o seu mistério: a cena suíça
tem um excesso de evidência de beleza. Após a primeira sensação
de facilidade, segue-se a idéia do indevassável. Cartão-postal,
sim. Mas aos poucos a imobilidade e o equilíbrio começam a inquietar.

Olhe-se para as montanhas ao longe, e é o tonto e tranqüilo espaço.
Mas na pequena cidade alta, de casas e igrejas apertadas por muros que já
tombaram, há uma concentração íntima e severa.
Na cidade de torres, becos, ogivas e silêncio, o Demônio terá
sido expulso para além dos Alpes. Sem o Demônio, restou uma paz
perturbadora, marcas de uma vida que se formou com dureza, o punho da Reforma,
sinais de conquista lenta, aperfeiçoamento obstinado e penoso.”

Desenhando um Menino

“Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar
que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance.
Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá
o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil:
não consigo entender coisa apenas atual. Totalmente atual. O que conheço
dele é a sua situação: o menino é aquele em quem
acabaram de nascer os primeiros dentes, e é o mesmo que será
médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado
no chão, de um real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender.
Tinha mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de
construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade
absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força.
Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo, mas, para a própria
proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente
iniciar.”

Discurso de Inauguração

“…o futuro que estamos aqui inaugurando é uma linha metálica.
É alguma coisa que de propósito é destituída.
De tudo o que vivemos só ficará esta linha. Ela é o resultado
do cálculo matemático da insegurança: quanto mais depurada,
menos risco ela correrá, a linha metálica não corre o
risco da linha de carne. Só a linha metálica não dará
aos abutres do que comer. A nossa linha metálica não tem possibilidade
de putrefação. É uma linha que se garante eterna. Nós,
o que aqui estamos neste momento, a iniciamos com o propósito de que
seja eterna. Queremos uma linha metálica porque do princípio
ao fim ela é do mesmo metal. Não sabemos com muita certeza se
essa linha será forte bastante para salvar, mas é forte para
durar. Para durar por si só, como criação nossa. Ainda
não se apurou se a linha vergará ao peso da primeira alma que
nela se pendure, como sobre os abismos do inferno.”

Escrevendo

“Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer
escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal
de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. Escrevi procurando
com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só
depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Meu
receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em
me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a
impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria
sem convulsão o que ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma
questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência
criando amor.”

Lembrança de um Verão Difícil

“A insônia levitava a cidade mal iluminada. Não havia porta
fechada e toda janela tinha sua quente luz. Em torno dos lampiões as
larvas voavam. À margem do rio as mesas, as poucas conversas cansadas,
crianças adormecidas no colo. A desperta leveza da noite não
nos deixava ir dormir; como andarilhos, devagar andávamos. Fazíamos
parte do velório amarelado dos lampiões e das larvas aladas,
e de redondas alturas suspensas, e da vigília de toda uma abóbada
celeste. Fazíamos parte da grande espera que, por si mesma e sem si
mesma, é que o universo inteiro faz. Desde as outras enormes larvas
que haviam outrora bebido lentamente água daquele rio.”

Mal-estar de um anjo

“Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora
apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego era na rua
a tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador?
Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com
água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de
lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas
invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde
se juntasse bastante de água começava a atuar a secreta influência
da Lua: já havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor
ancestral gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio
mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse
vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca secarão, e sei
que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já selecionaram
o melhor casal da minha espécie.”

Mineirinho

“É, suponho que é em mim, como um dos representantes de
nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora.
E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho
do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o
assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar
de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações
contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos
irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta
compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade
diante de não poder esquecer que Mineirinho era preguiçoso e
já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo.
A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que
se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu
fria: “O que eu sinto não serve para dizer. Quem não sabe
que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já
entrou no céu.” Respondi-lhe que “mais do que muita gente
que não matou”.

Noite de fevereiro

“Juro, acredita em mim – a sala de visitas estava escura – mas a música
chamou para o centro da sala – a sala se escureceu toda dentro da escuridão
– eu estava nas trevas – senti que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me
no medo – como já me agasalhei de ti em ti mesmo – que foi que me encontrei?
– nada senão que a sala escura enchia-se da claridade que se adivinha
no mais escuro – e que eu tremia no centro dessa difícil luz – acredita
em mim embora eu não possa explicar – houve alguma coisa perfeita e
graciosa – como se eu nunca tivesse visto uma flor – ou como se eu fosse a
flor – ”

Notas sobre Dança Hindu

“O dançarino faz gestos hieráticos, quadrados, e pára.
É que parar por vários instantes também faz parte. É
a dança do estatelamento: os movimentos param as coisas. O dançarino
passa de uma imobilidade a outra, dando-me tempo para a estupefação.
E muitas vezes sua imobilidade súbita é a ressonância
do salto anterior: o ar parado ainda contém todo o tremor do gesto.
Ele agora está inteiramente parado. Existir se torna sagrado como se
nós fossemos apenas o executante da vida.

Esta é a dança do homem, que tem a ciência dos números
e das alturas, e a quem uma veemência maior é permitida.

Quanto à mulher hindu, ela não se espanta nem me espanta. Seus
movimentos são tão continuados e envolventes como a imobilidade
corredia de um rio.”

O Chá

“As imaginações que assustam. Pensei numa festa – sem
bebida, sem comida, festa só de olhar. Até as cadeiras alugadas
e trazidas para um terceiro andar vazio da Rua da Alfândega, este seria
um bom lugar. Para essa festa eu convidaria todos os amigos e amigas que tive
e não tenho mais. Só eles, sem nem sequer os entre-amigos mútuos.
Pessoas que vivi, pessoas que me viveram. Mas como é que se volta da
Rua da Alfândega ao anoitecer? As calçadas estariam secas e duras,
eu sei.

Preferi outra imaginação. Começou misturando carinho,
gratidão, raiva; só depois é que se desdobraram duas
asas de morcego, como o que vem de longe e vai chegando muito perto, mas também
brilhavam as asas. Seria um chá – domingo, Rua do Lavradio – que eu
oferecia a todas as empregadas que já tive na vida.”

Os espelhos

“O que é um espelho? Não existe a palavra espelho – só
espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. – Em algum
lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são preciso
muitos para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um
reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em
mensagem intensa e insistente ad infinitum, liquidez em que se pode mergulhar
a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, reflexos
dessa dura água. – O que é um espelho? Como a bola de cristal
dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo
de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios.
– Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para
sempre sem parar: pois espelho é o espaço mais profundo que
existe.”

Perfil de Seres Eleitos

“Era um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido, fora
se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes, enxergando o que podia
e apalpando com as mãos úmidas o que não via, o ser fora
escolhendo e por isso indiretamente se escolhia. Aos poucos se juntara para
ser. Separava, separava. Em relativa liberdade, se se descontasse o furtivo
determinismo que agira discreto sem se dar um nome. Descontado esse furtivo
determinismo, o ser se escolhia livre. Guiava-o a vontade de descobrir o próprio
determinismo, e segui-lo com esforço, pois a linha verdadeira é
muito apagada, as outras são mais visíveis. Separava, separava.
Separava o chamado joio do trigo, e o melhor, o melhor se comia. Às
vezes comia o pior. A escolha difícil era comer o pior. Separava perigos
do grande perigo, e era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava.
Só para pensar com susto o peso das coisas. Afastava de si as verdades
menores que terminou não chegando a conhecer. Queria as verdades difíceis
de suportar. Por ignorar as verdades menores, o ser parecia rodeado de mistério;
por ser ignorante, era um ser misterioso.”

Por não estarem distraídos

“Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como
quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração
se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que
estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria
e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque
– a sede é a graça, mas as águas são uma beleza
de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando
um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem
juntos!”

Um Amor Conquistado

“Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos
conversando quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita.
Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com o
seu tranqüilo cachorro puxado pela coleira. Só que não
era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem
com seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado
de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro – poderia, é verdade,
ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou
a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser
quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi. Enquanto
isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão
nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador.
Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público
com o seu bicho.”

Um Homem Espanhol

“Não era Pepe apenas, não era guia apenas. No calor do
verão, o rosto intumescido pela bebida que mal se evaporava era substituída
por outra, o homem parou no meio de uma ruela branca e sombria de Córdoba,
olhou-nos e disse bem lento para que a frase penetrasse a nossa lentidão:

– Ustedes no tienen um guía. Ustedes tienem – Pepe El Guía!

Paramos, atentos ao que deveria ser uma coincidência singular. Qual?
Pepe El Guía imobilizara-se com os olhos úmidos de emoção,
vinho, calor e desespero. Devia ser extraordinário e pesado ser Pepe
El Guía. Ainda parado, o rosto escorrendo suor, com a roupa escura
da elegância a que era obrigado, ele esperava que através de
seu próprio silêncio intenso compreendêssemos. Olhávamos
com os olhos franzidos pelo sol. Até que a fraca brisa passou por nós.”

Um pintor

“A surpresa de ver que o pintor começa por não recear
inclusive a simetria. É preciso experiência ou coragem para revalorizá-la,
quando facilmente se pode imitar o “falso assimétrica”, uma
das originalidades mais comuns. A simetria é concentrada, concentrada.
Mas não dogmática. É também hesitante, como a
dos que passaram pela esperança de que duas assimetrias encontrar-se-ão
na simetria. Esta como solução terceira: a síntese. Daí
talvez o ar despojado, a delicadeza de coisa vivida e depois revivida, e não
um certo arrojo dos que não sabem. Não é propriamente
tranqüilidade o que está ali. Há uma dura luta de coisa
que apesar de corrida se mantém de pé, e nas cores mais densas
há uma lividez daquilo que mesmo torto está de pé. Suas
cruzes são entortadas por séculos de mortificação.
São altares? Pelo menos o silêncio de altar. O silêncio
de portais. O esverdeamento toma um tom do que estivesse entre vida e morte,
uma intensidade de crepúsculo.”

Uma ira

“- “Esta” – se disse o homem ajoelhado como antes de ir para
a guerra – “esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo
o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma, ou
ao que estou com voracidade tomando, senão o de paixão. O que
é isso que é tão violento que me faz pedir clemência
a mim mesmo? É a vontade de destruir, como se para este momento de
destruir eu tivesse nascido. Momento que virá ou não, a minha
escolha depende de eu poder ou não me ouvir. Deus ouve, mas eu me ouvirei?
A força da destruição ainda se contém um instante
em mim. Não posso destruir ninguém ou nada, pois a piedade me
é tão forte como a ira; então eu quero destruir a mim,
que sou fonte dessa paixão. Não quero pedir a Deus que me aplaque,
amo tato a Deus que tenho medo de tocar nele com meu pedido, meu pedido queima,
minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia
destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim.”

Uma Italiana na Suiça

“Rosa perdeu os pais quando era pequena. Os irmãos se espalharam
pelo mundo e ela entrou para o orfanato de um convento. Lá levava uma
vida sóbria e dura com as outras crianças. Durante o inverno
o grande casarão permanecia frio, e os trabalhos não se interrompiam.
Ela lavava roupa, varria os quartos, costurava. Enquanto isso as estações
se sucediam. Com a cabeça raspada e o longo vestido de fazenda grosseira,
às vezes, com a vassoura na mão, espiava pelos vidros da janela.
Outono era a estação de que mais gostava porque não era
preciso sair para vê-lo: atrás dos vidros as folhas caíam
amareladas no pátio, e isso era o outono.

Nesse convento suíço, quando um homem pisava no patamar, lavava-se
o chão e queimava-se álcool em cima. Depois vinha de novo o
inverno, e as mãos se avermelhavam, abriam-se feridas, a cama gelada
impossibilitava o sono, e criava sonhos acordados. No dormitório escuro,
com os olhos abertos sobre o lençol, ela espiava os pequenos pensamentos
piscarem.”

A Hora da Estrela (Resumo)

Último volume publicado pela escritora, data de 1977, ano em que morreu.
De certa forma condensa as experiências até então realizadas
pela autora, ao revolver sua principal preocupação – o ato de
escrever.

Narrado em 1º pessoa por Rodrigo S. M., escritor que pretende contar,
sem requintes e brilho de estrelas, a história de uma nordestina:

Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos
à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra
meus hábitos uma história com começo, meio e gran finale
seguido de silêncio e de chuva caindo.

Através das constantes interferências do narrador, o leitor
vai conhecendo quão difícil é o relacionamento dele (como
autor) com o ato da escritura e, ao mesmo tempo, desvenda seu envolvimento
com a personagem que vai gradativamente compondo. Nesse sentido pode-se perceber
que a composição da obra serve para amarrar dois pontos fundamentais
da ficção: a criação da personagem e a psicologia
da composição. Outro ponto a ser destacado é o da linguagem
que, na obra adquire uma presença constante, porque é motivo
de insistentes investigações por parte do narrador, chegando
às raias da personificação, uma vez que a linguagem também
enfrenta a “crise” da criação.

Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê
o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história
será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um
sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como
todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço
adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios
que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra
é ação, concordais? Mas eu não vou enfeitar a
palavra, pois se eu tocar no pão da moça se tornará em
ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo,
morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada
e vaga existência.

O narrador passa a mergulhar no problema da comunicação, na
esperança de poder traduzir com palavras a historia e combiná-la
com a discussão sobre a palavra e a criação.

Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem
o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche
de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém
a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém.
Aliás – descubro eu agora – também eu não faço
a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor,
sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.

O posicionamento do autor na investigação escrita combinado
com a preocupação de se auto-analisar traduz-se no profundo
debate entre a finalidade da criação e o veículo da comunicação
que é a linguagem. Por fim, ao investigar fragmentos da vida da personagem,
isto é, ao confeccionar a narrativa propriamente dita, passando pela
investigação dos fatos, a linguagem passa a exercer seus domínios
na vida social, indicando, dentre os processos de criação, a
interação do elemento bruto (palavra), da lapidação
artística (autor) e da transposição social (vida da personagem).

Nesse sentido, é possível verificar o entrecruzamento dessas
três investigações, todas elas modeladas a partir de aprofundamento
pscicofilosóficos que desencadeiam a tessitura da trama do volume.
O leitor que esperar um relato linear ou uma história romanesca, dificilmente
conseguirá satisfazer seus anseios, pois o volume não é
um relato sentimental, nem procura dourar a realidade:

(…) nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua
própria natureza desprezível por todos.

Então, por que ler o volume? De certa forma, sua leitura induz a captar
o sentido mais profundo da linguagem e a tentar, através da forma,
o esboço de um conteúdo. Ler pela necessidade de ler, da mesma
forma que se encontra no escritor a necessidade de escrever:

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei
a escrever. (…)
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo
com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde, no entanto
até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe
escorrer e logo se coagular em cubos de geléia trêmula. Será
essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira
embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos
nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza
de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro
– existe a quem falte o delicado essencial.

Não raro, o processo de produção da linguagem é
associado ao processo de produção musical. A composição
assume o aspecto da música e a nomenclatura torna-se a mesma.

(..) As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam
desiguais, estalactites, rendas, música transfigurada de órgão.
Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura
tendo como contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. (…)

Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado
pelo rufar enfático de um tambor batido por um soldado. No instante
mesmo que eu começar a história – de súbito cessará
o tambor.

O Autor, a personagem, uma história…

O narrador coloca dados sobre a história que pretende contar, intercalando-os
com suas preocupações metalingüísticas. Com poucas
palavras situa a narrativa no presente, mesmo porque, segundo ele, não
há outro tempo possível.

Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a
jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente
é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade
é o estado das coisas neste momento.

A criação, no entanto, não flui com facilidade. Ela
transcorre com esforço descomunal, pois escrever é como “quebrar
rochas”.

Devagar, buscada nas entrelinhas, vai surgindo Macabéa, personagem
nordestina de Alagoas que, por algum motivo desconhecido, vem para o Rio,
“uma cidade toda feita contra ela”. O narrador, identificando-se
com a personagem, envolve-se na narrativa, partilha com sofreguidão
o destino que vai traçando para ela, e, culminando num processo de
puro êxtase de criação, acaba se tornando ele mesmo um
personagem. Faz-se pobre como a personagem, adquire olheiras, não se
permite mais prazeres pequenos como futebol, porque se identifica com a situação
vivida pela nordestina: escrevo por não ter nada a fazer no mundo:
sobrei e na há lugar para mim na terra dos homens.

A apresentação de Macabéa se dá aos poucos, para
que o leitor possa ter tempo para se acostumar com toda a miséria da
personagem:

Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê
com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente
examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-na de “panos”,
diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa
camada de pó branco e se ficava meio coitada era melhor que o pardacento.
Ela era toda um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia
e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto
não sabia como avisar que seu cheiro era murrinhento. E como não
sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela
era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho
de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua,
ela era café frio.

Entre a singela e a asquerosa, Macabéa aparece órfã,
sendo criada por uma tia que morre não sem antes lhe financiar um curso
de datilografia. Com rápidas pinceladas, o autor compõe o quadro
da infância miserável, de educação precária.

Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão
(…)

Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no
sertão de Alagoas. (…) Muito depois fora para Maceió com a
tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de
coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça
(…)

Depois – ignora-se por quê – tinham vindo para o Rio, o inacreditável
Rio de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela, agora
sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças
balconistas das Lojas Americanas.

É como datilógrafa que a jovem sobrevive no Rio. Alimentava-se
mal, cheirava mal, vivia mal. Estava ameaçada de ser despedida do emprego.

Pequenas vaidades a sustentavam, pequenos prazeres serviam para amolecer-lhe
a vida.

(…) o luxo que se dava era tomar um gole de café frio antes de
dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar. (…)

Ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos.
Eram vida. (…)

Seu espaço está circunscrito à Rua do Acre, onde mora,
e à Rua do Lavradio, onde trabalha, perto do porto que espia no movimento
domingueiro.

Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes
de jóias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco.
É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco
é um encontro.

Tinha poucos “luxos”: uma vez por mês ia ao cinema, pintava
de vermelho as unhas das mãos, bebia refrigerante e café, comia
cachorro-quente e às vezes sanduíche de mortadela. Morava em
pensão miserável com quatro Marias no mesmo quarto. Macabéa
, de madrugada, ligava o rádio emprestado e invariavelmente ouvia a
Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura” através
de pequenas informações do tipo almanaque intercaladas com anúncios
comerciais; mesmo porque, a moça adorava e colecionava recortes de
anúncios. O tom monótono da rádio casa-se perfeitamente
com a vida da datilógrafa que passa a se identificar com o locutor
na escassez de atrações, na falta de colorido, na linguagem
desnudada, no vocabulário pequeno. A Rádio Relógio é
tão-somente um traço exterior semelhante ao esboço de
poucas linhas traçado para a personagem.

O mundo inteiro de Macabéa é totalmente fora dos padrões,
convertendo a personagem que está sendo criada num ser totalmente inverossímil
a conviver com um mundo real e devastador. O narrador ao tecer as características
da moça, vai-se distanciando dos fatos que inicialmente constituem
sua preocupação primeira e passa a se identificar cada vez mais
com a personagem, tanto que acaba por receber as pressões que ele mesmo
cria para Macabéa, assumindo para si a morte que se aproxima da personagem.
Passando por lenta metamorfose, o narrador deixa transbordar em si o sofrimento
de sua “cria” que estranhamente principia miúda, cresce e
consegue uma autonomia na narrativa, fazendo o narrador confessar que já
não pode influir no destino da personagem.

(Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram
os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me
cobriria de lepra).

Nestes últimos três dias, sozinho, sem personagens, despersonalizo-me
tiro-me de mim como quem tira uma roupa.

Despersonalizo-me a ponto de adormecer (…)

Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que vontade
de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama dormir.

Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber?

No escritório da datilógrafa também trabalha a oxigenada
Glória, mestiça de “bom vinho português e também
amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido”.
Glória termina por atrair as atenções de Olímpico
de Jesus, nome que ironicamente remete à cultura pagã e à
religiosidade cristã, num contraponto entre gregos e romanos.

Olímpico de Jesus foi um breve-brevíssimo caso de namoro de
Macabéa. Ele é operário, metalúrgico, com canino
de ouro e tem uma louca paixão por discursos, sonhando com dinheiro
e querendo ser deputado por Paranaíba. Passa como uma luz pela idéia
de Macabéa que até ela é alguém, uma datilografa
com namorado metalúrgico, que pode até se casar, embora ambos
tenham problemas de comunicação. Para Olímpico, trocar
Macabéa por Glória foi negócio de ocasião: a oxigenada
tinha família, comida na mesa, pai açougueiro e, para completar,
era loura, oxigenada, mas loura.

Macabéa confessa à colega de trabalho que gostaria de ser Marylin
Monroe e é com uma atriz que se parece na última cena da narrativa,
quando representa seu único e grande papel, ao ser atropelada por um
rico “Mercedes”. Antes de morrer, balbucia uma frase: “Quanto
ao futuro”, pois a cartomante, consultada pouco antes, antecipara-lhe
um futuro em que seria amada por um rico e louro estrangeiro. O abraço
final, que ela mesma se dá ao assumir a posição fetal
para acomodar o corpo, representa a união do amor, da vida a se extinguir
e da morte. A morte dá a Macabéa a oportunidade vital de reconhecer-se
como ser humano consciente, à espera do futuro.

Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música antiga
de palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata macabéa
sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar
o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.

O sangue que Macabéa vomitou saiu de sua boca como o batom dos lábios
vermelhos da estrela de cinema, estrela inatingível, sublime, assemelhando-se
à etérea vida da nordestina, tão breve como um ponto-final.

Fonte: br.geocities.com

Hora da Estrela (Resumo)

Clarice LIspector

Clarice Lispector

Macabéa nasceu em Alagoas, num ambiente de extrema pobreza. Órfã
dos pais desde os dois anos de idade, foi criada por uma tia, única
parenta sua no mundo, tão pobre quanto ela. Dessa tia a menina levou
muitos cascudos na cabeça, forma que empregava a mulher para educar
a sobrinha. Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande
prazer sensual ela que não se casara por nojo – como também
porque achava seu dever.

Destituída de qualquer conforto, totalmente alienada do consumismo
_o único desejo da menina era comer goiabada com queijo, prazer que
quase sempre lhe era negado, por castigo.

A medida que crescia, Macabéa aprendia que “vida é assim:
aperta-se o botão e a vida acende”. Só que ela não
sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa
sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. ( observe
a atualidade da crítica feita pela autora neste trecho ) .Mas uma coisa
descobriu inquieta: já não sabia mais ter tido pai e mãe,
tinha esquecido o sabor. “Ela falava sim, mas era extremamente muda”.

Não se sabe por que as duas vieram para o Rio de Janeiro, quando Macabéa
tinha 19 anos. Um pouco antes de morrer a tia arranjou-lhe emprego de datilógrafa
no escritório de uma empresa de representante de roldanas ( observe
que ironia existe aqui_ o parafuso dispensável vai trabalhar numa empresa
que revende roldanas_ é a engrenagem perfeita!!!)

A moça passou a morar numa vaga de quarto compartilhado com quatro
balconistas das Lojas Americanas. O quarto ficava numa região pouco
nobre da cidade, próximo a prostitutas que serviam a marinheiros.

O chefe da firma, Sr. Raimundo Silveira, um dia lhe avisou com brutalidade
que ia despedi-la porque ela errava demais na datilografia, além de
sujar o papel. Com sua natural humildade ela respondeu se desculpando pelo
aborrecimento causado. Surpreso com a reação, o chefe adiou
a demissão, embora contrariado.

Macabéa tinha um sono superficial porque estava resfriada havia um
ano. Tinha acessos de tosse que sufocava com o travesseiro para não
acordar as colegas de quarto. Às vezes sentia fome antes de dormir
e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio era mastigar
e engolir papel. ( Noto aqui já um traço do realismo fantástico
tão comum aos escritores desta geração de 45 ).

Dessa forma defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos
gastando pouco de sua vida para esta não acabar, (…).

Teria ela a sensação de que não vivia para nada?
Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu?

Assustou-se tanto que parou de pensar. (.. ) O luxo que se dava era tomar
um gole de café frio antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar.
(…) Vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera
de manhã. (…) Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia
na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência
era assexuada.

Quando acordava se sentia culpada sem saber por que, talvez porque o que
é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas
se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias,
amém, amém, amém. Rezava mas sem Deus ela não
sabia quem era Ele e portanto Ele não existia. (…)

Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrinas faiscantes
de jóias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco.
É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e, sofrer um pouco
é um encontro. Domingo ela “acordava mais cedo para ficar mais
tempo sem fazer nada’.

Ela era doída por soldado. “Quando via um, pensava com estremecimento
de prazer: será que ele vai me matar?”

Macabéa tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao
cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos.
Gostava de filme de terror ou de musicais. Tinha predileção
por mulher enforcada ou que levava tiro no coração.

“Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é
que pensava: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. ( retrato
atual e típico da literatura contemporânea _ já neste
livro a autora fez uma referência à rede de varejo Lojas Americanas
e agora também salienta a marca Coca-cola de refrigerantes ). Só
então vestia-se, passava o resto do dia representando com obediência
o papel de ser.

Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia.
Deixava o som bem baixinho na Rádio Relógio, “que dava
hora certa e cultura”. No intervalo entre as “gotas de minutos”,
havia anúncios comerciais. Ela adorava anúncios.

A vida de Macabéa – ela possuía uma vida interior e não
sabia disso – era cheia do vazio que enche a alma dos santos Ela era uma espécie
de santa. “Não sabia que meditava pois ignorava o que quer dizer
a palavra. Mas sua vida era uma longa meditação sobre o nada.
( Meditava enquanto batia à máquina, por isso errava ainda mais).

Contudo a moça tinha seus prazeres: às noites costumava ler
à luz da vela os anúncios que recortava de jornais velhos do
escritório. Gostava especialmente de um anúncio que mostrava
um colorido pote aberto de creme para pele de mulheres. “O creme era
tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo não
seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria, isso sim, às colheradas
no pote mesmo. Faltava gordura ao seu organismo. “Tornava-se com o tempo
apenas matéria vivente em sua forma primária.

Talvez fosse assim para se defender da grande tentação de ser
infeliz de uma vez e ter pena de si. ( Era apenas fina matéria orgânica.
Existia, só isto).

Às vezes, ela sentia enjôo para comer. “Isso vinha desde
pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre.
Perdeu o apetite, só tinha a grande fome. ( Nunca havia jantado ou
almoçado num restaurante. Era de pé mesmo no botequim da esquina).

Macabéa jamais havia ganho presentes. Um dia, viu um livro que o patrão,
dado a literatura, deixara sobre a mesa. “Humilhados e Ofendidos”.
Ficou pensativa. Talvez tivesse se definido pela primeira vez numa classe
social, Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade
ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas
são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?

Um dia em que quis descansar, inventou a mentira.

Nunca se sentiu tão contente. Não devia nada a ninguém
e ninguém lhe devia nada. “Até deu-se ao luxo de ter tédio”.

No dia seguinte, 7 de maio, sob uma forte chuva de final de tarde, encontrou
um namorado. “O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram
como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele
a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos, E a moça, bastou-lhe
vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada com queijo”
( observe como aqui a associação entre o desejo da gula e da
luxúria se complementam )

Ele a convidou para passear. O rapaz era do sertão da Paraíba
e estranhou o nome dela, achando que parecia nome de doença de pele.

Na segunda e na terceira vez em que se encontraram também chovia.
Perdendo a forçada educação que vinha mostrando, o rapaz
disse para ela: “Você também só sabe é mesmo
chover!” “Desculpe”, acrescentou a moça que já
o amava tanto que não sabia como se livrar dele. Numa dessas vezes
é que lhe perguntou seu nome e ficou sabendo ser Olímpico de
Jesus (ele acrescentou Moreira Chaves, mentindo, porque tinha como sobrenome
apenas o nome de Jesus, sobrenome dos que não tem têm pai). Fora
criado por um padrasto.

Ele era operário de uma metalúrgica, transportava o dia inteiro
barras de metal. Conseguia até economizar algum dinheiro; dormia de
graça numa guarita em obras de demolição, por camaradagem
do vigia.

Olímpico gostaria de ser toureiro não tinha pena do touro,
apreciava o sangue. Antes de vir para o Rio, tinha ajuntado economias até
conseguir arrancar um canino perfeito, substituindo-o por um dente de ouro
faiscante. Mantinha a esperança de ser um homem rico, poderoso e até
deputado. Em sua terra fora o que se chama de “cabra safado”, pois
já havia matado um homem de que não gostava, nos cafundós
do sertão, com um canivete.

Nas horas de folga esculpia figuras de santo, mas não as vendia por
achá-las bonitas. Olímpico era macho de briga. Mas fraquejava
em relação a enterros: às vezes ia três vezes por
semana a enterro de desconhecidos, cujos anúncios saíam nos
jornais. (…) Sempre que podia roubava alguma coisa, Matar e roubar davam-lhe
certo “status”. “Vingava-se dos poderosos desenhando caricaturas
de seus retratos nos jornais”.

“As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne
de sol, carne-seca, rapadura e melado, Pois esse era o passado de ambos e
eles esqueciam o amargor da infância. (…) Os dois não sabiam
inventar acontecimentos’, Sentados no banco da praça, “nada
os distinguia do resto do nada. Em seus diálogos curtos e inconsequentes.
Macabéa relatava informações esparsas ouvidas na Rádio
Relógio e Olímpico ou repetia seus sonhos de grandeza ou se
irritava com ela. A única vez em que a moça falou de si própria
na vida foi quando respondeu ao namorado que lhe perguntou se tinha preocupação:
“Não, não tenho nenhuma. Acho que não preciso vencer
na vida”. Estava habituada a se esquecer de si mesma.

Certa vez, para se mostrar forte, Olímpico levantou Macabéa
com um braço só; mas não aguentou por muito tempo. A
moça caiu “de cara na lama, o nariz sangrando”.

Mas era delicada e foi logo dizendo: Não se incomode, foi uma queda
pequena. Ele passou vários dias sem procurá-la. Seu brio fora
atingido. Depois retornou e chegaram até a entrar num açougue:
o cheiro de carne crua a encantava e ele ficava fascinado com a faca amolada
do açougueiro”.

Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico a não
ser quando este lhe pagou um cafezinho pingado “que ela encheu de açúcar
quase a ponto de vomitar mas controlou-se para não fazer vergonha.
O açúcar ela botou muito para aproveitar’.

Certa feita, os dois foram ao zoológico, ‘ela pagando a própria
entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos.

Quando Olímpico viu Glória, a colega de Macabéa. apaixonou-se
por ela. “Glória possuía no sangue um bom vinho português
e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue
africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice.

Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre
pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais
para Olímpico”. ( Repare no nome do personagem_ representa a eterna
loucura humana de alcançar os deuses ).

Além do mais, era carioca, pertencente ao ambicionado clã do
Sul do pais “Glória tinha mãe, pai e comida quente em hora
certa. Isso tornava-a material de primeira qualidade.

Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava
em um açougue. Pelos quadris adivinha-se que seria boa parideira.

Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma seu próprio fim

Olímpico desmanchou o namoro com Macabéa para namorar Glória.
“Diante da cara pouco inexpressiva demais de Macabéa, ele até
que quis lhe dizer alguma gentileza suavizante na hora do adeus para sempre.
E ao se despedir lhe disse. Você, Macabéa, é um cabelo
na sopa. Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi,
mas sou sincero. Você está ofendida? – Não, não,
não! Ah por favor quero Ir embora! Por favor me diga logo adeus! (…
)

A reação dela veio de repente inesperada: pôs-se sem
mais nem menos a rir. Ria por não ter se lembrado de chorar. (… )
Ficaram rindo os dois aí ele teve uma intuição que finalmente
era uma delicadeza perguntou-lhe se ela estava rindo de nervoso Ela parou
de rir e disse muito, muito cansada: Não sei não…”

Macabéa procurou permanecer como se nada tivesse perdido. Não
ficou triste nem desesperada: “ela era crônica”.

No dia seguinte ao final do namoro, ela resolveu se dar uma festa: comprou
sem necessidade um batom novo vermelho bem vivo. “No banheiro da firma
pintou a boca até e até fora dos contornos para que seus lábios
finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe
(mais uma referência ao mundo pop! )

Glória riu-se dela. Você endoidou, criatura?”

“Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não
pensar em nada. Vazia, vazia” Glória lhe perguntou “Por que
é que você me pede tanta aspirina? (… ) – É para eu
não me doer tanto ! – Você se dói? – Eu me dôo o
tempo todo – Aonde? Dentro, não sei explicar. (. ) – Um dia a pílula
te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado,
correndo por ai”

Macabéa rezava indiferentemente e o misterioso Deus dos outros lhe
dava, às vezes, um estado de graça. ‘Feliz, feliz, feliz.
Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador”

Às vezes a graça lhe pegava em pleno escritório. Então
ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até
passar; esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava”

Sua única conexão com o mundo restringiu-se a Glória,
que não era amiga, só colega. Quando mais nova, Macabéa
se conectava com o retrato de Greta Garbo. “Mas o que ela queria mesmo
ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava
em pedestal solitário. Ela queria parecer com Marylin.

O namoro de Olímpico e Glória ia bem. “Glória tinha
um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito
bom nos seus beijos intermináveis com Olímpico” Este não
se arrependeu de ter rompido com Macabéa, pois seu destino era subir
na vida. Glória compensou a colega por ter-lhe roubado o namorado convidando-a
para uma refeição num domingo em sua casa, onde Macabéa
se fartou de chocolate, biscoitos e bolo. No dia seguinte passou mal.

“Dias depois, recebendo o salário, teve a audácia de pela
primeira vez na vida procurar o médico barato indicado por Glória.
(… )

Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medicina era exatamente
o que queria nada. Macabéa estava com começo de tuberculose
pulmonar (mas também ela só comia cachorro quente, tomava café
e coca-cola). O doutor lhe aconselhou comer espaguete e evitar álcool.

Palavras do médico no final da consulta, quando ela demonstrou não
saber o que era espaguete e não entender o que ele queria dizer com
evitar álcool: “Sabe de uma coisa? Vá para os raios que
te partam!” A ninguém, nem a Glória contou acerca da consulta.

A colega havia garantido a Macabéa que ficara com Olímpico
porque não queria desobedecer a cartomante, que era médium.
Talvez por remorso, aconselhou à nordestina: “Por que você
não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?”
E emprestou-lhe dinheiro.

Pela segunda vez, a moça tomou coragem, a pretexto de dor de dente
conseguiu licença para faltar ao serviço. Não lhe foi
difícil descobrir o endereço da gorda e exageradamente gentil
madama Carlota, ex-prostituta, ex-cafetina, atual cartomante bem sucedida,
moradora de apartamento próprio, fã de Jesus, “doidinha
por Ele” que sempre a ajudou.

Mais falando de si mesma do que de sua “cliente”, a cartomante
concluiu: Mas, Macabeazinha. que vida horrível a sua! Que meu amigo
Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!” Resolveu,
então, animar a pobre coitada. “Tenho grandes noticias para lhe
dar:

Sua vida vai mudar completamente! (…) Até seu namorado vai voltar
e propor casamento (…) e seu chefe não vai mais lhe despedir! E tem
mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite
trazido por um homem estrangeiro (…) Ele é alourado e tem olhos azuis
ou verdes ou castanhos ou pretos. (… ) Parece se chamar Hans, e é
ele quem vai se casar com você!

“Num súbito ímpeto de vivo impulso, Macabéa, entre
feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no mosto da madama. (..) Só
então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar.

Saiu da casa da cartomante mudada. “Até para atravessar a rua
ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro”

Ao dar o passo para descer da calçada, Macabéa foi atropelada
por um luxuoso Mercedes amarelo, que fugiu, sem que o motorista prestasse
socorro. Ela bateu na quina do meio-fio com a cabeça, que começou
a sangrar. Tomada por uma espécie de delírio oco, observou que
havia capim na rua. “O Destino tinha escolhido para ela um beco no escuro
e uma sarjeta” como se ela fosse “uma galinha de pescoço
mal cortado que corre espavorida pingando sangue. Só que Macabéa
lutava muda. Então começou levemente a garoar_ Olímpico
tinha razão ela só sabia mesmo era chover!

Os curiosos que se aproximaram nada fizeram “como antes pessoas nada
haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam. o que lhe
dava uma existência”

“Ela se mexeu devagar b acomodou o corpo em posição fetal.
(. ) Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se a um fiapo de consciência
e repetia mentalmente sem cessar eu sou, eu sou. eu sou. Teve uma úmida
felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. (.. )
Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta
a graça a que vós chamais Deus? Sim? Se iria morrer, na morte
passava de virgem a mulher. Então ela pronunciou uma frase que ninguém
entendeu: “Quanto ao futuro.” Vomitou um pouco de sangue’
Estava enfim livre de si e de nós. (…) Viver é um luxo. Pronto,
passou.”

COMENTÁRIO

“A Hora da Estrela” é, basicamente, o relato das fracas
aventuras de uma moça alagoana “numa cidade toda feita contra
ela”:_ o Rio de Janeiro.

Clarice Lispector usa o recurso de criar um narrador-personagem: à
medida que ele nos faz conhecer a protagonista, também conhece sua
própria identidade.

Por que o narrador escreve? Para se compreender. Enquanto eu tiver perguntas
para fazer e não houver resposta continuarei a escrever”. Sua
tarefa é “a procura da palavra no escuro”. Evita tratar da
felicidade: ela “provoca aquela saudade demasiada e lilás- (.)
Eu não quero provocar porque dói.’

O narrador não tem classe social, é um marginalizado “Escrevo
por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar
para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado
e não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre
novidade que é escrever, eu me morreria.-

Macabéa é, portanto. uma invenção do narrador
que com ela se identifica e com ela morre.

Moída-a sobre o destino e a solidão dele mesmo. Cria-a de forma
onisciente (= que tudo sabe) e onipotente ( que tudo pode). Faz da vida dela
uma aprendizagem da morte, pois declara: “A morte que é nesta
história o meu personagem predileto’. Macabéa desejava
ser estrela de cinema, admirava Greta Garbo e Marylin Monroe.

A morte a fez atingir seu objetivo: essa foi a hora da estrela..

De qualquer maneira, e apesar dos pesares, ou apesar do encontro marcado
com o crepúsculo, a moça experimentou a antevisão da
aurora – “a cartomante lhe decretara sentença de vida” e
ela era ‘uma pessoa grávida de futuro”.

Ao ser colhida pelo Mercedes amarelo já havia assumido para sempre
a felicidade impossível, num esforço sobre-humano que consistiu
em mitificar o pesadelo em sonho”. (Eduardo Portella).

Junto ao sangue de sua cabeça, nas pedras do esgoto, estava vivo um
tufo de capim verde.

Macabéa é um substantivo coletivo, “a resistente raça
anã teimosa”, o Nordeste rural na sua difícil contracena
com a engrenagem urbana, a cidade inconquistável. Ela é o grito
no silêncio daqueles que estão marginalizados social e existencialmente.

“A Hora da Estrela’ apresenta dois núcleos de interesse
a história de Macabéa e as reflexões do narrador. E,
pois, um romance do tipo digressivo em que as opiniões do narrador
fazem parte do enredo As páginas iniciais são tomadas pelos
comentários dele sobre a própria narrativa, é um texto
de metalinguagem, isto é, muito preocupado com a investigação
da natureza linguistica do próprio texto.

O narrador assume três formas de presença: monólogo fio
condutor da ação; relato puro e simples: palavras das personagens.

Na verdade, sofrendo de consciência culposa, Clarice Lispector se esconde
na figura do narrador. Ele escreve no estilo que caracteriza a escritora:
a palavra, material básico da narrativa “não pode ser enfeitada
e artisticamente vã, tem que ser apenas ela”.

Sem retórica ( discursos eloquentes) e sem melodramas ( impactos emocionais),
o interior das personagens vai aparecendo e sensibilizando ( é o que
chamamos de epifania ).

A consciência individual passa ao primeiro plano da narração.
revelada de forma simples, profunda e poética.

Embora possa parecer alienada dos problemas sociais, Clarice Lispector neste
livro denuncia todo o contexto social brasileiro e, por extensão, a
injustiça no mundo. Ela apresenta a estrutura interna do ser humano
massacrado. Com este processo, aparentemente de pura introspecção
e de pura fabulação filosófica, ela questiona o mundo
organizado e a cultura dominante, resgatando do preconceito os ofendidos e
humilhados.

Em um de seus escritos ela deixou as seguintes palavras:

“Desde que me conheço o fato social teve em mim importância
maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade
para mim. Muito antes de sentir “arte’, senti a beleza profunda
da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do
fato social: eu queria era “fazer alguma coisa, como se escrever não
fosse fazer. O que não consigo é usar o escrever para isso,
por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema da justiça
é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico
que não consigo me surpreender com ele – e, sem me surpreender não
consigo escrever”.

Sua preocupação com o problema dos oprimidos confirma-se na
dedicatória do livro, na qual Clarice Lispector registrou “Esta
história acontece em estado de emergência e de calamidade pública”.
Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que
espero que alguém no mundo ma-dê’

Considerações Gerais

Este livro tem duas características fundamentais: a originalidade
do estilo e a profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente
banais. A linha condutora é a estória de um imigrante nordestino
deslocado e perdido na grande cidade do Rio de Janeiro. Através desse
personagem, descortina-se a pobreza “feia e promíscua” e
ao mesmo tempo a singeleza de vidas tão pouco interessantes. A narrativa,
cheia de digressões (que fazem lembrar o estilo machadiano), vai além
da descrição realista de um cotidiano inexpressivo – questiona
os valores da sociedade moderna, o papel social do artista contemporâneo
e a própria existência humana. A Hora da Estrela transita entre
o lado trágico e o lado esplêndido da vida, entre a fragilidade
e a grandeza do ser humano. O tema da solidão tem a função
de dar destaque às desigualdades sociais e ao enigma da vida, imprimindo
novas perspectivas aos problemas e indagações que nos cercam

A lucidez perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.

Pois sei que
– em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

A Paixão Segundo G.H.

Considerado por muitos o grande livro de Clarice Lispector, A paixão
segundo G.H. tem um enredo banal. Depois de despedir a empregada, uma mulher
vai fazer uma faxina no quarto de serviço. Mal começa a limpeza,
depara com uma barata. Tomada pelo nojo, ela esmaga o inseto contra a porta
de um armário. Depois, numa espécie bárbara de ascese,
decide provar da barata morta.

Ao esmagar a barata, e depois degustar seu interior branco, operou-se em
G.H. uma revelação. O inseto a apanhou em meio a sua rotina
“civilizada”, entre os filhos, afazeres domésticos e contas
a pagar, e a lançou para fora do humano, deixando-a na borda do coração
selvagem da vida. Esse desejo de encontrar o que resta do homem quando a linguagem
se esgota move, desde o início, a literatura de Clarice.

Mesmo sem ser um livro de inspiração religiosa, G.H. tem,
ainda, um aspecto epifânico. Ao degustar a pasta branca que escorre
da barata morta, a protagonista comunga com o real e ali o divino – a força
impessoal que nos move – se manifesta. E só depois desse ato, que desarruma
toda a visão civilizada, G.H. pode enfim se reconstruir.

O escritor argentino Ricardo Piglia disse certa vez que toda a literatura
pode ser reduzida a dois gêneros fundamentais: as narrativas de amor
e as narrativas de mistério. Em G.H., essas duas claves básicas
da ficção se entrelaçam. Pois é justamente a mistura
letal de amor e mistério que chamamos de paixão.

JOSÉ CASTELLO Jornalista, escritor e Mestre em Comunicação
pela UFRJ.

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.

CLARICE LISPECTOR A PAIXÃO SEGUNDO G.H.

Romance Rocco Rio de Janeiro – 1998 Copyright© 1964, Clarice Lispector,
Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente Direitos desta edição
reservados à EDITORA ROCCO LTDA.

Rua Rodrigo Silva, 26 – 5º andar 20011-040 – Rio de Janeiro, RJ Tel.:
507-2000 – Fax 5072244 Printed in Brazil/ Impresso no brasil Estabelecimento
do texto Marlene Gomes Mendes (Dra. Em Literatura Brasileira pela USP/ Profª
de Crítica Textual da UFF) CIP – Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

L753p Lispector, Clarice, 1925-1977 A paixão segundo G.H.: romance/
Clarice Lispector.

– Rio de Janeiro: Rocco, 1998 – 1. Romance brasileiro. I. Título.

97-1888 CDD-869.93 CDU-869.0(81)-3 NOTA PRÉVIA 97-1889 Todo texto
com tradição – tomada a palavra no sentido que a Crítica
Textual lhe empresta – tende a apresentar, nas reproduções que
dele são feitas, um maior ou menor número de alterações
que vão, desde os erros cometidos por distração de digitadores
até as “correções” bem intencionadas de revisores
ou copidesques. Por isso, é necessário que se proceda ao estabelecimento
desse texto, procurando, no confronto com as edições publicadas
em vida do autor, restituir-lhe sua fidedignidade e genuinidade.

Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus textos, mas não se preocupava
em guardar manuscritos e originais, como se pode verificar no arquivo que
se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa, cujo inventário
foi organizado por Eliane Vasconcellos, e publicado em 1994. De toda sua obra
ficcional, só restou um original datilografado: o de Água viva,
a propósito do qual fala em carta a Olga Borelli, mostrando como trabalhava
exaustivamente o texto: “…Não pude te esperar: estava morrendo
de cansaço, porque estou trabalhando ininterruptamente desde as cinco
da manhã. Infelizmente eu é que tenho que fazer a cópia
de Atrás do pensamento, sempre fiz a última cópia dos
meus livros anteriores porque cada vez que copio vou modificando, acrescentando,
mexendo neles, enfim” (grifo nosso).

No entanto, depois de encaminhar o texto à editora, Clarice não
se interessava mais por ele, conforme declara em entrevista concedida a Affonso
Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti, para o Museu da Imagem e do
Som, em 20 de outubro de 1976: “Affonso – Você tem os seus textos
escritos na cabeça. E uma vez você me disse uma coisa impressionante:
você nunca relê um texto seu.

Clarice – Não. Enjôo. Quando é publicado, é como
livro morto. Não quero mais saber dele. E quando eu leio, estranho,
acho ruim. Aí não leio, ora!” Olga Boreili, grande amiga
e companheira de Clarice Lispector, com quem conversamos recentemente, nos
assegurou que, de fato, Clarice não revia seus textos depois que encaminhava
os originais à editora.

Assim, não é possível trabalhar com textos de Clarice
Lispector, ignorando-se o fato de que não os revia e, por tanto, não
fazia mudanças de uma edição para outra.

Por isso, ao preparar o texto deste romance, consideramos a 1 edição,
publicada em 1964, pela Editora do Autor, como texto base.

A paixão segundo G.H. teve 5 edições em vida da autora:
a 2 (1968) e a 3 (1972), pela Editora Sabiá; a 4 (1974) e a 5 (1976),
pela José Olympio. Coube-nos nesta edição procurar sanar
as incorreções que, com o tempo, foram se incorporando ao texto
original da autora.

A POSSÍVEIS LEITORES Este livro é como um livro qualquer.

Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já
formada.

Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja,
se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo
que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão
bem devagar que este livro nada tira de ninguém.

A mim, por exemplo, o personagem G. H.

foi dando pouco a pouco uma alegria dificil; mas chama-se alegria.

C.L.

MARLENE GOMES MENDES ‘2! complete life may be one ending in 50 fuli
ident with the nonself that there is no selfto die.” BERNARDBERENSON
estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar
a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar
com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização
profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa
que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso
quereria chamar desorganização, e teria a segurança de
me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização
anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não
quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia
o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.

Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não
saberei onde engastar meu novo modo de ser – se eu for adiante nas minhas
visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar
para eu caber nele.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é
mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido
uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar
mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu
perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive:
apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso
caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me
assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma,
e sem sequer precisar me procurar.

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha
nova covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu,
é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão
amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na minha
nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro,
não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil
perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei
depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de
que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de
pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem
mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver.
A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela
que me plantava no chão. Mas e agora? estarei mais livre? Não.
Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque
tenho por objetivo achar – e que por segurança chamarei de achar o
momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho
coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me
porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me
havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.

Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana.
Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que
é novo e tenho medo de viver o que não entendo quero sempre
ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me
entregar à desorientação. Como é que se explica
que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no
entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior
medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se
explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é
o que eu pensava e sim outra como se antes eu tivesse sabido o que era! Por
que é que ver é uma tal desorganização? E uma
desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir,
eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída?
Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema.
No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente
foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom
que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio
mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo
não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo
que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei
o destino pela probabilidade.

No entanto na infância as descobertas terão sido como num laboratório
onde se acha o que se achar? Foi como adulto então que eu tive medo
e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder?
Perder- se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.
As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa.
Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas
enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia, aquela coisa
sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? Ou havia, e havia,
aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que
latejar era ser uma pessoa. É? Também , também.

Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação
humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que
precisarei tomar cuidado para não usar superficialmente uma nova terceira
perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora
chamar de uma verdade Mas é que também não sei que forma
dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E – e se a realidade
é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me aconteceu? Só posso
compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo –
que sei do resto? O resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem
sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que
minha luta contra essa desintegração está sendo esta:
a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma
dá construção à substância amorfa – a visão
de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar
a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes
– então ela não será mais a perdição e
a loucura: será de novo a vida humanizada.

A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.

Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que
isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao
nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria
desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender.
Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam uma sensação
física de incômodo, em mim qualquer começo de pensamento
esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os
esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que
estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele.
Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento
me salvasse, tenho medo da paixão.

Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho
que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada,
já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita
e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha
boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente
sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada
– então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma
se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de
fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à
tentação de inventar uma forma.

Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido,
qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever
para alguém.

Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém
imaginário, receio começar a “fazer” um sentido,
com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber
num sistema. Terei que ter a coragem de usar um coração desprotegido
e de ir falando para o nada e para o ninguém? Assim como uma criança
pensa para o nada. E correr o risco de ser esmagada pelo acaso.

Não compreendo o que vi. E nem mesmo sei se vi, já que meus
olhos terminaram não se diferenciando da coisa vista. Só por
um inesperado tremor de linhas, só por uma anomalia na continuidade
ininterrupta de minha civilização, é que por um átimo
experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido
tecido da vida.

É proibido dizer o nome da vida. E eu quase o disse. Quase não
me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição
dentro de mim de minha época.

Talvez o que me tenha acontecido seja uma compreensão – e que, para
eu ser verdadeira, tenho que continuar a não estar à altura
dela, tenho que continuar a não entendê-la. Toda compreensão
súbita se parece muito com uma aguda incompreensão.

Não. Toda compreensão súbita é finalmente a
revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de
achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido
uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela
eu venha a sair intocada e inocente como antes. Qualquer entender meu nunca
estará à altura dessa compreensão, pois viver é
somente a altura a que posso chegar – meu único nível é
viver, Só que agora, agora sei de um segredo. Que já estou esquecendo,
ah sinto que já estou esquecendo…

Para sabê-lo de novo, precisaria agora re-morrer. E saber será
talvez o assassinato de minha alma humana. E não quero, não
quero. O que ainda poderia me salvar seria uma entrega à nova ignorância,
isso seria possível. Pois ao mesmo tempo que luto por saber, a minha
nova ignorância, que é o esquecimento, tornou-se sagrada. Sou
a vestal de um segredo que não sei mais qual foi. E sirvo ao perigo
esquecido. Soube o que não pude entender, minha boca ficou selada,
e só me restaram os fragmentos incompreensíveis de um ritual.
Embora pela primeira vez eu sinta que meu esquecimento esteja enfim ao nível
do mundo. Ah, e nem ao menos quero que me seja explicado aquilo que para ser
explicado teria que sair de si mesmo. Não quero que me seja explicado
o que de novo precisaria da validação humana para ser interpretado.

Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um
sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição
tive a coragem de não compor nem organizar. E, sobretudo a de não
prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar
guiar pelo que não conheço e em direção ao que
não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão
o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já
tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.

Até que por horas desisti. E, por Deus, tive o que eu não
gostaria. Não foi ao longo de um vale fluvial que andei eu sempre pensara
que encontrar seria fértil e úmido como vales fluviais. Não
contava que fosse esse grande desencontro.

Para que eu continue humana meu sacrifício será o de esquecer?
Agora saberei reconhecer na face comum de algumas pessoas que elas esqueceram.
E nem sabem mais que esqueceram o que esqueceram.

Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que
vi – porque não entendo. Sei que vi – porque para nada serve o que
vi. Escuta, vou ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido.
Pior ainda: não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária.
Desculpa eu te dar isto, eu bem queria ter visto coisa melhor. Toma o que
vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil.

Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se
imaginar que alguém me está dando a mão.

Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. Muitas
vezes antes de adormecer – nessa pequena luta por não perder a consciência
e entrar no mundo maior – muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para
a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão
e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é
o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho.

Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a
minha liberdade. Entregar-me ao que não entendo será pôr-me
à beira do nada. Será ir apenas indo, e como uma cega perdida
num campo. Essa coisa sobre natural que é viver. O viver que eu havia
domesticado para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será
entregar-me, e que é como dar a mão à mão mal-assombrada
do Deus, e entrar por essa coisa sem forma que é um paraíso.
Um paraíso que não quero! Enquanto escrever e falar vou ter
que fingir que alguém está segurando a minha mão.

Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder
dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão
– mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca.
Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção
dela vem de tal idéia de amor como se a mão estivesse realmente
ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar
mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque
não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não
sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua
mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será a minha
responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se
transforme em claridade. Não a claridade que nasce de um desejo de
beleza e moralismo, como antes mesmo sem saber eu me propunha; mas a claridade
natural do que existe, e é essa claridade natural o que me aterroriza.

Embora eu saiba que o horror – o horror sou eu diante das coisas.

Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia também
não saberei me arriscar a morrer sozinha, morrer é do maior
risco, não saberei passar para a morte e pôr o primeiro pé
na primeira ausência de mim – também nessa hora última
e tão primeira inventarei a tua presença desconhecida e contigo
começarei a morrer até poder aprender sozinha a não existir,
e então eu te libertarei. Por enquanto eu te prendo, e tua vida desconhecida
e quente está sendo a minha única íntima organização,
eu que sem a tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que
descobri. No tamanho da verdade? Mas é que a verdade nunca me fez sentido.
A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a
temo. Desamparada, eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa
alegre. Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu não
falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.

A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe. Aquilo
que provavelmente pedi e finalmente tive, veio, no entanto me deixar carente
como uma criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que
só o amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular,
só um tal amor que a própria célula-ovo das coisas vibrasse
com o que estou chamando de um amor. Daquilo a que na verdade apenas chamo
mas sem saber-lhe o nome.

Terá sido o amor o que vi? Mas que amor é esse tão
cego como o de uma célula-ovo? foi isso? aquele horror, isso era amor?
amor tão neutro que – não, não quero ainda me falar,
falar agora seria precipitar um sentido como quem depressa se imobiliza na
segurança paralisadora de uma terceira perna. Ou estarei apenas adiando
o começar a falar? por que não digo nada e apenas ganho tempo?
Por medo. É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização
do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse
em que país ela vale.

Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar
à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi,
e terei que acrescentar: não é isso, não é isso!
Mas é preciso também não ter medo do ridículo,
eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo:
é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora
de me falar. Por medo? E porque não tenho uma palavra a dizer.

Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então?
Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para
sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei
sobre vagalhões de mudez.

E se estou adiando começar é também porque não
tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito
da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.

Sinto que uma primeira liberdade está pouco a pouco me tomando…
Pois nunca até hoje temi tão pouco a falta de bom-gosto: escrevi
“vagalhões de mudez”, o que antes eu não diria porque
sempre respeitei a beleza e a sua moderação intrínseca.
Disse “vagalhões de mudez”, meu coração se
inclina humilde, e eu aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom Mas
será este o meu ganho único? Quanto eu devia ter vivido presa
para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta
de estética… Ainda não pressinto o que mais terei ganho. Aos
poucos, quem sabe, irei percebendo. Por enquanto o primeiro prazer tímido
que estou tendo é o de constatar que perdi o medo do feio. E essa perda
é de uma tal bondade. É uma doçura.

Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei. Por enquanto não sei:
só ao me reviver é que vou viver.

Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei
que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu? Vou criar o que
me aconteceu. Só porque viver não é relatável.
Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E
sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação,
é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma
criação, meu único modo. Precisarei com esforço
traduzir sinais de telégrafo – traduzir o desconhecido para uma língua
que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei
nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria
linguagem.

Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um
grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do
que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também
isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava
apenas reproduzir, e apenas com as mãos.

Ficarei perdida entre a mudez dos sinais? Ficarei, pois sei como sou: nunca
soube ver sem logo precisar mais do que ver. Sei que me horrorizarei como
uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergasse – mas enxergasse
o quê? um triângulo mudo e incompreensível. Poderia essa
pessoa não se considerar mais cega só por estar vendo um triângulo
incompreensível? Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com
uma lente, verei mais que a escuridão? a lente não devassa a
escuridão, apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com
uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior.

Enxerguei, mas estou tão cega quanto antes porque enxerguei um triângulo
incompreensível. A menos que eu também me transforme no triângulo
que reconhecerá no incompreensível triângulo a minha própria
fonte e repetição.

Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só para
adiar – adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que
nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda
adiei o silêncio? mas agora, por desprezo pela palavra, talvez enfim
eu possa começar a falar.

Os sinais de telégrafo. O mundo eriçado de antenas, e eu captando
o sinal. Só poderei fazer a transcrição fonética.
Há três mil anos desvairei-me, e o que restaram foram fragmentos
fonéticos de mim. Estou mais cega do que antes. Vi, sim. Vi, e me assustei
com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é
tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele – e
minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele – terei
que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime
contra a minha vida pessoal.

Para a minha anterior moralidade profunda – minha moralidade era o desejo
de entender e, como eu não entendia, eu arrumava as coisas, foi só
ontem e agora que descobri que sempre fora profundamente moral: eu só
admitia a finalidade – para a minha profunda moralidade anterior, eu ter descoberto
que estou tão cruamente viva quanto essa crua luz que ontem aprendi,
para aquela minha moralidade, a glória dura de estar viva é
o horror. Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou
a moralidade que eu tinha? É que um mundo todo vivo tem a força
de um Inferno.

Ontem de manhã quando saí da sala para o quarto da empregada
– nada me fazia supor que eu estava a um passo da descoberta de um império.
A um passo de mim. Minha luta mais primária pela vida mais primária
ia-se abrir com a tranqüila ferocidade devoradora dos animais do deserto.
Eu ia me defrontar em mim com um grau de vida tão primeiro que estava
próximo do inanimado. No entanto nenhum gesto meu era indicativo de
que eu, com os lábios secos pela sede, ia existir.

Só depois é que me ocorreria uma frase antiga que tola mente
se gravara há anos na minha memória, apenas o subtítulo
de um artigo numa revista e que eu terminara por não ler: “Perdida
no inferno abrasador de um canyon uma mulher luta desesperadamente pela vida”.
Nada me fazia supor ao que eu ia. Mas é que nunca fui capaz de perceber
as coisas se encaminhando; todas as vezes que elas chegavam a um ápice,
me parecia com surpresa um rompimento, explosão dos instantes, com
data, e não a continuação de uma ininterrupção.

Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era o que
os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia. Não sei
dizer o que eu era. Mas quero ao menos me lembrar: que estava eu fazendo?
Eram quase dez horas da manhã, e há muito tempo meu apartamento
não me pertencia tanto. No dia anterior a empregada se despedira. O
fato de ninguém falar ou andar e poder provocar acontecimentos alargava
em silêncio esta casa onde em semiluxo eu vivo. Atardava-me à
mesa do café como está sendo difícil saber como eu era.
No entanto tenho que fazer o esforço de pelo menos me dar uma forma
anterior para poder entender o que aconteceu ao ter perdido essa forma.

Eu me atardava à mesa do café, fazendo bolinhas de miolo de
pão – era isso? Preciso saber, preciso saber o que eu era! Eu era isto:
eu fazia distraidamente bolinhas redondas com miolo de pão, e minha
última e tranqüila ligação amorosa dissolvera-se
amistosamente com um afago, eu ganhando de novo o gosto ligeiramente insípido
e feliz da liberdade. Isto me situa? Sou agradável tenho amizades sinceras,
e ter consciência disso faz com que eu tenha por mim uma amizade aprazível
o que nunca excluiu um certo sentimento irônico por mim mesma, embora
sem perseguições.

Mas – como era antes o meu silêncio, é o que não sei
e nunca soube. Às vezes, olhando um instantâneo tirado na praia
ou numa festa, percebia com leve apreensão irônica o que aquele
rosto sorridente e escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio
e um destino que me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império
morto ou vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério. Não. Vou
perder o resto do medo do mau-gosto, vou começar meu exercício
de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é
a coragem – e vou dizer que na minha fotografia eu via O Mistério.
A surpresa me tomava de leve, só agora estou sabendo que era uma surpresa
o que me tomava: é que nos olhos sorridentes havia um silêncio
como só vi em lagos, e como só ouvi no silêncio mesmo.

Nunca, então, havia eu de pensar que um dia iria de encontro a este
silêncio. Ao estilhaçamento do silêncio. Olhava de relance
o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo
me olhava de volta também inexpressivo. Este – apenas esse – foi o
meu maior contato comigo mesma? o maior aprofundamento mudo a que cheguei,
minha ligação mais cega e direta com o mundo. O resto – o resto
eram sempre as organizações de mim mesma, agora sei, ah, agora
eu sei. O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na
pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. É suficiente
ver no couro de minhas valises as iniciais G.H., e eis-me. Também dos
outros eu não exigia mais do que a primeira cobertura das iniciais
dos nomes. Além do mais a “psicologia” nunca me interessou,
O olhar psicológico me impacientava e me impacienta, é um instrumento
que só transpassa. Acho que desde a adolescência eu havia saído
do estágio do psicológico.

A G.H. vivera muito, quero dizer, vivera muitos fatos. Quem sabe eu tive
de algum modo pressa de viver logo tudo o que eu tivesse a viver para que
me sobrasse tempo de… de viver sem fatos? de viver. Cumpri cedo os deveres
de meus sentidos, tive cedo e rapidamente dores e alegrias – para ficar depressa
livre do meu destino humano menor? e ficar livre para buscar a minha tragédia.

Minha tragédia estava em alguma parte. Onde estava o meu destino
maior? um que não fosse apenas o enredo de minha vida. A tragédia
– que é a aventura maior – nunca se realizara em mim. Só o meu
destino pessoal era o que eu conhecia. E o que eu queria.

Em torno de mim espalho a tranqüilidade que vem de se chegar a um grau
de realização a ponto de se ser G.H. até nas valises.
Também para a minha chamada vida interior eu adotara sem sentir a minha
reputação: eu me trato como as pessoas me tratam, sou aquilo
que de mim os outros vêem. Quando eu ficava sozinha não havia
uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros,
e isso sempre foi a minha naturalidade e a minha saúde. E a minha espécie
de beleza. Só meus retratos é que fotografavam um abismo? Um
abismo.

Um abismo de nada. Só essa coisa grande e vazia: um abismo.

Ajo como o que se chama de pessoa realizada. Ter feito escultura durante
um tempo indeterminado e intermitente também me dava um passado e um
presente que fazia com que os outros me situassem: a mim se referem como a
alguém que faz esculturas que não seriam más se tivesse
havido menos amadorismo. Para uma mulher essa reputação é
socialmente muito, e situou-me, tanto para os outros como para mim mesma,
numa zona que socialmente fica entre mulher e homem. O que me deixava muito
mais livre para ser mulher, já que eu não me ocupava formalmente
em sê-lo.

Quanto à minha chamada vida íntima, talvez também tenha
sido a escultura esporádica o que lhe deu um leve tom de pré-clímax
– talvez por causa do uso de um certo tipo de atenção a que
mesmo a arte diletante obriga. Ou por ter passado pela experiência de
desgastar pacientemente a matéria até gradativamente encontrar
sua escultura imanente; ou por ter tido, através ainda da escultura,
a objetividade forçada de lidar com aquilo que já não
era eu.

Tudo isso me deu o leve tom de pré-clímax de quem sabe que,
auscultando os objetos, algo desses objetos virá que me será
dado e por sua vez dado de volta aos objetos. Talvez tenha sido esse tom de
pré-clímax o que eu via na sorridente fotografia mal-assombrada
de um rosto cuja palavra é um silêncio inexpressivo, todos os
retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa.

E é só o que posso dizer a meu respeito? Ser “sincera”?
Relativamente sou. Não minto para formar verdades falsas. Mas usei
demais as verdades como pretexto. A verdade como pretexto para mentir? Eu
poderia relatar a mim mesma o que me lisonjeasse, e também fazer o
relato da sordidez. Mas tenho que tomar cuidado de não confundir defeitos
com verdades. Tenho medo daquilo a que me levaria uma sinceridade: à
minha chamada nobreza, que omito, à minha chamada sordidez, que também
omito. Quanto mais sincera eu fosse, mais seria levada a me lisonjear tanto
com as ocasionais nobrezas como sobretudo com a ocasional sordidez. A sinceridade
só não me levaria a me vangloriar da mesquinhez. Essa eu omito,
e não só por falta do autoperdão, eu que me perdoei tudo
o que foi grave e maior em mim. A mesquinhez eu também a omito porque
a confissão me é muitas vezes uma vaidade, mesmo a confissão
penosa.

Não é que eu queira estar pura da vaidade, mas preciso ter
o campo ausente de mim para poder andar. Se eu andar. Ou não querer
ter vaidade é a pior forma de se envaidecer? Não, acho que estou
precisando de olhar sem que a cor de meus olhos importe, preciso ficar isenta
de mim para ver.

E é isso tudo o que eu era? Quando abro a porta a uma visita inesperada,
o que surpreendo no rosto de quem está me vendo à porta é
que acabam de surpreender em mim meu suave pré-clímax. O que
os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma
a atmosfera do que se chama: eu. O pré-climax foi talvez até
agora a minha existência. A outra – a incógnita e anônima
– essa outra minha existência que era apenas profunda, era o que provavelmente
me dava a segurança de quem tem sempre na cozinha uma chaleira em fogo
baixo: para o que desse e viesse, eu teria a qualquer momento água
fervendo.

Só que a água nunca fervera. Eu não precisava de violência,
eu fervilhava o suficiente para a água nunca ferver nem derramar. Não,
eu não conhecia a violência. Eu nascera sem missão, minha
natureza não me impunha nenhuma; e sempre tive a mão bastante
delicada para não me impor um papel. Eu não me impunha um papel,
mas me organizara para ser compreendida por mim, não suportaria não
me encontrar no catálogo. Minha pergunta, se havia, não era:
“que sou”, mas “entre quais eu sou”. Meu ciclo era
completo: o que eu vivia no presente já se condicionava para que eu
pudesse posteriormente me entender. Um olho vigiava a minha vida. A esse olho
ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana,
ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espelho. Dois minutos
depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens.

Um passo antes do clímax, um passo antes da revolução,
um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida – que, por
uma espécie de forte ímã ao contrário, eu não
transformava em vida; e também por uma vontade de ordem. Há
um mau-gosto na desordem de viver. E mesmo eu nem saberia, se tivesse desejado,
transformar esse passo latente em passo real. Pelo prazer por uma coesão
harmoniosa, pelo prazer avaro e permanentemente promissor de ter – mas não
gastar – eu não precisava do clímax ou da revolução
ou de mais do que o pré-amor, que é tão mais feliz que
amor. A promessa me bastava? Uma promessa me bastava.

Quem sabe essa atitude ou falta de atitude também tenha vindo de
eu, nunca tendo tido marido ou filhos, não ter precisado, como se diz,
manter ou quebrar grilhões: eu era continuamente livre. Ser continuamente
livre também era ajudado pela minha natureza que é fácil:
como e bebo e durmo fácil. E também, é claro, minha liberdade
vinha de eu ser financeiramente independente.

Da escultura, suponho, veio meu jeito de só pensar na hora de pensar,
pois eu aprendera a só pensar com as mãos e na hora de usá-las.
Também da escultura intermitente fica -me o hábito do prazer,
a que por natureza eu já tendia: meus olhos tanto haviam manuseado
a forma das coisas que eu fora aprendendo cada vez mais o prazer, e enraizando
me nele. Eu podia, com muito menos do que eu era, eu já podia usar
tudo: exatamente como ontem, à mesa do café, me bastava, para
formar formas redondas de miolo de pão, a superfície de meus
dedos e a superfície do miolo de pão. Para ter o que eu tinha
eu nunca precisara nem de dor nem de talento, o que eu tinha não me
era conquista, era dom.

E quanto a homens e mulheres, que era eu? Sempre tive uma admiração
extremamente afetuosa por hábitos e jeitos masculinos, e sem urgência
tinha o prazer de ser feminina, ser feminina também me foi um dom.
Só tive a facilidade dos dons, e não o espanto das vocações
– é isso? Da mesa onde me atardava porque tinha tempo, eu olhava em
torno enquanto os dedos arredondavam o miolo de pão. O mundo era um
lugar. Que me servia para viver: no mundo eu podia colar uma bolinha de miolo
na outra, bastava justapô-las, e, sem mesmo forçar, bastava pressiona-las
o suficiente para que uma superfície se unisse a outra superfície,
e assim com prazer eu ia formando uma pirâmide curiosa que me satisfazia:
um triângulo reto feito de formas redondas, uma forma que é feita
de suas formas opostas. Se isso me tinha um sentido, o miolo de pão
e meus dedos provavelmente sabiam.

O apartamento me reflete. É no último andar, o que é
considerado uma elegância. Pessoas de meu ambiente procuram morar na
chamada “cobertura”. É bem mais que uma elegância.
É um verdadeiro prazer: de lá domina-se uma cidade. Quando essa
elegância se vulgarizar, eu, sem sequer saber por que, me mudarei para
outra elegância? Talvez. Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes
úmidas, nada aqui é brusco: um aposento precede e promete o
outro. Da minha sala de jantar eu via as misturas de sombras que preludiavam
o living. Tudo aqui é a réplica elegante, irônica e espirituosa
de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é uma criação
apenas artística.

Tudo aqui se refere na verdade a uma vida que se fosse real não me
serviria. O que decalca ela, então? Real, eu não a entenderia,
mas gosto da duplicata e a entendo. A cópia é sempre bonita.
O ambiente de pessoas semi-artísticas e artísticas em que vivo
deveria, no entanto, me fazer desvalorizar as cópias: mas sempre pareci
preferir a paródia, ela me servia. Decalcar uma vida provavelmente
me dava – ou dá ainda? até que ponto se rebentou a harmonia
de meu passado? – decalcar uma vida provavelmente me dava segurança
exatamente por essa vida não ser minha: ela não me era uma responsabilidade.

O leve prazer geral – que parece ter sido o tom em que vivo ou vivia – talvez
viesse de que o mundo não era eu nem meu: eu podia usufruí-lo.
Assim como também aos homens eu não os havia feito meus, e podia
então admira-los e sinceramente amá-los, como se ama sem egoísmos,
como se ama a uma idéia. Não sendo meus, eu nunca os torturava.

Como se ama a uma idéia. A espirituosa elegância de minha casa
vem de que tudo aqui está entre aspas. Por honestidade com uma verdadeira
autoria, eu cito o mundo, eu o citava, já que ele não era nem
eu nem meu. A beleza, como a todo o mundo, uma certa beleza era o meu objetivo?
eu vivia em beleza? Quanto a mim mesma, sem mentir nem ser verdadeira – como
naquele momento em que ontem de manhã estava sentada à mesa
do café – quanto a mim mesma, sempre conservei uma aspa à esquerda
e outra à direita de mim. De algum modo “como se não fosse
eu” era mais amplo do que se fosse – uma vida inexistente me possuía
toda e me ocupava como uma invenção. Somente na fotografia,
ao revelar-se o negativo, revelava-se algo que, inalcançado por mim,
era alcançado pelo instantâneo: ao revelar-se o negativo também
se revelava a minha presença de ectoplasma. Fotografia é o retrato
de um côncavo, de uma falta, de uma ausência? Enquanto eu mesma
era, mais do que limpa e correta, era uma réplica bonita. Pois tudo
isso é o que provavelmente me torna generosa e bonita. Basta o olhar
de um homem experimentado para que ele avalie que eis uma mulher de generosidade
e graça, e que não dá trabalho, e que não rói
um homem: mulher que sorri e ri. Respeito o prazer alheio, e delicadamente
eu como o meu prazer, o tédio me alimenta e delicadamente me come,
o doce tédio de uma lua-de-mel.

Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia, e não apenas superficialmente.
Eu era a imagem do que eu não era, e essa imagem do não-ser
me cumulava toda: um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como
eu não sabia o que era, então “não ser” era
a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o
lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto.
O meu bem eu não sabia qual era, então vivia com algum pré-fervor
o que era o meu mal.

E vivendo o meu “mal”, eu vivia o lado avesso daquilo que nem
sequer eu conseguiria querer ou tentar. Assim como quem segue à risca
e com amor uma vida de “devassidão”, e pelo menos tem o
oposto do que não conhece nem pode nem quer: uma vida de freira. Só
agora sei que eu já tinha tudo, embora do modo contrário: eu
me dedicava a cada detalhe do não. Detalhadamente não sendo,
eu me provava que – que eu era.

Esse modo de não ser era tão mais agradável, tão
mais limpo: pois, sem estar agora sendo irônica, sou uma mulher de espírito.
E de corpo espirituoso. À mesa do café eu me enquadrava com
meu robe branco, meu rosto limpo e bem esculpido, e um corpo simples. De mim
irradiava-se a espécie de bondade que vem da indulgência pelos
próprios prazeres e pelos prazeres dos outros. Eu comia delicadamente
o meu, e delicadamente enxugava a boca com o guardanapo.

Esse ela, G.H. no couro das valises, era eu; sou eu – ainda? Não.
Desde já calculo que aquilo que de mais duro minha vaidade terá
de enfrentar será o julgamento de mim mesma: terei toda a aparência
de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária.

Só eu saberei se foi a falha necessária.

Amor à terra

Laranja na mesa.
Bendita a árvore
que te pariu.

Atenção ao Sábado

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde
a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde
de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da
semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma
picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras
abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver
se o quintal vai estar cheio de abelhas.

No sábado é que as formigas subiam pela pedra.

Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada
comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos
tomado banho.

De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento
sábado era a rosa de nossa semana.

Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não
é?

No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço
metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e,
antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado
de tarde.

Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.

Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.

Domingo de manhã também é a rosa da semana.

Não é propriamente rosa que eu quero dizer.

Dá-me a tua Mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Escrever, Humildadem Técnica

Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por
instinto de… de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa
ao entendimento. Esse modo, esse “estilo” (!), já foi chamado
de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é:
uma procura humilde.

Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é
muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em “humildade”
refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder
ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem
da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à
humildade como técnica.

Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas
é que não é.

Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando
com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri
este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada
de orgulho.

Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho
é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que
orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que
erro dá à vida, faz perder muito tempo.

Estrela perigosa

Estrela perigosa
Rosto ao vento
Marulho e silêncio
leve porcelana
templo submerso
trigo e vinho
tristeza de coisa vivida
árvores já floresceram
o sal trazido pelo vento
conhecimento por encantação
esqueleto de idéias
ora pro nobis
Decompor a luz
mistério de estrelas
paixão pela exatidão
caça aos vagalumes.
Vagalume é como orvalho
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.

No obscuro erotismo de vida cheia
nodosas raízes.
Missa negra, feiticeiros.
Na proximidade de fontes,
lagos e cachoeiras
braços e pernas e olhos,
todos mortos se misturam e clamam por vida.
Sinto a falta dele
como se me faltasse um dente na frente:
excrucitante.
Que medo alegre,
o de te esperar.

Mas há a vida

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Nossa truculência

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.

Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

Os Bonecos de Barro

O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém
lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em
sombra, junto à última janela do porão. Quando queria
com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens,
escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém
poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo,
em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços
timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido
quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida
e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos
amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços
e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza.
As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até
a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua
riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes
de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela
podia obter uma porção exata de barro e de água numa
sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada.
Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um
mundo.

Como, como explicar o milagre… Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia,
não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não
sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me
impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar
tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era
uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe
permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se
com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil
e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos
fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência
e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se
ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria
inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como
uma criança, como uma pessoa.

Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia
perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como
uma menina.

Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade
que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula
de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada,
fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a
uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se
sem ritmo… de súbito, como era vago viver. Tudo isso também
poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre
o dia morno.

Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada
para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante
como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia
crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha,
uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente,
uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia
lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do
Brejo Alto, uma moça olhando… Muito mais, muito mais. Pequenas formas
que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às
vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores,
m:to eram nada…Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada,
mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria,
isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela
podia fazer o que existia e o que não existia!…

Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe
ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas
sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não
enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente
e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso.
As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar
— e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco
imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava
os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade
do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria
o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando,
enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia
enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes
possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia
entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons
ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse,
maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava
com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha
fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava
um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo
de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela
pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar:
Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento
para a frente que servisse de forma à sua sensação.

Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se
quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela
mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos
— às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo
suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo.
E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos.
Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor
e sua surpresa não diminuiriam.

— Bonito… bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se
num ímpeto imperceptível e doce.

Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda
ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém
poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento
. Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos,
se isso fosse possível.

As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo
efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los
não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa
deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois
inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de
barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto.
Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico,
porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar
podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente
— mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor
solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria
mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas
vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.

E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava
em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina
e tranqüila.

Quero escrever o borrão vermelho de sangue

Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

Repartição dos Pães

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação.
Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo
com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara
com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se
nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre
estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém.
Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava
em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la
na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À
espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde
do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é
com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos
devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir
o sábado,ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem,
até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para
usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração
já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer
mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo,
sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do
primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação
vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração
batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha
a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos
com a mesa. Não podia ser para nós…

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado
e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então
aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente
os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca
amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras
amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido,
abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes
eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre
a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam
nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho,
ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas
e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes
importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém:
para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja
adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos
pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de
trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia
com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se
adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse
atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão
pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo
do retorcido desejo humano. ‘Tudo como é, não como quiséramos.
Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas.
Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim
como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem
nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados,
crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então,
como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós
queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo
ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que
eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que
nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos
com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho,
com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho
que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos.
Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída.
A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém
porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita,
e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos
gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta,
e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não
engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus
foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera:
come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai.
Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à
esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida.
Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso
mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar
a vida porque a existência já existe. Existe como um chão
onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra.
Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.

Sobre a Escrita

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina
é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases?
A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia
amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade.
A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada
palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito.
Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro
dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é
identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras
que digo – é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso?
Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma
palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser
pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas
acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida.
Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada,
para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda
a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma
fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.
Acho que o som da música é imprescindível para o ser
humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música,
duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal,
e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo
tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente
a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais
eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu
de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo
homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo
e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.