Obras – Coelho Neto

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A Conquista

Aos da caravana

Entre os celtas, nos tempos rijos e sanguinários, quando, pelas agrestes
montanhas, dia e noite, atroavam buzinas roucas conclamando os guerreiros
para a defesa da pátria ou para a partilha dum gamo, enquanto as facas
iam talhando a selvagina, ao clarão rubro da fogueira, os file, com
os olhos no céu, correndo os dedos ágeis pelas cordas da harpa,
recontavam os feitos dos heróis, as beneficências dos gênios
e as maravilhas excelentes da terra farta e amável.

Os file eram a “memória” da raça.

Porque ainda não surgira o artista imortalizador que gravasse na pedra
eterna ou inscrevesse na folha destrutível a tradição
nacional, os file guardavam na memória, transmitindo, de homem a homem,
não só os hinos improvisados pelos bardos como as lendas do
gênio popular, e a história, conservada nesses monumentos orais,
ia dum a outro, como a chama dum círio passa a outro círio.

Dividiam-se os file em dez categorias, desde o oblairo, que apenas sabia
sete histórias, até o ollam que repetia de cor trezentas e cinqüenta.

Este livro, amigos meus, é mais vosso do que meu, porque na sua composição
entrou apenas a minha memória. Como o ollam venho contar aos que surgem
a odisséia da nossa mocidade.

Triste, triste foi a nossa vida posto que, de longe em longe, como um raio
de sol atravessando nuvens tempestuosas, o riso viesse palidamente à
flor dos nossos lábios. Mas chegamos, vencemos… Deus o quis! E, se
ainda não tomamos de assalto a praça em que vive acastelada
a indiferença pública, já cantamos em torno e, ao som
dos nossos hinos, ruem os muros abalados, e avistamos, não longe, pelas
brechas, a cidade Ideal dos nossos sonhos.

Mas no dia em que nela pudermos entrar vitoriosos, pisando a verde, macia
e cheirosa folhagem, indo repousar à sombra das árvores, perto
da frescura e do murmúrio da água, nesse dia, reunidos pela
saudade, sacrificaremos, com religioso sentimento, aos manes dos que ficaram
adormecidos à sombra dos ciprestes.

É vosso todo este livro, meus amigos. Eu vim seguindo a caravana que
a Musa precedia, cantando, como Minam, à frente de Israel, no êxodo.
Vim seguindo e apanhando pelo caminho saibroso e seco as gotas de sangue,
as gotas de lágrimas, as estrofes sonoras, os arrancados soluços
e os suspiros que deixáveis e, durante a marcha, só três
vezes paramos, com as liras caladas, os olhos lacrimejantes, para guardar
na terra santa os que caíam.

Já lá vão quinze anos de sonhos e de sofrimentos!

Eis-nos acampados diante da cidadela e que temos nós? Que tesouro
possuímos depois de tão árduo combate? Temos ainda, e
só, a moeda com que nos lançamos à aventura: Esperança,
e alguns louros na fronte: os primeiros cabelos brancos. Enfim…! Já
é muito não havermos perdido a Esperança.

O ollam vai falar. Sursum corda!

Capítulo I

A manhã tépida, rosada e ressoante — porque os sinos
badalavam festivamente em todos os campanários iluminados pelo sol
magnífico dum sábado de verão — tinha para Anselmo
um encanto novo. Seus vivíssimos olhos pardos, fulgurantes como os
dos tigres, filtravam, através das lentes do pince-nez, a alegria,
toda espiritual, que lhe ia na alma. Errando pelo céu muito azul, repousando
na copa frondosa das árvores do parque onde cantavam, à compita,
cigarras e passarinhos, deslizando pela verdura macia dos tabuleiros, boiando
nas águas quietas, lisas, espelhentas dos lagos, raro em raro frisadas
pelas palmouras dum cisne, que ia airosamente da margem à ilha, tão
sereno como se vogasse ao som da correnteza, não viam seus olhos senão
a casa para onde o levavam ansiosamente os passos sôfregos, do outro
lado do parque, perto dos Bombeiros.

Que lhe importava o esplendor da manhã se outro maior lhe estava reservado
além daquelas grades, num retiro maravilhoso de Arte, povoado de mármores
divinos, como um templo?

Ali, sim! Dilataria a alma sequiosa e seus olhos teriam a desejada visão
duma oficina sagrada. O soalho, de caprichoso e miúdo mosaico de madeira,
encerado, luzidio, devia ser forrado por um largo tapete de altas felpas moles,
semeado de flores, por entre as quais ninfas, graciosamente nuas, andassem
fugindo aos egypans, não porque os temessem, senão para que,
demorando a posse, mais os desejos neles inflamassem.

Nas paredes preciosos e raros gobelinos, panos da Ásia, de seda e
ouro, com deuses truculentos e aves abrindo caudas imensas resplandecentes,
oculadas de ouro. E telas de artistas célebres sóbrias; bronzes
e mármores, panóplias de armas autênticas, uma severa
biblioteca de madeira negra sabiamente abastecida, a mesa, vasta e pesada,
manuelina; cadeiras altas como faldistórios e, acima da mesa, suspenso
do teto por uma grossa corrente de velhíssima prata, a lâmpada
serena das meditações.

Assim imaginava Anselmo a casa de Ruy Vaz, à qual se dirigia pela
primeira vez.

Conhecera o romancista na rua do Ouvidor, dias antes, e ia vê-lo na
intimidade do gabinete, nas suas vestes maneiras de trabalho.

Ia penetrar esse ádito em que habitava o escritor que ele seguia de
longe, enamoradamente, quando o via passar na multidão com grandes
olhos femininos, de longas, sedosas e curvas pestanas, sempre enevoados de
sonhos, cofiando o bigode negro, num andar rápido como se sempre fosse
à pressa anotar uma idéias, registrar uma observação,
rematar uma página, esboçar um romance, consultar uma nota.
E tinha revoltas violentas vendo a indiferença da multidão que
nem sequer abria alas ao autor de tantas e tão soberbas páginas
humanas.

Seguia e, se fosse a uma apetitosa aventura de amor, discreta e arriscada,
sorver extasiadamente o primeiro beijo criminoso, enlaçar, com ânsia,
o corpo branco e fragrante, molemente lânguido, da mulher amada, não
levaria o coração tão sobressaltado. Quando passou o
portão deteve-se um momento ao sol, hesitante. “Mas àquela
hora o romancista devia estar almoçando…”

Uma corneta soou gravemente, em notas prolongadas e o dobre de um sino passou
rolando nos ares lúcidos. Meio-dia!

Atravessou a rua e, de olhos altos, consultando as placas, parou diante de
um largo portão que, abrindo sobre um pátio ladrilhado, dava
ingresso à casa, de dois altíssimos andares.

Um homem barbado, em mangas de camisa e descalço, varria preguiçosamente
a entrada, com a cabeça derreada, um olho fechado para evitar a fumaça
do cigarro que lhe rolava, úmido, nos beiços. Anselmo abordou-o:

— Não mora aqui o senhor Ruy Vaz? O homem cuspiu para um lado
a ponta do cigarro e, levantando a cabeça hirsuta e ruça de
poeira, encarou o estudante com indiferença:

— Quer falar ao senhor Ruy Vaz?

— Sim.

— É por aqui, a terceira porta. E, enristando a vassoura, indicou
uma passagem estreita ao lado da escada que levava aos pavimentos superiores.
Com a direção indicada, Anselmo dirigiu-se a um corredor cimentado
onde amareleciam pontas de cigarros, ao longo do qual corria uma banqueta
de tinhorões que o calor escaldante da hora amolecia. Seguindo, metia
os olhos indiscretos por todas as janelas, surpreendendo interiores modestos:
camas desfeitas, mesas abarrotadas de livros, malas aos cantos. Em um deles
um estudante, em camisa, com as pernas nuas, curvado diante de um lavatório
de ferro, fazia o laço da gravata ao espelho, enquanto outro, moreno,
de óculos, ia e vinha alarmando o silêncio com um vozeirão
tormentoso à medida que escovava, com fúria, o casaco que sustentava
nas mãos suspenso pela gola:

A vindima eis terminada É beber, toca a beber!

Mentalmente Anselmo concluiu a copla da opereta:

Boa pinga preparada Vai provada agora ser.

Justamente chegava diante da janela que arejava e iluminava o retiro espiritual
do romancista. Deteve-se e o sangue, violentamente sacudido pelo choque duma
grande surpresa, estuou-lhe no coração.

Ó sonho! Ruy Vaz ali estava, não como um deus no santuário
venerável, mas homem, simples homem, modesto e pobre, entre móveis
reles, de calças de brim, camisa de cetineta aberta no peito, curvado
sobre a bacia do seu lavatório de vinhático escovando os dentes
com fúria.

Ao centro da sala a mesa acumulada de livros e de papéis, duas estantes
de ferro, a cama ao fundo e as paredes nuas, tristemente nuas como as da cela
de um monge.

O estudante, passada a primeira impressão, sentiu-se mais à
vontade. Aquela singeleza ascética tornava o homem mais acessível,
humanizava o deus e, repentinamente, como nesse relâmpago cerebral dos
moribundos que revêem a vida inteira no transe extremo da agonia, Anselmo
lembrou-se dos grandes escritores: Camões, seguindo lentamente as ruas
de Lisboa na fria, nevada tristeza das manhãs de inverno, estendendo
a mão gloriosa e forte da pena e da espada à caridade; Cervantes,
encolhido num cárcere, com um cantil e um pão; Shakespeare,
sofreando os cavalos das seges à porta dos teatros e, mais próximo,
o dulcíssimo Lamartine acabrunhado e esquecido; Balzac decompondo o
cérebro para abrandar os credores que o perseguiam implacavelmente;
Murger acabando na triste sala dum hospital e.

— Oh!

— Bom-dia!

— Entra. Vendo-o, Ruy Vaz precipitou-se para a porta arrastando chinelas
e convidou-o descerimoniosamente: Entra… Então? Ofereceu-lhe uma
cadeira. Anselmo, porém, repousando o chapéu sobre a mesa, ia
sentar-se em outra, mas o romancista opôs-se:

— Essa, não! Joga muito, é o meu navio. E a cadeira das
sensações de aventura e um edificante exemplo dos funestos resultados
do vício. Serve para dar-me a ilusão das grandes viagens pelos
mares fortes e, ao mesmo tempo, previne-me contra as bancas. Joga tanto que
até perdeu os fundos. Que há de novo? Está um dia magnífico
para um passeio ao campo. Atulhou de fumo um cachimbo, repoltreou-se na sua
cadeira de trabalho, esticou as pernas, cruzou os pés e ficou-se baforando.

Anselmo achava-o íntimo demais. A sua mobília não era
das mais preciosas, isso não era, mas o talento dava-lhe direito a
uma restiazinha de orgulho; era, entretanto, de tão lhana franqueza,
de tão simples camaradagem… Ainda orgulho, pensou o estudante. O
romancista, notando-lhe a timidez e o vexame, queria pô-lo à
vontade. Magnânimo, isso sim; magnânimo como um leão.

— Vim interromper o seu trabalho, disse Anselmo tomando da mesa uma
espátula de osso.

— Não, por hoje tenho a minha conta. Ia agora justamente fazer
o meu pequeno passeio à chácara. Quer vir?

Pois não. Saíram seguindo para o fundo da casa. O que o romancista
chamara pomposamente, imaginosamente “chácara” era um terreno
bravio, que fora, em tempos mais prósperos, jardim cheiroso e de trato.
Um caramanchel, sobre o qual alastrava, viçosa, a verde folhagem de
uma passionaria, fazia uma arcada rústica dando passagem para esse
canto isolado e mudo de meditação e entulho. Ao centro, sitiado
pelo mato daninho, velho tanque escalavrado e seco, com um outeirinho ao meio
de onde subiam, largas e duras, as folhas de ferro de uma planta que, outrora,
esguichara a água sussurrante por um bico insinuado entre as hastes
derreadas e enferrujadas. Um banco forrado de conchas, com assento de mosaico,
escaldava ao sol, junto ao muro; outro fronteiro, resguardado pela ramada
frondosa dum tamarindo, com muita erva em torno e, derrubado, meio oculto
pelas ervas, um hércules de louça, fendido e enegrecido, com
a pele do leão sobre os ombros, um coto da massa ao punho, em atitude
contemplativa, jazia em esquecimento triste.

Os olhos alcançavam os fundos das casas vizinhas: janelas abertas
à luz, chaminés fumegando, mulheres debruçadas falando
para os quintais; e, de instante a instante, cortava fundamente o silêncio
o grito de uma araponga, metálico como a pancada sonora e ressoante
do malho na bigorna. Sentaram-se os dois e Anselmo pôs-se a falar saudosamente
da terra amada e longínqua, berço de ambos, província
farta que é um celeiro e um Parnaso onde, com a mesma exuberância,
pululam o arroz e o gênio; terra de algodão e de odes donde;
com ingrata indiferença, emigram os fardos para os teares da América
e os vates para a rua do Ouvidor; terra das líricas, terra das palmas
verdes, terra dos sabiás canoros.

O romancista ouvia a facúndia do patrício, fumando com a impassibilidade
de um turíbulo, os olhos altos como se seguisse um sonho. O silêncio
de êxtase em que ficou foi interpretado pelo estudante como uma prostração
de saudade.

Ele fora despertar na alma do patrício a nostalgia que o tempo consumidor
havia esmaecido, lembrando-lhe a terra nativa onde lhe haviam corrido os dias
da infância, onde haviam rolado as suas primeiras lágrimas. Céus
que seus olhos lânguidos tanto namoraram nas doces manhãs cheirosas
quando, das margens remotas dos grandes rios vinham, em abaladas, brancas,
sob o azul macio, as garças peregrinas; campos de moitas verdes onde,
nas arroxeadas tardes melancólicas, ao som abemolado das flautas pastoris,
o gado bravio, descendo das malhadas, em numeroso armento, junto, entrechocando
os chifres aguçados, mugia magoadamente quando, por trás dos
serros frondosos, lenta e alva, a lua subia espalhando pela terra morna o
seu diáfano e pálido esplendor; frescas ribeiras, sonorosas
onde o mururu expande o seu aroma, à noite; serras e alcantis agrestes,
sítios do alto sertão, cabanas hospitaleiras das estradas, noites
de idílio, noites de festa… Ah! Tabaroas morenas de olhos negros,
colos que cheiram como baunilhais, bocas que recendem mais que bogaris…
Ah! Minha terra! Cantilenas de amor junto à fogueira, balsas vogando
rio abaixo, ao sabor da corrente… Ó tempos nunca esquecidos! Ah!
Minha terra!

Dois pombos passaram no ar batendo as asas.

— Em que pensa? — perguntou Anselmo.

— Na minha terra. Enfim… que hei de fazer se o coração
entende que, apesar de tudo, hei de ter saudades dela.

— Apesar de tudo… Tem então alguma queixa?

— Se tenho alguma queixa?! Da terra, não: dos homens, muitas.
Depôs o cachimbo e, miudamente, em narração sentida, recapitulou
a sua história de sofrimento e heroísmo. Primeiro no comércio,
vida acabrunhadora e rude, toda material. De manhã, à hora dormente
d’alva, quando ainda, com a luz dourada que nasce, brilha a pálida
estrela, de pé, os olhos mal abertos, lá ia varrer os cantos
da casa, espanar o balcão, os móveis e arrumar à porta
as amostras. Depois todo um longo dia a servir, entre o tédio dos fregueses
e a grosseria dos patrões, ganhando apenas o alimento escasso que parecia
ser dado como esmola. À noite, num quarto abafado sobre uma enxerga,
com uma candeia lúgubre, enquanto os companheiros, extenuados, roncavam
trovejantemente abalando o tabique, entregava-se à furtiva leitura.
Lia, lia sem ouvir os sinos da Sé que, no silêncio adormecido,
gravemente anunciavam as horas. Lia, mas com que receio, estremecendo ao menor
ruído, preparando-se para soprar a candeia a fim de que o não
apanhassem em flagrante de tão nefando crime. E os galos cantavam,
rompia a manhã. Cerravam-se-lhe, então, as pálpebras.
Mas um dos companheiros, que dormira balordamente a noite toda, ia arrancá-lo
ao leito impelindo-o para a vassoura com o pulso acostumado às arrobas
dos fardos.

— Eh! Molenga! Quem sabe se temos aqui um filho de morgado!

Só aos domingos dava um pulo à casa e, com o rosto no colo
maternal, soluçava, sentindo uns dedos brandos e carinhosos andarem-lhe
pelos cabelos e, de vez em quando, um beijo na fronte. Mas quando os lábios
fugiam, no ponto em que soara o beijo, lágrimas ficavam.

Mas quis Deus que o livrassem do tormento — lá foi aos estudos
e, à medida que no Liceu escutava a palavra lenta de Sotero, o mestre
amigo que sabia de cor Horácio, Ovídio e Virgílio, no
atelier de um artista passava as horas de folga familiarizando-se com o desenho:
estirando as primeiras linhas, contornando imagens, debuxando academias, entre
esboços de telas, estudos, manchas, até que, um dia o mestre,
dando-lhe tintas, uma tela nova e liberdade, escancarou a porta larga do atelier
que abria para um terreno amplo, mostrou-lhe a Natureza, a esplêndida
e viva Natureza na sua agitação alegre, num esplendor de cores,
numa harmonia de sons e disse-lhe: trabalha! Foi nesse dia de deslumbramento
que ele sentiu no coração o surto artístico. Era a vida.
Trabalha!

E, maravilhado, dilatando os olhos e lançando-os livremente pelas
aveludadas relvas, pelas frondosas copas do arvoredo, pelas águas claras
que fugiam e pelo céu alto, magnífico, de um azul forte, sem
mancha de nuvem, tomou dos pincéis e, febrilmente, com enlevo, foi
transportando a Natureza, tal qual a via ao ar livre, sem sentir o ardor cáustico
do sol que lhe dourava a cabeça ardente. De quando em quando ouvia
a voz animadora e simpática do velho mestre: “Trabalha!”

Ele não precisava que lhe dissessem — era com ânsia que
ali estava, possuído, num delírio, como se receasse que a tarde
viesse rápida e apagasse aquelas cores admiráveis que eram as
galas da terra e as maravilhas do espaço. Ainda uma vez, porém,
a sorte foi-lhe ingrata e adversa. Uma manhã, desolada manhã!

Os sinos dobraram de espaço a espaço, lúgubres, e, rápida,
correu a notícia da morte do pintor.

Tinha em tão alta consideração o mestre que não
se contentou com os ofícios fúnebres que celebraram em duas
ou três igrejas, com órgão, mas, cultualmente, porque
lhe faltava quem, com resignação, se prestasse a ser vitimado
com um golpe de faca, à maneira gaulesa, sobre a laje branca e fria
do túmulo do artista, tomou dum metro de tela e, rebuscando na história
do mundo um episódio que lhe fornecesse farta mortalha, achou a revolução
francesa que, prodigamente, lhe cedeu a hóstia desejada.

Pôs-se então a pintar com abundância de vermelhão
da China. Escolheu uma rua da velha Paris, apertada e sombria. As casas, altas,
de quatro e cinco andares, desaparecem sob o acúmulo de mortos, porque
há cadáveres até ao alto das goteiras. Aqui, os pés
de um patriota; ali, a cabeça de uma criança; além o
ventre estripado de uma mulher; e, saindo da hecatombe, hirto como um fueiro,
o braço de uma das vítimas ameaçando a tirania. O fundo
do quadro oblativo, de perspectiva trágica, é um coágulo
de sangue, expressão, em rubro, do anunciado jour de gloire.

O quadro tem gênio, o que o mata é o zarcão hemorrágico.
É um necrotério. O autor tinha vinte anos e, nessa idade, quem
faz questão de mais ou de menos mortos? Ele queria o grandioso e atirou
à tela toda a população da França espatifada,
a população da França e gente das colônias, porque
há lá um pé, certamente da Martinica, muito em destaque
no sarapatel heróico.

Exposto o quadro foi tão grande o espanto que a cidade ficou deserta
como um cemitério e os mortos foram transferidos para o gabinete do
artista, onde esperam o juízo final.

Por esse tempo andavam-lhe no cérebro umas idéias novas e um
impulso novo levava-o a outros exercícios mais intelectuais que o do
pincel. Em abandono desolado, sem o conforto do mestre, refugiou-se no seu
gabinete donde, como um profeta vingador, vivendo em cenóbio para fugir
aos vícios torpes do mundo e às seduções do pecado,
mandava, em largas páginas, nervosamente escritas à luz serena
da Moral, a terrível e fulminante “polêmica” contra
os padres que, de batina arregaçada e solidéu relambório
posto à banda, com ares devassos e desabridos de capadócios,
iam anuviando as almas simples com pregações obscuras quando
a quaresma fúnebre chegava, enchendo a cidade de melancolia e dum cheiro
insípido de incenso.

A cleresia uivou e uivaram as classes conservadoras. O jovem demagogo era
olhado com asco pela gente pacata e as velhas, se, por acaso, viam-no passar,
caminho do jornal, que era o oráculo de onde ele anunciava os crimes
dos intrujões de sotaina, que tocavam para o arrabalde, em noites claras,
com mulherio e vinhaça, bebendo e folgando até à hora
em que o sol os devia trazer humildemente, santamente, aos confessionários,
as boas velhas, se o viam passar, procuravam, trêmulas e aflitas, as
contas dos seus rosários e pediam a graça de Deus para aquele
espírito endemoniado.

A celeuma foi grande e redobrou de violência quando, inesperadamente,
ele atirou ao meio pacato, como uma bomba, o seu primeiro romance, libelo
formidável contra o preconceito. As famílias bradaram, o comércio
rugiu, a cleresia esbravejou e um jornalista dos mais conspícuos, ferreteando-o
com a vilta de “zote”, conjurou-o a deixar “a vidinha peralvilha
de escritor indo, de preferência, para a foice e o machado. Já
que tanto amava a natureza e não acreditava na metafísica, nem
respeitava a religião, tendo entusiasmo apenas pela saúde do
corpo e pelo real sensível ou material, que se fosse a cultivar as
terras ubérrimas”. E clamava, terminando: “À lavoura,
meu estúpido! À lavoura! Precisamos de braços e não
de prosas em romances.” E, conceituosamente, em rasgo de sabedoria, perorou:
“Res non verba.” E o jornal em que saíram estas palavras
tinha, no cabeçalho, em grandes letras gordas, o preclaro e sugestivo
título de: Civilização.

Apesar dos acirrados vitupérios da crítica e dos esconjuros
indignados do beatério o livro teve saída: em menos de um mês
esgotaram-se mil volumes e, na capital, um brado uníssono saudou triunfalmente
o romancista que, desde então, não teve outro pensamento senão
o de transportar-se ao Rio de Janeiro, com o produto da venda do seu livro
maldito.

E fez-se de rumo para o Rio, a cidade ideal dos que têm na alma uma
aspiração. E como ele a divisava através da fantasia!
Uma cidade suntuosa, culta, intelectual e nobre, onde os artistas eram olhados
com admiração e respeito, como em Florença, no tempo
dos Médicis, quando, diante de Cosme, o Magnífico, Miguel Ângelo
animava com o seu cinzel vital os mármores impassíveis e fazia
irradiar a tela com a magnificência grandiosa das suas tintas.

Logo que saltou no cais com as malas e a tela sanguinolenta que recebera,
para todos os efeitos, o título de A Barricada, sentiu grande peso
no coração e os olhos foram-se-lhe saudosos pelo mar imenso.
Vago pressentimento de infortúnio punha-lhe densas névoas na
alma, mas a grande luz animava-o — reconhecia o céu, reconhecia
o sol, eram os mesmos, que lhe importava o resto?

Se, por vezes, combalido, o seu espírito cedia à tristeza e
ao desânimo, como a voz espectral do velho Hamlet, correndo subterrânea
e soturna bradava aos de Elsenor: Jurai! Subia do fundo da sua memória
a voz meiga e animadora do mestre: — Trabalha!

E foi o espírito amado que o apresentou. Não quis estrear com
a pena, preferiu o lápis, e fez-se desenhista de um jornal ilustrado.

Mas a vida começou ingrata e árdua. Quantas noites de desalento!
Quanta amargura! Quanta saudade! E, nem sequer o colo da velha mãe
para repousar a cabeça, nem os seus beijos, nem os seus carinhos…
De longe em longe, uma carta trazendo a bênção; e era
só.

E se uma doença o prostrasse?! Quem havia de ficar à sua cabeceira
como ela ficava, noites e noites, de olhos abertos, solícita e acariciante?
Mas a voz do mestre levantava-lhe o ânimo:

— Trabalha!

Deixou o lápis, molhou a pena e, noites longas, num quarto pobre,
que era como a gruta dos ventos, enchendo tiras e tiras, concluiu outro romance
e, desde essa época, ora num alto sótão, ora ao rés
do chão, suspendendo A Barricada a centenas de paredes, correu a cidade
com as tintas secas na palheta, com os fios dos pincéis endurecidos,
seguindo a grande Alma do povo nas suas ruidosas alegrias, nos seus inconsolados
sofrimentos.

Entrava na oficina do operário, subia às pedreiras e, enquanto
a broca ia furando o granito, sob a radiação vivíssima
do sol, auscultava o coração do homem rude. Ia aos mercados,
aos quartéis e, à noite, disfarçado, de blusa e tamancos,
um gorro à cabeça, o cachimbo à boca, penetrava as estalagens
confundindo-se com os que fervilham nesses formigueiros de almas; sentava-se
à mesa das tavernas lôbregas, fazia-se das farândolas e
assim, mergulhando nesses oceanos, trazia as pérolas que encravava
nas páginas dos seus livros. Era essa a sua história. Anselmo,
que ouvira extasiado, quando o romancista terminou disse, com inveja de todos
aqueles sofrimentos:

— Sim, mas venceu! Hoje descansa e tem um nome glorioso. Ruy Vaz sorriu
reacendendo o cachimbo e Anselmo, pondo-se de pé, exclamou:

— Pois eu agora é que vou começar a viver.

— Das letras?!

— Sim.

— Dize então, e dirás melhor e com mais acerto: vou começar
a morrer.

— É possível, será um suicídio, mas não
posso com o Direito. O Corpus Juris é o meu pesadelo. Tenho horror
a tudo aquilo. O Oriente, o luminoso Oriente!… A Grécia com os seus
deuses e com os seus heróis, a Índia com os seus mistérios.
Isso sim! Sinto-me arrastado para essas idades. Amo o antigo e esse entranhado
amor faz com que eu acredite na metempsicose. Eu fui grego, pelejei nas Termópilas…

— E apanhaste um golpe na cabeça que te levou uma aduela.

— Palavra de honra! Afirmou convencidamente o estudante e, assomado,
pôs-se a discorrer e, enquanto referia episódios clássicos
de Homero, de Hesíodo, de Xenofonte, Ruy Vaz, que lhe mirava os sapatos
muito lustrosos, perguntou:

— Qual o teu número?

— Meu número? 128.

O romancista ergueu-se violentamente.

— Como?! 128…! Não são tão grandes os pés
dos versos do Rodrigues. Falo do teu calçado.

— Ah! Pensei que se referia ao meu número de matricula: 38.

— Trinta e oito. Então somos gêmeos. É também
o meu. Levantou-se e, depois de lançar um novo olhar aos sapatos do
estudante, convidou-o:

— Vamos! O sol começa a abrasar. E caminharam vagarosamente
para o quarto onde o criado, como um ciclone, atirava furiosas vassouradas
levantando uma nuvem de poeira.

Tiveram de esperar um instante ao ar. Logo, porém, que o criado deu
por terminada a limpeza, entraram e Ruy Vaz foi ao lavatório fazer
uma ligeira ablução e, enquanto mergulhava as mãos espalmadas,
batendo na água com a volúpia de um cisne acalmado, o estudante,
de cócoras, examinava as estantes passeando os olhos pelas lombadas
dos livros, atirados ao acaso em mistura incongruente e confusa: a Manon,
de Prévost, estava apertada entre decrépitos volumes de Helvécio
e um massudo relatório do ministério do império; Homero,
numa intangida brochura, tinha familiarmente ao lado um volumete: Urzes e
flores, dum Mendes, de Araraquara, contemporâneo e piegas.

Era assim em todos os raios — a douta filosofia acotovelada pelo romantismo
ridente; a religião com os seus mistérios da vida superior e
as suas consoladoras promessas de eternidade e bemaventurança esbarrava
com as duras palavras céticas de Schopenhauer e de Hartmann, e Musset,
meigo e amoroso, gasto do muito uso que dele havia feito toda uma geração
de sentimentais, dormia sobre um atochado volume de Annaes da câmara
dos deputados do ano de 1851.

— Tens alguma coisa urgente a fazer na cidade? — perguntou o
romancista enxugando as mãos.

— Não. Por quê?

— É que eu preciso dos teus sapatos.

O pasmo do estudante não passou despercebido ao autor de A Barricada.

— Imagina a minha situação. Tenho um caso de amor, amor
fino; o meu lunch de hoje vai ser um fruto proibido. É uma dama da
élite: loura, de olhos azuis, uma cabecinha de Botticelli. Vive a bocejar
entre os sessenta anos gelados e impertinentes do marido e a ferrenha catadura
do avô reumático, que enche a casa de gemidos quando a não
abala com os roncos. Esse lírio formoso espera-me hoje às 3
horas da tarde, enquanto o marido discute no Senado uma prudente medida de
salvação nacional e o avô toma o seu choque elétrico.
A ocasião é das mais favoráveis. Dá-se, porém,
o caso grave de eu não ter, no momento, calçado idôneo.
As mulheres têm o olhar curioso e essa então, que é pudica,
no primeiro instante baixará os olhos e dará pelos meus sapatos,
que começam a descambar em alpercatas. Tenho ali um par de botinas,
mas apertam-me como credores, e tu compreendes que um homem que vai para tão
arriscada fortuna deve ir preparado para todos os casos, principalmente para
correr. Imagina que morre um senador e suspendem a sessão ou que, por
excesso de umidade não funciona a máquina elétrica, como
hei de eu, com os pés entalados, fugir à cólera do marido
ou à fúria do avô? Um é bravio na oposição,
deve ser tremendo em se tratando da honra doméstica; o avô foi
revolucionário, viu muito sangue, e feroz. De mais, as minhas botinas
(falo-te como a um irmão) têm um vício inveterado que
me faz perder um tempo precioso sempre que delas me sirvo. Tenho os minutos
contados, devo seguir diretamente, aladamente se possível for, para
Laranjeiras e, se eu as puser nos pés, sei que vou ter à secretaria
de Agricultura.

— Como?!

— É uma história. Empresta-me os sapatos e, às
cinco, estou aqui com eles.

— Pois não. Mas a história…?

— Ah! Falando, Ruy Vaz, para não perder tempo, ia vestindo-se.
A história é simples. Já pensei em escrevê-la com
o título: A psicologia das botas. Há botinas de primeira mão,
ou antes: de primeiro pé, e há botinas sabidas. Sabido é
o calçado experiente que já serviu a outrem, e por velho, passou
à tripeça do remendão que lhe pôs uma tomba e uma
sola, vendendo-o por preço cômodo aos que vivem a esperar sapatos
de defuntos. Não penses que te quero chamar defunto, nem contava hoje
contigo. A felicidade vem sempre inesperadamente. As sabidas guardam os hábitos
do primeiro dono. Se serviram a um militar forçam os pés ao
ritmo da marcha; se foram de um amanuense levam-nos à secretaria e
assim por diante; é macabro, mas é verdadeiro. Tive um par de
botas que me arrastava sempre para as praias, para as casas de armas, para
as farmácias, para os trilhos dos bondes. Preocupado com essa contumácia
dei-me ao estudo do caso e convenci-me que o primeiro dono fora um desgraçado
que tinha mania do suicídio. Essas que agora possuo foram, com certeza,
na primeira encarnação, de algum empregado da secretaria de
Agricultura. Os teus sapatos são novos?

— Comprei-os ontem.

— Ah! Então são puros, não estão ainda
viciados. Vou com eles como se levasse nos pés as asas de Mercúrio.
Dá-me-os. O estudante, meio desconfiado, tirou os sapatos e mergulhou
os pés nas desbocadas chinelas do romancista. Rápido, Ruy Vaz
calçou-os e pôs-se de pé radiante.

— Então, servem?

— Ora! Estou como no Paraíso! Não há como a gente
ter o mesmo número e é maravilhosa a exatidão das matemáticas.
Grande coisa o algarismo! Mas fez uma careta: — Diabo, o teu 38 é
caixa baixa, tem pouca altura. Tens o pé muito seco, isto é
mau. O pé é a base do homem, deve ser forte. Enfim… como o
calor dilata os corpos e todo eu ardo em ansiedade… até logo! Tomou
a bengala, acendeu um cigarro e estendeu a mão ao estudante:

— Olha, tens aí poetas e filósofos. Sobre a mesa há
o volume de odes de um vate goiano, se quiseres dormir. O fumo está
aqui nesta velha faiança. Até logo! Se vier alguém não
estou em casa, podes mesmo dizer que fui para Petrópolis ou para São
Paulo, embarca-me para onde quiseres. Até logo! Já à
porta, voltou-se: Se queres fazer exercício de idílio apurando
a ternura, das quatro em diante costuma aparecer a uma janela dos fundos daquela
casa, que tem a parede blindada de zinco, uma menina ruiva, arrepiada, de
olhos chorosos que se presta pacientemente a ouvir declamações:
Vai lá para o banco da chácara. Franziu de novo o nariz, torcendo
o pé: Diabo! Decididamente tens o pé muito seco… e isto está
me incomodando deveras. Até logo, às cinco. E foi-se.

Capítulo II

Anselmo ficou a meditar sobre a estranha Psicologia das botas e sobre o destino
dos seus sapatos. Já os via penetrando, com discreção,
a câmara da entediada e loura dama. Já os via afundados nos felpudos
tapetes, já os via aconchegadinhos às sandálias bordadas
da amorosa, falando-lhes em segredo, perto do leito, enquanto os donos…

Ah! O dono dos sapatos era ele e ali estava só, com duas velhíssimas
chinelas nos pés, entre livros, diante de uma mesa carregada de papéis
onde reluzia a pasta do escritor, bojuda e larga. Que havia de fazer para
não sentir as horas lentas e caladas que iam passar? Tirou o casaco
e o colete e, senhor da casa, sentiu uma pontinha de despeito, mas recompôs
o espírito alvoroçado com um argumento fino e justo: “Sim,
se lhe emprestei os sapatos ele confiou-me a casa que, se não vale
pelos móveis, duma deplorável banalidade, muito merece pelo
que há ali naquela pasta atochada, preciosa como um tesouro e por aquela
soberba Barricada que, se agora as aranhas profanam, mais tarde há
de ser disputada com o mesmo furor artístico com que hoje os milionários
se batem a moedas por um palmo de tela da Renascença.” Sentou-se
à mesa, tomou um volume, abriu-o ao acaso, e leu:

Une nuit que j’étais prês d’une affreuse Juive, Comme ou long
d’un cadavre, un cadavre étendu, Je me pris à songer…

Eram versos de Baudelaire. Apesar de os conhecer, deixou-se levar por eles,
embalado no ritmo das estrofes, seduzido pela sonoridade das rimas, mas, de
quando em quando, desviava-se-lhe o espírito: a transcendente Psicologia
das botas perseguia-o e os seus sapatos como que lhe passavam por diante dos
olhos animados, fugindo numa névoa para a câmara cheirosa de
uma mulher loura, que surgia dentre sedas e linhos, esplêndida de graça
e nua como a Vênus quando nasceu do mar, enrolada em rendas de espumas,
à luz do sol da Hélade divina.

Levantou-se bocejando e, mole, sob o influxo dormente do silêncio e
do sol que espalhava um suave narcótico no ar, atirou-se à cama
com o Baudelaire e leu até que o livro aberto lhe caiu sobre o peito
e os olhos se lhe fecharam languidamente.

Que horas seriam quando despertou? Vinha perto a noite. A brisa era fresca,
a luz era branda. Sons de flauta passavam no ar. Seria o rouxinol? Não,
não era o rouxinol nem era a cotovia, mas um vizinho melómano
que soprava o tubo. Ergueu-se, foi lavar o rosto e, revendo-se ao espelho,
lançou à própria imagem esta interrogação
preocupada: “Por onde andarão os meus sapatos?” Escurecia.
Começava a entediar-se quando bateram à porta discretamente.

— Quem é?

— Sou eu, disse alguém com preguiçoso vagar. Foi à
porta, entreabriu-a e distinguiu um vulto imenso de mulher. Como lera a Géante,
de Baudelaire, atribuiu a aparição daquela monstruosidade à
sugestão da leitura. Mas a aparição movia-se, coçava
o queixo e falou:

— Sinhá mandô sabê vosmicê cum passô
e si vai lá…

— Sinhá! Quem seria a solícita criatura?! Alguma formosa
mulher, sem dúvida; talvez a musa reinante do romancista. E que lhe
havia de mandar dizer?

— Olha, dize-lhe que estou passando mal. Torci um pé justamente
quando me vestia para ir jantar. Como vai ela?

— Ela tá boa. Então vosmicê não vai?

— Não posso. Dize-lhe que estou impossibilitado de sair.

— Sim, sinhô. E a imensa mulher moveu-se na sombra pesadamente
e foi-se. Quem será?! — pensou de novo Anselmo olhando tristemente
para os pés, como um pavão. Sinhá!?..

Mas… por onde andarão os meus sapatos!? E, conjeturando, debruçou-se
à janela, já aflito, vendo chegar a treva sem que, ao menos,
tivesse à mão, para alumiar o aposento, uma reles candeia. Como,
porém, o almanaque anunciava para a noite seguinte lua cheia contava
com a presença clara do astro.

Efetivamente uma luz pálida foi-se desdobrando e branqueando os muros,
entrou pela janela, foi até ao fundo do quarto pondo uma fronha alvíssima
no travesseiro do leito e uma piedosa mortalha sobre os mortos de A Barricada.
O corredor cimentado ficou mais branco que o mármore e os grilos, enlevados,
cantaram nas frinchas dos muros enquanto os morcegos, trissando, passavam
no ar sossegado que os jasmins abertos perfumavam.

Anselmo começava a sentir as exigências do estômago, o
ventre tirânico mandava-lhe recados ao cérebro.

— Acordou a jibóia! disse, como se falasse à lua. Efetivamente
a jibóia acordara e a tempo, valha a verdade, visto como o primeiro
repasto fora às onze da manhã e, como era verão, dos
dias longos, era justo que, a horas tão adiantadas da tarde, tendo
digerido, ela reclamasse nova ração. Mas como havia ele de acudir
à fome se não se podia mobilizar preso, como estava, pelos pés?

Entrou em cólera surda invectivando o romancista e ia já transpondo
o terreno vil da injúria quando ouviu passos arrastados e reconheceu
a alentada mulher, que vinha, de novo, pelo corredor, anunciada por alegre
retinir de louças, precedida de suave aroma de guisados, mais grato
que o dos jasmins abertos.

Era ela, a desconforme criatura, e trazia uma bandeja coberta por uma toalha
alva como o luar. Deu com ele à janela e, sem falar, sorrindo, passou
a porta e depôs sobre a bojuda pasta a abastecida bandeja.

— Sinhá mandô dizê qui vosmicê não
arrepare… Mas cumu vosmicê disse qui não podia sahi móde
o seu pé…

— Oh! fez ele descobrindo, com veneração, a bandeja,
é muito amável. Sim, era amável a misteriosa dama e devia
ter um cozinheiro perito.

A sopa era dourada e rescendia. Por certo lá ao alto, no luminoso
e calmo espaço, todo cheio do esplendor do astro, chegou o perfume
porque a lua, dividida em partículas como uma hóstia, veio boiar
nos olhos que cintilavam, como ardentias, sobre a superfície da sopa
tão dignamente contida em uma tigela de porcelana da China. Havia uma
fritada, um triângulo fofo e louro, incrustado de camarões, tendo
no vértice uma gorda azeitona de Elvas; um prato de cabidela, fatias
sangrentas de roast-beef, entre folhas tenras de alface, ladeadas por duas
lascas de fiambre de uma cor de rosa macia; pão, vinho, dois damascos
em calda, num pires, e uma grossa talhada de queijo.

A jibóia torcia-se com ânsia, atirando botes como se quisesse
abocanhar de uma vez tudo quanto havia. O aroma punha-a em desespero inenarrável.
Mas Anselmo como que se comprazia com o suplício da besta íntima,
sorvendo voluptuosamente o perfume dos pratos e regalando os olhos com aspecto
sedutor das iguarias.

Ó ciência difícil dos temperos! Ó arte sutil da
ornamentação dos pratos. Um roast-beef, sem o recamo da alface,
é como a mulher sem meias. Que delícia! Quem diria que ele havia
de sair do leito para aquele delicado festim: De cubiculo recta in triclinium
ire! Assim dizia Anselmo no coração enquanto a boca ia-se-lhe
enchendo d’água.

A lua foi a companheira que teve, alegre e sóbria companheira, e a
mulher, sentada pacientemente à porta, pôs-se a sussurrar um
canto enternecido em que falava de amores, enquanto ele sorvia a colheradas
a sopa que era um delicado polme de ervilhas sabiamente temperado, com leve
sabor de paio e uns longes suaves de cravo-da-índia, Depois foi a fritada,
depois a galinha e só ficaram na bandeja migas de pão, ossos
de frango, um caroço de azeitona, dois de damascos, a casca recurva
e roxa do queijo e palitos, o mais passou sofregamente ao bojo da jibóia
que se enroscou de novo para digerir sossegada.

Só faltava o café, o café e a dama que bem merecia uma
página de Arte, uma longa e rendilhada apologia, não dos seus
dotes plásticos e de espírito, mas do seu fino paladar, tão
nobremente recomendado por aqueles pratos rescendentes. Mas para o cozinheiro,
como para o anfitrião, vale mais que todas as palavras, que podem não
ser sinceras, a prova irrefutável dos ossos esburgados.

Sim, um elogio rasgado diz menos, e com menor expressão, do que quatro
ossinhos lisos, chuchurreados, no meio do prato raspado. Pensou em atirar
ao corredor os restos do banquete, mas não: queria que a generosa dama
e o sábio cozinheiro vissem, com orgulho, que tudo havia comido, com
escrupulosa gana, não deixando senão o que de todo lhe fora
impossível engolir, como ossos e caroços. Esgotou a garrafa
e, saciado, num bom humor de fartura, foi rebuscar no colete uns níqueis
e deu-os à estupenda mulher que, à luz branda do luar, parecia
menos aterradora e pesada. Oh! a delícia da saciedade!

— Deus lhe pague!

— Pede-lhe antes que me traga os sapatos. A mulher não entendeu
e, guardando as moedas cautelosamente no seio, que era um outeiro em volume,
tomou a bandeja e foi-se levando os ossos e novecentos réis. Anselmo
acendeu um cigarro e debruçou-se à janela, enlevado na beleza
da noite e, com os olhos no céu, pôs-se a recitar baixinho:

Le mal dont j’ai soulfert s’est enfui comme un rêve, Je n’en puis comparer
le lointain souvenir Qu’à’ ces brouillards légers que l’aurore
soulève Et qu’avec la rosés on voit s’évanouir.

Era a primeira estrofe da “Noite de Outubro” de Musset e ia aos
versos da Musa:

Qu’aviez-vous donc, o mon poète!

quando Ruy Vaz apareceu no corredor. Anselmo sentiu a alma dilatar-se.

— Fui além da hora. Ah! meu amigo, se não fosse lembrar-me
que estavas aqui descalço teria passado a noite a desfolhar malmequeres.
Esplêndida criatura! Atirou o chapéu sobre a mesa e respirou
desafogadamente, Divina mulher! E tu? Como te foste? Leste as odes?

— Não: reli Baudelaire, dormi até a noitinha e, como
estava com o estômago em condições de Deus poder reproduzir
o milagre da criação do mundo, fiz de Elias aceitando um jantar
que me caiu do céu.

— Eis aí um hotel que ainda não me forneceu pensão.
Mas sem frase: — Onde jantaste?

— Aqui. O luar foi a toalha; jantei sobre a tua mesa de trabalho.

— Mandaste vir de algum hotel?

— Não. Apareceu-me a Providência, não como ao profeta
sob a forma de um corvo — mas disfarçada em exuberante mulata…

— Vê lá! Não tenha o demônio armado uma cilada
ao teu estômago. Também a Santo Antão foi servida uma
mesa lauta e todavia…

— Não, a mulata veio em nome de uma misteriosa mulher saber
se aparecias hoje.

— Uma mulata monstro?! Uma mulata em dois volumes?! a Januária!
A Januária da Elvira! exclamou o romancista.

— Não sei; eu tinha fome e não tinha sapatos.

— E pediste jantar…?

— Não; nada pediste. Digo assim porque a mulata tomou-me por
ti, no escuro; disse apenas que não contasse contigo porque, havendo
torcido um pé, estavas impossibilitado de sair. Devo o jantar à
sagacidade da mulata. Retirou-se tornando, pouco depois, com uma bandeja opípara.
Entendi que não te ficava bem fazer cara a tão saborosos e perfumados
pratos e tratei-os com a deferência de que eram dignos.

— Essa agora!

— Estás preocupado…?

— Com razão. Essa mulher, essa nefanda Elvira, é uma
pérfida; traiu-me e com o meu alfaiate e eu tinha jurado cortar de
uma vez para sempre o fio que nos ligava e agora…

— Acho que fazes mal. Uma mulher que janta como essa deve ser excelente
menagére. Não a conheço senão através da
sua cozinha; não sei se é loura, se é morena, se tem
os olhos pretos ou garços, juro, porém, que tem em casa um admirável
cozinheiro.

— Um coração volúvel como uma nota de mil réis.
Enfim, o mal está feito; não quero interromper a tua digestão…
e está aberto o precedente para os dias nefastos. Começas bem,
não há dúvida. Outros andam atrás de jantares
e a ti vêm os jantares, e com sobremesa. Hás de dar-me o segredo
do teu talismã. Podes ir longe, principalmente se subires mais um ponto
no calçado; tens o pé demasiadamente seco, é um Ceará.
Devolvo-te os sapatos. Anselmo calçou-os imediatamente e, vendo que
o romancista procurava alguma coisa debaixo da cama, riscou um fósforo.

— Obrigado. Cá estão eles. Arrastou um par de veneráveis
botinas, nas quais os pés desapareceram como por encanto e respirou.
O bom filho à casa torna. Não há nada como a liberdade.
Como me sinto bem na largueza… Nem parece que estou calçado.

Anselmo vestiu-se e, vendo que o romancista passava a escova nos cabelos
e retorcia os bigodes, perguntou:

— Vais sair?

— Vou ao Sant’Anna. Tenho lá uma peça, quero ver se o
Heller resolve alguma coisa. Por que não vens? Está uma noite
linda e fresca.

— Posso ir.

— Então vamos. Estamos na hora e tenho ainda de passar no meu
charuteiro para apanhar uns colarinhos. Fecharam a janela e a porta e saíram.

Foram seguindo devagar, à luz da noite, sob a carícia do ar,
fino e tépido como um hálito humano.

O parque era uma extensa massa de verdura onde o luar punha reflexos de prata.
As casas abertas recebiam a brisa e exalavam bafios quentes de forno. Passavam
bondes apinhados, carros rodavam lentamente e os lampiões, em alas,
estendiam reticências de ouro ao longo das ruas. Nos hotéis cheios
havia um confuso rumor de vozes, tinidos de copos. Às mesas, de sórdidas
toalhas, chalravam os trabalhadores, em mangas de camisa, os pés em
grossos tamancos, soprando para o ar viciado densas baforadas de fumo. Era
a gente sadia e forte da labuta brutal: homens de bíceps hercúleos,
abaçanados das soalheiras, que repousavam estirando as pernas depois
de bem repastados; eram os colonos que se reuniam, como em ágape fraternal,
recordando a pátria, com pilhérias fortes de mesa à mesa
e grandes obscenidades que faziam estourar gargalhadas.

Os caixeiros iam dum a outro com o parati, diziam a sua chalaça e,
como havia intimidade entre esses homens, a pretexto de pândega, trocavam-se
murros, mas ninguém se revoltava — era um divertimento heróico
como de leões que, depois de haverem esquartejado a presa, a golpes
de garras, nas clareiras desertas, perto das límpidas águas,
rugindo, rolando, com as fauces rubras de sangue, brincam amigamente enquanto
as fêmeas fartas, deitadas de flanco, os olhos semicerrados, deixam-se
sugar pelos cachorrinhos.

Mais adiante, à porta de uma taverna, castanhas estalavam ao fogo
e, junto ao balcão, sentado numa saca, um lazzarone, o cachimbo nos
beiços, ia tirando da sanfona os sons da Mandolinata. O rumor crescia
confuso: apitos de bondes, gargalhadas, estouros de garrafas, rodar pesado
de carroções que se recolhiam e, no alto, sempre a paz maravilhosa
da noite estrelada.

Quando chegaram ao largo do Rocio, Anselmo fez uma observação
sutil citando Heródoto. Em Babilônia havia, ao menos, um subúrbio
sagrado onde avultava, entre cedros e loureiros, o templo de Mylitta, ainda
assim o historiador clama contra a vergonha Que diria ele se, revivendo, viesse,
tantos séculos depois, olhar a prostituição que aqui
transborda e vai invadindo, como um vírus, todas as artérias
da cidade? Lá, ela estava confinada, aqui expandiu-se — é
um polvo que lança os tentáculos a toda parte. Não há
uma rua em que se não encontre a aranha emboscada na sua teia.

— Estás moralista, disse Ruy Vaz, sorrindo. As mulheres, debruçadas
às janelas, entre as cortinas, algaraviavam. O olhar, penetrando, dava
imediatamente com os leitos muito lisos, muito alvos, ao fundo dos quartos
entreabertos e iluminados. Não contentes com a exposição
dos corpos ainda chamavam os transeuntes, atiravam-lhes botes e era em toda
a ala, nos pavimentos térreos e nos sobrados, um rinchavelhar devasso
de centenas de criaturas e aquilo lembrava uma cena de mercado oriental onde
acudiam piratas levando mulheres de todos os países, expondo-as nuas,
apregoando-lhes a beleza, obrigando-as a falar, a cantar para que os azevieiros,
que as andavam examinando, não só lhes vissem as formas sensuais,
como também lhes ouvissem o timbre fresco e cantante da voz.

Umas fumavam; outras, já velhas, encarquilhadas, tristonhas, recaídas
sobre o umbral, com a cabeça derreada, os olhos no céu, pareciam
enlevadas e maquinalmente chamavam os que passavam perto, estendiam com vagar
a mão, mas logo quedavam vendo-se desatendidas e baixinho, de novo
elevando os olhos, repunham-se a cantar.

Pensavam, talvez, na pátria que haviam deixado, iludidas pela falácia
do rufião. Pensavam nas suas pobres cabanas, nas aldeias geladas…
Reviam-se na infância, levando o gado aos montes ou seguindo com a foicinha
o bando dos ceifeiros para os campos de trigo ou de feno, nos dias alegres
do outono. Pensavam nas noites tristes de bravio inverno, noites de vento
e de neve quando, junto à brasa viva da lareira, os seus velhos parentes
falavam da miséria pedindo a Deus um dia, ao menos, de sol para que
os pequenos pudessem ir à orla da floresta recolher um pouco de lenha,
que não havia para mais de uma noite e, quando a não houvesse,
que seria deles, pobres velhos! E que seria das míseras crianças!

Pensavam e o peito subia-lhes em arfar angustioso… É que haviam
visto, muito longe, alguém, alguém que, quando virgens, tanta
vez saíram a esperar numa volta do caminho, quando o sino soava a hora
crepuscular; alguém a quem haviam jurado amor e a quem haviam traído
deixando-o pelas promessas enganosas do homem que as fora arrancar, para sempre,
à felicidade e à honra.

Ah! mas era preciso viver… Gente passava. “Vem cá! Olha…”
diziam molemente as desgraçadas com leve tremor na voz.

Outra, sentada numa cadeira de balanço, cochilava e, pela janela entreaberta
de uma casa, Anselmo viu, não sem espanto, outra, em camisa, braços
nus, pernas nuas, indo e vindo disfarçadamente, a abanar-se.

— Que cinismo…! Rapazes paravam às portas, chalaceavam e,
de repente, fugiam a rir perseguidos por uma saraivada de impropérios
e, como há uma forte solidariedade entre essas mercenárias,
de janela a janela a indignação corria e todas, enfurecidas,
injuriavam os que haviam, por troça, irritado a companheira que ainda
esbravejava indignada, ao longe.

E vagaroso, os braços para as costas, o cigarro nos beiços,
o soldado da ronda passeava sem dar atenção à balbúrdia,
surdo às obscenidades que explodiam ao longo daquela feira torpe. Ruy
Vaz parecia indiferente a tudo. Ia de olhos baixos, sem dar atenção
aos reclamos indecorosos que lhe atiravam as mulheres.

— Isto aqui, meu amigo, é mais perigoso do que o caminho que
levava ao sítio encantado onde havia a árvore que cantava, o
pássaro que falava e a água amarela. Deve-se passar por esta
calçada com os ouvidos atochados de algodão para que nos não
suceda o que sucedeu aos irmãos da princesa Parizada, que foram transformados
em pedra.

— Não é preciso recorrer às Mil e uma noites para
buscar um modelo de energia. Temos aqui a polícia, mais indiferente
aos escândalos do que Ulysses à voz das sereias ou do que a tal
princesa ao clamor das pedras.

Espera aqui um instante. Haviam parado diante de um charuteiro. Ruy Vaz entrou
deixando Anselmo à porta. O estudante lançou os olhos pela praça.
Duas filas de tílburis reluziam à fulguração do
luar. Sons de música vinham de longe, em ondulações,
ora brandas, ora fortes, conforme as variações da brisa. Cocheiros
discutiam na calçada; passavam famílias à pressa, caminho
dos teatros. Quando Ruy Vaz saiu com um embrulhinho, Alselmo estava distraído,
de olhos perdidos, cantarolando.

— Vamos?

— Vamos. Seguiram para a rua do Espírito Santo, iluminada pelas
grandes rosáceas dos teatros. Ao fundo o Recreio resplandecia como
a entrada de um templo. Um homem esgoelava-se anunciando “empadinhas
de camarão!” e os cambistas assaltavam os que apareciam oferecendo
bilhetes, garantindo que na casa não havia número que prestasse.

À porta do Sant’Anna uma multidão apertava-se. Discutia-se
e os cambistas investiam como pobres em adro de igreja, empurravam-se, injuriavam-se.
Anselmo deteve-se um momento diante do bilheteiro; Ruy Vaz, porém,
tomou-o pelo braço:

— Não, vem comigo; não precisas bilhete. Vamos.

O estudante sentiu uma pancada forte no coração àquela
frase “Não precisas bilhete…” e admirou o romancista. Grande
influência do homem! Diante dele, a um gesto breve da sua mão,
abriam-se todas as portas, mesmo as dos teatros tão avaramente guardadas.
Grande homem! Pudesse ele fazer o mesmo! Entrava gente, aos apertões:
senhoras pelo braço dos maridos, sorrindo, com ânsia de se aboletarem,
receosas de que já houvesse começado o espetáculo.

Quando Ruy Vaz se adiantou, muito grave, Anselmo coseu-se com ele e, apesar
da confiança que depositava no prestígio do grande homem, pálido,
temia ser repelido pelos dois cérberos — um ruivo, de pêra,
outro velho, gordo, de óculos, que espiava atentamente quantos entravam
acumulando os bilhetes na perna gorda.

O romancista fez o estudante passar à frente e, como o ruivo fizesse
um gesto como a pedir o bilhete, ele tocou-lhe com familiaridade o ombro dizendo
apenas:

— Vem comigo. Tanto bastou para que o deixassem passar. Poderoso Sésamo!
Vem comigo! Tão simples palavras faziam com que se acomodassem os exigentes
porteiros, tão severos em questões de entradas e de senhas.
Ao ver-se no pátio do teatro, Anselmo sentiu a alma dilatada como se
houvesse saído de uma prisão e respirou desafogadamente.

— Agora sim…

— Que é?

— Pensei que os homens opusessem alguma dúvida.

— Comigo! exclamou orgulhosamente o romancista. Ora qual! Caminharam
e, como enfrentassem com o tablado coberto onde, em torno das mesas, uma multidão
alegre fervilhava, um rapaz moreno, de pince-nez, pondo-se de pé com
o chapéu levantado acima da cabeça, a toda altura do braço,
disse solenemente:

— Saúdo a literatura indígena! e avançando, encolhido
e curvado, pôs-se a estalar sonoramente com a língua no palatino;
depois, enristando a bengala, deu uma volta nos calcanhares mostrando a multidão
que o cercava e, em voz cheia de desprezo, bramiu:

— Vou começar a catequese noturna dos tupinambás. Sou
o missionário do espírito, o Anchieta desta taba! E, de novo,
fez estrondar a língua atirando uma bengalada a uma das mesas:

— Garçom! Uma Einbeck… vamos! E hirto, o sobrecenho carregado,
fitou os olhos no caixeiro, rugindo.

Ruy Vaz dirigiu-se ao moreno e, vendo que Anselmo guardava atitude reservada,
interrogou-o como em segredo:

— Não conheces o Neiva?

— De nome, há muito tempo!

O romancista fê-lo avançar e apresentou-o:

— Anselmo Ribas… Paulo Neiva. Os dois rapazes trocaram um aperto
de mão e o moreno ofereceu um lugar à mesa que ocupava, onde
outros bebiam entre nuvens de fumo. Ruy Vaz era intimo de todos e o Neiva
foi apresentando o estudante:

Isto aqui é uma sucursal do Parnaso, com uma dependência mais
lucrativa: a carne seca, dignamente representada pelo nosso correto amigo
Victorino Motta, o bem-aventurado.

Um gigante, nédio e rubro, com um ventre quase esférico, sorriu
estendendo a mão, gorda e mole como a luva de um esgrimista. O Duarte,
rapazinho magro, pálido, com um ricto que lhe dava à fisionomia
uma expressão hilariante; o Lins, baixinho, muito moreno, olhos apertados
e oblíquos como os dum chim, bigode negro e ralo escorrendo-lhe pelos
cantos da boca. Sentaram-se. Ruy Vaz, a pretexto de ir falar ao Heller, pediu
um minuto e desapareceu na multidão. O Neiva, irrequieto, lançava
os olhos um e para outro lado, desfechando sátiras, analisando os que
passavam, à pressa. A campainha retiniu e o povo precipitou-se para
o recinto ficando apenas alguns rapazes à mesa, entre cocottes, derriçando.

— Sabe ler? — perguntou abruptamente o Neiva dirigindo-se a Anselmo,
enquanto o garçom ia enchendo os copos com a cerveja que o Motta mandara
vir. O estudante sorriu vexado.

— Coragem, meu amigo! — bradou o Neiva; há vergonhas maiores.
É poeta, aposto?! Antigamente era a lira o símbolo dos poetas,
agora é o pince-nez… Que gênero?

— Ensaio-me na prosa, disse timidamente Anselmo. O Neiva ergueu-se
violentamente como impelido por uma mola e encarou-o:

— E tenciona viver das letras? — perguntou assombrado. O estudante
encolheu os ombros com resignação e o outro irrompeu: —
Pois meu amigo, aceite os meus pêsames. E, inclinando-se, rugiu ao ouvido
de Anselmo: — Cure-se! Não vá para um convento, vá
para o hospício. Cure-se enquanto é tempo. Neste país
viçoso a mania das letras é perigosa e fatal. Quem sabe sintaxe
aqui é como quem tem lepra. Cure-se! Isto é um país de
cretinos, de cretinos! Convença-se. É a Frígia do tempo
de Midas: só vence quem tem orelhas. Olhe, se eu me debruçasse
a um dos camarotes desta barraca e bradasse: “Que se conservem neste
recinto os que sabem gramática”, o teatro ficava vazio. Letras,
só as de câmbio, convença-se. Olhe, temos aqui um exemplo.
Estão conosco dois poetas e um carne seca, compare-os! Os poetas são
lívidos, o carne seca, tressua ádipe e saúde. Por que?
Porque o carne seca, que é aqui o nosso amigo Motta, tem todos os regalos:
come como uma traça, bebe como um abismo, dorme como a Justiça
e gasta como o diabo que o carregue! Ah! meu amigo, para temperar a vida,
que é um prato difícil, não bastam os louros da glória.
Olhe o nosso Motta: é o leão e nós? Somos os chacais.

— Sim, mas somos as lâmpadas.

— Lâmpadas!? Candieiros ignóbeis, ainda assim o azeite
é o nosso oleoso Motta. Tornou a Anselmo: Moço, empregue-se;
vá para o comércio. A carne seca é a base da riqueza
das nações. Não se fie em períodos, mande à
fava o estilo e atire-se, de faca em punho, às malas de carne seca
se quer engordar, se quer ter consideração neste país.
Um pai de juízo não deve mandar o filho ao colégio: a
carta do ABC é subversiva. Para o armazém, para os tamancos!
Olhe o nosso Motta: assina de cruz e tem mais de trezentas apólices,
não sei quantos prédios, dois armazéns, três comendas,
mais de vinte amantes e uma pança que é ó hemisfério
da fartura. O Motta sorriu. Empregue-se!… Mas avançou empertigado,
com o chapéu erguido: Vive la France! Passava uma rapariga loura e
esbelta. Dando com o Neiva acenou graciosamente com o leque e ele, numa voz
formidável, rouquejou:

— Avez-vous lu Manon Lescaut, madame?

— Non, j’connais pas d’bêtises, disse a cocotte e ele, tornando
à mesa, tomou o copo e sussurrou: — É verdade, ninguém
se conhece.

A orquestra atacou a abertura. O Motta, esbaforido, pediu licença
e levantou-se. O tablado ficou deserto. Apenas um velho cabisbaixo, trincando
um charuto, ia e vinha lentamente. ao longo da passagem. O Lins, porque estava
entorpecido, levantou-se para dar um giro e foi arrastando uma perna entrevada,
batendo com a bengala. Os três deixaram-se estar e, como o Neiva soubesse
que Anselmo era do Norte, suspirou saudoso lembrando-se do seu Ceará,
o seu amado Ceará, dos verdes mares bravios.

— Ah! meu amigo, quando me lembro da minha terra dói-me o coração.
Isto aqui é vasto e tem mais civilização, mas não
vale o nosso Norte, não vale! As nossas noites, as nossas florestas,
o encanto daquela vida que tem ainda um vago sabor paradisíaco, a simplicidade
daqueles costumes! E suspirou: — Sou um homem ao mar! Soçobrou
a galera do meu futuro e aqui ando a braçadas aflitas do oceano da
imbecilidade a ver se consigo alcançar algum porto. As velas que vejo
são como esta urca que daqui zarpou, o Motta: dão-me um pouco
de repouso, mas logo abandonam-me e lá vou eu nadando, nadando até
que me sorva uma vaga mais forte. Sou um homem ao mar! E, depois de um trago,
concluiu com desalento: — De mais a mais tenho uma rêmora que
me tolhe os movimentos, é o coração.

— O senhor esteve na Faculdade de Medicina? — perguntou Anselmo.

— Sim, estive. Saí da vida, não pela porta da morte,
senão da própria vida: foi o parto a minha morte. Morri de parto.
Anselmo pasmou e o Neiva, muito calmo, disse:

— Vai ver. O meu lente, porque me não via com bons olhos, entendeu
que me devia argüir sobre a obstetrícia inteira apresentando-me
todas as dificuldades que podem surgir a um parteiro no momento complicado.
Enquanto pude fui resolvendo: faria isto, faria aquilo, etc…. Veio, porém
um caso tão intrincado que estive a propor a laparotomia, mas tive
uma inspiração, feliz e lisonjeira para o lente: disse: “Num
caso desses eu mandava, a toda pressa, chamar V.Exa….” O homem zangou-se;
fui reprovado. Longe, porém, de entristecer-me, senti grande alívio
na alma à idéia de que nunca concorreria para a desventura de
um ser, trazendo-o a esta vida imbecil e insípida na qual só
vencem os medíocres. Garçom, um fósforo! Está
quente! E tenho ainda de ir ao Recreio encontrar a mulher amada. Estrugiu
o coro da opereta e o Duarte, que o sabia de cor, pôs-se a cantarolar
tamborilando na mesa. Iam caindo em melancolia, mas uma rapariguinha esguia
e morena que entrara, vendo os rapazes, dirigiu-se para o tablado e, muito
meiga, batendo de leve nas faces do Neiva. recriminou-o:

— Então é assim que você me esperou?

— Decididamente quando Eros nasceu a gramática ainda estava
em substância informe. Passou-lhe o braço pela cinta e, com os
olhos nela, disse: — Mas és tão bonita, minha cabocla,
que os solecismos na tua boca parecem pérolas de estilo. Subitamente,
carregando a fronte, em voz estentórica, simulando fúria:

— Diga-me, senhora… Quem era aquela montanha de suíças
e óculos à cuja sombra gorda, a senhora ceava ontem no Bragança?
Fale!

— Era um home, explicou dengosamente a rapariga, sentando-se.

— Um home… Deliciosa! E, inclinando-se, em tom infantil: —
Dá beijoca a Neiva? Dá? Os lábios encontraram-se e o
boêmio segredou a Anselmo, tocando na boca: — Já tenho
um pretexto para ir amanhã ao escritório do Silva Araújo.
Só então lembrou-se de apresentar a rapariga: — Olha,
minha cabocla, apresento-te o meu amigo Anselmo Ribas, escritor. Vou logo
dizendo a profissão para que não percas tempo com ele. Que vais
tomar?

— Qualquer coisa.

— Não é bebida.

— Ora! escolhe você mesmo.

— Ah! queres que eu escolha? Atirou uma bengalada à mesa e trovejou:

— Garçom! Mercúrio para quatro! Houve uma estrepitosa
gargalhada; a própria rapariga, que não compreendera o dito,
riu, dando com o leque leve pancadinha no ombro do boêmio. O caixeiro
serviu duas garrafas de cerveja.

Neiva bebeu sofregamente: tinha pressa, não podia deixar a mulher
amada morrer de ansiedade no pátio do Recreio e despediu-se azafamado.
A rapariga ergueu-se também.

— Até logo! Justamente terminava o ato numa explosão
de palmas. O povo escoou para o jardim. Encheu-se o tablado e os caixeiros
atropelavam-se, acudindo aos berros, às bengaladas que estalavam nas
pequeninas mesas de ferro. Caíam bancos e, na passagem apinhada, cruzavam-se
cocottes faceirando, respondendo aos galanteios com muito langor nos olhos
e muitos requebros de quadris. Estouravam garrafas, subiam vozes confusas,
entrecortadas de risos num zoar atordoador de colmeia atacada.

— Vamos dar uma volta? convidou o Duarte bocejando.

— Vamos; concordou Anselmo. E os dois levantaram-se caminhando molemente,
acotovelando mulheres que tresandavam a essências. Mas a campainha ressoou
de novo e começava o segundo ato, quando o Duarte, atristurado, com
a bengala às costas, depois de haver falado, com muitos suspiros, de
um amor infeliz que o havia de levar ao suicídio ou a Fernando, pôs-se
a recitar baixinho, enquanto, em lento andar, percorriam a passagem deserta
e a multidão ria às escâncaras das pilhérias do
Vasques, uma poesia cheia de luar e de rouxinóis, com um pastor triste
e pastora arisca que eram ele a divina criatura que o trazia amofinado obrigando-o
àquelas devassidões noturnas. Que tal?

Anselmo comparou-o a Musset.

— Ah! Musset! Musset!…

Vous qul volez là-bas, légères hirondelles…

Mass mastigou o verso imedito e, enternecido, de olhos no chão, cantarolou:

Bacalhau feito na brasa Com cebola de Linhães, Tudo se encontra na
casa, Na casa do Guimarães…

O estudante lançou ao poeta um olhar esgazeado.

— Que é isto?

— É o hino da bacalhoada. Não conheces a casa do Guimarães?
Bacalhau, vinho verde, papas à portuguesa, iscas e dispepsias?

— Não, não conheço.

— Ah! meu amigo, é o meu Lethes. Ali é que vou procurar
esquecimento para as minhas mágoas. Aquela ingrata dá comigo
em todas as tascas e pocilgas desta cidade. Estou ainda curando-me de uma
indigestão que apanhei por causa dos olhos dela. Ah! O amor! O amor…

… feito na brasa Com cebola de Linhães…

Mas Ruy Vaz apareceu brandindo a bengala, colérico.

— Decididamente é melhor ser calceteiro ou condutor de bonde
do que homem de letras em um país como este.

— Que houve? — perguntou o Duarte.

— Ora! a minha peça. O senhor Heller entende que devo arranjar
umas coplas e um jongo para a comédia. Uma comédia de costumes,
que joga com cinco personagens… O homem quer, a todo transe, que venham
negros à cena com maracás e tambores, dançar e cantar.
Imaginem vocês: um antropologista puxando fieira e uma senhora, que
vive a cuidar a sua árvore genealógica como quem cuida de uma
roseira, que mostra, com enfunado orgulho, os retratos dos avós a quantos
freqüentam a sua casa, a cortar jaca desabaladamente. É ignóbil!
Revolta! E querem teatro…

— E tu?

— Eu! Não cedo uma linha! A peça já está
em ensaios e há de ir como a escrevi: sem enxertos. Diz ele que o público
não aceita uma peça serena, sem chirinola e saracoteios… Mas
que tenho eu com o público? Cruzou os braços e, ferrenho, encarou
o estudante como se ele fosse a representação do próprio
público ignaro que exigia aquelas misérias. Não hei de
estar a fazer concessões vergonhosas simplesmente porque o nosso público,
saturado de vícios, entende que o teatro deve ser como um templo devasso.
Isso não!

— Mas a peça cai, observou prudentemente o Duarte.

— Que caia! Que o diabo a leve para o fundo do porão, mas não
cedo! Saíram os três. O romancista remoía a sua indignação
e, como se precisasse do ar da noite sempre pura, numa necessidade de agitação,
frenético, irascível, resmungando, propôs um passeio.
O luar seduzia. Que belo seria poder ficar uma hora à beira-mar, lançando
os olhos pela vastíssima planície, toda de prata e trêmula,
sentindo a aragem salitrada, ouvindo as cantilenas dos que partiam nos barcos,
ao sopro amável da brisa, desdobrando as redes! Ou, sob um caramanchel,
em subúrbio tranqüilo, em plena natureza, ouvindo os grilos, ouvindo
as rãs, ouvindo o gado, o murmúrio dum fio de água e
o sussurro do arvoredo galvanizado pela claridade, fulgurando e cheirando.
Que belo!

— Onde queres ir? — perguntou o Duarte afagando a idéia
romântica de uma subida à Tijuca para verem, do alto, resplandecer
a aurora.

— Sei lá! Pararam hesitantes em meio do largo. Tílburis
moviam-se lentamente; de quando em quando um partia à disparada. A
ronda passava vagarosa; os animais caminhavam como sonâmbulos, maquinalmente,
a cabeça baixa e os soldados, derreados, iam como embebidos na luz
magnífica que o astro branco vertia.

O S’adt Coblenz, a Maison Moderne, o Caboclo regurgitavam iluminados; às
portas, grupos discutiam aos berros, agitando bengalas e, mais adiante, o
Príncipe Imperial transbordava. O povo enchia o saguão e despejava-se
amontoadamente espraiando-se em direções diferentes. E as luzes
do frontão do teatro extinguiram-se subitamente ficando a rua em treva.
Rodavam carros abertos; bondes enchiam-se e, de longe, vozes diferentes anunciavam
com furor “Empadinhas de camarão”.

— Mas para onde vamos? — perguntou de novo o Duarte. Não
havemos de ficar aqui plantados, que isto até nos pode abalar a reputação.

— Pois sim! — murmurou o romancista lançando distraidamente
os olhos para o monumento que avultava, muito negro, ao luar, com a imensa
estátua dominando o largo. Anselmo aventurou, desejoso de fazer uma
grande volta pela cidade àquela hora fresca e sossegada:

— Se tomássemos um bonde?

— Prefiro uma sopa, disse o romancista. Em vez de irmos à Tijuca
vamos ali ao Coblenz que está mais à mão. Quando se tem
o estômago vazio não há luar que valha um bife com batatas
fritas. Vamos ao Coblenz! Mas o Duarte fez uma careta explicando: que não
podia com a cozinha alemã; detestava aquela casa, mais os seus guisados.
Não podia tomar ali um copo de cerveja sem lembrar-se de Sedan. Ó
Alemanha cruel! Preferia a Maison Moderne que lhe dava a impressão
de Paris. O romancista fitou-o:

— Quanto deves à Alemanha?

— Eu! — e espalmou a mão no peito. Uma miséria:
creio que duas ceias e…

— E então por isso que não queres entrar?

— Não, mas o meu alfaiate costuma aparecer por ali. Aquilo é
uma casa macabra: à noite é um cemitério, tantos são
os cadáveres.

— Pois, meu amigo, estamos incompatibilizados. Tu não podes
ir ao Coblenz porque ceaste duas vezes… e o teu alfaiate aparece, eu não
posso ir à Maison por motivos idênticos. Como havemos de fazer?

— Separemo-nos.

— É com grande pena, mas não há remédio.
Até amanhã.

— Até amanhã. E o Duarte estendeu a mão a Anselmo
oferecendo-lhe a casa: — Moro em Botafogo para a estatística
e outros efeitos sociais, mas resido à rua Teófilo Ottoni, no
armazém de vinhos de meu pai. Quando quiser fazer de filoxera apareça
por lá: há cama, mesa e cento e tantas pipas. Boa-noite! E foi-se
recitando:

“Vous qui volez là-bas, légères hirondelles…”

— Agora nós, disse Ruy Vaz. Vamos ao Coblenz fazer um lastro.
Dizem os médicos que, em tempo de epidemia, é um perigo andar-se
com o estômago vazio e, como a febre grassa pavorosamente e eu tenho
muito amor à vida e sou grande observador dos boletins higiênicos,
vou trincar um bife. Não tenho fome, é como se fosse tomar uma
cápsula de quinino.

Entraram e o romancista, sentando-se a uma das mesas, encomendou uma sopa
a l’oignon e um bife à baiana e, enquanto preparavam os pratos, foi
discorrendo:

— Grande é a incapacidade dos homens que nos dirigem. Se eles
sabem que a febre amarela ataca de preferência os que têm o estômago
vazio por que, em vez de andarem com fumigações, não
estabelecem hotéis públicos, grandes hotéis profiláticos,
nas praças, acabando, de vez, com essa ignomínia das farmácias?
Não te parece?

— Sim, é lógico. Servido, pôs-se a tomar a sopa
vagarosamente, saboreando, depois atirou-se ao bife e comia quando o Lins
surgiu, muito risonho, arrastando a perna rija, a brandir a bengala:

— Isto acaba mal! — exclamou em voz engasgada que parecia vir
do fundo do peito. Plantou-se diante da mesa e, rindo, com o rosto todo encarquilhado,
repetiu: — Isto acaba mal! Anselmo ofereceu uma cadeira e o poeta, todo
encolhido, perguntou:

— Pode-se pedir alguma coisa ou estamos em maré baixa?

— À vontade! — disse o estudante. Ruy Vaz, que ficara
indeciso, com um pedaço de pão entre os dedos, trincou descansadamente,
e o poeta, atirando uma palmada ao ombro do estudante, sempre a rir, meneando
com a cabeça, elogiou-o:

— Tem muito talento! O caixeiro acudiu: Cerveja! esgoelou o Lins e
atirando os braços para o ar: Muita cerveja! Eu hoje quero beber e,
pungido, com uma grande expressão de dor: Estou muito triste. Imaginem
vocês o meu gato! Fui encontrá-lo morto hoje de manhã.
Um gatinho que era um encanto. Tão meigo que nem aos ratos fazia mal.
Vocês não gostam de gatos? Rompeu a rir e, num berro atroador,
atirando o busto sobre a mesa, estendendo os braços, encharcando as
bordas do punho no molho do bife, repetiu a pergunta: — Vocês
não gostam de gatos?

— Que é isso, Lins? — observou baixinho o romancista e
o poeta, depois de o fitar espantado, olhou em volta dizendo:

— Que tem? Então eu não posso falar das minhas mágoas?
Eu gosto muito dos animais. E furioso, tentando erguer-se, com o punho ameaçador,
rugiu: — Perto de mim ninguém faz mal a um bicho, não
admito! Agarro por uma perna e faço assim… Fez o gesto violento de
quem torce e concluiu: — Ainda que seja… o imperador da China. Não
admito! Mais calmo, porém, tornou ao assunto: — Então
vocês não gostam de gatos? Miau! Miau! Chamfleury, Baudelaire,
Gautier eram doidos por eles. Um angorá, hem?

— O teu era angorá? — perguntou Ruy Vaz.

— O meu? Qual nada! Era um gato muito ordinário que só
me dava trabalho. Morreu! — disse juntando as mãos e elevando
beatamente os olhos. Imaginem vocês… um gato que comia duas vezes
ao dia. Ao ver a cerveja que o caixeiro trazia rompeu a rir apresentando o
copo. Bebeu um gole e repetiu com os bigodes brancos de espuma: — Estou
muito triste. Imaginem vocês: uma menina loura, muito loura, dona dos
mais belos olhos azuis que tenho visto… uma figurinha de keepsake! Leonor,
chama-se Leonor, imaginem vocês! Suspirou e sorveu novo trago. Hoje
estou disposto a beber, bebo tudo… Não gosto de conhaque, pois bebo!
Mas imaginem vocês, os mais belos olhos azuis que tenho visto! Uma menina
loura, loura! Atirou um murro à mesa:

— Ofereci-lhe em um soneto a minha mão de esposo. Sim, porque
é uma mão de artista; espalmou a mão para que Anselmo
examinasse; ofereci-lhe, porque ela é mulher para viver sobre sedas
e veludos, cercada de todos os carinhos, ouvindo versos líricos. É
uma mulher divina, digna de um de nós, de todos nós! Palavra
de honra e… imaginem vocês. Sacudiu um gesto indignado: — Isto
não é vida, isto não é sociedade! Ah! Paris! Paris..

— Mas a menina…? — perguntou Ruy Vaz. O poeta encarou o romancista
sorrindo e, de repente, derreando a cabeça, batendo com a bengala:

— Ah! Sim; eu queria fazê-la feliz… Imaginem vocês, tenho
talento, posso fazer uma mulher feliz. Não posso?

— Sim, podes, disse Ruy Vaz.

— Pois ela não quis: vai casar com um taverneiro. Isto não
é vida! Eu ainda faço uma desgraça. Mais cerveja! —
reclamou.

Quando saíram o Lins, sempre risonho e oscilando como um pêndulo,
propôs um passeio ao campo. Gostava da natureza àquela hora silente,
tão favorável à meditação. Iriam para o
arvoredo, sonhar.

— Não achas melhor sonhar na cama? — perguntou Ruy Vaz.

— Qual cama! Detesto esse móvel. O sono é uma fraqueza
indigna dos homens de espírito. O sono é o resultado de uma
anemia cerebral e, para as anemias, os médicos aconselham os tônicos
e os exercícios. Eu já tenho os tônicos, vamos agora à
outra medicação. Um poeta não dorme; o poeta é
vidente e o vidente deve estar sempre com os olhos abertos. Rompeu a rir,
logo, porém, muito sério, atirando uma punhada que o levou,
no ímpeto, de encontro à parede, rugiu: — Eu queria andar.
À noite é que a gente caminha à vontade porque as ruas
estão desertas. Detesto a multidão! — e cuspiu enojado.
A multidão é ignóbil! Não há como a solidão
para um homem de talento. Vamos a Niterói: há ali muita poesia
e eu tenho ainda uns restos de 1632… podemos fazer a travessia.

— Tiraste a sorte grande? — perguntou Ruy Vaz.

— Eu?! Deus me livre! Saiu ao Capitão Negro. Eu escrevi os versos
fazendo a apologia da sorte do quiosque. Ganhei vinte mil réis. Vocês
não leram os versos na Gazeta? Estão bem bons para o preço.
Há apenas uma rima pobre demais para um poema da fortuna; rimei, imaginem
vocês, rimei estrela com vela. O e estrela não faz boa liga com
o de vela, um é grave, outro é agudo, mas também, por
vinte mil réis, não posso estar a escolher rimas milionárias.
Mergulho a mão no saco e o que sai é magnífico. Demais
vela e estrela dão luz, ambas são luminosas. A vela é
a estrela da terra, a estrela é a vela do céu, disse com ênfase.
Mas o diabo é que eu empreguei o verbo. Vamos ou não a Niterói?

— Eu não vou, disse Ruy Vaz. Anselmo declarou que sentia bastante
não poder acompanhar o poeta, mas tinha grandes afazeres no dia seguinte,
precisava acordar cedo.

— Gente fraca! — disse ele com desprezo. Pois eu vou. Boa-noite!
E, muito desequilibrado, entrou na Maison Moderne. Ruy Vaz e Anselmo seguiram.

A cidade dormia. Começavam a varrer as ruas. Densa nuvem de poeira
empanava o brilho dos lampiões e, dentro dessa bruma espessa, de um
tom alourado, moviam-se homens cantando e atirando vassouradas: carroças
rodavam parando de quando em quando. Raras mulheres, debruçadas às
janelas, cochilavam. Tílburis passavam à disparada e os dois,
em passos apressados, seguiam cosidos aos muros, com os lenços à
boca. Apitos trilaram ao longe e, com estrépito sonoro, os soldados
da ronda passaram a toda brida através da poeira como cavaleiros fantásticos.
Vinham rapazes cantando em vozeirão atroador.

Livrando-se da poeirada, os dois moderaram o andar e Ruy Vaz, queixando-se
da vida que levava naquela casa, onde mal podia trabalhar, à falta
de conforto, quis saber onde morava o estudante. Estava provisoriamente em
um cômodo, no Estácio de Sá, mas pretendia tomar todo
o segundo andar de uma casa na rua Formosa, que lhe oferecera uma velha viúva
por preço vantajoso, com pensão. O romancista deteve-se e, encarando
o estudante, perguntou:

— Conheces os cômodos?

— Conheço: sala de frente com duas janelas para a rua e uma
para o telhado, alcova, sala de jantar, outra alcova e um mirante sobre o
telhado.

— E pensão?

— Sim, com pensão.

— Por quanto?

— Eu tratei para dois: duzentos mil réis.

— Isso é um achado! E se morássemos três? —
aventurou o romancista.

— Posso falar à viúva.

— Para quê? Depois de lá estarmos fala-se: é questão
de mais um talher à mesa. Tens mobília?

— Alguma.

— E o outro? Quem é?

— Um estudante de Medicina, meu amigo, primo deste Duarte.

— Um alto, magro, de olhos tristes: Toledo, creio.

— Esse mesmo.

— Conheço muito. ~ um excelente rapaz. Vamos viver magnificamente.
Quando fazes a mudança?

— Vou amanhã falar à mulher e, depois de amanhã,
pretendo estar instalado, mesmo porque ando com idéias de trabalho.
Tenho uma peça pronta e um romance esboçado.

— Depois de amanhã que dia é?

— Sábado.

— Magnífico! Vai lá falar à mulher e depois de
amanhã mudamo-nos. Vozes atroaram o silêncio e uma célebre
trepidação de rebanho em marcha fez com que os rapazes parassem
colando-se à parede e logo dois campeiros surgiram, a cavalo, estalando
chicotes, cantarolando e, em seguida, uma boiada a trote, os animais muito
juntos, em bolo, silenciosos. Os grandes chifres entrebatiam-se e homens atiravam
os cavalos à calçada ou passavam por entre os mansos animais,
bradando, como nos campos: “Ehôo!… toca! Junta… êeh!”
E a manada seguia e perdeu-se na poeira dourada de onde apenas vinham os gritos
dos guieiros.

— É o bife.

— Para onde vai isso?

— Para Niterói, creio eu. Um bêbado resmungava cambaleando,
às guinadas. Ouviram tinidos de campainhas e uma tropa de burros desfilou,
sacolejando seirões, a caminho do mercado.

Vou-me embora… Vou-me embora! É mentira, não vou não…
Se eu vou m’embora, faceira, Deixo aqui meu coração.

Cantava languidamente o tropeiro escarranchado na bestinha viajeira, puxando
a récua.

— Pleno sertão.

— É verdade. No Campo estava um quiosque aberto; o romancista
aproximou-se e, falando, com intimidade, ao homem, pediu uma vela. Encostados
às grades do parque dois sujeitos discutiam chuchurreando o café
em canecas de louça e uma negra, andrajosa e trôpega, com o peito
ossudo descoberto, vacilando tropeçar na barra enlameada do vestido,
com a baba a escorrer-lhe da boca, ia de um a outro mastigando palavras, atirando
gestos moles, risonha, de olhos quase fechados.

— Vamos?

— Vamos. Seguiram. À porta da casa o romancista despediu-se:

— Então até amanhã.

— Sim, até amanhã, no Cailtau, às três,
para combinarmos.

— Ó diabo! — exclamou Ruy Vaz procurando e escarafunchando
nos bolsos.

— Que é?

— Não comprei aldraba.

— Que aldraba?

— Uma bomba. É com uma bomba que bato à porta, porque
o meu senhorio entende que devo recolher-me às oito da noite e ordena
aos criados que me deixem ficar à porta até a hora d’alva, batendo.
Com o estouro da bomba no saguão é pronto: acodem logo. Hoje
já sei que vou ver a aurora. Até amanhã, ou antes: até
logo.

— Até logo! E Anselmo ia seguindo quando ouviu estrondo formidável
como de um desabamento; voltou-se assustado: Que é isso?

— Estou acordando o Cérbero. E, com uma grande pedra, o romancista
batia fazendo estremecer o pesado portão. O estudante já ia
longe e ainda ouvia as tremendas pancadas que ressoavam longamente no silêncio.

Cabisbaixo, cigarro à boca, Anselmo caminhava a passo, contente daquele
triunfo. Abrira-se-lhe, enfim, a porta ebúrnea do ideal, ia entrar
na ventura, na grande vida espiritual, entre artistas: poetas e prosadores,
estatuários, músicos, pintores, a legião augusta dos
que eternizam o sonho… Sombras andavam-lhe em torno — rapazes e raparigas,
lá iam em surdo deslize, passavam, perdiam-se. Bem os conhecia, eram
eles: Rodolfe, Marcel, Coline, Schaunard, ouvia o riso de Mimi, a tosse de
Francine, o alarido alegre do café Momus. E seguia alheado do real,
através do silêncio, raro em raro encontrando um soldado, um
ébrio aos cambaleios ou retardatários que recolhiam sonolentos.

O luar, sempre branco, caía sobre os telhados e, quando ele chegou
à casa, mergulhada numa grande paz de sono, subiu ao sótão,
abriu largamente a janela e, alongando os olhos, pôs-se a contemplar
as fitas de luzes que se estendiam como círios de uma procissão
interminável que andasse pela cidade em penitência. Mas o sonho
foi-se tornando maior, em grandioso crescendo: era a festa triunfal da sua
vitória: a cidade esplendia, o céu irradiava. E, ouvindo o confuso
rumor que chegava de longe, na aragem, como a ressonar da cidade imensa, dormindo
sob o lençol do luar, parecia-lhe o marulho longínquo dos que
vinham, com luzes, arrancá-lo daquela mansarda para a apoteose.

Galos cantaram. Lançou um último olhar à cidade e ao
céu e recolheu-se. Embaixo, no silêncio da casa, um relógio
lento bateu três horas.

Capítulo III

Três dias depois já estavam instalados no segundo andar da casa
da rua Formosa, com independência e ordem.

A sala, recebendo luz por duas largas janelas da frente e por uma outra que
abria sobre o telhado vizinho, era clara e alegre, com um papel idílico
reproduzindo, de alto a baixo, nas quatro faces, o encontro de amor de um
pajem e de uma dama entre ramos de árvores sangüíneas,
à beira de uma lagoa muito azul onde nadava um cisne, tudo isso sobre
um fundo de campos perdidos com uma choupana e rebanhos. Era romântico.

Ruy Vaz e Anselmo tomaram a sala; Toledo, concentrado e casmurro, escolhendo
a alcova recôndita da sala de jantar, arranjara, diante da cama esguia,
a sua mesa de trabalho, sóbria e honesta, com os seus graves compêndios
de Anatomia, vários ossos, um castiçal de louça, o tinteiro,
o pote de fumo e, na parede caiada, muito juntos, os retratos do pai e da
mãe encimados por uma gravura na qual se via Beethoven, de olhos extasiados,
sonhando entre pautas e anjos com harpas e flautas, a face na mãao,
o cotovelo sobre o teclado de um órgão.

A sala tinha aspecto. As duas mesas, fronteiriças, um canapé,
repousando sobre surrado tapete onde havia estampada uma cena de serralho,
a estante alta, de Anselmo, atochada de livros, duas outras de Ruy Vaz numa
desordem de brochuras de vários tamanhos, quatro cadeiras e, ao centro,
larga e convidativa cadeira de balanço com estribo para os pés.

A Barricada teve o lugar de honra na parede entre dois originais preciosos
representando um burgo-mestre e um pescador, telas que o romancista, com muito
acatamento, atribuía a Rembrandt pelo tom obscuro que cercava as cabeças
serenas dos flamengos. E um velho relógio acompanhava o trabalho com
o seu tic-tac monótono, quando não caía em silêncio
à falta de corda.

Falou-se em uma empanada para as janelas a fim de que a luz não entrasse
tão vívida na sala, mas razões fortes de ordem econômica
fizeram com que desistissem de tal idéia. Na alcova emparelhavam-se
duas camas e, entre elas, o lavatório de vinhático, uma maravilha!
Na sala de jantar a mesa de pinho solitária e lustrosa. À hora
das refeições cada qual tomava a sua cadeira e levava-a de rastos
pelo corredor, onde havia um socavão para jornais e ratos.

Dona Ana dirigia a casa ajudada pela filha: Vidinha, morena de dezessete
anos, de olhos negros amendoados, cabelos fartos, sempre soltos, rolando pelos
ombros até ao colo muito rijo, e pelas costas, chegando à cinta
delgada; era a alegria da casa.

O Lins dava-lhe a alcunha expressiva de Míle. Cotovia, porque eram
as suas gargalhadas que despertavam os rapazes.

Leonor, negrinha esgalgada, espevitada e zarelha, de colo murcho; órfã,
trazida de um recolhimento e João, o filho mais novo da viúva,
rapazelho sardento, muito obsceno de linguagem, que trazia a casa em constante
alvoroço respondendo à mãe com insultos, atirando-se
à irmã às dentadas, numa ferocidade canina, perseguindo
a negrinha indecorosamente.

Às vezes traziam-no à casa ensangüentado e imundo das
brigas que tivera na rua. Andava sempre armado com um velho canivete que escondia
no papo da camisa e descalço, cigarro nos beiços, abalava em
farândolas para as praças, para os morros, numa vida devassa
e vadia.

Se a mãe o prendia ficava a fazer exercícios de capoeiragem
no corredor, cantando dobrados, a gingar, como fazia à frente dos batalhões,
com uma gíria sórdida e gestos desempenados. A velha, entanto,
trazia a casa asseada. Ela própria, descalça, com as saias arregaçadas,
os braços nus, esfregava o soalho; a negrinha, trepada em uma escada,
lavava as vidraças. Vidinha cuidava da louça e trabalhava com
disposição, contanto que, à tarde, à hora em que
tirava os papelotes e vestia os seus casacos enfeitados, a mãe a deixasse
debruçada à janela, muito lânguida e faceira, trocando
sinais com um amanuense da vizinhança, moreno, de óculos, o
rosto picado de bexigas. Tinha fama no quarteirão e, à noite,
grupos de rapazes postavam-se na calçada fronteira e, escandalosamente,
atiravam beijos, mas Vidinha, para não perder o amanuense, batia com
a janela, numa indignação pudica e rompia em impropérios,
às vezes atirava cusparadas desprezíveis, mandava o João
correr à pedra os galanteadores ou chamava Dona Ana que surgia à
sacada iracunda, mostrando vassouras, ameaçando desancar o bando, cobrindo-o
de insultos vis e subia ao segundo andar, esbaforida e colérica, para
pedir aos rapazes uma reclamação nos jornais contra aquela calaçaria
para que um dia ela se não deitasse a perder, quebrando a pau a costela
de um daqueles desavergonhados.

A vida entre os rapazes corria tranqüila e farta. As refeições,
a tempo e abundantes, eram gabadas sem reserva pelos inquilinos do segundo
andar. Terrinas imensas de sopa, pratarrazes de carne: o arroz sempre corado,
subia num alguidar; o assado era uma posta solene e ainda verdejavam saladas
e frutas. O café recendente era saboreado no mirante, à fresca.

Era Leonor quem servia à mesa muito delambida, fugindo aos beliscões,
posto que andasse sempre a esfregar nos rapazes o seu corpo magro de efebo,
tresandando à cozinha. Ao menor aceno, porém, ameaçava:

— Não brinca! Eu me queixo ao juiz de orfe… Veje lá…
E saía, com uma pilha de pratos, chuchurreando muxoxos.

Podia-se trabalhar folgadamente posto que, à distância de alguns
passos, noite e dia, andassem locomotivas em manobra: trens que chegavam,
trens que partiam e as velhas máquinas manobreiras, como cuidadosas
donas de casa, indo e vindo, esbaforidas, dispondo os comboios que deviam
subir para os subúrbios ou, em mais estirada corrida, para além
das serras.

Carroções enormes, carregados, passavam pela rua rangendo,
aos solavancos sobre as pedras mal dispostas; às vezes caíam
em covas, as rodas chafurdavam, ficavam engasgadas nos buracos e os cocheiros,
saltando das boléias, frenéticos, bradando, atiravam chicotadas
aos animais que, sangrando, aos arrancos, tentavam safar o veículo
sobrecarregado enquanto homens aos urros, agarrados aos raios das rodas, ajudavam
com esforço.

Ao lado, numa oficina de carros, ressoavam malhos. Em frente, certa menina
ruiva e vesga, muito serelepe, da manhã à noite martirizava
inexoravelmente um piano fanho. Eram pregões de quitandeiros, alarido
de mulheres e burburinho de farândolas. Por vezes gritos intercadentes
confirmavam as atoardas de um crime: história de uma louca que estortegava,
esbravejava em fúria seqüestrada em cárcere privado.

À tarde o rumor crescia: trens corriam abarrotados, caminhões
vazios iam aos trancos, com estridor de ferragens; bondinhos passavam cheios.
Os rapazes refugiavam-se no mirante e, sob a doçura do céu azul,
onde a luz esmaecia, fumavam, conversavam, espairecendo os olhos por aqueles
telhados vermelhos, vendo, à distância, a massa de verdura do
parque da Aclamação, o grande quadrilátero do quartel
e torres de igrejas, o zimbório da Candelária e os morros esmaltados
de casas, alvas no verdor do arvoredo denso.

Aqui, ali, à derradeira irradiação do sol, uma clarabóia
cintilava. Baixando os olhos, viam os quintais com os coradouros coalhados
de roupa, cordas vergando, outras atesadas por bambus e, quase por baixo do
mirante, o pátio da oficina de carroças, cheio de toros de madeira,
rodas em pilhas, um banco de marceneiro sob uma coberta de zinco.

Sons vibrantes de cometas, às vezes de marchas e dobrados, vinham
de longe na doçura da tarde. Apareciam estrelas, luzes apontavam nas
ruas. A noite caía rápida, e a cidade iluminada resplandecia
como uma vasta planície crivada de vaga-lumes.

Recolhiam-se. Só o Toledo ficava muito triste, à noite triste,
cantando baixinho, com melancolia, o olhar perdido em cismas. Saíam
para os teatros, para a palestra no Garnier ou no Deroche ou ficavam à
vontade falando do futuro, formando planos literários — um grande
livro de Arte que despertasse a indiferença do público mazorro,
uma obra forte, feita com amor e talento, a forma muito trabalhada, a análise
muito minuciosa; um livro magistral de estilo que passasse o oceano e fosse
ao estrangeiro dizer da Pátria e dos seus artistas.

Ruy Vaz, porém, tinha, por vezes, grandes desalentos: entendia que
a língua portuguesa era um cárcere.

— Para que morrer sobre as páginas de um livro se ele nunca
chegaria ao conhecimento universal, por mais nobres que fossem os seus conceitos,
por mais sutil e arguta que fosse a sua psicologia, por mais que lhe repolissem
a forma? Não valia a pena. A língua portuguesa é ingrata
e avara: guarda os seus mais belos poemas como um usurário esconde
os seus tesouros. Anselmo, porém, sempre a rebuscar nos clássicos
novos termos, tinha assomos de entusiasmo e proclamava o seu vernáculo
o mais belo, o mais rico, o mais soante. E lia altissonantemente estrofes
de Camões, trechos de Bernardes, de Fernão Mendes, de Lucena,
os sermões e as cartas de Vieira, apontando as belezas e os grandes
recursos dos mestres, e ia assim formando o seu vocabulário.

Só o Toledo, sempre sorumbático, parecia indiferente àquelas
pesquisas literárias. Olhava e, se o estudante saltava mostrando nas
páginas dum clássico um adjetivo sonoro e expressivo, sorria
o seu olhar morno tinha alguma coisa de enternecida piedade, se lhe parecesse
ridículo, digno de lástima, contentamento tão grande
por tão fútil descoberta. Levantava-se suspirando e, vagaroso,
de mãos nas costas, arrastando os passos, ia-se pelo corredor a mascar
o cigarro, ou de cabeça baixa, cantarolando trechos de óperas.

Como em todas as venturas da vida há sempre um “mas” impertinente,
a adversativa do período sereno dessa existência amável
era o banheiro.

A casa não possuía essa dependência indispensável
à higiene e ao gozo. Dona Ana esfregava as suas banhas flácidas,
de tempos a tempos, em imensa bacia de ferro onde Vidinha, aos sábados,
com algumas gotas de água Florida e sabonete Windsor, tirava as gorduras
do corpo alambreado.

Leonor, quando começava a tresandar, era impelida para o tanque e
a bica golfava grandes jorros sobre as costas da negrinha, que tiritava clamando
contra a barbaridade e pedindo que a mandassem para o recolhimento. Logo,
porém, que se enxugava, a cólera caía e, satisfeita e
inodora por algum tempo, saía a anunciar a barrela com justíssimo
enlevo e restos de sabão na carapinha. Só o João se conservava
a respeitável distância da água, esbravejando e referindo-se
à falecida avó com descabida infâmia quando a mãe
investia com a vara para o levar à barrela.

Os rapazes, logo que se instalaram, fizeram uma representação
em forma à viúva reclamando um banheiro. Dona Ana achou “muita
exigência” e fez-se surda, indo para a cozinha resmungar contra
o “luxo dos fidalgos”.

Ruy Vaz e Anselmo, vendo que ela desatendia, desceram uma manhã, às
dez horas, quando Leonor esfregava no tanque e Vidinha arranjava os vasos
de violetas à janela da sala de jantar. Despiram-se atirando a roupa
para a corda e, nus, cantarolando, auxiliaram-se mutuamente revesando-se ao
regador que um derramava sobre a cabeça do outro, trepando, o que fazia
de aquário, sobre uma tina emborcada para que a água jorrasse
do alto.

Leonor, em grande pânico, aos gritos, fugiu bradando o escândalo:
“Que os moços estavam nus em pêlo, tomando banho no quintal.”
Vidinha debruçou-se à janela e rompeu a rir. Dona Ana acudiu
e, vendo os dois inquilinos como anabatistas que se batizavam, uivou enfurecida
contra a pouca vergonha.

Anselmo, porém, com a cabeça branca como um casulo de algodão,
o corpo enflocado de espuma, de pé na tina, pronunciou um discurso
demonstrando as excelências da água fria para a limpeza do corpo
e para a resistência moral dizendo, na peroração, que
se ela não desse imediatas providências, todos os dias àquela
hora fúlgida, desceriam do Empino com as toalhas e o sabonete e, núcegos
como dois atletas gregos, fariam a ablução indispensável.

Dona Ana vociferou invocando o pudor de Vidinha, a inocência de João,
a candura de Leonor e a sua viuvez, mas no dia seguinte mandou vir da venda
uma grande pipa, serrou-a e, suspendendo a um barrote um pequeno reservatório
com chuveiro, mandou anunciar aos do segundo andar que podiam tomar banho
com decência, mas que haviam de pagar o banheiro, porque ela não
estava disposta a sustentar os luxos de ninguém.

E a cuba foi estreada, com alarido e cantos e, como o sítio do banheiro
era escuro e infestado de bichos, desciam sempre com uma vela, e a hora do
banho, por causa da lanterna e da tina, foi chamada com propriedade, “a
hora de Diógenes”.

O Lins aparecia freqüentemente a horas altas da noite e, da rua silenciosa,
bradava para que lhe fossem abrir a porta. Entrava pé ante pé
para não despertar a Cotovia e o Dragão e, vestindo um imenso
robe de chambre do Toledo, estirava-se no canapé, com a cabeça
sobre dois dicionários, e dormia como um justo alarmando a casa com
os seus tremendos pesadelos.

De tempos a tempos o Duarte mandava um garrafão de vinho e ia também
bebê-lo. Os jantares tinham, então, a grandiosidade de banquetes,
trocavam-se brindes. Lins ia ao mirante com um copo cheio e bebia ao astro
noturno e à maravilha das constelações; nas noites taciturnas,
sem lua, bebia a S. Sebastião, o padroeiro da cidade ou a alguma mulher
formosa e, mesmo uma noite, como enchesse o copo oito vezes, bebeu aos seus
credores.

O trabalho progredia. Ruy Vaz acumulava observações para um
romance de análise, estudo sutil de mulher; Toledo estudava os ossos
do crânio e Anselmo terminava uma opereta quando se declarou a epidemia
do amor.

Vidinha, graciosa e bela, parecia ter esquecido o amanuense e arrancava do
peito recavados suspiros andando pela casa triste, com o croché entre
os dedos, penteada, engomada, de meias e, à noitinha, debruçada
à janela da sala de jantar, à hora em que, do mirante, os rapazes
contemplavam os astros, cantava com muito sentimento:

O Lins achava-a encantadora com aqueles ares melancólicos de Ariadne
esquecida, falando de morte; e pensava em desposá-la.

É digna de um artista de raça. É mulher para ter um
templo feito com alexandrinos imperecíveis. Mulher nervosa, mulher
ardente… só mesmo para um artista como eu. Sinto-me capaz de a fazer
feliz. E travavam-se duetos estranhos no escuro: Vidinha embaixo, debruçada
à janela, a suspirar:

Quando eu morrer não chorem minha morte…

e o poeta do mirante, com o comprido robe de chambre de rastos, a recitar
Camões:

— Se me vem tanta glória só de olhar-te É pena
desigual deixar de ver-te; Se presumo com obras merecer-te Grão pago
de um engano é desejar-te…

Mas Vidinha, logo que ouvia o poeta, retirava-se atirando bem alto, para
que ele ouvisse, uma frase de ferino desprezo:

— Diabo do capenga não se enxerga! Não era ele então
o preferido? Quem seria pois? Anselmo? Ruy Vaz? O sombrio Toledo? Duarte?
Mistério! Os rapazes interrogavam Leonor, davam-lhe gorjetas procurando
subornar a negrinha para que denunciasse o segredo que trazia contristada
a formosa morena. A negrinha entesourava as moedas e respondia sempre com
inflexível teimosia: “Não sei… Não sei…”

O amor fervia em todos os corações. Lins, desprezado, mas não
desiludido, agarrava-se ao velho prolóquio: “Quem desdenha quer
comprar…” e dava tratos à Musa escrevendo copiosas e alambicadas
líricas nas quais cantava a criatura indiferente que o torturava. Uma
manhã, à “hora de Diógenes”, descia Anselmo
para o Cranium, que era o sítio tenebroso do banheiro, com a toalha
ao ombro, o castiçal e o sabonete quando, na escada, encontrou Vidinha.
Trocaram um olhar afogueado e as faces da menina coloriram-se, indício
infalível de que o coração se lhe havia sobressaltado.

— Bom dia, Vidinha.

— Bom dia, respondeu ela de olhos baixos, agarrada ao corrimão.

— Estás zangada comigo? — perguntou baixinho o estudante.

— Zangada com o senhor! Por quê? Hom’essa… Olharam-se e iam,
talvez, sair os grandes segredos do coração da donzela quando
uma voz estrondou no alto da escada:

— Passa pra cima, descarada! E o senhor fique sabendo que eu não
quero cenas aqui em minha casa. Os senhores pensam uma coisa e ela é
outra.

Vidinha, assomada, respondeu:

— Não me amole! — e enfarruscou, alisando o corrimão.

Anselmo, melindrado, repeliu a insinuação.

— Que pensa a senhora de mim?! Julga que eu estava aqui a dizer galanteios
à sua filha? Está enganada. Eu perguntava simplesmente se a
Gazeta já havia chegado. Não é verdade, Vidinha?

— É, sim.

— Eu sei! Os senhores são bons, mas a mim é que não
embaçam. Eu bem sei como o diabo as arma. Anda pra cima, Vidinha.

— Não vou!

— Sem vergonha! Ficaram as duas discutindo e o estudante desceu indignado,
mas convencido de que era o venturoso. Na manhã seguinte, porém,
Ruy Vaz subia do Cranium quando encontrou a menina. Dona Ana estava à
porta comprando verduras e sorte que o romancista pôde dilatar o encontro.

— Adeus, belezinha. Ia fazer-lhe uma carícia no rosto, mas Vidinha
repeliu energicamente a mão atrevida.

— Eu não gosto de lambanças, sabe?

— Que é isto? Então é assim que se trata o queridinho?

— Queridinho quê, seu bobo!

— Ah! Não sou eu o queridinho? Então por que anda você
mexer comigo?

— Mexendo com o senhor? Eu! O senhor está sonhando…

— Ah! Estou sonhando? Pois sim.

A menina fez um momo e disse abandonadamente:

— Eu dos senhores só quero o descanso.

— Má! — atirou-lhe em face o romancista.

— Mau é o senhor.

— Eu? Por quê?

— Não sei…

— Diga!

Ela encarou-o sorrindo e, com um meneio gracioso da cabeça, em voz
expressiva e mole:

— O senhor é tolo! Nossa Senhora!… É melhor que tire
fiapo do bigode, que até parece um cabelo branco.

Ruy Vaz apresentou a face, muito terno:

— Tira, meu anjo. Eu não vejo… E Vidinha, com um muxoxo, foi
com dois dedos delicadamente, tirou o fiapo e mostrou-o ao romancista; e ele,
trêmulo:

— Então eu sou mau?

— É, sim… Mas os tamancos de Dona Ana abalaram a casa.

— Olha mamãe! — disse ela assustada e Ruy Vaz precipitou-se,
escada abaixo, o caminho do Cranium. Mas da cena capital foi herói
Toledo, o casmurro. Os companheiros haviam saído, era quase noite,
ele estava só no mirante quando Vidinha, debruçada à
janela, disse:

— Que tristeza, meu Deus!

— Como? — inquiriu o misantropo.

— Que tem o senhor que anda tão triste?

— Nada, sou assim mesmo.

— Qual? Não creio: o senhor tem alguma coisa que não
quer dizer à gente. Paixão, com certeza…

— Eu? Não tenho tempo para essas coisas, Dona Vidinha.

— Faço idéia…! Os mais sonsos são os piores.

Houve um silêncio e Toledo já não se lembrava de Vidinha
quando ouviu:

— Boa noite!

Respondeu como em sobressalto:

— Boa noite, Dona Vidinha

E ela, em voz trêmula e surda, ajuntou:

— Sonhe comigo… e desapareceu. O anatomista ficou atordoado, assombrado
como se, lá da altura, a lua, muda e branca, lhe houvesse perguntado
pela família.

Foi num dia borrascoso de aguaceiro e vento, dia insípido de tédio,
que Ruy Vaz contou, com requintes de vanglória, o seu encontro com
a menina dando-se pelo preferido, mas Anselmo referiu o episódio da
escada e Toledo narrou a cena teatral do mirante. Os três, pasmados,
romperam a rir.

Toledo, porém, disse com lástima e sabedoria: “Que era
uma doente…” Ruy Vaz declarou: que era um caso. A pequena atirava-se
a todos para apanhar um, indiferentemente. Não havia amor, senão
astúcia e interesse. Toledo entendia que o melhor era darem a perceber
que a estimavam, sem intenção, para que se desvanecessem as
idéias absurdas que ela afagava com prejuízo do futuro, porque
estava talhada para ser a esposa fiel do amanuense. Mas Anselmo, com os olhos
fuzilantes, protestou enérgico:

— Isso não! Pois a pequena presta-nos tão alto serviço
intelectual e havemos de desprezá-la? Isso nunca! Vidinha é
um excitante e um alvo. O coração precisa de um ponto de mira,
meus amigos. Os marinheiros guiam-se pelas estrelas, os poetas não
podem trabalhar sem um ideal qualquer. Vidinha presta-se magnificamente.

Toledo ponderou com gravidade:

— Tomem cuidado! Essa menina é um perigo.

— Qual perigo! E, sem darem atenção aos conselhos do
macambúzio, Ruy Vaz e Anselmo continuaram a cultivar a flor de alambre
dirigindo-lhe frases incandescentes e ela a mandar-lhes flores, anéis
de cabelo, marcadores de livros e, quando saíam, avisada pela negrinha,
subia em visita curiosa ao segundo andar, corria os quartos, arranjava as
mesas e, uma noite, ao deitar-se, Anselmo descobriu debaixo do seu travesseiro
um lenço perfumado a Kananga que a menina ali havia escondido, para
atordoá-lo, sem dúvida. O estudante dormiu com o trapo apertado
ao coração e teve sonhos deliciosos.

Ruy Vaz, ouvindo os estrondos e suspiros do companheiro, começava
a recear quando um incidente providencial fez com que o estudante evitasse
o abismo que o atraía com lenços perfumados e cantares langorosos
à janela da sala de jantar.

Capítulo IV

Anselmo, que havia concluído a opereta, obteve do Heller, graças
à apresentação de Ruy Vaz, um domingo para a leitura.
Com o manuscrito debaixo do braço, o coração em grande
alvoroço à idéia de um ruidoso sucesso que, de golpe,
lhe atirasse o nome para a glória, entrou no jardim do Sant’Anna.

O empresário teve uma grande e enfadada surpresa ao como se vê-lo
se não contasse com aquele sacrifício, mas dissimulando, ofereceu-lhe
um banco no tablado, pedindo um instante para dar certas ordens. Anselmo sentou-se
orgulhoso, certo de que o Heller fora reunir a companhia para a audição
dos três atos da sua opereta que tinha o misterioso título de
A Profecia. Mas o empresário tornou, instantes depois, resignado e
só, e, tomando um dos bancos, sentou-se, dizendo em voz aveludada e
com um sorriso de mártir:

— Podemos começar. Anselmo, ainda esperançado, lançou
um olhar comprido para o fundo do teatro, através da platéia
deserta e lúgubre, mas o palco estava vazio e escuro, em arcabouço,
com os bastidores encostados em pilhas, uma grande concha, rutilante de malacacheta,
tirada por dois cisnes e uma velha árvore que, na mágica, então
preferida do público, esgalhava-se dando passagem à fada Primavera,
uma artista italiana, grossa de corpo que, todas as noites, era delirantemente
aclamada por um grupo de admiradores. Não havia viva alma. Resolveu-se
a principiar a leitura. Desenrolou o manuscrito e o Heller, vendo a primeira
página, fez uma observação lisonjeira:

— Bela letra! ~ sua?

— Sim, senhor. O empresário, arregalando os olhos, acenou com
a cabeça admirativamente. Em verdade a caligrafia era magnífica:
o título dos atos em caracteres góticos, a descrição
dos cenários e as rubricas em fino cursivo à tinta carmim, e
toda a escrita uniforme, sem uma emenda, sem uma rasura, limpa e igual. Anselmo
começou e, logo às primeiras frases, o Heller, abichornado pela
temperatura tépida da hora sonolenta, cerrou os olhos. A cabeça
ia-lhe descaindo lentamente; ele, porém, logo a afirmava, olhando quebrantado,
com a mão à boca para esconder os bocejos.

Ia começando o segundo ato quando uma atrizinha apareceu muito tesa,
em passo miúdo, rebolindo-se, com a sombrinha acolhida entre os braços
sob o colo. Fazendo leve cumprimento ao estudante inclinou-se para dizer alguma
coisa ao ouvido do empresário que, de olhos altos, ia respondendo:
“Sim… Sim… Sim…” Enquanto ela falava Anselmo, que acendera
um cigarro, olhava-a e admirava-a. Clara, de olhos garços, pequenos,
irônicos, mas de inexcedível vivacidade brejeira, lábios
carnudos, cabelos castanhos e colo farto, que ondulava maciamente.

— É uma peça nova? — perguntou lançando
um olhar ao manuscrito.

— Sim, disse o Heller.

— Há algum papel para mim? Anselmo afirmou:

— Há a princesa ou, se a senhora preferir, a fada. A atriz inclinou-se
sobre o original, que o estudante deixara aberto na mesa, examinou-o, tomou-o
nas mãos e, com um sorriso que dava ensejo a que o jovem autor visse
duas filas de dentes admiráveis, exclamou enlevada:

— Com efeito! Que letra! Linda letra, hem, Jacinto?

— É verdade, concordou o empresário sonolento.

— Tão certa! Parece impressa. Sim senhor! Esta não precisa
ser copiada para o ponto. O senhor escreve sempre assim?

— Sempre; afirmou o estudante.

— É admirável! E ajuntou: Quem tem tão linda letra
deve escrever coisas admiráveis. Com licença… Se permite que
eu ouça algumas cenas da sua peça… Há muito que começou?
Que calor, hem? Em que ato está?

— No segundo.

— O primeiro não é mau, resmungou o Heller: tem vida.

— Vamos lá, disse a atrizinha chegando a cadeira para junto
do estudante e, sempre com os olhos nele, risonha, ouvia. Ia Anselmo lendo
uma grande e enfática invectiva quando se pôs a gaguejar, perturbado:
sentira leve pressão no pé e, instintivamente, lançando
um olhar interrogativo à atriz, viu que ela o fitava enternecida, com
os olhos semicerrados e lânguidos. Quase ao terminar o segundo ato uma
voz bradou do palco estentoricamente:

— Ó Jacinto! O empresário, ajustando o pince-nez, levantou
a cabeça:

— Que é?

— Anda cá!

— Com licença. É um momento.

— Pois não. Ficaram os dois e o Heller ia ainda perto quando
a atrizinha, em tom ardente e discreto, com a cabecinha inclinada, murmurou:

— Que olhos tem você, menino…! Ele sorriu tímido. Fazem
mal à gente, palavra; ajuntou. Olharam-se e ela, sorrindo, tornou mais
forte a pressão do pé.

— Você é estudante?

— Sou.

— De Medicina?

— Não: de Direito; estudo em S. Paulo.

— Ah! S. Paulo! — disse ela de olhos em alvo, como se aquele
nome lhe trouxesse suaves e saudosas recordações. Inclinou-se
sobre a mesa e Anselmo sentiu-lhe o contato dos joelhos. Ela examinou o frontispício
do manuscrito e, lendo “Anselmo Ribas…” perguntou:

— É teu nome?

— É…

— Que idade tens?

— Dezoito anos. Encarou-o risonha, mordicando o beiço e exclamou
de novo:

— Mas que olhos! Você deve ser um homem terrível! Quem
é a tua amante?

— Minha amante? Não tenho.

— Não tem!? — fez ela com espanto compadecido: Pobrezinho!
De repente, sacudindo uma penugem que pousara na lapela do casaco do estudante,
perguntou:

— Vens logo ao teatro?

— Posso vir.

— Então espera-me depois do espetáculo. Onde moras?

— Na rua Formosa.

— Só?

— Com dois outros rapazes: Ruy Vaz e um estudante de Medicina.

— Ah! Moras com Ruy Vaz?

— Moro.

— Bonito rapaz aquele, hem?

— É… Levantou-se, tomou a sombrinha e, estendendo a mão
breve ao estudante, enquanto lhe apertava os dedos, disse:

— Então até logo. Olha, espera-me junto do botequim.
Vamos cear e depois… riu derreando a cabeça, piscando os olhos. Até
logo; e, erguendo a voz: Jacinto, adeus, hein!

— Adeus! Já à porta, acenou com os dedos um adeus a Anselmo,
depois, apontando o balcão do botequim fechado: Ali!

— Sim, disse o estudante.

— Até logo! — e atirou-lhe um beijo. O estudante, surpreendido
com esse rápido incidente de amor, mal pôde concluir a leitura.
Já não se preocupava com os proventos nem com o sucesso da opereta,
pensando apenas no encontro noturno com tão formosa rapariga, mas a
idéia da ceia aterrou-o. Como havia de a levar a um hotel se toda a
sua fortuna reduzia-se a uma velha nota de cinco mil réis? Não
havia de conduzi-la a uma tasca para empanturrá-la de iscas e de vinho
verde, nem era gentil levá-la a bonde para casa. Mulheres como aquela
estavam habituadas a iguarias finas, a champanhe e não se moviam senão
em carruagens macias. Como se havia de arranjar para aparecer decentemente
à atriz que ficara magnetizada pelos seus olhos felinos?

O empresário aceitou a peça prometendo montá-la logo
que tivesse ensejo e Anselmo saiu radiante, feliz nas letras, feliz no amor,
antegozando as duas delícias — a noite próxima, sonora
de beijos, e o êxito de A Profecia… logo que houvesse ensejo. Quando
chegou à casa narrou miudamente a aventura. Ruy Vaz, que conhecia a
atriz, quis dissuadi-lo.

— Não te metas com essa mulher, é o diabo. É um
escândalo de saias: faz rolos, tem ataques, suicida-se uma vez por mês,
um horror! Arranjaste uma complicação, vais ver. Essa mulher
vem desorganizar a nossa vida. Estamos aqui tão bem, trabalhando tranqüilamente
e vai-se tudo por água abaixo. Já estou a vê-la revolvendo
papéis, folheando livros, espalhando notas ou esperneando ali no tapete
descomposta, com os tais ataques. Não penses que há despeito
da minha parte, falo assim porque conheço a fundo essa ventoinha. Acho
melhor que não a tragas para cá.

— Mas se ela quer vir..

— Quer vir! Ora! Quer vir! Mas para onde, se dormimos no mesmo quarto?

— Por isso não: eu falo ao Toledo.

— Pois sim, hás de ver o resultado. É até capaz
de fazer-nos perder esta casa, onde estamos tão bem. É assim!
Quando começo a pôr ordem na vida… zás! E foi-se para
a janela resmungando.

O Toledo cedeu o quarto sem a mínima objeção; apenas
retirou da parede os retratos do pai e da mãe e pôs uma vela
nova no castiçal. O estudante conseguiu, com alguma lamúria,
arrancar dez mil réis ao misantropo para as grandes despesas da ceia.

O dia parecia a Anselmo infindável e, impaciente, às sete e
meia da tarde, com quinze mil réis no bolso e a alma radiante, caminhou
trauteando a “Canção de Fortúnio” em direção
ao Deroche para fazer hora.

Lins lá estava chuchurreando chopes e ouvindo as bravatas de um alentado
barbaças que era paginador num jornal. O homem narrava, roxo e inflado,
suando, um feito de mocidade. Andava uma noite em serenata, com outros, lá
para as bandas da Cidade Nova, quando dois policiais, por birra, lhes tomaram
o passo proibindo, com descomposta linguagem, o zangarreio e o descante. Com
boas palavras tentaram persuadi-los de que não eram vadios, mas homens
pacíficos, de trabalho, que se divertiam ao luar da noite morna, mas
os polícias, julgando, pelas falas mansas, que eram poaias, insistiram
na proibição e, sem mais aquela, foram desembainhando os rifles.
Ele então, em furor de louco, atirou as manoplas à barriga dos
intangidos soldados, suspendeu os dois e muito tempo, no ar, esteve a bater
um contra o outro até que os sentiu moles; encostou-os, então,
a um muro e foi-se pacatamente, fumando. Soube, mais tarde, que os dois policiais,
recolhidos de manhã, com as caras amassadas e rubras como dois grandes
tomates, estiveram entre a vida e a morte durante um mês, no hospital,
bradando, no delírio da febre, contra um gigante, alto como uma torre
e armado de cavaquinho, que os esmagava. O gigante era ele. A voz trovejante
do paginador, saindo dentre as barbas densas, era soturna e temerosa como
a de um oráculo vindo de versuda brenha em escachôos, ecoando.
Lins ouvia-o entre assombrado e descrente e pedia mais chopes.

Quando Anselmo entrou o poeta apresentou-o ao paginador que possuía
o nome beato de Santos e o colosso, tomando na prensa da destra a mão
fraca do estudante, para dar demonstração da sua força,
apertou-a. Anselmo, porém, não se deu por sentido, posto que
se lhe enchessem os olhos de água.

O Deroche estava quase deserto; além do poeta e do gigante só
dois alemães, cachimbando e cervejando, calados como autômatos,
recomeçavam partidas de dominó. Anselmo lançava, de instante
a instante, os olhos ao relógio moroso. Como lhe pareciam lentas aquelas
horas! Que noite vagarosa! Lins não podia acompanhá-lo, ia escrever
uma crônica para um jornal de província. Já o caixeiro
lhe havia posto diante dos olhos, entre os copos vazios, o tinteiro e um caderno
de papel. Anselmo foi-se. A rua do Ouvidor, sem movimento, tinha o aspecto
desolado de viela abandonada. As ruas do Rio de Janeiro, como as de Paris,
segundo Balzac, têm qualidades e vícios humanos: há ruas
estróinas e há ruas pacatas, ruas ativas e ruas negligentes,
ruas devassas e ruas honestas, umas cujos nomes andam constantemente em notas
policiais, outras que são citadas nas descrições elegantes.

A rua do Senhor dos Passos é imoral e imunda, a sua linguagem é
torpe, o seu vestuário indecoroso, as suas maneiras insólitas,
o seu cheiro nauseabundo, é uma rua que se enfeita com alecrim e arruda
e embebeda-se com cachaça, tem hábitos vis de xadrez e de tasca.
Por mais que se arreie vê-se-lhe sempre a imundície e a pústula;
por mais que se esfregue sente-se-lhe sempre o fortum.

A rua Sete de Setembro é uma delambida rameira que estropia a língua
do país e escandaliza a moral; o seu colo tem placas, os seus lábios
mostram a devastação fagedênica, o seu hálito envenena.
Tais ruas são como essas flores noctilucas que só desabotoam
à noite e expandem o seu aroma; durante o dia caladas, entorpecidas
modorram em flácido e derreado abandono, bocejando.

A rua da Conceição é desconfiada, como que tem sempre
o olhar à espreita, a navalha à mão, o pé ligeiro
pronto para saltar e fugir. Não fala — murmura, cochicha, em
gíria arrevezada. E maltrapilha e zambra, arrasta andrajos e oscila.

A praia de Santo Cristo tem o aspecto sadio de uma varina, criada livremente,
à fresca e salitrada aragem marinha, diante da vaga, sempre a coser
os panos das velas, abrindo-as ao vento ou compondo as malhas das redes que
um repelão mais forte do peixe, no mar fundo, rompera em noite farta.
A sua linguagem é rude como o fragor da onda na rocha, o seu olhar
é límpido e seguro como o do mareante; tresanda à maresia.
A sua força é a do vagalhão. Calma, tem o encanto da
água serena em noites de luar, mas quando se insurge alvoroçada,
quando se põe de pé, brandindo facas agudas e croques, remos
e velhas bancadas de canoas roídas pela onda, esquecidas junto às
dunas, apodrecendo ao tempo, tem a fúria irreprimível do mar
tempestuoso.

A rua Haddock Lobo, com o seu ar repousado e feliz de velha senhora abastada,
que dormita à sombra de árvores, entre crianças gazis
e flores recendentes, digerindo, em sossego beato, sem cuidados, sem achaques,
é calma e transmite ao espírito suavíssima idéia
de descanso espiritual e de corpo, no imperturbável silêncio
das suas aléias no frescor das suas finas águas correntes.

A rua do Ouvidor é trêfega. Durante o dia toda ela é
vida e atividade, faceirice e garbo; é hilare e gárrula; aqui,
picante; além ponderosa; sussurra um galanteio e logo emite uma opinião
sisuda, discute os figurinos e comenta os atos políticos, analisa o
soneto do dia e disseca o último volume filosófico. Sabe tudo
— é repórter, é lanceuse, é corretora, é
crítica, é revolucionária. Espalha a notícia,
impõe o gosto, eleva o câmbio, consagra o poeta, depõe
os governos, decide as questões à palavra ou a murro, à
tapona ou a tiro e, à noite, fatigada e sonolenta, quando as outras
mais se agitam, adormece. Ouve-se apenas o rumor constante dos prelos nas
oficinas dos jornais. É a rua que digere a sua formidável alimentação
diária para, no dia seguinte, pela manhã, espalhar pelo país
inteiro a substância que compõe a nutrição do grande
corpo, cada parte para o seu destino. Para o cérebro: as idéias
que são os incidentes políticos e literários e as descobertas
científicas, essas ficam com a casta dos intelectuais; o sentimento
para o coração, que é a mulher; essa tem o romance e
a esmola, o lance dramático e a obra de misericórdia; o movimento
dos portos e das gares para o ventre e para os braços do povo que devora
e do comércio que abastece e o resíduo que rola, parte para
os cemitérios, parte para os presídios mortos e condenados.
Outros que analisem a carta completa da cidade, eu fico nesta exposição.

Anselmo seguiu pensando no encontro. No largo de S. Francisco todos os quiosques
conservavam-se apagados. Tomou pela rua do Teatro, também escura. Os
respiradouros do S. Pedro brilhavam, homens debruçados às janelas
fumavam, passavam senhoras despindo capas. Num hotel ressoava a harpa de um
pequeno italiano e a rabequinha da irmã desafinava dolorosamente como
se, a custo, àquela hora da noite, depois de todo um dia de afã,
de hotel em hotel, de esquina em esquina, arranhado insistentemente pelo arco,
o instrumento, irritado, recusasse o som.

No largo do Rocio era grande o movimento. Os cafés regurgitavam —
era o povo dos domingos: o operário, o caixeiro, o marujo, aproveitando,
com ânsia, o dia de folga. Vinham do campo, chegavam dos subúrbios
fartos, alegres; uns que haviam apostado, com felicidade, nas corridas; outros
que se haviam banqueteado, num canto rústico de arrabalde, à
sombra da latada verde e iam acabar a noite no teatro, aplaudindo atrizes,
cobrindo o palco de flores, rindo, saciando um desejo refreado durante uma
longa semana no quarto estreito do armazém ou no cubículo da
oficina.

Rapazolas passavam em turmas com grandes ramos ao peito, chuchando imensos
charutos, fazendo algazarra. E triste, encostado a uma esquina, com uma pequenita
sonolenta ao lado e um cão estirado aos pés, um velho cego,
de compridas barbas brancas, com um realejo suspenso ao pescoço, tendo
sobre a tampa um pires, voltava maquinalmente a manivela, moendo a Marselhesa.

Anselmo parava à porta de todas as casas, espiava e via um povo diferente
do que ali costumava aparecer nos dias comuns. Nem um só dos rapazes:
era uma gente nova, desconhecida, como se houvesse chegado de longe, caminhando,
logo ao pisar a terra, em grande necessidade de expansão e de movimento,
para as casas de prazeres onde bebesse e, calmamente, seguramente, comentasse
os perigos de que saíra, os sustos que havia sofrido, as privações
por que havia passado.

O homem das empadinhas urrava desesperado: “Empadinhas de camarão…
estão quentes!” e, à porta do teatro, o povo apinhava-se,
apertava-se, avançando arrastadamente, comprimido. Entrou.

O porteiro ruivo pediu-lhe o bilhete; ele, porém, lembrando-se do
que lhe havia dito Ruy Vaz, atirou, com orgulho, o título de um jornal
e passou.

Havia enchente. O jardim fervilhava e era um rumor confuso de vozes altas,
estrondosas gargalhadas, estouros de garrafas. Cocottes, às duas, às
três, de braço dado, iam e vinham; na platéia e nas torrinhas,
era um bater estrepitoso de pés e de bengalas. Na orquestra os músicos
afinavam os instrumentos quando a campainha retiniu e houve como uma inundação
de luz e um grande “oh!” encheu o teatro com a expansão de
todas aquelas almas ansiosas.

Subiu o pano. Anselmo, junto à orquestra, entalado entre os curiosos,
muito espichado, procurava descobrir Amélia, mas a atriz não
havia ainda aparecido, o coro apenas vozeirava. Rompeu uma salva de palmas…
Seria ela? esticou-se: não, era o Vasques, todo de amarelo, com um
girassol à cabeça. Mas uma pancada metálica de gongo
vibrou sonoramente, espiou e sorriu, com o coração à
boca. Era Amélia, de fada, iluminada por um jorro de luz, num carro
tirado por dois cisnes. Vestia túnica recamada de pedrarias, à
cabeça o diadema encimado por uma estrela que cintilava, em punho a
vara mágica, braços nus, as pernas no maiô muito justo,
coturnos nos pés… Divina!

Ele esforçava-se por conseguir tomar a frente ao grupo para que ela
o visse, mas não podendo vencer a barreira humana, resignou-se a ficar
em pontas de pés, angustiado, suando, a ouvir, com delícia,
as palavras proféticas que ela ia dizendo aos da corte do rei, um monarca
pançudo e ridículo, que caminhava aos saltinhos agarrado aos
ministros… E com outro estrondo metálico Amélia desapareceu.

Que mais tinha ele a fazer ali naquela espécie de lugar? Retirou-se,
com a mão no bolso, apalpando o dinheiro, receoso de que algum gatuno
astuto o levasse, deixando-o desprevenido para a ceia.

No jardim encontrou o Duarte, a rir, num grupo de mulheres. Chamou-o à
parte e, narrando-lhe a aventura em que estava empenhado, pediu o seu auxílio,
mas o poeta estava in albis, tinha apenas o níquel da passagem. Olharam-se;
de repente, porém, o autor das Boêmias disse com segurança:

— Espera-me aqui. Vou ver uns casos. E foi-se. Anselmo, posto que ardesse
em sede, não se atrevia a tocar no dinheiro que reservava avaramente
para a ceia. Foi ao balcão e, não sem vexame, pediu um copo
de água. Começava o terceiro ato. O estudante já estava
resignado à sua fortuna módica, quando o Duarte reapareceu esbaforido:

— Ah! meu amigo, que trabalhão! — e passou-lhe um rolinho
sorrateiramente, segredando: Tens aí dez. Mas não te metas mais
em complicações aos domingos. O domingo é um dia impossível:
as nossas carteiras não aparecem, ficam repousando nas chácaras,
de paletó branco e chinelas. Faze tudo quanto quiseres da segunda-feira
ao sábado e descansa ao domingo, porque o Senhor mandou e porque não
há meio de arranjar-se um níquel. Suei para conseguir essa miséria:
tive de ir à rua da Candelária recorrer a um amigo. Felizmente
encontrei-o à porta tomando fresco.

— Achas que com vinte e cinco posso fazer alguma coisa? — perguntou
Anselmo.

— Isso é uma fortuna, homem de Deus! Podes até mandar
abrir meia garrafa de champanhe e comprar um maço de cigarros para
mim. Vou contigo.

— Tu! — exclamou o estudante aterrado.

— Tens ciúme?

— Não, não é ciúme, mas a quantia… para
três.

— Mas eu vou justamente para garantir-te. Fico a teu lado e, se vir
aproximar-se alguém com cara de canja ou de grogue… porque eu, pela
cara, sei o que os manos farejam, dou o brado, compreendes? Fico de guarda
e, mesmo, sendo necessário, podes deixar-me como refém.

— Então sim.

— Olha, acabou. Efetivamente o povo saía em massa. O estudante
respirou e foi postar-se junto ao botequim que os caixeiros fechavam. Apagaram-se
todos os bicos de gás, o pano de boca subiu e o palco apareceu nu e
sombrio. Começaram a sair os atores e Anselmo, sempre que via aparecer,
ao longe, uma mulher, movia-se como para ir-lhe ao encontro, mas o Duarte
detinha-o:

— Não! Não é. E, intimo dos artistas, dirigia
cumprimentos a todos que passavam: “Adeus, Chico! Boa noite, Guilherme!
Como vai isso, Lisboa? Bravos à comadre.”

— Aí vem ela…! disse, por fim. Era Amélia, muito tesa,
com o seu passo miúdo e sacudido. Encaminhou-se para o botequim e,
com meiguice, roçando pelo estudante como uma gata amorosa, perguntou:
“Se ele havia aturado aquela estopada…?”

— Por tua causa… murmurou ele apaixonadamente e ela, lânguida:

— Hei de pagar-te o sacrifício.

O Duarte curvou-se dizendo em tom irônico:

— Muito boa noite, senhora duquesa!

— O Duarte! Estavas aí? Se fosses cobra.

— Não mordo, madame.

— Nem eu sou mordível, respondeu ela a rir e, tomando o braço
de Anselmo, muito aconchegada, sussurrou:

— Fazes muito empenho em cear?

— Eu? Se quiseres. Estou por tudo.

— Então vamos para casa.

— Isso não! — exclamou o Duarte; vamos festejar o himeneu
com uma Einbek gelada, já que não podemos regar o epitalâmio
a champanhe.

— Pois vamos, disse Anselmo passivamente.

— Eu entendo que vocês devem tomar uns ovos quentes e um cálice
de Porto. Eu cá sou assim: não embarco para Citera sem levar
copiosas provisões. A viagem é longa e fatigante.

— Pois vamos tomar uma garrafa de cerveja. Mas eu não como,
jantei tarde, disse Amélia.

— Como vai o Moreira? — perguntou o Duarte.

— Não me fales nesse idiota! É um homem impossível:
chora, vive sempre ajoelhado a meus pés, a beijar-me as mãos.
Ridículo! Eu gosto de homem, homem…! De maricas não venhas!
— exclamou em tom brejeiro. Entraram na Maison Moderne e Anselmo ainda
insistiu por um pouco de foie gras, uma salada de arenques com vinho do Reno.
Amélia fez um momo: “Aceitava apenas um copo de cerveja para não
se fazer rogada.”

Estavam os dois enlevados, enquanto o Duarte dava conta de um picadinho à
baiana com farofa, quando uma voz rouca estrugiu:

— Correto!

— Olha o Neiva, disse Amélia voltando-se. Era efetivamente o
boêmio. Vendo o grupo, dirigiu-se à mesa, e arrastando uma cadeira,
pediu, num berro:

— Porto! Depois, muito terno, sorridente: Então que é
isto? Que armação é esta? Temos amores?

— Já viste olhos mais ardentes do que os deste menino, Neiva?
— perguntou Amélia.

— Não, nunca vi… Mas que tenho eu com isto? Pensa você
que sou fiscal da iluminação do amor? Pôs-se de pé,
ameaçador e trágico: Menina, cuidado! Este meu amigo é
um Otelo de paletó saco!

— Mas eu não sou Desdêmona.

— Isso sei eu. Tu és como a Misericórdia: estás
sempre de braços abertos. Honesta como fiel de balança. E, com
os olhos imensos, a cabeça enterrada nos ombros, rugiu: Fazes muito
bem! Saltou para o meio da sala repetindo: Fazes muito bem! E, chegando-se
à atriz: O amor tem asas para voar… volúvel! Volúvel!
Nada de ficar amarrada a este ou àquele sujeito. Amar é desejar;
depois de saciado o desejo vem o tédio e, quando o tédio chega…
só o divórcio.

— Pensam assim os inconstantes como tu, disse a atriz. O Duarte, cruzando
o talher, tomou um sorvo de cerveja e, depois de limpar os beiços,
suspirou:

— Só eu não sou amado! Se me impressiono por alguma menina,
no dia seguinte é pedida em casamento. Eu sou o Himeneu.

— Qual Himeneu. Jetabore é que és.

Ou isso. Comecei a amar uma viúva com todas as veras da alma, com
todo o fogo do coração, pois…

— Vai casar, adiantou Anselmo sorrindo.

— Não, nasceu-lhe um filho.

— Como! — exclamaram os três.

— Ora, como! Vai perguntar ao marido.

— Então é um filho póstumo?

— É verdade! O homem antes de morrer… É assim, hei
de sempre encontrar um tropeço no meu caminho.

— Por que não tiras privilégio dos teus namoros?

— Já pensei nisso. Garçom, mais cerveja! Anselmo lançou
um olhar apavorado ao Duarte que, percebendo, disse calmamente:

— Descansa homem; estou aqui com o prumo. O Neiva, fazendo uma careta,
repeliu o copo enjoado.

— Não bebes mais? — perguntou Amélia.

— Não, filha; aqui onde me vês estou saindo do dique.
Ceei ontem em casa da Melania e foi um estrupício! Só hoje,
às duas da tarde, achei a minha cabeça. Ah! Vocês não
imaginam: eram umas vinte mulheres e belas! Divinas! Encantadoras e estúpidas
como a Vênus de Milo. Havia lá uma Hortênsia, de Guaratinguetá,
deliciosa! Quando viu as alcachofras rompeu a rir, dizendo que aquilo nem
parecia repolho e pediu queijo para os espargos tomando-os por macarrão.
Um encanto!

— E as outras? — perguntou Anselmo.

— Tudo besta! Foi entre a ignorância e a beleza que passei a
noite e estou cheio de solecismos e de pecados. Já li uma página
purificadora e agora… Tomou um ar beato, espalmou a mão no peito,
baixou a cabeça e murmurou: Pretendo amanhecer no Castelo para purificar-me
no seio de um capuchinho. Depois da confissão atiro-me ao Gibert. Bem
com Deus e com o Gabiso, este é o meu programa. Bramiu: A mitologia
está errada! Vênus teve dois filhos gêmeos: Amor e Mercúrio.
Estirou-se, amolecido:

— Estou morto! Mas logo, sungando o corpo, dirigiu-se a Anselmo:

— E você previna-se, meu amigo: saia dos braços dessa
criatura e mergulhe num Jordão de iodureto.

— Não é preciso, disse Amélia erguendo-se irritada.

— Quê? Estás zangada? Neiva está brincando. Então
Neiva não pode brincar…?

— Sim, mas eu não gosto de brincadeiras dessas..

— Está bem, rasgo a receita. Adeus! Vou dar um dedo de prosa
ao Vasques. Até amanhã! Foi-se.

— Vamos? — convidou Amélia.

— Vamos.

— Eu fico, disse o Duarte. Sejam muito felizes. E, como o caixeiro
apresentasse a nota, ele segredou ao estudante:

— Então? Viste como se manobra? Ainda podes almoçar e
jantar amanhã, com vinho. Adeus!

— Boa noite! E os dois saíram aconchegados.

Anselmo propôs tomarem um carro. Amélia, porém, preferiu
o bonde e foram, como um casal de noivos, muito juntos, extasiados, de mãos
unidas, fazendo protestos de amor até a morte.

Capítulo V

A casa estava em silêncio. A candeia, diante da escada, espichava uma
chama comprida e fumarenta alumiando os primeiros degraus, o resto do lance
perdia-se na escuridão e foi aí, nesse tenebroso e arriscado
sítio, que o primeiro beijo longo selou o juramento passional feito
no bonde. Ruy Vaz e Toledo dormiam a sono solto quando os dois atravessaram
a sala em passos surdos, a caminho do quarto do misantropo. Anselmo ia riscando
fósforos pelo corredor por onde os ratos fugiam atropeladamente.

Oh! Essa primeira noite, desde que um sopro extinguiu a luz! Ó ardentíssimo
Bartriari. Ó penseroso Babravia e tu, voluptuoso brâmine Vatsyayana,
autor dos shastras fesceninos; e tu, Ovídio; e tu, Propércio,
vós todos quantos cantastes o delírio erótico em estrofes
mais estimulantes do que a decocção afrodisíaca da Uchala
ou do que o mel do Hymeto, doce e rejuvenescedor, que admiráveis páginas
daríeis se pudésseis, de um canto, velando, como velaram Anselmo
e Amélia, ouvir as entrecortadas palavras trêmulas, ouvir os
beijos alucinados e…

Se conhecêsseis a qüinquagésima estrofe do 8o canto do
poema do Ariosto:

“Tutti le vie, tutti li modi tenta; Ma quei pigro razzon non peró
salta: Indarno li fren gil scuote e lo tormenta; E non puó far que
tenga la testa alta. Alfin presso alla donna s’addormenta. …………………………………………………..”

Imaginai o oposto dessa miseranda cena entre o eremita e Angélica,
na praia; imaginai e tereis o que aquelas paredes graves da alcova ascética
do triste não viram, mas ouviram, se, em verdade, as paredes têm
ouvidos.

Depois dessa noite febril, Anselmo, como se houvesse perdido a noção
do seu destino, esqueceu os livros à poeira e à traça,
esqueceu sobre a mesa desordenada as primeiras tiras do romance, que tão
interessadamente começara por uma larga descrição da
vida rural com muita bucólica, sob um sol abrasado, entre cabanas e
matas virgens, louros canaviais e águas fugitivas e os dias, ou passava-os
molemente estirado na cama, a repousar da noite esperando a noite, ou ia gastá-los
em casa de Amélia, muito lúbrico, enquanto Ruy Vaz, em excitada
febre de trabalho, mal aparecia aos amigos e o Toledo, com todos os ossos
do crânio na cabeça, passava à coluna raquidiana, passeando
pelo corredor com vértebras na mão e vértebras nos bolsos.

Amélia mudava-se paulatinamente para a rua Formosa. Alta noite, um
tílburi parava à porta e Toledo, o paciente anatomista, era
despertado para ceder o quarto e, sem queixa, com os retratos respeitáveis
e o seu lençol, transferia-se para a cama de Anselmo; e a atriz instalava-se.
Já no mirante, ao sol, vestidos tufavam-se, meias de seda rolavam pela
casa; nos cabides, juntamente com os paletós e as calças, havia
camisas e saias rendadas, um chapéu, cercado de plumas, enfeitava,
como um ornato extravagante, a mesa do autor de A Profecia e, nos róis
de Anselmo apareciam, na promiscuidade das ceroulas e dos colarinhos, calças
de senhora, saias brancas, camisas e outros panos adjacentes.

Pelas paredes eram sem conta os retratos da atriz em diferentes peças:
ora de fada, ora de pajem, ora de escrevente. Aqui, com ares régios
de soberana; ali, risonha, mostrando os dentes, numa garridice de soubrette
e um, maior que todos, no qual era vista deitada sobre um divã, olhos
semicerrados, fumando. Ruy Vaz achava aquilo imoral e o Toledo, para que os
seus progenitores não aparecessem em companhia tão desbragada,
trazia os dois retratos no bolso recatadamente.

Dona Ana, encontrando uma manhã Amélia no corredor, plantou-se
de mãos à cinta no patamar trincando os beiços e, logo
que a atriz desapareceu, esbravejou com todo o poder dos seus pulmões.

— Que não queria gente daquela laia na sua casa, aquilo não
era zungu! Que os sem-vergonha vissem que ela tinha uma filha solteira. E
jurou que, se encontrasse outra vez a sirigaita, agarrava a pelo gasnete e
atirava-a da escada abaixo. Anselmo, melindrado, quis descer para fazer calar
a viúva, mas Ruy Vaz acalmou-o:

— Que vais fazer, desgraçado? A mulher tem razão. Pensas
que é pela moralidade da casa toda essa cólera? Estás
enganado — é pela decepção. Para Dona Ana, Amélia
não é uma devassa: é uma rival da filha. Ela contava
contigo para Vidinha e, como vê a rapariga entrar e sair, vocifera desesperada
compreendendo que ela vai desviando um partido. Eu já tinha percebido
as intenções da velha, calava-me porque entendo que nunca se
deve matar uma ilusão, que é a matéria-prima da esperança.
Pensas que esses alguidares de arroz, esses pratarrazes de ensopado, esses
assados, mais altos do que o Himalaia, e esses lagos de consomê e esses
outonos que enchem as fruteiras e tudo mais que vem das cozinhas de Mme. Gargamela
são por conta da minguada mensalidade que lhe damos? Engano: são
engodos, são como presentes de núpcias, é a corbeille
com batatas, é um trousseau de cebolada, é o enxoval do estômago,
o morghengabe adiantado. Ela seduz o ventre, suborna a pança. A mulher
quer prender-nos pela boca, é uma pescaria em regra. Vamos comendo
a isca que é excelente em qualidade e em tempero e não nos preocupamos
com o anzol. Compreendes: ela sabe dos meus amores com Elvira, já a
viu entrar aqui mais de uma vez e a Elvira é mais tapageuse do que
a Amélia; ela sabe que o Toledo só ama os pais e os ossos do
seu esqueleto… contava contigo e, justamente quando temperava com mais ciência
os escabeches e vestia com mais luxo a filha, eis que lhe surge o contratempo.
É mesmo para uma mãe de família perder a cabeça,
pensa bem. Que te custa fazer um sacrifício…?

— Casar com Vidinha! — exclamou o estudante aterrado.

— Eu matava-te! Nunca! Casar… nunca! Contemporizar… sempre. Namora…
que custa? Olha que estamos magnificamente instalados. Pensa no futuro! Não
encontramos no Rio de Janeiro, pelo preço, casa como esta, apesar do
Cranium… e dessa noiva de… Dâmocles. Pensa um pouco. A precipitação
é má conselheira. Olha Safo: precipitou-se de um rochedo e foi
o que sabes. Pensa.

Ouvindo os sábios conselhos de Ruy Vaz, Anselmo já se dispunha
a recomeçar o flirt com Vidinha quando, uma madrugada, por volta das
duas horas, a rua despertou ao rumor de tremenda matinada. Era um alarido
atroador: cantavam a Marselhesa, levantavam vivas. Janelas entreabriam-se
receosamente, vizinhos sonolentos espiavam intrigados.

Ruy Vaz, ouvindo da cama, deixou-se estar debaixo dos lençóis
julgando, a princípio, que era alguma manifestação que
se recolhia, mas subitamente saltou descalço, em camisa, assustado.
Arrombavam a porta e, da rua, gritavam por eles numa fúria, como se
houvesse incêndio no prédio. O estudante saltou também
da cama e correram ambos à janela. Estavam à porta dois carros
e um grupo de homens e de mulheres com velas em mangas de papel. Logo que
os viram aparecer os da rua prorromperam em vivas! E atiravam-se à
porta. Ruy Vaz murmurou:

— Estamos perdidos! Efetivamente… Dona Ana, descalça, com
uma vela, entre Vidinha e Leonor, em fraldas de camisa as três, rompeu
o alarido no patamar da escada:

— Súcia de vagabundos! Não abro! Vão bater no
diabo que os carregue, pelintras! Isto aqui é uma casa de família.
É porque não tenho um apito. Mas as pancadas na porta redobravam
e o vozeirão enchia a rua:

Allons enfants de la Patrie, Le jour de gloire est arrivé…

— Vai buscar um apito, João. Eu mostro a essa súcia.
Corja!

— Ah! Mamãe, choramingou Vidinha, é melhor abrir… Eles
estão furiosos, são capazes de fazer alguma coisa. Vai abrir,
Leonor.

— Eu não! Pois eu hei de ir assim em fraldas de camisa para
eles me agarrarem? Deus me livre! Começou um zé pereira formidável
à porta, que tremia ameaçando ceder, apesar da tranca. Dona
Ana irrompeu falando para o segundo andar:

— Rua! Não quero um só aqui! Rua! Isto não é
estalagem, seus vagabundos! Rua! Rua! Mas Ruy Vaz, o conciliador, desceu dois
degraus. As mulheres, ouvindo os passos do romancista, fugiram espavoridas
bradando — que estavam em camisa!

— Não faz mal, disse ele tranqüilamente, descendo: estamos
em família. Mas fecharam-se as três na sala de jantar e Dona
Ana bramiu através da porta:

— Rua! Amanhã mesmo!

— Ouça, Dona Ana, disse o romancista, muito calmo.

— Não quero saber de histórias. Rua! Estou farta! Não
dou mais comida! Arranjem-se!

— Isso é natural, Dona Ana. Ouça-me.

— Qual natural! Entreabriu a porta e, mostrando pela fresta o seu imenso
nariz, esgoelou: O senhor acha que uma pouca-vergonha como essa é natural?
Que hão de dizer os vizinhos? Que isto aqui é uma casa de deboche
e que eu e minha filha somos vagabundas como essas que estão aí.
Não! Rua! Amanhã mesmo… Ponham os cacos lá fora! Não
dou mais comida…! Quero alugar a minha casa a gente séria.

O rumor ia em crescendo formidável. Uma mulher pôs-se a berrar:

Minha bela Florentina Sol de amor que minh’alma ilumina…

— Mas ouça, Dona Ana… O romancista tentou abrir a porta, mas
a viúva rugiu:

— Eu estou em menores… Saia para lá homem!

— Ouça, Dona Ana. Realizou-se hoje o ensaio geral da minha peça
e os rapazes querem fazer-me uma manifestação. Está por
demais ruidosa, concordo, mas é natural… Todas as manifestações
são, mais ou menos, ruidosas. O caráter da manifestação,
quando é sincera, é o ruído. Não se zangue. De
repente a tranca caiu com estrondo e uma horda arremessou-se para a escada
com luminárias bradando:

“Viva Dona Ana! Viva a dinamite que é o princípio da igualdade
humana…! Vivaa!” E uma voz espremida esganiçou: — Vii…
mas não concluiu. Ouviu-se o espoucar de uma garrafa nos degraus da
escada.

— Desastrado! Como é que abres mão da felicidade? —
exclamou o Neiva vendo o Lins estupefato diante dos cacos da garrafa, com
os pés num córrego espumante.

— É a primeira vez que o vinho me desce aos pés, disse
o poeta lastimosamente. E o bando precipitou-se em tumulto, escada acima.

Era uma invasão. Rompia a marcha Anselmo que fora abrir a porta dando
os braços à Amélia e a uma rapariga tímida que
atordoada, com um sorriso imbecil nos lábios descorados. Seguiam-se
o Neiva, com um grande embrulho; o Lins com uma bojuda garrafa; Duarte com
um pão, grande como uma massa de sílex e dois outros, Crebillon,
conterrâneo de Anselmo e de Ruy Vaz, ruivo, de cavanhaque flamejante,
portador de duas garrafas, e o Martins, ex-colega de Anselmo em S. Paulo,
de óculos escuros, com uma valise.

Chegando ao patamar atroaram a casa com um hurra! que fez saltar de um canto,
espavorido, o gato venerando de Dona Ana, que se pôs a miar arranhando
à porta da sala de jantar.

Ruy Vaz, vendo a corte, saiu-lhe ao encontro para pedir compostura, mas ao
darem com ele, os noctâmbulos irromperam em saudações
frenéticas, mostrando os presentes e não houve meio de convencê-los
de que estavam em um quarteirão pacato, em casa de uma família
de hábitos patriarcais, às duas horas da manhã. O Neiva
berrava como um energúmeno, comandando a expedição, e
foram pelo segundo lance da escada com estridor. Ao alto estava o Toledo enrolado
no robe de chambre, com uma vela, alumiando. O Neiva bradou:

— Bravos ao Hamlet! E o Lins levantou um viva ao “Farol da civilização!”
Logo que chegaram à sala, depondo os embrulhos, enquanto o Duarte,
desfazendo um pacote de velas, distribuía uma iluminação
profusa, aproveitando igualmente os cotos que haviam trazido resguardados
em mangas de papel, o Lins fazia questão do robe de chambre do Toledo
e Amélia punha-se à vontade. Ruy Vaz quis conhecer o motivo
daquela manifestação noturna e o Neiva, tomando a palavra, explicou,
facundo:

— O Acaso, que é o título com que a Providência
passeia incógnita entre os mortais, fez com que nos reuníssemos
hoje na Maison Moderne. A Fortuna dispensara-nos vários dons da sua
cornucópia abundante e o bom-humor foi o arco de aliança que
nos uniu. Tomamos conta da mesa maior, que foi franqueada a quantos apareciam
famintos ou sedentos. A sala parecia, mal comparando, um quartel de eleitores
em dia de eleição. A cozinha e a adega passaram por nós
em procissão pantagruélica. Foi uma festa digna de Sardanapalo.
À falta de assuntos para brindes, como fazia parte do grupo o nosso
precioso Crebillon, glória do Norte, travamos uma luta como a de Watburgo,
tomando por tema o cavanhaque flamejante do valente abolicionista e correram
rios de Bourgogne, rolaram catadupas de Champanhe. À meia-noite surgiu
o Martins que aí está de guarda-pó no braço e
valise à mão, procurando a matalotagem que encomendara, porque
vai hoje para o Friul Paulista. Tomamo-lo e a ceia foi por diante. Já
empazinados, lembramo-nos de vocês e houve um clamor geral, um clamor
altruísta, digno de Comte: “Pobres homens! Enquanto aqui nos banqueteamos
copiosamente, eles dormem sem ceia, num quarteirão obscuro da rua Formosa.
Façamos uma carga e parta-mos para esse retiro… Eles terão
um alegre sonho, o Martins, a dois passos da estação, poupará
o dinheiro que reserva para o tílburi e nós outros veremos o
rosto cor de rosa da aurora quando ela vier correr o reposteiro da noite diante
do sol.” Como não há prazer completo sem mulheres, arrancamos
a Amélia às garras de um comendador lascivo lembrando-lhe os
juramentos de fidelidade e mostrando-lhe o caminho do dever honesto e raptamos
esta “sabina” pudica, que está em caminho do escritório
do Silva Araújo. Viemos cantando e rindo e aqui estamos nesta bastilha
feroz. Tenho dito.

Mal o Neiva terminou a sua oração, o Duarte pôs-se a
desfazer os embrulhos e apareceram lascas de fiambre, fatias de mortadela,
ostras e camarões recheados; pimentões rolaram sobre a mesa
e um fornido roast-beef reluziu gorduroso, cercado de farofa, como uma pirâmide
num areal revolto. Havia três copos, dois foram oferecidos às
damas e o terceiro foi posto à sorte cabendo ao Lins. Mas onde estava
ele? Roncos tremendos vinham da alcova da sala. O poeta, enrolado no robe
de chambre, como uma múmia nas suas tiras, dormia com a bojuda garrafa
aconchegada ao seio.

Puseram-se à mesa, mas com tão estrondosas gargalhadas que
Dona Ana recomeçou os bramidos na escada protestando contra o escândalo,
ameaçando com a polícia. Crebillon, torcendo o cavanhaque rutilante,
propôs uma descida ao primeiro andar, comprometendo-se a trazer a senhoria
e a filha. Era curado, as cobras não lhe faziam mal, podia, sem receio,
lidar com a jararaca. Ruy Vaz, afagando as mãos grosseiras da jovem
“sabina”, prometia-lhe amor eterno e um chapéu. Anselmo fazia
uma cena de ciúme com Amélia por causa do comendador, enquanto
o Duarte, sempre dado às musas, completava um soneto entre as vitualhas,
quando Neiva, Crebillon e Martins desceram solenemente para buscar Dona Ana
e Vidinha. Mas a viúva correu a trancar-se na sala de jantar arrastando
a mesa para junto da porta, a bradar: que iria para a janela pedir socorro
se continuassem. Vidinha soltava agudíssimos gritos invocando santos
e João explodia em obscenidades e ameaças. Os três desistiram
da empresa e, quando subiram, o Duarte recitava ao Toledo o soneto que concluíra
e mais ninguém havia na sala. Pasmaram e Crebillon, assomado, quis
dar uma busca na casa quando um grito horrível repercutiu no corredor
e a “sabina”, lívida e trêmula, com os olhos enormes
e as roupas em desordem, apareceu na sala, rolando, sem forças, sobre
o canapé. Acudiram com vinho mas a pobre rapariga tremia com os olhos
na porta que abria para o corredor, batendo os dentes, num pavor inenarrável.

— Esta mulher viu alguma coisa séria, disse Crebillon sisudamente
e o Neiva, com o copo nos lábios da “sabina”, enquanto ela
bebia, tocando com os dentes um trêmulo no cristal, afirmou:

— Coisa muito séria! Para um susto como este! E indagou: Mas
que foi? Que viu você lá dentro? Não me consta que esta
casa seja mal-assombrada.

— É! — exclamou ela.

Mas Ruy Vaz entrou indignado:

— Ora, seu Toledo, por mais que eu diga que não deves andar
com aquele estafermo de um lugar para outro, é escusado. Aí
tens… Não é a primeira peça que me prega o tal arcabouço.

— Que estafermo? Que arcabouço?…

— O esqueleto. Imaginem vocês: um esqueleto, de paletó
saco, sentando diante da mesa com ares de quem vai compor um poema macabro.
Isto é até profanação…

— Eu não o sentei nem tampouco o vesti.

— Está sentado e de casaco, afirmou a “sabina”. Está
sentado, muito teso, com as pernas esticadas e os braços na mesa. Parece
até que está escrevendo.

— É a mão do finado, disse o Neiva e a “sabina”
continuou:

— Eu fui em cima dele no escuro e, tateando, senti a dureza dos ossos,
depois uma coisa redonda, lisa, gelada que parecia uma melancia. Desconfiada,
pedi ao senhor Ruy Vaz que riscasse um fósforo e, quando ele riscou…
Nossa Senhora! Escondi o rosto nas mãos, aterrada. Por que não
mandam enterrar aquilo? É de seu pai?

— Não, senhora, aquilo é a base da ciência.

— Que ciência! Aquilo é osso de defunto. Ainda se fosse
de algum parente seu, mas não sendo… Deus me livre de ter uma coisa
daquelas no quarto, perto de minha cama. Até era capaz de vir uma noite
dormir comigo! Cruzes!

— Isso não, cabocla, disse o Neiva: o esqueleto deu baixa. Àquele
é que tu não apanhas. Contenta-te com a carne, filha, não
queiras ainda roer os ossos.

— Deus me livre de voltar aqui!…

Eram dez horas da manhã, o sol entrava em grandes jorros pela sala
quando o Duarte, espreguiçando-se, bocejou alto; vendo, porém,
a luz, ergueu-se de um salto do monte de jornais que lhe haviam servido de
leito, bradando pelo Martins:

— Levanta-te! São horas! Olha que perdes o trem! Procurou pela
sala, que estava numa desordem lamentável. No canapé dormia
o Neiva com a cabeça sobre dois grossos relatórios. Crebillon
roncava espichado na cadeira de balanço e o Toledo, com a cabeça
repousada nos braços, sobre a mesa, parecia de pedra. E o Martins?
Havia desaparecido. Teria ele passado a noite em claro para não perder
o trem, escapando-se sub-repticiamente à hora? O Duarte alarmou a casa
e todos despertaram amarrotados, com escancarados bocejos.

Sendo a descida ao Cranium mais arriscada para as damas do que foi, para
os argonautas, o desembarque em Colchos, considerados, com o devido respeito,
o pulso masculino da viúva e a fúria que nela tomou a feição
ameaçadora de loucura, constituiu-se um corpo de proteção
que, em caso de necessidade, reagisse energicamente defendendo as costelas
delicadas de Amélia e os delgados braços da “sabina”.
Por decência, porém, não querendo que se reproduzisse
a cena indecorosa do areópago, sem os nobres intuitos que levaram Hipérides
a desnudar Frinéia, a falange, que tinha no Lins o seu Tirtéu,
ficou à distância enquanto o fragilíssimo sexo desbesuntava
as carnes pecadoras.

Depois de Eva foi içado o Lins porque, com a perna mais rija do que
o braço da figura principal de A Barricada, não podia galgar
as bordas da cuba. E seguidamente, um a um, com trabalho, aspergiram-se todos
com as gotas avaras do reservatório. Refrescados, esperavam pacientemente
que Leonor, como de costume, subisse para estender a toalha, mas as horas
iam passando lentas sem que a negrinha aparecesse. O Lins foi examinar a chaminé
— fumegava, mas era tão tênue o fio de fumo que o poeta,
em grande desânimo, atirando-se a uma cadeira, balbuciou:

— Não é possível que tenhamos bife. Pela fumaça
calculo o almoço que lá estão cozinhando em dois pratos
minguados. E Ruy Vaz suspirou:

— Dona Ana cumpre a palavra: estamos sitiados pela fome. Que havemos
de fazer?

— A guarda rende-se, mas não morre à míngua! —
exclamou o Neiva. Vamos depor as armas. Quem há de ser o parlamentar?

— Eu vou! — disse Anselmo.

— Não! — bradaram todos, aclamando Ruy Vaz, por ser o
mais prudente e o mais conceituado. Ruy Vaz resignou-se e desceu. Em cima
os rapazes ficaram catando migalhas da ceia e, quando o romancista apareceu,
avançaram todos perguntando com ansiedade:

— Então?!

— Nada, meus amigos! Inflexível como a espada de Rolando.

— Mulher sem entranhas! — rugiu o Neiva. Nem parece mãe!
E agora? Que se há de fazer?

— Vamos a um hotel, propôs Crebillon. — Quotizemo-nos e
a caminho para a primeira baiúca que tenha um fogão. O Neiva
opôs-se, espichando-se no canapé: “Não saía,
estava sem forças. Mandassem vir o almoço, concorria com alguma
coisa. Sair, nunca! Preferia acabar como Ugolino roendo o crânio do
esqueleto.” Correu a espórtula e Crebillon teve de entrar com
a maior parte, sendo ainda, por um capricho da sorte, obrigado a ir ao primeiro
hotel da vizinhança encomendar o repasto.

Amélia e a “sabina” encarregaram-se de arranjar a mesa e,
à falta de toalha, estenderam um lençol de linho que o Toledo
desencafuou das profundezas da canastra.

Quando o almoço apareceu, numa lata, à cabeça de um
negro, romperam as exclamações e Crebillon eleito, por unanimidade,
presidente da mesa, ocupou a cabeceira. Foi durante o almoço que ele,
indignado com o procedimento da viúva, mulher de maus bofes, propôs
organizar uma “república” modelo, em prédio de aparência,
em bairro nobre, com todo o conforto e uma adega. Adiantaria o dinheiro para
a instalação e tomaria a seu cargo a administração.
Como o negro portador do almoço tinha uma fisionomia simpática
e sisuda, Ruy Vaz lembrou baixinho ao futuro presidente da república
ideal:

— Quem sabe se não temos neste africano grave um excelente cozinheiro…?
Crebillon lançou um olhar perscrutador ao negro, que, de pé,
os braços caídos ao longo do corpo, acompanhava o almoço
prestando-se gentilmente a ir rapar os pratos no mirante para que servissem
a outras iguarias:

— Sabes cozinhar, rapaz? O negro, timidamente, sussurrou: Que arranjava,
menos mal, um bife e ovos e fazia canjas. A sua especialidade, porém,
era o vatapá.

— Muito bem. Queres ser o nosso cozinheiro? O africano sorriu, torcendo
as franjas do pano que lhe servia de rodilha. Quanto queres ganhar? Crebillon
falava num tom cheio de tanta soberania que o negro não se achou com
coragem de impor preço: deu de ombros, confiado na generosidade do
seu futuro patrão.

— Bem, ficas desde já ao nosso serviço. Como te chamas?

— João de Deus.

— João de Deus! O nome é místico, disse Anselmo;
talvez nos ponha em boas relações com a Providência. E,
de pé, com solenidade:

— João de Deus, toma: bebe à tua fortuna! E passou-lhe
um copo de vinho que o negro engoliu avidamente. Terminado o almoço
os ossos foram todos atirados à área, o que provocou um rugido
de Dona Ana. À tarde saíram, ficando de guarda à casa
o fidelíssimo africano.

Enquanto Crebillon procurava a sonhada casa de aparência, em bairro
nobre, a vida foi um suplício no segundo andar. Nem a vassoura, ao
menos. Dona Ana mandava para sacudir a poeira do soalho e, como a bolsa não
tinia, todo um longo dia escoou sem que os três fizessem passar alguma
coisa pela boca, a não ser o fumo dos cigarros. Só o esqueleto,
livre da contingência da fome, não suspirava. O próprio
João de Deus, não farejando almoço pediu licença
para ir fazer uns carretos que havia tratado e saiu.

— Ah! Não torna mais! — suspirou Anselmo quando viu o
negro desaparecer, com a rodilha e uma fome de náufrago; mas enganou-se
porque, à noite, cedo, lá estava ele, farto e fiel.

Para que não desconfiasse da abstinência Ruy Vaz levou-o ao
mirante e, misteriosamente, fez uma preleção religiosa, explicando-lhe
as razões secretas daquele sistema:

“Observavam um rito antigo, de muita severidade, que impunha, como principal
sacrifício, o jejum, de quando em quando, para moderar os ímpetos
da carne.” E o romancista, com argumentos sutis, mostrou ao negro como
a carne (sobretudo a fresca) conduz ao pecado e ao crime quando não
é sofreada prudentemente. Falou dos ascetas, citou Gringoire e Santo
Antão, Murger e S. Paulo, o eremita Elias e o Dr. Tanner e o negro,
convencido, admirava aquelas almas temperadas de fé e de resignação
que resistiam, com tanto fervor, às exigências da matéria.
Anselmo tinha surdas revoltas vendo que, em todas as casas, as chaminés
fumegavam.

— Mas que tens tu com o fumo dos lares? — perguntou Ruy Vaz.

— Detesto-o!

— És o único. Os poetas celebram a espiral que sobe dos
telhados como uma prece demandando a altura.

— Sim, os poetas celebram quando têm o estômago saciado.
Põe-me aqui um poeta faminto a olhar todos esses tubos que falam de
ensopados, de omeletes, de frituras e de bifes com batatas, e hei de ver a
estrofe que lhe sai dos lábios. Há de sair uma invectiva…
Isso tantalisa! Saber a gente que em todas essas casas come-se, que em todas
elas há almoço e jantar…

— E dores e remorsos e angústias.

— Ora! Infamíssima criatura! — murmurou entre dentes,
pensando em Dona Ana. À noite, porém, já desanimados,
dispunham-se a fazer uma desgraça quando o Toledo apareceu com um embrulhinho
oloroso, oferecendo timidamente aos companheiros.

— Que é? — perguntou Ruy Vaz lançando um olhar
de desprezo ao presente.

— Fígado frito.

— Ora! Fígado frito… Sem pão, aposto?

— Com farinha.

— A farinha faz mal, está provado. Enfim… Queres, Anselmo?

— Eu não sei se o fígado me faz bem: tenho uma hepatite…

— Ora, dentada de cão cura-se com o pêlo do mesmo cão.

— Similia similibus curantur, ajuntou o Toledo.

— É exato. E empanturraram-se. Tarde, João de Deus apareceu
estafado e abarrotado: lavara uma casa na vizinhança e comera uma feijoada
completa. Teve horríveis pesadelos no corredor — sonhou com um
esqueleto, fardado e de mitra, equilibrando-se em uma bola que ia e vinha,
pesada e ansiante, sobre o seu estômago. Acordou arquejando e o Toledo
diagnosticou um ameaço de congestão, fazendo com que o negro
saísse ao mirante com um dedo na goela para aliviar-se. João
de Deus urrava e, de manhã, com uma enxaqueca feroz, teve de levar
uma carta de Anselmo a um fabricante de águas gasosas que respondeu
com muita lamúria, referindo-se às dificuldades da vida e à
concorrência das águas estrangeiras que inundavam o mercado,
comprometendo-lhe a fonte de renda. Estava a liquidar, concluía, desejando
venturas ao estudante. Todas as venturas e nem uma xícara de café
ao menos! Foi então que decidiu sair atrás do Acaso. Mas era
domingo, o Acaso não aparecia e, se o Toledo, sempre cuidadoso, não
houvesse recorrido a um primo, homem que tinha cozinha em casa, levando um
bom pedaço de assado e quatro almôndegas num papel pardo, esse
triste dia talvez houvesse sido último da vida de Anselmo, que já
se dispusera a estourar o crânio, se tivesse um revólver… a
estourar o crânio, talvez não, mas a vender o revólver
com certeza.

Capítulo VI

E assim passaram lentas duas semanas avaras. Todos os dias, como oração
matinal, injuriavam Crebillon que lhes havia mentido e pediam a cólera
dos céus para Dona Ana, a inflexível, depois reuniam-se em conselho
discutindo meios de conseguir almoço e, como era mais difícil
arranjá-lo para todos, tomava cada qual o seu destino, despedindo-se
à porta da rua, com tremuras na voz e os olhos úmidos. Toledo,
porque tinha o primo, dirigia-se logo para Santa Teresa subindo a montanha
penosamente, ao sol, certo, porém, de que ia regalar o estômago
com os acepipes do parente, que tinha orgulho em possuir um cozinheiro perito
e magníficos charutos. Ruy Vaz seguia a pé para as Laranjeiras
e, tonificado pelo bom ar da manhã, saudável e aperitivo, empurrava
o pesadíssimo portão do palacete do visconde de Montenegro.

Era um sombrio prédio entre velhíssimas árvores copadas,
cujos ramos altos faziam uma abóbada impenetrável ao sol. As
paredes, pintadas de um verde amarelado, pareciam cobertas de limo. Os canteiros
esquecidos estavam invadidos pelo mato, as aléias eram úmidas
e tinham placas lutulentas, de um aveludado fino.

Velho negros, encolhidos pelos cantos, cochilavam preguiçosamente
e, dia e noite, como em Scylla, era um uivar dolorido e longo, porque o visconde,
grande amador de montarias, quando descia da sua fazenda, em Pinheiros, para
passar no Rio os curtos invernos, trazia as suas trelas famosas que davam
trabalho a dois negros e a um veterinário, sempre bêbedo e armado
de lanceta, contra o qual os animais investiam, apavorados, quando o viam
aparecer cambaleando.

Dois cavalos de sangue, altos e esgalgados, passeavam pelas aléias
levados por um moço de estrebaria que os preparava, havia anos, para
disputarem o grande prêmio, posto que o fidalgo já estivesse
resolvido a metê-los nos varais do carro.

Nesse casarão, que tinha a gravidade claustral de um mosteiro antigo,
dormindo um sono pacato à sombra quieta do arvoredo, vivia o visconde
durante os meses chamados de inverno. Casto e sóbrio desde que, na
Alemanha, ganhara certo mal que o trazia constantemente pelos consultórios
e sempre a bradar contra as mulheres, observava rigorosa dieta, não
indo além da canja, do frango e de um regrado copo de Bourgogne. Era
um asceta elegante.

Para que o não vencesse a sedução demoníaca,
atordoava-se à mesa, que era lauta e franca. Não queria ouvir
rumor de saias; as próprias negras, que passavam como fugitivas sombras
pelos imensos corredores reboantes, colhiam cuidadosamente os vestidos para
que nem roçassem nas tábuas enceradas. O fidalgo detestava a
mulher, tinha horror ao feminino, à sua mesa só homens apareciam
e tantos que, dois expeditos copeiros, alípedes e solícitos,
eram constantemente reclamados de um extremo a outro e acudiam com as imensas
travessas e com as terrinas incomensuráveis. Não raro um conviva
desconhecido fartava-se e saía sem ter trocado uma palavra, sem mesmo
saber a qual daqueles homens, que chalravam e devoravam, devia a fineza de
tão delicado almoço e o visconde, achando aquilo patriarcal,
ficava satisfeito, ria, chupando, com ares saciados, a asa loura do frango.

Ah achava Ruy Vaz conforto e fartura. Entrava de fronte alta e os convivas
acatavam-no, porque o visconde o considerava, não o dispensando à
mesa, querendo-o sempre perto para as tremendas discussões.

O visconde era lido em Cantu e discutia, com ardor, a história, tendo
grande simpatia pelos tiranos. Luiz XI era o seu homem. À mesa a sua
opinião era como um oráculo. Luiz XI era o homem da mesa e como,
entre os comensais, havia um dotado de excelente voz de barítono, não
raro o nome do rei carola era retumbantemente apregoado em uma ária
escrita expressamente por um músico misterioso para o possante cantor.
Só Ruy Vaz condenava o companheiro fiel de mestre Jacques Coictier.
O visconde rugia, espumava; o casarão retumbava e os criados, tremendo,
juntavam-se à porta, curiosos daquela desusada cena.

Purpúreo, brandindo a carcaça do frango, o fidalgo citava opiniões
e Ruy Vaz invocava autores. Às vezes tornava-se necessária a
intervenção de amigos para que os dois homens chegassem a um
acordo, ficando, porém, o visconde na sua frase: que Luiz XI era o
seu homem e insistindo Ruy Vaz em dizer que ele não passava de um grandíssimo
patife.

E o visconde adorava o romancista, justamente porque nele encontrava um adversário.
Sucedia-lhe com as opiniões o que a Polícrates sucedia com a
fortuna — nunca era contrariado, como o tirano nunca teve desejo que
não fosse satisfeito. E o fidalgo revoltava-se, tinha cóleras
surdas, não podia sacudir a poeira que pousado sobre a sua erudição,
tinha de roer em silêncio o seu frango.

— Homero foi uma besta! — exclamava o visconde; e a mesa em coro:
“Uma veneranda besta!”

— Shakespeare foi um plagiário! — e o uníssono
dos quarenta talheres: “Foi sim, senhor!”

Era horrível. Ruy Vaz indignava-se:

— Besta! Homero…? Besta é quem o chama. E travava-se a resinga,
mas o visconde sentia-se aliviado, aquilo fazia-lhe bem. Ruy Vaz era um homem
bem diferente do barítono. Ah! O barítono…! Certa vez, depois
do jantar, sentindo-se o visconde indisposto, chamou-o e disse-lhe:

— Ó coisa, dá umas voltas aí pelo parque, correndo,
para ver se faço a minha digestão, que está hoje morosa.
Contava o fidalgo com um protesto enérgico, mas desiludiu-se vendo
o cantor atirar-se, pelo parque, às pernadas, como um gamo, bufando,
perseguido pelos cães. E o visconde, triste quando o viu roxo e gotejando
como um chuveiro, chamou-o:

— Obrigado, meu amigo. Sempre me fez bem essa corrida. Hás de
fazer agora o mesmo todos os dias depois das refeições. Os médicos
recomendaram-me exercícios. E o barítono, esfalfado, ofereceu-se
para fazer mais algumas voltas se S. Exa. quisesse.

Ruy Vaz, não — era um amigo leal e um adversário teimoso
como convinha.

Anselmo, esse, sem amigos influentes, lançado no grande desconhecido,
passeava com orgulho a sua fome. Enquanto o estômago se lhe contraía,
em rodas literárias, no fundo obscuro dos cafés, discutia os
dramas de Shakespeare, os poemas de Byron, a prosa sonora e rútila
de Flaubert, a fina argúcia de Balzac e o sentimentalismo de Musset.

Em torno dele andavam os caixeiros conduzindo pratos que exalavam suavemente
e ele, lançando os olhos para as mesas próximas, só via
gente comer e aquelas mandíbulas pareciam trincar-lhe o coração.
Eram tenros churrascos, entrecostos com batatas; era o rim, era a costeleta,
eram ovos e o generoso vinho que passava com um grugulejo por aquelas voracíssimas
goelas… Ah! Como ele continha os ímpetos sanguinários! Engolia
em seco e continuava:

… Quando foi representado o drama Romeu e Julieta, Shakespeare… E o estômago
a pensar em costeletas enquanto o espírito rememorava episódios
da vida acidentada do poeta de Stratford. Consolava-se com certo desvanecimento
lembrando-se de quantos, no começo da vida literária, haviam
sofrido as mesmas torturas e em climas ásperos, tiritando, tarantulamente,
à neve. Ele ao menos, tinha a benignidade do clima paradisíaco,
sem invernias que o encarangassem ou congelassem, como acontecera aos soldados
de Napoleão na Rússia, e tinha a esperança de vencer
grandes prélios literários, impondo-se à Pátria
e ao mundo com os períodos da sua pena.

Datam dessas duas famintas semanas os primeiros cantos do “deslumbrante”
poema em prosa: Guanabara, mito da criação do mundo americano
segundo a tresloucada imaginação de Anselmo.

Num domingo, à tarde, reunindo os companheiros no mirante, o autor
procedeu à leitura do poema magnífico, estrondoso de adjetivos.
Lins comparou-o à Teogonia de Hesíodo, Duarte colocou-o a par
da Divina Comédia. Ruy Vaz, entretanto, desafinou no coro encomiástico,
emitindo um juízo severo, que foi a condenação da obra-prima.

Quando Anselmo terminou a leitura, o romancista, acendendo um cigarro, ponderou:

— Acho o teu poema por demais cerebrino; não é propriamente
uma concepção, é um delírio intelectual ou antes:
não é o produto de uma emoção estética,
é a resultante mórbida de uma superexcitação.
Em palavras mais claras: o teu protagonista, esse Anhangá merencório,
subiu do abismo do teu estômago. Um bife com petits pois bastava para
fazer desse revoltado o mais pacífico dos anjos. O cérebro,
meu amigo, é escravo do estômago. Do nada só pode sair
o nada, disse o velho Lear a Cordélia. A crítica, mais tarde,
quando analisar o teu poema, se tiveres fome bastante para o concluir, há
de dizer, com azedume, que eras um pessimista da casta biliosa dos Schopenhauers,
sem perceber que a tua filosofia sinistra não veio de uma interpretação
sistemática, Senão de uma fome implacável e desesperada.
Lê Epicuro e aprende os segredos do bem viver. O teu poema tem belezas,
mas atordoa.

— Achas que não presta?

— Não, acho-o superabundante: tem a desconexão de um
delírio

— E se eu retocá-lo?

— Come primeiro. Antes de tomar o buril procura um talher; em vez do
pó de diamante, atira-te à farinha seca. Come. Com a digestão
tranqüila estou certo de que hás de ver as agudas arestas do teu
poema. Vai a um frege! A inanição alucina. Não tomes
por inspiração o que é apenas desvairo de inanido. Vai
a um frege.

— Sim, isso é bom de dizer. Como queres que eu vá a um
frege, se nem cigarros tenho?

— Eu tenho, toma; ofereceu o Toledo.

— Grande coisa o talento! — exclamou Anselmo atirando uma baforada
ao ar.

— Grande coisa! — repetiu Ruy Vaz.

Toledo arregalou os olhos e meneou com a cabeça.

O céu estava cor de chumbo. Nuvens grossas, pesadas, rolavam com lentidão,
amontoando-se; um vento morno soprava e, como se não bastasse aos pulmões,
tinha-se uma sensação abafada de asfixia como se aquela abóbada
viesse caindo pouco a pouco, sufocando, oprimindo.

Nuvens de poeira encobriam a cidade sob um véu denso. Pombos voavam
atordoados, fugindo à tormenta próxima. Os silvos das locomotivas
vibravam com maior intensidade. E surdos, longínquos, ameaçadores,
trovões roncavam.

A Tijuca estava nublada, nuvens fluíam em névoa tênue
como fumo esgarçado e a montanha ia aos poucos desaparecendo como se
o céu houvesse baixado sobre ela.

Coriscos zebravam a densidão do espaço e escurecia rapidamente
em crepúsculo sinistro. O ar tornava-se mais pesado, rarefazia-se,
posto que, de ponto em ponto, em revoluteio, uma tromba de poeira espiralasse.

Vinham, de muito longe, os sons de um sino. Pelos quintais mulheres recolhiam,
à pressa, a roupa que espadanava nas cordas. A cidade foi desaparecendo
encoberta por uma bruma pesada que vinha avançando rápida. Toledo,
com os olhos alongados, estendendo a mão, anunciou:

— Aí vem a chuva.

Ouvia-se como um ruflo e, quase no mesmo instante, grossas gotas bateram
nos telhados secos, depois a chuva caiu a jorros, com rumor e um cheiro forte
de terra ardente subiu.

Os rapazes precipitaram-se para a sala borrilados e um formidável
trovão estrondou reboando longamente. Rajadas violentas batiam nos
vidros, invadindo a sala. O vento rugia.

Toledo, mais cuidadoso, correu a descer as vidraças da sala da frente
e a tempo porque já andavam papéis voando.

Dona Ana, em baixo, bradava à Leonor, que limpava o ralo do quintal
para que as águas não empoçassem e a escuridão
fez-se mais densa, alumiada, de quando em quando, pelos lívidos relâmpagos.

As gárgulas jorravam com ímpeto, a rua começava a encher-se
quando Anselmo, encostando o rosto aos vidros empanados pela chuva, pôs-se
a pensar na terrível noite que lhe estava reservada. Como havia de
ficar sem uma xícara de café, ao menos, e adoentado, febril,
sentindo tamanha fraqueza que as pernas tremiam-lhe e um suor viscoso ressumbrava-lhe
das mãos?

Olhava, mas não via aquela torrente que desabava do céu, não
via os córregos que rolavam precipitados e imundos pelas sarjetas,
não via os homens que, de calças arregaçadas, com as
pernas atafulhadas na água lodosa, iam e vinham sob o aguaceiro violento.

Pensava nos tempos felizes em que vivera acariciado entre a mãe e
o pai, velhos ambos: ela, cantarolando baixinho modinhas sertanejas, à
luz do lampião, enquanto cerzia a roupa branca, lavada e cheirando
a ervas da campina; o velho, estirado no canapé, enrolando a barba,
a pensar nos afazeres do dia seguinte. A um canto, sobre uma cadeira, o gato
doméstico, um gordo maltês, dormindo tranqüilamente e ele,
com os livros abertos, a tomar notas, mas já perseguido pela imaginação,
já arrebatado por essa sedutora, que, numa página de história
antiga, como se animasse as letras dos livros, fazia saltarem exércitos
de bárbaros, mostrava cidades em chamas, dava uma vida de sonho a todas
as passagens descritas concisamente pelos historiadores.

— Ah! Tempos idos! Então não conhecia a fome nem julgava
que pudesse um dia conhecê-la. Nada lhe faltava: tinha a cama Sempre
feita, os seus livros sempre em ordem, o melhor prato à mesa e, se
lhe achavam o pulso um pouco agitado, se lhe sentiam a fronte mais quente,
quantos cuidados, e que sobressaltos: a mãe aflita, o pai indo ver
o médico, e tudo quanto queria, até aquela caixa de música
que lá estava calada, sobre a sua mesa, que lhe fora dada, para distraí-lo,
quando uma febre o prostrou na cama.

Ah! Tempos… E via-se ali sozinho, com fome, com febre e sem esperança
de poder sair, porque o mesmo Deus parecia querer martirizá-lo com
aquela tormentosa noite de aguaceiro e raios.

Quando se retirou da janela tinha os olhos úmidos. Borrifos da chuva,
talvez…

Capítulo VII

Uma manhã, inesperadamente, Crebillon surgiu com a chave da casa que
encontrara e, como os rapazes ainda rolavam na cama, pensando no carinho desigual
com que o bom Deus distingue os seus filhos na terra, dando a uns milheiros
de apólices e a outros esquecendo em miséria, o futuro presidente,
já com os ares despóticos de um Rosas, manifestou-se em palavras
duras contra a preguiça, mãe de todos os vícios.

Os rapazes ouviram calados. Desceram ao Cranium e, depois de rápida
fricção, galgaram os degraus, vestiram-se à pressa e
saíram levando, como lacaio, o resignado João de Deus, que os
não deixava senão à hora das refeições,
porque não se podia habituar com os apertados jejuns, embora soubesse
que eram garantia de bem-aventurança.

Crebillon, caminhando para o bonde, falava das suas constantes idas e vindas
pelo Catete à procura de um prédio que reunisse as condições
indispensáveis a uma república modelo, como a de Platão,
até que lhe indicaram essa esplêndida vivenda principesca de
onde havia saído, dias antes, um barão, homem de gosto e fortuna.

Toledo, curioso, pediu informações sobre a casa que iam habitar,
mas o intrépido abolicionista rosnou ufano, torcendo a pêra flamínia,
com sorriso vaidoso:

— Só te digo que é um palácio!

Era na rua de Santa Cristina. Quando Crebillon parou diante da casa de aspecto
nobre — seis janelas de frente em cada pavimento, abrindo, as do superior,
para uma sacada corrida de complicado gradil dourado, os rapazes, boquiabertos,
pasmados, tiveram a mesma significativa exclamação surdamente
murmurada e João de Deus sorriu, afagando o ventre sumido.

A porta, que parecia de bronze e pesada como o glorioso metal das imortalizações,
girou docemente e o vestíbulo apareceu deslumbrante. Era de pequenos
ladrilhos de mármore, em estrelas. As paredes, alvas, tinham enrediças
de ramos, corimbos florentes finamente pintados e dois medalhões nos
quais, sem demora, Ruy Vaz percebeu uma entrada da barra do Rio de Janeiro
e uma vista do Reno romântico, castelos e vinhas e um rebanho com o
seu pastor à sombra de ruínas negras. E soltos, voando na alvura
lisa e luzida, pássaros de cores variegadas.

Acima da padieira da porta envidraçada dois velhos de imensas barbas
derramadas, nus, as pernas estiradas, encostados a ânforas que jorravam
para um lado e outro golfões de água espumante. Eram dois rios
mitológicos. Ruy Vaz apenas achou defeito no ventre de um dos patriarcas
fluviais. Realmente era desmedido, e se não fossem as barbas copiosas
da figura, bastava aquela monstruosa pança para designar-lhe o sexo.
Mas Anselmo achou natural:

— Um rio deve ter barriga d’água.

Crebillon achou o “rio” indecoroso. O pintor, ao menos por decência,
devia ter espalhado juncais que ocultassem aquela deformidade. Passaram adiante
ganhando o corredor, onde a luz era escassa, e só viam portas abrindo
para gabinetes e alcovas, mas, alcançando a sala de jantar, ficaram
deslumbrados. Era imensa! Quatro janelas olhavam para o jardim, folhagens
balouçavam-se, inclinando-se indiscretamente como se quisessem penetrar
aquela basílica de regalo, aquele santuário do ventre, onde
podia, à vontade, ser servido um banquete a cem pessoas em mesa extensa,
florida e rútila de baixelas.

O teto era de madeira fosca, com entalhes preciosos. As paredes pintadas:
eram aves, enfiadas de peixes, lebres e pacas sangrando, pencas de frutas,
racimos e açafates de flores sobre as quais pairavam borboletas.

O soalho era de mosaico de madeira e, encravado na parede, com uma carranca
feroz de bochechas cheias como um Euro, havia um lavabo de mármore.

O ar que bafejava a sala, cheirava suavemente a jasmim.

— Aqui pode a gente comer! — exclamou Anselmo. As próprias
paredes encarregam-se de despertar o apetite. Que delícia e que aroma!

Crebillon avançou solene, mostrando com a bengala o grande braço
do gás, com oito açucenas azuis.

— Isto é que não vai bem aqui; e ajuntou: A casa é
boa, ainda assim precisa de certos retoques artísticos. Este gás,
por exemplo, vai fora. Esta sala está a pedir um lustre para vinte
ou trinta velas; vinte chegam, aqui ao centro. Agora vejam lá vocês
se concordam: A mobília de canela ou de imbuia…

— Por que não há de ser de carvalho? — emendou
Ruy Vaz.

— Aí vem você com o carvalho! Para que havemos de recorrer
ao estrangeiro quando temos as mais belas madeiras do mundo? Que diabo! Vocês
não são patriotas… É por estas e outras que nunca seremos
autônomos, havemos de ser sempre um protetorado europeu. Carvalho…
Não senhor: canela ou imbuia, estilo grego. Ou monta-se a casa com
gosto ou então…

— Pois seja, concordou Ruy Vaz.

— Imbuia ou canela, continuou Crebillon. Aqui, o bufê… Ali,
o guarda-prata… Acolá, os trinchantes. Duas dúzias de cadeiras…
Que acham?

— Sim, duas dúzias, concordou Anselmo.

— Nos cantos podem ficar uns cache— pots com palmeiras, dracenas.
Eu detesto o encerado inglês, mas se vocês fazem questão…?

— Não, dispensa-se o encerado. Com um soalho como este é
até profanação.

— Também acho. Então está pronta a sala de jantar.
Ah! Sim, precisamos escolher uns panos claros para as janelas e portas. Isso
vê-se depois. Vamos adiante.

Passaram à copa ladrilhada. Era vasta, com um armário e duas
pias de mármore.

A cozinha lembrava a de um castelo feudal. No forno do fogão, novo
e brunido, com os metais muito reluzentes, caberia um novilho inteiro. Era
uma peça solene, digna de um comentário, com uma complicada
rede de tubos amarelos e torneiras, bocas de todos os tamanhos, caldeiras,
uma infinidade de minúcias que só poderiam ser entendidas por
um mestre perito que, a ciência rara de queimar uma omelette au rhum,
reunisse a sabedoria de mecânico.

João de Deus, depois de examinar detidamente o monstro, passeando
em torno dele, abrindo e fechando torneiras, escancarando pesadíssimas
portas que davam aos olhos a vertigem do abismo, confessou que não
entendia “aquela geringonça”. Mas Crebillon, sempre austero,
avançou para mostrar ao negro como se operava. Olhou, deu volta e,
de repente, lembrando-se de alguma coisa, saiu em passos ligeiros. Tornou,
porém, logo depois e, abrindo, com muita convicção, uma
torneira recuou encharcado e, certamente, a casa teria sido inundada se João
de Deus, afrontando o esguicho, com risco de apanhar uma bronquite, não
houvesse estancado o jorro.

De novo Crebillon investiu e foi distorcendo todos os registros que encontrou
e, logo, um cheiro ativo de gás espalhou-se pela casa. Crebillon riscou
um fósforo, atirou-o ao tubo, deu um pelo prudente e houve a explosão.
O monstro ficou iluminado como um edifício público em dia de
festa nacional. Os rapazes aplaudiram com entusiasmo e João de Deus,
aterrado, recuou do fogão como de coisa satânica.

— Vêem vocês? Temos aqui o gás, que é a essência
do coke. Não precisamos de carvão nem de lenha. Podemos cozinhar
um boi com a maior brevidade e limpamente.

Deixaram o monstro, menos João de Deus que ficou encarregado de fechar
os registros, e passaram a examinar a cozinha, também ladrilhada até
meia parede. Duas grandes pias defrontavam-se.

— Aqui tem os seus domínios, mestre João de Deus, disse
Crebillon. O negro ouvia comovido, de olhos baixos. Você tem boné
e avental?

— Não, senhor.

— Pois é preciso mandar fazer.

— Certamente, concordaram unânimes os do segundo andar.

— Isto não é cozinha para mangas de camisa. E é
preciso trazê-la sempre muito asseada, entendeu?

— Sim, senhor.

— Bem. Vamos agora ver o banheiro, meus amigos. Vocês vão
ver! Eu acho perigoso…

— Perigoso!? — exclamou Anselmo.

— Sim, isto é: não para mim, porque sei nadar.

— Também eu, disse Anselmo.

— E eu, ajuntou Toledo.

— Mas tu não sabes, Ruy Vaz?

— Eu? Não sei.

— Pois meu caro, aceita o meu conselho: não entres no banheiro
sem salva-vidas — é como a bacia do Prata, meu amigo, vais ver.
Vamos.

Seguiram e João de Deus, já exausto, continuava a torcer os
registros. do fogão monstruoso.

Impressionados pelas palavras de Crebillon, os rapazes atravessaram um estreito
paço de mármore alguergado e pararam diante de uma porta branca.

— É aqui! — disse Crebillon, com profundo respeito e,
lentamente, foi impelindo a porta como se quisesse dar, aos poucos, a impressão
magnífica da maravilha. Os rapazes invadiram o recinto e houve um significativo
silêncio.

Também de mármore enxadrezado era todo o piso e o vasto aquário,
largo e profundo, com uma calha à altura de dois metros, duas torneiras
de cobre e a rosácea imensa, no teto de ripas embrechadas. Duas maçanetas
de louça matizada giravam na parede marmórea para a distribuição
das águas altas. Três janelas, com persianas, coavam uma luz
serena e o frescor das lajes e das águas ocultas espalhavam-se no ambiente,
dando uma sensação regalada de inverno.

Tudo era branco e o asseio casava-se com o conforto. A beleza era geral,
não havia que criticar. Os cabides, de nítido metal, reluziam
e, a um canto, fechada, uma caixa lustrosa de quando em quando interrompia
o silêncio com um burburinho.

Crebillon quis mostrar a perfeição daquela utilíssima
dependência, mas para que não lhe sucedesse sair, como da cozinha,
com as roupas encharcadas, bradou pelo africano que acudiu à pressa
parando à porta, fascinado pelo fulgor dos muros alvos.

— João de Deus, distorce-me uma daquelas bolas… Mas toma cuidado
com a água que vem por ai abaixo.

O negro, alongando o braço com grande medo, pôs-se a torcer
a maçaneta. Houve um ronco estupendo, um ronco de tromba em mares largos
e logo, da altíssima calha, um gorgolão de água despenhou-se
impetuosamente, espalhando uma névoa sutil. Crebillon, apesar da voz
formidável que o distinguia, valendo-lhe a antonomásia de Stentor,
teve de bradar para que fosse ouvido, tão fragoroso era o rolar das
águas soltas pela beiçorra da calha, caindo estrondosamente
nas lajes.

— Vêem vocês? Parece Paulo Afonso. E os três concordaram
assombrados. Agora a outra, João.

O negro, aterrado, deu volta à outra maçaneta e foi um desabar
de chuva como no dilúvio.

A mania das águas alucinava o abolicionista que entrou a urrar, sapateando,
brandindo a bengala:

— Abre agora as torneiras, João!… As torneiras!

Mas o negro não ouvia, via apenas a boca imensa, o ar furibundo e
os gestos desabalados de Crebillon. Aproximou-se curvado e o abolicionista
bramiu:

— Abre as torneiras, com todos os diabos!

E quando, por todos os vasadouros, a água volumosa, correu inundando
o aquário, Crebillon pôs-se a afagar a pêra e parecia o
próprio Deus olhando satisfeito e vingado a queda dos golfões
tremendos que alhanaram o mundo, com remissão apenas da família
do patriarca e das espécies recolhidas na arca.

O aquário transbordava quando Crebillon avançou muito grave
e deu um safanão à corrente do escoadouro enquanto João,
de olhos apertados, ia fechando as torneiras e torcendo as maçanetas.
Ficaram apenas gotas lentejando e as águas, como depois de aplacada
a cólera do Altíssimo no cataclismo universal, começaram
a baixar afunilando-se à altura da válvula. Houve um sorvo por
fim e o banheiro ficou, de novo, vazio e resplandecente, extasiando o grupo.

— Então!? — indagou o presidente encarando os rapazes.

— É uma delicia! Sim, senhor!

— Não há melhor no Rio, afirmo! E todos menearam a cabeça,
concordando. Vamos agora ao jardim.

Desceram por uma escada de granito e, chegando ao ar livre, à claridade
límpida do sol, que luzia quente, lançaram os olhos pelos canteiros
relvados, de graciosas formas geométricas sobre o saibro branco e rútilo
das aléias.

Eram inúmeras as roseiras encostadas a espeques, filas de caladios
diversos, begônias, cravos, magnólias, gardênias, dálias,
uma araucária esguia, várias palmeiras ornamentais e quatro
figuras de louça, sobre pilastras, figurando as estações.
A Primavera era uma graciosa e linda rapariga que sorria toucada de flores,
pisando flores; o Outono era um ceifeiro moço com uma paveia de trigo
aos pés, a foice ao ombro, os olhos no céu, satisfeito e feliz;
o Estio era outra donzela, formosa e jocunda, que festejava uma borboleta
pousada no seu ombro nu e o Inverno, metido entre árvores, era um velho
tristonho, barbado e ferrenho, curvado sobre um cajado, com o gabão
muito enrolado em volta do corpo magro e transido.

Sobre as figuras simbólicas as opiniões divergiram: Crebillon
gabou-as com entusiasmo, Ruy Vaz achou-as “pulhas”. Ao fundo, formando
um bosque aceitoso, velhas árvores frondosas faziam sombra a uma barra
fixa e a um trapézio.

— Temos aqui a ginástica, a educação física.
Ao sair do banho uma flexão, uma sereia, depois o almoço, o
trabalho… uma delícia, hem? Isto é sempre melhor do que o
pardieiro da rua Formosa, confessem.

— Ora! — exclamaram os três. Contra o muro era o galinheiro,
parte coberto, parte ao tempo, cercado de arame, com os poleiros caiados e
um tanque para os palmípedes; ao lado a casa do cão coberta
de zinco e, bem ao centro do jardim, o aviário de arame em forma graciosa
de chalé com o seu repucho que era, ao mesmo tempo, bebedouro. Crebillon,
colhendo uma rosa e fincando-a na botoeira, disse, passeando um olhar pelo
jardim:

— Isto não dispensa um jardineiro, o João de Deus não
pode cuidar ao mesmo tempo do fogão e das flores…

— Naturalmente.

— Não pode, repetiu pensativo. Vou ver um homem que entenda
de plantas, até porque pretendo ter as minhas orquídeas e os
meus tinhorões de escolha. Não podemos dispensar o jardineiro
Vou ver também se arranjo um cão das ilhas, são os melhores
para os quintais: não há ladrão que lhes escape. Tive
um que, certa noite, tendo um patife penetrado em minha casa, quando foi para
saltar o muro, o animal atirou-se-lhe às pernas.

— E matou-o!? — perguntou Anselmo.

— Não, mas pregou-lhe um susto que o desgraçado esteve
muito tempo entre a vida e a morte.

— Quem te disse?

— Ninguém, eu imagino. Era um cão! Vou ver se encontro
um igual para aqui. Para o galinheiro uma meia dúzia de galinhas de
raça, uns gansos de Tolosa ou de Emdben, uns patos mandarins, uns perus.
Para o aviário mando vir aves do Norte: mutuns, guarás, garças,
jacamins; não, jacamins para o galinheiro. À tarde vem a gente
aqui para fora no seu paletó branco saborear o café, ouvindo
os gaturamos e as patativas, os gansos, os galos e gozando o perfume das flores.
Que tal?

— É magnífico!

— E podem vocês trabalhar à vontade. Aqui nada falta:
têm, de um lado Santa Teresa e do outro lado o esplêndido panorama
da cidade. Não é aquela rua acanhada e sórdida, com aquele
silvar constante de locomotivas e com aquela mulher sempre a resingar e aqueles
quintais imundos e aquela gente tresandando a suor e a cachaça, nada
disso. Aqui a vizinhança é nobre, gente da élite. Vocês
podem julgar pelas casas — e ajuntou com mistério: Já
que toquei neste ponto, devo dizer que a moralidade aqui deve ser escrupulosamente
observada: nada de escândalos, isto é um bairro de respeito.

— Vê-se logo.

— Bem, vamos agora lá acima.

Tornaram pelo mesmo caminho e, atravessando a sala de jantar e o corredor,
subiram por uma larga escada iluminada por uma clarabóia, alcançando
o pavimento superior. Não eram quartos, eram salões e todos
com janelas. O da frente, que tinha o teto de estuque e dourado, abria para
a sacada as suas quatro janelas. O soalho encerado, reluzia. Eram oito quartos,
oito imensidades admiráveis e dois salões. Ruy Vaz chegou a
aventurar que não seria mau estabelecer-se ali dentro uma linha de
bondes para facilidade da comunicação entre os aposentos, um
elevador para a ascensão e um telefone para uso interno. Era o infinito.
Crebillon, modesto, escolheu o menor quarto, ao fundo, com duas janelas para
o jardim e larga vista da montanha e de grande parte da cidade e do mar, muito
azul coalhado de barcos, sem falar nos fundos das casas vizinhas: jardins,
terraços e janelas que deixavam entrever interiores faustosos —
câmaras, gabinetes, salas de jantar. Foi nesse aposento que se decidiu
fazer a mudança no dia seguinte, mas logo surgiu uma dificuldade: não
havia dinheiro para as carroças.

— Eu mando as andorinhas, disse o generoso Crebillon. Quantas?

— Uma e meia.

— Uma e meia? Duas, homem; duas andorinhas. Que mais?

— Mais nada.

— E vocês já escolheram os aposentos?

— Já. Anselmo e Ruy Vaz haviam tomado, para trabalhar, a sala
da frente do pavimento superior e dois quartos incomensuráveis. Toledo
ficou com a sala central e um quarto contíguo.

— Mas, com o que temos, esta casa vai ficar como um deserto com pequeninos
oásis, disse Ruy Vaz.

— Ó senhores! — exclamou Crebillon, não se incomodem
com a casa. Pois eu não disse que vou escolher a mobília? Então!
Até não sei se seria melhor que vocês vendessem os cacarecos.
Em todo caso eu trato primeiro lá de baixo: sala de visitas, sala de
jantar, vestíbulo, os dois quartos, depois subo. Vão ver como
isto fica um brinco. Que é do João de Deus? Ó João
de Deus!

O discreto africano estava no corredor e tanto que ouviu o berro do abolicionista
correu com a toalha inseparável, que era o travesseiro em que repousava
a cabeça, a rodilha com que saía ao ganho e o lenço com
que enxugava o suor abundante do seu carão de azeviche.

— João, veja hoje mesmo o boné e o avental, porque amanhã
começa o seu trabalho. Vou mandar vir a bateria da cozinha e a louça.
E olhe lá! Nada de assobios aqui, ouviu?

— Sim, senhor, murmurou o negro, de olhos baixos.

— Estamos então combinados; amanhã, não é
verdade?

— Sim, amanhã!

— Mandas as andorinhas? — perguntou Ruy Vaz.

— Está visto: duas?

— Duas.

— E quanto ao senhor João de Deus fica conosco por… Pensou,
alisando a pêra, com os olhos nos bicos dos sapatos, erguendo altivamente
a cabeça fulva, ajustou: sessenta mil réis, que dizes?

O negro encolheu os ombros e Ruy Vaz, afagando-o, disse:

— É um achado, meu amigo. Nos tempos que correm, sessenta mil
réis, casa e comida… uh!

— E podes escolher um quarto lá em baixo, João. Tens
um magnífico, perto da sala de jantar. Queres?

O negro sorriu enlevado.

— Bem, estamos tratados. Vamos.

Desceram. Crebillon trancou as portas e ganharam a rua. Havia gente pelas
janelas das casas vizinhas e Crebillon, ufano, repetiu, acendendo um charuto:

— Vai ficar um brinco, garanto.

Chegando ao começo da rua de Santo Amaro, despediu-se; “tinha
de ir à casa de um velho parente, na Gávea”. Os futuros
palacianos, sempre seguidos de João de Deus, desceram para a cidade,
a pé, sem almoço, sob uma soalheira cáustica.

Capítulo VIII

No dia seguinte, às quatro da manhã, todos de pé e alegres
começaram a encaixotar os livros e, às nove, pararam à
porta as duas andorinhas. Dona Ana, avisada pelo filho, quis embargar a mudança,
mas os carregadores não atendiam e, placidamente, iam descendo os trastes
que ficaram folgados nas duas imensas carroças.

João de Deus já se preparava para tomar um lugar à boléia,
quando o Toledo apareceu com o esqueleto embrulhado num lençol, confiando-o
ao negro para que o levasse cuidadosamente. O africano, que não via
com bons olhos aquele despojo de finado, fez uma careta significativa, entendendo
que era melhor escondê-lo no bojo de um dos transportes, mesmo para
que a polícia, alarmada, não fosse acompanhando a mudança
na suspeita de um crime. O anatomista, porém, convenceu-o com palavras
brandas:

— Não, João, tem paciência!… Não quero
perder o esqueleto. Na carroça, com os solavancos, pode haver fratura
de algum osso e lá se vai o meu precioso manequim. Tem paciência,
leva-o contigo. Isto é a minha enxada, João. Isto é que
me há de dar o pão para a boca. Toma cuidado, meu velho.

O negro submeteu-se e, enrolado o esqueleto, lá foi ele para a boléia
muito rijo e, com a ossada sobre as pernas, parecia, mal comparando, o Anúbis
egípcio com uma múmia ao colo.

Na sala deserta, por onde voavam esparsas folhas de papel garatujadas, reuniu-se
o conselho para resolver se deviam despedir-se da viúva ou sair sobranceiramente
sem palavra. Anselmo opinou pela retirada sobranceira. Ruy Vaz, porém,
grato aos antigos acepipes, grato aos passados tempos de fartura e paz, quis
levar à viúva os seus agradecimentos e, como o Toledo concordasse,
houve maioria e os três desceram e foram bater à porta da sala
de jantar, mas Dona Ana rugiu furente: “Que fossem para o diabo!”,
e ganiu uma praga cruel.

Seguiram, então, apartando-se daquela casa sem adeus. Da rua lançaram
um saudoso olhar à sacada e viram Vidinha, com o rosto formoso encostado
à vidraça, seguindo-os com um olhar de melancolia. De repente,
porém, João irrompeu, de cigarro à boca, franziu a cara
numa careta e sacudiu um gesto vil.

— Peralta! — disse baixinho o Toledo mas Anselmo, indignado,
com os olhos relampejantes, pálido de fúria, estacou ameaçador:

— Eu vou quebrar a cara daquele patife!…

— Estás louco, homem? Vamo-nos embora! E o João dançava
na sacada com acenos indecorosos e caretas horripilantes.

Antes de tomarem rumo foram ao café e Anselmo, para fazer lastro,
engoliu três empadas e um copo de leite e, reconfortados, como na véspera
havia caído do céu uma nota de vinte mil réis, foram
os três repousadamente, a bonde, descendo na rua Santo Amaro. Quando
chegaram, já as andorinhas despejavam os trastes com grande pasmo dos
vizinhos que viam tanta velharia e tão desencontrados móveis
entrando para aquele prédio nobre e de tão alto preço,
de onde havia saído a família de um fidalgo, seguida de uma
dezena de andorinhas que, ainda assim, foram poucas para levar os finos erables,
os magníficos jacarandás, o precioso carvalho florejado, as
raras perobas tigre, o pau rosa, o ébano, um retumbante Erard e cristais,
bronzes, mármores, estofos, tapeçarias e a baixela e a faiança
e os quadros, porque, depois de haverem desfilado lenta e longamente os transportes,
que rangiam atestados, homens ainda desceram carregados e até a primeira
hora da noite, tendo a mudança começado com os brilhos suaves
da manhã, como de uma cidade que a peste ou a guerra houvesse ameaçado,
foi um constante transitar de gente: negros com chocalhos e brancos e mulatos,
homens de várias terras, falando várias línguas, arquejando,
curvados sob pesos inauditos, ladeira abaixo, em passo rítmico e seguro.

Quando o tapete, que representava a voluptuosa cena do serralho, foi estendido
no vastíssimo salão do pavimento superior, usa dos homens das
andorinhas apresentou a Ruy Vaz o recibo. O romancista guardou-o, o homem,
porém, não se moveu coçando a cabeça empastada,
com os olhos muito abertos, um cigarro mole ao canto da boca.

— Que é? Está entregue, pode ir.

— É que… é que ainda não está pago o
serviço, murmurou com um sorriso parvo.

— Como! Não está pago?

— Não, senhor.

— Pois volte com o recibo, porque a pessoa que tratou lá deve
ir pagar.

— Não dá alguma coisa para matar o bicho? — murmurou
o homem em tom pedinte.

— Não, respondeu Ruy Vaz sisudamente — sou da sociedade
protetora dos animais.

O carroceiro lançou um olhar rancoroso ao romancista, tomou o papelucho,
meteu-o no bolso profundo e, dando volta nos calcanhares, rosnou: “Às
ordens…” e desceu. Ruy Vaz mandou João de Deus trancar as portas
e começou a arranjar a casa.

Toda a mobília não dava para encher um dos quartos e a casa
imensa ficava desoladamente vazia, apesar de haverem os rapazes espalhado,
com sabedoria, as cadeiras e as estantes.

— Não se sacia este monstro! — rosnou Ruy Vaz desesperado.
Estão aqui os móveis de três homens e nem parece. E um
abismo!

O tapete no salão era como uma pequenina ilha na imensidade do oceano.
João de Deus tomou conta de um dos quartos do primeiro pavimento, pousou
a rodilha no chão liso e, como estava esfalfado, estirou-se e dormiu.
Os rapazes desceram e como queriam provar todas as delicias da casa, foi Anselmo
para a barra fixa, Toledo pendurou-se no trapézio, enquanto Ruy Vaz
estudava o estilo das pinturas da sala de jantar.

Já a tarde roxa caía quando, sem esperança de que aparecessem
os preciosos móveis de Crebillon e a louça e o trem da cozinha,
resolveram mandar à venda buscar ovos e pão para que João
de Deus arranjasse uma omelete rápida, mas o negro lembrou ponderosamente
que não havia frigideiras nem pratos, propondo umas sardinhas de Nantes.

As razões do negro foram julgadas procedentes: optaram pelas sardinhas
e, quando as latas apareceram abertas, cada lata acompanhada de um pão
louro e trepidante, houve alegria no grupo. E porque não chegara a
mesa de imbuia, a grande mesa dos futuros banquetes, foi sobre o fogão
monstruoso e de pé, como os israelitas comiam o cordeiro da Páscoa,
molhando o pão no azeite, que os quatro devoraram silenciosamente,
enquanto uma cigarra cantava na araucária e as magnólias abriam-se
com suave aroma.

Quatro longos, ansiosos dias passaram sem notícia de Crebillon. Aflitos,
os rapazes dispersavam-se todas as manhãs indo aos pontos que o abolicionista
costumava freqüentar mas ninguém informava; o próprio charuteiro
nada adiantou sobre o mistério. E a casa, imensa e nua, à noite
iluminada profusamente, parecia um palácio maldito, despovoado e silente
onde, a horas altas, com tinidos de ferros e uivos, espectros vinham purgar
crimes sobre tesouros escondidos nas muralhas grossas ou sob o soalho forte.

Mas João de Deus encarregou-se de afugentar os duendes, não
com hissopes e rezas, mas com um gato, magro e gafento, que entrou num saco,
miando, e foi despejado no salão, desaparecendo em seguida. Mas como
não cessava de miar ora debaixo fogão, ora no banheiro, ora
no corredor, calaram-se os rumores e o assombramento desapareceu.

Uma tarde, já cintilavam estrelas, os rapazes digeriam no jardim uma
gorda feijoada que haviam saboreado no hotel do G. Lobo, à rua do General
Câmara, casa de modesta aparência e módica, onde um homem
podia empanturrar-se com quinhentos e oitenta, sobremesa inclusive, quando
João de Deus, sobressaltado, anunciou a mudança de Crebillon.

Posto que achassem a hora imprópria para a entrada de tão preciosos
móveis, abalaram à pressa chegando ao corredor justamente quando
o abolicionista, com o seu vozeirão atroante, recomendava a um homenzinho
“que tivesse cuidado com os trastes”, encarregando João de
Deus de ir ao pavimento superior mostrar o quarto ascético que se reservara.
Dando com os rapazes respirou esbaforido, limpando o suor da fronte.

— Ó homem, onde te meteste? — perguntou Ruy Vaz.

— Ah! Meu amigo: sou um ressuscitado. Vamos lá para o jardim
enquanto arranjam o seu quarto.

— E os outros móveis? — perguntou Anselmo.

— Vêm depois. Se estou a dizer que sou um ressuscitado.

— Mas que houve? — indagou com interesse o Toledo.

— Que houve, hem?! Quase me vou desta para a melhor.

— Como?

— Vamos lá para o jardim; preciso de ar.

Caminharam. Na sala de jantar Crebillon reconheceu que aquilo não
podia continuar como estava e perguntou como se haviam arranjado.

Imagina! Sem nada em casa.

— Sim, mas vamos pôr isto em ordem amanhã mesmo. Amanhã…?!
elevou os olhos, alisou a pêra e disse com desgosto:

— Amanhã não é possível, tenho um negócio
de madeiras. Depois de amanhã.

— É domingo.

Na segunda-feira então.

— Mas o teu caso… lembrou Ruy Vaz.

— O meu caso… Ah! Meu amigo, se eu não fumasse charuto era
hoje cadáver. Estava frito! Devo a vida a um charuto.

— A um charuto…?

— A um charuto, é verdade! Os rapazes encararam-no esgazeados.
Vamos para o jardim. Isto aqui é uma estufa. A um charuto… E há
imbecis que combatem o fumo. Se eu não fumasse, ah!

Desceram ao jardim e, à falta de bancos, sentaram-se na relva tépida.
Só Crebillon, de pé, ia e vinha, narrando:

— Ouçam vocês, e pasmem. Tenho um amigo na Bocaina, Simas
Fontainha, um gigante, que negociou em negros e possui hoje uma fortuna que
os herdeiros calculam em oitocentos contos, parte em dinheiro, parte em terras
magníficas de lavoura e gado. Esse homem, que orça pelos sessenta
anos, com todos os dentes e sem um fio de cabelo branco, é um dos mais
intrépidos caçadores que tenho conhecido, e eu caço desde
os quinze anos, tenho caçado em todas as florestas do Brasil, desde
o Amazonas até o Prata, como no hino. Sempre que o Fontainha pretende
fazer uma surtida, manda-me aviso, porque, diz ele, não há quem
atire como eu. Atiro regularmente, isso atiro! — afirmou com orgulho,
alisando a pêra, e, de olhos altos, vendo passar um morcego, fez um
parêntesis. Num cavalo à rédea solta mato andorinhas no
vôo, andorinhas ou morcegos, conforme a hora. Isso é nada para
mim. Mas voltando ao caso. Justamente no dia em que aqui estive com vocês,
chegando à casa, encontrei uma carta de Fontainha. Cá está
ela! tirou do bolso profundo a carta atribuída ao Nemrod da Bocaina
e pôs-se a fazer a leitura com um vozeirão trovejante:

“Crebillon. Anda por aqui uma onça terrível, que me tem
levado a flor dos rebanhos: é um carneiro por noite, às vezes
novilhos. Pus a minha gente em campo e já lhe descobriram o paradeiro.
Vem dai, quanto antes, para ajudar-me a dar cabo da fera, senão fico
sem uma vaca de leite. Não é pela vaca, mas pelo leite. Bem
sabes que não posso dispensar o meu copázio pela manhã,
mungido pelas minhas próprias mãos, no curral. Se a onça
levasse as vacas e deixasse os ubres eu não iria incomodar-te pedindo
o teu poderoso auxílio e a tua pontaria, mas vão-se também
as tetas e eu não estou em idade de ser desmamado. Vem. Conto contigo.”

Dobrando a carta, atafulhou com ela no bolso interior da calça e continuou:
Devo grandes obséquios a Simas Fontainha. Tratava-se, não de
um simples divertimento, mas da salvação da fortuna do meu amigo.
Não hesitei. Fiz uma pequena bagagem, encerrei no estojo a minha espingarda
inglesa e, às cinco da manhã, seguia eu para a estrada de ferro
que me deixou na Cachoeira de onde, a cavalo, parti para as terras devastadas
do meu amigo. Quando passei a porteira houve um grande clamor no terreiro
da fazenda: “Está morta a cotó! Está morta a cotó!”
E o numeroso bando dos caçadores veio ao meu encontro, saudando-me
com delírio. Simas tinha lágrimas nos olhos e, quando me apertou
nos braços, senti que tremia aquele homem extraordinário que,
com um murro da mão canhota, aos vinte e cinco anos, derrubou dois
touros.

— Dois! — exclamou Anselmo.

— Sim, dois: um, o que levou o murro, outro porque estava atrás
do primeiro e foi por ele esbarrado tão violentamente que caiu como
se o houvesse fulminado um raio. Não prometi grande coisa, mas disse:
“Fontainha, meu amigo, a onça que peça a Deus que eu não
lhe ponha os olhos em cima.” Como é ela?

— É uma onça sem rabo.

— Sem rabo? Amanhã será mais do que isso — será
uma onça sem cabeça. Corto-lhe a cabeça com uma bala!

— Com uma bala!?

— Com uma bala! Pois então? Achas impossível? —
perguntou a Ruy Vaz. Pois, meu amigo, é só questão de
pontaria. Eu, com uma boa espingarda, faço o que quero. Não
digo que corte a cabeça, mas derrubo a onça e depois é
só um talho de faca. Pensam vocês que é coisa do outro
mundo cortar a cabeça a uma onça? É facílimo;
questão de calma. Mas vamos ao caso. Fontainha, levando em conta a
viagem fatigante que eu fizera, marcou a caçada para a noite seguinte,
mas eu protestei logo, com energia:

“Não senhor, há de ser hoje mesmo, vamos ao antro!”
O meu amigo quis ainda argumentar, mas eu fui inflexível: “Há
de ser hoje mesmo.” Meti-me num banho morno, devorei duas costeletas
e, às onze horas, com o luar, partimos para a serra com vinte e tantos
cães. Éramos dezoito ao todo, dezoito homens ferozes. Fomos
seguindo os passos relentados do cavalo do guia, e, para a madrugada, chegando
a uma estreita garganta, senti o meu cavalo estremecer e logo um dos cães
partiu galgando umas rochas e desapareceu. Estávamos junto de uma grande
árvore e olhávamos na direção que havia seguido
o cão, quando o vimos reaparecer murcho, farejando os caminhos; os
outros andavam longe. Vendo eu que ainda não havíamos encontrado
a fera, acendi um charuto e dei o sinal de partida…

Mas tu fumas quando caças, Crebillon?

— Eu fumo sempre. Já os nossos cavalos iam caminhando quando
o cão investiu contra a grande árvore, ladrando, ganindo furiosamente,
a arranhar o tronco como se quisesse subir por ele acima. “A bicha está
ali!” — disse um dos homens e tornamos todos, pondo cerco à
grande árvore. Levantando os olhos, e procurando ver por entre as folhas,
descobri a fera entre os altos ramos. Os olhos luziam-lhe como duas brasas
e o meu cavalo tremia que era uma vergonha. Ainda assim levei a arma à
cara e pum! A onça veio abaixo…

— Morta?

— Qual morta! Viva como um alho… Pois se o meu cavalo tremia que
era um horror. Ah! Meus amigos, que berro! O cavalo empinou e eu senti as
barbas do animal no meu rosto. Estou morto! — disse com os meus botões,
mas sem perder a calma, soprei uma baforada de fumo, e foi a minha salvação!
A onça começou a tossir e a espirrar dando-me tempo para arrancar
dos coldres a garrucha e, sem precipitação, encostei-lhe o cano
da arma à fronte e disparei. O animal rolou pesadamente na terra. Era
um monstro! Aí têm vocês toda a minha aventura. A quem
devo a vida?

— Ao charuto, sem dúvida.

— Ao charuto! E dizem que o fumo faz mal.

— E quando chegaste da Bocaina? — perguntou Ruy Vaz.

— Ontem à noite.

— E ainda haverá por lá alguma onça?

— Não, aquela era a última.

— Bem, então agora podes cuidar da casa.

— Sim, posso. Encarou o romancista e exclamou: Que diabo! Parece que
vocês desconfiam de mim!

— Não, ninguém desconfia de ti, Crebillon. Mas deves
compreender que é um suplício vivermos em uma casa como esta
sem uma cadeira e com esse soleníssimo fogão apagado. Confiamos
em ti, mas…

— Mas quê?

— Nada…

— Pois na próxima segunda-feira os senhores terão aqui
os trastes. Eu só tenho uma palavra.

Era noite fechada. João de Deus já havia iluminado a casa quando
os rapazes entraram e subiram ao pavimento superior para ver os preciosos
móveis do presidente. Crebillon não parecia muito disposto a
mostrar os seus haveres, tinha certo pudor querendo adiar para o dia seguinte
a exposição, mas Ruy Vaz forçou a entrada e, no quarto,
o romancista pasmou da sobriedade:

— É isto, Crebillon?

— Sim senhor, nada mais.

— Nem cama, ao menos?

— Nunca me deitei em camas. Nasci em rede e em rede hei de morrer.

A rede oscilava entre a porta e a janela. Havia uma pequena mesa de pinho
envernizado, duas cadeiras, uma canastra e vários embrulhos que Crebillon
começou a desfazer resmungando:

— Vocês têm a mania do fausto… pois, meus amigos, não
há como a modéstia. O luxo excessivo entibia o caráter
e amolece o físico. Lancem vocês um olhar ao passado e hão
de ver que as nações começam a enfraquecer à medida
que se vão tornando suntuosas: Babilônia caiu com o devasso Nabonahid.
Sempre vivi assim detestando a pompa e sou um forte, sou um homem! Acho que
o luxo deve ser comedido — uma boa sala de jantar, um salão deslumbrante,
mas no quarto de dormir um duro grabato ou uma rede, nada mais. As camas enfraquecem
e depravam. Aqui está a minha mobília: a rede, a mesa em que
somo parcelas e escrevo à família, duas cadeiras, a minha espingarda
inglesa, os couros das feras que tenho abatido, um gogó de macaco…

— Gogó de macaco! Para que diabo queres gogó de macaco?

— Para a minha asma. Quando me vem o acesso bebo um d’água pelo
gogó e fico logo curado.

— E aquele couro que ali está, perto da mesa; é de alguma
fera?

— É de cutia. Uma cutia levada dos diabos, que matei no Desengano.
Persegui-a durante todo um dia a cavalo, com vinte e quatro cães e
só ao cair da noite consegui matá-la à beira de um açude.

E, à medida que ia desfazendo embrulhos e pacotes, complicadamente
enleados, contava a história de cada um dos objetos que expunha à
admiração do grupo. Eram peles curtidas, presas de onças,
colmilhos de caititus, bicos de tucanos, cascos de tartarugas, garras de rapaces,
caveiras de monos e uma vértebra de baleia que era o seu banco predileto;
várias facas e um ferro de lança enferrujado e roído.
Quando tomou entre os dedos essa antigalha épica, disse com solenidade:

— Isto que vocês vêem foi achado no campus ubi Troya fuit!
É o espículo de uma sarissa grega, talvez da que foi de Agamenão
ou de outro qualquer dos chefes que sitiaram e arrasaram a cidade de Príamo.
Um inglês ofereceu-me quatro mil libras por este ferro e teria elevado
a oferta a dez mil, se eu não lhe houvesse dito que não me desfazia
deste objeto nem que ele me oferecesse a própria Inglaterra com todas
as suas colônias.

Anselmo arregalou os olhos admirando a preciosíssima peça e
quis vê-la de perto, tomou-a e só achou aspereza e ferrugem,
mas recordando Homero, lembrou-se de que aquele pedaço de ferro velho
talvez houvesse pertencido ao filho de Peleu, talvez houvesse atravessado
o corpo de Heitor e, enquanto Crebillon ia mostrando aos outros vários
objetos curiosos, o autor de A Profecia, à luz do gás, revolvendo
entre os dedos o ferro da lança, recapitulava a Ilíada, rapsódia
a rapsódia, ouvindo não somente o armistrondo e o alarido como
a voz dolorosa de Cassandra que profetizava e os gritos e o guaiar de Hécuba
infeliz.

Ruy Vaz, posto que não fosse indiferente ao ferro clássico,
preferia, em vez dele, um simples contador ou outro qualquer móvel
de mais utilidade. O ferro era precioso, mas não enchia os grandes
vácuos da casa. Mas como Crebillon havia prometido não quis
enfezá-lo mais e, deixando-o com o seu museu de antigüidades,
estirado na rede, em ceroulas, com o cachimbo nos beiços, contando
a Anselmo uma terrível caçada nas matas bravias do Piauí,
foi trabalhar no seu novo romance, que era a vida fantástica de um
padre vítima de uma empusa, como Menipo que foi salvo miraculosamente
por Apolônio.

Na manhã seguinte, ainda havia névoas, e já Crebillon
bradava por João de Deus para que lhe arranjasse café.

O negro subiu receoso e trêmulo para dizer que não havia nada
em casa — nem chaleira, nem xícaras. Crebillon achou impossível
que não houvesse coisas tão insignificantes e perguntou como
se haviam arranjado os moços nos outros dias para tomar café?
João de Deus balbuciou:

— Eles não tomam café.

— É a eterna falta de ordem. Assim, meus amigos, começamos
mal, disse Crebillon bem alto para que os rapazes ouvissem do quarto. Assim
começamos mal. Sem ordem não arranjamos nada. Não há
lá em baixo uma garrafa? O negro afirmou: que havia na dispensa. Pois
lave-me bem uma garrafa, vá a um botequim ali na rua do Catete e traga-ma
cheia de café. Café fresco, viu? Se não for fresco volta.

— E xícaras? — ousou perguntar João de Deus.

— Xícaras… ainda mais essa. Pois traga três xícaras
e quatro pães com manteiga. Vá depressa; tome o dinheiro.

Os rapazes ouviam o diálogo do presidente e do negro.

Só, passeando descalço ao longo do corredor, Crebillon resmungava:

— É isto. Quando eu digo que a ordem é tudo, clamam que
impertinente, que me quero impor como mandão e não sei mais,
e é isto. Metem-se em uma casa como esta sem uma chaleira, ao menos.
Assim não é possível. E queixam-se depois da sorte —
porque não podem trabalhar, que são infelizes, e… patati e
patatá. Três homens dentro de um palácio sem uma chaleira.
Assim não é possível.

Ruy Vaz, que tudo ouvira, saiu ao encontro de Crebillon, no corredor:

— Que é isto, homem?

— Que é isto! Pois vocês nem uma chaleira têm!

— Não!…

— Isto é demais!

— Também acho.

— Vocês hão de viver sempre em dificuldades.

— Sem chaleira?

— Não é sem chaleira, é sem ordem.

— Eu penso como tu.

— Pensas como eu, pensas como eu, e se eu quis tomar café tive
que mandar João de Deus a um botequim com uma garrafa, quando possuímos
o primeiro fogão da América do Sul.

— Que culpa tenho eu disso?

— Que culpa tens?

— Sim, que culpa tenho?

— Já sei que me vens com a lenga-lenga da mobília.

— De certo. Conheces perfeitamente as nossas condições.
Quando nos propuseste a mudança, disseste que tomavas à tua
conta a montagem da casa, da cozinha à sala de recepção.
Que fizeste? Foste caçar a cotó na Bocaina. Ofereceste-nos as
andorinhas e não as pagaste, fazendo-me passar por um vexame indizível
e ainda vens bradar irritado por que não há chaleira? Como queres
que haja chaleira se nada trouxeste?

— Mas hei de trazer.

— Pois bem: quando trouxeres haverá.

— Pois sim, mas sem ordem nada se faz. A minha questão é
de ordem.

— Bem sei… a mobília que venha que a ordem há de aparecer.
Que nos pediste tu? Silêncio e moralidade. Isto em silêncio é
um túmulo, os próprios ratos, que faziam rumor à noite,
já não aparecem porque o gato faminto não lhes dá
tréguas. Quanto à moralidade, meu amigo, a Elvira e a Amélia
pedem a todos noticias nossas e ninguém as dá, porque ninguém
sabe onde moramos. Bem vês que vamos cumprindo à risca o contrato
que celebramos, entanto de mobília… nem um pires.

— Há de vir.

— Deus te ouça!

João de Deus interrompeu a discussão aparecendo com a garrafa
e um embrulho que tiniu quando foi pousado sobre uma janela.

— Que é isto? — perguntou Crebillon apalpando o embrulho.

— Pão e canecas de folha. As de louça quebram muito,
disse o previdente negro.

— Pois havemos de tomar café em canecas de folha, como Cucravos?

— Que tem…? — disse Ruy Vaz.

— Não fazes questão?

— Não, desde que o café esteja quente.

— Está fervendo, afirmou João de Deus.

— Então não faz mal. Há quatro canecas, não’?

— Sim, senhor.

— Então vá chamar os doutores.

Logo que chegaram, Toledo e Anselmo, que não contavam com aquela agradável
surpresa, tiveram a sua reação e, por um momento, foi esquecida
a nudez da casa. Mas no melhor do gozo a campainha retiniu estridente e João
de Deus subiu a anunciar o homem das andorinhas.

— Que se há de fazer?

— Vai lá dizer que não há ninguém em casa,
João. O negro hesitou, Anda!

— Eu já disse que o senhor estava aí.

— Como! Pois vai dizer que te enganaste, que quem está em casa
és tu.

— Eu não posso dizer isto. O homem é capaz de querer
brigar.

— Ah! Ele briga? É valente? Então manda-o cá em
cima que eu o arranjo. Manda-o!

João de Deus ficou hesitante, retorcendo um lustroso boné de
seda que lhe dera o Toledo enquanto Crebillon, arregaçando a manga
da camisa, com uma afiada faca pernambucana, pôs-se a raspar lentamente
os pêlos do braço esquerdo, mais guedelhudo do que o de um gorila.

De repente, numa resolução, pôs-se nu, fechou a carranca,
rangendo os dentes e rugiu ensaiando ferocidade.

— Muito bem. Voltou-se para o negro, que pasmava boquiaquiaberto. —
João, vai buscar o esqueleto. Vamos! João de Deus escafedeu-se.
Agora, ouçam vocês. Não estou disposto a aturar um tipo
que nos vem, todos os dias, importunar por uma miséria de vinte mil
réis. Se eu os tivesse, dava-lhos, mas toda a minha fortuna reduz-se
a 4$600. Com argumentos de convicção nada conseguiremos, portanto,
para evitar uma cena ridícula à porta do palacete, vou empregar
os recursos supremos. É necessário que esse sujeito não
torne à nossa porta…

— Que vais fazer, Crebillon?

— Vou fazer uma cena tremenda com o esqueleto do meu rival. Justamente
João de Deus aparecia com a ossada nos braços e Crebillon sentou-a
em uma das cadeiras diante da porta. Quando eu romper aos berros é
bom que vocês aparentem desgosto e tristeza, lamentando o meu estado,
mas de longe. E deixem-me com o homem. Vai, João. Manda-o cá
em cima.

A campainha retiniu desesperadamente.

— E se o meco não acreditar na farsa, Crebillon?

— Dou-lhe os 4$600 por conta.

— E se ele não aceitar?

— Esgano-o! O negro ia saindo quando Crebillon o chamou: Ouve cá,
João. Hás de dizer ao homem, para preparar-lhe o ânimo,
que estou na minha crise, compreendes? O patrão está hoje na
sua crise nervosa. É bom que o senhor não se aproxime muito.
Entendeste? Crise nervosa.

O negro repetiu, torcendo o boné lustroso:

— Crise nervosa…

— Isso! Vai com Deus.

O negro desapareceu. A campainha retinia sem descontinuar. Quando as escadas
rangeram Crebillon, reconhecendo o inimigo, pôs-se a saltar no quarto,
nu, ululando e brandindo a faca que reluzia. João de Deus não
se atreveu a aproximar-se, mostrou ao homem o quarto e ficou à distância
respeitável esperando o desenlace da cena. Crebillon rugia sempre e
o homem olhava, esgazeado, as imensas salas desertas que apenas o sol ornava
e o vozeirão tremendo do abolicionista enchia atroadoramente.

— Ah! Miserável! Grandíssimo biltre! Pensas que estou
saciado? Ainda não! A morte não basta! Vou agora esconder os
teus ossos… Quero ver no Juízo Final a cara da tua carne quando os
anjos do Senhor tocarem a reunir… Hás de procurar os ossos debalde.
Vou escondê-los no forro da casa… Lá em cima!

O homem, ouvindo palavras tais, andava com os olhos de um lado para outro
como se procurasse alguém, quando Ruy Vaz apareceu demudado, preocupado,
metendo os dedos pelos cabelos e, dando com o carroceiro, perguntou-lhe se
queria alguma coisa.

— Sim senhor: vim receber a conta da mudança.

— Ah! Sim… Mas em que dia veio o senhor!

Crebillon urrava, sapateava, atirava botinas ao chão e falava insanamente
em Juízo Final, em Clube dos Fenianos, em angu de preta mina, em Angélica
da Costa…

— Ah! Meu amigo, está ouvindo?

— Sim, senhor. O preto disse-me que o patrão está algum
tanto incomodado.

— Incomodado? Está perdido, irremediavelmente perdido. Já
mandamos uma comunicação ao Hospício para que o venham
buscar. Está impossível. Voltou-lhe a crise.

— Ah…

— Ele julga-se a Via-Láctea e diz que veio parar na terra porque
um homem perverso, esse tal que ele injuria…

— O homem está lá?

— Não, quem está lá com ele é o esqueleto.

— O esqueleto do homem…?

Não houve tempo para mais explicações. Crebillon saia
do nu, arrastando o esqueleto e brandindo a faca. O carroceiro, logo que o
viu, fez menção de fugir, mas Crebillon dando com ele, pôs-se
a ranger os dentes, a arregalar os olhos e era horrível de ver-se-lhe
o carão purpúreo com a pêra ruiva que a chama invertida
de um grande círio. Sem tirar os olhos do homem, encostando o esqueleto
à parede, foi passando a lâmina da faca no braço nu e,
feroz, agachado, avançava pé ante pé. O homem estava
lívido e tremia quando Ruy Vaz, querendo interceder por ele, com uma
seriedade imperturbável, falou a Crebillon:

— Ouve, Thomaz, ouve… Sou eu, teu amigo. Então não
me conheces?

— Este não é o Serafim? O dono dos ossos? É ele
mesmo… Ah! Miserável, que fizeste de Maria Angélica? Onde
está Maria Angélica? Pensas que me escapas? Olha, os teus ossos
já estão ali, agora o resto… Eu preciso da tua carne para
cobrir o esqueleto que está com frio. Ergueu os braços e uivou:
Ah! Maria Angélica…! Vais ser vingada! Serafim está aqui!
Vou picá-lo em bocadinhos… Em bocadinhos, Maria Angélica,
em bocadinhos!

De repente, dando um salto feroz, ia deitar a mão ao homem e tê-lo-ia
alcançado se ele não deitasse a correr, precipitando-se escada
abaixo, aterrado. Crebillon acompanhou-o até o patamar, brandindo a
faca e urrando os nomes misteriosos de Serafim e de Maria Angélica,
mas a porta bateu com violência e João de Deus, que fora espiar
o homem, subiu a anunciar que ele havia desaparecido.

— Deste estamos livres. E foi o esqueleto que o aterrou.

— Similia similibus curantur, disse o Toledo saindo do quarto para
apanhar a ossada libertadora. E o dia passou-se todo em comentários
alegres. Para a tarde, porém, com o roxo e melancólico crepúsculo
e com a fome, a alegria foi-se dissipando e a casa tornou-se um palácio
de suspiros.

Os dias corriam e Crebillon ia protelando a compra dos móveis até
que, uma noite, recolhendo-se muito cedo e à pressa, anunciou nova
viagem à Bocaina para dar cabo de uma corda de porcos que devastavam
a roça de milho de Fontainha. Os rapazes revoltaram-se, o próprio
Toledo, sempre brando, teve um assomo de energia. Onde iriam eles arranjar
trezentos e cinqüenta mil réis, que em tanto importava o aluguel
mensal do palacete?

E Ruy Vaz falou por todos:

— Tem paciência, Crebillon, deixa lá os porcos, vamos
cuidar de coisas mais sérias. Tu não hás de querer que
soframos aqui um vexame. O fim do mês está aí e, além
das muitas vergonhas que curtimos calados, queres ainda que sejamos expulsos
desta casa, onde nos meteste seduzindo-nos com promessas de tranqüilidade
e fausto? Eu já sou vítima de comentários vis aí
pelas vendas.

— Tu?!

— Eu, sim. João de Deus que o diga.

— Mas que comentários? Por que a casa não tem mobília?

— Em parte, ou antes — é essa a razão porque, se
tivéssemos mobília, não traríamos as janelas sempre
fechadas como as trazemos. Mas queres saber? Como o Toledo sai quase sempre
de manhã e só torna à noite, como tu, e eu sou o único
que sai às duas da tarde, afrontando os olhos da vizinhança,
porque Anselmo espera sempre a Providência em casa, sabes que dizem
mim? Que sou um marido terrivelmente ciumento, que saio deixando minha mulher
trancada. E o interessante é que descrevem essa criatura vítima
do meu desmarcado zelo: loura, de olhos azuis, pálida, muito infeliz
e, quando desço, ouço vozes rancorosas: “Lá vai
ele!… Olha o carrasco!…” Tudo por quê? Porque não temos
mobília e trazemos a casa constantemente fechada. A fama que essa falta
de trastes me vai grangeando não é das mais agradáveis
e ainda queres que nos sujeitemos as injurias de um senhorio? Tem paciência…
Deixa os porcos do mato em paz e, se não podes mobiliar a casa, dize
francamente porque há mesmo trato de arranjar um quarto e transfiro-me.
Aqui não podemos ficar, num casarão, grande como uma cidade,
com duas cadeiras, várias antigüidades e três canecas de
folha.

— Eu já disse que trago os móveis.

— Há um mês que nos prometes e, até hoje, só
nos tens as três canecas citadas.

— Mas querem vocês que eu roube? Hei de roubar? — clamou
desesperado. Se eu agora não tenho dinheiro, como querem traga mobílias?

— Mas, então, por que nos iludiste, Crebillon?

— Ora! Eu tinha algum dinheiro, mas como não dava para despesa,
empreguei-o em bilhetes de loteria. Saíram brancos. Ando infeliz, que
queres? Ando infeliz. Eu tinha vontade de fazer alguma coisa, mas a sorte
foi-me adversa, aí tens.

— Ah! Querias arranjar móveis com a loteria?

— Então?

— Pois sim… E vais aos porcos?

— Vou. Não posso deixar Fontainha sozinho, com uma corda de
caititus. Tu não sabes o que é uma corda de caititus.

— Não sei nem faço grande empenho em saber. Mas decidamos:
onde queres que deixemos a chave da casa?

— Que casa?

— Desta.

— Pois vocês querem sair?

— Certamente. Amanhã mesmo.

— Por que?

— Porque o fim do mês está aí e nós não
temos vintém.

— Mas eu tenho carta de fiança, homem de Deus.

— Embora, estamos decididos.

— Ah! Se estão decididos… Querem voltar para uma espelunca
igual à da rua Formosa?

— Talvez, desde que nela possamos trabalhar.

— E não podem trabalhar aqui?

— Não.

— Que falta?

— Tudo.

— Tudo! Já sei… Decididamente vocês não nasceram
para a ordem. Quem diz que em uma casa como esta não se pode trabalhar,
meu amigo.

— Mas que temos nós aqui? Não podemos comer aqueles peixes,
aquelas lebres e aquelas admiráveis frutas que estão, em pintura,
na sala de jantar.

— Vocês não têm comida em casa porque não
querem. Não têm o fogão? Não está aí
o João de Deus?

— E o resto?

— Manda-se vir da venda.

— Quem paga?

— Arranja-se um caderno.

— Sim, arranja-se um caderno… E depois?

— Depois? Deus é grande!

— Ah! Deus é grande. Pois, meu caro Crebillon, apesar da imensidade
de Deus e de todo o conforto desta casa, se vais aos porcos da Bocaina.

— Vou, não posso abandonar um amigo como Fontainha.

— Pois então, quando voltares, procura a chave da casa no teu
charuteiro.

— Pois sim, disse o abolicionista imperturbavelmente E vocês
para onde vão?

— Havemos de achar um quarto.

— Um quarto para todos?

— Para os que quiserem.

— Pois eu vou aos porcos, é uma questão de amizade. Por
outro não iria, mas tratando-se do Fontainha não hesito.

— Então estamos combinados, fica no charuteiro a chave.

— Sim, no charuteiro. E não te esqueças de deixar o teu
endereço, porque, enfim, não nos apartamos brigados.

— Não.

— Eu já esperava esse movimento. Vocês não podem
viver sem as raparigas e como eu exigi moralidade…

— Sim, muita moralidade. Guerra à carne, a de vaca inclusive.

— Sim, sim, isso agora é a desculpa. Têm razão,
são rapazes, é natural que amem.

— E que almocemos, pelo menos.

— Pois sim. Então no charuteiro?

— Sim, no charuteiro.

— Mas vocês hão de arrepender-se. Banheiro e fogão
como os desta casa vocês não encontram nesta cidade.

— Quanto ao banheiro posso emitir o meu juízo: acho-o excelente.
Sobre o fogão nada adianto: não lhe conheço os préstimos.

— Pois é uma peça sem rival.

— Pode ser, mas prefiro um simples fogareiro de espírito, desde
que tenha na trempe uma frigideira a rechinar. Bem, adeus. Boa viagem.

— Obrigado. No charuteiro, hem?

— Sim, no charuteiro.

Tornando à sala, enfurecido, Ruy Vaz comunicou aos companheiros a
resolução inabalável do presidente:

— Pois que vá aos porcos e ao diabo! — rugiu Anselmo,
eu é que aqui não fico mais um dia.

— Nem eu! — disse o Toledo. Estou magro, tenho sofrido muito.
Vou para a casa de meu primo. Ele tem insistido comigo para que ocupe um chalezinho
do jardim. Tenho relutado, porque não gosto de dever favores, mas também
com a vida que levo, dentro em pouco estou tísico. Não vale
a pena.

— Pois. eu amanhã, bem cedo, vou ver o cômodo que há
ao lado, na casa dos alemães, disse Anselmo.

— Há algum cômodo? — perguntou Ruy Vaz.

— A sala da frente e um quarto.

— Toma-se. E o preço?

— Não sei.

— Vamos mandar João de Deus indagar?

— Sim, vamos. Se servir-nos podemos fazer a mudança amanhã
mesmo.

— Serve com certeza. João de Deus! Ó João de Deus!

João de Deus, que andava melancólico, sempre encolhido pelos
cantos, a alisar o lombo do gato que era a única criatura que, naquele
imenso palácio, vivia regaladamente, engordando, porque não
lhe faltavam ratos, não em casa, dali haviam eles desertado, cansados
de esperar que se enchesse a despensa, como dantes, nos dias prósperos
do titular, mas na vizinhança, apareceu lento e mole e, sem anunciar-se,
ficou à espera na porta, mudo e cabisbaixo, retorcendo o boné
lustroso. Ruy Vaz ia de novo bradar por ele, quando o viu naquela atitude
desconsolada de mártir, com os olhos no soalho.

— João, vai aqui ao lado e pergunta ao homem em que condições
aluga os aposentos que tem.

O negro saiu silenciosamente e os rapazes, que a cólera alucinava,
atiravam-se a Crebillon atribuindo-lhe todos aqueles dias de miséria
negra e vazios, porque nem trabalhar podiam, com idéia de que teriam
conforto e abastança, esperando, a todo o instante, a chegada dos móveis
e dos víveres, sem que nada viesse, obrigando-os a trazerem a casa
modestamente fechada para que os vizinhos não vissem a nudez vergonhosa
dos salões, que já começavam a tressuar umidade.

Ruy Vaz, que não desestimava o presidente, conhecendo-o do Norte,
defendeu-o, aceitando parte da responsabilidade:

— Eu devia prever tudo quanto se tem dado porque conheço Crebillon.
É um sonhador, meus amigos: tem a alma de D. Quixote. No Norte a sua
fama é grande, todos lhe conhecem a história, que tem lances
heróicos, porque esse visionário possui um coração
excelente. Foi rico, herdou terras pingues de cereal e pasto. Com elas recebeu
escravos, mas não querendo desmentir a tradição de humanitário,
que o seu procedimento anterior havia criado, porque, antes que aqui surgissem
abolicionistas, já Crebillon andava em jangadas desviando negros para
o Ceará e escrevia nos jornais contra os “senhores”, que
o tinham como demagogo e várias vezes assalariaram capangas, que ele
teve de repelir a tiro e à faca, libertou todos os negros certo de
que, depois de tão espontânea generosidade, eles não o
abandonariam.

Enganou-se. Em menos de um mês, não tinha em casa uma crioula
que lhe fizesse o jantar, sendo forçado a tomar camaradas para que
as terras não fossem invadidas pelo mato daninho e os rebanhos não
aberrassem à falta de pastor. Depois, com idéias de beneficiar
as terras, vendeu todo o gado e comprou maquinismos complicados, que ficaram
ganhando ferrugem ao tempo por não haver quem os montasse, porque o
dinheiro era escasso.

Desesperado, então, vendeu o sítio com tudo que nele havia
e, abotoando-se com o dinheiro, desceu à capital, onde fez correr o
anúncio de um jornal tremendo, que seria redigido por ele e por outros
parciais das suas idéias, jornal republicano, abolicionista, anticlerical
e nativista, com o retumbante título de A Bomba.

Vinte números estouraram escandalosamente na capital. Uma noite, porém,
sujeitos armados e mascarados, justamente quando as páginas desciam
para o prelo, invadiram as oficinas afugentando os poucos homens que nelas
havia e, derramando petróleo, lançaram fogo a tudo.

Na manhã seguinte, do escritório e oficinas de A Bomba, só
havia cinzas e chumbo derretido; a mesma máquina estava desconjuntada
e inútil. E Crebillon, quando chegou à sua tenda de trabalho,
lançando os olhos pelas vigas carbonizadas, trepou ao balcão,
que ainda fumegava e, heróico, sublime com a pêra relampejando,
anunciou à multidão que A Bomba, como a Fênix da fábula,
havia de renascer das cinzas. Efetivamente, três dias depois, explodia
de novo o terrível jornal, saindo de um escritório, que o resistente
planfletário guarnecera belicosamente como uma praça de guerra.

No artigo com que ressurgiu enumerou os apetrechos que armazenara. A lista
enchia meia coluna larga e desentrelinhada, e continha de tudo, desde o montante
pesado até o cartucho de dinamite; desde a lança até
o cacetete e havia um pequeno canhão com que ele contava arrasar a
cidade, se a farândola tornasse a ameaçá-lo no seu reduto.

— A polícia, que não podia permitir esse arsenal, porque
o alarmando a população, ia provocando um êxodo, intimou-o
a entregar as armas. Crebillon resistiu e a autoridade teve de invadir o escritório,
onde apenas encontrou, fechado numa gaveta, um velho revólver e, resmungando
a um canto, com o cachimbo nos beiços, um negro cambaio que era o virador
do prelo. Crebillon sofreu um golpe rude quando soube que a polícia
lhe havia vareajado a casa antes que ele houvesse transportado para o escritório
as velhas armas que adquirira.

A notícia do encontro do revólver e do preto velho foi ironicamente
comentada pela imprensa conservadora e pelo povo e Crebillon, sem a lenda,
sentiu-se desanimado para prosseguir na sua campanha regeneradora. Reunindo,
então, a fortuna começou a percorrer os sertões do Brasil.

Subiu o Amazonas, penetrando, com a sua carabina e seis índios do
Madeira, selvas nunca trilhadas pelo homem civilizado e descendo, ora por
mar, ora em ubás, pelos rios largos, chegou ao Rio de Janeiro de onde
seguiu para o Sul, atravessando a região fria e desabrigada do minuano.

Lá teve amores e lutas, abalou com uma senhora que lhe anelava o cavanhaque
e tocava Schubert em cítara e perdeu-a no Paraguai, de febre. Ainda
conserva o retrato e um dente dessa criatura formosa que se chamava Diana.
Desgostoso, pensou em fazer-se monge, mas a idéia de raspar o viçoso
e flamejante cavanhaque, que ele chama a sua “estalagmite”, fez
com que, em tempo, recuasse do claustro e começou a negociar em tudo.
Foi a sua última loucura porque, em pouco tempo, ficou reduzido, sendo
obrigado a viver de escritas comerciais, com uma miserável retribuição
que não lhe dava para ostentações, obrigando-o a andar
retraído, equilibrando a despesa, sem amores, sem aventuras, sem carabinas,
sem cães.

É um sonhador. Estou certo de que, se tivesse alguma coisa, não
se limitaria a trazer o que inventariou no seu programa, mas muito mais. Infelizmente,
porém, está esgotado, sem vintém. Passa fome conosco,
mas sempre a arrotar grandezas.

Pensam vocês que esse Fontainha existe? Puro sonho. Nunca houve na
Bocaina onça cotó nem porcos do mato, mas para que o havemos
de vexar com o sarcasmo da nossa incredulidade? É o prazer do pobre
homem contar aventuras terríveis: que matou, que esfolou, que fez e
aconteceu… Conta com graça, que mal nos pode vir disso? Bem sei que
nos transtornou a vida, mas não me revolto, lastimo-o. Mais do que
nós vai ele sofrer. É um tropical influenciado vivamente pelo
sol, homem de miragens, visionário — acompanharia D. Quixote
de bom grado, suportando penúrias e tormentos com mais entono heróico
do que o próprio cavaleiro andante.

É preciso aceitá-lo tal qual ele é. Eu, que o conheço,
quero que vocês o tratem com acatamento. Agora, por exemplo, ele está
como um enfermo, sofre porque começa a entrar no real, vê que
não pode cumprir a sua palavra e espanta-se de a haver dado e intimamente
está, talvez, perguntando a si mesmo: “Mas como fui eu prometer
a estes rapazes mobília e manutenção se estou a tinir?”
E sabem lá vocês o sofrimento que isto é? Nada ganhamos
com mau humor. Temos de sair, saiamos em paz e alegres para que o pobre Crebillon
não sofra.

— E não tenho queixa dele, disse o Toledo.

— Nem eu, ajuntou Anselmo.

— É um cerebrino, que culpa tem, coitado? Diz que vai amanhã
aos porcos na Bocaina… Com certeza não tem no bolso um tostão
para ir à cidade. Conheço-o… Acendeu um cigarro e, só
então, deu pela demora de João de Deus. E João de Deus
que não vem!

Da sombra partiu, muito lenta, a voz enfraquecida do negro.

— Estou aqui.

— O rapaz, andas misterioso. Então?

— O homem aluga por oitenta mil réis a sala da frente e um quarto
grande.

— E as condições?

O negro baixou os olhos e balbuciou:

— Não tem, não, senhor.

— Dinheiro adiantado ou carta de fiança?

— Não perguntei não, senhor.

— Pois sim.

Anselmo, que não tirava os olhos do negro, vendo que ele palpava a
testa e apertava-a, perguntou:

— Estás sentindo alguma coisa, João?

— Eu? Vou amanhã para a Santa Casa, resmungou, retirando-se
lentamente, com a mão à fronte.

— Que diabo terá João de Deus?

— Ora! Que há de ser?

Capítulo IX

Na manhã seguinte, fresca e luminosa manhã, depois do banho,
o último sob o jorro copioso da calha que rivalizava com Paulo Afonso,
Ruy Vaz e Anselmo, vestindo as calças menos surradas, foram bater à
casa vizinha. Quem lhes havia de aparecer? Uma mocinha loura, alva e franzina.
Duas rosas ornavam-lhe as faces duma pele acetinada e tênue, sob a qual
como que se via o sangue circular em retículas azuis. Os olhos, duas
turquesas, pensativos sob as compridas pestanas curvas, tinham uma entristecida
melancolia e pareciam lavados em lágrimas. Os cabelos eram de ouro
e brilhavam em duas tranças fartas, o colo cheio ondulava e a voz era
lenta e doce como o som das citaras.

Descerrou a pequenina boca fresca e sangüínea e, firme, com o
seu avental imaculado, perguntou: “Se queriam alguma coisa?” Anselmo,
arroubado, já cantarolava o:

Salve dimora casta e pura!

Foi Ruy Vaz, mais frio e resistente ao amor, quem respondeu:

— Sim, senhora. Desejamos ver os cômodos anunciados.

Gretchen acenou de leve com a formosa cabeça, onde havia mais ouro
do que em todo o Reno, no tempo dos deuses, e grave, em passo sutil e airoso,
chegou a uma porta, deu volta à chave convidando, com um gesto cheio
de divina majestade, a entrarem. Ruy Vaz passou primeiro e Anselmo seguiu-o
com o coração abrasado. Não viu o estreito corredor sombrio,
nem o quarto acanhado, nem a sala que tinha o papel desprendido, voando ao
vento e buracos pelos cantos e placas de zinco pregadas no soalho esfregado.
Ruy Vaz examinava como um mestre de obras, elevando os olhos da barra ao teto,
de onde a pintura esborcinada, escorchada se destacava em lâminas. Anselmo
via tão só a face branca e as rosas, os olhos azuis e as tranças,
a boca breve e rubra e o colo que arfava. Estava longe, andava em Goethe,
pelo Fausto…

Salve dimora casta e pura…

Ruy Vaz trincou o bigode e, pondo os olhos negros no rosto puríssimo
da moça, ponderou, sorridente:

— É caro…!

Ela, muito séria, encolheu os ombros e foi abrir as janelas. O sol
entrou iluminando a sala, pondo uma grande alegria nos aposentos e brilho
nos cabelos de Gretchen. A aragem fresca levou o cheiro de umidade deixando
um leve aroma de rosas.

— Caro não é, disse Gretchen, como espantada.

— Não é, concordou Anselmo.

— Com café de manhã…? — aventurou Ruy Vaz e ela,
sorrindo, com muita vivacidade e um fulgor novo nos olhos:

— Si, si… com café de manhã.

— E o banheiro? — perguntou o romancista.

— Si, disse ela, no quintal; banheiro do chuveiro; elevou o braço
e fez graciosamente o gesto de quem puxa uma corda.

— E as condições?

— Como queira. Não faz questão.

— É a senhora quem aluga?

— Não, papai. Mas ele não está. E encarando Ruy
Vaz:

— O senhor não mora aqui ao lado?

— Sim, senhora. Tomamos esta casa para um amigo que se casou no Norte.
Ele devia chegar até o fim do mês. Anteontem, porém, telegrafou-nos
comunicando-nos que resolvera passar a lua-de-mel nas margens do Reno, no
castelo de um parente da mulher.

— Nas margens do Reno? — exclamou Gretchen maravilhada.

— Sim, senhora: nas margens do Reno.

— Muito bonito! — disse ela abrindo os olhos serenos.

— Muito bonito. A senhora compreende que dois rapazes num casarão
como esse…

— Ah! Si… si… Seu nome?

— Ruy Vaz.

Ela repetiu lentamente, sonoramente:

— Ruy Vaz. E o senhor?

— Anselmo Ribas.

Gretchen sorriu e, como nada mais tivesse a perguntar, ficou a brincar com
uma das tranças.

— Bem; então podemos fazer hoje a nossa mudança? —
disse Ruy Vaz.

— Sim, senhor. E, tirando do bolso do avental uma pequena chave, entregou-a
ao romancista dizendo com um sorriso adorável: Só tem uma.

— E basta, respondeu ele. Então até já. Deu alguns
passos para o corredor, mas voltou-se amável: A senhora…?

E ela, compreendendo, avançou a cabecinha, com um dedo no colo farto:

— Meu nome?

— Sim, senhora.

— Carlota.

Anselmo estremeceu lembrando-se de Werther. E, quando estendeu a mão
a Carlota, sentiu um frêmito percorrer-lhe o corpo, que vibrou de amor.
Carlota! E, saindo, cantarolava apaixonadamente:

Salve dimora casta e pura.

Quando entraram no palácio João de Deus, macambúzio,
passeava lentamente pelo corredor e o gato ia e vinha miando, a esfregar-se-lhe
nas pernas.

— João de Deus, tem paciência, estamos com a corda na
garganta, e só tu nos podes salvar.

— Eu? Ah! Seu doutor, eu estou que não posso comigo. É
para ir à cidade?

— Não, mais perto: aqui ao lado com os nossos trastes.

— Carregar!!?

— Sim, João, tem paciência.

O negro tirou uma ponta de cigarro detrás da orelha e, com um suspiro,
foi subindo as escadas vagarosamente. Os dois rapazes desceram ao jardim e
Anselmo, encostando-se à barra fixa, suspirou, melancólico,
como se previsse desgraças:

— Ah! Meu caro Ruy… essa casa é um perigo.

— Perigo? Perigo por quê? — e o romancista ia catando as
rosas e as gardênias do jardim que a erva crescida asselvajava.

— A mocinha impressionou-me. Viste que lindos olhos? Não lembra
a Margarida?

— Que Margarida?

— Do Fausto…

— Ora! Tu sofres de amor crônico, crônico e literário.
Na primeira mulata que te aparece vês Sacuntala. Já andaste a
pensar em uma Haydéa que cozia para o arsenal; viste uma Morna na Praia
Formosa; escreveste um conto à Miranda e agora estás suspenso
dos olhos de uma Margarida que aluga cômodos. Isso é doença.

— Mas que queres?

— Quero que não me aborreças com os teus amores. Olha,
se vais para lá com idéias de idílio, estás arranjado:
os alemães são ferozes. Já é tempo de tratarmos
da vida a sério.

— Eu vou escrever e vou ver se o Heller monta A Profecia.

— Qual Profecia! Cuida de outra coisa.

— Achas, então, que ele não monta a minha peça?

— Garanto. A literatura dramática, dramática é
um modo de dizer e literatura é eufemismo, mas admitindo a expressão,
a literatura dramática entre nós está monopolizada por
um pequeno grupo. Nem Shakespeare, se ressurgisse, conseguiria impor-se aos
empresários. A tua peça há de morrer no arquivo. Cuida
de outra Coisa. Que fizeste do romance?

— Não sei. Com o primeiro capítulo João de Deus
andou tapando fendas nos vidros, em casa de Dona Ana; Amélia cortou
o segundo para fazer papelotes…

— Por que não escreves contos? Tens tantas idéias.

— Mas quanto pode dar um conto?

— Um conto? Nada.

— Então não pagam?

— Não. Se queres ganhar alguma coisa emprega-te como noticiarista,
mas vê lá: não digas que fazes literatura.

— Mas isto não é país! — rugiu Anselmo.

— É a terra afortunada, meu amigo. Quem nos governa é
um monarca letrado que traduz Petrarca e Byron e comenta Platão no
original.

— Mas de que hei de eu viver então?

— Sei lá!

— Mas tu ganhas.

— Ah!, Sim: escrevo um romance de seiscentas páginas e vendo-o
por oitocentos mil réis. Achas que vivo…? Que lindas rosas, hem?

— Lindas, concordou Anselmo distraído. Mas tornando logo ao
assunto:

— E se eu fosse pedir colocação num jornal…?

— Tens empenhos?

— Não.

— Então, meu amigo…

Ruy Vaz, com um esplêndido ramo de rosas, encaminhou-se para a sala
de jantar deixando Anselmo no jardim, preocupado, a pensar na vida que lhe
aparecia temerosa e nos olhos doces de Carlota, azuis como dois pequeninos
céus cheios de esperança, com um Deus em cada uma das pupilas.

— Vem daí, homem. João de Deus já nos está
mudando.

— E não é que estou apaixonado mesmo!? — murmurou
o estudante encaminhando-se lentamente para a sala de jantar.

Capítulo X

João de Deus, sempre gemendo, ia passando os trastes para casa de
Gretchen e, ao meio dia, já estavam armadas, no quarto acanhado, as
camas de Anselmo e de Ruy Vaz e as duas mesas, o divã e as cadeiras
guarneciam a sala no meio da qual foi estendido o tapete com a cena lúbrica
do serralho.

Toledo quis ver a instalação dos companheiros e achou-a confortável,
sentindo, porém, não poder acompanhá-los, porque, como
estava em vésperas de exame, ia, com o seu esqueleto, para a casa do
primo, habitar o chalezinho que lhe fora oferecido com a comida, à
sombra quieta do pomar.

Crebillon não aparecia. Teria ido, como dissera, dar cabo dos monadíssimos
porcos que devastavam a roça de Fontainha? Eles não podiam ficar
em conjecturas à porta do quarto do abolicionista — tinham de
arranjar os novos aposentos e despediram-se da casa com a tristeza com que
Boabdil abandonou Granada.

Adeus, salões incomensuráveis, largos e desafrontados como
planícies! Adeus, vastíssimos e arejados quartos! Adeus, sala
de jantar que faria as delícias de um voluptuoso Apício! Adeus,
fogão monstruoso e flamejante; adeus, cachoeiroso banheiro, jardim
redolente, adeus! O negro, fidelíssimo e resignado, no momento em que
os dois rapazes despediram-se, pigarreou comovido.

— João, não te esqueças de nós; aparece
de vez em quando porque no dia em que a sorte nos sorrir, tu, que tão
dedicadamente nos acompanhaste nos tempos amargos da desventura, hás
de participar do sorriso da fortuna. Por enquanto não podemos demonstrar
generosamente a nossa gratidão, mas não vêm longe os dias
prósperos: confia e espera.

João, de olhos baixos, ouviu sem palavra e, como os rapazes lhe estendessem
as mãos, o pobre negro ficou tão lisonjeado que, apesar da enxaqueca
e da fome, sorriu desvanecido.

— Adeus, Toledo.

— Adeus, Anselmo. Adeus, Ruy.

— Aparece.

— Sim, hei de aparecer. E abraçaram-se.

— Ficas à espera de Crebillon?

— Não, mudo-me amanhã. João de Deus toma conta
da casa.

— Eu? — exclamou o negro aterrado. E se o dono vier?

— Não há perigo, João.

— Não, nhonhô, eu tenho muito medo de negócios
com a polícia. Para acompanhar vosmecês, estou pronto, mas para
ficar aqui sozinho, isso não.

— Quem sabe se tens medo de almas do outro mundo?

— Eu! Não, senhor: tenho medo da polícia. Sozinho, não
senhor. Com vosmecês tudo está direito, mas comigo, um pobre
preto velho… O homem chega aí, bate língua e me atira no cosmorama.
Deus me livre! Sozinho, não!

— Então com quem há de ficar a chave?

— Fica na venda.

— Isso não.

Para pôr termo à discussão Toledo resolveu demorar mais
dois dias na casa à espera de Crebillon e, depois de novos abraços,
trazidos até à porta da rua pelo anatomista, pelo negro e pelo
gato, os dois partiram saudosamente para a casa contígua.

Arranjando as estantes Ruy Vaz começou a fazer considerações
literárias.

— Vê tu, se um de nós fizesse aparecer num romance esse
misterioso João de Deus, a crítica havia de bradar contra a
inverosimilhança, porque, deixa lá! Esse negro é fantástico.

— Está ali um famoso idiota ou um santo.

— Um santo, Anselmo, um virtuosíssimo santo.

— Receberá ele os sessenta mil réis do ajuste?

— Sessenta mil réis! Crebillon não daria isso por toda
a costa da África.

— Pobre João de Deus!

— Paupérrimo!

Bateram à porta do corredor. Anselmo foi abrir: era Carlota com uma
salva na qual fumegavam cheirosamente duas xícaras de café.
Anselmo sentiu violenta pancada no coração como se houvesse
estourado um dos vasos vitais e, trêmulo, muito agradecido, tomou a
bandeja das mãos delicadas de Carlota; ela, porém, para poupar-lhe
o trabalho, relutou e, entrando, consentiu apenas que ele retirasse a xícara
que lhe cabia indo, ela mesma, oferecer a outra a Ruy Vaz.

O romancista, que estava de cócoras arranjando os últimos raios
da estante, ergueu-se alvoroçado, e, chuchurreando o café, que
estava delicioso de gosto e de aroma, dirigia amabilidades a alemã,
confessando que começava a achar encantador o aposento e propício
ao trabalho com aquele silêncio imperturbável da rua e da casa.

— Os senhores são estudantes?

— Não, senhora: jornalistas. Dizemos jornalistas porque no Brasil
o nosso mister não tem ainda classificação. Somos forçados
a tomar de empréstimo à imprensa um título de apresentação.
Em verdade nada temos de jornalistas: fazemos romances e contos e lá
de vez em quando um folhetim.

— Ah! Fazem romances?

— Sim, senhora.

Carlota lançou a Ruy Vaz um olhar cheio de incredulidade.

— Como são os seus romances?

— Naturalistas.

— Ah! E o senhor também? empertigou-se:

— Não, senhora; eu sou romântico.

— Ah! Romântico… Aqui os senhores podem fazer muitos romances.

— Pois não.

— Bem, até logo.

— Até logo, miss.

Carlota tomou a bandeja com as duas xícaras escorropichadas e foi-se
graciosamente, deixando um leve perfume na sala e no corredor.

— É amável, hem?

— Amável! Pois sim. Pois não percebeste que essa gentileza
foi um pretexto!

— Pretexto… para quê?

— Para ela fazer o inventário dos nossos haveres, que são
a fiança dos oitenta mil réis mensais. Pensas, talvez, que a
pequena quer começar o flirt com um de nós? Estás enganado
— o que ela quer é garantir-se. Enquanto falava, os seus lindos
olhos azuis; mais avaros do que dois judeus, iam examinando minuciosamente
os móveis, os livros, os quadros e tudo mais que aqui há e pesando,
como conchas de balança, o valor de cada objeto. Ah! Meu amigo, essas
criaturinhas românticas não têm alma de Jéssica,
têm a usura de Shylock. Onde pensavas que existia amabilidade, só
havia ronha e muita! Naquele peito farto não há coração:
há uma bolsa. Garanto-te que essa suavíssima Carlota saiu daqui
sabendo, melhor do que nós, o que há nesta sala e naquele quarto.
Não te fies em olhos azuis nem em vozes que lembram citaras —
essas criaturinhas são feitas de ganância e de hipocrisia. Sob
essa aparência mística de anjos rafaelinos, há almas asquerosas
e repugnantes como as figuras de Goya.

— E tu que és pessimista!

— Enganas-te: adoro a vida e agradeço-a a quem ma deu. Nunca
me ouviste blasfemar, nunca me ouviste pedir a morte desesperado e enfarado
do mundo — acho a criação maravilhosa, mas, meu caro,
mestre Epicuro entendendo que o prazer é a base de todo o bem, não
desconheceu a dor, não suprimiu as perfídias nem negou a existência
do mal. A grande ciência do viver está justamente em saber a
gente joeirar o seu trigo e escolher os frutos que deve saborear, para que
lhe não suceda achar veneno onde só queria encontrar o sabor
delicioso.

A rosa é uma maravilha de composição, é a forma,
é a cor, é o aroma, mas se a colheres estabanadamente, podes
espetar-te nos espinhos que a defendem; sábio é o que a obtém
sem mágoa. Eu não falo mal de Gretchen, mostro apenas que ela
tem espinhos, porque tenho grande prática da vida… e conheço
as rosas. Hás de ver. Estás enamorado, quem te leva é
o coração. És como um cego que vai guiado por um infante;
hás de sentir a pancada quando ele levar-te pelos labirintos estreitos.
Pensas, com certeza, que ela está, como a sunamita, a enlanguescer
de amor…? Pois sim. Mete dinheiro na bolsa para o fim do mês. Mete
dinheiro na bolsa.

Anselmo amuou. Não podia acreditar que criatura tão formosa
e delicada fosse capaz de representar o indigno papel de arroladora de móveis.
Via-a meiga, amável, carinhosa, mas, infelizmente, não durou
muito a ilusão.

Dois dias depois de se haverem instalado, à tarde, puseram-se os dois
a discutir o entrecho de uma revista de ano, porque Ruy Vaz entendia que era
inútil trabalharem numa peça emocional, como queria Anselmo,
um drama forte no qual jogassem paixões e aparecessem, sobre um fundo
da vida social, caracteres minuciosamente estudados.

— Meu amigo, façamos uma revista. Não temos empresário
nem público para a Arte. Onde entendes que deve entrar, com sutileza,
o escalpelo da análise, metamos um ruidoso adufe; em vez do diálogo
brilhante, demos um rondó brejeiro; em vez do lance dramático
arranjemos um jongo, e teremos aplausos e o principal. O nosso teatro não
é o que pensas. Leste nos críticos teatro é uma escola
de Arte e de moral… isso não diz conosco. A barraca de Nicolo Musso,
de que fala Hoffmann, onde representou Salvador Rosa, valia mais do que qualquer
dos nossos teatros, que não são outra coisa mais do que casas
bufas e de erotismo disfarçadas sob lantejoulas.

Quais são os nossos primeiros atores? São os que mais impressionam
pela dicção, pelo gesto adequado e comedido, pela sobriedade
da expressão, pela naturalidade? Não, são os mais palhaços,
os mais grotescos. Tal, é grande porque deforma o rosto em máscara
de sânie; aquele outro faz delirar a platéia com uma frase decomposta,
com um gesto indecoroso ou com um meneio impudico. Colaboram com os autores,
os libretos são apenas indicações, a obra teatral é
feita no palco. O escritor dá o esqueleto sobre o qual os atores atiram
a imundície a que chamam “graça” e, com razão,
porque o povo ri. As nossas primeiras damas, quais são elas? São
as que melhor interpretam? Não, são as mais bem feitas e as
que se desnudam com mais impudor. Quando ouvires dizer, tu que ainda não
conheces os segredos e a gíria dos bastidores: “Fulana é
a artista de mais talento dos teatros”, convence-te de que a citada estrela
é a mulher de pernas mais grossas e não faz questão de
as mostrar ao público lascivo. As ovações delirantes
são feitas à nudez, as flores que juncam os palcos vão
com direção aos leitos. E as artistas conhecem tão bem
o seu público que não dão um passo em cena que não
seja requebrado e garantem as peças com saracoteios. Quando anunciarem
a queda de uma dessas moxinifadas, que dão aos seus autores o título
de “laureados”, podes dizer, com certeza, que os interpretes estavam
reumáticos e por isso não puderam desconjuntar-se.

O teatro nacional assenta sobre as cadeiras das mulheres. A nossa arte é
uma saturnal com fogos de bengala e jongo. O jongo é tudo. Estamos
como os de Israel em Faran — desanimados e desprovidos. Deixemos a Arte,
que é a deusa única e verdadeira, e adoremos o bezerro de ouro
que é uma infâmia. Sejamos romanos em Roma. Vamos escrever uma
revista.

Assim falava Ruy Vaz quando bateram à porta. Era Crebillon, ia despedir-se.
Entrou um momento sem tirar o chapéu, lançou um olhar aos tristes
aposentos e exprobrou:

— Deixarem um palácio por este tugúrio… Francamente?.

— Mas aqui temos paz.

— E lá também teriam se houvesse ordem.

— E louça…

O abolicionista falou da sua caçada e, despedindo-se, ofereceu a casa
em que se havia aboletado — na rua da Assembléia, por cima de
um armazém de víveres. Vivenda principesca.

Correram serenos os primeiros dias. Anselmo abrasava-se em amor pela meiga
e loura Gretchen, que enchia a casa com a sua voz cristalina, quando, uma
manhã, Ruy Vaz, que se havia levantado muito cedo para corrigir as
provas de um romance, que vendera ao Garnier, vendo que ele não aparecia,
chamou-o da sala anunciando-lhe o sol. O estudante não respondeu. O
romancista, impressionado, foi ao quarto. Anselmo, muito encolhido, voltado
para a parede, ardia em febre.

— Tu estás com febre, homem.

— Sinto-me muito mal; dói-me todo o corpo, não posso
mover este braço.

— Mas que é?

— Linfatite.

— Como diabo foste arranjar isso?

— Sei lá. Não conheces por aí algum médico?

— Conheço. Queres?

— Sim.

— Vou ver se encontro o Teixeira.

O estudante tiritava e encolhia-se, enquanto o romancista preparava-se para
ir ao banho.

— Queres que diga lá dentro que estás doente?

— Sim; é bom; pode acontecer-me alguma coisa.

— Qual! Isso passa com uma xaropada qualquer.

— Não é tão fácil assim. Já estive
entre a vida e a morte com um acesso destes. É coisa séria e
dói como o diabo!

— Pois eu falo à Gretchen, à tua Gretchen.

— Sim.

E o romancista, tomando a saboneteira, atirou a toalha ao ombro e seguiu
para o banheiro.

Logo que o romancista saiu, Anselmo que, nesse tempo, andava extasiadamente
pelas sagas, todo enlevado no amor ideal de Carlota, pôs-se a compor
um poema como o de Tristão. E, para que nada lhe perturbasse o doce
sonho, nem a visão, nem o ruído, voltou-se para a parede fugindo
ao real para isolar-se no imaginário. Estava ali como o valente guerreiro
depois da luta tremenda com Morolt. A dor que sentia não era a de um
abcesso que se ia formando, senão a de uma ferida ganha no estupendo
duelo em que se empenhara com o monstro, mas, dentro em pouco, ela surgiria
com o bálsamo paregórico, ela, a divina Isolda, Isolda cuja
voz abrandava a cólera das vagas, Isolda que fizera, com temeridade,
com que ele aparelhasse uma nau e saísse ao mar afrontando tormentas
e a desigual peleja com o gigante que era o terror e o flagelo da Irlanda.

Era tão suave aquele idílio espiritual que operava como um
sedativo. As dores iam cedendo e ele sentia um bem estar geral de corpo e
de alma enquanto devaneava, fugindo à realidade. Mas o romancista reapareceu,
esfregando a cabeça desesperadamente:

— Estás melhor?

— Ora! Pensas então que isto vai assim? Olha o cordão
linfático; voltou-se e, arregaçando a manga da camisa, mostrou
o braço nu, empolado e rubro.

— Ó diabo! — exclamou Ruy Vaz. Isso até parece
aneurisma. E deu-se mais pressa em vestir-se, impressionado com o que vira.

— Falaste lá dentro?

— A pequena saiu com o pai. Está lá a velha, a Babel,
confundindo línguas e cerzindo meias. N&atiatilde;o falei, porque estou
certo de que pioravas se aquela nixe viesse fazer-te companhia. Bem, agora
fica tranqüilo um instante enquanto vou, num pulo, À Rua da Glória
ver o Teixeira. Acendeu um cigarro e, da porta quarto, perguntou à
meia voz: Tens dinheiro?

— Nada… E tu?

— Ora! Isso é que é o diabo. Tu não podes ficar
sem remédios e inanido. Como há de ser? Também para perder
o dia na cidade à caça de uns cinco ou seis mil réis
magros e tu aqui abandonado não me parece razoável.

— Olha, leva o meu Musset ao Cunha.

— Quanto pode dar o Musset?

— Não sei. Se queres leva também Os Miseráveis.

— Acho melhor. E que queres da cidade?

— Cigarros.

— Não, para o estômago.

— Sei lá! Não tenho apetite. Traze café.

— Bem, mas o essencial é o médico. Até já.

Ruy Vaz foi à estante de Anselmo, tomou os dois poetas, fez um embrulho
e partiu.

Só, o enfermo tornou ao sonho, mas não com a mesma tranqüilidade
nem com o mesmo gozo, porque outra visão surgia, por vezes, fazendo
desaparecer a meiga Isolda: era o casal unido dos velhinhos: ele morto, ela
longe!… Ah! Se eles o vissem naquela extremidade, em tamanho abandono, sem
ter à cabeceira uma pessoa amiga que dele cuidasse, que lhe refizesse
o leito, que lhe chegasse aos lábios escaldados o copo de água
fresca, que pensasse na hora dos remédios, que lhe preparasse a dieta!
Entanto a mãe, sempre que praticava a caridade, dizia: “Deixem-me
dar aos que precisam… Tenho um filho, não sei que há de ser
dele neste mundo… Assim, se ele, algum dia, tiver fome ou frio, Deus há
de deparar-lhe alguém que lhe faça o mesmo que agora faço”…
E ele ali estava sozinho, talvez perto da morte, sem uma pessoa que lhe pusesse
na mão a vela que ilumina a sombra derradeira, sem uma pessoa que lhe
ouvisse a última palavra, só, numa casa estranha, entre gente
estranha.

E julgava-se vítima da injustiça dos homens. Sentia que não
era um nulo, tinha grande confiança no seu espírito e como que
pasmava de que o não julgassem como merecia. As idéias fervilhavam-lhe
no cérebro. Ali mesmo, sob aquela formidável pressão
moral, moral, sentia-se como um gênio e via as suas “criações”
desfilarem aereamente, vindo de todos os lados, baixando do teto, surgindo
dos cantos, saltando das paredes e ouvia um sussurro de vozes à distância,
mas tudo se desfazia, sumia-se. Tornava ao real, com a sensação
de alívio de quem atravessa um túnel e, depois da asfixia subterrânea,
ganha, de novo, o pleno ar, a luz dos campos.

Voltou-se no leito doridamente. Um relógio soou. Que horas seriam?
A sede começava a abrasá-lo. Passando a língua pelos
lábios sentiu-os secos, gretados. Ergueu-se com sacrifício,
o braço encolhido, encheu o copo e bebeu avidamente, conservando-se
um de pé, defronte do espelho, a mirar-se.

Achou-se desfigurado, muito pálido, os olhos cavados, o cabelo crescido
e hirsuto; apalpou as pomas das faces passou a mão pela fronte derreando
o cabelo e, lentamente, tornou ao leito, mas uma sinistra idéia no
espírito.

Estirando-se, passou e repassou a mão pelos ossos das pernas, moveu
a rótula, abarcou as coxas, tomou entre dois dedos o ápice dos
ilíacos, depois, de uma a uma, as costelas, tocou os ossos da face
e das têmporas, circulou as órbitas afundando o indicador, por
fim pôs-se a arrepelar o couro cabeludo como se quisesse sentir todo
o esqueleto.

Era a morte — ela ali estava, debaixo daquela camada de carne que mal
a encobria. Teve medo, sentou-se no leito lançando olhares vagos, procurando
ouvir rumores, num grande e ansioso desejo de viver. E como que lhe ia faltando
o ar, o ambiente refazia-se. Ergueu-se, atafulhou os pés nas chinelas
e saiu para a sala.

A luz reanimou-o, respirou largamente, livremente e lançou os olhos
às estantes procurando um livro, mas bateram à porta. O coração
teve um sobressalto, e, comovido, ergueu-se da cadeira onde se havia deixado
cair e, pé ante pé, sutilmente, encaminhou-se para o parto;
deitou-se e cobriu-se. Bateram de novo, falou então:

— Entre.

Era Carlota. Não o vendo na sala, a menina deteve-se perguntando:
Se podia entrar.

— Entre, miss. Estou de cama.

— Está doente?! — exclamou ela penalizada.

— Bem doente.

— Que tem?

— Não sei Meu companheiro foi chamar um médico. Entre.

— Ela atreveu-se, vagarosamente, como em receio: vendo-o, porém,
deitado, acreditou avançando então até o leito impressionada.
Estava mais linda que nunca. Os cabelos brilhavam-lhe como se neles houvesse
um pouco do sol que andava lá fora dourando as árvores; os olhos
pareciam mais azuis, os lábios tinham mais cor e evolava-se-lhe um
tal perfume do corpo que, mesmo à distância como ficara, lá
chegava ao enfermo beneficamente o delicioso aroma. Olharam-se algum tempo.
Ele esteve para falar-lhe do seu amor, propondo desposá-la, mas o ar
sereno, frio, indiferente da jovem desconcertou-o.

— Tem febre?

— Muita, miss.

— Mas o médico vem, não é?

— Vem. Meu companheiro foi buscá-lo.

— Então… sorriu e disse, com um leve acento: Não há
perigo. Se o senhor fosse estrangeiro, isso sim! Mas brasileiro, não
há perigo. Com licença.

— Pois não, miss.

Saiu para a sala. Anselmo ouvia desvanecidamente o roçar leve da vassoura
e o farfalho dos papéis varridos, depois as cadeiras arrastadas e as
surdas pancadas do espanador nos móveis, até que ela apareceu
de novo à porta do quarto:

— Dá licença?

— Pois não.

Tomou a bacia, despejou-a no balde, segurou-o pela alça e, com o jarro
na outra mão, saiu em passos leves. Outra vez só, ele empenhou-se
em uma luta íntima dialogando com um outro eu prudente e covarde que
lhe abrandava e arrefecia os estos passionais.

“Ora! Que tem? Falo, digo-lhe a verdade: não pode zangar-se.
Que mal há nisso? Se fosse uma proposta infame, mas… dizer-lhe que
a amo muito e muito, consultá-la antes de pedi-la ao pai?” “E
se ela revoltar-se?” “Revoltar-se por quê?” “Mas
admitamos que se revolte…” “Não há razão
para isso…” “Ora, não há razão… Não
é em um quarto de um leito, que um homem faz propostas de casamento
a uma menina… “Mas se eu estou doente…” “Espere. Não
é decente. Não é correto…” “Correto… pois
falo…! Que pode acontecer? Se ela tomar a mal e queixar-se ao pai, digo
tudo, caso e está acabado…” “Pois sim…” “Pois
sim mesmo…”

Mas o balde tilintou no corredor.

— Dá licença?

— Pois não, miss.

E Carlota entrou, pôs em ordem o lavatório, substituiu a toalha
e, enquanto, de costas, fazia, às pressas, a cama de Ruy Vaz, Anselmo,
com os olhos nas tranças louras, dialogava com o outro eu tímido
e vitorioso:

“Então? Por que não lhe falas agora? Fala!…” “Falo
mesmo…” Mas não ousou sair do silêncio e foi Carlota quem
o quebrou:

— E o senhor não come?

— Não sei ainda, miss; se o médico permitir..

— Pois sim. Nós podemos arranjar alguma coisa, não será
bem feita, mas como o senhor não pode sair…

— Muito obrigado.

A campainha tiniu e soaram passos fortes no corredor da entrada.

— Parece que está aí o seu companheiro com o doutor.
Bem, então, se precisar alguma coisa..

— Sim, miss.

— Até logo… Estimo as suas melhoras.

— Miss… sussurrou o enfermo, mas era tarde. Ruy Vaz bradava do corredor:

— Então! Como vamos? Oh! Miss…

— Diabo! Justamente quando eu ia dizer-lhe tudo!

O Teixeira, médico e filósofo, era um belo homem, moreno e
atarracado, de espessos bigodes negros, olhos vivos, gestos largos. Entrou
descerimoniosamente, pisando forte e Anselmo, que mal o conhecia, sentou-se
para recebê-lo.

— À vontade. Então que há?

Ruy Vaz apareceu com uma cadeira, mas o médico já se havia
sentado à beira da cama, enquanto Anselmo arregaçava lentamente
a manga para mostrar-lhe o braço. Ele curvou-se e examinou com cuidado,
tocando o cordão que cedia molemente ao tato.

— Dói?

— Muito, doutor!

— É a primeira vez que tem isto?

— Não senhor; tive em criança, mas não assim com
esta violência.

— Neste mesmo braço?

— Sim senhor.

— Teve febre?

— Tive.

Tomou o pulso e ficou um instante atento; depois, voltando-se para Ruy Vaz,
que se conservava de pé junto ao leito:

— Tem ainda alguma, mas pouca. Isto não tem valor. Vou fazer
uma receita. Levantou-se e, enquanto lavava as mãos, perguntou: Também
é poeta?

— Não, senhor: estudo Direito.

— Qual estuda! — contrariou Ruy Vaz. Abandonou a academia no
terceiro ano para fazer literatura. É mais um para a fome.

O médico meneou com a cabeça e esticou o beiço desanimadamente:

— Ah! Meu amigo, a literatura, entre nós, não dá
para o charuto. O nosso povo não lê por indiferença e
por indolência, nem tem ainda o espírito preparado para compreender
a obra da Arte. O que ele quer, por enquanto, é o maravilhoso: está
ainda no período infantil do deslumbramento. Quais são os romances
preferidos? São os de complicado enredo, os magnificentes, os emaranhados
que não passam de ampliações de contos de fadas para
crianças grandes. Não há ainda o critério estético;
não sei se posso dizer assim. O leitor não se preocupa com a
substância nem com a forma; a inverossimilhança é o seu
ideal, quanto mais irreal melhor. Dê o senhor a um homem um bom estudo
de caracteres e uma fábula bem lantejoulada que ele não hesitará
um momento. Se os senhores quisessem tentar o gênero Ponson, isso sim…
mas psicologias… hum! Voltou-se para Ruy Vaz, caramunhando: Agora, eu te
digo: também não vou muito com as tais psicologias. A ciência
tem o seu lugar no real; o romance faz-se de sonhos e, até para o equilíbrio
intelectual, acha necessária a discriminação —
a cada um o que lhe cabe: ao sábio, a investigação; ao
poeta, a fantasia. Cada macaco no seu galho. Eu, por exemplo, depois de um
livro científico gosto de repousar em uma página de Dumas ou
de Mery, como depois de umas horas de trabalho no meu gabinete, sinto-me bem
no meu jardim, olhando as flores, ao fresco da tarde. É um alívio.
Não posso com as tais psicologias, são quase sempre falsas —
os autores não estudam caracteres, fazem-nos para as situações
que imaginam. Há coisas absurdas… Por exemplo… Ia demonstrar a
existência das “coisas absurdas”, mas Ruy Vaz puxou-o pela
manga do casaco:

— Não; tem paciência: vem receitar primeiro. Quando começas
com a literatura, não te lembras de mais nada. Ainda, que o rapaz está
aí que não pode.

— Espera, homem; pediu o médico pachorrentamente.

— Não, temos muito tempo, receita primeiro.

— Não há pressa; já estou melhor, disse Anselmo.

— Isso não é nada. Levantou-se, deu um puxão ao
colete e, coçando o pescoço, com a cabeça derreada, repetiu:
Pois é isto: no Brasil ninguém Vive de letras, isto é
um país sem tradição, sem fastos. Quer saber? O Brasil
começou escravo, ganhou a liberdade e fez-se traficante e comboieiro,
depois atirou-se a um balcão de negócio, não teve tempo
de aprender a ler: é um analfabeto milionário. É possível
que os netos venham a interessar-se pelas coisas intelectuais, mas por enquanto,
meu amigo, só há uma preocupação — o café.
Qual é o homem de letras que, entre nós, vive exclusivamente
da pena? Qual é? Nenhum…

— Mas vem receitar, homem! — insistiu Ruy Vaz.

— Já vou. Nenhum… E não é por falta de talento,
aqui há tanto talento como em França, ou mais! Confirmou atirando
um gesto violento: Ou mais! O senhor vê por aí rapazolas, sem
exame de português, fazendo versos que espantam. Meu sobrinho, o Alceu…
tu conheces, Ruy… é um menino! Tem quatorze anos… pois escreve
poesias que admiram. Aquela que ele publicou, a propósito do 28 de
Setembro. Cravou os olhos em Ruy Vaz. Não te recordas…?

— Sim, sim…

Não satisfeito com a afirmação do romancista, o médico,
unindo o polegar e o índex, numa voz melíflua, pôs-se
a recitar pausadamente, balançando o corpo, fazendo sentir as rimas:

Salve! emérito visconde Que hoje nos meus versos lembro, Pai dessa
lei de Setembro Que os ventres santificou, Salve! herói…

E por aí vai. Não te lembras? Vai agora fazer exame de português.
É o que eu digo: no Brasil há talento de sobra… Encaminhou-se
para o lavatório e pôs-se a remexer como se procurasse alguma
coisa.

— Que queres?

— Vocês não têm por aí uma tesourinha de
unhas?

— Tem cá fora.

— Pois é como eu digo. Forme-se, o senhor está no terceiro
ano, pouco falta; forme-se, tire o seu diploma e depois, nas horas vagas,
escreva o seu soneto, a sua quadra, mas ouça a palavra de um experimentado:
não queira viver de literatura: o verso não paga a casa nem
corre no armazém. Olhe o Alceu… Eu acho que ele tem talento, mas
estou sempre a dizer ao pai: “Acaba com essa mania do pequeno enquanto
é tempo, antes que se torne um vício, porque depois, meu amigo…”
Mas não, acham graça… Dá em poeta e hão de ver
o bonito. Vamos lá à receita.

— Ora graças a Deus! — exclamou Ruy Vaz.

— Homem, deixa-me prosar um bocado, também não é
só Medicina. Isto não é nada. Amanhã está
pronto. Vem uma pomada e uma poção para tomar aos cálices.
Amanhã ou depois está pronto.

— E se eu piorar, doutor?

— Qual piorar! Isto não é nada. Em todo o caso, amanhã
dou um pulo aqui… e trago-lhe os versos do Alceu, quero a sua opinião.
O pequeno tem jeito, vai ver. Versos no gênero dos de Castro Alves,
sabe? E recitou soturnamente:

É a hora das epopéias, Das ilíadas reais…

Conhece? Pois amanhã trago-lhe os versos. Mas nada disso, nada disso:
forme-se primeiro, tire a sua carta e depois publique quantas poesias quiser.
Antes disso, nada. Noutro tom: É bom conservar-se na cama, ouviu…?
Coma pouco e tenha o braço em repouso. Vou fazer a receita. Consultou
o relógio: O diabo! Que é do papel?

— Cá fora.

— Tenho de ir ainda a Laranjeiras. Saiu para a sala e, pouco depois,
tornou com o chapéu e o guarda-chuva: Até amanhã; eu
passo aqui. Tem ainda febre, mas pouca… Vêm também umas cápsulas
de quinino. Isto não é nada. Pode tomar o seu leite, pode comer
o seu bifezinho com batatas e… forme-se, aceite o meu conselho, depois de
formado, então, faça o que lhe der na cabeça. Até
amanhã. Se houver alguma novidade mande-me um recado à casa.

— Obrigado, Teixeira! — disse Ruy Vaz acompanhando-o.

— Ora, obrigado… Quando sai o teu livro?

— Não sei ainda.

— Tu é que vais vivendo, hem?

— Pois não.

— Adeus! Vou ainda a Laranjeiras. Até amanhã.

— Até amanhã.

— Que homem gárrulo! — exclamou Anselmo vendo Ruy Vaz
aparecer com a receita.

— É extraordinário! Esse Teixeira é tudo: filósofo,
músico, político, poeta… O tal menino Alceu de que ele falou,
que é um tipo acabado de cretino, é o seu testa de ferro. Quando
o Teixeira quer impingir alguma das suas composições, apela
para o pequeno. Eu conheço-o! Durante a minha moléstia ouvi
todo um drama do menino Alceu. É um caso!

Oito dias depois Anselmo estava restabelecido, mas não pôde
gozar a delícia da convalescença, porque o alemão rosnava
pelo corredor, achando longa a demora do pagamento. Carlota, carrancuda, fazia
a limpeza dos aposentos sem pronunciar palavra Estavam, de novo, sitiados.
Uma manhã, muito cedo, Ruy Vaz levantou-se e começou a vestir-se
apressadamente.

— Onde vais tão cedo, homem?

— Vou tomar banho. Estamos aqui, como Paris em 70: sitiados pela Alemanha.
Sempre que vou ao banheiro o alemão agarra-me e pede-me, numa língua
medonha, o mês da casa, porque estamos quase com o segundo vencido.
Não estou para isso. Vou tomar o meu banho por ai, descansadamente,
num banheiro magnífico.

— Onde?

— Por aí. Que diabo! O que não falta são casas
vazias.

— Sim… E depois?!

— Como depois? Pois não percebes?! Levo daqui a toalha, o sabonete
e o pente, peço a chave para ver a casa, tranco-me, corro ao banheiro,
regalo-me, torno à venda, entrego a chave, tomo informações
sobre o senhorio e aí está. Queres vir?

— Vou. Também não tenho coragem de falar ao alemão
e coro diante de Carlota. Saíram.

A vida, porém, tornava-se cada vez mais apertada e difícil.
Para não encontrarem o alemão, entravam tarde, pé ante
pé, e saíam cedo. Ruy Vaz, por fim, extenuado, instalou-se no
palacete do visconde de Montenegro, retirando, a pouco e pouco, os livros,
os quadros flamengos, A Barricada e outros pequenos objetos. Anselmo, só,
ia curtindo a fome.

Uma noite, muito enfraquecido, pôs-se a procurar nas estantes desfalcadas
alguns livros que lhe pudessem dar qualquer coisa: só restavam romances
e alguns poetas ingleses. Lembrou-se, então, da caixa de música…
Se a empenhasse? Estava perfeita, podia dar dinheiro — tomou-lhe o peso,
era grande, mas como tinha um níquel, podia levá-la no bonde
até à rua Gonçalves Dias e dali, nos braços, à
casa de penhores. Decidiu-se e, não ouvindo rumor na casa, estando
a família à mesa, saiu, pé ante pé, com o precioso
fardo e, alcançando a rua, apressou o passo receoso de que o vissem.

Na cidade correu imediatamente à travessa de S. Francisco, embarafustou
por um dos compartimentos e, repousando a caixa de música, propôs
o penhor por três meses. O homem, muito sisudo, fez um momo rosnando:
Que aquilo não valia a pena.

— Está perfeita?

— Pois não.

Ele pôs-se a examinar, deu corda. As molas perras rangeram, mas o cilindro
girou e a ária da Jolie parfumeuse tilintou alegremente naquele canto
mal alumiado. No cubículo contíguo uma velha resmungava.

Anselmo teve uma grande emoção ouvindo aquela ária alegre
que lhe recordava os doces tempos da vida tranqüila, no seio da família.
As noites calmas, quando o velho pai, estirado no canapé, enquanto
a mamãe cosia à luz do lampião de querosene e o gato
resbunava pela sala, mandava vir a caixa de música e adormecia ouvindo
as peças que se sucediam vivamente: Les Porcheron… Ainda… Ó
doce tempo!

O homem teve de perguntar duas vezes:

— Quanto quer?

O estudante, com os olhos úmidos, andava pelo passado, revendo a ventura
para o sempre perdida.

— Quanto quer?

— Veja quanto me pode dar.

— Eu não costumo receber estas coisas… Enfim: vinte e cinco
mil réis, serve?

Ele sentiu um sobressalto, mas emendou:

— Trinta.

— Não; mesmo ela precisa de uma limpeza em regra. Vinte e cinco.

— Vá lá…

O homem encheu a cautela entregando-a a Anselmo com o dinheiro depois de
lhe haver apresentado à assinatura um livro.

Saindo para a noite alegre, fresca e estrelada, procurou imediatamente um
hotel e repastou-se, suando copiosamente, seguindo para o teatro saciado e
feliz. Representava-se a mesma mágica em que Amélia aparecia,
de fada. Foi vê-la à caixa e houve um longo idílio —
ela muito queixosa, ele inventando explicações. Vendo o Heller
pediu notícia de A Profecia. O empresário nem se lembrava da
peça que tinha tal título e foi necessário insistir para
que ele exclamasse:

— Ah! Sim. Há de ir… há de ir…

— A peça tem elementos, senhor Heller.

— Pois não: há de agradar, com uma boa música.
Mas, de cabeça erguida, pôs-se a bradar: Olhem essas bambolinas!

Saindo, encontrou o Pedroso, seu antigo condiscípulo. Houve uma cena
efusiva. O Pedroso arrastou-o para uma mesa, mandou vir cerveja e, bebendo,
falaram dos destinos que haviam seguido. O Pedroso era professor, lecionava
Português, Aritmética e Geografia. Estava em Catumbi com o irmão
e um companheiro. Vivia bem, era feliz. Anselmo explicou os seus infortúnios
e o outro, muito franco, ofereceu-lhe a casa, podia ficar com ele até
achar colocação — era uma boemia, mas vivia-se. Anselmo
encolheu os ombros. Ao fim do espetáculo, despedindo-se de Pedroso,
foi para a Maison Moderne esperar Amélia. A atriz apareceu e Anselmo
foi-lhe ao encontro.

— Vem cear comigo.

— Não posso.

— Por quê?

— Se me tivesses falado mais cedo…

— Com quem estás?

— Com uma besta que me persegue há mais de um mês. Queres
amanhã?

— Não.

— Então quando?

— Nunca mais! Boa noite.

— Estás zangado?

Ele não respondeu — seguiu muito firme, indignado com o procedimento
daquela mulher que fora, a bem dizer, a causa da sua infelicidade. No corredor,
ouviu a voz roufenha do Neiva e as gargalhadas do Lins que ceavam no jardim,
ao ar livre. Retrocedeu, não estava disposto para a troça, sentia-se
acabrunhado, queria o isolamento, o silêncio, a noite larga e muda.
Saiu. Soprava uma viração suavíssima, mas era grande
o tumulto de gente e de veículos. Luziam lanternas, um grande borborinho
atroava a praça, as luzes dos botequins e das brasseries assoalhavam
as calçadas.

Um homem passou por ele cantando; longe trilavam apitos e, à porta
do Coblenz, um rapazola embriagado, com o chapéu à nuca, a bengala
erguida ameaçadoramente, cambaleava.

Anselmo sentia-se fatigado, mas não tinha ânimo de recolher-se
à casa, lembrando-se do alemão. Que lhe havia de dizer de manhã
quando ele lhe batesse à porta do quarto? E Carlota?

No largo de S. Francisco ouviu o relógio da torre bater uma hora.
Deteve-se indeciso. Por fim, resoluto, encaminhou-se para o Ravot. Dormiria
no hotel e, de manhã, escreveria ao alemão “deixando-lhe
os móveis em pagamento, pedindo apenas que lhe mandasse, pelo portador,
os livros e a mala de roupa”.

Subindo a escada do hotel lembrou-se do oferecimento do Pedroso. Iria morar
com ele até arranjar alguma coisa… O criado levou-o por um longo
corredor escuro. Num quarto aberto uma mulher, em camisa, estirada na cama,
com uma perna nua pendente, fumava voltada para a porta; e havia gargalhadas,
vultos brancos passavam ao fundo.

Quando o criado mostrou-lhe o quarto, entrou, despiu-se e, diante da cama
estreita, à luz minguada da vela, que ardia tristemente, interrogou-se
de novo: “Mas que havia de fazer?” e, de um jato, acudiu-lhe ao
espírito o plano da sua grande obra: uma série de romances nacionais
que começasse no descobrimento do Brasil e terminasse… faltava-lhe
o grande final, a luminosa apoteose.

Via a terra virgem, as galeras, a grande cruz da primeira missa, a gente
selvagem e a maruja belicosa da Lusitânia. Via o explorador varejando
os sertões, via as missões, depois as bandeiras ávidas
e as guerras de disputa ensangüentando a Pátria; os picões
de Holanda e da França e as naves portuguesas, as igaras tamoias, o
tráfico africano; depois as cidades suplantando as florestas, o ouro
e os diamantes atraindo aos sertões o mundo ambicioso e os primeiros
mártires e a primeira corte. Depois os heróis da independência
e o primeiro imperador e o segundo e os dias modernos… Mas como acabar?
Onde o grande episódio…?

Acendeu um cigarro, deitou-se e, soprando a vela, ficou ainda tempo pensando
no último volume dessa grande série sem, entretanto, achar o
final que a pudesse encerrar com uma apoteose magnífica.

Capítulo XI

Três dias depois, realizando o que havia imaginado, Anselmo instalava-se
em casa de Pedroso. O professor recebeu-o com alegria e, como ele levava apenas
a canastra e alguns livros, tendo deixado o mais com o alemão, não
houve necessidade de modificar a disposição móveis, que
eram poucos. Viviam na pequena casa, além de Pedroso, o macambúzio
Alfredo que, sendo irmão do professor, parecia-se tanto com ele como
com o terceiro, um hóspede, o Raul, rapaz de vinte anos, que era uma
montanha de carne. Com uma decidida vocação para o teatro estreara,
aos dezoito anos, na Fênix Dramática, com o Galvão, fazendo
pequenos papéis com discrição e suor à ufa.

Lembrava-se, com orgulho, de um “salteador” que interpretara com
tanto talento que o empresário, depois da primeira récita, para
animá-lo, disse:

— Raul, não fosse a tua corpulência e irias longe no teatro,
mas assim, filho, com tanta enxúndia, cansas depressa.

Efetivamente cansou; ou antes: desanimou. A gordura caminhava com tamanha
pressa pandeando-lhe o ventre, enchendo-lhe as coxas e os braços que,
se uma peça lograva fazer carreira, à vigésima representação
Raul era forçado a recorrer ao alfaiate para que lhe alargasse as roupas.
Retirado do teatro, com o qual o toucinho o incompatibilizara, vivia melancolicamente,
engordando e recitando monólogos pela casa, quando não ia para
a cozinha aguar o ensopado ou salgar a sopa.

Mas a alma era grande e, não raro, rebentava-lhe dos olhos em ternura
lacrimosa ou expluia-lhe do peito largo em suspiros estéticos sobre
algum papel tonitroante de tirano, em peça truculenta. Sentia-se-lhe
na melancolia do olhar a nuvem de um pensamento triste que se poderia traduzir
livremente nesta lamentação: “Que grande artista se perde
neste jacá de toucinho…” Em verdade, era um jacá e atochado.

Pedroso conhecera o Raul na caixa da Fênix, quando por lá andara
enamoradamente, com grandes ramos de rosas, seguindo os passos de uma atriz.
O professor tinha também certa “queda” para o palco. Não
fossem delicados escrúpulos: a família, os alunos… e teria
aceitado um convite que lhe fez o Galvão no tempo do idílio,
mas o macambúzio Alfredo chamou-o à ordem salvando-o, em tempo,
de uma queda fatal no conceito do público e na comparsaria. Consolava-se
fazendo “galãs” em teatrinhos particulares. Era melífluo,
ajoelhava-se, com muita expressão, aos pés das damas, rente
da caixa do ponto para falar com segurança do seu amor. Alfredo era
circunspecto — estudava ciências exatas, não fumava, recolhia-se
muito cedo e evitava os olhares das mocinhas da vizinhança. Comiam
em casa: o Raul cozinhava por economia e, à mesa, os companheiros,
gratos, ouviam a história dos seus triunfos no teatro da rua da Ajuda.

Anselmo, posto que não tivesse os cômodos que sonhara, viveu
com certo conforto, dormindo à sombra do Raul que roncava como um vulcão.

Foi nesse homizio que ele fez os seus melhores estudos literários.
O Raul, que o admirava, ficando em casa enquanto os dois irmãos iam
explicar os substantivos e os teoremas, metia-se num canto com um maço
de comédias e lia, rindo às gargalhadas, enquanto Anselmo, de
papo para o ar, devorava Shakespeare, Dante, Ariosto e quantos poetas lhe
caíam nas mãos, por empréstimo, porque os seus livros
estavam lidos, relidos e vendidos.

À noite, às vezes, serenatas passavam pela rua silenciosa enfurecendo
os cães que investiam e Pedroso, sempre jocundo, abria as portas da
casa ao grupo ou seguia com ele a percorrer o bairro adormecido. Anselmo nem
sempre o acompanhava, preferia ficar preguiçosamente em casa lendo
ou palestrando.

Raramente descia à cidade. Refazia-se física e espiritualmente
preparando-se para o grande dia em que tencionava aparecer sobraçando
os originais do primeiro volume da grande série.

Os rapazes falavam do seu sumiço, faziam conjecturas e ele continuava
tranqüilamente os seus estudos.

Ruy Vaz, instalado definitivamente no palacete do visconde, engordava e tinha
quase concluído o seu romance. Um incidente, porém, alvoroçou
o estudante: o Alfredo, sempre taciturno, descobriu, uma manhã, na
fronha alva do travesseiro, uma mancha de sangue e, como houvesse na família
vários casos de tuberculose, ficou alarmado decidindo, desde logo,
mudar-se para o campo onde houvesse ar puro e árvores e, com precipitação,
não querendo dar tempo à moléstia, meteu-se num trem
e foi correr os subúrbios achando uma casa modesta, de feição
campestre, com muito terreno arborizado e uma cacimba, em Cascadura, numa
larga estrada quase deserta que levava aos montes.

A mudança foi feita num dia. Anselmo, à lembrança de
viver em tão arredado sítio, hesitou antes de permitir que a
sua canastra fosse despachada, mas Raul e Pedroso convenceram-no, falando-lhe
do silêncio do campo, propício à meditação
e ao estudo, bom ar saudável, da água excelente, dos saborosos
frutos e Anselmo deixou-se levar, não prometendo demorar-se porque
tencionava arranjar um lugar na imprensa que, ao menos, lhe desse para casa
e comida.

A casa era realmente pitoresca. Toda branca na verdura de um pomar e única
na estrada areenta onde andavam soltos carneiros, cabras e grandes cevados
grunhidores. Nas dimensões era um cacifro.

Raul reclamou contra as portas estreitas. Sempre prosperando em banhas, receava
que, uma manhã, acordando, fosse obrigado a demolir a parede do quarto
abrindo brecha para passar. Comiam em um hotelzinho, onde a gente da Estrada
de Ferro costumava fazer os seus regabofes. De manhã, saindo em grupo,
iam a um quiosque para o café. À noite dirigiam-se à
estação para conversar e viam chegar e partir os trens e, quando
os expressos silvavam, ao longe, paravam agarrados às colunas, com
os olhos além, até que, na grande sombra, luzia o olho imenso
da locomotiva, e vinha crescendo, crescendo, ouvia-se o rumor e o chiado,
e rápido, repentino, o comboio passava levantando um grande vento.
Mal se avistavam vultos brancos e lá ia ele curveteando, era uma luzinha
que fugia como um vaga-lume e desaparecia na sombra. Logo, porém, outro
comboio chegava lentamente, parando junto à estação,
à espera de passageiros e outro vinha da cidade, bufando. Saía
gente, a locomotiva, desengatada, parda veloz para a manobra no virador e
os empregados iam examinar os carros, batendo-lhes nos eixos. Na plataforma
iluminada reuniam-se rapazes, moças passeavam, e uma velha negra, aleijada,
cochilava a um canto diante de uma bandeja, apregoando, de instante a instante,
com uma voz triste, cocadinhas e balas. Anselmo achava aquilo hediondo.

A vida insípida e monótona enchia-o de tédio e desalentava-o.
Da manhã à noite era o mesmo, invariável espetáculo
da natureza campestre, a mesma vida de rusticidade. Se chegava à janela,
os olhos encontravam apenas a estrada larga e deserta, branca, escaldando
ao sol. De quando em quando, um homem que descia da sua roça, na vertente
dos morros, sozinho, cantando ou com a bestinha lenta carregada, ou negras
que tinham ido às compras e tornavam aos seus casebres com embrulhos,
o cachimbo nos beiços, descalças, levantando uma poeira fina
e dourada

E ali ficava horas e horas, sob a ardência da luz, bocejando, sonolento
e mole, ouvindo os silvos dos trens que passavam ao longe. Nos fundos, era
a larga e verde planície cultivada, dividida em hortas e quintais.
Laranjais de um verde forte e metálico, carregados de frutos, milhos
louros, canaviais que sussurravam num mar verde e irrequieto. Um cheiro forte
de seiva subia da terra morna. Aves andavam cacarejando e mariscando nos monturos
e a uniformidade da paisagem dava uma impressão fatigante à
vista, enfarada de arvoredo e de ervas rasas, onde não aparecia um
vulto humano, como se o mesmo sol fosse o único encarregado da lavoura
daquelas terras fecundas, que se estendiam dilatadamente perdendo-se num horizonte
azulado de montanhas.

Anselmo vivia vegetativamente como aquelas árvores fortes que ali
estavam agarradas à terra, sugando-a. Mas o que, em verdade, o prostrava
era, por assim dizer, a própria fecundidade. Justamente ele estava
como aquelas árvores, cujos ramos roçavam o solo vergados ao
peso dos frutos; sentia a inadiável necessidade de expansão,
o seu espírito começava a produzir exuberantemente, as idéias
caíam-lhe do bico da pena como caem dos galhos os frutos maduros, mas
a sua atividade espiritual, que se ia esperdiçando, dava-lhe grande
tristeza. Tarde, às vezes, não podendo conciliar o sono, enquanto
os companheiros dormiam, abria a janela à noite silenciosa e, debruçado
à mesa, lia e escrevia e, quanta vez o sol o encontrou absorvido na
leitura ou rematando páginas. Um dia resolveu descer. Não podia
mais com aquela vida amolentadora e estéril. Pedroso tentou dissuadi-lo
propondo-lhe alguns discípulos.

— Não, vou arranjar trabalho. Sinto-me morrer aqui. Esta inércia
acabrunha-me, não posso mais. Preciso trabalhar…

— Mas para onde vais?

— Não sei, hei de arranjar um jornal. Que diabo! É impossível
que não haja um lugar para mim. E que não haja! Aqui não
fico… não posso, apodreço!

Pedroso encolheu os ombros resignado e Anselmo, resmungando, foi vestir-se.

— Vais sem almoço?

— Vou.

— Almoça primeiro, homem.

— Não.

— Que coisa! Até parece que vais daqui ofendido. Houve alguma
coisa contigo?

— Não, nada.

— Então?

— Não posso com isto, Pedroso. Estou ficando neurastênico.
Há ocasiões em que tenho vontade de chorar.

— Por quê?

— Sei lá, à toa. É este silêncio, é
esta monotonia, é tudo isto que me enfeza, que me irrita. Demais, já
é tempo de começar a fazer alguma coisa. Se continuo aqui apodreço.
Preciso ir.

— Mas não vais zangado conosco?

— Zangado, por que? Vou para não morrer de tédio. Não
posso ficar aqui a olhar milhos que amadurecem e galinhas que chocam. Há
mais de seis meses que ando nesta vidinha lânguida de fainéant.
É tempo de reagir.

— E se não achares emprego?

Com grande confiança ele afirmou:

— Hei de achar!

— Mas vens dormir aqui?

— É possível.

— Bem. Já que insistes não quero contrariar-te. Mas a
quem vais falar?

— Ao Patrocínio.

— Já o conheces?

— De vista.

— Por que não arranjas uma apresentação?

— Qual apresentação! Vou e falo. Se me quiser aceitar,
muito bem; se não quiser, melhor.

— Qual! Tu tiveste algum aborrecimento, Anselmo.

— Não tive, palavra.

Raul, que acompanhara toda a cena sem intervir, sussurrou humildemente:

— Comigo não foi.

— Ó senhores, pelo amor de Deus, que mais querem vocês?
Estou aborrecido, mas é disto! E, avançando impetuosamente para
a porta, mostrou, num gesto largo, a paisagem quieta, ao sol, e as cabras
que iam lentamente com as crias ao longo da estrada deserta e sem sombra.
Isto é que me enfastia, é esta coisa reles… Preciso sair daqui,
senão estouro. É hediondo tudo isto. Hediondo!

O silvo de uma locomotiva atravessou os ares mornos. Anselmo tomou o chapéu:

— Adeus.

— Então até logo.

— Até logo.

— Não vais zangado?

— Não vou, homem.

— Palavra?

— Palavra. Adeus, Raul! E, tomando a bengala, como a casa distasse
muitos metros da estação, deitou a correr pela estrada poenta
ao sol dourado e quente da manhã gloriosa.

Capítulo XII

Chegando à cidade, ao influxo da grande vida, resfolegou desafogadamente.
Saía como de um balseiro ganhando a corrente impetuosa de caudaloso
rio que o levava para o além, no curso formidável e irredutível
das suas águas e seguiu com a multidão, no enxame fervilhante
dos que se encaminhavam pressurosos para o trabalho, à luz alegre de
um sol vivo de janeiro.

Para chegar mais depressa ao seu destino, tomou o primeiro bonde que descia,
cheio. Estava desconfiado, tímido como se entrasse em país estranho.
Parecia-lhe que comentavam a sua pessoa e pôs-se a evitar os olhares,
vexado. Devia ser por causa do cabelo muito crescido, que lhe chegava ao colarinho.
Passou a mão pela nuca disfarçadamente, mas ninguém lhe
prestava atenção E o bonde rodava rápido.

No largo de S. Francisco a multidão atarantou-o. Esperou que o povo
escoasse e seguiu atordoado para a rua do Ouvidor. No escritório da
Gazeta da Tarde, perguntando por Patrocínio, Um homenzinho magro, de
olhos miúdos, fez um aceno preguiçoso com a cabeça como
a dizer-lhe que subisse.

Empurrou a porta gradeada e passou, subindo à redação.
Um rapaz alto, vesgo, caído sobre a larga mesa central, consultava
uma coleção de jornais, outro revia notas, de pé diante
de uma secretária. Ambos voltaram-se ouvindo-lhe os passos.

— Senhor José do Patrocínio?

— Está ocupado, disse o vesgo. Quer alguma coisa da redação?

— Desejava falar com ele mesmo.

— Está escrevendo o artigo. Em todo o caso entre… É
ali ao fundo, uma salinha.

Agradeceu e encaminhou-se. Subiu dois degraus que levavam à salinha
indicada e deteve-se surpreso. O jornalista estava diante de uma pequena mesa,
terminando o almoço. No chão jazia uma lata aberta e, sobre
a mesa, ao lado dos pratos, a pasta, os livros, um maço de tiras, cigarros.
Dando com Anselmo, o jornalista passou rapidamente o guardanapo nos beiços
e, sorrindo, estendeu-lhe a mão.

— Ah! Meu amigo, desculpe-me. Estou hoje nos meus dias de trabalho,
nem tempo me sobra para almoçar… depois, nos hotéis perde-se
tanto tempo! Mandei vir isto e aqui, neste refúgio onde me escondo
dos cacetes, fiz o meu almoço. Derreou-se na cadeira de mola: Cesário!
Traze daí uma cadeira. Então, que há de novo? Como vamos
de versos?

— Não faço versos.

— Ah! Pois não… Pensa que não leio? Sei dividir o meu
tempo, meu amigo, também nem só de política vive o homem,
sentenciou. Também leio. Com licença. Levantou-se, impaciente,
foi à sala da redação e voltou com uma cadeira. Isto
aqui é assim. O meu criado sou eu. Sente-se. Ofereceu cigarros e, muito
amável, cruzando as pernas, tornou, desmanchando um cigarro:

— Então…? Que há de novo?

— Vim pedir-lhe um lugar na redação da Gazeta, se for
possível.

— Se for possível…? — exclamou.

— Posso escrever umas crônicas ligeiras, um ou outro artigo…

— Quê! Um ou outro…?! Você vem mas é substituir-me,
isto sim!… Eu mesmo preciso de um homem que me descanse porque, com essa
história do artigo diário, nem tempo me sobra para cuidar dos
interesses da folha. Chego de casa às oito da manhã e aqui fico
até às duas da tarde enchendo tiras e aturando um mundo de importunos.
Agora com você aqui a coisa vai ser outra… olá! Escrevo o artigo,
entrego-te a folha e vou cuidar da vida. Inclinou-se e, atraindo Anselmo,
disse-lhe, como em segredo: Isto é jornal para dar uma fortuna, mas
eu não posso fazer nada, estou preso… Tendo, porém, um homem
que queira trabalhar comigo, que queira trabalhar…! — repetiu arregalando
o. olhos e concluiu: fazemos fortuna! Você quer trabalhar?

— Quero.

— Pois vamos fazer uma folha. Quando começas?

— Amanhã.

— Está feito. Onde estás morando?

— Em Cascadura.

— Que é isso, homem de Deus!?

— Que quer? Tenho lutado com as maiores dificuldades. Estou lá
com amigos.

— Não, mas precisas descer.

— Vou ver um cômodo.

— E a questão do dinheiro? Anselmo sorriu dando de ombros. Não,
é essencial — um homem de talento como você precisa de
dinheiro. Eu, com o bolso vazio, sou incapaz de escrever uma linha. Isto de
fingir indiferença pelo dinheiro é esnobismo. Por enquanto não
te posso dar muito, mas… duzentos mil réis, servem?

— Perfeitamente.

— Vê lá!

— Perfeitamente.

— Bem, eu mesmo vou escrever a notícia da tua entrada para Gazeta.
Tu tens talento… Eu não me engano. Lembras-te daquela noite no Príncipe
Imperial?

— Dois dias depois da minha chegada de S. Paulo.

— Que discurso!

— Qual! Foi uma explosão de entusiasmo.

— Sim, uma explosão… Foi o melhor discurso da noite. Fiquei
assombrado, tanto que perguntei ao Sena quem eras e foi quem me apresentou.
Não te lembras?

— Lembro-me.

— Então? Tens muito talento. Vais fazer um carreirão.
O diabo é a Cascadura…

— Mudo-me.

Um rapaz apareceu à porta e Patrocínio, encarando-o, perguntou:

— Que é?

— O artigo…

— Tem muita pressa? Pois eu não tenho. Quando estiver pronto
irá. Olhe, leve daqui esta louça e diga lá ao Silva que
não me mande mais bifes como o que veio hoje. Tornou a Anselmo:

— Então amanhã…?

— Amanhã. A que horas…?

— Às nove. Basta que estejas aqui às nove.

— Muito bem. Então até amanhã. Levantou-se e o
jornalista, lançando-lhe os olhos à cabeça, perguntou:
Você fez algum voto?

Anselmo, compreendendo, disse:

— De pobreza.

— Que diabo! Parece que trazes contigo todas as matas dos subúrbios.
Corta esse cabelo. Estás sem dinheiro, não é? Anselmo
sorriu. Ah! Queres fazer cerimônia comigo? Estás arranjado. Tirou
do bolso uma nota e entregou-a a Anselmo sem olhar. Estamos então combinados:
amanhã…

— Às nove.

— Vou escrever a notícia e, com um forte aperto de mão:

— Vamos fazer uma fortuna!

— Até amanhã.

— Até amanhã. Olha o cabelo.

— Vou já ao cabeleireiro. E, com o coração aos
pulos, Anselmo desceu as escadas.

Fora, deteve-se algum tempo à porta, indeciso, vendo a gente subir
e descer na faina do trabalho ou lentamente, lançando olhares curiosos
às vitrinas, com grandes pausas, os desocupados que faziam a sua volta
elegante, com ostentação e garbo. Depois lançou-se à
rua, seguindo para um cabeleireiro. À entrada, porém vendo a
sala cheia, recuou tímido. Não tinha ânimo de sentar-se
diante de tanta gente, com uma viçosa cabeleira de nabi.

“Não, corto lá em cima…” disse descendo as escadas.
Logo à porta encontrou o Neiva com um rapaz moreno, ereto, muito grave
num terno que tinha todas as cores do íris e um chapéu branco
que começava a ser cinzento, gravata azul, salpicada de ouro, em grande
laço fofo que se derramava, com escândalo, sobre o peito, bengalão,
ou antes, cajado e sapatos fuscos. O ar era o de um diplomata, mas o terno…
O Neiva abriu os braços exclamando:

— Salve! Onde tens andado, homem de Deus?! Que é feito de ti?
Amélia anda inconsolável. Creio até que já se
cobriu com um crepe.

Anselmo contou a sua odisséia e o moreno, sempre firme como um poste,
enrolando um cigarro, perguntou:

— É o senhor Anselmo Ribas?

— Sim, senhor.

— Não se conhecem?! — exclamou o Neiva.

— Não.

— Ora! Pois então vamos ali ao Cailtau, quero fazer a apresentação
em regra.

Caminharam e, ao chegarem à escura confeitaria, o Neiva, batendo em
uma das mesas, encomendou três grogues. Sentou-se e, alongando o pescoço,
rompeu a rir com grande espanto dos dois rapazes.

— Que é? — perguntou o moreno.

— Que diabo têm vocês na cabeça?

O moreno estava nas mesmas condições em que se achava Anselmo:
as cabeleiras desafiavam-se.

— Eu só corto os cabelos no dia em que me empregar, porque então
poderei comprar um travesseiro.

— Pois eu vou cortar hoje a minha grenha, porque estou colocado. Podem
dispor de mim na Gazeta da Tarde.

— E de mim urbi et orbi, disse o moreno.

— Mas, que diabo, ainda não fiz a apresentação.
Este senhor que aqui está, açafroado e firme nos seus princípios,
é Fortúnio, de Maceió, poeta lírico em disponibilidade.
Morria de tédio na província quando, vendo um paquete prestes
a levantar ferro para o Rio, resolveu meter-se a bordo. Como sabe de cor todos
os versos que tem escrito, como Bias, não se preocupou com a bagagem.
Na Bahia comprou duas laranjas e, a bordo, nem ele sabe como (proteção
de Apollo Musagetes), nunca lhe pediram contas. Fez-se amigo de todos e, chegando
ao Faroux no bote de uma família, encaminhou-se para a rua do Ouvidor
com as duas laranjas.

— Que eram lindas! — exclamou o moreno.

— E vendeu-as no O braço de ouro por mil réis.

— E com esse dinheiro comecei a minha vida.

— E onde foste morar? — perguntou o Neiva.

— Na rua do Regente, com uns amigos de Alagoas.

— E ainda mora lá? — perguntou Anselmo.

— Não, agora não moro. As casas custam um horror.

— O senhor tem um soneto…?

— O Lenço. Já sei que vem falar do verso:

Pando, enfunado, côncavo de beijos…

— Justamente.

— É isso!… Tenho publicado não sei quantos sonetos
e só me falam desse…

— É belo!

— E o senhor? Que faz? Quando pretende publicar o seu volume?

— Quando Deus quiser.

Falavam quando Patrocínio apareceu afogueado, rindo. Dando com os
rapazes, arrastou uma cadeira e sentou-se à mesa, respirando cansado:

— Ah! E você ainda não deitou abaixo a floresta! —
disse vendo os cabelos de Anselmo.

— Parte, tornou o Neiva, o cabeleireiro disse que Roma não se
fez em um dia. Ele volta amanhã para concluir a derrubada.

Patrocínio sorveu um gole e, depondo o copo, disse recostando-se molemente:

— Leiam a Gazeta amanhã: Sansão faz a sua estréia.

Fortúnio, placidamente, alisando as calças, perguntou:

— Queres um soneto, José?

— Não, não quero… Este idiota…! Pois então
eu rejeito versos teus?

— Não sei.

— Dá cá o soneto, deixa-te de luxos.

— Vou escrevê-lo, espera. E, chamando o caixeiro, pediu uma folha
de papel, pena e tinta. Enquanto escrevia, Patrocínio dirigiu-se ao
Neiva:

— Se esses rapazes quisessem, que esplêndido jornal podíamos
nós agora fazer, hem? Imagina! Tu, com a direção da reportagem;
este, com a crônica literária; Fortúnio com a crônica
mundana e eu com o artigo e o noticiário.

— O noticiário! Tu? Estás louco! — exclamou o Neiva.

— Como louco?

— Pois és lá homem para fazer notícias, José?!

— Como não? Para mim são as duas coisas sérias
do jornal: o noticiário e a gerência. O artigo de fundo não
é mais do que uma grande notícia desenvolvida.

— De acordo, mas queres encher o jornal com artigos de fundo?

— Não, mas quero a notícia feita com talento. É
preciso que a local emocione. O público tem necessidade de choques
violentos. O melhor jornal é o que mais comove, isto é: o que
explora, com mais habilidade, o emocional. Queres ver? Lê o mesmo fato
em dois jornais. Aqui a coisa resumida e seca: “Estando ontem a trabalhar
no andaime do prédio em construção à rua tal,
número tantos, perdendo o equilíbrio veio abaixo o pedreiro
fulano, morrendo instantaneamente. O cadáver foi recolhido ao necrotério.”
Está aí tudo — o desastre, as conseqüências
do desastre, o destino que teve a vítima. Pensas que isso basta ao
leitor? Estás enganado. A notícia, para agradar, deve ser escrita
nestes termos. E, inclinando-se sobre a mesa, Patrocínio, passando
o dedo pelo mármore, como se escrevesse, exclamou: GRANDE DESASTRE!
em letras garrafais… Agora o caso, com todos os temperos:

“Quando, ao romper da manhã de ontem, fulano de tal, homem laborioso
e honesto, que só via Deus no céu e a família na terra,
saiu de casa contente pensando nos filhinhos que haviam ficado adormecidos,
mal podia suspeitar, o infeliz, que nunca mais tornaria àquele lar
e aos carinhos dos seus, porque a morte insidiosa já o esperava no
próprio posto do trabalho. A fatalidade…” — por aí
além, em tom patético. A descrição da queda com
uma onomatopéia para o bater do corpo na calçada, o esfacelamento
do crânio, os miolos salpicando os paus do andaime, os olhos esbugalhados.
Depois o necrotério, a chegada da viúva com os filhinhos, o
enterro, o luto e a miséria no lar. Finalmente, em remate, um comentário
sobre a fatalidade. Não imaginas como uma coisa dessas impressiona.

Fortúnio, que terminara o soneto, entregou-o a Patrocínio que
o leu alto, com entusiasmo, estendendo a mão espalmada ao poeta:

— Obrigado! Mas continuando: o jornal substitui a bema do Pnix e a
arena; se nele são discutidas as grandes questões sociais, nele
também devem aparecer as grandes cenas vibrantes. O povo é bárbaro
e, como não tem mais as lutas sangrentas, satisfaz-se com as descrições
trágicas: o assassínio de um homem, num canto de estrada, sendo
descrito com talento, agita mais a massa do que a notícia seca da derrota
de um exército. Mas os meninos não querem compreender assim,
entendem que o noticiário é humilhante e fazem cara quando se
lhes pede uma notícia. Pois serei eu o noticiarista. Deixem-me com
a gerência e com o noticiário que, em menos de um ano, ponho
aí um jornal como o New York Herald. Queres tomar conta da reportagem?

— Tomo.

— Palavra?

— Palavra, homem!

Mas um sujeito aproximou-se e chamou o jornalista à parte. Estiveram
algum tempo conversando, de pé. De repente o Neiva bramiu:

— Então, José!

— Já vou, espera um instante. Olha que essa despesa está
paga.

O Neiva voltou-se para Anselmo:

— Então vais trabalhar com o Zé do pato?

— Vou.

— Fazes bem. Ele é o hierofanta. Considero-o o primeiro homem
do Brasil. Sei que há outros mais eruditos: ele, porém, é
o mais fecundo, é o de maior cérebro. Dá-me a impressão
de uma selva virgem. É um espírito onde apenas trabalhou rudemente
o machado do lenhador. Os artigos dos outros que por aí há são
bem feitos alguns, outros detestáveis, sem bom senso e sem gramática,
mas eu refiro-me apenas aos que podem resistir à análise; têm
forma, mas não emocionam como os deste bruto. Posso chamar-lhe bruto
porque Esquinó chamava a Demóstenes — o monstro. Mas é
isto: os outros artigos são como a colheita de um campo intensivamente
cultivado, são paveias; os do José, não: são como
imensos jequitibás que vêm possantemente arrastados do fundo
da selva virgem. São colossos cheios de seiva que passam fragorosamente,
mas, dentre a folhagem verde, saem gorjeios de ninhos que vêm presos
aos ramos e pios de aves que voam acompanhando a árvore que era, por
assim dizer, a sua cidade. É a minha impressão.

Num artigo de José há imagens para vinte artigos. Ele não
trabalha com as dinamizações: é um nababo de matéria-prima.
Basta isto: a campanha abolicionista… Pois é um diabo que, há
não sei quantos anos, escreve sobre este tema: o senhor e o escravo
— sempre com uma imagem nova e magnífica de esplendor. Fere todos
os assuntos: entende de câmbio, discute a política internacional
e as filosofias, é católico e faz conferências sobre budismo;
farmacêutico, trava polêmicas sobre mecânica com os engenheiros,
dá planos estratégicos, escreve romances, sermões, panegíricos,
libelos, é eleitor e tem voz de barítono. Não é
um homem, é uma complicação genial. Para mim ele é
quem há de personificar a época tremenda que atravessamos. Desse
caos negro é que há de sair a luz. Se o José não
tivesse nascido no Brasil, se tivesse nascido em Paris, por exemplo, seria
uma celebridade universal. É um bruto! Garçom, outro grogue!
Você não bebe? Fortúnio estava triste, de olhos baixos.
Queres mais um grogue?

— Não. Vou comer uma empada.

— Ainda não almoçaste?

— Almocei ontem.

— Por que não disseste, homem? Eu tenho aqui.

— Também eu, disse Anselmo.

— Então jantarei. Antes, porém, vou tirar este peso da
consciência; e meteu os dedos pela gaforinha.

— Vamos juntos, convidou Anselmo.

— Ao mesmo cabeleireiro! — exclamou o Neiva. Vocês entulham
o salão.

— Uma empada, disse Fortúnio, em segredo, a um dos caixeiros.

— Vais comer empadas agora? Olha que perdes o apetite.

— Quem me dera! Ainda que o perdesse ele havia de voltar na manhã
seguinte, como o anel de Polícrates. Depois, eu tenho um vermute magnífico.

— Qual?

— A fome. Quem tem fome tem apetite.

— Bem, vamos sair. Que é do José?

Patrocínio havia desaparecido. O Neiva levantou-se justamente quando
o caixeiro entregava a Fortúnio uma empadinha espetada num palito.

— Agora tenham paciência; deixem-me comer em paz.

Os dois esperaram e, logo que o poeta mastigou o último bocado, encaminharam-se
para a porta: Fortúnio, sempre ereto, como se tivesse o rei na barriga,
quando tinha apenas um grogue e uma empadinha de tostão. O Neiva despediu-se.

— Perdão. Não te esqueças do meu almoço
de amanhã, disse o poeta.

— É verdade. Passou-lhe disfarçadamente uma nota e seguiu.

— Até logo!

— Até logo.

— Vais ao teatro?

— Pois onde hei de ir?

— A qual?

— A todos.

— Então encontramo-nos.

— Com certeza.

— Até logo!

— E nós agora? Vamos cortar as tranças.

— Sim, vamos. Temos ali na rua Gonçalves Dias.

— Não, nada de ostentação. Vamos à rua
7. Há um cabeleireiro que faz abatimento quando se corta em porção,
como nós. O diabo é que eu fico sem travesseiro. Enfim! E encaminharam-se
para a rua 7.

Jantaram juntos, no Renaissance, e, às sete horas da tarde, Fortúnio
seguiu para a rua de Riachuelo despedindo-se de Anselmo que ficou na cidade,
dissipando em livros, na rua de S. José, o dinheiro que lhe havia dado
o Patrocínio.

Capítulo XIII

Foi nessa noite que, por intermédio do Freitas, um satírico
baiano, ele conheceu Octavio Bivar. Desciam a rua do Ouvidor quando encontraram
o poeta diante de uma vitrina admirando os braceletes que faiscavam nos escrínios
de veludo. O Freitas atirou-lhe uma palmada ao ombro. O poeta voltou-se repentinamente,
espantado, dando, porém, com o amigo, tranqüilizou-se:

— Que fazes aí?

— Admiro. E tu, como vais?

— Bem. Conheces aqui o Anselmo?

— De nome.

— Este é o Bivar, o homem que ouve estrelas. Vamos tomar alguma
coisa.

— Podemos ir.

— No Deroche.

— Não, aquilo é impossível; não se pode
estar à vontade. Vamos ao Gambrinus, é uma bodega honesta e
desconhecida ainda.

— Na rua 7?

— Sim.

Dirigiram-se pausadamente para a cervejaria e, logo que se abancaram, o Freitas
atirou-se aos tremoços pedindo ao poeta que recitasse alguma coisa.
Bivar desculpou-se: andava atropelado, não tinha tempo para escrever
um verso, uma vida de cão, perse

guido por um senhorio inclemente. Podia recitar qualquer coisa antiga…

— Pois sim. O Julgamento de Frinéia, por exemplo. Conheces,
Anselmo?

— Não.

— Uma coisinha, disse o poeta, pigarrreando.

Voltou a cadeira, fincou o cotovelo na mesa, lançou um olhar pela
casa e, com os dedos enfeixados, disse solenemente, em tom profundo, balançando
o corpo:

Mnezarete — a divina e pálida Frinéia – Comparece ante
a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo. A
Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá
vida ao genial cinzel de Praxiteles, De Hiperides à voz e à
palheta de Apeles.

Os olhos imensos do poeta saltavam à flor do rosto e rolavam num êxtase
divino. Soerguia-se, como que uma força misteriosa o levantava, por
vezes, e a sua voz, cava e lenta, tinha um quer que fosse de profética
como se viesse de um ádito oracular. O Freitas, embevecido, dava com
a cabeça, cerrava os olhos e mastigava tremoços. Anselmo fitava
o poeta com admiração. Ao fundo da casa dois homens, em mangas
de camisa, falavam alto. O Freitas não se conteve, voltou-se com um
“psiu!” e os homens começaram a sussurrar — só
a voz do poeta rolava, profunda e grave, num turbilhão de rimas sonorosas.

— Admirável! — exclamou o Freitas quando o poeta, com
um gesto largo, repetiu as palavras de Hiperides, arrancando dos ombros da
hetera a túnica que lhe encobria o corpo maravilhoso:

“Pois condenai-a agora!”

Não ficaram, por certo, mais maravilhados do que os dois rapazes,
os velhos austeros do Areópago.

— Soberbo! — exclamou o Freitas reclamando mais cerveja. Anselmo
ficou algum tempo a olhar o poeta, sem dizer palavra, arroubado.

— Agora, o senhor: recite-nos alguma coisa.

— Isto não faz versos, disse, com desprezo, o Freitas. É
só prosa chilra.

— Faz muito bem. A prosa; se não tem a nobreza do verso, é
mais ampla; o pensamento move-se livremente no período sem os apertos
da métrica, sem a preocupação monótono da rima.
A prosa! A excelsa prosa! Não imagina como eu amo a prosa, acho-a até
mais difícil do que o verso. A prosa marmórea de um Flaubert,
de um Saint-Victor… oh!

— Preferes, então, a prosa ao verso?

— Prefiro.

— E por que não fazes, de preferência, prosa?

— Hei de fazê-la.

— Ora, qual!

— Hás de ver.

— Tu és poeta e hás de ser sempre poeta, quer queiras,
quer não.

— De acordo, mas poesia não quer dizer rima, poeta não
é o que faz estrofes. Há por aí muito animal que faz
versos impecáveis e que tem tanto de poeta como eu tenho de cantor
de árias. A estrofe é um excipiente, é um meio de expressão,
é a plástica. O sentimento é tudo.

— A propósito de poetas: disseram-me que assassinaste aquele
poeta que andava contigo?

— Que assassinei…!?

— Sim…

— Perdão… Eu conto o caso. Esse poeta, que era o meu algoz,
foi jantar comigo e comeu desbragadamente. Só havia um prato, mas abundante:
bacalhau. O homem empanturrou-se e, à sobremesa, que constou de uma
penca de bananas, recitou-me o famoso soneto: Dor! que termina por um terceto
abracadabrante:

Africana sem fim a marchar sem chapéu Cheia de mágoa e dor
a mãe tonitruosa Uiva como uma cobra através do escarcéu…

Quando ouvi tais coisas tive ímpetos de o esganar, confesso, mas contive-me,
fui prudente. O homem, porém, depois do jantar, acompanhou-me e quis
dormir comigo. Foi. Às duas da manhã acordou ávido, pedindo
água. Eu, que estava morto de sono, disse-lhe que não tinha
água no quarto. Ele uivou: “Que morria!” Para livrar-me do
monstro, disse-lhe, então: Vai ao banheiro, abre-o e bebe no chuveiro…
Disse e voltei-me para a parede recaindo no sono. De manhã o homenzinho
estava a estourar: arfava, urrava, vociferava:

Africana sem fim a marchar sem chapéu…

Foi transportado para a casa da família em carro e curou-se. Ainda,
depois disso, ouvi o soneto tremendo. Ele morreu depois, de uma febre. Era
hediondo!

Levantaram-se. A noite negra ameaçava.

— Parece que vem muita chuva. Parece.

— Vou já para casa, adeus! Vocês ficam ainda por aqui,
não?

— Ficamos, disse Anselmo. Com uma noite destas não me atrevo
a ir para a Cascadura.

— Está em Cascadura?

— Estou, mas desço amanhã. Não posso morar tão
longe trabalhando em um jornal da tarde. Entrei para a Gazeta.

— Ah!

— Bem, adeus, rapazes! — disse o Freitas.

— Adeus! E nós?

— Vamos dar uma volta por aí. Adoro esta cidade à noite.

Seguiram lentamente. Fulvos relâmpagos fremiam encandecendo o céu.
Raros transeuntes, pressentindo a tempestade, apressavam o andar. De espaço
a espaço uma rija lufada levantava colunas de poeira; batiam janelas
e rumores longínquos de trovões rolavam surdamente.

— Em que jornal trabalha? — perguntou Anselmo rompendo o silêncio.

— Eu? Não trabalho em jornais. Considero a imprensa uma indústria
intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de idéias
originais e retalha-as para o varejo do dia a dia. Quando vejo um poeta ou
um prosador a fazer notícias, tenho piedade. Que diria você se
encontrasse o Dalou, o grande Dalou, em casa de um marmorista da rua da Ajuda,
com um gorro de papel à cabeça, talhando, no mármore
industrial, anjos funéreos para as sepulturas de Catumbi? É
ignóbil! O jornalismo está para a Arte como um desses anjos
bojudos de cemitérios estão para o Laocoonte. Eu, se me metesse
a fazer notícias, enlouquecia. Sinto-me incapaz, a local aterra-me.
Tentei, uma vez, redigir a mais simples das notícias: um caso banal
de polícia. Pois, meu amigo, saiu-me um substancioso artigo político.
Quem pode compor um período perfeito numa sala de redação,
interrompendo-se, de instante a instante, para acudir à reclamação
de um sujeito que pede providências contra a falta d’água? É
hediondo!

— Pois eu vou trabalhar na Gazeta.

— Vai escrever crônicas…

— Não sei ainda.

— Não faça notícias; a notícia embota.
Ataque as instituições, desmantele a sociedade, conflagre o
país, excite os poderes públicos, revolte o comércio,
assanhe as indústrias, enfureça as classes operárias,
subleve os escravos, mas não escreva uma linha, uma palavra sobre notas
policiais, nem faça reclamos. Mantenha-se artista: nem escriba nem
camelote. Havemos de vencer, mas, para isto, é necessário que
não façamos concessões. O redator não quer saber
se temos ideais ou não: quer espremer. Quanto mais suco melhor. O prelo
é a moenda e lá se vai o cérebro, aos bocados, para repasto
do burguês imbecil e, no dia em que o grande industrial compreende que
nada mais pode extrair do desgraçado que lhe caiu nas mãos sonhando
com a glória literária, despede-o e lá vai o infeliz
bagaço acabar esquecidamente, minado pela tuberculose.

Um homem de talento que se mete em jornais suicida-se. Já se vê
que não me refiro aos agitadores da opinião, aos que fazem o
fluxo e o refluxo das marés sociais, esses não têm outro
campo senão o jornal. Os políticos que escrevem sobre a emoção
efêmera do momento não devem fazer livros. O livro fica, o jornal
passa e raramente deixa vestígio. O artigo do dia mata o artigo da
véspera, a opinião de hoje prevalece, a de ontem morre, mas
com o artista consciencioso, não. Demais, meu amigo, egoísmo
antes de tudo: o jornal é o redator político, o mais… que
vale? Fica-se sempre à sombra, por mais que se faça. Não
vale a pena. O trabalho de um ano no jornal não vale uma página
requintada de um livro de Arte.

— Mas que se há de fazer?

— Escreva livros.

— Para quê, se não há quem os edite?

— Escreva contos, fantasias, crônicas.

— Não pagam. Fazem ainda grande favor quando os publicam.

— Pois, meu amigo, que me venham pedir versos ou prosa de graça.
Quer saber? Os culpados da depreciação literária são
os próprios literatos: Alencar vendia os seus romances ao Garnier por
quatrocentos mil réis. Quantas edições tem O Guarani?
Está ainda na primeira e é conhecido em todo o Brasil. O editor
fez com o romance o milagre de Tiberíade: multiplicou-o. Se houvesse
fiscalização a coisa seria outra.

Chegaram ao largo do Rocio justamente quando caíam as primeiras gotas
grossas da chuva. O povo corria, metendo-se pelas casas. Tílburis passavam
à disparada e a chuva ruflava, tocada pelo vento áspero, que
atirava bátegas das lojas.

— Que tempo! — exclamou Bivar levantando a gola do casaco.

— Para onde vamos nós? Se fôssemos à Maison? Estamos
encharcados.

— Queres afrontar a rajada?

— Vamos.

— Então vamos.

Encolhidos, rente das casas, saltando sobre os jorros das gárgulas,
foram apressadamente até a rua da Carioca e detiveram-se na esquina,
indecisos, sem ânimo de atravessar a rua. Já pelas sarjetas rolavam
córregos grugrulhando nos ralos dos escoadouros. Relâmpagos flamejavam
e os trovões, mais próximos, reboavam num canhoneio incessante.

— Um! Dois!… E Bivar atirou-se, a grandes pernadas, atravessando
a rua seguido de Anselmo.

A Maison transbordava. Os dois, escorrendo, relanceavam olhares pesquisadores
quando ouviram um “psiu” e logo descobriram Patrocínio, num
grupo, a uma das mesas do centro.

— Eh! Cheguem-se ao Ararat.

— Ora! Apanhamos esta carga de água nas costas.

Eram do grupo o Lins, o Neiva, Ruy Vaz, o Duarte e um rapaz alto e claro,
de olhos miúdos e espessos bigodes negros, muito reluzentes; largo
feltro desabado escondia-lhe a fronte.

— Conhecem o Luiz Moraes? O grande poeta republicano? Anselmo Ribas,
Octavio Bivar.

O poeta dos grandes bigodes entendeu a mão aos rapazes e resmungou
uma amabilidade. Sentaram-se. Os caixeiros substituíam os copos e as
garrafas. Patrocínio estava com a palavra.

— Falávamos do jornal…

— Novos planos?

— Novos e verdadeiros. Dizia eu que se pudesse contar com todos vocês
faria o primeiro jornal da América do Sul. Com dois anos de trabalho
estávamos todos ricos, fretávamos um vapor e partíamos
para a Europa.

— E a abolição, José?

— A abolição está feita. E questão para
mais uns meses.

— Pois sim!

— Pois sim? Mas que há de fazer o governo constrangido, como
está, pela opinião pública? O Norte já se manifestou
e o Sul há de acompanhá-lo. Demais, meu amigo, o escravo já
não é um submisso, é um revoltado. Nas fazendas cada
negro é um combatente e o êxodo aí vem. Quando começar
o abandono da terra, não um a um, mas aos bandos, ostensivamente, em
face dos senhores que não hão de querer jogar a vida, que há
de fazer o governo? Mandar contra os que defendem um direito sagrado a tropa
armada? Não! E ainda que mande: conheço o exército, sei
que nenhum soldado se prestará a exercer o ofício miserável
de capitão-de-mato. A abolição é uma questão
vencida.

— Deus queira!

— Depois da abolição a república, rosnou Moraes.

— A república! — exclamou o Lins, assombrado.

— E por que não? A república, sim! — afirmou o
poeta assomado. Quer você que continuemos com um rei de burla e com
uma freira melomaníaca? Está enganado. Pego em armas, se for
preciso.

Ora, Luiz… ia a dizer o Neiva, contrariando o poeta; ele, porém,
atirou um murro à mesa e, erguendo-se, com os bigodes arrepiados, os
olhos fuzilantes, bufou:

— Pego em armas e em você também, pelo cós das
calças, está ouvindo? Em você mesmo!

Ruy Vaz interveio:

— Que é isto? Já vocês começam.

O Neiva levantou-se, distribuiu apertos de mão:

— Boa noite… boa noite. E encaminhou-se para a porta.

— Pois não! Este senhor entende que há de sempre impor
a sua opinião. Onde ele está ninguém mais fala. Pego
em armas! Que tem ele com isso? E se me aparecer pela frente, quando estiver
defendendo os direitos do Homem, prego-lhe uma bala no fígado.

— Mas Luiz…

— No fígado, já disse. Em política e em Arte sou
intransigente. Mas o Neiva voltou:

— Se não estivesse chovendo tanto eu mostrava. Sentou-se.

— Mostrava… mostrava o quê? Homem, você não me
aborreça.

— Mas quê é isto, gente…

— Ó Luiz, pelo amor de Deus, deixa-me em paz.

— Pois é isto! Não me contrarie. Tome a sua cerveja muito
quieto e deixe-me cá com as minhas idéias. Eu sou pior que Cimourdain.
Estendeu o braço sobre a mesa e, com uma voz cavernosa, disse: —
Prestigio a lei! Mas esta gente não estuda. Fala-se em evolução
e ficam todos embasbacados. Leiam Spencer.

Mas o Patrocínio conseguiu desviar a conversa para a literatura, e,
à meia noite, tendo cessado a chuva, quando se levantaram, o Neiva,
muito misterioso, de braço com o Moraes, oferecia-se para levantar
uma barricada na rua do Ouvidor, esquina do largo de S. Francisco e o poeta
respondia:

— E lá me hás de achar com as armas na mão.

— Correto! Então está feito?

— Está feito, por que não? E pôs-se a cuspinhar.

— Para a vida e para a morte!

— Para a vida e para a morte!

E despediram-se. Anselmo seguiu só para o hotel, pensando nas palavras
de Bivar: “Não faça notícias, a notícia embota.”

Uma lua sinistra rolava entre grossas nuvens e as goteiras pingavam lentamente.

Capítulo XIV

Anselmo estreou na imprensa com um piedoso artigo sobre os velhos negros.
Antes de o mandar para a tipografia quis ouvir a opinião do Patrocínio.
O jornalista, às últimas frases do escrito patético,
atirou-se ao escritor aos beijos, sagrando-o em presença do vesgo que
redigia o noticiário, cujas notas um magro repórter ia cavar
nas delegacias trazendo-as esparsas pela camisa, nos punhos, no peito porque,
com a precipitação, nem tempo lhe sobrava para procurar papel.
Anselmo esperou, com ânsia, o jornal e, quando o primeiro rolo apareceu
no escritório, avançou, sôfrego, para o balcão,
tomou uma folha e saiu triunfante indo para o Pascoal ler aos do grupo, os
“períodos dourados”.

Justamente nesse tempo a campanha abolicionista chegara à sua maior
intensidade. À luz do sol, nas ruas, concitava-se à revolta.
Para os lados da Gávea, em frente ao mar livre, no Leblon, havia um
quilombo mantido pela Confederação Abolicionista e, no escritório
da Gazeta da Tarde, que era o grande homizio de Chan, negros e negras, sentados
melancolicamente, fumavam esperando que lhes dessem destino. Eram constantes
os conciliábulos, falava-se em furtos de escravos; e gente de todas
as castas prova os redatores denunciando crimes de escravagistas despeitados.
A polícia punha em campo os seus esbirros mais sagazes mais atrevidos
capoeiras para desfazerem as reuniões e interromperem as conferências
espavorindo o povo.

Patrocínio, convidando outros chefes da propaganda, resolveu um grande
comício no Politeama, à noite. Todos os jornais abolicionistas
anunciaram e, no dia aprazado, à tarde, um homem misterioso apareceu
na redação para prevenir o intrépido jornalista: “que
uma grande malta estava assalariada para invadir o teatro no momento em que
o primeiro orador aparecesse na tribuna”.

Patrocínio transmitiu o aviso aos companheiros e à noite, com
estandartes, seguiram todas as sociedades abolicionistas para rua do Lavradio.

O imenso barracão regorgitava quando assomou à tribuna Quintino
Bocayuva, calmo, dirigindo-se ao povo em frase sóbria e ponderada.
Repentinamente, porém, uma grita, à porta, alvoroçou
o auditório. Eram os capoeiras comandados por Benjamin.

Aos gritos da malta respondeu o povo com assuada tremenda. Anselmo estava
em um dos camarotes da entrada e, num ímpeto, tomou uma cadeira arremessando-a
no meio da farândola. Foi o sinal da luta. O povo avançou em
coluna e começou o combate.

Navalhas reluziam, tiros estrondavam, cadeiras entrebatiam-se, partindo-se
no ar, violentamente arremessadas. Em pouco os destroços formaram alta
barricada por trás da qual o povo continuava a defender-se heroicamente.
Anselmo, já rouco, bradava contra a infâmia. De repente, empunhando
um pé de cadeira, atirou-se arrojadamente do camarote caindo no meio
do grupo a desancar, amouco. Vários populares seguiram-lhe o exemplo
temerário e, na estreita passagem, travou-se uma luta tremenda sendo
os capoeiras repelidos.

Só então apareceu a polícia azafamada, atirando os cavalos
sobre o povo. Houve protestos, ameaças: por fim, na platéia,
uma voz bradou possantemente: “Abaixo o rapa-côco! Morra o escravocrata!”
E um clamor tormentoso de duas mil vozes furentes atroou “Morra!”
Mas vários “psius” silvaram. Voltaram-se todos para a tribuna:
Quintino Bocayuva, calmo, ereto, alisava a barba. Palmas estrepitaram e, o
orador, retomando serenamente o fio do discurso, continuou a demonstrar que
a causa dos escravizados, que todo o Brasil adotara, havia de vencer, embora
a polícia, pactuada com os fazendeiros, procurasse, por meios criminosos,
sustar a marcha vitoriosa da idéia. Seguiu-se com a palavra José
do Patrocínio que lançou um repto à monarquia: “Ou
cede à vontade do povo ou cai. Citou Quinet, reproduzindo a imagem
do oceano que se vai impondo a pouco e pouco, subindo degrau a degrau, ameaçador
e sinistro e, terminando, anunciou, para muito breve, a Redenção
da Pátria Brasileira.”

À saída, como circulasse o boato de que a malta estava à
porta armada, para desfeitear os oradores, o povo reuniu-se e desfilou arregimentado,
levantando vivas aos heróis da noite.

Anselmo, com as roupas retalhadas, sem chapéu, vociferava e, diante
do edifício da Polícia, levantou um — morra! desesperado
que, por felicidade, não lhe saiu da garganta, tão rouco estava.

Na redação, onde ficaram um momento repousando, Patrocínio
e outros chefes abolicionistas, comentaram a bravura do escritor: “Não
o julgavam tão valente…” Anselmo estava alucinado: “Queria
ir à Polícia! Queria encontrar o Benjamin para quebrar-lhe a
cara.” E fulo, suado, esbaforido, com os olhos coruscantes, brandindo
a bengala lascada, rugia:

— Parto-lhe a cara! Se é homem também eu sou! Parto-lhe
a cara! Num salto ágil quis ganhar a porta. Detiveram-no a tempo, ele,
então, aos arrancos, falando para o povo que enchia o escritório,
contou os seus feitos abolicionistas.

— Também acoitei escravos! Estão aqui oito que mandei
de S. Paulo… e hei de acoitar. Canalhas! Parecia louco.

— A escravidão é um roubo! — esgoelou um velhote
agitando o guarda-chuva.

— Apoiado! — bradaram todos e o velho, inspirado, pôs-se
a esganiçar do meio da turba, espichando a cabeça, sacudindo
em uma das mãos a cartola e na outra o guarda-chuva:

— Patrocínio, teu nome há de ficar gravado no Panteon
da História do Brasil. Tu és a nossa esperança… Não
desanima, Patrocínio, meu velho, e, no dia em que for necessário
um homem para combater a teu lado, conta comigo! O Januário, Patrocínio…
O Januário calafate! O guarda-chuva e a cartola dançavam acima
cabeças e o velhote, frenético, energúmeno, já
rouco, urrava: Conta comigo… E estentorou: “Viva José do Patrocínio…
gente!” Todos bradaram. “Oôôôh!” Mas a reunião
começava a tornar-se inconveniente. Gritos sediciosos rompiam por vezes:
“Morra o carrasco!… Viva a República!” Patrocínio
dirigiu-se povo pedindo calma. Vários vivas atroaram e a multidão
foi escoando até que recaiu o silêncio. A patrulha passeava rua
abaixo, rua acima.

— Menino, você é uma fúria!

Anselmo procurava compor o casaco estraçalhado.

— O diabo é que não tenho outro casaco e perdi o chapéu.

— Não tens outro casaco?

— Não.

— Quem não tem roupa não se mete em camisa de onze varas,
disseram.

— Oh! És tu, Lins?

— Sou eu. Venho oferecer-te o meu braço forte.

Num rápido olhar Anselmo compreendeu que o poeta não estava
em estado de lhe oferecer socorro.

— Amanhã mando levar um casaco à tua casa, disse o Patrocínio.

— E um chapéu, ajuntou Anselmo.

— Queres tomar um tílburi?

— Acho melhor.

— Toma. Tenho aqui pouco, mas chega. Não estás ferido?

— Não.

— Então vai.

— Até amanhã. Olha o casaco.

— Não há dúvida.

À porta, o Lins, agarrado ao braço de Anselmo, oscilava, risonho
e baboso, oferecendo-lhe o braço forte:

— Estou danado! Sou capaz de agarrar um permanente por uma perna e
bumba! Abaixo do cavalo! Não imaginas! Quando eu tinha quinze anos
derrubava touros a murro. Estou danado! Perdeste o chapéu?

— Perdi.

— Queres o meu?

— O teu? E tu…?

— Eu? Já estou de touca, não faz mal. Rompeu a rir, às
guinadas, pendurado ao braço de Anselmo. É isto: não
posso comer feijoada, fico logo assim.

— Foi então a feijoada que te pôs nesse estado…?

— Foram os pertences. Vendo, porém, que Anselmo encaminhava-se
para o meio do largo, fez um esforço e deteve-o: Onde vais?

— Vou tomar um tílburi.

— Qual tílburi! Vamos tomar outra coisa: um conhaque, por exemplo.

— Não, não posso. Olha como estou. Queres que me vejam
assim roto?

— Que tem? Há razões gloriosas. Eu hoje estou danado!
Vou dormir contigo. Há espaço na tua cama?

— Pois não.

— Então vou. Não posso dormir no meu quarto: é
cada mosquito que parece um frango. Quando ouço a zoada vou devagarinho
com a mão, agarro o bicho pelas pernas e zúquite! Dou com ele
na parede e esborracho-o. Vamos tomar alguma coisa.

— Não, Lins; estou fatigado. Vamos ver se o cocheiro nos leva
no mesmo tílburi.

— Eu não peso nada. Posso ir ao colo.

Felizmente Anselmo encontrou um cocheiro amável. Mas que trabalho
para acomodar o Lins!

— Para onde vamos?

— Rua do Riachuelo.

— Olhe, cavalheiro, vá devagar porque a rua está jogando
muito. Decididamente não posso comer feijão. Estou danado! Que
morro é aquele alto?

— Onde?

— Ali! Não estás vendo as luzes?

— Que morro? Que luzes? Não vês que são estrelas?

— Estrelas?! É verdade! Estrelas… Mas como o céu é
alto, hein…! Que horror! Mais devagar, cavalheiro. Queres saber? Há
dias, quando eu voltava para casa, às cinco da manhã, encontrei
um cavalo de tílburi deitando fumaça pelo nariz. O seu cavalo
fuma, senhor? Mais devagar… Homem, tu moras na rua do Riachuelo ou na estação
do Riachuelo? Parece que estou andando desde o princípio do mês.

— E tu pesas, Lins!

— Não sou eu, filho, é a cabeça… Uma feijoada
completa, imagina!

— Aí! Pare.

Que trabalho para descer o Lins e para deitá-lo, que trabalho!

Capítulo XV

Uma tarde, terminado o trabalho da redação, Anselmo descia
a rua do Ouvidor quando se sentiu agarrado por um pulso formidável.
Voltou-se impetuosamente e deu com Luiz Moraes, sempre carrancudo:

— Onde vais?

— Não tenho destino. Estou arejando o cérebro.

— Dize-me cá: Fortúnio falou-me de uns contos teus que
foram rejeitados por certo jornaleco.

— Sim, não são propriamente contos: são umas ligeiras
fantasias. Por quê?

— Eu te digo. Vamos aqui um instante. Tenho de esperar o Artur. Já
conheces o Artur?

— De vista.

— Excelente rapaz e magnífico poeta. Seria um dos primeiros
líricos americanos se, por vezes, não rebaixasse a lira a violão
zangarreando chulas para o populacho. Um poeta não deve descer à
multidão, a multidão é que deve subir ao Parnaso para
ouvi-lo. Tomarias a sério Petrarca ou Musset tocando na orquestra para
ritmar o passo bambo de uns tantos saltimbancos? Não, por certo. A
arte é hierática. O poeta é sacerdote: oficia para o
coração e o Artur não é só um poeta, é
um grande poeta: natural, correto, suave e brilhante. Acho que não
devia escrever para o teatro. Ficasse nos sonetos.

— Il faut vivre, mon ami.

— Ora! Il faut vivre! E eu? Não estou aqui? E Deus me livre
de escrever uma linha para o teatro, não que deteste a literatura dramática,
mas não temos intérpretes. Um poeta não deve descer à
imbecilidade erótica do maxixe. Faça versos honestos, escreva
poemas, isso sim. Vamos tomar alguma coisa.

Entraram na Maison Rouge. A casa era sombria e lúgubre como uma adega.
Estava deserta; tomaram uma das mesas e Anselmo, puxando uma cadeira, disse
em tom sentencioso:

— Dai a César o que é de César e a Deus o que
é de Deus, disse o Cristo. Ao povo dá ele as revistas, à
Arte dá os esplêndidos versos que tanto exaltas.

— E com razão porque são admiráveis. Mas eu fico
indignado quando ouço um bom verso estropiado por um palhaço.
Um alexandrino na opereta! Sabes que me lembra? Um leão das montanhas
com a sua juba dourada, virando cambalhotas num circo ou correndo cavalgado
por um macaco. O verso alexandrino é nobre, fez-se para os lábios
de um Leconte e não para a boca desdentada de um histrião de
feira.

É natural que a Sarah recite as estrofes do grande “Impassível”,
mas um clown que declamasse Bhagavat faria estourar de riso um frade de pedra.
Senhor, poeta é poeta! Só então o Moraes viu que o caixeiro
estava de pé, junto à mesa, esperando ordens: Homem estavas
aí…? Está bem; não perdeste o teu tempo, sempre ouviste
alguma coisa aproveitável. Dá-nos cerveja.

E, cuspinhando, continuou:

— Tenho dito ao Artur: Que diabo! Tu que tens tanto talento por que
não deixas essa borracheira de teatro? Escreve versos, que os fazes
admiráveis, lida com a tua musa delicada e abandona de vez esse rancho
de cabotinos… Mas o homem está viciado. O escritor habitua-se com
o meio que o aplaude e, para o não perder, vai cedendo à larga,
até que um dia nivela o seu espírito com o da gente ignóbil
e adeus! Foi-se! Perdido. E como o homem que se vicia com a morfina. Há
glórias afrontosas, eu penso assim. O Artur é homem para ser
aplaudido por nós, e prefere ao nosso julgamento o barbarismo idiota
das platéias. Vício.

— Mas que há de ele fazer se os nossos teatros não aceitam
peças literárias? Consta-me que ele tem uma tradução
magnífica de Molière, em verso.

— Uma não, várias.

— Então…

— Mas escreve revistas.

— Para ganhar.

— Faz mal! Um poeta como ele não transige.

— Mas… E sobre os contos?

— Ah! Sim. Vamos fundar uma revista literária. Temos aí
homem que está entusiasmado e quer tentar a aventura… Vai ganhar
dinheiro, afirmou o poeta torcendo os fartos bigodes. Estamos resolvidos a
trabalhar de graça nos primeiros tempos, mas depois ele há de
entrar com o cobre… O caso é este: Resolvemos, o Artur e eu, fazer
um jornal novo, com idéias novas… Nada de antigualhas, e queremos
arrebanhar todos esses rapazes que andam por aí cheios de talento,
mas repelidos, porque ninguém quer tentar a experiência. Aqui
é assim — só têm talento os de um certo grupo da
rua do Ouvidor. Ali estão os romancistas criadores, os poetas incomparáveis,
os mestres da crítica… Uma súcia de bestas que vive num elogio
recíproco, escancarando as mandíbulas em hiatos encomiásticos,
ao coxear dos versos cambaios ou ao chirinolar do período fanhoso e
vazio do primeiro mu que zurra. Uma cáfila! Vamos cair sobre a súcia
a golpes de talento. E havemos de desbaratá-la, porque não vale
nada. Gente que não lê, gênios sem sintaxe, águias
com penas de ganso. O Artur está disposto a começar a razia.
Vais ver o estouro e eu quero os teus contos.

— Pois não.

— Publico-os e fico à espera da crítica. Também
se vier algum, dou-lhe tamanha tunda que ele nuca mais se mete em coisas de
Arte.

— Que título tem a revista?

— Vida Moderna. Vai sair magnífica, hás de gostar.

— Você e o Artur?

— Eu e o Artur.

— Pois trago amanhã os contos.

— Quantos tens?

— Cinco ou seis.

— Pois traze todos amanhã e vais ver como se desmantela uma
igrejinha. Conto com pouca gente, mas sou como Gedeão: nada de fracos
na falange, nada de exércitos de Xerxes — um pugilo de espartanos.
Eles lá têm gente a valer… Mas que gente! Enfim, trazes amanhã
sem falta?

— Sem falta.

— O jornal deve sair no sábado.

— Trago amanhã.

Anselmo ia levantar-se quando apareceu o Artur. Gordo e sangüíneo,
o rosto largo, expressivo, apresentava-o como um perfeito exemplar dos filhos
da Provença dourada do Brasil, que é o Maranhão, terra
de sonhadores, onde as lendas pululam e a poesia é a linguagem comum
dos que vivem nos campos largos, à grande luz do sol, ou ao pálido
luar sem névoa. Os olhos vivos pareciam guardar ainda um pouco de cintilação
dos dias equatoriais, a fronte vasta, os cabelos negros, violentamente atirados
para trás, reluzindo com brilho próprio. Sentou-se acaçapado,
olhando por cima das lentes do pince-nez de tartaruga que lhe escorregava
do nariz. De quando em quando erguia a cabeça com ímpeto, como
se o ar lhe faltasse, com a mão espalmada derreava os bigodes ou alisava
os cabelos. Moraes balançava a perna, passando o índex pela
mesa.

— Então?

— Aqui estou. Que há de novo?

— Está tudo feito.

— Falaste ao Lombaerts?

— Para quê? Pois ele não te disse que podíamos
mandar originais?

— Sobre o formato do jornal, sobre a escolha das gravuras?

— É ilustrado? — perguntou Anselmo que se havia conservado
calado.

— Ilustrado. Homem, vocês não se conhecem ainda.

O Artur encarou Anselmo.

— Anselmo Ribas, foi companheiro de casa de meu irmão.

— Pois não. Trocaram um aperto de mão.

— Vem trabalhar conosco, disse o Moraes, acrescentando: Tem talento.
Mas vamos ao caso. Estás disposto a abrir luta?

— Acho que não convém.

— Ora! Não convém… Mas, seu Artur, nós havemos
de deixar que um bando de imbecis viva por aí, com muita empáfia,
inculcando-se diretor do movimento intelectual? Sujeitos sem valor, rimam
baboseiras e escrevem uma prosa mais chata do que o diabo?

— Que temos nós com isso?

— Que temos?! Se não aparecer um homem de coragem que se ponha
à dominação da grei dos turiferários ficamos reduzidos
a quê, faça favor de dizer, a quê? Não, senhor:
vou ser implacável. Se tivessem talento, muito bem, mas são
todos uns nulos, sem originalidade, sem estilo e pretensiosos como tudo. Chefes…!
Ora pelo amor de Deus!

— Mas, Luiz, eu não te entendo. Combates agremiações
literárias, achas, e com razão, que a coterie esteriliza…

— É indecente!

— É indecente, e alicias um grupo, organizas uma coterie, respondes
ao mal com o próprio mal. É esquisito. Vamos trabalhar sem idéias
preconcebidas; nada de lutas. Para que nos havemos de indispor com os rapazes
que não nos fazem mal? Não há razão…

— Pois eu rompo! E começo pelo chefe: derrubado o bonzo vem
abaixo o pagode. Seu Artur, eu não sou literato de catálogo
— estudo e não ando por aí a apregoar que os meus versos
são os mais belos da língua portuguesa e aqui ninguém
os faz melhor, nem aqui nem lá… nem lá! Entanto estou calado,
não ando a esmolar elogios. Se aparecem artigos nos jornais a meu respeito
são escritos espontaneamente pelos que se impressionam pelo meu verso.
Por que não fazem eles o mesmo? Não! E um nunca acabar de elogios,
é um Te-Deum laudamus que não tem fim. Rompo! Rompo e esbodego
aquilo tudo!

— Faze o que entenderes: eu não concordo.

— Pois concordo eu.

— Ah! Sem dúvida: hás de concordar contigo. Mas vamos
a saber: já tens o artigo?

— Que artigo?

— De apresentação?

— Qual artigo de apresentação: digo duas coisas: os intuitos
literários do jornal e nada mais.

— Pois é isso.

— E tu?

— Eu dou a crônica, um soneto…

— Podias dar um trecho da tua revista.

— Como? Pois não te cansas de dizer que devo abandonar esse
gênero e queres dar, no primeiro número do jornal, um trecho
da ignomínia?

— Perdão, eu digo mal das revistas, mas elogio incondicionalmente
o teu verso. Aquele monólogo do Prólogo é um primor.
Não concordo com as cantorias, isso não, mas dou o justo valor
à obra da Arte.

— Bom, estamos combinados.

— Perfeitamente.

Artur voltou-se para Anselmo:

— Em que jornal está escrevendo?

— Na Gazeta da Tarde.

— Faz uns folhetins aos sábados. Tem talento, mas abusa muito
do adjetivo e tem a mania do Oriente.

— É a coqueluche literária.

— Mas vicia.

— Não, é um meio fácil de fazer vocabulário:
ensaio-me no descritivo para ganhar vigor, colorido e ductilidade.

— Não, você é exuberante, é excessivo. Senhor,
o ideal do artista deve ser a simplicidade. Há a simplicidade-pobreza,
que facilmente se reconhece e há a simplicidade-distinção;
e é mais fácil ser sóbrio do que ser abundante. A idéia
só se manifesta num termo, o resto, versas. Mas vocês não
entendem assim: para exprimirem a coisa mais comezinha deste mundo deitam
abaixo dicionários, é uma mania. O Artur levantou-se: Já
vais?

— Já, tenho ainda a minha seção.

— Então não queres romper?

— Não, não vejo motivo.

— Ah! Não vês?

— Não vejo. E uma agressão injustificável.

— Pois sim.

O Artur levantou-se, ofereceu a casa a Anselmo e, despedindo-se do Moraes,
disse sorrindo:

— Então estás decidido a demolir?

— A arrasar!

Ainda o Artur não havia desaparecido, quando Anselmo se pôs
de pé, resolutamente:

— Adeus! Não me posso demorar mais. Tenho um amigo à
minha espera.

— Quem é?

— O Estêvão.

— Que Estêvão?

— O pintor.

— Ora! Deixa o pintor, vamos conversar.

— Não posso; e já vou tarde.

— Que horas são?

— Três e meia.

— Chii! Adeus! Até amanhã. Olha os contos.

— Não esqueço.

Saiu apressado porque, efetivamente, prometera estar às três
horas com o pintor para ver a sua última composição.

Capítulo XVI

O atelier era na rua General Câmara, um pardieiro sombrio e lôbrego.
Subia-se por uma velhíssima e desconjuntada escada que rangia e estalava,
ameaçando ruir. Ao alto tomava-se um corredor onde nunca havia entrado
raio de sol, direito aos aposentos do artista negro.

Na sala, iluminada por duas janelas, tinha ele o cavalete e o banco. As paredes
estavam literalmente cobertas de trabalhos: eram telas de gênero, algumas
em moldura, esboços a carvão, manchas, desenhos, caricaturas,
vários estudos do natural, entre os quais uma expressiva cabeça
de lazarone. Mas o que atraía os olhares era a grande quantidade de
frutas: abacaxis, mangas, algumas descascadas mostrando a polpa dourada, racimos
de uvas, pencas de bananas, cachos de ameixas, corbelhas de morangos, cajus,
melões, melancias, todos os dons de Pomona ali estavam esplendidamente
copiados. O Lins costumava dizer, quando ia ao atelier do artista: “Vou
hoje à quitanda.”

Quando Anselmo entrou, o pintor, de pé no meio da sala, cujo soalho
desaparecia entulhado de papéis, contemplava o quadro que terminara.

— Cá estou.

O pintor voltou-se surpreendido e, dando com o rapaz, avançou sorrindo,
de mãos estendidas. Estava em mangas de camisa, descalço.

— Oh!

— Já não contava comigo?

— Não, contava.

A sala tresandava a terebintina. Um gato gordo, deitado sobre larga pasta
atochada, lambia as patas preguiçosamente.

— Está aqui a obra, disse o pintor timidamente. Era uma grande
tela de um metro: frutas — enorme cesto transbordante: mangas, abacaxis,
laranjas, uvas, pitangas. As cores eram admiráveis e sentia-se a pubescência
dos pêssegos, as pitangas eram como grossas gotas de sangue —
uma maravilha! Anselmo teceu os mais vivos elogios ao artista.

— Magnífico! O Lins já me havia falado.

— Ah! O Lins é muito meu amigo. Anselmo sentou-se no tamborete
diante da tela e o artista continuou, sorrindo: O Lins, grande pândego!
Já me pregou uma peça…

— Que foi?

— Ora! Troça. Encomendaram-me um quadro — o Lias estava
passando uns dias comigo, depois da cena em casa do Madeira. Tratei de escolher
as frutas. Como o amador era inteligente e rico escolhi o que havia de melhor:
pêras, uvas, mangas, marmelos, metade de um melão que arranjei,
por muito favor, num hotel conhecido, figos e por aí… Fiz um embrulho
cuidadoso e trouxe tudo para a casa. Como era tarde não quis começar
o trabalho e saí para jantar. Levaram-me ao teatro, andei em pagode
até às tantas! Quando cheguei à casa já o Lins
dormia profundamente. Acordando, tratei de ver se as frutas haviam sido tocadas
pelos ratos e achei apenas os marmelos e duas talhadas de melão. Eu
não tinha mais vintém… Imagine! Fiquei desesperado. Despertei
o Lins.

— Foste tu que comeste as minhas frutas?

— Hein?

— As frutas.

— Comi ontem.

— Ora, Lins… Eram os modelos.

— Que modelos, homem?

— Para o meu quadro.

— Eu logo vi que eram frutas de quadro porque as mangas sabiam horrivelmente
à tinta a óleo.

— E agora? Como há de ser?

— Não pintes frutas: apodrecem depressa. E voltou-se para a
parede.

— E como te arranjaste?

— Fui ao amador e pedi que me adiantasse alguma coisa para comprar
outras frutas. Comprei e o Lins, logo que as viu, muito guloso, pediu-me que,
ao terminar o trabalho, não me esquecesse de lhe dar os modelos. Terrível!

— E o caso do Madeira?

— Não conhece?

— Não.

— Esse é mais sério. Custou-lhe uma sova.

— A quem? Ao Madeira?

— Não, ao Lins.

— Como?!

— O Madeira é um velhote alegre que costuma festejar o S. João
com fogueira e comeizana, no seu chalé da rua dos Coqueiros. Tem em
sua companhia uma irmã solteira, dama quarentona, de muita virtude.
Pelo que ela diz: está solteira, não por falta de noivo, mas
porque fez voto de castidade: apareceram-lhe vários partidos, alguns
vantajosos e ela sempre firme no seu voto. Vive com o irmão e com a
cunhada. O Lins foi levado a uma das tais festas de S. João à
casa do Madeira e portou-se galhardamente. Ali pelas tantas da noite, se o
não agarrassem, teria saltado a fogueira, apesar da perna dura e da
vinhaça: estava como louco.

Saíram todos os convidados, ele foi o último a despedir-se.
Na ocasião de retirar-se, não conhecendo bem o chalé,
em vez de tomar pela porta da rua, meteu-se por outra. Fechada a casa, quando
a irmã do Madeira, em camisa, recolheu-se ao leito, deitou-se em cima
de um homem. Um grito de pavor e de pudor ofendido alarmou a casa —
acudiram todos: o Madeira com uma bengala nodosa, a mulher com uma vela e
a pequenada berrando. A pobre senhora, trêmula e pálida, olhava
assombrada, encolhida, tiritando a um canto. Quando o Madeira entrou, o Lins
estava sentado na cama, também assustado.

— Que é isto, senhor? — urrou o Madeira indignado. Pois
eu recebo-o na minha intimidade, com toda a delicadeza, para o senhor ultrajar
uma senhora respeitável, que podia ser sua mãe?

— Ultrajar?! Como? Eu ultrajei! Eu não ultrajei… não
me lembro!

— Não se lembra?! Com que intuitos procurou o senhor este leito
cândido?

— Eu não procurei nada, eu achei.

— E com que intenção se deitou?

— Eu? Sei lá!

— Ah! Não sabe? Pois sei eu. E o Madeira vibrou a bengala. O
Lins, sentindo a bordoada, levantou-se de um salto:

— Espere! Não bata! Não bata! Espere, eu explico-me.
Não bata assim, eu sou seu hóspede…

— Então explique-se.

— O senhor disse que eu ultrajei a senhora…?

— Sim, senhor!

— Pois não briguemos por isso: se eu ultrajei, caso. Disse-me
o velho Madeira que custou a conter o riso, mas para manter a força
moral, agarrou o Lins por um braço e levou-o até à porta
da rua. A pobre senhora ficou de cama e mandou rezar uma missa em ação
de graças por ter escapado com o seu voto incólume.

— É fantástico!

— Isso não é nada. O Lins tem casos interessantíssimos:
é a vida mais cheia de peripécias cômicas que conheço.
Sabe que ele anda agora apaixonado…?

— Por uma menina, uma vizinha.

— Sim, que tem a perna direita como ele tem a esquerda. Diz ele que
vai casar para estabelecer o equilíbrio.

Riram, mas Anselmo levantando-se, lançou um olhar de inspeção
às paredes do atelier e, plantando-se no meio da sala, perguntou:

— Então já se pode viver da pintura no Brasil?

O pintor encarou-o com espanto e baixando a cabeça, sorriu tristemente.

— Não entremos nesse particular, meu amigo. Se alguém
vive de quadros no Brasil não é propriamente o artista, é
o dourador. Vou contar um fato significativo e perfeitamente característico.
Um dos homens que, entre nós, passam por entendidos em Arte, encomendou-me
um quadro para a sua galeria, mandando-me, num envelope, um barbante que era
a medida da tela e explicava: “Faça-me o quadro pela medida que
aí vai, nem mais, nem. menos, porque é o espaço que tenho
na parede.” Comecei o trabalho e confesso que não fui de todo
infeliz… se as frutas não eram como as do Paraíso nem por
isso mereciam ser atiradas ao lixo. Envernizada a tela, mandei um aviso ao
homem que, três dias depois, apareceu aqui. Mostrei-lhe o trabalho.
Ele, com um ar entediado, pôs o pince-nez e, sem dar atenção
à tela, fitou-me o olhar sobrecenho:

— Mas não está pronto.

— Sim, senhor.

— Como! E a moldura?

— Ah! O senhor queria que eu pintasse a moldura?

— Não que a pintasse, queria uma moldura dourada de um palmo.
Não veio a medida?

— Não, senhor, talvez tenha ido para a casa do Vieitas.

— Ah! Bem… E, sem mais preocupar-se com o trabalho, contando as notas,
insistiu: E o senhor cingiu-se à medida?

— Estritamente: nem mais nem menos. Aí tem o senhor. Para o
homem o que ali estava eram um metro e 75 de pano, nada mais. Quem vive de
Arte? Dois ou três favorecidos e não os de mais talento. O Firmino
Monteiro, que é um esforçado, não consegue colocar os
seus quadros e é um artista de merecimento, talvez o mais consciencioso
dos nossos pintores históricos. O seu Vercingetorix lá está
enrolado, a um canto do atelier, porque não há um homem que
tenha uma parede bem larga para a formosa tela. Estou certo de que se o meu
amador a visse mandaria retirar uns quatro ou cinco legionários dos
que acompanham, à presença de César, o Chefe dos cem
vales, para encravar a tela entre outras, disparatadamente. As minhas frutas
estão entre a cópia de uma batalha, de Detaille e uns touros,
de um pintor inglês. Por cima uma marinha do De Martino e, por baixo,
uma gouache: o Rialto. Não há gosto artístico —
o quadro é uma ostentação. Não há quem
diga: Tenho aqui um original de fulano. Dizem todos: Estão aqui tantos
contos de réis. Infelizmente esta é a verdade. É possível
que venhamos a ter um público que dê apreço à obra
de Arte, por enquanto temos apenas vaidosos que entendem tanto de pintura
como eu entendo o grego. Agora, já que ferimos este ponto, vamos à
verdade: Também não temos Escola. Aquilo que há ali na
travessa das Belas Artes é um Asilo de mentecaptos. O governo, querendo
proteger uns tantos homens, nomeou-os para as diferentes cadeiras do ensino
artístico e, sob a cúpula daquela casa silenciosa, durante os
dias lentos do ano, uma turma de rapazes desenha academias. Raramente ali
aparece um modelo. Não há quem se lembre de haver feito uma
excursão ao campo, de sorte que os rapazes, habituados ao exercício
passivo da cópia, naquela penumbra sonolenta das salas, quando chegam
ao grande ar, em face da natureza forte, cercados da luz viva, ficam encandeados
e são incapazes de transmitir à tela a menor impressão
de água, de céus, de campos ou de arvoredo. Uma folha que se
agite basta para os desnortear, os olheirões de água dão-lhes
vertigens, os matizes de uma campina deixam-nos assombrados, e o governo continua
a manter aquele mosteiro de Apolo de onde saem apenas copiadores. Se um rapaz
tem decidida vocação para a Arte faz como o Castagnetto —
rasga a matrícula, mete-se num bote e, águas em fora, com as
suas telas e os seus pincéis, uma merenda frugal e a caixa das tintas,
vai pintar ao sol, sobre as águas, trazendo-nos, ainda com o cheiro
das brisas salitradas do mar largo, essas esplêndidas marinhas, ou faz
como Parreiras que, de quando em quando, abala para a floresta de onde volta
sobraçando uma porção de estudos do natural. Há
verdadeiros talentos na Academia, mas murcham logo que se habituam àquele
meio merencóreo e sombrio onde há apenas cabeças pagãs
estampadas em papier maché e bustos de gesso, que são verdadeiras
ignomínias. O público, que vai às exposições
anuais daquela casa, porque entende que Arte é o que lá está,
não pede senão coisas que se pareçam com aquilo. A Academia
é a mais terrível inimiga do artista.

— E afinal, como vive?

— Eu? Assim. Aqui pinto, aqui durmo; saio apenas para comer, quando
é possível. Agora, felizmente, tenho dois discípulos:
um dá-me o jantar…

— E outro o almoço…?

— Não, o outro paga-me.

— Então não vive exclusivamente dos frutos do seu trabalho…

— Homem, dos frutos fica-me a casca, que é amarga.

— E esse novo quadro?

— Está vendido.

— Bem?

— Nem por isso: calculo em duzentos a duzentos e vinte mil réis.

— Como isso?

— Eu digo. Sabe que estive à morte, com uma congestão
pulmonar..

— Quando?

— Há uns seis meses.

— Não sabia.

— Pois estive por um fio. Estava sem vintém; pedi a um amigo
que me vendesse algumas telas pelo preço que encontrasse. Mas… que
deu isso? Um quadro de um metro, falo agora como o amador, foi vendido por
cento e cinqüenta mil réis e as receitas sucediam-se. Já
não havia meio de aviá-las quando o meu companheiro lembrou-se
de pedir um pequeno crédito ao farmacêutico, tomando a responsabilidade
da dívida, caso eu falecesse. O homem é generoso, aceitou. Logo
que me restabeleci fui entender-me com ele sobre as condições
do pagamento: “Olhe, disse-me, faça-me uma coisinha para a minha
sala de jantar e ficamos quites. Agora não vá fazer um quadrinho
para crianças, mesmo porque eu sou curto de vista. Faça-me alguma
coisa que se veja de longe.” E… aí tem.

— Mas isso é uma infâmia! — bramiu Anselmo.

— Uma infâmia? Podia ter sido pior.

— Ah! Mas eu vou escrever um artigo! Arraso o boticário! —
exclamou Anselmo tomando o chapéu e a bengala. Arraso o boticário…!

— Pelo amor de Deus! Não faça tal! Eu sou um homem doente!

— Mas é uma infâmia! É uma exploração!

— Que se há de fazer?!

— É verdade! E estamos numa cidade artística, capital
de um império!

— É para ver.

— Bem, adeus, Estêvão!

— Adeus! E obrigado. E, indignado, Anselmo desceu as escadas lentamente,
receoso de que aquela ruinaria desabasse.

Capítulo XVII

Chegando à rua do Ouvidor encontrou Fortúnio macambúzio,
a mascar um charuto, encostado à porta da Maison Rouge.

— Que é isso, homem? Estás fúnebre.

— Estou com a morte na alma; e suspirou profundamente: Ai!

— Mas que tens? Fala…

— Recebi uma carta do Norte… Sou um grande desgraçado! Arrancaram-me
a alma! Atirou a ponta do charuto à sarjeta e, com os olhos úmidos,
fitando, com desprezo, o resto do trabuco que fumegava: E ainda há
quem defenda a indústria nacional… Está um homem com o coração
alanceado, compra um charuto baiano para distrair-se e dão-lhe uma
espiga daquela ordem. Coitado de mim!

— Mas que dizia a carta? Tens algum enfermo na família?

— Não. Eu te digo, vou contar-te a verdade, mesmo porque preciso
desabafar senão estouro, estouro, palavra de honra. Estou até
aqui! — e pôs um dedo na garganta. Tudo irrita-me — a alegria
do céu, a alegria da terra. Eu digo como Job: maldito seja o dia…
Que suplício! Um homem com o coração dolorido, com a
alma despedaçada, obrigado a estar aqui contemplando a alegria dos
felizes. Se eu pudesse agarrava toda essa gente e esganava. Ah! Não
poder eu fazer com as minhas lágrimas um dilúvio… Ai!

— Mas conta-me a tua tristeza.

— Conto mesmo. Valha-me Deus!

— Tu não estás muito direito, Fortúnio!

— Como não estou direito?!

— Parece-me que o teu mal..

— É todo moral…

— … e de espírito.

— Ah! Espírito… Pensas que andei pelas baiúcas. Seja
tudo pelo amor de Deus! Pois vou contar-te. Vamos. Quero que me ouças
religiosamente.

— Como se fosse o teu confessor.

— Não! — exclamou empertigado; não admito confessores,
sou ateu. Meu confessor é o meu amigo. Entraram. Uma garrafa de Guiness…

R#8212; Vais tomar cerveja preta?

— Vou. Estou de luto: só como feijão e não bebo
bebidas brancas. Já amaste, Anselmo?

— Já.

— E sofreste?

— Muito!

— Então podes compreender a minha dor. Ouve: quando saí
de Alagoas deixei minha alma com uma linda moça. Ah! Não imaginas!
A morena mais bela que Deus pôs no mundo. Antes de partir, chamei-a
e disse-lhe: “Fulana, este meio é muito acanhado para as minhas
aspirações, vou tentar a vida em outra parte, vou fazer fortuna
para poder oferecer-te, com a mão de esposo, os gozos que só
a riqueza dá. Somos ambos jovens. Tu, se me tens amor, como dizes,
posto que venhas a sofrer saudade, não me esquecerás. Eu serei
teu e, pensando em ti, redobrarei de esforços para abreviar o meu retorno.
Se me prometes esperar, parto contente e, por aquela estrela clara, que nos
olha do céu, juro que, em breve, estarei a teus pés depondo,
não só minha alma como o fruto do meu trabalho.” E ela,
Anselmo, a pérfida, que é muito versada em romances de cavalaria,
iludiu-me com palavras doces e com lágrimas falazes: “Por que
não te hei de esperar? Não era maior que o meu o amor das damas
de outrora que juravam fidelidade aos cavaleiros empenhados na guerra santa.
Muitas, porque os seus noivos não tornavam, fiéis ao juramento
feito, vestiam a estamenha e encerravam-se nos claustros. Queira o Senhor
que eu não seja forçada a seguir esse destino, mas por aquela
estrela juro, meu Fortúnio, que, se por mal do nosso amor, não
tornares ou por morte ou porque me hajas esquecido, seguirei o caminho triste
de um mosteiro e, na minha cela solitária, direi tanto o teu nome que
os próprios muros hão de decorá-lo. Se entendes necessária
a partida parte, e que o bom Deus te guie, o meu amor irá contigo.
E vai! Certo de que, à tua volta, hás de encontrar-me fiel ao
que prometo.”

Foi isso no quintal de minha casa, perto da cerca. Selamos essa promessa
com um beijo e parti. Não lhe podia escrever; ela, porém, lendo
os meus versos, revia-se em todos eles porque, até hoje, outra não
foi a inspiração de minha alma e, por um amigo fiel, mandava-lhe
recados. Aqui, bem sabes que faço pela vida, procuro acumular fortuna
— porque eu não desembarco em Maceió senão com
muito dinheiro! — mas ainda não consegui ajuntar o pecúlio
conveniente. Por enquanto nada tenho.

-. Nem casa.

— Nem sapatos, só tenho busto porque, enfim, o meu casaco é
quase novo: mas hei de ter calças finíssimas e o resto e, quando
tiver… então sim! Dirigiu-se ao caixeiro: Outra garrafa de Guiness.
E continuou: Eu confiava nas palavras fementidas da ingrata e, muita noite,
com os olhos no céu, contemplando os astros, pedi às estrelas
mensageiras que lhe falassem em meu nome. Mas também não sei
para que há estrelas no céu que nem para um recado servem. E
confiava quando hoje me veio ter à mão esta carta de minha irmã
anunciando-me o próximo casamento da ingrata.

— Vai casar?!

— Vai casar e com um inimigo meu. Duas afrontas! Vê como sou
desgraçado! Lastima-me!

— E agora?

— Sinto não ter asas. Ah! Se eu pudesse ir a Maceió amanhã,
bem cedo. Que escândalo…! Primeiro ia ter com ela, e atirava-lhe em
rosto as suas palavras hipócritas, dizia-lhe horrores, humilhava-a,
depois então ia ajustar contas com o patife. Dava-lhe tal tunda, Anselmo,
tal tunda! Que ele nunca mais se havia de lembrar de pedir moças comprometidas.
Mas não tenho asas, nem vintém. Juntou as mãos e, com
os olhos altos, suspirou: Mas Deus é grande!

— E que pretendes fazer?

— Vou andar, andar por aí até não poder mais.

— Queres que te acompanhe?

— Não, vou só. Preciso estar só com minha alma.
Adeus! És feliz: não amas. Ai!

Levantou-se, acendeu um cigarro e encaminhou-se para a porta. Lá estava
o Neiva, num grupo, rugindo, e, mal avistou os rapazes, levantou a bengala:

— Hoje, no Lucinda, a postos!

Eu não vou, disse Fortúnio.

— Por quê? Estás incomodado? — perguntou o Neiva
com interesse e meiguice.

— Sou um desgraçado! — e foi-se lentamente rua abaixo,
fumando.

— Que tem ele? — perguntou o Neiva a Anselmo.

— Paixão.

— Ah! Também dá para isso? Está arranjado. Logo,
porém, mudando de tom: À noite, no Lucinda. Conto contigo.

— É hoje a entrega da jóia?

— Sim, é hoje. E não tenho concorrente. Ah! Todas as
noites eu lá estava pedindo a um e a outro. Dei excelência a
muito sevandija, mas tenho dois mil e tantos cupons. Não faltes.

— Não falto.

Tratava-se da entrega de um adereço, avaliado em oitocentos mil réis,
ao freqüentador do teatro que mais cupons de entrada apresentasse. O
Neiva, desde a primeira noite, mal jantava, corria para o Lucinda e, postando-se
junto à tábua de anúncio, pedia a todos os espectadores
que entravam o cupão que o porteiro havia destacado. Aos conhecidos
dizia intimamente: “Dá cá o bilhete para a minha coleção.”
Aos desconhecidos dirigia-se com cortesia senhoril, de chapéu na mão:
“Boa noite cavalheiro… Se V. Exa. não faz grande empenho em
guardar esse papelucho ceda-mo.” “Pois não…” diziam
quase todos, muitos porque ignoravam a utilidade do destacado, outros porque
não contavam com a prometida jóia. Raros resmungavam, negando.
O Neiva, então, empertigava-se e fulminava o avaro com uma sátira.

Dias antes da contagem dos cupons já era certa a vitória do
Neiva, “único campeão que se apresentara para disputar
o adereço”.

O teatro regurgitava quando Anselmo entrou. Estava toda a “boemia”
a postos. De um lado e de outro da platéia, nas alas da feira que ali
fora exposta em barracas onde havia a jóia, o brinquedo, a perfumaria,
o charuto, a seda, verdadeiros mostradores que anunciavam grandes casas das
ruas comerciais do Rio, o povo apertava-se com um zunzum incessante.

Noite quente, de luar. No jardim, a palmeira solitária tinha a folhagem
triste prateada e, em torno do seu tronco enfezado, sob as estrelas vivas,
ao ar tépido, bebia-se avidamente, com algazarra. As cocottes batiam
com os leques nas mesas de ferro, tiniam copos, estouravam rolhas e da platéia
apinhada vinha um hausto quente de fornalha.

A uma das mesas o grupo, unido para aquela prova suprema da tenacidade do
companheiro, bebia. Mas o pano subiu. O espetáculo correu sem interesse,
porque todos esperavam o momento da “jóia”.

Foi no intervalo do segundo para o terceiro ato que Furtado Coelho, em cena
aberta, anunciou que ia fazer entrega do adereço a quem maior número
de cupons apresentasse. Houve um silêncio largo e, de repente, o Neiva
saiu dentre os bastidores sobraçando um grosso embrulho. Desatou o
barbante que o apertava e, estendendo a mão com solenidade, disse:

— Eis aqui o fruto das minhas economias. Depois, voltando-se para a
platéia, acrescentou: Creio que não há concorrentes?!
Houve uma estrepitosa gargalhada e o artista, tomando o escrínio, abriu-o
para que fosse vista a jóia e, abraçando o boêmio, fez
a entrega prometida. Nova gargalhada irrompeu. O Neiva, porém, muito
grave, dirigiu-se a Furtado Coelho e, logo às primeiras palavras que
pronunciou, todo o público entrou a agitar-se, surpreso.

“Meu caro Furtado. A pilhéria de um mês tem hoje o seu
remate. Assiduamente, quer jorrassem aguaceiros, quer a inclemência
da canícula entrasse atrevida e indebitamente pelas horas da lua fria,
muitas vezes enfermo, todas as noites eu aqui estava, de chapéu na
mão, recolhendo os cupons que o generoso público, com raríssimas
e indignas exceções, me entregava. Reuni dois mil e tantos,
não sei bem o número porque a paciência foi curta para
tamanha soma, e sou agora o possuidor do adereço que foi pelos peritos
avaliado em oitocentos mil réis. Não o quero para mim: não
tenho colo para colares, nem punhos para pulseiras e, se me quisessem furar
a orelha para ornamentá-la com pingentes, eu bradaria pela polícia.
Enquanto nos divertimos há os solitários que não tiveram
o afago maternal, há os anônimos do berço que não
conhecem os prazeres do mundo e vivem, como penitentes, guardados pela caridade,
no limbo que se chama o orfanato. A jóia que conquistei, a rir, destino-a
à órfã que mais se distinguir pela virtude e pela aplicação
até ao fim do corrente ano. Que o prazer de muitos, proporcionado pelo
teu talento, meu velho Furtado, concorra para a alegria de uma criança
infeliz. E tu mesmo Podes encarregar-te de dar o devido destino ao prêmio
que conquistei com o suor do meu rosto e com muita zumbaia e algumas descomposturas.
Tenho dito.”

Furtado Coelho, comovido, estreitou o boêmio ao peito e todo o povo,
de pé, saudou com uma prolongada salva de palmas, tão generoso
quão inesperado procedimento. Fora, porém, quando o abraçaram,
o Neiva irrompeu:

— Eu conheço a cabilda em que vivo! Estava tudo de orelha em
pé e rosnava-se que eu, mal recebesse a jóia, correria direitinho
para o Leitão ou para o Cahen. Estão enganados! — bramiu
com a bengala erguida. Eu não seria capaz de perder as trinta noites
de um mês ouvindo declamações enfáticas, humilhando-me
diante da imbecilidade para pagar-me uma ceia. Fiz esse grande sacrifício
à estética e ao meu orgulho para dar uma lição
a esta horda. Pensava que eu ia beber, não é? Pois sim… Garçom,
um grogue a crédito. E sentou-se a uma das mesas, esbravejando, furioso,
assomado, a brandir a bengala. Anselmo apartou-se do grupo e, chegando ao
fundo, junto ao balcão, deu de face com Fortúnio, sempre triste,
mordendo os lábios. Duas grossas lágrimas rolavam-lhe pela face
morena.

— Ai! Ai!

— Que é isso! Pois ainda estás assim?

— Como queres que eu esteja firme se sou tão desgraçado!
— e desatou a chorar. Só então Anselmo percebeu que a
dor abalava tanto o poeta que ele mal se podia ter de pé.

— Ó Fortúnio, tu não estás firme.

— Como queres que eu esteja firme se perdi o esteio do coração!

— Só o conde de Matozinhos poderá salvar-te, dando-te
uma passagem para o Norte.

— É verdade… Ai! Ai!

Mas terminara o espetáculo, o povo saía atropeladamente e Anselmo
convidou o poeta:

— Vamos, anda daí. Onde estás morando?

— Não sei, não me perguntes. Não sei nada. Sou
um desgraçado!

— Mas onde dormes?

— Eu não durmo: meu coração está tão
agitado que me não deixa dormir. Valha-me Deus! Uma menina que se criou
comigo, tão falsa!

— Deixa, homem; não te preocupes: há um Deus no céu…

— Qual Deus…! O que há é um grande patife em Maceió,
mas palavra de honra! — eu ainda parto-lhe a cara. Ele casa, casa porque,
enfim, já estão correndo os proclamas, mas o casamento há
de custar-lhe caro.

Saíram. Anselmo queria, à viva força, levar o poeta
para o Ravot; ele, porém, resistia:

— Não, tem paciência, preciso de ar; se entro num quarto
de hotel sufoco. Ah! Como eu compreendo o Otelo…! E não haver um
Shakespeare para mim!… Vou tomar uma canja, depois atiro-me por essas ruas
até cair estafado. Quero que ela saiba que morri nas ruas, como um
cão! Há de ter remorsos, e, no dia do casamento, quando estiver
nos braços daquele grandíssimo sem-vergonha, há de ver-me
lívido, abrindo o cortinado para dizer-lhe quatro coisas bem duras
e com uma voz…!

Entraram na Maison. O poeta, apesar do sofrimento moral, engoliu, com apetite,
uma canja, um espesso churrasco, dois ovos quentes, uma talhada de queijo,
vinho, café e conhaque; depois convidou Anselmo para uma partida de
bilhar que se prolongou até às quatro da manhã. Foram
os últimos a sair da casa, e na rua, ao luar, Anselmo, que sentia os
olhos ardidos, propôs de novo que fossem para o Ravot.

— Qual! Eu agora hei de ver o sol: vou para o Boqueirão. Vou
confiar as minhas mágoas ao mar. Quero que as brisas levem um dos meus
suspiros àquela ingrata.

— Enfim, já agora… É quase dia. Pois vamos!

No grande silêncio soavam fortes os passos lentos dos dois. Ao longe
os combustores apagavam-se como se a treva viesse devorando, uma a uma, todas
aquelas gotas de ouro. Turmas de italianos desciam a caminho do mercado com
os cestos pendentes dós paus e oscilando como duas conchas de balanças;
alguns cantavam, outros riam ao ar fresco da manhã nascente.

Todas as casas fechadas, apenas um botequim, com uma luz triste e baça
como de vigília, tinha as portas abertas e um negro, de calças
arregaçadas, despejava baldes de água pelo soalho, enquanto
um caixeiro sonolento ia empilhando cadeiras sobre as mesinhas de márvore.

Uma carroça pesada, rangendo, passou vagarosamente tirada por um touro
robusto, cheia de capim que se levantava nos ângulos em pontas e, sobre
os molhos, deitado, ia um homem cantando. Os dois seguiam calados, embebidos
em pensamentos diversos, quando ouviram uma alegre cantilena, à maneira
singela do campo nortista.

— Ai! Ai! — suspirou Fortúnio. Quem me dera a minha terra!

— Ora! A tua terra…! Por que vieste?

— Sei lá!

— Vieste atraído pela vida. Que diabo querias fazer em Maceió?
Nós temos muita saudade da terra em que nascemos, por chic: a prova
é que nenhum de nós pensa em tornar aos penates natais. A vida
é aqui, meu amigo. Também eu tenho saudade do meu sertão,
mas que poderia eu fazer se lá vivesse? Estava em plena natureza, nos
campos gordos, vendo o gado e vendo as culturas, trabalhando como um campônio.
A esta hora, junto do alpendre da casa, o cavalo de sela escarvando a terra
e eu, com uma malga de café no bucho, o rebenque enfiado no punho,
pronto para partir a galope, pelos campos, ouvindo o mugir dos touros, aspirando
o aroma das silvas e ao sol violento idas e vindas do algodoal à malhada,
da malhada ao algodoal, até à hora da tarde, para recolher-me
estafado à minha rede e procriar bestamente como os rebanhos, como
a terra, dando filhos com a mesma regularidade com que o algodoeiro dá
o algodão, o arroz dá a sua espiga e a ovelha põe em
terra o anho. É hediondo! Aqui não.

— Ora, aqui não! E que diabo fazemos nós aqui?

— Trabalhamos.

— Morremos de fome e de fadiga porque nem cama temos.

— Mas havemos de ter.

— Na Santa Casa de Misericórdia.

— Qual Santa Casa! Então não esperas vencer?

— Eu, não. Que público temos nós? Pensas que se
prepara um povo em dez ou vinte anos? Qual! Havemos de viver sempre como vivemos.
Quando vierem os cabelos brancos, se a morte não tomar a frente ao
tempo, aquela estrela que lá está no céu há de
ver-nos como agora nos vê: caminhando sem destino e rimando sonhos.

— Não há de ser tanto assim.

— O Brasil nem daqui a cem anos compreenderá a obra de Arte.

— Ora!

— Ora?! Queres fazer uma aposta?

— Para daqui a cem anos? Não. Espero não viver tanto.

— Dizem que a população do Brasil é de treze milhões.

— Mais ou menos.

— Pois bem: doze milhões e oitocentos mil não sabem ler.
Dos duzentos mil restantes, cento e cinqüenta lêem apenas jornais,
cinqüenta lêem livros franceses, trinta lêem traduções,
quinze mil lêem a cartilha e livros espíritas, dois mil estudam
Augusto Comte e mil procuram livros brasileiros.

— E os estrangeiros?

— Não lêem livros nacionais.

— Ora, não lêem.

— Não lêem! Isto é um país perdido.

Chegaram ao Largo da Carioca. Em torno de um quiosque iluminado homens apinhavam-se
e discutiam alegremente chuchurreando café. Uma negra, sentada nos
degraus do chafariz, apregoava, em voz lamentosa, prolongando muito as palavras:
“Miiingau de ta… pioca… tá… quentinho, freguês.”
Homens dormiam estirados na pedra, de papo para o ar. Dois cães corriam
polo largo perseguindo-se. Longe, em tons finos, vibrantes, uma corneta soava.

O dia raiava. Uma luz tênue vinha caindo do céu largo e puro
e, como se um véu se fosse afastando da terra, descobrindo as casas
e as montanhas, tudo ia aparecendo indistintamente, vagamente a princípio.

Chilros vibravam no ar. Passavam, chalrando, os banhistas que se dirigiam
à praia, aos casais, famílias completas, com cestas, os olhos
ainda empapuçados de sono. Os bondes desciam cheios, transbordavam
no largo; subiam quase vazios.

Na esquina da rua de S. José um pequeno, ajoelhado na calçada
diante de uma pilha de jornais, dobrava folhas, às pressas, amontoando-as,
e a casa da Ordem, alta, enorme, como uma imensa e formidável muralha,
tinha ainda uma luz, a claridade passava por entre as frinchas da persiana
de uma das janelas: alguém que morria, talvez.

E no alto, muito branco, como um castelo antigo no seu rochedo, o mosteiro
dormia.

Seguiram e, quando chegaram ao Boqueirão o céu, ao longe, estriado
sangüineamente, estava cor de bronze. Na praia branca, o mar liso, metálico,
rutilava.

Uma multidão chapinhava na areia úmida que guardava a pegada
funda até que a onda, subindo preguiçosamente, a desmanchava.
Havia barracas de lona como brancas pirâmides, mas a maioria dos que
mergulhavam vinha já pronta nas roupas de flanela dos estabelecimentos
balneários.

As senhoras, sorrindo, esfregando as mãos, iam timidamente para o
mar que mandava à praia as suas ondas como para buscá-las, curvavam-se,
tomavam nos dedos um pouco de água, como se se benzessem naquela imensa
pia verde e, friorentas, dando-se as mãos, entravam, aos saltinhos,
quando a onda rolava cheia, espumosa, desdobrando-se na praia com suave marulho.

Cabeças apareciam longe e gente saía gotejante, gente entrava
a correr e todo o mar fervilhava de banhistas. Ao longo da praia e no terraço
do Passeio apinhavam-se curiosos. Um bote negro, remado lentamente, bordejava.
Tresandava a maresia. De repente Anselmo gritou:

— Olha, Fortúnio! Era o sol, o grande, o magnífico, o
esbraseado sol americano que subia. O céu estava encandecido, era de
ouro líquido, e, quando o disco do astro, imenso e translúcido,
fulgindo como uma pátena polida que girasse vertiginosamente, apareceu
acima dos montes longínquos de Niterói, houve uma chuva mirífica
e dourada, todas as eminências foram polvilhadas, o espaço e
as águas ficaram como Danae na hora amorosa do lentejo do ouro; mesmo
para o fundo a serra, acidentada de Teresópolis que, de tão
azul, quase se confundia com o céu, teve a áurea bruma da manhã
triunfal. E o sol subia, a luz alastrava. A água voluptuosa tornou-se
mais lânguida. Gaivotas cruzavam-se contentes e o Pão de Açúcar
e os fortes ficaram sobre um mar de ouro.

A luz chegou às árvores do Passeio e as folhas, galvanizadas,
rebrilharam, o mesmo bote fúnebre, negro, que ia e vinha com a lentidão
de um esquife, teve a sua orla de luz e refletiu-se na água espelhenta
e mansa.

Os que se banhavam pareciam incrustados na superfície serena e rútila
das águas vastas e longe, enorme e escuro, fumegando, com uma bandeira
trêmula solta às brisas, um paquete saía sereno, sem oscilação,
fechado, em direitura à barra por onde vinha entrando, rebocado, um
brigue, de velas ferradas, os mastros secos, vagaroso e pesado.

A alegria do céu comunicou-se aos que nadavam e gritos alegres vinham
do mar, e sempre a sair gente ansiosa para a onda: velhos, senhoras, crianças.
Uma menina aleijada desceu ao colo de um banhista, esperneando, aos gritos,
e, diante desse rumor de vida, nessa azáfama jocunda, Fortúnio,
com os olhos no paquete, suspirou:

— Ah! Pudesse eu ir ali!

— Ora qual! Deixa-te disso, homem! Olha para aquele sol, admira aquela
beleza e dize se é possível que Deus estrague tão formosa
auréola numa terra destinada à miséria e ao abandono.
Uma pátria que tem este sol há de ser grande por força.
Viva a nossa terra, deixa lá, homem! A nossa manhã há
de vir, descansa. E os dois, extasiados, ficaram a olhar o astro deslumbrante
que remontava majestosamente.

Capítulo XVIII

O primeiro número de A Vida Moderna, apesar das esperanças
de Luiz Moraes, não conseguiu abalar a alma do povo. O poeta contava
com um êxito ruidoso porque os jornais, anunciando o aparecimento da
publicação, haviam mencionado, como garantia do seu valor literário,
os nomes laureados dos redatores, mas debalde os garotos rouquejavam apregoando
o hebdomadário, debalde faziam ver a gravura terrífica da primeira
página, o povo passava indiferente, discutindo valentia de potros de
raça, discursos altiloqüentes de deputados ou escândalos,
sem dar ouvidos à atroada dos pequenos que iam e vinham, com os jornais,
desanimados.

À tarde desapareceu da circulação a notável revista,
sendo substituída pela Gazeta de extração mais fácil.
Moraes, cofiando os espessos bigodes, desceu a rua do Ouvidor, contando não
encontrar um só número da folha na qual havia dado prodigamente
todos os sonoros versos de um poemeto e achou um negro triste, à esquina
da rua dos Ouvires, já em voz, quase derreado, murmurando, com desfalecido
esforço: “A Vida Moderna…” Assomou-se e, sacudindo o tíbio
pregoeiro pelos ombros, disse-lhe furente:

— Grita, homem! Berra! Estás aí com uma voz de recém-nascido
que ninguém ouve! Não comes? O negro abriu muito os olhos, e
balbuciou surpreso: Que ninguém queria…

— Qual ninguém quer! Estás mais morto do que vivo. Grita!
Com tal intimação o negro resolveu fazer um escarcéu
atroador e, escancelando a boca, soltou tamanho berro que o próprio
poeta, atordoado, apressou o andar para não ensurdecer.

Encontraram-se todos na Maison Rouge: Ruy Vaz, Fortúnio, Anselmo,
Patrocínio. E Moraes recebeu os aplausos entusiásticos pela
sua vitória, principalmente depois que recitou o poemeto estampado
na revista. Patrocínio, com os olhos em alvo, confessou que nunca ouvira
versos de tal quilate: “Era a imaginação de Hugo trabalhada
pelo cinzel de Leconte.” E, no fundo lôbrego da casa, que era o
cenáculo da boemia, o poeta da Tarântula declarou solenemente,
como um áugure que, dentro em pouco, o Brasil, analfabeto e ignaro,
seria um país de grandes luzes porque as liras, vibradas como a de
Orfeu na Trácia agreste, haviam de agitar as almas, conclamando-as
para a vida intelectual.

— Meus amigos, se não temos aqui a tríplice Hecate com
as suas sacerdotisas truculentas, temos a ignorância que é um
pouco pior. Comecemos a campanha, tenhamos a audácia de Orfeu, que
o Ideal seja a nossa Eurídice. O artista é um iniciado, deve
ter a coragem da sua crença e, se for preciso, façamos como
o grande hierofanta que, de lira em punho, atravessou o campo dos trácios
chegando corajosamente à presença temerosa de Aglaonice para
dizer-lhe em face todas as verdades, embora lhe custasse a morte, como lhe
custou, mas, sucumbindo, não deixou de ser a representação
espiritual da primitiva Grécia.

Nós somos os precursores — alhanemos o caminho para os que vêm.
Eu não descorçôo, tenho como certa a vitória. Que
diabo! Pois então este povo há de viver eternamente chafurdado
na ignorância? Não, senhores! Abram escolas, eduquem a infância,
ponham a criança em contato com os heróis da pátria,
apontem-lhe os episódios gloriosos da nossa história, dêem-lhe
os poetas vernáculos e o homem do futuro não será francelho
como esses que por aí andam algaraviando “Bonjour, comment ça
va?” e dizendo desfaçadamente, apesar dos diplomas e dos anéis
inúteis: “Me dê isso, me dê aquilo… quero que faça-lhe”
e outras sandices idênticas. Nem vendedores há neste país…!
Encontrei um negro apregoando A Vida Moderna com uma vozinha tão fraca,
tão tênue, que o diabo parecia estar nas últimas. Dei-lhe
tamanho safanão que ele foi parar no meio da rua e berrando como uma
locomotiva. Energia! — é o que eu digo. Sem energia nada se faz.

Fortúnio, passando os dedos pela penugem do buço, sempre cético,
disse displicente:

— Isto há de ser sempre o que é. O povo não tem
tradições e, sobretudo, é a gente mais melancólica
do mundo. Você vê um grupo de brasileiros é fúnebre,
parece que estão sempre discutindo Um enterro.

— Ou segredando pornografia, acrescentou Ruy Vaz.

— Ou falando mal da vida alheia, ajuntou o Neiva.

— Nem tanto, corrigiu Patrocínio. Nem tanto. Há brasileiros
de espírito.

— Ora, brasileiros de espírito… Quais são? Aponte-os!

— Nós, por exemplo…

— Ah! Sim… Mas nós não entramos em conta.

— Perdão, interveio o Moraes. Já vocês começam
com as discussões fúteis, tratemos de coisas sérias.

O Neiva inclinou-se sobre a mesa:

— Eu tenho uma comunicação a fazer.

— Se é pilhéria.

— Não é pilhéria, homem.

— Que é? — perguntaram todos.

— Vocês, em tempos, pensaram em fundar um clube literário.

— Aí vem a mania.

— Perdão, não é mania; ouçam primeiro.
Eu estou organizando as bases de uma sociedade artística e literária.
Não temos um centro de reunião, não temos uma sala onde
possamos conversar um minuto em intimidade. Vem um estrangeiro aqui, é
uma vergonha: temos de recebê-lo em um botequim ou em um hotel, se há
dinheiro. Somos tantos, reunamo-nos e, contribuindo cada um com uma quota
mensal, podemos ter perfeitamente uma sala para discussão de teses,
palestra, recepção de confrades, etc. Tenho em vista o primeiro
andar de um prédio magnífico na rua do Hospício. Aluga-se
aquilo, instalamo-nos e, à proporção que for entrando
dinheiro, iremos dando expansão ao clube até que, com o tempo,
possamos editar as obras dos sócios. Conto com uns vinte e tantos membros,
tenho os nomes aqui na minha lista. Que dizem?

Patrocínio achou a idéia excelente e todos aplaudiram, ficando
imediatamente convocada a primeira reunião para a quinta-feira próxima.
O título “Grêmio de Letras e Artes” proposto pelo Neiva
foi aceito sem discussão.

Patrocínio e o Neiva despediram-se: o primeiro tinha reunião
na Confederação Abolicionista, o segundo ia mandar arranjar
a casa, encarregando o Teixeira de entender-se com o senhorio. Ruy Vaz pouco
se demorou tendo um negócio com o Garnier. Ficaram os três: Fortúnio,
Moraes e Anselmo.

Anselmo estava macambúzio, de cenho carregado, silencioso e, recaído
sobre a bengala, que metera debaixo do braço, balançava a perna
com desalento. Fortúnio atirava baforadas para o teto e o Moraes, preocupado,
tamborilava no mármore da mesa.

— Que diabo! Vocês estão tristes, disse por fim o poeta
da Tarântula. Que tens, Anselmo? Já brigaste com o Patrocínio,
aposto! Anselmo resmungou. Homem, também não fazes outra coisa.
Quantas vezes tens saído da Gazeta? Mais de vinte. O José já
sabe — quando lhe apareces enfarruscado, anunciando que vais deixar
a folha, ele pergunta logo quanto queres, e está a questão liquidada.
Se precisavas de dinheiro por que não falaste enquanto ele aqui estava?

— Não se trata de dinheiro.

— Então que há?

— Divergência política, aventurou Fortúnio.

— Qual política! Bem me importa a mim a política. Aquele
gerente da Gazeta julga-me, ao que parece, um menino de doze anos. Se lhe
peço dinheiro vem sempre com cinco mil réis, dez, quando muito.
Estou com os sapatos neste estado, já não têm sola, o
casaco é uma nódoa, o chapéu é isto; não
tenho meias, não tenho camisas, devo dois meses de casa. Que diabo!
Assim não há talento, não há estilo, não
há nada que resista.

— É o que eu digo, rosnou Fortúnio.

— Mas não te pagam? — perguntou Moraes.

— Aos pingos: não é um gerente, é um conta-gotas.

— E que vais fazer?

— Vou tomar conta do Diário Ilustrado. O Henrique Steel vai
deixar a redação e os proprietários convidaram-me.

— Aquilo dá alguma coisa?

— Sei lá.

— E quando começas?

— Talvez amanhã.

— Já disseste ao Patrocínio que ias deixar a Gazeta?

— Já.

— E ele?

— Pôs-se a rir.

— Homem, queres um conselho? Fica na Gazeta e não vás
atrás de promessas enganadoras. Esse Diário Ilustrado não
vive um mês.

— Como não vive!?

— Não vive. Qual é o teu programa político?

— Eu sou oportunista.

— Qual oportunista! Tu não és nada.

— Ou isso.

— Ou isso.

— E é com tais idéias que vais escrever artigos de fundo?

— Qual artigo de fundo! Isso é chapa. O jornal vive muito bem
sem artigo de fundo. Tenha ele noticiário variado, uma parte literária,
esporte e charadas e vai longe. Hás de ver.

— Pois sim.

— E tu, Fortúnio?

— Eu? Eu vivo perfeitamente. Tenho a cidade por menagem, que mais quero?
Isso de comer e dormir só me preocupa quando tenho fome ou sono. Faço
os meus versos e escrevo-os em qualquer mesa de café, tenho como alampadários
as estrelas do céu, amo todas as mulheres belas, a rua do Ouvidor é
a minha sala de visitas; o meu quarto só Deus conhece! Vivo muito bem.

— E se adoeceres?

Fortúnio encolheu os ombros e atirou uma baforada.

— Que diabo! Vocês não pensam…

— Felizmente! Que seria de nós se pensássemos?

— Pois eu acho que devias procurar alguma coisa.

— Queres que me empregue no Pascoal? Queres que me faça condutor
de bonde ou que vá rolar fardos na Alfândega?

— Não digo isso, mas podias arranjar lugar num jornal.

— Ora, Luiz, eu sou brasileiro e tu sabes que os nossos jornais sãos
empresas estrangeiras criadas com o intuito prático de explorar comercialmente
o sentimento público, com discrição ou às escâncaras.
Um jornal é um escritório de comissões… de idéias.
Quando leio um estirado artigo tratando das glórias da pátria,
invocando a alma da nação, com muita retórica e muita
hipocrisia, tenho vontade de rir porque penso imediatamente nesses prestidigitadores
que algaraviam para iludir o público enquanto preparam as sortes, enquanto
fazem os passes. Qual imprensa brasileira, qual história! Meu amigo,
Portugal está com o grito do Ipiranga atravessado na garganta, ele
não nos perdoa a independência e, como não se pode assenhorear
da terra, apodera-se do espírito do povo. A escravidão é
muito pior. Agora não é o território que pertence à
Lusitânia, é o povo que se sente oprimido pelo reinol, dono da
imprensa, e por isso mesmo, senhor da opinião pública. Ele faz
a política como faz o câmbio e, para que vejas o cúmulo,
basta que eu te diga que há empresários que mandam contratar
jornalistas em Portugal para virem dirigir a opinião brasileira. Vivemos
sob a tutela de feitores. Aqui só há um jornal brasileiro: é
a Gazeta da Tarde…

— Estás exagerando.

— Estou exagerando…? Mostra o exagero. Eu sei por que falo. Não,
deixem-me com a minha liberdade. Prefiro dormir debaixo da ramaria de uma
árvore da minha terra a ouvir increpações de um sapateiro
qualquer que, por haver enriquecido, na tripeça, entendeu fazer-se
proprietário de folha. Deixem-me cá com as minhas idéias,
podem parecer ridículas, mas são sinceras.

— Que diabo! Vocês estão hoje azedos.

— Eu não, disse Anselmo.

— Nem eu, ajuntou Fortúnio.

— Olha, o Anselmo vai dirigir um jornal e não consta que ele
tenha nascido na outra banda.

— Sim, vai dirigir… Mas quais são os proprietários
do jornal? Dois comissários de café, portugueses.

— Mas que ódio é esse a Portugal, homem de Deus?

— Perdão, eu não tenho ódio algum, estimo e admiro
Portugal, mas como brasileiro não devo deixar sem protesto a intervenção
do estrangeiro na vida nacional. Você não vê um francês
intrometer-se conosco, nem um inglês, nem um alemão — é
só o português.

— Mas há as afinidades de origem, a língua, os costumes.

— História, homem! É que quem foi senhor entende que
há de sempre dominar, esta é a verdade.

— Estás bilioso.

— Não estou tal.

— Estás. Vamos sair. A tarde está linda.

— Não, eu despeço-me. Vou ver um patrício. Até
amanhã.

— Não queres jantar comigo?

— Não.

— Olha que lá em casa só o vinho é português,
mas excelente.

— Perdão, pensas que sou inimigo dos portugueses? Não
há tal, já expliquei a minha opinião. Que farias tu se
um hóspede começasse a dar leis em tua casa?

— Quebrava-lhe a cara.

Riram-se todos e, sem mais explicações, apartaram-se.

Capítulo XIX

Anselmo estava in albis e, como pretendia passar a noite trabalhando, porque
tencionava dar começo a um romance para o rodapé do Diário
Ilustrado, deteve-se na esquina da rua Uruguaiana farejando um jantar. Mas
os jantares não passeiam na rua do Ouvidor e, certo disso, o futuro
redator-chefe foi subindo vagarosamente, desacorçoado, quando, no largo
de S. Francisco, ao dar com a estátua do patriarca, que o sol crepuscular
polvilhava de ouro, teve uma inspiração feliz:

“É verdade! Por que não hei de ir jantar em uma casa de
jogo? Fortúnio come regaladamente e declara que as tavolagens têm
os primeiros cozinheiros desta cidade. Que mal há nisso? Vou; não
jogo, mesmo porque não tenho vintém, como e ponho-me a andar
antes que a polícia me apanhe na batota. O diabo é que não
conheço ninguém… Se ainda pudesse encontrar o Lins… Mas
onde?!” Resolveu procurar o poeta no Castelões, mas só
achou o Neiva, na última mesa, diante de uma papelada esparsa, a tomar
notas.

— Salve! O boêmio fitou-o com os olhos piscos, sem pince-nez.

— Oh! Senta-te. Bebes?

— Não.

— Sabes? O nosso Lins está à morte.

Anselmo deu um salto na cadeira.

— Como?! Se ainda ontem estivemos juntos.

— Pois, meu amigo, já está sem fala. Estou chegando da
casa dele. Nem me reconheceu.

— Mas que tem?

— Sei lá! Congestão ou coisa assim. E, pondo o pince-nez,
bramiu com os olhos rutilantes: Extravagâncias! Vocês não
me querem ouvir. Vivo aqui a bradar, como um João Batista, contra as
extravagâncias e todos pensam que estou a fazer pilhéria. Seu
Lins é um homem fraco, doente, pois ontem, à noite, em vez de
tomar o seu conhaque do costume, entendeu que devia experimentar um sorvete.
Sorvete! Neste país…! O resultado aí está: não
escapa. Os médicos não têm esperança de salvá-lo.

— Então é grave…?

— Se estou a dizer que já perdeu a fala.

— Vou vê-lo.

— Deves ir.

— Onde mora ele?

— Fora de portas; nos confins da rua do Senador Pompeu.

— E eu vinha aqui procurá-lo para ir com ele a uma casa de jogo.

— Hein?! Vais jogar?

— Qual jogar! Não tenho um vintém: ia jantar.

— Ias à ficha de consolação.

— É verdade.

— Janta comigo, queres?

— Onde?

— Ali defronte, no Londres.

— Pois vamos.

— Mas espera um instante, deixa-me arranjar esta papelada… Posso
morrer de uma hora para outra e não quero comprometer umas tantas senhoras
que me amam. Estou agora com seis complicações: duas no largo
do Rocio, uma na rua do Lavradio, outra na rua do Riachuelo, ainda outra no
Daury e uma senhora honestíssima em Paula Mattos…! Ah! Meu amigo,
só a minha paciência, só a minha paciência! A de
Paula Mattos, então, é uma fera! Quando apareço tarde
desaba em cima de mim como uma avalanche, e são beijos, e são
lágrimas e são dentadas. Um desespero! Tenho o corpo como um
mapa-múndi. Sou um homem tatuado pelo amor. Ontem fui ao cabeleireiro
e o homem esfregou-me a cabeça com uma loção não
sei de que, pois, meu amigo, quase me matam, as seis! Foi um trabalho para
convencê-las de que eu saíra de um salão de cabeleireiro
e não da câmara de uma rival, e à noite, estava amassado,
triturado… um horror! Não te metas com mulheres ciumentas, mira-te
neste espelho e, arregaçando a manga do casaco, mostrou o braço
manchado, denegrido. E isto não é nada, se visses o resto choravas;
é um horror! Mas que hei de fazer? E a despesa? Uma quer frutas, outra
quer camarotes, outra reclama um leque. A de Paula Mattos anda a perseguir-me
por causa de um chapéu que viu na Douvizy e seu Neiva que cave! Já
ando atordoado, não sei mais como arranjar dinheiro. Toma alguma coisa.

— Vou tomar um Xerez.

— Olha um Xerez aqui!

— E o Grêmio, Neiva?

— Vou tratar disso. Hoje mesmo decido a questão da casa. Já
amanhã poderemos instalar-nos. Era uma necessidade. Em toda a parte
os homens de letras têm um centro onde se reúnem. Aqui, não:
ou a rua do Ouvidor ou o botequim. É uma vergonha. E querem que haja
solidariedade. Vamos levar isso a efeito: é uma idéia que nos
pode trazer magníficos resultados. Atirou a mão espalmada à
coxa do companheiro: Seu Anselmo, nós somos uma potência. Se
nos uníssemos, se não andássemos em eterno sismo provocado
pela vaidade, porque cada qual se julga o maior, o pontífice das letras,
já teríamos feito alguma coisa, entanto não valemos nada.
Uma das causas da decadência literária, talvez a principal, é
esta maldita rua do Ouvidor. Vocês mal saem do banho frio, ainda molhados,
engolem, às pressas, a xícara de café e correm para aqui
e aqui passam os dias bebericando, elogiando-se, discutindo sonetos e crônicas
ou farejando cocottes. Que diabo! Não é assim que se faz um
artista… Trabalhem, dêem algumas horas ao livro, façam alguma
coisa a sério, deixem este maldito vício da rua do Ouvidor.

— E tu?

— Perdão, eu não sou escritor, nem me apresento como
tal — eu sou um folhetinista oral: a rua do Ouvidor é o meu rodapé.
Eu faço com a palavra o que vocês fazem com a pena, com a diferença,
porém, de que eu estudo e vocês espreguiçam-se, bocejam
inertemente.

— Tu estudas?

— Não faço outra coisa. Os meus livros andam encadernados
em cheviotes, em flanelas, em sedas; há alguns brochados: são
os miseráveis. Cada tipo dá-me um folhetim, cada vida, a mais
simples, dá-me assunto para falar uma hora. Vivo a dizer verdades.
Bem sei que a minha obra é precária, mas há de ficar
o benefício. Falo: a minha enxada está aqui e, espichando a
língua, tocou-a com o indicador.

Levantaram-se e seguiram, caminho do hotel. Justamente Anselmo chegava à
porta quando esbarrou com o Lins que entrava, com um grande charuto encravado
nos dentes.

— Que é isto! Tu aqui?!

— Então! Onde querias que eu estivesse?

— O Neiva disse-me, há pouco, que estavas à morte, sem
fala…

— Sem vintém é que estou, desde ontem.

— Mas não estiveste doente?

— Qual doente! Não tenho nada, nem ceroulas… Estou aqui sem
ceroulas. É uma vergonha!

— E com os sapatos num estado…

— Um homem de espírito não olha para os pés, murmurou
o poeta.

Anselmo levantou os olhos e desatou a rir:

— Onde foste buscar esse chapéu, Lins?

— Sei lá! Apareceu-me na cabeça hoje de manhã.
Era um velho chapéu de palha, de grandes abas, crivado de furos. E
o boêmio explicou: Creio que serviu de alvo em alguma casa de tiro.
Mas assim é bom, o ar penetra livremente e, como os médicos
recomendam que se deve trazer sempre a cabeça fresca, estou contente
com esta peneira. O Neiva, que havia parado a conversar com um patrício,
deu um salto para a calçada quando viu o poeta.

— Tu! Donde vens? Tu és o Lins?!

— Em carne e osso.

— Pois não morreste?

— Não, como vês.

— Nem esteve doente, disse Anselmo. E tu afirmaste que o havias visitado
e que ele estava sem fala.

— É exato. Mas eu sou capaz de jurar… Eu não estive
ontem em tua casa, Lins?

— É possível; não garanto, porque lá não
fui.

— É extravagante…!

— É macabro!

— Pois eu ontem estive contigo, por Deus! Estavas agonizando, sem fala.
Pensou: Onde jantei eu ontem, Francisco? Ah! No Daury… Então foi
sonho.

— Com certeza.

— E tu? Que fizeste ontem?

— Homem, para dizer a verdade, não sei. Acordei hoje às
9 da manhã em casa de uns estudantes, na rua do Núncio. Não
me interrogues: sou um poço de discrição.

— Queres jantar conosco…?

— Vá lá. Entraram.

— Pois olha, eu já tinha começado a recolher uns cobres
para mandar rezar a missa do sétimo dia.

— E arranjaste alguma coisa?

— Seis mil e que…

— Pois vamos beber essa missa e vê se tiras depois para um Te-Deum
em ação de graças pelo meu restabelecimento… e bebe-se
também o Te-Deum.

Sentaram-se à mesa e iam começando a jantar quando Fortúnio
apareceu rindo a bandeiras despregadas.

— Que é isso, homem?

O poeta sentou-se e contou, por entre gargalhadas, a “noite” do
Duarte. Havia falecido uma das suas muitas apaixonadas — menina loura,
de olhos azuis, quinze anos, com o doce nome de Carmen. Exaltado, o Duarte,
para sopitar a grande dor, atirou-se à adega paterna e, durante três
dias, encafuado entre os canteiros, bebeu e chorou desesperadamente. Na noite
da véspera, inconsolável, resolveu ir visitar a noiva que se
finara e abalou para o cemitério de S. João Batista conseguindo
penetrar no Campo Santo.

Errou muito tempo entre túmulos sem acertar com o que escondia o formoso
corpo da donzela até que, por fraqueza das pernas, rolou sobre um deles
abraçando-se com a cruz. E começou a soluçar, blasfemando
contra Deus, pedindo a morte e, tanto fez que, nem ele mesmo sabe dizer como,
arrancou a pesada cruz do sepulcro saindo com ela como uma relíquia.
Tomou o bonde, mas um soldado, desconfiando do fardo, que o poeta mal sustentava
nas mãos, interpelou-o:

— Quem é o senhor?

— Eu sou o homem mais desgraçado deste mundo, camarada.

— Onde vai com essa cruz?

— Vou levá-la ao Calvário… e desabou sobre a praça
chorando inconsolavelmente. Diz ele que o soldado ficou comovido, mas nem
por isso o deixou ir em paz: convidou-o a acompanhá-lo até à
estação e lá o Artur, em pranto, contou a cena noturna:
Que efetivamente penetrara no cemitério e que arrancara a cruz do túmulo
da sua amada para crucificar-se quando a saudade fosse muito forte. E o caso
vem hoje contado na Gazeta, sob o título Profanação e
o Artur viu, com pasmo, que a cruz era do túmulo de um comendador.

— O Convidado de pedra… É ele?

— Anda por aí indignado.

— E o processo?

— Qual processo! A família meteu-se no caso. Mas é doido!

— Inteiramente. Já jantaste?

— Não.

— Janta conosco.

— Não, estou comprometido.

— É caso de amor?

— Não, qual amor… Não tenho tempo para essas coisas.
Vou jantar com um carnavalesco que me pediu um puff.

— Ah! Bem. Amanhã, à noite, primeira reunião do
Grêmio.

— Lá estarei. E já marcaste o dia da dissolução?

— Como da dissolução? Então não acreditas
que possamos manter um centro de palestra?

— Não acredito.

— Por quê?

— Porque conheço o meio.

— Pois há de viver.

— Duvido muito. Nós não temos espírito de associação.

— Mas é necessário que tenhamos.

— Não dou dois meses ao Grêmio.

— Uma aposta! — bradou o Neiva dando um salto.

— Apostemos!

— Cem mil réis!

— Está feito.

— Não dura um mês?!

— Não dura um mês, repetiu Fortúnio tranqüilamente,
e, sem mais dizer, estendeu a mão aos rapazes e saiu.

Capítulo XX

No dia seguinte, às onze horas da manhã, sem almoço
e sem esperança de encontrá-lo, Anselmo assumia o posto honroso
de redator-chefe do Diário Ilustrado com um repórter, o Franco,
e um contínuo, o Maia. O escritório era na rua da Uruguaiana,
um sobrado novo, com duas janelas de frente, claro e arejado.

Anselmo, muito grave e sisudo, conferenciou com os proprietários da
folha sobre o programa político que devia traçar no artigo de
fundo e sobre as idéias financeiras que havia de propugnar. Quanto
à política percebeu que os homens entendiam que a monarquia
era o ideal, que o imperador era o único monarca decente do universo,
que S. Cristóvão era a suprema corte, que a princesa era uma
santa e o conde d’Eu, um sóbrio. Das idéias financeiras nada
percebeu porque os homens falaram tanto em cambiais, em estoques, em avos
e em outras coisas estranhas ao seu ouvido que ele saiu do gabinete tão
alheio a tudo como se acabasse de conversar com dois japões. Todavia
comprometeu-se, com muita gravidade, a promover a alta do café e a
cimentar o trono com a lógica formidável da sua pena. Os proprietários
saíram satisfeitos e Anselmo passou à sala da redação
para distribuir o serviço. O Franco, de mãos nos bolsos, passeava
pela sala, fumando. Anselmo chamou-o:

— Seu Franco, o senhor tem alguma coisa?

— Não tenho nada, disse o repórter continuando a passear.
Estou fazendo horas para ir às secretarias.

— Quem vai à polícia?

— O moleque. O moleque era o Maia. Eu não tenho botas de sete
léguas. Mande o moleque. Que custa? As notas estão prontas.
Eu cá não vou.

— Mas vai às secretarias?

— Sim senhor, posso ir. E, à noite, aos teatros.

— E redige as notícias?

— Deus me livre! Não faltava mais nada! Por sessenta mil réis.
Ora! Não redijo nada. Quem quiser que redija, eu não.

Anselmo exacerbou-se e, de pé, franzindo a fronte, com a espátula
em punho:

— Mas afinal: que faz o senhor?

O Franco voltou-se.

— Que faço? Vou à secretaria do império, vou a
secretaria da fazenda, vou à secretaria da justiça, vou à
secretaria da guerra, vou à secretaria da marinha, vou à secretaria
das obras públicas, vou à secretaria dos estrangeiros, vou à
câmara municipal… ao diabo! E então? Pensa o senhor que sou
de ferro? Isso não! Com o senhor Steel éramos dois, eu e o Reis;
agora sou eu só para tudo… Isso não! Então paguem mais.
Saio daqui estrompado para ganhar sessenta mil réis. Não está
direito. Mande o moleque. Que fica ele fazendo aqui? É um vagabundo
que passa os dias cochilando e chupando balas; que vá. Eu não
vou, já disse, nem que me rachem.

Anselmo, mais calmo, resolveu entender-se com o Maia e chamou-o. O continuo
era gago e, para dizer uma palavra, contorcia a face, escancelava a boca como
em acesso epiléptico.

— Seu Maia, você sabe ir à policia?

— Se… e… e… i… e sim se… nho… o… o… or…

— Não sabe outra coisa, um bêbedo como esse, rosnou o
Franco.

O Maia lançou-lhe um olhar feroz.

— Então dê um pulo até lá e veja se há
alguma coisa.

— À noite, aconselhou o Franco. É melhor que ele vá
à noite, porque traz tudo de uma vez.

— Eu vou… ô… vou sem… empre à noi… te, disse o
Maia.

— Pois então à noite. Mas não se esqueça.

— Nã… o es… que … e… ço nã… o… se…
e… nhor.

— Pode ir.

O Maia retirou-se e o Franco, puxando uma cadeira, repoltreou-se diante da
mesa de Anselmo.

— Então é o senhor só que vem fazer o jornal?

— Eu só.

— E agüenta?

— Não sei, vou ver.

— O senhor não agüenta. Olhe que esta folha come matéria
que não é graça. A gente escreve, escreve, escreve e,
quando pensa que tem muito, meu amigo, nem meia coluna. Vai ver. Sem um companheiro
o senhor não faz nada.

— Quem sabe!

— Vai ver. Ah! Eu sei bem como se faz um jornal.

— Também eu.

— Pois não parece. O senhor arria… Se não chamar um
companheiro não faz nada. Depois, meu amigo, quando a gente trabalha
e vê cobre ainda vale a pena, mas aqui…?!

— Não pagam? — perguntou Anselmo sobressaltado.

— Ora! Uma ninharia. Eu ganho sessenta mil réis: e o senhor?

— Duzentos.

— Não é dinheiro.

— É pouco, concordo, mas, em todo o caso, já se vive.

— Qual! Um homem não vive decentemente no Rio de Janeiro com
menos de quinhentos mil réis. Quanto pensa o senhor que eu gasto por
mês? Pensa que eu vivo com esse cobre magro que levo daqui? Pois sim…
Eu regulo gastar quatrocentos a quinhentos mil réis. Ah! Faço
a minha feriazinha todas as noites: vou a um bico, vou a outro e pingando
aqui, pingando ali, arranjo a minha feriazinha. Se eu só contasse com
o jornal estava bem aviado.

— O senhor joga?

— Jogo, não por vício, por necessidade: sustento minha
mãe e uma irmã. Só de casa pago quarenta mil réis
e, com vinte hei de dar de comer a duas pessoas e roupa e calçado e
botica, mais uma coisa, mais outra? Atirou uma cusparada por entre dentes,
silvando. Faço a minha feriazinha e vou arranjando a vida. Não
vale à pena ser jornalista no Brasil, não vale, repetiu meneando
com a cabeça desoladamente. Gosto aí de uma moça, queria
casar, mas tenho lá coragem de pedir a menina com essa bagatela? Eu,
não! Quando casar quero que minha mulher apareça, não
há de andar como muitas que conheço, isso não. Estou
aqui esperando negócio melhor. Vim para a imprensa porque pensei que
isto era outra coisa, mas logo que ache um empregozinho aí numa secretaria,
musco-me. Fincou os cotovelos na mesa e, com as mãos no rosto: O senhor
não se dá com o ministro do império?

— Não.

— Mas conhece alguém que seja boa cunha para ele?

— Não, não conheço.

— É o diabo! Se eu arranjasse um lugarzinho de amanuense…
Não digo que deixasse a imprensa, não, porque, enfim, isto é
uma cachaça. Podia, de vez em quando, escrever o meu folhetim, o meu
sonetozinho… mas contando com o ordenado certo no fim do mês. Deixe
lá! Não há como a gente ser empregado do governo. No
fim do mês o cobre está cantando e isso é que serve.

— E o senhor escreve folhetins?

— Não sabia?

— Não.

— Escrevo; e faço versos. Tenho aqui um soneto, se quer. E meteu
a mão no bolso fundo do casaco.

Tirou um papelucho amarelado, abriu-o lentamente, pigarreou e leu, com grandes
gestos largos:

À CONSTANÇA

Constança morena tu és a aurora Do meu porvir magnânimo
e sublime. Se o meu verso o meu amor exprime Eu deixo aqui o meu verso, senhora.

Ontem de tarde quando a carpidora Pomba rola, mais débil do que o
vime, Cantava a sua balada, ai! eu senti-me Capaz de acompanhá-la pelos
campos afora.

Porque a vida é dor, loura criança E eu choro tanto por ti
que o meu peito Já está seco assim como o Saara.

Olha para mim, ó pálida Constança! Vê como estou
por dentro todo desfeito Diz à minha dor duma vez: Ó dor, pára!

Dobrou o papelucho e, fitando Anselmo com ar triunfante, perguntou:

— Então, que tal?

— E o número de sílabas? E o conceito?

— Conceito! Para que isso?

— Pois não é uma charada novíssima?

O Franco bufou:

— Que charada! Trate sério. Pois eu vou lá fazer charadas
à minha noiva, seu…? É um soneto e está muito bem feito.
Não vejo por ai quem faça melhor. Agora, se não quer
publicar é outro caso.

— Tem uns versos quebrados.

O repórter pôs-se de pé, como afrontado e, arrancando
o soneto que havia descido ao bolso profundo, repetiu, com espanto:

— Versos quebrados… Onde?

— Leia lá.

E o Franco com ênfase, declamou:

Constança morena tu és a aurora

— Hum…

— Hum como? Então este verso está quebrado? Onde está
a quebradura?

Constança morena tu és a aurora

— Vamos adiante.

Do meu porvir magnânimo e sublime

— Voltou-se intimativo:

— Também está quebrado?!

— Não, mas é imbecil. Porvir magnânimo e sublime
é asneira.

— Asneira…! Ora tire o cavalo da chuva. Então eu não
sei português! Asneira, porque…! Vamos ao dicionário. Ó
Maia, que é do dicionário português? O Maia esticou o
beiço e bateu com uma das mãos na outra. É, já
foi para o sebo… Pois se houvesse aqui um dicionário eu mostrava.

Se o meu o verso o meu amor exprime

Diga que está também errado; e pôs-se a contar pelos
dedos:

“S’o meu verso meu amor exprime…”

Ficou pensativo, depois disse:

— Tem nove, falta uma. Baixou os olhos, de repente, erguendo a cabeça,
exclamou: Mas espere, há um que tem onze, tira-se-lhe uma e passa-se
para este e fica tudo arranjado.

— E… disse Anselmo que já havia lançado o título
do artigo de fundo, em letra caprichosa e esbelta: Caveat!

— Vai escrever o artigo?

— Sim, vou.

— Então eu vou dar um giro; posso apanhar alguma noticiazinha
fresca. Olhe, hoje há uma primeira. O senhor vai?

— Vou.

— Eu posso ir, se quiser… e faço a notícia.

— Obrigado; eu vou.

O Franco foi debruçar-se à sacada e ficou a cantarolar. Por
fim, resolvido, tomou o chapéu e saiu recitando:

Constança morena tu és a aurora Do meu porvir magnânimo
e sublime

Anselmo dedicou-se de coração ao jornal. Morava na rua Marquês
de Abrantes, numa pensão nobre, em companhia do Steel, o antigo redator
do Diário. Levantava-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para
a cidade, sentando-se imediatamente à mesa de trabalho. Escrevia o
artigo de fundo, a Boemia, romance au jour le jour, a crônica do dia,
redigia o noticiário e todas as seções; corrigia as notas
que o Maia trazia da polícia e ainda passava os olhos pelas notícias
do Franco, cuja ortografia era das mais complicadas. À noite estava
derreado. Mas com que prazer, na manhã seguinte, abria o jornal e revia
o seu trabalho, emoldurando a gravura central que ele sempre acompanhava de
algumas palavras explicativas.

Os proprietários, entretanto, não pareciam satisfeitos, porque
o jornal não tinha venda e era um trabalho para o agente conseguir
um anúncio. O Franco, sempre a protestar contra a miséria: -“que
não havia talento possível com aquela pingadeira”, aparecia,
às vezes, à noite, resmungando, com a papelada numa confusão
horrível e, acumulando as notas, monologava:

— Qual! Quando não se está de sorte é isto…
O meu número! O meu número!… Se eu tivesse feito o meu jogo
tinha estourado a banca. Mas é isso, quando não se está
de sorte…

Depois o diabo daquele cabula a chorar, a chorar. Detinha-se, cravava os
cotovelos na mesa, e, com as faces nas mãos, ficava olhando perdidamente:
Três vezes! Parece incrível! E eu no pequeno! Pedaço de
burro! É bem feito. Mas qual! Quando não se está de sorte
é assim mesmo. Estão aqui as notas.

— Houve alguma coisa?

— 0 29…

— Foi preso? — perguntou Anselmo julgando que ele se referia
ao idiota que escandalizava a rua do Ouvidor com os seus impropérios.

Mas o Franco amuou:

— Qual preso! Deu três vezes e eu no 8.

— Ah! Na roleta…?

— Sim, mas não jogo mais, nem uma ficha. A roleta é um
jogo besta. Afinal qual é a ciência da roleta? Nenhuma, é
só questão de sorte. Há três dias que não
ganho um vintém, é só perder, perder. Vou dar com o basta!

— Foi às secretarias?

— Fui; pois não estão ai as notas? Não houve nada.
Amanhã sim, há despacho.

— Bom, vamos trabalhar.

— Eu vou dar uma volta pelos teatros.

Saiu. Às dez horas o Maia ia ao Diário Oficial e à meia-noite,
quando o paginador, saciado, declarava que o jornal estava pronto, Anselmo
saía lentamente, tomava um copo de leite no Java e ia cochilando no
bonde até a porta de casa e, às vezes, passando pelo quarto
dó Steel, ouvia palavras sussurradas, risinhos, estrépitos de
beijos e lembrava-se de Amélia com voluptuosa saudade, mas tanto que
repousava a cabeça no travesseiro adormecia pesadamente como um cavador.

Apesar de todos os esforços, o jornal não lograva impor-se
ao favor público e, quinze dias depois de haver Anselmo assumido á
redação, os proprietários, vendo que o café continuava
a baixar, zombando dos artigos violentíssimos do redator-chefe, resolveram
“suspender a cesta”, como disse, com muito pitoresco e muita resignação,
o Franco, quando recebeu o saldo.

Voltaram os dias difíceis. Forçado a abandonar a casa da rua
Marquês de Abrantes, onde se achava tão confortavelmente instalado
e podendo dispor do magnífico guarda-roupa do Steel, que era janota
e franco posto que, algumas vezes, franzisse o nariz encontrando na rua do
Ouvidor as suas calças cobrindo as pernas magras do companheiro, Anselmo
partiu à aventura como o moço Perceval, não à
conquista do santíssimo cálice, mas em busca de um teto e de
uma sopa que o resguardasse da intempérie e lhe saciasse a fome.

A boemia parecia haver emigrado — só o Neiva e o Lins apareciam.
Ruy Vaz anunciava um romance. Havia também abandonado, não por
gosto, o palacete das Laranjeiras, o amorável e penseroso arvoredo
e os jantares pantagruélicos e vivia num sótão modesto
com a sua musa e um cachimbo. Fortúnio também andava afastado.
Bivar, com idéias científicas, ia, de quando em quando, dar
uma vista de olhos ao anfiteatro e compunha poemetos. O Duarte, sempre apaixonado,
contava a toda gente os seus infortúnios. O Moraes e o Artur laboravam.
A Vida Moderna, em luta aberta com a Semana, saía aos sábados,
tremenda, com a sua gravura pantafaçuda e os formidáveis artigos
do poeta da Tarântula.

Estava travada a batalha, e, uma tarde, como se encontrassem dois grupos
num botequim, correu copiosamente o caldo de cana que foi o hidromel do festim
espiritual, e, diante dos burgueses aterrados, poetas de um e do outro partido
recitaram, como em Wartburgo quando os bardos, tendo à frente o grande
Wolfran, empenharam-se na grande luta lírica.

O Moraes, assomado, lembrava aos do seu bando o que deviam recitar e Fortúnio,
com uma voz branda, disse uns versos repassados de melancolia, o Alberto respondeu-lhe
com um soneto admirável. Moraes ergueu-se e os alexandrinos fortes
da Guerra atroaram com o fragor de catapultas. Outro poeta bucólico
veio trazendo por uma rechã, ao romper do dia, um carro de bois rangendo
aos solavancos e Anselmo frenético, com os olhos despedindo raios,
arregaçando as mangas do casaco, despejou sobre a mesa a sua cornucópia
helênica e, de mistura com pastores que sopravam syrinx, saíram
hoplitas e deuses, hetéros e pallakai, filósofos e poetas, Eschylo
às voltas com Aristeu, Menandro de braço com a lúbrica
Lycenion, Laís e Minerva, as bacantes e as coéforas, as eumenides
e as tesmofórias e às cinco e meia da tarde, encharcados de
caldo de cana, abalaram triunfalmente os daquele Parnaso onde havia um moinho
de café e um homenzinho, corcunda como Thersito, que apregoava bilhetes
de loteria.

A vitória ficou indecisa, mas o Moraes, querendo dar uma batalha decisiva,
no número seguinte da Vida Moderna, atirou-se, com a fúria de
um Ajax, sobre um dos grandes poetas do outro lado e desancou-o.

A resposta seria violenta se houvesse saído, mas o jornal contrário
apareceu calmo, sem referir-se à questão, e os da Vida Moderna
entoaram o péan da vitória.

Capítulo XXI

Por esse tempo o Grêmio de Letras e Artes, que já havia conseguido
reunir no seu seio oito sócios dispostos a tudo, anunciou a segunda
sessão. À noite, onze letrados assinaram o livro de presença
e o presidente declarou que ia dar começo aos trabalhos. Fez-se um
grande silêncio e foi lida a ata da sessão anterior. Logo em
seguida um poeta de Niterói, já avô, pediu a palavra e,
desatando um grande embrulho, anunciou a leitura de um poema.

Um calafrio percorreu a sala. Vagarosamente, o relógio da Torre de
S. Francisco bateu oito badaladas quando o venerável poeta disse, com
uma voz circunspecta e o gesto sóbrio de quem vai tomar uma pitada:
Canto primeiro…! Às dez e meia da noite, num silêncio fúnebre,
o gênio, depois de haver engolido dois copos de água gelada,
anunciou: Canto segundo. O Lins dormia profundamente; Duarte, recostado, fazia
castelos; Moraes arrancava fios do bigode; o presidente estava sucumbido,
um dos secretários havia abandonado a mesa e, ao fundo, o Teixeira,
empoado de caspa como se tivesse sobre os ombros um arminho, passeava resmungando.
À meia-noite a voz do poeta anunciou: Canto terceiro. Era demais!

O Neiva deu um salto feroz:

— Hem! Canto terceiro!? Não! Você está enganado.

O Moraes rugia e Fortúnio, muito calmo, estirou os braços bocejando.

— Vou-me embora! — disse o Moraes.

— Faltam apenas quatro cantos, explicou timidamente o poeta.

— Quatro cantos! — exclamou o Neiva. E o cavalheiro pensa que
eu não tenho trabalho para ficar aqui até depois de amanhã
às suas ordens? Ora, meu amigo.

— Mas eu estou com a palavra.

— O senhor está com a palavra e eu estou caindo de sono.

— Senhor presidente, decida: Os meus dignos consócios entendem
que a hora vai muito avançada.

— A hora está correndo… para fugir do poema, disse Fortúnio.

E o poeta continuou:

— Peço a V. Exa. que me garanta a palavra para a sessão
seguinte.

— Não apoiado! — exclamou o Neiva e outros bradaram:

— Não apoiado!

— Como não apoiado? É do regimento…

— Qual regimento. Para um caso como este só um regimento de
polícia. Peço a palavra, Sr. Presidente.

Mas o presidente dormia e foi necessário que um dos secretários
o sacudisse para que ele desse atenção ao Neiva que gesticulava,
trepado em uma cadeira.

— Tem a palavra o Sr. Francisco Neiva.

— Sr. Presidente, peço a V. Exa. que suspenda a sessão.
É mais de meia-noite, as nossas famílias já devem estar
alarmadas, e eu estou com fome. Não jantei ainda, saí da Ilha
das Flores e vim logo para aqui. Mas se soubesse que havia uma cilada, palavra
de honra: não me apanhavam.

— Cilada?!

— Pois não, Sr. Presidente: três cantos de um poema maior
do que a paciência de um santo. É necessário que V. Exa.
ponha cobro a tais escândalos. Se começam a fazer pilhéria
como a de hoje, não dou nada pelo grêmio. Eu serei o primeiro
a pedir demissão… Ah! Não há dúvida!

— Eu não sabia que os senhores não gostavam de versos.

— Perdão, gostamos de versos, mas detestamos essas coisas que
o senhor fez com o propósito criminoso de destruir a obra do nosso
esforço.

— Como?!

— Como!? Dando cabo da paciência dos sócios. Olhe, ali
naquele quarto há dois dormindo a sono solto, aqui dormiram todos,
menos eu porque queria ver até onde ia a sua coragem: foi até
ao canto segundo e iria ao décimo se não protestássemos.
Ora, meu amigo, ao menos por condescendência…

— Vá ser poeta assim para o diabo! — rosnou o Moraes.

— Meia resma de papel!

— Mas eu pedi licença.

— Pediu licença para ler um poema, mas não disse que
era um absurdo, uma cacaria métrica.

— São alexandrinos.

— Alexandrões! Há versos ai que têm mais pés
do que uma escolopendra. Senhor Presidente, meus senhores, boa noite!

Diante da disposição do Neiva o presidente suspendeu a sessão.

Para Fortúnio e Anselmo o Grêmio foi uma instituição
providencial: não lhes deu glórias literárias, mas que
sonos magníficos ali dormiram os dois! Certa noite, depois de uma tumultuosa
sessão, como chovesse a cântaros, foram os dois entender-se com
o Teixeira, chamado o “mar Cáspio”, título alusivo
à carambina que lhe caía da cabeça branqueando-lhe o
casaco, para que lhes permitisse ficar em um dos quartos, que era chamado
o arquivo e onde apenas havia jornais, um almanaque de Laemmert e uma Igta
pequena a um canto. O Teixeira, que era o zelador do Grêmio, não
o queria ver transformado em albergue noturno e resmungou. Mas os dois boêmios,
com argumentos fortes e pondo-se logo à vontade, convenceram-no. O
arquiteto saiu recomendando o maior cuidado e que não acendessem cigarros
com os preciosos autógrafos que havia na pasta.

— Não há dúvida, Teixeira: dormiremos tranqüilamente
e, se não houver um terremoto, hás de encontrar amanhã
a casa como nola confias e Deus no céu levará ao teu ativo dois
sonos repousados que vão dormir um poeta e um prosador.

— E de manhã, quando saírem, puxem a porta.

— Puxaremos a porta, Teixeira. Vai com Deus!

— Até amanhã.

— Até amanhã.

Sós, com todo o gás da casa aceso, sentaram-se nas cadeiras
dos “imortais” e Fortúnio, acendendo um cigarro, estirando
as pernas, rompeu o silêncio.

— Ora muito bem. Já é alguma coisa a literatura: fornece
hospedagem. Graças ao nosso talento temos uma casa para dormir. Verdade
é que não há cama, mas também Roma não
se fez em um dia. Contentemo-nos com o quarto, amanhã virá o
resto.

— Mas, a propósito, onde vamos dormir…?

— No chão.

— Com este frio!?

— Temos ali jornais, podemos forrar o soalho com jornais.

— E para nos cobrirmos?

— O Jornal do Commercio é um magnífico lençol.

— Então vamos arranjar isso, porque eu estou a cair de sono.

— E eu também, disse Fortúnio: passei ontem uma noite
de cão.

— Onde?

— Na praia de Botafogo.

— Em casa de quem?

— Numa estação de policia.

— Foste dormir em uma estação!?

— Fui, não: levaram-me.

— Por quê? Que fizeste?

— Eu? Nada, mas o Duarte é louco. Era uma hora da madrugada,
íamos os dois pela rua de S. Clemente, quando o Duarte viu uma barrica
abandonada. Quis fazer de Diógenes e pôs-se a rolar a barrica
e teria ido com ela ao Jardim Botânico se um soldado não lhe
embargasse o passo. Nós, para dizer a verdade, não estávamos
muito direitos e começamos a discutir com a polícia e o resultado
da discussão foi o homem zangar-se ameaçando-nos com o rifle.
Diante da atitude bravia do permanente, Duarte, que não é mole,
espalhou-se e atirou tal cabeçada que o soldado virou de pernas para
o ar e nos… é por aqui! Mas o homem levantou-se e, apitando, lançou-se
desesperadamente atrás de nós e, quando íamos tomando
um bonde que passava, fomos agarrados. Ah! Meu amigo, que noite! Na estação
protestei, quis resistir, mas havia tantas espingardas… Quando me pediram
o nome tive uma esperança e disse com arrogância:

— Fortúnio, jornalista. Mas o cabo rosnou: “Hum! É
a mania de todos… Já apareceu aqui um que disse que era Fagundes
Varella, outro que era o barão de Cotegipe e estava numa mona que não
se lambia. Pois sim… Meta os homens no xadrez!” E lá fomos de
cambulhada. Vociferei, jurei vingar-me, agarrei-me às grades, mas tive
que resignar-me e fiquei com o Duarte entre uma negra bêbeda e um italiano
feroz, que rangia os dentes e jurava por todas as madonas do Paraíso.
Noite medonha! Às três horas entrou um sujeito que fora encontrado
tentando arrombar um quiosque. Que lamúria! Esse não esteve
calado um segundo. “Aí está, um homem vai com o seu dinheiro
procurar alguma coisa para comer e vem um camarada dizendo que a gente está
arrombando o quiosque… Eu, ladrão! Seja tudo pelo amor de Deus! Ai!
Ai! E ainda por cima trazem a gente para um chiqueiro destes, cheio de pulgas…
Isto até faz mal. É por estas e outras que há tanta febre
amarela no Rio de Janeiro, pois não limpam o xadrez como é que
a gente há de ter saúde? Um homem sai daqui direitinho para
o Caju. Ai! Não é pela prisão… Quantos homens importantes
têm sido presos? O Tasso… E o Tasso era um poeta supimpa! Eu só
me zango porque me tomaram por gatuno. Há muita injustiça neste
mundo de Deus! Um homem velho, doente, arrombando quiosques…” Depois
implicou com o italiano que, cochilando, caía sobre ele: “Chega
pra lá, mussiú…” E, de uma vez, atirou tamanho murro
repelindo o dorminhoco que, se um soldado não acudisse, teria havido
uma cena terrível, talvez sangue. Por fim, cansado, adormeci. Mas de
manhã, quando tivemos de subir à presença do delegado,
entre praças, no rol dos vagabundos, pela praia de Botafogo… Ah!
Anselmo, quase morri de vergonha. Bondes passando, gente conhecida… Um horror!
felizmente o subdelegado conhecia o Duarte, depois de muitos conselhos, mandou-nos
em liberdade, mas eu fiquei sem quinze mil réis que levava.

— Furtaram-te?

— O escrivão pediu-mos sob promessa de liberdade. Estou morto.

— Vamos dormir.

Estenderam os jornais, um ficou com o almanaque de Laemmert e, cobrindo-se
com as largas folhas do Jornal do Commercio, adormeceram profundamente sobre
a imprensa da capital.

Acordaram com o rumor das carroças que desciam a rua, aos trancos.
Fortúnio estirou os braços preguiçosamente e saiu em
exploração pela casa, com esperança de encontrar um banheiro;
mas apenas existia uma bica avara e os dois resignaram-se a uma fusão
ligeira, dizendo Anselmo, com mau humor, sacudindo a água do rosto,
como quem sacode o suor:

— Bem se vê que esta casa foi construída pelo Teixeira.
O monstro é tão entranhadamente patriota que, apesar de viver
no Brasil há trinta e cinco anos, ainda tem no corpo terra de Portugal.
Vejam isto — um prédio, com pretensões a palácio,
sem banheiro.

Voltando ao quarto rasgaram as camas e os lençóis e Anselmo
teve curiosidade de ver o que havia na lata.

— Há ali alguma coisa, Fortúnio; vamos ver?

— Cuidado! Talvez sejam ossos de algum parente do Teixeira.

— Se forem ossos põe-se ali um epitáfio. Vou ver… E,
sem mais hesitar, abriu a lata, lançando aos ares uma exclamação
ruidosa.

— Que é? Ouro?

— Roupa branca, meu amigo! Roupa branca: uma camisa, um par de meias,
ceroulas e dois lenços… Ó maravilhoso achado! Eu devia hoje
mudar o meu linho e foi Deus que me inspirou.

— Pois queres vestir a roupa do Teixeira, homem?!

— Certamente.

— Mas desapareces e vai ser um trabalho para eu encontrar-te. É
uma loucura.

— Qual loucura! Antes de mais nada a limpeza. Bem vês que a minha
camisa está ganhando uma cor neutra, porque não é branca
nem cinzenta e esta é alva como a inocência. O diabo é
a gola. Ora! Ao menos andarei folgado. E, atirando para um canto a camisa
neutra, vestiu a do Teixeira que rescendia suavemente a erva de S. João.
Mas a gola…! Se Anselmo baixava a cabeça ia-se-lhe o queixo pelo
abismo, se a levantava aparecia-lhe metade do peito. “Mas o ar penetrava
livremente… era como se estivesse nu…” — disse o boêmio
arregaçando as mangas compridas. Valente pescoço, sim, senhor!
Valente pescoço!

— Anselmo, tira essa camisa, está indecente.

— Qual indecente! Uma camisa que cheira como o mês de Maio. Ó
inveja, bem te conheço.

E vestiu as ceroulas. Fortúnio não se conteve — desatou
a rir vendo o companheiro naquelas amplas bombachas. As meias cobriam-lhe
o pés e ainda sobraram, como etc., etc., duas pontas indefinidas.

— O pé do Teixeira vale bem os versos do Silva. As meias parecem
folhetins… com o “continua”. Tanto melhor: quando estiver suja
uma metade calço o resto.

— Não são meias, são inteiras.

— Em compensação, os lenços são magníficos.

— Mas tu pretendes sair assim, Anselmo?

— Por que não?

— Estás hediondo.

— Mas limpo.

— Procura um espelho.

— Qual espelho! O meu espelho é a consciência. Vamos tomar
café. Se eu desaparecer na camisa, puxa-me.

— Não olhes para baixo.

— Por quê?

— Por causa da gola: podes ter a vertigem do abismo.

— Descansa — olharei para diante.

Contendo o riso, Fortúnio saiu com o companheiro. Na rua várias
pessoas olharam, com espanto, a imensa gola por onde o vento entrava uivando
como por um túnel. Mas o boêmio, de cabeça alta, seguia
para o Java, onde fez um almoço de assobio em companhia de Fortúnio.

Às duas horas estavam no Pascoal, discutindo a literatura do Norte,
quando o Teixeira rompeu, fulo de ira:

— A minha roupa, senhor Fortúnio. Pois os senhores pedem-se
o Grêmio, transformam-no em hospedaria e, ainda por cima, carregam a
minha muda de roupa?

— Perdão, disse Fortúnio sisudo, eu não tenho
a sua roupa.

— Eu não sei quem a tem, o caso é que ela desapareceu
da lata. Então está com o outro.

Anselmo, que vira entrar o Teixeira, alteou a voz, falando dos russos, mas
o arquiteto interrompeu-o:

— Minha roupa! Vendo a imensa camisa, reconheceu-a imediatamente e,
de braços cruzados, meneando com a cabeça, exclamou: Ora, seu
Anselmo… pois você!

— Que é?

— Que é! É a minha camisa que o senhor tem no corpo.

— É tua?

— De quem há de ser?

— Pois olha, não sabia.

— Ah! Não sabia? Pois saiba então. A camisa, as meias,
as ceroulas, tudo que o senhor tem no corpo.

— Perdão: as calças são minhas, o colete, o casaco,
a gravata, o chapéu, as botinas…

— Eu falo da roupa branca.

— Branca é um modo de dizer: amarela, porque está encardida.
Tens uma lavadeira detestável.

— Não sei, vamos ao Grêmio porque eu preciso da roupa.
Quem o alheio veste…

— No Grêmio o despe, concluiu o boêmio, e fleumaticamente:
Mas eu não dispo.

— Como não despes? Então pretendes ficar com o que é
meu? Achas que devo andar com um colarinho amarfanhado e você aí
muito janota…

— Janota com esta gola? Ora seja tudo pelo amor de Deus! Teixeira,
deixa-me com a roupa. Eu quero devolver-te lavada pela minha lavadeira, que
é uma artista.

— Mas eu não quero! — rugiu o arquiteto.

Das outras mesas já olhavam curiosamente quando o Patrocínio
e o Moraes decidiram intervir na questão, responsabilizando-se, o primeiro
pela camisa e por um pé de meia; o segundo, pelas ceroulas e pelo outro
pé de meia. E o Teixeira foi convidado para a mesa tomando furiosamente
uma cajuada, enquanto o queixo de Anselmo aparecia e desaparecia no abismo
do colarinho.

Quinze dias depois o Grêmio de Letras e Artes, esperança do
Brasil literário, fechava as portas depois de renhida discussão,
que ia degenerando em pugilato. Os ilustres fundadores do grande cenáculo
saíram pesarosos e convencidos de que, entre homens de letras, não
há espírito de associação.

— “Não coadunam, dizia o louro secretário, homens
de talento não fazem liga, é escusado. Um poeta e um romancista
podem engalfinhar-se, ligar-se é que não. Isso nunca!”

E durante um mês, aos jantares, não apareceu proposta alguma
para fundação de clubes literários.

Fortúnio e Anselmo sentiram profundamente, porque perdiam uma casa
magnífica, posto que o Teixeira, escarmentado, não quisesse
mais permitir dormidas no santuário do espírito. Resignaram-se
e atiraram-se ao mundo com coragem e fé.

Uma manhã, Anselmo rondava os cafés lançando olhares
compridos, quando o Neiva apareceu esbaforido:

— Ó homem! Madrugaste?!

— Não dormi.

— Como, não dormiste?

— Não, passeei: fui a Botafogo a pé, fazer horas.

— Deves estar estafado.

— E louco por uma xícara de café.

— Vamos tomar. Entraram no lava e o Neiva, servindo-se de açúcar,
disse de repente: Homem, queres uma impressão?

— Preferia um par de sapatos.

— Isso agora é difícil.

— Dize lá.

— Vem comigo a bordo. Vou receber a primeira leva de retirantes.

— Os cearenses?

— Sim.

— É hoje?

— É agora. O paquete está entrando.

— A que horas poderemos estar de volta?

— Às duas. Se queres, decide-te.

— Vou. O diabo é que perco a hora do almoço.

— Almoçaremos a bordo.

— Mas… haverá ainda alguma coisa? Um navio que vem do Ceará…

— Ó homem, avia-te!

— Vamos lá. Seguiram.

Capítulo XXII

O Neiva, muito loquaz, pôs-se a falar dos patrícios que vinham
nesse êxodo triste, tocados pela fome.

— Pobre gente! É o sertanejo da minha terra, é o rústico
do meu campo cearense, é o caboclo serrano, é toda a população
do grande centro flagelado. Vais ver que miséria. Deus não se
compadece do meu Ceará. De vez em quando é isso — um sol
tremendo que bebe toda a água dos rios, que seca todas as fontes, e
começa o abandono da terra. Quem anuncia a calamidade é o gado
arribando das várzeas adustas com o “choro” lamentoso que
se ouve à distância como um prantear da natureza sacrificada.
Parece que é a própria terra que geme e clama misericórdia.
Depois é o homem que, vendo mirrar a sua roça e não encontrando
gota de água no açude árido, fecha a porta da cabana
e emigra. Oh! A retirada…! O gado vai caindo exausto pelos caminhos e os
corvos baixam sobre os bois magros e acabam-nos a bicadas, devorando-os em
vida. O homem, mais resistente, caminha afundando os pés na areia adusta,
com a cabeça ao sol, cantando para suavizar a marcha dolorosa. E são
velhos trôpegos que mal podem mudar um passo, mulheres, crianças
e moças virgens, sertanejinhas formosas, abandonados, caminhando sem
ver um oásis, através da esterilidade inclemente.

Se um pântano aparece ao longe, precipitam-se atropeladamente, ajoelham-se
à beira d’água morta e bebem, arrancam a taboa e envenenam-se.
Alguns morrem e ficam apodrecendo nos caminhos; outros, com desânimo,
deixam-se cair &aagrave; sombra escassa de uma árvore sem folhas e sucumbem
à míngua ou devorados pelas onças. E quanta tristeza
nas cantilenas! Este, lembra a sua casinha de palha, entre os milhos; aquele,
fala, com saudade, da sua roça, do lugar em que nasceu, de onde saiu
pela primeira vez, expulso pelo sol. E o clamor, que é assim que eu
chamo ao canto dos retirantes, o hino magoado dos banidos, ecoa de quebrada
em quebrada lamentavelmente.

Mas, meu velho, mais cruel que o sol é o coração do
homem. Esses infelizes são explorados na sua miséria. A virgem,
quando chega à primeira vila, aparece logo o libertino propondo um
punhado de farinha a troco da sua pureza, e a desgraçada, que tem fome,
entrega-se, às vezes, perto dos pais moribundos, diante dos pequeninos
irmãos, que olham espavoridos.

— É infame!

— É uma miséria! Mas que queres? É assim. Eu queria
que me mandassem dirigir o serviço no Ceará e eu que encontrasse
um desses patifes! Arregalou os olhos e bufou colérico, com os punhos
cerrados: Esganava-o, palavra de honra! Esganava-o! Vais ver a miséria.

Haviam chegado ao cais Pharoux. Catraieiros avançaram de chapéu
na mão, oferecendo botes:

— É para o nacional? Temos ali a Maria Flora, patrão…
Olha o Ventania… É para o francês? Quer um bote, patrão?
Eu tenho toldo. Podemos ir à vela… E assediavam-nos, falavam ao mesmo
tempo, disputando os dois rapazes. E o Neiva, muito calmo, sem lhes dar atenção,
bradou diante do mar:

— Lá está ela! Ali vem! Irrompeu então contra
os homens. Pois os senhores não me vêem embarcar aqui todos os
dias? Não sabem que tenho lancha? Não me conhecem? E empertigado,
ameaçando com a bengala: Enquanto eu não vier um dia disposto
a fazer uma limpeza neste cais isto não endireita. Os catraieiros retiraram-se
cabisbaixos e o Neiva, rugindo, acompanhou-os algum tempo com o olhar chispante.
Depois voltou-se para o Castelo: Lá está o sinal do paquete.
Vamos, está aí a lancha. E caminharam para o embarcadouro.

Como deviam entrar dois paquetes, já assinalados no Castelo, era grande
o movimento de embarcações no mar — botes que iam à
vela ou a remo, lanchas que partiam sulcando fundo as águas. A baía
fulgurava toda em chispas, ao sol. Gaivotas circulavam no ar puro, grasnando.
Os dois tomaram a lancha que logo se pós em marcha, demandando o navio
que entrava, lento e negro, vagaroso, pesado.

— Pobre gente! — exclamou o Neiva com a mão em pala diante
dos olhos encandeados. Parece que vem ali um pedaço da minha terra
infeliz, o meu Ceará amado. Por que há de o Senhor causticar
aquela bendita região dos palmares? É uma praga! Parece que
o Ceará foi escolhido pelo sol para vítima. De tempos a tempos,
bumba! Lá vem a seca e é isto que estás vendo —
o Sertão a emigrar, a fugir diante do incêndio e da aridez.

O paquete avançava majestoso e a lancha ia passando entre um cruzador
e um pontão quando sons agudos de corneta retiniram, depois apitos
e um escaler foi baixando dos turcos sobre o mar onde começou a balouçar-se
graciosamente.

— Belo navio, disse Anselmo.

— É a Guanabara.

— A minha carreira…

— O homem, pois gostas disso?

— Da marinha? Não estou ali a bordo porque meus pais entenderam
que eu tinha vocação para médico. Fui mesmo à
escola, mas no anfiteatro, diante do primeiro cadáver, o meu estômago
protestou com tanta energia que resolvi abandonar o escalpelo e o esqueleto
e atirei-me à balança e à espada. Ah! Meu amigo, o mar…!
Não imaginas como adoro o oceano!

— Pois eu detesto-o.

— Enjoas?

— Não, a bordo devoro como um escrivão de cartório.
Mas deixa lá! Não há como a terra firme: pisa-se em cheio.
Isso de saber a gente que está à mercê do vento e da vaga
não é comigo. Shakespeare já disse: pérfida como
a onda e eu já me vi com água pela barba, em uma viagem.

— Naufragaste?

— Quase! Fomos sobre uma pedras e não te digo nada… que horror!
Mas sabes o que mais pena me causou? Foi ver lançarem ao mar um precioso
carregamento de conhaque… caixas sobre caixas. Eu quis protestar com uma
objeção razoável. “Comandante, se continua a dar
bebidas ao oceano então é que ele nos arranja alguma com a ressaca…”
Mas o homem estava tão grave no seu posto de responsabilidade que retirei
o conselho e meti-me no beliche chorando o desperdício. Nada como a
terra firme, sempre há mais segurança. Em terra só naufragam
empresas. Isso de ir um de nós para as areias alimentar as sardinhas
não é nada sedutor. Não há como um homem sair
da sua casa barbeado, vestido, em um caixão de primeira com os seus
parentes e amigos para o cemitério. Sempre a gente sabe onde está…
e pode ter a sua coroa no dia de finados.

— Ora, isso é uma preocupação fútil.

— Como preocupação fútil? Não acho. Eu
é porque não tenho dinheiro; mas logo que arranje um cobrinho,
compro quatorze palmos de terra em S. João Batista e mando edificar
o meu mausoléu, tão certo como estarmos nesta lancha ronceira.

— Para que quatorze palmos?

— Porque eu conto com a família que há de querer morar
comigo, mesmo algum amigo, terá casa às ordens.

— Pois eu preferia descer ao fundo do mar.

— Pois meu caro, se para lá fores não contes comigo para
acompanhar-te o enterro. Ó patrão, esta lancha não anda.
Parece que não saímos do mesmo lugar.

O paquete passava enorme, sereno. À proa uma multidão apinhava-se
— homens, mulheres, crianças alongando olhares para a terra desconhecida.

O Neiva pôs-se de pé e, com o chapéu na mão, bradou:

— Salve, Ceará! E logo, visivelmente comovido, pôs-se
a falar como se pudesse ser ouvido: Cearenses, está aqui o Neiva, vosso
irmão, vosso patrício que vos veio esperar. O Neiva! E o paquete
seguia para a bóia. A lancha partiu então, a toda a força,
acompanhando-o e o Neiva, sempre de pé, bradava: Cearenses, aqui estou
eu! Aqui estou eu!

— Vem cheio que nem um ovo, disse um dos homens da lancha.

— Gente feia! — exclamou outro.

— Feia, mas honrada, protestou o Neiva.

— Parece chim.

— Que chim?!

— É sim, seu Neiva.

— E eu? Eu tenho alguma coisa de chim?

— Vosmicê não.

— Pois eu sou cearense.

— Mas vosmicê não é arretirante, lá dos
cafundós.

— Quais cafundós! Um homem daqueles vale por dez de vocês!

— Que esperança! Farinha seca não engorda. Aquilo é
gente!? Barriga só.

— Pois sim. Vão lá vocês meter-se com um daqueles
caboclos.

— Ora, seu Neiva! Era num tempo só… Tudo aquilo junto não
dá para a brincadeira de cinco de nós.

A âncora mergulhava e a lancha avançou, manobrando atracar à
escada de bombordo.

Subiram. O paquete estava literalmente tomado pelos retirantes. Era uma população
que ali vinha apertada, constrangida, chorando o mesmo infortúnio.
A proa úmida tresandava, redes cruzavam-se: umas estiradas, nas quais
mulheres cadavéricas, macilentas, tostadas pelas grandes soalheiras
dos campos largos, em mangas de camisa, com as aduelas dos peitos apontando,
fumavam nostalgicamente, de olhos ao longe, perdidos num sonho. Velhos abaçanados,
escaveirados, cabelos hirsutos, chapéu de coco à cabeça,
a camisa de madapolão desabotoada, deixando ver os bentinhos e os amuletos
pendurados do pescoço, com as mãos cruzadas nos joelhos, não
se moviam como se não houvessem chegado ao termo da viagem. Rapagões
sacudidos, faca à cinta, na bainha de couro, falavam em ritmo dolente
de canto, num tom interrogativo. Mocinhas púberes, de olhos lindos,
tez macia e rosada, cabelos de um negro de azeviche, mal levantavam as pálpebras
timidamente, acotovelando-se. Crianças nuas, ventrudas como gnomos,
reboleavam-se no chão; pequenitos de mama dormiam em esteiras, ao sol,
nus, as mãozinhas na boca.

A um canto, sobre um rolo de cabos, um velho cego cantarolava e uma robusta
rapariga cor de azeitona, de lábios grossos e sensuais, muito dengosa,
fazia crivo com a almofada ao colo.

Havia um rumor indistinto: eram risadas, cantilenas, suspiros, gritos, choros,
pragas. Uma viola gemia escondida. Mas dominava o grande zumbido da colméia
a grasnada ruidosa dos papagaios que os retirantes traziam como lembrança
da terra.

O Neiva ia de um a outro grupo, falava, interrogava, querendo saber de onde
eram, se haviam sofrido muito, se a seca ainda era grande e os infelizes,
como se logo, à primeira vista, houvessem nele reconhecido um patrício,
uma vítima, talvez, do mesmo flagelo, cercavam-no com simpatia e confiança.
Os que estavam longe avizinhavam-se de chapéu na mão, respeitosamente,
narrando as suas desgraças. O Neiva afagava as crianças, animava
os moços e as raparigas:

— Vocês aqui estão muito bem: a terra é boa, a
gente é boa, ganha-se muito dinheiro. Depois, é o mesmo Brasil.
Vocês não são brasileiros?

Um velho, com uma longa camisa que lhe descia aos joelhos por cima das calças,
acenou com o dedo negativamente:

— Nhôr não.

— Como! Então você não é brasileiro, velho?

— Cearense té morrê! — disse atirando uma cusparada
por entre os dentes.

— Então o Ceará não é uma província
do Brasil, velho?

— Iche! Ceará é dele só… té morrê.
E foi-se resmungando convencidamente. Té morrê.

O Neiva rompeu a rir e perguntou:

— Até morrer, hem?

— E o velho, de longe, sacudiu a cabeça, repetiu:

— Té morrê!

Uma mocinha mais desembaraçada interrogou o boêmio:

— Mecê é nortista?

— Cearense! Cearense da gema.

— Logo vi! Só gente do norte é que fala ansim.

O velho, como se houvesse sido interrogado, resmungou novo: Té morrê!

— Lá está ele.

Um caboclo pôs-se a assobiar uma cantilena de vaqueiro. Com que melancolia
o infeliz ia rememorando o tempo feliz na terra natal: a cavalo campina fora,
a vara de ferrão em punho, tocando os marroás atrevidos.

— Eh! Patrício…! Você era vaqueiro?

O caboclo acenou com a cabeça que sim, e continuou a assobiar. Anselmo
apartou-se querendo ver miudamente aquele quadro sinistro de miséria.
O navio lembrava a jangada da Medusa: os homens, com raras exceções,
tinham fisionomias espectrais, como se viessem de urna longa tortura. Junto
à amurada descobriu uma velhinha encarquilhada, encolhida nos andrajos,
o cachimbo nos beiços, olhando a fito. Parecia uma bruxa em evocação.

— E! Velha! A megera meneou com a cabeça tristemente, como se
o saudasse. Você veio só, minha velha? Ela acenou negativamente.
Veio com seu marido? Ela riu num pincho… Com seu filho?

— Muié… disse ela.

— Sua filha?

— Hen-hen.

— Que é dela?

— No má… eles botaram no má.

— Morreu?

— Hen-hen…

— De que, velha?

Encolheu os ombros e repetiu:

— Botaram no ma.

— E você não tem mais parentes aqui?

— Nhôr não.

— Nem conhecidos?

— Nhôr não.

— Está só?

— Nhôr sim.

— Como te chamas?

— Maria Nazareth.

— De onde és?

— De Sobrá.

— Que idade, velha?

— Não sei… não sei mais. Oie, idade tá aqui,
moço. E puxou uma falripa branca.

Adiante estava um pequenote de pernas finas, quase nu, com um cachimbo nos
beiços e uma mulher nova, sentada na rede, com o peito descoberto,
amamentava um monstrengo encarquilhado.

Deslizando sobre a lama escorregadia que, em espessa camada, empastava o
navio, Anselmo foi seguindo lentamente, detendo-se diante dos grupos, a olhar,
a interrogar.

Junto à amurada uma família olhava a cidade, ao longe, muito
branca, reverberando ao sol com o casario acumulado, as torres agudas das
igrejas hirtas como que espetando o céu e o fundo de montanhas em recortes
irregulares, sob uma pulverização de ouro. Como que vinha na
brisa o grande rumor da vida agitadíssima daquele pandemônio,
misterioso para os sertanejos que chegavam dos campos e das serras, tendo
deixado a grande e rude natureza agreste.

No mar também era incessante o movimento de botes e de lanchas. Faluas
corriam a todo o pano, outras passavam arrastadas pelos rebocadores. Um grande
transatlântico saia partindo o mar, deixando um fundo sulco nas águas
lisas, que logo inchavam em ondas, nas quais subiam e baixavam os leves botes
mercantes. Os couraçados, quietos como ilhas, pareciam embandeirados:
era a roupa da maruja que secava à proa, e as grandes barcas como casas
errantes, cruzavam-se serenas em caminho para Niterói e outras para
a Corte. E eram silvos e uivos e dos botes que atracavam ao paquete subia
gente ansiosa. Um empregado da Alfândega, de boné, falava ao
comandante e um velha mulher, que entrara com grande espalhafato, ia e vinha
atordoada, fazendo momos de nojo, a olhar de esguelha os miseráveis
que recordavam a terra, abandonada.

Terra simples, mas bem mais formosa para eles do que a grande cidade que
aparecia além alvadia, luminosa, de uma grandeza imponente.

Anselmo deteve-se junto da família rústica e um velho, tipo
patriarcal, fisionomia bíblica, longa barba a descer-lhe do rosto macilento
ao peito côncavo, dando com ele, sorriu, fazendo um leve aceno de cabeça:

— Deus salve a vosmicê. Que coisa é aquela ali, moço?
Aquilo no meio das casas que parece um ovo, mal comparando.

— É a Candelária.

— Cumu é, mái? — perguntou curiosamente, com os
olhinhos muito vivos, uma rapariguinha já púbere, dirigindo-se
à velha cabocla que, de cotovelos fincados na amurada, o rosto nas
mãos, olhava perdidamente.

— Eu sei, muié…

— O moço está falando.

— Apois… E continuou na mesma posição contemplativa.

— É uma igreja, explicou Anselmo.

— Ahn…

— Igreja? — perguntou a rapariga.

— Sim.

— É igreja, mãi.

— É sua filha? — perguntou Anselmo.

— Nhôr sim, esses todos; e unzinho ficou lá. E os olhos
da filha elevaram-se para o céu, como se o pequenino filho perdido
lá andasse pela altura azul.

Cantavam perto uma cantilena melancólica. Ó noites serenas
luar do Norte, ó ameníssimos serões nas serras, ó
descantes varandas, enquanto o gado recolhido muge! Que saudade! uma voz atroou:

— Vamos, gente! Nada de choro! Isto aqui é a nossa terra, somos
todos irmãos. Toca a embarcar. Vivo! Vivo! Anda, velho! Vocês
nem parecem do Ceará, terra de jangadeiros. Onde se viu um cearense
ter medo do mar? Vamos! Vamos! Era o Neiva.

O boêmio guiava como pastor o grande e infeliz rebanho humano. Já
haviam chegado os batelões que deviam transportar a leva para a ilha
das Flores. Os rebocadores faziam ruído espadanando, e a negralhada
chacoteava dos batelões, rindo da pobre gente que descia aos rebolões
pela escada oscilante do navio, apinhando-se nos transportes, como animais.
As mulheres, sobraçando trouxas, resingavam dando safanões nas
crianças que seguiam receosamente, quase de rastos. Os homens levavam
as cargas: canastras, cofos, redes enroladas, gaiolas de pássaros,
a viola. E todos falavam, gritavam uns pelos outros, procuravam-se com ânsia.
Às vezes, do meio da escada, tornavam ao navio, gritando:

— Mariazinha! Eh, muié… caminha! E lá iam a correr
precipitadamente, e o Neiva sempre a animá-los:

— Vamos! Vamos! O outro tem de atracar. Vivo com isso. Nada de choros;
ninguém vai morrer. Vamos! E o rebanho infeliz descia chapinhando na
lama do convés, onde havia detritos imundos, trapos, cascas de frutas
e trouxas sórdidas. Vamos! Não há tempo.

Por fim o batelão cheio, entupido de gente, tão sobrecarregado
que as bordas iam quase rentes de água, começou a mover-se lentamente,
arrastado por um rebocador e do meio sinistro daquele povo, que o sol inclemente
havia banido da terra natal, como de um só peito, foi subindo, dolentemente,
uma cantiga sertaneja. E o batelão seguia. Os de bordo acompanhavam-no
com os olhos entristecidos. E o canto magoado foi crescendo, tornando-se mais
forte, mais forte, enchendo os ares, e, sob o azul do céu, na mansidão
daquelas águas lisas, por muito tempo não se ouviu outro ruído.
Os próprios catraieiros indiferentes calaram-se escutando, com piedoso
interesse, a canção do êxodo, hino triste do campo abandonado,
lírica suave da terra que além ficara, canto do monte e do campo,
doce e rústica poesia que lembrava o para sempre perdido, a doce província
das palmas verdes, dos verdes mares, inclemente e sempre amada.

E lá ia, já longe, o batelão, o canto, porém,
parecia estar ali perto, dentro do navio… e estava! Porque os que haviam
ficado, esperando que atracasse o outro batelão, filhos da mesma terra,
vítimas da mesma dor, repetiam, como em eco, a mesma cantilena.

Ah! Seu Anselmo!… — disse apenas o Neiva com a voz presa e os olhos
arrasados de água.

Capítulo XXIII

A idéia da abolição ia ganhando terreno: a palavra “escravocrata”
tornou-se um labéu, até fazendeiros faziam garbo em dizer-se
abolicionistas e, quase diariamente, chegavam cartas do interior e notícias
que eram publicadas nos jornais, precedidas de comentários lisonjeiros
anunciando que fulano ou beltrano libertara todos os seus escravos, conservando-os
na fazenda como colonos.

Com a partida do imperador para a Europa, começando a regência
da princesa Isabel, logo correu que o monarca, compreendendo que a idéia
republicana começava a impor-se, ameaçadora e forte, deixara
a filha no poder com instruções para que assinasse o decreto
que o povo, do Norte ao Sul, reclamava, julgando que, assim, criando uma corrente
simpática, manteria a dinastia ameaçada pela temerária
propaganda republicana que tinha em Silva Jardim o principal campeão.

Aos domingos o povo enchia o “Recreio”, onde os mais ardentes abolicionistas
iam protestar do palco e dos camarotes em discursos inflamados contra o cativeiro
reclamando, com ameaças ao trono, a abolição imediata
e incondicional.

Patrocínio, com a sua palavra, fogosa, em reptos de eloqüência,
fazia a descrição da vida infeliz dos escravos. “Nos verdes
pastos ubérrimos andavam as ovelhas com as suas crias, as mães
negras entanto, eram separadas dos filhos, que ficavam vagindo no fundo das
senzalas enquanto as miserandas, com os peitos pojados e os olhos inundados
de lágrimas, ao sol inclemente, zurzidas pelo vergalho do feitor, iam
capinando as ruas dos cafezais. O esposo negro sofria calado todas as injúrias,
até a desonra. Alguns, mais violentos, arremetiam armados caindo sobre
os miseráveis que os infamavam e, ensangüentados, fugiam para
as brenhas, onde levavam vida selvagem, de feras, encurralados em cavernas;
outros buscavam a morte e, as vezes, quando as turmas seguiam para o serviço,
estacavam perto de uma árvore de onde pendia, oscilante, o corpo de
um parceiro.

Nos ‘troncos’ gemiam vítimas; e muitos caminhavam arrastando algemas
pesadas e, com gargalheiras, como galés, trabalhavam pela frutificação,
fecundando a terra que iam regando com suor e lágrimas.”

Quantas vezes era a palavra flamejante do tribuno cortada pelos apartes dos
secretas, que se metiam entre o povo para perturbar o propagandista com assuadas
e ameaças. Quase sempre, porém, eram repelidos à bengala,
à pedra, às vezes à bala, abandonando o teatro diante
da fúria da multidão e o orador, serenando o tumulto, continuava,
anunciando para muito breve “a grande misericórdia”.

Todos os moços acompanhavam-no: Octavio Bivar, Luiz Moraes, Fortúnio,
Neiva, Ruy Vaz, Anselmo e Pardal que chegara do Recife com dois romances,
uma gravata sangüínea, idéias explosivas e a carta de bacharel.

Era um tipo romântico de mosqueteiro, um d’Artagnan de olhos azuis,
pele branca e macia, mãos delgadas, cabelos louros, violentamente atirados
para trás, bigodes impertinentes, espichados em duas pontas finas,
compridas e rijas e a mosca que ele retorcia amiúde, rindo sarcasticamente,
em rinchavelhada irresistível, riso percuciente, satírico que
valia por uma vaia quando irrompia da platéia ou do fundo de um camarote.

Era ousado e, como brandia a bengala nodosa, esgrimindo, tinham-no por espadachim,
um cavaleiro de Eon, e temiam-no.

Era um anjo, dizia o Neiva: — O Pardal anda a provocar duelos e quer
sangue, quer devastação, tem fome de fígados humanos,
pois mostrem-lhe aí um velho enfermo ou uma criancinha com frio e hão
de ver como se desfaz em lágrimas. É até capaz de empenhar
os bigodes.

Pardal não ia às conferências sem o seu revólver
e uma faca na cava do colete. Todos falavam, o povo já os conhecia:
eram os discípulos do Messias da raça negra.

Entre os artistas a idéia tinha fanáticos. Os Bernadelli eram
dos mais entusiastas. No teatro: Dias Braga, Vasques, Guilherme de Aguiar,
Arêas, Galvão, Peixoto, Mattos, Eugênio de Magalhães,
Maia, Ferreira, André, Castro, Suzana, Oudin, Balbina, Clélia.
Entre os músicos Pereira da Costa, Miguez, Tavares, Nascimento, a doce
Luíza Regadas, alma meiga, o rouxinol da propaganda e Francisca Gonzaga,
a maestrina.

O Amazonas já se havia libertado. Não se contava mais um escravo
nas margens do rio-mar e o Ceará, seguindo o exemplo da sua irmã
do Norte, concluiu, num dia, a obra intrépida dos jangadeiros, iniciada
nas águas pelo valoroso caboclo Nascimento.

Na serra paulista, entre as grandes árvores, crescia o quilombo de
Jabaguara, engrossado diariamente por bandos foragidos que chegavam dos mais
longínquos municípios da terra dos Andradas.

Era impossível sustar a marcha triunfante da idéia que vencera
as represas. A tropa confraternizava com o povo e, nas duas câmaras,
era grande a maioria dos abolicionistas a cuja frente destacava-se, como a
de um Apolo, a válida e simpática figura de Joaquim Nabuco.

Patrocínio, desligando-se, com saudade, da Gazeta da Tarde, havia
fundado a Cidade do Rio chamando Anselmo, que andava em disponibilidade, sem
casa e sem botinas, escrevendo contos e fantasias à mesa dos cafés,
jantando, nem sempre, parcamente, na rua Nova do Ouvidor, onde, de quando
em quando, havia lautos banquetes, com discursos, a 500 réis por boca,
duas moringas de água inclusive.

Esse hotel módico e discreto, pelos grandes e inolvidáveis
serviços que prestou à literatura, às Artes e ainda ao
funcionalismo, merece menção especial e honrosa.

Dava almoços e jantares a quinhentos réis. Mas que almoços!
E que jantares! O primeiro prato era: um começo; o segundo: uma continuação;
o terceiro: um último. Enquanto os Ugolinos devoravam ouviam os caixeiros
que, em mangas de camisa, vociferavam: “Dois começos…! Olha
três últimos…! Duas continuacões…!” Não
eram abundantes os pratos nem saborosos, mas nutriam, e tanto bastava. Como
havia um gabinete reservado eram ali realizados, de tempos a tempos, suntuosos
festins.

Em certa ocasião, sendo a fortuna do grupo limitada e havendo-se um
dos convivas excedido em libações, Fortúnio lembrou-se
de substituir com água da Carioca a quantidade de outra água
que havia sido ingerida; mas o caixeiro, dando pela fraude, protestou e exigiu
o que não havia, porque todos os poetas juntos não valiam 220
réis. Houve larga discussão e uma bengala ficou como refém
nas mãos do hoteleiro, representando um extraordinário de seis
cálices. Ruy Vaz, que não se podia habituar com aquela casa
sórdida, freqüentada pelo que havia de pior na cidade, rejeitava
os convites que lhe faziam os companheiros.

— Não, ao Quinhentão não vou. É detestável,
repugnante, cheira à graxa. Depois aqueles caixeiros irritam-me os
nervos — de tamancos, imundos, sempre a bradarem continuações,
como folhetins encarnados. Prefiro ficar in albis. A mesa para mim não
é apenas o comedouro, deve ter algum encanto aprazível à
vista. Os olhos também comem, comem os ouvidos, o nariz come e o tato
igualmente. Não dispenso a baixela, os cristais, as flores e gosto
de sentir nos dedos uma toalha lustrosa e um guardanapo liso… O guardanapo
ali tem a cor de um esfregão, a toalha parece um pano de açougue;
as moscas vêm comer com a gente à mesa e, às vezes, com
tanta gana, que nos entram pela boca, e lá ficam.

— Oh! Não é tanto assim, Ruy Vaz!

— Como não é tanto assim? Aquilo é horroroso!

— Como sabes?

— Por informações. Um amigo meu, que ali jantou, comeu
tais imundícies que, no dia seguinte, teve de ir ao escritório
de um médico lavar o estômago com sabão.

— As feijoadas são excelentes, Ruy Vaz. Já uma vez comi
chispes maravilhosos!

— Eram pés de algum dos caixeiros.

— Ora… hás de lá ir comigo.

— Eu?

— Tu, sim.

— Estás enganado.

— Pois eu vou todos os dias.

— Tu? — perguntou Ruy Vaz com espanto.

— Então?

— A que horas almoças?

— Às dez.

— Ah… — fez o romancista. Pois só te digo que é
uma imundície. Prefiro a fome.

— Pois eu não.

Uma manhã, como de costume, entrou Anselmo no Quinhentão. Às
mesas os fregueses habituais devoravam: caixeiros de casas vizinhas, em mangas
de camisa, sem gravata, mastigando com fúria, operários, estudantes.
Ouvia-se o rechino das frigideiras e as moscas voejavam pousando em enxames,
nas toalhas, no chão, e atirando-se à boca dos que comiam, como
abelhas que investissem a aivados.

Anselmo, para não ser visto da rua, procurava sempre uma das mesas
do fundo e, dando as costas à porta, empanturrava-se, ouvindo as chalaças
dos caixeiros e as estrondosas gargalhadas do dono da casa, tipo acabado de
Sileno, ventrudo, com uma papada roxa que se lhe derramava pelo colarinho,
dando uma impressão de sórdida fartura. Quando ria toda a casa
atroava. Anselmo ia sentar-se quando, olhando para um dos ângulos, rompeu
a rir vendo Ruy Vaz inclinado, a devorar, com grande convicção
e apetite, um último, que era o clássico bifezinho tênue,
com três batatinhas mirradas. Caminhou e, diante da mesa do romancista,
cruzando os braços, perguntou:

— Que é isto? Tu? Ruy Vaz levantou a cabeça e, dando
com o companheiro, sorriu sem vexame. Então, sempre te resolveste?

— Ah! Meu amigo, eu faço tudo pela Arte. Senta-te. Vens almoçar?

— Sim, venho.

— Pois aqui estou. Decididamente não se pode amar a Verdade.
Se o público soubesse quanto custa ser naturalista pagava os meus romances
a peso de ouro. Vou às estalagens apanhar em flagrante a grande vida
de tais colméias e, para que a gente não se perturbe com a minha
presença, visto-me de carregador, meto-me em tamancos. Subo às
pedreiras, penetro, com risco de vida, as reles tavolagens, passo horas e
horas entre a gente tremenda dos trapiches, converso com catraieiros e, finalmente,
venho comer nesta baiúca, como vês.

— Mas, então, não foi por fome?

— Qual fome! Eu podia ter ido almoçar ao Globo, mas ando acompanhando
um tipo.

— E onde está ele?

— Comeu e saiu. Para que não desconfiasse, porque ele já
deve ter notado que o sigo, pedi um almoço e pus-me a comer… maquinalmente.

— Quiseste também fazer um estudo do bife que aqui se dá?

— Homem, não estás muito longe da verdade. E queres que
te diga? Não é tão mau como eu imaginava. É pequeno,
uma amostra, mas passa. Tenho comido piores em hotéis de primeira ordem.

— As aparências iludem.

— Estou convencido. Vou agora provar o chá. Que tal?

— Hediondo e tóxico!

— Já agora… E, chamando o caixeiro com superioridade: Arranja-me
um chá, com pão quente.

— Pão quente é extraordinário.

Ruy Vaz pasmou e, depois de encarar o caixeiro, que se pôs a torcer
a toalha imunda:

— Extraordinário, hem!? Extraordinário és tu!
E pão frio…?

— Ah! Pão ao natural?

— Ao natural?! Que diabo é pão ao natural?

— É pão que não vai ao forno.

— Homem, esse é que é extraordinário. Pois há
aqui um pão que não vai ao forno?

— Para ser aquecido. Ora! O senhor está caçoando! Vá
lá, diga de uma vez: Quer ou não o pão torrado?

— Não, quero ao natural, sou naturalista. Francamente, Sr. Anselmo,
isto é hediondo! É medonho! E almoças e jantas nesta
casa? Quem é o teu médico?

— Não tenho.

— Pois quem come em alfurja como esta deve sempre ter um médico
à cabeceira.

Anselmo sentou-se e, almoçando, expôs a Ruy Vaz o plano de um
romance que tencionava publicar na Cidade do Rio: O Rei Fantasma, cuja ação
se desenvolvia num reino imaginário da África.

— Por que não deixas essa mania de orientalismo, homem?

— Gosto.

— Ora, gostas… Trata de aplicar o teu espírito ao meio. Podes
fazer obra magnífica sem sair da tua terra. Tens natureza, tens almas,
que mais queres? Preferes lidar com títeres a lidar com homens. Nunca
farás um livro verdadeiro, sentido, farás sempre obra convencional.
Deixa em paz os deuses gregos e as odaliscas turcas, não te preocupes
com os templos da Hélade nem com os minaretes de Stambul: põe-te
em relação com a natureza da tua pátria. Tens um campo
vasto de explorações — desde o sertão, quase virgem,
até a rua do Ouvidor, que é o círculo central das almas
brasileiras. Deixa-te de Oriente.

— Mas o romance está quase pronto.

— Pois publica-o. Mas fica nesse, não escrevas outros.

— E os contos?

— Também os contos. Queres assuntos deliciosos para contos admiráveis?
Estuda o povo. A alma moderna é mais sofredora do que a antiga e a
Dor é um manancial inesgotável. Deixa-te de ninfas e de faunos,
trabalha com homens. Queres saber a razão por que muitos escritores
preferem o orientalismo? Porque é mais fácil fazer a pompa do
que a verdade: são como o discípulo de Apelles. Manda à
fava essa mania e trata de fazer obra sentida.

Anselmo começava a irritar-se com essa observação que
lhe soava aos ouvidos com a insistência de um remorso. Diziam-lhe todos
a mesma coisa. Protestou:

— Que diabo! Vocês falam tanto contra a mania do orientalismo
e admiram Salammbô.

— Perdão, Salammbô não é apenas uma obra
de ficção: aquela tela deslumbrante é feita com verdadeiros
fios de ouro. Há ali, a par do quadro histórico de uma civilização,
um largo estudo de caracteres. Salammbô tem alma. Hamilcar vive, Spendius
é uma figura palpitante e o povo de bárbaros, assim como a gente
púnica, não é um ajuntamento de títeres. Há
naquela obra lapidária uma alma forte que vitaliza os tipos. Ainda
assim, apesar de mestre Flauberv haver trabalhado aquele mármore africano
com o mesmo escrúpulo com que Fídias burilava as suas figuras
imortais, prefiro à grandeza deslumbrante do rútilo poema a
simplicidade de Mme. Bovary. Lança os olhos à obra de Balzac.
Tudo nela é humano, desde Eugenie Grandet e o Pêre Goriot até
o Le lys dans la vallée. Tu mesmo, no dia em que começares a
lidar com almas, hás de convencer-te da verdade. Vê a obra do
que copia uma academia como se amesquinha diante de um estudo do natural.
Posso falar-te assim porque conheço ambos os processos, sei quanto
custa transportar para o livro uma alma surpreendida na grande vida e quanto
é fácil fazer obra maravilhosa. Experimenta.

— E tu, por que escreves páginas de ficção?

— Por desfastio. Tenho uma válvula de expansão de sonhos.

— Pois é o que se dá comigo. A minha faculdade essencial
é a imaginação. Vivo a sonhar, as idéias pululam
no meu cérebro e sinto que são as sementes antigas que se fazem
floresta. Comecei a estudar em livros orientais. Foram as Mil e uma noites
a obra que mais funda impressão deixou em meu espírito quando
se ia formando, depois as histórias que me contavam nos serões
tranqüilos e, finalmente, as leituras. Eu procurava, de preferência
nos poetas, as descrições da vida levantina — em Byron
o D. João, A noiva de Abydos, o Giaour; em Gautier o seu grande mundo
fantástico; em Flaubert Salammbô e assim sucessivamente. A minha
imaginação, assim fecundada, foi-se desenvolvendo nesse meio
e hoje sinto que, se deixar o Oriente, fico como um homem que, trazido vendado,
se achasse, de repente, como por encanto, num intrincado labirinto de onde
não pudesse sair por desconhecer os meandros.

É possível que, mais tarde, consiga livrar-me do que chamas
a minha mania, mas deixa-me extravasar. É necessário que eu
alije de mim todos os sonhos para poder empreender nova carreira. Por enquanto
é impossível e não quero contrariar as tendências
do meu espírito. Demais, quer-me parecer que se pode fazer obra verdadeira
com o cenário faustoso. Um homem, pelo fato de andar vestido com uma
cabala de seda oriental e de trazer à cinta alfange e turbante à
cabeça, não deixa de ser homem. Gautier vivia em Paris vestido
à oriental. A alma é como a luz: pousa em toda a parte.

— Mas queres convencer-me de que podes descrever a vida de Bassora
ou de Cachemira como descreverias a vida do Rio Janeiro? Podes fazer o estudo
sincero de um homem de Bombaim como farias de um dos sujeitos que encontramos
a todo nas ruas? Podes analisar a alma de um pária?

— Posso.

— Como?

— Imaginando.

— Ah! Imaginando… E por que não hás de descrever vendo
a dor triste de um homem que sofre a teu lado, cujo pranto vês cair
gota a gota, cujas lamentações escutas? Não achas que
assim farás obra mais completa, mais viva, mais duradoura?

— No fundo do sonho há sempre a verdade.

— Preferes então sonhar?

— Prefiro.

— Pois meu amigo, acho que fazes mal.

— Pode ser.

— Queira Deus que te não arrependas.

— Não me hei de arrepender.

— Veremos.

— Pois sim.

— Bem, vamos sair. O hotel começa a tornar-se insuportável.

— Para onde vais?

— Para a Cidade do Rio.

— Estás outra vez com o Patrocínio?

— Como secretário da folha.

— Então, até logo. Vou retocar umas páginas. Adeus.

— Adeus, Ruy Vaz

Capítulo XXIV

A Cidade do Rio tornou-se “o estuário do gênio indígena”
como bramia o Neiva atirando bengaladas ferozes às mesas dos cafés.

Para o órgão da propaganda abolicionista afluía a flor
da inspiração. Luiz Moraes era assíduo, ora entrava levando
uns formidáveis alexandrinos, que ressoavam tonitruosamente como carros
de guerra; ora, a pedido do Patrocínio, sentava-se a uma das mesas
e escrevia o artigo de fundo, com mais imagens do que uma igreja, reclamando,
em nome do coração e em nome da Justiça e… de Spencer,
a liberdade dos que sofriam. Octavio Bivar, ou mandava uma das suas poesias
finamente buriladas ou, com a pena incandecida, rendilhava sátiras.
Pardal, sempre irônico, enchia tiras e tiras com os seus paradoxos ou
bradava por sangue e fígados com a mesma calma com que, no Londres,
à tarde, pedia o seu absinto. Fortúnio, Duarte, o próprio
Ruy Vaz, sempre atarefado, parando um instante, escrevia algumas linhas rápidas
sobre a questão palpitante ou sobre um livro que aparecia, aproveitando
o ensejo para expor a sua estética, defendendo o naturalismo.

A Vida Moderna, apesar das grandes esperanças dos seus redatores,
desaparecera da circulação e a “alma literária”,
como dizia o Luiz, andava errante, esvoaçando estonteada pelo sarçal
do jornalismo mercenário como a ave que perdeu o ninho, piando aqui
uma elegia, chilreando além um ditirambo, sem abrigo certo, peregrina
e dorida.

Patrocínio, sempre sonhando, depois de pronto o jornal, procurava
os rapazes à hora do vermute e, arrebatado, expunha os seus planos
maravilhosos:

— Rapazes, vamos fazer a Cidade do Rio. Aquilo não é
meu, é nosso… e é uma mina! Aquele jornal é uma mina!
Tudo está em saber explorá-lo. Que diabo! Não basta ter
talento, é preciso também um pouco de senso prático.
Andam vocês numa vida de eterna contingência: Um, não tem
sapatos, como o Fortúnio que, há dias, recordava, com saudade,
o tempo em que descia as escadas a correr sem receio de que as solas lhe ficassem
nos degraus, porque não eram cosidas com barbante, como agora. Outro,
Bivar, anda com um chapéu de palha que parece uma cesta de compras.
Anselmo apareceu-me com umas calças cor de telha que quando ele as
tirava, ficavam de pé no meio do quarto como se fossem de barro. Entanto,
se vocês quisessem trabalhar comigo, em um ano… em um ano não
digo, mas em dois, levantávamos uma fortuna e abalávamos para
Paris. Ali, ali sim! Ali poderiam vocês cultivar a grande Arte. Paris
é uma cidade, não é esta choldra onde a gente, aos vinte
anos, tem a cabeça branca e aos trinta é ruína, a cair.
Começo a sentir-me cansado, já não sou o mesmo homem.
Há ocasiões em que fico debruçado à mesa, com
a pena sobre o papel, a rabiscar, a rabiscar, e nada de sair o artigo…

— Ah! Mas quando sai, exclamou o Moraes bambaleando-se, quando sai
é… como o corpo de bombeiros.

Houve uma gargalhada estrepitosa, porque o Moraes, juntando o gesto às
palavras, derrubou copos, garrafas e teria estourado um sifão se Ruy
Vaz não acudisse ligeiro.

Foi em uma dessas palestras que Patrocínio revelou o seu grande segredo:
“Tinha resolvido o problema da direção dos balões.”

— Já sei que vocês vão sair daqui comentando as
minhas palavras com pilhéria. Pois meus amigos, é a verdade:
tenho o segredo de Dédalo.

— As asas de cera.

— Perdão, não ria. Falo sério e vocês não
têm o direito de duvidar da minha palavra, porque ainda não dei
provas de loucura ou de imbecilidade.

— Então vai tudo agora pelos ares?

Patrocínio não respondeu a Anselmo e continuou:

— Tenho estudado a questão com empenho e posso exclamar: Eureka!
Trabalho lentamente, porque aqui no Rio de Janeiro não há um
fundidor que execute um molde perfeito. Dá-se-lhe um desenho e o bruto
faz coisa inteiramente diversa. E a gente que se lembre de protestar. Vocês
sorriem? Pois sim… Eu hei de rir lá de cima quando, depois do meu
banho frio e de um cálice de conhaque, sair daqui no meu balão,
às seis da manhã, para almoçar, às onze, em Lisboa.

O sonho empolgou-o e o intrépido propagandista, o destemido tribuno,
o polemista audaz pôs-se a falar com enternecimento, inclinando-se para
que as suas palavras não saíssem do círculo dos amigos
que, impressionados, já não sorriam, ouvindo, com enlevo, a
narração maravilhosa do grande homem:

— Imaginem vocês a coisa nos ares, nós todos na barquinha,
porque havemos de ir todos…

— Só se for uma das barcas Ferry, adiantou Fortúnio.

— Espera, homem… A ascensão, bem? E foi levantando as mãos
e batendo o espaço com elas como se fossem duas asas. Rápido,
jogou o braço e, inclinado, surdamente, explicou: Depois, ganhando
a linha desimpedida, a vasta e livre estrada aérea, voando, voando,
voando, vendo a terra como um nevoeiro, como a viu Menippo, o mar como uma
mancha lúcida, depois as brumas inferiores, brumas, brumas, brumas
e nós, como deuses, navegando em nuvens, numa celeridade vertiginosa,
fazendo versos ao grande vácuo, falando onde só os trovões
atroam, rindo onde só riem as madrugadas e orvalhando a terra vil com
champanhe… Hem? Que dizem vocês? E quando chegarmos a Paris, diante
do mundo pasmado e ouvirmos, nos Campos Elíseos, as aclamações
do povo magnífico da cidade por excelência… Vocês não
pensam nisso? Que diabo! Vocês não têm sangue! Não
têm nervos…!

— É belo, não há dúvida, disse Fortúnio,
mas receio que nos aconteça o mesmo que aconteceu a Faetonte.

— Qual Faetonte! Faetonte era uma besta! Você então não
toma a sério a minha idéia?

— Como não tomo?

— E se visses o balão não entravas nele?

— Conforme: amarrado e com garantia de vida.

— Pois eu vou. Vou e vocês hão de ficar aqui de boca aberta,
torcendo-se de inveja. Faço a volta do mundo em uma semana e depois…

— Depois…?

— Depois, descanso. Tenho a minha obra. Achas pouco a conquista do
espaço?

— Eu não acho pouco: acho muitíssimo!

— Então por que ris?

— Não estou rindo.

— Watt também passou por louco.

— Mas ninguém te julga louco.

— Nem eu admito. Afirmo que resolvi o problema e, dentro em breve,
vocês terão a prova. Um dia, acordando, hão de vocês
ver um pontozinho fugindo no espaço, fugindo, fugindo e, quando perguntarem,
aterrados, à gente do observatório: “Que meteoro é
aquele que vai pelos ares fora vertiginosamente?” ouvirão dos
sábios as palavras solenes: “É o Patrocínio que
está passeando em balão. Vai jantar no Cáucaso.”
E então… rira bien qui rira le dernier. E com esta, meus amigos,
até logo. Tenho hoje uma conferência no Club Tiradentes. E saiu
justamente quando entrava Montezuma, o velho, o amável Montezuma, o
grande historiador do Rio da Prata, portador do althéa providencial.

Capítulo XXV

Montezuma, oficial de marinha reformado, apesar dos cabelos brancos e da
feição venerável de patriarca, conservava no coração
todo o viço dos vinte anos. Alma que se não regelava, longe
de agregar-se às neves da ancianidade, chegando-se aos homens do seu
tempo, que andavam curvados, entristecidos, à espera do vencimento
da letra da vida, buscava a companhia dos rapazes, vivendo nela muito à
vontade e com estos nada inferiores aos do mais ardente boêmio.

Como o Timon de Luciano andara com Pluto e com a Miséria, sendo íntimo
de ambos: esbanjara milhões e tivera dias sem lume, longe da pátria,
em terras sopradas pelo minuano.

A história da sua vida, narrada miudamente, daria um copioso romance
de aventuras, qual mais extraordinária, umas felizes, outras desastrosas.
Vogara nas águas do Sul governando um navio carregado de gêneros
e outro transformado em hospital, que ardeu sobre as águas paraguaias
quando os nossos guerreiros desafrontavam a bandeira que os guaranis de Lopez
ousadamente ultrajaram. Foi ele quem, a 11 de Junho, tendo a notícia
da vitória do Riachuelo, saiu a anunciar o feito pelas terras do Prata,
transmitindo a nova ao Brasil com abundância de hipérboles. Íntimo
de todos os grandes homens das Repúblicas do Sul, falava dos ditadores
como de companheiros de noitadas. Empenhara capitais em revoluções,
comprometera-se em golpes de Estado e, depois de haver dissipado milhões,
vivia das suas glórias, não como o misantropo de Atenas, encolhido
e bilioso, mas sonhando com empresas complicadas, sempre a somar milhares.

Homem de casos análogos e de sátiras, tinha sempre uma anedota
a propósito e um comentário cáustico para todos os acontecimentos
políticos.

A mulher era a sua intemperança e raro era encontrá-lo sem
“uma senhora virtuosíssima, esposa, viúva ou filha de um
amigo do Rio da Prata”.

Com essas Penélopes Montezuma aparecia no Pascoal e gastava largamente,
não em linho para que fiassem honestamente, mas em sedas, em carros,
em champanhe.

Muito amigo dos rapazes, além de outras virtudes, possuía um
talismã inestimável: o althéa. Era um guarda-chuva de
cabo branco que, nos momentos precários, passava das mãos do
seu dono para o prego. Às vezes entretido em grupos políticos,
Montezuma discutia, com azedume, questões financeiras quando sentia
que lhe puxavam o guarda-chuva. Era algum dos boêmios.

— Estás com fraqueza pulmonar? Queres o chazinho de althéa?
E, rindo, lá o entregava e o rapaz corria ao Hoffmann que, por conhecer
intimamente o “objeto”, dava os cinco mil réis, que era tudo
quanto conseguia arrancar o precioso talismã. Quantas e quantas vezes,
sob aguaceiros torrenciais, Montezuma, encolhido em algum vão de porta,
lamentava o seu guarda-chuva:

— É isto! Tenho um guarda-chuva que é um tapa-misérias.
Nem sei em que prego está… E, se via um dos rapazes, ia imediatamente
perguntando: Foste tu que penduraste o althéa?

— Não.

— Quem foi?

— Não sei.

— Nem sabes em que casa está?

— Não. E bem necessitado ando eu dele.

— E eu! Vou tirá-lo amanhã.

— Olha, se o tirares e se não chover, empresta-mo porque estou
precisado de uma gravata.

— Pois sim. E lá ia o Montezuma encharcado, à procura
do homem que havia empenhado o guarda-chuva providencial.

Estimado por todo o grupo o velho boêmio, que era incapaz de negar
auxilio a quem o procurava, só era avaro das relações
femininas. Se alguém se aproximava “das honestas senhoras”,
que ele ocultamente protegia, abespinhava-se, declamando grandes moralidades
e saía furioso, com desabalados gestos: “Que não havia
respeito! Pessoas de tão reputada virtude não mereciam a menor
consideração.”

Como uma personagem de lenda Montezuma andava quase sempre a tinir. Um dia,
porém, irrompia a notícia de que havia comprado carruagem e
parelhas caras e, efetivamente, à tarde, gente acudia à rua
Gonçalves Dias para ver o homem tomar o landau e bater para Botafogo
com muitos embrulhos e vários pince-nez no nariz. Dias depois reaparecia
com o althéa, murcho, contando que vendera a equipagem e que viera
a pé da praia de Botafogo ao Catete, para pedir a um velho amigo dez
tostões para o bonde.

Nesse tempo, porém, andava ele em boas relações com
a Fortuna: a sua carteira mal fechava, engorgitada de cédulas e ele
sabia de cor o número das apólices que possuía.

Vendo os rapazes aproximou-se e, logo de longe, como Anselmo afastasse uma
cadeira, declarou que não se queria sentar. Andavam pessoas acompanhando-lhe
os passos e tudo quanto fazia era sabido em casa, de sorte que vivia em constante
guerra civil. Era forçado a retrair-se para que não se desse
com ele o caso de… fulano, que tanto alvoroçara Montevidéu
em mil oitocentos e tantos. E, para contar o caso, sentou-se, pediu um vermute
e esqueceu-se da guerra civil, pondo-se a falar do imperador com irreverência:

“Que era um velho mentecapto que vivia a quebrar versos e a espiar os
astros para fingir de poeta e de sábio. Neto de Marco Aurélio…
Neto de D. João VI, o suíno, isso sim.” Profetizou a abolição
com energia: “Ou vem ou escangalhamos essa caranguejola em dois tempos.
A América deve ser livre. Olhem para as Repúblicas do Prata,
vejam como nadam em prosperidade, sem precisar de escravos para as suas culturas.
Isto é uma vergonha! Confesso que, às vezes, tenho pejo de dizer
que sou brasileiro. Pois havemos de viver sempre no último plano, e
por quê? Porque temos um rei de burla. Está enganado: ou acaba
com a escravidão, realizando a vontade do povo, ou vai passear; não
precisamos de figura de proa na nau do Estado. Sou republicano, não
de hoje. Já na escola de marinha escrevia manifestos republicanos.
Posso lá com isso! Sinto não ter fortuna, senão… ah…”
Mas apareceu à porta uma das “senhoras virtuosíssimas”,
acenou com o leque a Montezuma e o velho, muito comovido, pondo mais um pince-nez
no bico, despediu-se para receber dignamente a dama “viúva de
um ilustre comodoro”.

O grande acontecimento dessa época foi, sem dúvida alguma,
o estabelecimento da cozinha na Cidade do Rio. Atendendo às queixas
dos redatores, que viviam lívidos e magros, mal nutridos no sóbrio
Quinhentão, Patrocínio resolveu realizar um dos seus ideais
que era ter a mesa das refeições ao lado das mesas de trabalho,
de modo que os seus prestimosos auxiliares, mal pingassem o ponto final no
artigo, subissem a curta escada que levava à sala dos repastos, quente
como uma fornalha e sem luz.

A mesa era vasta e ocupava toda a sala. Um cozinheiro, mestre perito em adubos,
homem de alto poder inventivo em matéria de iguarias, tomou conta do
fogão e, nas suas vestes rituais, amplo avental e o competente boné,
apareceu, num radioso dia de março, tresandando à cachaça
e bambo. Foi justamente no dia em que se inaugurou, com urras! e um peru de
forno, a prestimosa inovação.

Anselmo quis escrever um estirado artigo, muito burilado, proclamando a generosidade
do redator-chefe, vários poetas rimaram sonetos, a alma lírica
expandiu-se largamente com o aroma sedutor dos refogados. Nessa apetitosa
manhã a inspiração nobre não surgiu do cérebro,
mas da cozinha que perfumava toda a casa.

Ao meio-dia, descendo o último original, Patrocínio, muito
grave, recebendo os representantes dos jornais, convidou-os para o primeiro
almoço.

Passaram todos à sala que havia sido ornamentada vistosamente e as
cadeiras foram todas ocupadas. No centro da mesa uma dourada maionese rutilava.
Era um prato digno do triclínio de Apício, não só
pela beleza com que o mestre o dotou, mas pelo cheiro que dele se desprendia,
que era de pôr em risco de pecado o mais abstinente monge da Thebaida.

Os frios foram desprezados todos os olhos, como os dos Argonautas, estavam
voltados para aquele Pactolo saboroso de sorte que, quando o copeiro, que
era o mesmo servente da redação, começou a servir, houve
um alegre sussurro entre os convivas, cujos olhos faiscavam. E, bravamente,
com famosa gana, a maionese foi atacada ficando um dos revisores com a boca
cheia de água porque, por imperícia do copeiro, na distribuição
nada tocara ao infeliz que teve de se contentar com três douradas e
oleosas sardinhas de Nantes. Houve depois um peixe admirável e, seguidamente,
as carnes e por último o peru, que arrancou aplausos. Ao estouro do
champanhe, Patrocínio, muito comovido, taça em punho, explicou,
em brinde magistral, o motivo daquela inovação:

“Senhores: instituindo os almoços e os jantares da Cidade do
Rio não tive em mente concorrer com o Jornal do Commercio que era,
até hoje, o único órgão brasileiro que fornecia
comida aos seus redatores. Não! Quis apenas dar o bem-estar aos meus
companheiros de trabalho e, como entendo que a primeira condição
para que um espírito produza é a saciedade do estômago
tomei um cozinheiro e, ao lado da oficina tipográfica, estabeleci a
despensa.

Saco vazio não se põe em pé, diz a sabedoria popular.
Com fome não há talento. É preciso que haja carvão
na fornalha para que se gere vapor na caldeira. Quanto tempo perde um redator
em andar procurando hotel? Que riscos tremendos corre a vida de um desses
rapazes, que são a glória futura da nossa pátria, entregando-se
aos cozinheiros mercenários dos hotéis à la carte, onde
a limpeza é um problema e a virgindade dos vinhos tão suspeita
como a da Rússia imperatriz famosa?! Não, com a cozinha em casa
tenho certeza de que todos os gêneros são de qualidade e os vinhos
serão analisados cuidadosamente por meu compadre, o ilustre químico
Campos da Paz. Este é o primeiro passo.

Começo a reforma pela cozinha e espero poder, em breve, ver realizado
o meu grande e nobre ideal. Dentro em pouco os redatores da Cidade do Rio
terão coupé, palacete e o edifício do meu jornal será
o primeiro da América do Sul. Para isso, porém, é necessário
que todos me auxiliem, porque a glória e o conforto que procuro não
são para mim somente, todos terão a sua parte.” Houve alarido
e palmas.

Anselmo, magnificamente repastado, prometeu concorrer com o seu talento para
o brilho da folha e manutenção da respectiva cozinha e Octavio
Bivar, enternecido, fez o mesmo protesto. O mestre cozinheiro foi aclamado
com delírio por quantos haviam saboreado as finas iguarias que ele,
com tanta arte, recamara de folhas tenras e temperara com sabedoria incomparável.

Instalada a cozinha, o perfume dos guisados atraiu à Cidade do Rio,
que se tornou o Hymetto das abelhas líricas, toda a poesia perambulante.
Às onze horas começava invariavelmente a entrada, como no castelo
de Wartburgo, não para o repto poético, mas para a manducação:
e, ao meio-dia, tendo Patrocínio terminado o artigo de fundo, dirigiam-se
todos para a mesa, e quanto folhetim foi ali improvisado entre um prato e
outro!

O jornal dava apenas para a boca e mal, às vezes sem vinho. Anselmo
andava farto, mas com os pés em petição de miséria
e o Oliveira estava tão atrasado com a lavadeira, que, em certa ocasião,
puxando um punho diante de Fortúnio e pedindo um lápis, o poeta
perguntou pasmado:

— Para quê?

— Para tomar uma nota.

— Onde?

— Aqui no punho.

— O filho, pede antes um giz.

Ah! O pobre Oliveira, Oliveira, o troglodita, que morava em uma verdadeira
caverna, em Paula Mattos: era o “speleo” da imprensa. Dele contava
Ruy Vaz que, tendo mandado à lavagem química, no S. Mauncio,
um paletó cor de castanha, quando o foi buscar, com a cautela, recebeu
apenas os botões… porque o mais dissolvera-se na lixívia.
Pobre Diógenes que trazia no corpo o azeite da sua lanterna. Fortúnio,
sempre que o via, com as calças enlameadas, o paletó poeirento,
o chapéu como um canteiro, dizia-lhe compadecido:

— Que a terra te seja leve!

Mas havia alegria e Patrocínio, pressentindo próxima a vitória
da sua idéia, trabalhava empenhadamente para a batalha definitiva.

Efetivamente alguma coisa andava no ar. A princesa governava fragilmente,
pensando mais em sermões e nos acordes do violino do White do que nos
negócios do Estado e os republicanos solapavam o trono invectivando
a regente.

Patrocínio, entanto, domando a sua pena tremenda, aparava os golpes
que eram vibrados contra a princesa pelos republicanos que, com Silva Jardim
à frente, começavam ostensivamente a propaganda, na tribuna
e na imprensa. Contra o redator da Cidade do Rio avançava toda a legião,
ele, porém, como se não sentisse os golpes, continuava sereno,
impassível, pregando o seu programa, como se apenas escutasse o lamento
dos escravos, tão alto, que não lhe deixava ouvir o rumor do
tumulto dos novos combatentes que o injuriavam.

Uma manhã, porém, Anselmo invadiu a sala particular do redator-chefe,
com um número de O Paiz, onde Silva Jardim havia publicado um artigo,
violento e injurioso, no qual Patrocínio era tratado de traidor.

— Já leste este artigo?

— Que artigo…?

— Do Silva Jardim.

— Quem é?

— Homem, falo sério.

— Que diz ele?

— Um pavor. E deves responder.

— O filho, tenho hoje tanto trabalho!.

— Mas queres deixar tais acusações de pé?

— Que acusações!? O homenzinho entende que sou um infame,
deixemo-lo com a sua ilusão. Atualmente não me pertenço:
José do Patrocínio não é um homem, é uma
causa. A minha pessoa não vale a minha idéia. Que me insultem
à vontade, orgulho-me disso. Olha que tenho dado assunto, hein?

— Então não respondes?

— Não. Vou escrever um artigo sobre o quilombo de Jabaguara.

Curvou-se, tomou a pena, mas, de repente, aprumando-se, rugiu:

— Não respondo! Insultem-me! Ameacem-me! Tenho o meu programa
traçado e não será a pena romba desse merovíngio
que me há de fazer abandonar o roteiro. Justamente quando se vem anunciando
a grande aurora é que eles querem que eu, esquecendo e abandonando
um trabalho quase concluído, vá cuidar de outro. Não
faltava mais nada! República numa pátria escrava! Que rosne!
Que vocifere, tenho mais que fazer. E sentou-se.

— Queres que eu diga alguma coisa?

— Nada; nem uma palavra.

E, placidamente, continuou a escrever o artigo.

Capítulo XXVI

Uma tarde, já Anselmo havia “encerrado o expediente” do
jornal e passeava pela rua do Ouvidor, o seu jardim, admirando a “mancenilha
humana” quando o servente da Cidade do Rio, que o procurava em todas
as confeitarias, entregou-lhe uma carta do Neiva, com a nota de urgência.
Abriu e leu, comovido, estas palavras rápidas e tristes: “O Lins
está agonizando. Vem!” e o endereço do moribundo.

Anselmo ficou um momento hesitante. Talvez fosse pilhéria do incorrigível
boêmio, mas… se fosse verdade? Desceu a rua e encontrou o Duarte que
subia carregado de embrulhos.

— Sabes? O Lins está agonizante, disse-lhe ex-abrupto.

— Como?! Não é possível! Quem te disse?

— O Neiva. Escreveu-me. Está aqui a carta.

— Não creias, homem; é troça. Ainda anteontem
estive com o Lins numa cervejada. Não creias.

— Que horas são?

O Duarte arrancou do bolso um monstruoso relógio de níquel
e, consultou-o, dizendo:

— Cinco mil e quinhentos.

— Hem?

— Cinco mil e quinhentos.

— Que história é essa?

— É simples. Este relógio custou-me doze mil réis,
a mil réis por hora, assim eu, em vez de dizer, como toda a gente:
São quatro, são duas horas, dou o preço correspondente
ao tempo, que é dinheiro, como sabes. Em vulgacho são cinco
e meia.

— Pois eu vou à casa do Lins. Pode ser verdadeira a comunicação
do Neiva e não quero ficar com um remorso eterno. Queres vir comigo?

— Não posso, tenho uma irmã que faz anos hoje. Não
vês como vou aqui carregado? Em todo o caso, se houver alguma coisa,
manda-me um recado ao largo dos Leões, onde vivo, atualmente, como
Daniel.

— Então, adeus!

Apartaram-se. Anselmo desceu a rua para tomar o bonde que o devia deixar
à porta da casa do Lias, à rua Senador Pompeu. Era uma casa
assobradada, bateu. Uma mocinha veio recebê-lo e, tanto que o viu, posto
que não o conhecesse, acenou convidando-o a entrar e perguntou com
uma vozinha branda:

— O senhor vem ver meu primo?

— Sim, senhora.

— Entre.

Levou-o pelo corredor sombrio. Na sala de jantar já o gás estava
aceso. Havia gente conversando surdamente em torno da mesa redonda alegrada
por um vaso de flores. Burburinhou um sussuro de vozes e Anselmo, sempre guiado
pela mocinha, passou a outro corredor, entrando em um quarto, cuja porta ela
abrira conservando-se fora.

Numa cama de ferro, ao fundo do quarto triste, sem móveis, iluminado
por um bico de gás, agonizava, anquilosado, o poeta paraibano. As mãos
cruzadas sobre o peito magro, as faces cavadas os olhos fundos, movendo-se
sinistramente, eles apenas, em toda a imobilidade rígida daquele corpo,
como se fossem os primeiros vermes que se houvessem alojado nas órbitas
e andassem a roer em silêncio. O resto de vida refugiara-se-lhe nas
pupilas negras, último reduto da alma, de sorte que eram os olhos que
falavam, que sorriam, que perguntavam, que respondiam, que vertiam lágrimas
dizendo adeus para o sempre, despedindo-se pelo coração que
batia ainda, lentamente, flébil.

Agonizava quando Anselmo entrou e o Neiva, soluçando, com a vela na
mão, tomou-lhe o braço, puxou-o para o peito de modo que ele
pudesse empunhar o círio alumiador da última hora.

Vendo Anselmo fez um gesto desanimado, trincando os lábios e, mostrando,
com um olhar, o companheiro que acabava. Fora houve um surdo rumor de passos,
gente chegava à porta como para ouvir o sarrido da dispnéia
e o soluço final do que atravessara a vida atordoando a agonia com
o estrépito das gargalhadas. Num derradeiro esforço o moribundo
volveu os olhos para Anselmo, parando-os, fitos nele. Veio um resto de luz
à tona, mas foi, aos poucos, minguando, minguando até que as
pálpebras caíram como duas tampas de esquife.

Nem um frêmito: extinguiu-se preso na paralisia. Alguns soluços
quando correu a notícia; vozes abafadas, passos leves, segredos. Vieram
os círios que põem quatro lágrimas de fogo junto aos
mortos, veio a água benta com um ramo de alecrim num vaso de cristal.

Um Cristo de bronze, secular, gasto de muitos beijos, foi pousado à
cabeceira do poeta. Neiva e Anselmo guardaram o corpo do companheiro, vestiram-no
chorando. Os de casa pareciam desafogados, choravam por obrigação:
deixavam a gota crescer nos olhos até que se precipitava pelas faces,
punham-na, então, em evidência para que vissem que sabiam ser
delicados, que conheciam as regras convencionais do sentimento, como depois
provaram indo à missa e vestindo o luto.

Eram oito horas da noite quando o Neiva, atarantado, chamou Anselmo ao vão
de uma janela para falar-lhe em segredo, porque os parentes do poeta suspiravam
no quarto, esfregando os olhos secos.

— Não saias daqui; eu vou aos teatros. À meia-noite virei
render-te.

Anselmo recuou assombrado:

— Pois vais aos teatros hoje!?

— Então, homem? Que queres? Vou arranjar algum dinheiro para
comprar duas ou três coroas: uma por mim, outra por ti e outra pela
imbecilidade humana. Que os idiotas prestem, ao menos, este culto a um poeta
que teria sido genial se nascesse em outra terra. Até já.

Tomou o chapéu e, em pontas de pés, deixou a câmara fúnebre.
A casa encheu-se, porque toda a vizinhança quis ver “o moço”.
As velhas chegavam ao leito de mãos cruzadas, um ar muito compadecido,
a cabeça inclinada; ficavam um instante a mirar o cadáver, aspergindo-o
com água benta e voltavam para o grupo, onde se discutia política
e a vida livre de certa vizinha. Anselmo sentia-se mal naquele meio e, como
ninguém lhe dirigia a palavra, procurava afazeres, ora espevitando
os círios que crepitavam, ora arranjando a roupa com que haviam vestido
o poeta, tão ancha, amarfanhada em gelhas no corpo raquítico,
roupa de esmola, talvez de um tio, gordo e baixo que ia e vinha pelo corredor
escarrando forte. A noite ia alta: os que faziam quarto ao morto conversavam
francamente, com exceção do velho gordo que roncava numa cadeira
de vime, de pernas abertas, a cabeça caída, as mãos papudas
enclavinhadas no ventre rotundo, quando o Neiva entrou, de leve, com um embrulhinho
e, depois de haver contemplado o cadáver, chamou Anselmo à parte
sussurrando-lhe:

— Tens aqui uma porção. Come porque esta gente nem uma
xícara de café é capaz de oferecer.

Anselmo, retirando-se, foi devorar deixando o boêmio à cabeceira
do Lins, muito comovido, a enxugar lágrimas teimosas. Inesperadamente
houve um tinir de louça e uma negrinha entrou na câmara mortuária
com uma bandeja oferecendo café. O Neiva sussurrou a Anselmo:

— Teriam eles ouvido a minha observação?

— Talvez.

— Melhor. Que diabo! Não podemos passar toda a noite a fazer
cruzes na boca. Nem parecem nortistas. No Norte oferecem-se ceias lautas aos
que fazem quarto. E aqui mesmo, já apanhei uma indigestão em
casa de uns minas no dia da morte de um deles. Foi um banquete, meu amigo!
Um verdadeiro banquete! E aqui… nem um biscoito.

— Arranjaste para as coroas?

— Se arranjei! E já encomendei flores, flores em profusão;
devem trazê-las aqui. Descansa: o nosso Lins não fará
figura triste, isso não. Eu estou aqui!

O sono não conseguiu vencer os rapazes que viram nascer a luz coando-se
pelos vidros baços da janela. O Neiva, então, sentindo-se mole,
convidou Anselmo para o Ravot:

— Vamos tomar a nossa ducha para resistirmos. Estou esbarrondado. Há
seis noites que não durmo.

— E eu! — exclamou Anselmo apanhando o chapéu e, sem se
despedirem, foram saindo cautelosamente, deixando o morto desacompanhado,
porque só uma criança estava junto dele e dormia profundamente,
estirada no chão, com um braço passado pela cabeça.

Eram quatro horas da tarde, linda tarde de Setembro quando o corpo do poeta
foi conduzido ao coche pelos boêmios. As coroas levadas pelo Neiva faziam
desaparecer a da família do morto, feita de saudades roxas, mas tão
fanadas, que o Duarte, indignado, murmurou:

— Isto até parece de aluguel.

O saimento não foi numeroso: quatro carros apenas acompanharam a S.
João Batista o eterno enamorado. À beira da cova o Neiva, rompendo
em soluços, despediu-se do amigo e o Duarte, com um pranto sincero,
pediu ao finado que o viesse buscar, porque já estava enfarado da vida
imbecil. Um velhinho abeirou-se da cova, pigarreou como se preparasse a garganta,
os coveiros encostaram-se às pás, esperando o discurso, mas
o velhinho meneou com a cabeça e retirou-se. A sineta tinia.

— Vamos, meus amigos; convidou o Neiva. Houve um rufo sinistro que
se foi tornando soturno e abafado e a terra tomou posse do corpo amado. No
carro Anselmo e o Neiva travaram uma discussão transcendente:

— Eu não temo a morte, disse Anselmo, o que me apavora é
a idéia de morrer, é a certeza em que estou de que hei de acabar.
O que me aterra é a sensação angustiosa do momento. Não
penso na morte, penso na vida. Queres ver a coisa? Está claramente
exposta em um sonho que me persegue. Vejo-me no fundo de um poço tenebroso,
frio, lutando, debatendo-me, sem ar até que encontro a ponta de um
cabo — agarro-o aflito e começo a guindar-me, mas, com o atrito
das mãos, o cabo começa a esgaçar-se, a delir-se… Chegam-me
aos ouvidos vozes, avisto a luz do sol, fraca e longínqua, sinto o
perfume das flores. Já à borda do poço, vejo que o cabo
está por um fio tenuíssimo — mais uma flexão e
tudo estará perdido.. E ouço e sinto a vida… Ah! O instante
horrível deve ser esse: a espera, sentir o estalar dás últimas
fibras do cabo, estar à beira da luz e dentro da treva. À queda
é uma vertigem, mas antes da queda, o momento da resistência
da fibra mais forte…

Tenho passado muitas e muitas noites em claro a pensar nesse drama sinistro.
A saudade da vida é que me assombra: o acabamento deve ser rápido,
muito rápido.

— Não concordo contigo, disse o Neiva, não concordo.

— Como não concordas?

— Não… Medo da morte não tenho, porque sou católico
— o Além não me aterra, o que me tortura é a idéia
da destruição vagarosa, gradativa. Explico-me. Para mim a morte
é como a lenta extinção de uma fogueira; desaparecem
as labaredas, mas ficam as brasas, faíscas percorrem os troncos carbonizados,
apagadas as faíscas fica a cinza quente, ainda é vida. A morte
parcial… o aniquilamento das células… hum! Imagina um pobre corpo
imóvel a extinguir-se: aqui um fato que se apaga no braseiro da memória,
ali outro, mas crepitando ainda uma saudade e terrível, como uma formiguinha
presa num recipiente hermeticamente fechado, a correr aflita de um lado para
outro, a última idéia no corpo morto, a idéia ambiciosa
de viver, descendo pelos nervos, do cérebro à sola do pé,
subindo ao coração, indo ao fígado, aos pulmões,
ao baço, aos rins, aos intestinos e achando em tudo o frio e o silêncio.
A ânsia de fugir… Ah! Meu amigo, dessa sobrevivente é que eu
tenho medo! Até que ela acabe, até que sucumba no grande frio
mudo… Ah!…

— Pois é isso justamente o fio tênue do cabo, disse Anselmo:
é o “instinto” que luta até…

— … não poder mais! — exclamou o boêmio, com um
arrancado e desesperado suspiro. E atirando os braços bradou: —
Com todos os diabos, mudemos de assunto. Falemos da vida, das coisas da vida,
do esplendor da vida. E o carro chegou ao Largo da Carioca justamente quando
os sinos dobravam as Ave Marias!

Capítulo XXVII

Foi com a violência inesperada de uma erupção vulcânica
que irrompeu na Câmara o projeto de lei extinguindo a escravidão.
Discutido com a urgência fogosa dos propagandistas, que o reputavam
uma “necessidade nacional”, venceu impetuosamente a primeira represa,
subindo ao Senado onde foi acolhido com simpatia quase unânime.

Os mais ferrenhos oposicionistas, que haviam procurado travar a propaganda,
sentiram-se mesquinhos diante da massa avassaladora que se impunha ameaçando,
com energia, o próprio trono. O projeto da Câmara tinha, a bem
dizer, a feição ostensiva de um ultimatum e os senadores mantiveram
a toga suspensa.

Cândido de Oliveira, requerendo que a 3ª discussão e subseqüente
votação fossem excepcionalmente feitas no domingo, 13 de Maio,
precipitou o desfecho. A certeza da vitória pôs o povo em alvoroço.
Os representantes da imprensa reuniram-se no Club de Esgrima para discutir
o programa dos festejos comemorativos, todas as associações
convocaram os seus membros, e, no dia do pronunciamento do Senado, a cidade
amanheceu festiva. Às janelas de algumas casas tremulavam bandeiras.
O povo afluía às imediações do Senado ocupando
as ruas adjacentes, enchendo o parque, como um exército sitiante. O
sol dardejava rijo sobre a multidão; as copas dos chapéus de
sol moviam-se como carapaças que flutuassem, lenços agitavam-se.
As janelas do Senado estavam entupidas e foi necessário que a tropa
interviesse para vedar a entrada no recinto.

Esperava-se com a alegria da certeza e, com o correr das horas, mais engrossava
a multidão. Havia gente nas moitas, nas grades do parque, pelos telhados,
acolhida à sombra de chapéus de sol; muito longe mesmo, nos
telhados das casas, moviam-se vultos. Homens agarravam-se aos lampiões,
outros subiam pelos postes telefônicos. Era a cidade ansiosa que alongava
os olhos para o templo de onde devia ser lançado o misericordioso perdão
sobre os cativos de África.

Os bondes, parados em longa fila, traziam curiosos sobre a tolda; carros
detinham-se intimados pelo povo. Os próprios soldados refreavam os
animais na impossibilidade de vencer a massa compacta.

Repentinamente estrugiram brados no interior do recinto e um homem apareceu
à janela afogueado gesticulando e clamando. Um pombo branco fugiu por
uma das janelas, tatalando as asas, atordoado; outro, outro, outro e outro
e voaram todos em direção ao parque que, com a sua verdura viçosa,
resplendia ao sol.

O povo, como se visse naqueles animais inocentes um símbolo das almas
que se haviam libertado ganhando, como eles, a largueza vasta das terras e
dos espaços, prorrompeu em palmas e em vivas. O rumor estupendo abalou
os espaços e, em vários pontos, em clangor triunfal, fanfarras
atroaram.

O povo ondulava ovante e mais de vinte mil bocas, em uníssono, aclamavam;
iam chapéus ao ar, lenços palpitavam e, aos arrancos impetuosos,
foguetes rasgavam os ares espoucando na altura. Súbito uma detonação
abalou os ecos O povo conteve, por momentos, a alacridade; outro estampido
longínquo — eram os fortes e os navios saudando a Redenção
da Pátria.

O entusiasmo recrudesceu chegando às raias do delírio. Mas
à porta do Senado apareceu um estandarte, outros foram saindo —
eram os guiões do exército benemérito e o povo recebia-os
como se, efetivamente, eles voltassem gloriosos de campos cruentos de batalha.
E, de tranco em tranco, asfixiado, rouco, a gesticular, chorando e rindo,
vinha um homem de bronze por entre o tumulto, de braço em braço
como um ídolo que todos quisessem veneradamente tocar e sentir —
era Patrocínio.

E fez-se a desfilada em direção ao Paço da cidade onde
a princesa regente, que descera de Petrópolis, esperava os triunfadores.

A notícia, comunicando-se aos pontos mais extremos da cidade, trouxe
à rua o povo feliz e o trajeto foi lento e difícil — ia-se
por entre muralhas humanas, sob uma chuva de pétalas, à luz
radiosa de um dia lindo e amável.

O decreto foi assinado afluindo o povo à rua do Ouvidor, onde já
aflavam bandeiras em triunfo, fazendo uma abóbada policrômica,
como numa cena de lenda oriental.

O dia passou-se em delírio. Bandos percorriam as ruas, cantando. Saíram
serenatas e grupos de negros com os seus maracás e os seus reco-recos
e, a luz de archotes, começaram os carpinteiros a martelar construindo
coretos ou fincando postes para a ornamentação.

No dia seguinte, cedo, Anselmo, que andara na véspera com o povo,
apareceu na Cidade do Rio. Logo ao entrar ouviu a voz de Montezuma, que discutia
acaloradamente com o paginador. O dono do althéa gesticulava frenético:

— Isso não! Pois justamente no dia da vitória é
que vocês querem abandonar o homem?

— Mas, Sr. Montezuma, que posso eu fazer? O senhor compreende: os rapazes
têm família e, aqui entre nós, é natural —
duas quinzenas e vamos entrando na terceira.

— Ora! Duas quinzenas… A mim devem mais de cinco mil contos. Tenha
paciência, vá falar aos rapazes para que façam a folha.

— Que é, Montezuma? — perguntou Anselmo.

— Greve. Não querem trabalhar porque têm na casa duas
quinzenas. Se eu tivesse adiantava, mas a minha fortuna aqui está:
$640 e dois gasparinhos. Logo hoje!… Mas a folha há de sair, custe
o que custar. Vou ver se arranjo alguma coisa. Vai lá dentro e improvisa
um discurso, trata de chamar aquela gente à ordem, eu vou por aí.
Hoje há de ser difícil, mas em todo o caso… Até já.

— Até já.

Montezuma saiu gesticulando, furioso; mas deteve-se à porta e, voltando-se,
dirigiu-se ao gerente melancólico, que cochilava encostado à
parede, com um braço esticado sobre o balcão.

— Ó homem, tu não mandas enfeitar o jornal?

— Enfeitar o jornal… com quê, senhor Montezuma? — perguntou
desolado.

— Com quê?! Com bandeiras e galhardetes, homem de Deus.

— Bandeiras e galhardetes… Mas onde vou eu buscar essas coisas?

— Também vocês não têm nada, que diabo!

— Infelizmente…! — suspirou o desgraçado, recostando-se
de novo à parede com resignação. Mas o paginador reapareceu
radiante e dirigiu-se a Montezuma:

— Os rapazes fazem o jornal.

— Ainda bem.

— Mas é necessário que o senhor Anselmo não escreva
muito.

— Não há aí encalhes? — perguntou o secretário.

— Temos um conto.

— De quem?

— Não sei; está composto há mais de um mês.

— Dê o conto. Que mais?

— Uma poesia daquele poeta de S. Gonçalo… uma que fala em
Nossa Senhora fugindo para o Egito.

— Isso não. Que mais?

— Há ainda umas coisinhas. Eu vejo. Basta que o senhor escreva
um artigozinho de umas três tiras; com o noticiário e os ministérios,
a folha fica pronta.

— E sai?

— Já se vê.

— Então estamos arranjados. Agora vou dar umas voltas para ver
se consigo as tais quinzenas.

— Uma ao menos, senhor Montezuma.

— Vou ver. E, com desabalados gestos, Montezuma partiu, falando só,
com dois pince-nez escarranchados na penca.

Anselmo subiu disposto a escrever um artigo monumental dando as suas impressões,
mas diante das tiras alvas, como se uma nuvem lhe houvesse subitamente toldado
o espírito, sentiu-se incapaz e, fincando os cotovelos na mesa, com
o olhar disperso, ficou-se a fumar. Apesar da hora a rua começava a
encher-se e a gente que passava discutia; alguns detinham-se diante do jornal,
entravam no escritório e saíam à pressa, à cata
de novidades. Anselmo viajava no país azul do sonho quando se sentiu
agarrado por um pulso formidável. Voltou-se e deu com os olhos no poeta
da Tarântula.

— Ah! Moraes, vieste salvar-me. Estou morto de fadiga. Escreve aí
umas linhas.

— E eu! Pensas que tenho estado inerte? Já fiz para cima de
vinte discursos. Estive com o Bivar, está sem voz. Mas que belo, hem?
— exclamou o poeta com entono. Que vitória…! A conquista do
talento, hem? Decididamente não há arma como esta! — e
empunhou uma caneta com orgulho. Sim, senhor! Arrastou uma cadeira, sentou-se
e, diante das tiras, exclamou de novo: Bela coisa!

— Pois sim, pois sim, mas escreve.

— Que diabo queres tu que eu escreva?

— Escreve sobre isso mesmo — a conquista do talento.

— Isso dá um artigo de duas ou três colunas. Queres?

— Não, filho; sê sóbrio, estamos ameaçados
de greve. Sê breve e forte.

— Pois sim. E pôs-se a escrever balançando a perna. De
repente, porém, uma voz rouca bradou na rua: “Viva José
do Patrocínio! Viva Joaquim Nabuco!” Anselmo correu à janela,
palpitante. Estava uma multidão diante do escritório e um mulato
gordo, esbaforido, atirando o chapéu ao ar, fazia enorme algazarra.
Anselmo desceu e, rompendo o povo, chegou ao homem que logo avançou,
rouco, encharcado de suor e apertou-o nos braços, gritando com fúria:
“Viva José do Patrocínio! Viva a Cidade do Rio! Primeiro
jornal do mundo!” E, sem mais, arregaçando as mangas do casaco
surrado, subiu para o balcão e, com grande esforço, arrancando
as palavras, pôs-se a falar:

“Cidadãos, não há mais escravos no Brasil. Aqui
agora todo o mundo é livre, não há negro nem branco,
há brasileiros…”

Rugiram: Apoiado! E o orador, entusiasmado com o acorçoamento do povo,
pôs-se nas pontas dos pés e, cada vez mais rouco, continuou:

“Ontem era o castigo: era a mãe arrancada ao filho, o filho arrancado
à mãe, uma patifaria, uma pouca-vergonha…! Súcia de
vagabundos que queriam viver à custa dos desgraçados. Pois agora
que vão trabalhar… Cidadãos, a nossa pátria estava
manchada… (Apoiado!…) a nossa pátria estava manchada, mas de hoje
em diante, podemos dizer com orgulho que somos brasileiros, porque já
não há escravos em nossa terra. Viva José do Patrocínio…!
Viva Joaquim Nabuco…!” E saltou do balcão.

Dando com os olhos em Anselmo o mulato adiantou-se e, posto que o secretário
não o conhecesse, não se revoltou com a intimidade com que foi
tratado:

— Passa um cigarro. Ah! Não imaginas como estou: não
tenho voz, a camisa está como uma papa, mas também ontem berrei
como um danado. Que pensas? Eu cá não conto com desgraça,
sou homem! Se grimparem comigo, ahn! Mas passou, hein? E atirou uma palmada
ao ombro de Anselmo.

— Por quantos votos? — perguntou um sujeito magro.

— Sei lá de votos! Sei que passou e se não passasse voava
a quitanda: os cabras estavam dispostos. Meti lá a minha gente e aquilo
era só um grito.

— E o José?

— Que José?

— O Patrocínio…

— Sei lá. O cabra fica hoje sem costela. Ontem andava no ar
que nem o Blondin. A gente só via a cabeça e os bracinhos do
preto… Mas é homem, deixem lá! Homem mesmo! E sacudiu-se urrando:
Viva o grande abolicionista José Carlos do Patrocínio!

O povo correspondeu com delírio.

— Qual! Quando eu digo… Há aí alguma coisa que se beba?
Estou zarro. Viva Joaquim Nabuco! Diabo! Esta gente não presta. Vou
ver a minha cabralhada, quero fazer hoje uns bonitos nesta cidade. Olhe! Eu
não tenho nada com isso, sou mulato, mas nunca fui escravo, é
preciso que se note; mas sou brasileiro, não queria a minha pátria
manchada, ahn! Isso é que é.

Luiz Moraes, tendo concluído o artigo, despediu-se para almoçar
e Anselmo esquivava-se ao mulato gordo quando Montezuma, amarrotado e gotejante,
abrindo o grupo dos populares, apareceu no escritório com gestos largos
e um embrulho:

— Então, Montezuma?

— Consummatum est. Patrocínio está imortal e aqui está
o dinheiro. Suei! Agora, antes de fazer o pagamento, eu devia desafivelar
uma descompostura das minhas, porque o procedimento dos tais senhores tipógrafos
não tem classificação. Vamos lá para cima contar
isto. E você, homem, disse, dirigindo-se ao gerente, sempre acabrunhado,
mova-se, trate de arranjar algumas bandeiras e flores. É preciso que
o jornal apareça digno.

— Mas como, senhor Montezuma? Tenho seiscentos réis em caixa.
E uma desgraça… Mas que hei de fazer?

— Levante-se, tenha energia. Eu, no Rio da Prata, fiquei uma vez sem
um níquel, pois, meu amigo, não descorçoei: pus-me em
campo, furando a vida, e, à tarde, estava com o bolso cheio de duros
e rodando em Palermo. Mova-se, vá aqui ao Alves sirgueiro e peça
umas bandeiras, alugue-as, compre-as; vá depois à Rosenwald
e diga-lhe, em meu nome, que venha enfeitar a sala de trabalho do José.

— Bandeiras de que país, senhor Montezuma?

— De todo o mundo: brasileiras, portuguesas, russas, africanas, chinesas,
alemães, as que encontrar. Mas ande!… Mova-se!

— Vou calçar as botinas.

— Que botinas? Pois você está ao balcão sem botinas?

— Sim, senhor, por causa dos calos.

— Onde foi o Patrocínio descobrir este homem? Antes de ser gerente
que diabo era você…?

— Condutor de bonde.

— Ahn! E querem que este jornal ande para diante com um condutor ao
balcão! Pois sim! Vamos lá para cima.

E Montezuma avançou para a escada seguido de Anselmo, sempre a resmungar
contra os compositores e contra o gerente. Diante da mesa do Patrocínio
deteve-se meneando com a cabeça. De repente, resoluto, atirando o chapéu
ao divã, arregaçou as mangas e, ordenando a Anselmo que fechasse
a porta, pôs-se a rasgar os papéis que encontrava, pondo em ordem
a mesa do herói.

— Montezuma, não rasgues os papéis. Olha que aí
há coisas necessárias.

— Mais necessária é a ordem. Quer você que o povo
que aí vem veja esta vergonha? Não, senhor. Que é do
servente?

— Deve andar por aí.

— Pois é preciso que ele passe uma vassoura nisto. Vai chamá-lo
e vê lá se esse condutor já foi ver as bandeiras e as
flores. Um condutor na gerência de um jornal!

Anselmo saiu e, quando tornou com o servente estremunhado, ainda vestindo
o casaco, Montezuma, de pé, admirava o trabalho que fizera e resmungava
contra o gerente:

— Ao balcão, sem botinas! Falta de vergonha! Num dia como o
de hoje! Então não está melhor assim?

— Parece.

— Parece não, está magnífico, tem aspecto. Vamos,
homem, varra este gabinete.

— Já foi varrido.

— Como já foi varrido?!

-. Sim, senhor, de manhã.

— Pois não vês que está cheio de papéis?

— Mas eu varri.

— Pois varra outra vez. E leve aquela cesta lá para dentro.
Sempre atarantado, Montezuma desfez o pacote e notas rolaram sobre o canapé.
Vá chamar o paginador. Que venha cá em cima. Já tinha
um maço contado e amarrado. E pôs-se a contar as outras notas.

— Estás rico, Montezuma?

— Rico, hem?… Foi uma campanha para arranjar dois contos de réis.
Tudo fechado. Enfim… Vamos agora ver se enfeitamos isto. O gerente já
foi?

— Creio que sim.

Vivas atroavam e, através do altissonante clamor do povo, distinguia-se
o nome de José do Patrocínio.

— Está fresca a redação. Pois o José sabia
disso e por que não mandou arranjar convenientemente o jornal? Que
me falasse, que diabo! Se me houvesse dito, ontem mesmo, com dois homens,
eu punha esta casa como um brinco. Mas não, é tudo para a ultima
hora. Está fresca…

O paginador apareceu em mangas de camisa, radiante.

— O senhor Montezuma chamou-me?

— Sim, estão aqui as quinzenas — isto é: uma quinzena;
vou ver se posso arranjar a outra para amanhã. Que esperem, eu também
espero; todos esperam. E a folha?

— Está pronta.

— Pois é pô-la na rua.

— Já está rodando.

— E o gerente?

— Saiu.

— Ora graças a Deus! Que é do servente?

— Estou varrendo. O senhor não mandou varrer?

— Sim, mas depressa! Que diabo! Estás dormindo em pé!

— Eu não sou máquina.

— Bem vejo que és um pedaço de idiota, mas anda com isso.

O homenzinho resmungou e Montezuma ia dar uma ordem, quando o povo, que se
havia ajuntado diante do jornal, prorrompeu em vivas. O grande velho ficou
atordoado: ia e vinha com o pacote de notas, gesticulando, sem saber que fizesse,
quando, da rua, começaram a bradar por alguém. Voltou-se impetuosamente
para Anselmo; ia dizer-lhe alguma coisa, mas resoluto, avançou para
a sacada, sendo recebido com uma prolongada salva de palmas. Pigarreou e,
gesticulando desabaladamente, sempre com o pacote de notas na mão direita,
disse:

— Meus senhores… Depois, voltando-se, chamou o secretário,
que ria a bom rir, vendo-o naquela entalação: Toma conta deste
dinheiro enquanto eu digo duas palavras ao povo.

Entregando o pacote declarou, muito rouco, atirando os braços como
se nadasse:

— O Patrocínio não está e eu… em nome da Cidade
do Rio, só posso dizer… Pigarreou, passou o lenço pela fronte,
fez um aceno de adeus e disse naturalmente com os olhos no La Paix: Como vais,
Coutinho?… Depois, lembrando-se do discurso, concluiu-o: Viva a Liberdade!

O povo aclamou-o delirantemente e Montezuma, recolhendo-se, depois de agradecer,
perorou vitorioso:

— Isto é assim… A gente diz duas coisas e está acabado.
O povo não há de ficar aí a ver navios.

Mas a onda, que avançava compacta, atroava os ares com uma grita estentorosa.
Anselmo chegou à janela comovido. A rua estava apinhada, densa e fervilhando,
e todos os olhos fitavam a tabuleta do jornal que fora o reduto da abolição.
O dia, muito azul, concorria para a imponência da festa e o povo, frenético,
agitava-se com um sussurro perene. As bandeiras balouçavam-se, estouravam
foguetes, vivas estrugiam.

Da janela de O Paiz um redator, purpúreo e suado, arengava. Mas o
povo reclamava a presença de Patrocínio e foi necessário
que Anselmo, comovido, repetisse o que já havia dito Montezuma —
que o chefe da propaganda não se achava presente. Mas o entusiasmo
ia-se comunicando. Logo que o secretário, terminando sua explicação,
levantou um viva à Pátria livre, unissonamente respondido pelo
povo, da janela do hotel La Paix, um mocinho de bigode ruivo bateu as palmas
e, assomado, começou um discurso retumbante, no qual, de mistura com
deuses da mitologia grega, passou à figura ensangüentada de Marat,
cantaram “jandaias em frondes de carnaúbas”, deslizaram igaras,
rebentaram grilhões. Como o orador tinha magníficos pulmões
o povo, que não se preocupava com a forma e muito menos com a substância
das orações, contentando-se com palavras que explodissem, rompeu
em aplausos delirantes e, em seguida ao mocinho, outro começou adiante
e, em pouco, em todas as janelas da rua do Ouvidor braços agitavam-se
convulsivamente como se todos os moradores da apertada passagem houvessem
enlouquecido.

Por fim, do meio da rua, apertados, constrangidos, agoniados, oradores começaram
aos berros furibundos, fazendo a apologia do grande libertador, pedindo uma
estátua, outros contestando, “que não! não havia
necessidade de estátua, porque o vulto do grande homem havia de ficar
no coração dos brasileiros e nas páginas da história”.

Grandes e descabeladas hipérboles jorravam da boca dos tribunos, roxos
de calor e de entusiasmo e o povo sempre a aplaudir com frenesi, batendo palmas.
Montezuma, entusiasmado, queria, a todo o transe, fazer outro discurso; ia
e vinha ao longo da sala com derramados gestos e o nariz carregado de pinces-nez,
quando o Neiva irrompeu trovejando:

— Temos uma pátria! E atirou o chapéu sobre uma das mesas.

— O Neiva, vens a propósito. Vê se nos salvas.

— Que há?

— Dize da janela duas coisas ao povo, implorou Montezuma.

— Estou estafado. Venho falando desde o Largo de São Francisco
até aqui. Deixem-me descansar um momento.

Da rua começaram a reclamar o Neiva, aos gritos; e o boêmio,
levado aos empurrões por Montezuma, apareceu à janela sendo
recebido com uma salva de palmas. O discurso que pronunciou, inspirado na
religião, foi vivamente aplaudido. Ia ele perorando quando, pela travessa
do Ouvidor, uma grande massa precipitou-se e Montezuma, com a sua carga de
lentes, reconheceu, no meio do povo, José do Patrocínio. Então,
acenando com um lenço roxo, o bom velho, em lágrimas, pôs-se
a aclamá-lo.

O povo, que enchia aquela parte da rua do Ouvidor, com risco de sufocar alguns
entusiastas, movendo-se aos recuanços, abriu alas ao herói.

Patrocínio vinha carregado e arquejante e, ao chegar à frente
do seu jornal, aclamado por todos os seus companheiros de trabalho, inclusive
os compositores que se apinhavam às janelas, não pôde
conter as lágrimas.

O povo, vendo-o, prorrompeu em vivas e os populares que o carregavam, asfixiados
pela multidão, reclamavam caminho, aos berros.

Um velho negro ajoelhou-se e, de mãos postas, com o pranto nos olhos,
dirigiu-se ao libertador, e parecia que rezava diante de um santo.

Respeitoso silêncio permitiu que fosse ouvida a oração
do infeliz:

“Nhô Patrucinu… Deu du ceu bençôe suncê.
Eu, pobre véio, já não se importava co cativêro.
Morte tá i módi libertá corpu di negru, cançadu
di trabaiá, má zêre, nhô: fio, fia, neto piquinino,
esse sim, i parceru turu… rapaziada moça, esse sim, vai pruvêtá
liberdade. Nossinhô tá lá in cima; ele ha di óiá
suncê, nhô Patrucinu. Antonce não hai Deu nu ceu? Viva
o sarvadô di nóis! Viva!” e o negro, trêmulo, foi-se
arrastando para beijar os pés do redentor da sua raça.

Patrocínio, porém, arrojando-se da charola humana, chegou-se
ao negro, apertou-o nos braços e, em pranto, enquanto o povo comovido
parecia petrificado, entrou correndo na Cidade do Rio.

Estava exausto e, quando viu os companheiros no patamar da escada, pediu
que o deixassem em paz:

— Pelo amor de Deus, meus amigos, já não tenho costelas,
estou macerado. Deixem-me!

— Não, tenha paciência.

E todos quiseram abraçar o valente propagandista que gemia.

A multidão bradava por ele e o herói, bambeando nas pernas,
foi à janela corresponder à manifestação que lhe
faziam. As suas palavras roucas mal chegavam aos mais próximos e, de
longe, os que não o ouviam, bradavam, agitavam lenços, e de
um a outro extremo da rua, o seu nome estrondava.

Até à noite, de quando em quando reclamado pelo povo, apareceu
à janela. Fez discursos, levantou vivas, foi comprimido em braços,
foi beijado. Se o viam na rua rapazes avançavam, atirando-se-lhe aos
botões da sobrecasaca e do colete, disputando-os como relíquias.
Às dez da noite — a cidade fulgurava iluminada -, tendo de sair
para jantar, pediu uma guarda.

— Venham comigo, pelo amor de Deus. Imaginem vocês que um homem
teve a idéia extravagante de pedir-me um fio de cabelo para um relicário.
Se pega a mania, pelam-me. Tenham paciência!

Para garantir a barba e os cabelos do herói formou-se um grupo que
o conduziu ao La Paix, onde foi servido o jantar. Logo à entrada os
criados do hotel, desfolhando rosas, fizeram tamanho alarido que os que comiam
avançaram pressurosos e, dando com o propagandista, foi tamanha a atroada
que Montezuma, receando ensurdecer, espalmou as mãos nos ouvidos, declarando
que nem no Paraguai ouvira rumor como aquele.

À mesa, mal havia tempo para levar-se à boca duas garfadas
— de todos os cantos surgiam oradores com taças de champanhe,
e eram discursos em todas as línguas: em inglês, em alemão,
em italiano, em espanhol; houve um em turco e outro em grego e uma senhora,
rubicunda e anafada, exprimindo-se em francês, fez estalar nas bochechas
do tribuno um beijo sonoro “au nom de la fraternité”. Explodiram
urras! E como houvessem pedido uma omelette, o tostado apareceu, enorme e
trêmulo, com as iniciais de Patrocínio muito espoucadas e uma
rosa repolhuda espetada no meio.

Foi uma surpresa do maitre d’hótel que, por sua conta, muito generoso
e comovido, mandou abrir uma garrafa de champanhe e bebeu à la liberté,
muito rouco.

A retirada foi lenta e difícil. Havia gente de sentinela na escada
e, quando Patrocínio, derreado e com fome, porque mal “‘dera tocar
nos pratos, apareceu no patamar, um rapazola esgoelou:

— Aí vem ele! E uma avalanche precipitou-se. E o mísero
grande homem foi, de novo, comprimido e beijado e, por maiores que fossem
os esforços empregados pelos companheiros para o arrancarem à
turba, nada conseguiram. Patrocínio foi rolando na multidão
como uma rolha no oceano e desapareceu. Viam-se-lhe, apenas, o braços
que se debatiam aflitamente. Estaria agonizando? Pedindo socorro ou aplaudindo?
Mistério. O Neiva, lembrando-se da promessa que fizera, dirigiu-se
aos companheiros:

— Nós não podemos ficar aqui de braços cruzados
quando o nosso chefe corre tamanho risco. Se não acudimos imediatamente,
levam-lhe os cabelos e a barba. O povo está com delírio epilatório.
Vamos! E, corajosamente, meteram-se pela multidão.

Para caminharem da travessa do Ouvidor à Cidade do Rio foram necessários
dois aflitíssimos quartos de hora. Montezuma perdeu um pince-nez e
bramiu de cólera, defendendo os cinco que lhe restavam. Anselmo, asfixiado,
queria usar da força e já estava disposto a fazer rolo para
conseguir caminho, quando um compositor, homem de músculos, meteu os
ombros e, como um Hércules, foi abrindo passagem, apesar dos protestos.
Quando chegaram à Cidade do Rio a sala da redação estava
apinhada de gente ansiosa, que reclamava o redator-chefe. Os rapazes pasmaram:
Patrocínio não estava.

— Oh! — exclamou Montezuma.

— Oh! — repetiu o Neiva.

Anselmo balbuciou:

— Hom’essa! E todos, com terror, perguntaram: “Onde andará
ele?”

O retranca, que tudo vira, declarou que o povo havia levado o chefe em triunfo,
rua acima.

— É necessário salvá-lo! — bradou o Neiva.

E Pardal, que surgira, segredou: “Que estava armado para o que desse
e viesse.”

— Mas como havemos de vencer esse mundo que enche a rua? — perguntou
o velho. Estou moído, pisado, sem pernas, com um pince-nez só.
Não me atrevo.

— Mas havemos de deixar sozinho o desgraçado?

— Então? Eu não posso.

O Neiva, porém, atirando uma palmada ao peito, declarou com ênfase:

— Pois vou eu…. e hei de achá-lo!

Enterrou o chapéu na cabeça e ia já perto da escada,
quando Anselmo declarou que o seguia, jurando com solenidade: “Para a
vida e para a morte!” Pardal acompanhou-os.

— Para a vida e para a morte! — disse o Neiva; e desceram. Montezuma
ficou para fazer as honras da casa.

De vez em quando surgia uma leva, subia as escadas com fragor, dando vivas
a Patrocínio e, em cima, encontrava o velho. O intérprete dos
sentimentos do grupo não esfriava e, avançando uma perna, esticando
um braço derramava a eloqüência, entrecortada a urras pelo
auditório. Montezuma ouvia com muita dignidade e, para corresponder,
dizia algumas palavras atirava violentas braçadas, equilibrando o pince-nez
que saracoteava. Isso começou às dez horas e até à
meia noite, sem descontinuar, subiram comissões com oradores. Montezuma,
de pé, com um fio de voz, roxo e hirsuto, foi respondendo, arrependido
de não haver seguido com os rapazes, porque já se sentia exausto
e com a língua mais seca que a de um papagaio.

Quando tornaram à redação Neiva, Anselmo e Pardal, acompanhados
de Patrocínio, encontraram o bom velho estendido em uma cadeira de
lona, em mangas de camisa, a abanar-se com um jornal.

— Que é isso, Montezuma!

— Estou liquidado! Vocês arranjaram-me bonita! Cheguem-se mais,
porque já não tenho voz: foi-se toda em eloqüência.
Fiz para mais de quarenta e cinco discursos! Eram tantas as comissões
que, duma vez, subiram quatro com oradores e então, imaginem vocês,
tive de responder aos quatro. Fiz como os padres, no tempo do cativeiro, quando
tinham de batizar moleques — com um só discurso respondi a todos,
foi só o trabalho de mudar o rótulo. Mas estou morto… E o
José?

De um canto saiu um gemido esganiçado: era o propagandista, rouco,
que explicava com um dedo na garganta, que estava sem voz.

— E tu não fizeste quarenta e cinco! — exclamou Montezuma.

Patrocínio tocou castanholas.

— Mais, homem!?

Novas castanholas de Patrocínio, seguidas de um assobio.

— Então foi um horror!

Sinal afirmativo de Patrocínio.

Estavam nessa discussão, castanholada e assobiada, quando uns rapazes,
que haviam visto o jornalista entrar, invadiram o escritório, galgaram
a escada e começaram aos vivas e logo um orador, diante da porta fechada,
desfechou a primeira bomba:

“Prometeu, tu que roubaste o fogo sagrado da liberdade para alumiar
a alma escura do cativo…”

Patrocínio caiu de joelhos, de mãos postas, como uma vítima.
Montezuma vestiu o casaco, correu para a janela gesticulando desesperadamente.
E o povo na rua prorrompeu em aclamações e palmas. Debalde o
bom velho apertou a garganta, espichou o pescoço, explicando, com uma
complicada mímica, que estava esgotado. O povo bramia, urrava, queria,
a todo o transe, um discurso. Montezuma, desalentado, voltou-se para os companheiros:

— Como há de ser?

— Dize qualquer coisa.

— Como? Se não tenho voz.

— Com esforço.

E o velho pôs-se a rebuscar o pince-nez no bolso, achou um apenas,
acavalou-o na penca. O povo continuava a reclamar, ele fez um gesto solene,
espalmando a mão — que esperassem, abriu a boca e começou
a tossir. Tossiu, descansou e disse o que lhe veio à cabeça
adubando a facúndia com as palavras liberdade, reabilitação,
misericórdia, hegemonia. Foi um delírio e da multidão
saiu uma voz aguda e vibrante. Era outro orador.

Montezuma exaltou-se, enfureceu-se e, atirando grandes braçadas, declarou
colérico:

— Não! Agora é demais! Não respondo…!

O “órgão” da comissão que subira, ululava
à porta e Anselmo, que fora nomeado para representar a folha, ouvia
impassível. Quando o homenzinho, afogueado, suando em bicas, deu por
finda a arenga, o secretário respondeu: mas querendo dizer quatro palavras,
foi alongando o discurso, arrastado pelo entusiasmo.

O Neiva, vendo tamanha prolixidade, indignou-se.

— Ora, estão vendo seu Anselmo! Pois não é que
o homem está esperdiçando discursos. Em vez de poupar, porque
vamos ter trabalho como o diabo, está a esticar a oração,
e vai longe. Vou arrancá-lo.

— Não, deixa.

— E se vier outra comissão?

— Que se arranje.

— Mas é que o povo fica mal habituado. Já o tínhamos
na dose das quatro palavras e agora vem esse Demóstenes com uma enxurrada
de períodos. É um desperdício!

Foram necessários meios violentos para que o Neiva se contivesse —
estava possesso. Felizmente Anselmo pôs remate ao discurso. Estalaram
palmas. Montezuma e Patrocínio respiraram. Mas não foi longa
a tranqüilidade: os rapazes começaram a bradar: “Queriam
ver o grande homem, queriam abraçar Patrocínio” e foi mister
dar-lhes caminho. A onda precipitou-se, invadiu o gabinete.

Patrocínio, muito mole, ergueu-se e, passivamente, deixou-se abraçar
por vinte e tantos moços robustos, que o apertavam com entusiasmo,
que o levantavam, sacudiam. E o mísero, risonho, guinchando, com muita
emoção: “Obrigado! Obrigado!”, soltava gemidos, de
quando em quando, como se lhe estivessem a afundar as costelas.

Tudo parecia ter acabado quando um dos moços arremeteu, estirando
o braço e bradou:

— Patrocínio, és um novo Cristo…

— Estamos perdidos, sussurrou Montezuma.

Patrocínio tomou um ar resignado e o orador prosseguiu, comparando-o
a Jesus, dizendo, porém, que a cruz que lhe estava reservada não
era a do suplício, mas a da história.

O Neiva fez uma careta à comparação, mas o orador, que
a percebeu, quis explicar o seu pensamento, e embrulhou-se de tal modo que
os próprios companheiros, querendo salvá-lo, romperam em palmas,
e, de novo, foi Patrocínio apertado, beijado, levantado, sacudido;
dando-se por muito feliz quando um dos rapazes disse estrondosamente:

— Vamos à redação d’O Paiz. Joaquim Nabuco e Quintino
devem estar lá. Vamos!

— Pois sim, disse baixinho Montezuma, guardando o pince-nez, vocês
hão de achar o Nabuco e o Quintino. Nem todos são tolos como
nós.

Quando os rapazes, com um último viva estrepitoso, deixaram o escritório,
Patrocínio, derreado, gemeu:

— Não posso mais. Essa gente não vê que eu sou
um pai de família…

— E eu! — esgoelou Montezuma. Só lhes digo que com outra
noite como a de hoje entisico. Estou com os pulmões em estado lastimável.
Apre! Também tanto não… Quarenta e seis! Nem no Paraguai!

Capítulo XXVIII

Quando deixaram o escritório da Cidade do Rio, lentos, curvados como
enfermos, ainda erravam entusiastas e alguns tão desequilibrados que
começavam um viva numa calçada e iam terminá-lo na outra.

Sentados nas soleiras das portas, populares estafados faziam guarda às
botinas ou resmungavam cabeceando. Como em cidade que se prepara, às
pressas, para um assédio, em todas as esquinas havia montes de sarrafos
e de tábuas; homens subiam por escadas altas e à luz fumarenta
e escura de candeias, martelavam com fúria, cantarolando, assobiando.

No Largo de São Francisco um grupo, com violas e flautas, em zangarreio
jocundo, atraía a atenção dos retardatários; e
como uma voz fanhosa, que acusava zangurriana, levantasse um viva a José
do Patrocínio, o abolicionista tremeu aterrado, e para que não
fosse conhecido acolheu-se escondidamente aos companheiros, assombrado, pedindo,
em voz surda, que não o deixassem exposto, o livrassem de mais um discurso
e demais abraços. Passaram sem que os da serenata vissem o tribuno.
Junto, porém, ao pátio exterior da Escola Politécnica,
um noctâmbulo. reconhecendo-o, levantou o chapéu acima da cabeça
e escancelou a boca, mas não pôde gritar: Montezuma, furente
como Ajax, agarrou-o pelo colete e, com voz temerosa e rouca, ameaçou-o:

— Se grita, morre!

Mas o homem, de olhos esbugalhados, explicou que ia levantar um viva ao grande
brasileiro.

— Aqui não há grande brasileiro, não há
nada. Só te digo que se gritas morres…

— Então a gente não pode ter opinião?

— Não… Quarenta e seis! Sabes tu que são quarenta e
seis discursos?

— Não, senhor.

— Pois sei eu que os fiz. Vai e lembra-te das minhas palavras: Nem
um viva…!

— Pois sim, senhor… Boa noite. E desculpe.

— Está desculpado.

O pobre homem afastou-se intrigado com aquela agressão. Caminhava;
mas, como se o entusiasmo o picasse, de quando em quando voltava a cabeça
e lançava um olhar ao grupo em que se achava o abolicionista. Perto
da rua da Conceição não se conteve — preparou-se
para a corrida e, a plenos pulmões, lançou aos ares sossegados
um estrondoso: “Viva José do Patrocínio!” Montezuma
sapateou de cólera e quis sair em perseguição do recalcitrante,
mas os amigos opuseram-se. Felizmente ninguém ouvira o grito. Ao longe
a serenata continuava, lânguida.

— Queres saber, José? Acho melhor tomares um tílburi.

— Mas não há.

— Eu vou ver, disse Anselmo.

— E eu, ajuntou o Neiva.

— Então depressa.

Partiram os dois; e Montezuma ficou acompanhando o amigo e escondendo-o.

Pouco depois dois tílburis chegavam à disparada. Patrocínio
precipitou-se para o primeiro, dizendo desafogadamente:

— Estou salvo!

— Boa noite!

— Dize antes: bom dia, emendou Anselmo, porque os galos começam
a cantar.

— Bom dia então. Até logo.

— Não venhas hoje à cidade.

— É melhor.

— Eu, por mim, declaro que, enquanto houver festejos, não ponho
os pés na rua. Estou com a garganta em mísero estado. Deixa-te
ficar em casa. Já fizeste a grande obra; está a pátria
livre; não queiras tu ser o cativo. Não venhas!

— Pois sim. Adeus!

E o cocheiro fustigou o cavalo, que partiu a galope. Pardal, que estava fatigado
e ameaçado de enxaqueca, despediu-se também.

Diante do outro tílburi ficaram os três, Neiva, Anselmo e Montezuma,
discutindo o grande fato. Montezuma, porém, não achava extraordinário
o acontecimento: parecia-lhe muito mais importante a sua eloqüência.

— Meus amigos, a libertação dos negros era coisa esperada,
a campanha havia de ter um desfecho, mas quarenta e seis discursos de improviso…
ufa! No Rio da Prata, em presença do Urquiza, numa festa política,
fiz quatro brindes e todos declararam, assombrados, que eu era um fenômeno.
Os jornais comentaram, e, nos salões, durante mais de um mês,
o assunto das palestras foi a minha exuberância. Que diriam aqueles
homens se soubessem que, num dia e sem jantar, pronunciei quarenta e seis
discursos com imagens? É um absurdo.

— E eu? — exclamou o Neiva. Cheguei a fazer dois discursos a
um tempo, para andar mais depressa. E Patrocínio…?!

— Ah! Mas o Patrocínio tem o hábito da tribuna.

— O hábito não faz o monge, observou Anselmo.

— Aí vem você com os disparates. Vamo-nos embora. É
tarde.

— Acho que é muito cedo. Começa a amanhecer. Se fossemos
às ostras, no Mercado?

— É uma idéia.

— Toca para o Mercado.

E os três, despedindo o tílburi, desceram a rua do Ouvidor,
que começava a enfeitar-se azafamadamente para a celebração
da grande festa. E romperam a cantar, roucos, de braço dado, seguindo
a passos largos:

Alions enlants de la Patrie Le jour de gloire est arrivé…

Um bêbedo, cambaleando, levantou um viva ao Brasil e começou
a algaraviar um discurso. Tiniram campainhas e, no silêncio da rua,
a voz de um tropeiro, que vinha tangendo a récua, rompeu afinada e
dolente:

Eh! dona do xale branco,
Cumu é seu coração?
S’é máu, porque me buscou,
S’é bom, porque me diz não?
Eh! dona, eu não comprendo
Tamanha vacilação!…

— Deixemos passar a bucólica, disse o Neiva encostando-se à
parede.

E a tropa, com um alegre tinir de campainhas, passou a trote lento.

Quando chegaram à rua Direita ainda havia sombra noturna. Italianos
seguiam em grupos com os cestos pendentes dos paus. Carroças rodavam
vagarosas, parando aqui, ali. Os três tomaram pelo largo do Paço.
Montezuma, enfezado, resmungava:

— Que já não era homem para aquelas estroinices, estava
com cinqüenta anos, era tempo de tomar juízo. Que havia de dizer
em casa quando aparecesse? Contava com a guerra civil. Sempre que fazia alguma
ao voltar caíam-lhe todos em cima: a mulher e os filhos, e era uma
grita de enlouquecer. E com razão. Um homem como ele devia dar-se a
respeito. Que diriam se o vissem, àquela hora da manhã, batendo
a calçada, em troça?

— Ora, Montezuma! Deixa-te de escrúpulos. A vida é isto.

— Pois sim.

Chegavam ao largo do Paço.

Ao fundo, no mar, confundindo-se com as estrelas, luziam faróis de
barcos e o relógio da companhia Ferry, iluminado, parecia uma grande
lua muito baixa. Uma carroça, atulhada de verdura, passava aos solavancos.
Tiniam campainhas e, de longe, no ar, vinha o cheiro acre da maresia. Cães
rosnavam nos monturos. O mercado acordava. As diferentes barracas enchiam-se
e, à luz do gás, os mercadores iam arranjando a hortaliça
verdoenga, empilhando molhos de alface, de agrião, de couves. Os repolhos
rolavam nos cestos, os rabanetes e os nabos confundiam-se e, constantemente,
iam e vinham carregadores, com enormes cestos acogulados: arriavam, descarregavam
e iam, a trote, algaraviando e rindo. Bácoros coinchavam, grasnavam
patos, ganiam cães e os galos, pressentindo a manhã, cocoricavam
triunfantemente. Uma negra, sentada num tamborete, mexia, com imensa colher
de pau, a panelada de angu; outra adiante, cercada de negros e pescadores,
enchia canecas de mingau de tapioca, respondendo, com calma, aos gracejos
da freguesia. Nos açougues a carne sangrenta destacava-se: eram metades
de reses, carneiros e porcos estaqueados e, no cepo, os homens iam esquartejando,
espostejando a manchil e logo corriam aos ganchos espetando os grandes quartos
que ficavam oscilando e sangrando.

— Onde vamos nós?

— Às ostras.

— E já haverá?

— Como não? Há ostras como há médicos:
a qualquer hora do dia ou da noite, afirmou Montezuma. Eu conheço isto.
Vamos ver o grego.

— Que grego…?

— Um que aqui há, do Pireu. Vende ostras quando não está
na Detenção, ou no júri. É homem que abre barrigas
com a mesma facilidade com que Hércules estrangulava leões.
Dou-me com ele.

— Pois vamos lá ao grego.

Chegaram à praia justamente quando começava o leilão
de peixe. As canoas, enfileiradas na rampa, estavam abarrotadas de pescado.
Uma multidão fervilhava em volta, discutindo, berrando. Eram gritos,
impropérios, pragas, ameaças e, vencendo o rumor, a voz tonitroante
de um alentado cabo-verde apregoava. Em grandes cestos, em cambulhada na rampa,
homens faziam escolha de ostras, abriam-nas entalando-lhes o facão
entre as valvas e, arranjando-as em tampas, apregoavam: “Ostras frescas!
Mariscos!”

— Vamos ao grego. E Montezuma encaminhou-se para o sítio em
que estava o primeiro tabuleiro, mas deteve-se:

— Oh!

— Que é?

— Não é o grego. Querem ver que já está
na Detenção?

Um homem alto, barbado, abria as ostras com um facalhão. Montezuma
abordou-o.

— Bom dia, patrício.

— Deus lhe dê bom dia.

— Sabe dizer-me se o grego ainda vive?

— O grego…? Vossoria quer falar do Alexandre…

— Não sei se é Alexandre: o grego.

— Sim, senhor: o grego, é como l’o chamam. Ah! Foi filado desde
pelo carnaval.

— Foi filado?!

— Sim, senhor.

— Está preso?

O homem, sempre a abrir as ostras, encolheu os ombros.

— Que quer vossoria… a polícia mete-se em tudo. A gente tem
uma quistãzinha com um camarada, às vezes intê amigo e,
cando mal se precata, está aí a patrulha com maus modos, azangando
tudo…

— É verdade, apoiou o Neiva. Se não fosse a polícia
não haveria tantos conflitos como há. O elemento de ordem é
o principal desordeiro.

— Tal e qual! Vossoria fala como um adbugado.

— Mas que houve com o grego?

— Que hoube…? O que há sempre… Vossoria sabe, quem se mete
com mulher fica com um pé cá fora e outro lá dentro.
O Alexandre, em vendo mulher, até esquece o nome. Aqui assim ao lado
ficava um rapazinho que tinha um diabo de mulata que até fazia tonteiras,
palavra de honra; a gente punha-lhe os olhos em cima e aquilo era uma vez.
Vossoria quer ostras? Estão frescas.

— Sim, queremos.

— P’ros três? Isto é um maná p’ro peito. Olhe,
aqui vem todas as manhã um moço doutor que esteve disinganado,
porque a tísica lhe comeu um pulmão, lá nele. Não
tomou drogas, não Senhor, veio às ostrinhas e está que
é um texugo: até parece que tem agora quatro pulmões.
Se algum dos senhores tem moléstia do peito, não queira saber
d’óleos de fígado, nem d’oitras mixórdias, atice-lhes…
uma ou duas dúzias d’ostras pela manhã e um calixto do bom,
e diga-me depois se o Timóteo tem ou não olho p’rá coisa.

— Chama-se Timóteo?

— De Azevedo e Almeida, p’rá servir a vossoria.

— Mas vamos ao caso do grego.

— Ah! Sim, ao caso do Alexandre… Mulheres, mulheres.

— O diabo são — disse sentenciosamente Anselmo.

— O caso foi o conseguinte. Os dois, o grego mal o mulato, fizeram-se
de boa amizade, sempre juntos, mas não era pelos olhos do mulato que
o grego andava perdido, que ele até, Deus não me castigue, tinha
uma cara de desmamar crianças, o grego andava de olho mas era na cachopa,
que era destorcida. E vai daqui e vai dali um dia zás! O grego meteu-se
em casa e começaram os presentes e o homem ficou embeiçado duma
vez, que até o serviço esquecia e, quando vinha à banca,
em vez de tratar da vida, punha-se a arrancar suspiros e até tratava
mal a freguesia. Estava virado duma vez. O mulato não dava pela coisa
e a marosca já ia adiantada. Uma manhã, foi o diabo que se meteu
no meio, o mulato estava aqui muito bem, a fazer o seu mercado quando, de
repente, atirando a faca p’rá cima da banca, chamou um companheiro,
entregou-lhe o negócio e coriscou por aí fora que nem um cão
danado lhe tivesse ferrado os gravetos. Ainda me lembro que o Zé da
Terceira perguntou se ele fugia do arrecrutamento. Eu sabia do caso, mas nunca
pensei que o diabo do grego houvesse arranjado as coisas tão depressa.
Eram onze horas, mais ou menos, quando a notícia bateu no mercado —
que o grego havia esvaziado o bucho do mulato com uma língua de ferro.

— Por causa da rapariga? — perguntou Montezuma.

— Por minha causa não foi, isso garanto a vossoria. O mulato
encontrou o grego no quente e, como dói à gente gastar o seu
dinheiro com uma traidora, o rapazinho, queimado, desmunhecou com a navalha
em cima do grego, que não ficou partido de meio a meio porque o diabo
tem santo. Saltou da cama e, ligeiro que nem um raio, espetou o mulatinho,
que ficou com tudo exposto e acabou sem ter tempo de tomar o Cristo. O grego
veio logo p’rá praia, meteu-se num bote e mandou cortar para a ilha
do Governador. Mas os manos foram dar com ele e lá o têm na casa-grande
até que o Senhor seja servido.

— O mulato morreu?

— Se morreu!? Pois vossoria queria que um homem naquelas condições
vivesse? Morreu e bonito.

— E a mulata?

— A gente sabe lá dessas criaturas? Anda por aí, hoje
com um, aminhá com oitro. Já me andou por aqui a fazer fosquinhas,
mas eu não quero endrominas com mulher que já puxou sangue.
Que se arranje por lá com quem quiser. Comigo é que não,
não tenho estômbago para essas coisas. Não há nada
como a gente viver com o que é seu, deixem lá.

— É casado?

— Casado? Eu! Não, senhor. Vivo como casado, mas sou independente.
Quando não me servir, boa noite! Passe muito bem e venha outra. Senhor
doutor, vou para os quarenta e tenho visto muita coisa. Dois homens não
brigam senão por mulher. Se vossoria vir um desgraçado com um
palmo de ferro no corpo pode jurar que foi por questão de mulher ou
de jogo, que é outra coisa danada. Eu também já estive
para me perder, cheguei mesmo a meter na cava do colete o ferro, mas Nossa
Senhora alumiou-me e, em vez de fazer uma asneira fiz uma coisa de homem de
juízo — fui p’rá casa, agarrei a mulher pelo gasnete,
dei-lhe um pontapé e mandei-a com Deus. Foi logo p’r’uma rótula
e ainda me escreveu cartas, pedindo perdão e jurando que se havia de
portar como uma santa; mas eu.. moita. Não, que quem escapa duma queda
não deve ir espiar o lugar donde esteve p’rá cair. Que se arranje!
Vai mais uma dúzia? Estão frescas e são de rocha. Eu
cá não vendo ostras de navio; não, que tenho consciência.
Já um pobre senhor, por sinal que era médico, escapou da morte
por ter comido umas endiabradas, que vieram do casco dum pontão. Eu
cá posso garantir a minha fazenda.

— Estão boas.

— Ah! E saborosas. Afiou a faca na borda da tábua, e, com um
sorriso, para continuar a palestra, disse: Antonces agora não há
mais escravos?

— Felizmente! — disse Anselmo sorvendo uma ostra.

— Felizmente, diz vossoria muito bem. Eu é porque sou pobre,
e não ia oferecer um rico presente ao senhor Patrocínio. Grande
homem! Aquele é como o Pombal que acabou com os jesuítas. De
homem assim é que nós precisamos. Era uma vergonha, isso era!
Um país rico como este não precisa de escravos. Eu digo a vossoria:
se fosse coisa da gente fazer com armas, eu mesmo, estrangeiro como sou, saía
p’ra rua e havia de fazer o meu filé. Porque, verdade, verdade, eu,
com ódio, sou homem p’ra mandar um freguês desta p’ra melhor,
num tempo; mas, a sangue frio, juro por Deus! Sou incapaz de bater num cão,
num cão! Que até me perco muitas vezes pelo coração,
e quando lia a relação dos castigos que sofriam os pobres negros,
os fígados subiam-me à goela, palavra de honra. O senhor Patrocínio
ganhou o céu.

— Conhece-o?

— A quem? Ao Zé do Pato? Ora! Meu freguês. De vez em quando
aqui vem. Não come muito, é de pouco comer, meia dúzia
d’ostras e já diz que tem p’ra o dia todo.

Tomou um ar grave e, limpando as mãos a um pano sórdido, disse
como se jurasse:

— Agora ele pode vir aqui cando quiser; não lhe cobro vintém,
sim, porque é até vergonha cobrar dum homem como aquele.

— Apoiado! — afirmou o Neiva.

E Montezuma, receoso de que o homenzinho levado pelo entusiasmo, quisesse
improvisar um discurso, pagou e despediu-se:

— Às ordens de vossoria, Timóteo de Almeida.

— Sim, até outra vez.

Durante oito longos e agitados dias o povo festejou, com entusiasmo, a promulgação
da lei igualitária. Anselmo, que conseguira o dom da ubiqüidade
para poder gozar de todas as festas suntuosas e alegres que foram celebradas,
como se já se houvesse habituado àquela vida de atropelo, acordando
com o silvo agudo da máquina de uma fábrica, estirou os braços
e bocejou com preguiça, deixando-se ficar na cama, a olhar o papel
do quarto, manchado de umidade.

— E agora, seu Anselmo? A campanha está vencida… Quererá
ainda o Patrocínio continuar com a Cidade do Rio? Com que programa?
Enfim…

Levantou-se molemente, foi ao banheiro e, refrescado, vestiu-se e saiu.

A vida retomara o seu curso normal: pulsavam as grandes máquinas das
oficinas, caminhões rodavam carregados, turmas de crianças,
com os sacos a tiracolo, seguiam a caminho dos colégios. Reviviam os
pregões dos vendedores ambulantes. Nas esquinas o calçamento
estava deslocado, havia pirâmides de paralelepípedos e covas
fundas; pilhas de sarrafos e panos sarapintados atravancavam as calçadas
— eram os restos dos coretos que os operários desfaziam com pressa
como bárbaros que destruíssem uma cidade. Escudos e lanças
eram levados em carroças e calceteiros andavam a reparar as ruas esboroadas.
Aqui, ali, às janelas, ainda esvoaçavam flâmulas esquecidas
e bandeiras, muito espichadas e encolhidas, pendiam moles, como fatigadas.
A cidade tinha um ar morno de cansaço. A rua do Ouvidor, acamada de
areia, era como uma estrada fofa onde o rumor dos passos morria e toda a vida
parecia decorrer, morosa e derreada, de um bocejo cavo e lento, de tédio.

Entrando na Cidade do Rio Anselmo perguntou por Patrocínio. “Já
ali estivera, muito cedo, com um corretor”, disse o gerente. Subiu. As
salas estavam ainda desarranjadas. Grandes ramos de flores murchas jaziam
pelos cantos, em abandono triste; bandeiras enchiam uma grande lata; do teto
pendiam sanefas esvoaçantes e corimbos e sobre a mesa central, entre
jornais, havia uma corbeille atufada de rosas dentre as quais passarinhos,
de asas abertas, pareciam querer fugir para o espaço luminoso.

Anselmo procurou umas tiras e, afastando velhos ramalhetes, que entulhavam
a sua mesa, pôs-se a escrever maquinalmente. Embaixo, na oficina, os
compositores chalravam. Justamente terminava a crônica e começava
a rubricar o noticiário quando Patrocínio apareceu esbaforido
com o chapéu derreado à nuca. Atirou-lhe uma palmada ao ombro
e sentou-se à secretária procurando alguma coisa nas gavetas.

— Então, José… Que vamos fazer agora?

— Hem? Escrevia, muito inclinado, de costas para o secretário.

— Qual é o teu programa?

— Que programa? Ergueu-se e, sorrindo, estendeu a mão: Dá
cá um cigarro. Perguntas qual é o meu programa?

— Sim. Conquistaste o teu ideal e agora…?

— Agora?… E, rindo, inclinou-se ao ombro do companheiro, dizendo-lhe
ao ouvido: Agora vou ali ao banco com esta letra arranjar dinheiro. Os rapazes
estão lá embaixo trabalhando e… Já almoçaste?

— Ainda não.

— Então espera-me no Globo, ao meio dia. Ia saindo, mas voltou-se:
Olha, manda limpar a redação que está imunda, ouviste?

E desceu as escadas precipitadamente.

Mano

Tendo perdido os primeiros filhos, que foram tantos quantos os que sobreviveram,
“como se a Vida apostasse com a Morte em lhe não ceder uma só
vitória, tirando de cada túmulo uma ressurreição”,
Coelho Netto desistiu do aperreado sistema, tão mal sucedido, de encerrar
e atabafar em lãs os pequeninos, decidindo-se pelo da liberdade e dos
exercícios físicos. E os outros sete medraram. Emmanuel, o Mano,
era o mais velho. Robusto, culto, modesto e bom, ele simbolizava o tipo de
atleta perfeito que Coelho Netto, sempre eqüidistante das competições
partidárias, idealizou na sua campanha pelo aprimoramento da juventude
brasileira.

No Fluminense Football Club, Mano integrou o mais famoso conjunto de amadores
da história do football carioca, conquistando o tri-campeonato da cidade
em 1917-1918-1919. Sua morte, em conseqüência de séria contusão
que sofreu num jogo do Fluminense, ocorreu a 30 de Setembro de 1922, quando
contava 24 anos de idade.

Depois da maior desgraça da sua vida, Coelho Netto, como forçado
das letras, tendo de escrever sem cessar para manter a subsistência
da família, quando tomava lugar à mesa, para começar
o trabalho diário, só trazia um pensamento:

“Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me
os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu”.

E, procurando derivativo sua imensa desventura, fez da pena um rosário
e desfiou em lágrimas, dia a dia, o Livro da Saudade – “Mano”.

Paulo Coelho Netto

Setembro de 1956

CAPELAS

Ele era bom. Tinha a serenidade dos fortes. A juventude do seu corpo de
atleta guardava uma alma antiga, de orgulhosa origem, mas sempre alegre por
perdoar e esquecer. Nunca lhe saiu da boca uma queixa. Acostumara os lábios
ao ritmo do louvor.

Sabia admirar. Sabia amar.

Mano!

Quem o apelidou assim, de pequenino, adivinhou que, depois de grande, quando
olhasse, de olhos abertos, a vida, havia de ser o que foi: o irmão…
o Mano, mais moço ou mais velho, dos outros homens que o conheceram,
os amigos da sua intimidade e aqueles que, junto de Coelho Netto e da companheira
admirável desse nobre artista, aprenderam o culto da beleza e da bondade.

Álvaro Moreyra.

ÚLTIMA VITÓRIA

A Coelho Netto.

Era uma forte e meiga criatura,
Alma infantil em corpo de gigante;
E n’arena o julgáreis sempre ovante,
Da Grécia antiga olímpica figura.

Mas como cá na terra a desventura
Apunhala o valor a cada instante,
Chega-se a Morte ao moço triunfante
P’ra tocá-lo co’a ponta d’asa escura.

Preces da aflita mãe, que a dor crucia,
Prantos do pobre pai, que era um poeta,
Tudo o supremo transe lhe angustia.

Mas tinha o lutador crenças de asceta,
Rompe-se em luz o nimbo da agonia…
Sorri… Mais uma vez vencera o atleta.

Carlos de Laet

A MORTE DO SOL

A Coelho Netto

Rubro clarão no poente…
Desce abrasado o Sol… Por um momento,
Dir-se-ia
Que em sua marcha lenta se detém…
Contempla, a última vez, no firmamento
A estrada percorrida, desde o Oriente,
Numa larga passagem triunfal.

Vai mergulhar no Além,
Penetrar na Agonia,
Perder-se no seu próprio sangue – a Luz…
Sabe que vai morrer… Olha o declive
Que ao túmulo conduz;
Lança depois o último olhar
De saudade final
Sobre a terra distante, sobre o mar,
E rola no horizonte… – É a noite que se eleva…
É a Treva.
Parece que na terra nada vive,
Nada existe
Tudo se esvaiu: a forma, a cor,
Que são a alma das coisas no Universo…
Tudo agora é diverso
No cenário do mundo
Que vai viver sem luz e sem calor.
O sol partiu e o céu, pálido e triste,
Tornou-se mais profundo.

Para que serve a treva? Que razão
A faz surgir assim, tão bruscamente,
Após a fulgurante luz do dia?
Por que a noite, senão para melhor
Destacar o fulgor
Longínquo das estrelas?
Por que a noite, senão
Para aos homens dizer que todas elas
São outros tantos sóis, iguais ao Sol
Que vemos apagar-se no ocidente
Para se erguer de novo no arrebol?
Sóis que não morrem, que desaparecem
Somente ao nosso olhar e, quando descem
No horizonte, à mesma hora da descida,
Que é apenas ilusória,
Estão surgindo em plena glória
E em plena vida
Para outras regiões do espaço infindo…
Porque tudo que é lindo,
Perfeito e forte
Não pode aniquilar-se pela morte.

A existência nos mostra cada dia
Que o fluido da Beleza ou da Energia
Jamais se exala
Para perder-se; apenas se transforma,
Se aperfeiçoa e sobe numa escala
Em que se purifica a essência ou a forma
Das coisas… Vida é apenas harmonia.
Só na aparência alguma coisa ofusca
Esta ascensão contínua. Nada existe
Que, em verdade, a perturbe e a morte não seria
A única exceção
Para a parada brusca
Na evolução fatal da Natureza.
O espírito da Força e da Beleza
Não se dilui: persiste,
Segue em demanda de outra perfeição,
E, se escapa a visão dos nossos olhos,
Deixa d’alma nos íntimos refolhos
Tênues fios de viva claridade
Que, pelo pensamento, e elas nos unem
Por todo o sempre e que, talvez, um dia
Nos servirão de guia
No mistério que envolve a Eternidade,
E onde, vestindo novas existências
As parcelas das coisas, nas essências
De um mesmo todo extinto, se reúnem…

– Por isto quando o Sol desaparece
E o clarão do seu rastro empalidece
E se extingue na sombra, esse repouso
De morte transitória
É o início apenas de uma nova glória!

Octávio Ribeiro da Cunha

AGONIA

A GABY

Se o amor nos aproximou mais fez ele unindo-nos inseparavelmente. Vendo-o,
era como se nos víssemos, aos dois, em um só reflexo – tu e
eu, e, com tal visão, vivíamos felizes contemplando-a debruçados
sobre a correnteza da vida.

Hoje!…

Em vez do espelho límpido, no qual nos mirávamos sorrindo,
vejo apenas a água triste das lágrimas que transbordam dos teus
e dos meus olhos, água fúnera, turvada pela saudade, limo que
assenta no fundo do coração.

Pior que o Letes do esquecimento é, sem dúvida, a memória,
fonte onde nasce o rio da saudade, corrente lúrida, toldada de lembranças.
E é nesse rio que nos debatemos, tu e eu, descendo juntos para o oceano
ilimitado, com esperança de ainda o encontrarmos, como se fosse possível
achar no fundo da água morta a sombra que flutuou na sua superfície.

DOR

A alegria dispersa; a dor concentra.

É na dor que, em verdade, sentimos que um filho é carne da
nossa carne.

Ao vê-lo sofrer vibramos doloridamente e, se ele geme, o seu gemido
ressoa-nos no coração.

Os ais que lhe escapam do martírio são frechas que nos lancinam
e, se baixam do clamor à queixa humilde, doem-nos ainda mais, como
a punção de uma lanceta aguda que se nos crava paulatinamente.

Se o enfermo sara esquecem-se tais vozes, se elas, porém, se calam
suspensas pela morte, então represam-se-nos no íntimo, e nunca
mais o coração as esquece e os gemidos nele perduram como fica
eterno nas conchas o marulho soturno do mar.

INSONE

A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha
aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos
cuidados, o movimento nela era contínuo. Falava-se aos cochichos, e,
volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação
angustiosa:

“Se eu dormisse uma hora!”

O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam – tantas noites
despertos! – só não lhe chegava, a ele.

Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em
desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.

De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.

Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam
a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e
ouro, mais se animavam os corações.

“Se eu dormisse uma hora…!” arquejava, cansado, o pobrezinho.

O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.

Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado
e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia
nas palavras tristes:

“Se eu dormisse uma hora…!”

E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em
claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde
décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos,
encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele
começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim,
não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!

SEDE

Na escala dos ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi
o da sede o mais acerbo e o único de que ele deu queixa.

Não se lhe ouviu palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram
no Pretório. Nas três vezes que caiu no caminho do Calvário
não soltou um gemido: calado suportou a cravação na cruz
e calado nela esteve até a hora terça da tarde.

Secaram-se-lhe, porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente
bradando aos seus algozes:

– Tenho sede!

De tais palavras à rendição do espírito divino
mediou apenas o instante breve em que soou o “Consummatum est!”

Mais longa que a de Jesus foi a agonia de meu filho.

Durante dias, a todo o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo,
cada qual mais solícito,

Que intenso ardor o abrasaria para que se não saciasse, já
reclamando água mal lhe retiravam o copo dos lábios ávidos?

Febre? nem tanto acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia
nas entranhas para que, apenas sorvia, sôfrego, a água que lhe
davam, no mesmo instante fosse ela absorvida, como se caísse em forno
caldo?

Não, não era febre, se não a própria vida em
luta, que reclamava o que se lhe esvaía a golfos.

Quando o retiramos do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável
sede: o colchão, o estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.

E, pois, como havia ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia
a goles árdegos, saía-lhe tinta de sangue, dessorando as artérias
exauridas?

E, como um vaso partido, de que se extravasa a água que alimenta flor
querida, assim pela artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele
corpo, e a vida, flor que era o nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu
à míngua do que a mantinha.

VOLTA AO NINHO

Pediu-me que o mudasse de leito, e quis o nosso.

Podia alguém imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao
ponto onde principiara a sua genitura para encerrar o círculo fatal?

Quem o diria presa da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de
saúde, mascarando com o sorriso o ricto do sofrimento?

Alarmando-me o grande aparato de socorros de que se cercava o médico
e a solicitude ativa do enfermeiro, interroguei-os aflito.

Sorriram-me tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus
cuidados impertinentes.

“Era lá possível, diziam, que tão exuberante mocidade
perecesse, frágil como uma ruína? Só um desastre.”

Todavia eu procurava ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado,
tornei-me espião dentro da minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos,
escutando às portas, caminhando mansinho no silêncio das noites
desveladas para surgir, a súbitas, entre os que se lhe revezavam à
cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam, ouvi-lo, a ele,
inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir alívio ainda
que à custa de martírios.

Mísero corpo! Quanto sofreste pungido, de instante a instante, para
inoculações de vida efêmera.

Por que não haviam de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram,
se a sabiam? Ao menos eu não o teria deixado um só instante
e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo, do tempo que lhe
restava, tanto o havia de prender a mim que… sabe-se lá o que é
a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! – talvez
não fosse tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.

Mas confiava em todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão
em que me mantinha a esperança, onde o vira nascer, no leito que ele
pedira, o nosso, vi-o, pouco a pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir
nos braços daquela mesma que, em pequeno, o acalentava e que, então,
o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a dor a houvesse
petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras
e correntias.

Leito de nascimento, ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim
da mesma felicidade, tu no-lo deste, tu no-lo levaste.

Agora, quando me deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo
na minha lembrança, em saudade, sombra que me ficou no coração,
rastro de uma ventura que passou, sonho com que me consolo dentro da noite
triste e eterna, no qual o vejo desde pequenino, quando ali nasceu para tão
curta vida, até o doloroso instante em que se foi para o sempre.

O VIÁTICO

Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães,

que o confessou e ungiu

Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo
e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras
desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro
às penhas.

Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me,
então, na Fé o último clarão de esperança
e minh’alma elevou-se, em surto, a Deus.

Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática
diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui,
petrificada em friul.

Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos
para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente
os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.

Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto
ante o adejo de um beija-flor.

Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.

O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso
foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada
do padre fiquei surpreso como de milagre.

Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.

Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa
encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não
pareciam respirar.

Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na
inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge
da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu
azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam
o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco,
doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão
sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando
a preguiça da manhã.

Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.

Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio
valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações.
E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes,
ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera,
lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:

“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando.
E eu, aqui! Enfim… ainda pode ser…”

O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se
a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.

Que fazer? Que dizer?!

Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me,
a sorrir, surpreendido com a minha atitude:

– Que tens? Porque me olhas assim?

Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão
longe. tão longe que chegava à morte?

Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!

De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante,
pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso,
como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”

É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando,
no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema
da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem
declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto
da Eternidade.

Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se
cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.

Tentei justificar o meu procedimento:

“Que a religião e a medicina que não falha, porque os
seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.

As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me
a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.

– Você quer?

Solucei, acenando afirmativamente.

– E mamãe?

Respondi com o olhar.

– Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.

Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.

Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera
com um gesto de brandura.

Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara
a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os
seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se.
Saí. O sacerdote entrou.

Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu
coração tão longo que ainda nele persiste e durará
enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade;
durará como espinho na flor da minha ternura.

Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.

Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria
como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração
tão virtuoso.

Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento
grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal,
levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte;
bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com
a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido
da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava, animando
aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer.

E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro,
em dúvida que me excrucia:

“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível
que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não
houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé,
deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco,
amado e amando-nos”.

Mas… E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que
salva?!

Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho,
fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante
para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.

A MORTE

Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário
de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo
olhar de espanto.

Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a
superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas,
contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse
um peso esmagador.

Silêncio trágico continha a todos, suspensos.

Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe
obstinadamente o pulso?

Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que
ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.

De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:

– Que horas são?

Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio,
como pancada em lâmina metálica: “Sete!”

Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.

Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios,
talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia,
silente, sem astros, sepultura da luz.

O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me
na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para o oratório
buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto
sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.

E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me
aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.

Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente
fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.

Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que
se imobilizava.

Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático,
não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios
e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo
se apagar.

Alguém chamou por ele, em pranto.

Ai! de nós…

Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e
ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a
suprema palavra de um adeus.

É um caixão que se fecha. Nada mais.

CONSUMMATUM…

Onde estaria eu quando o desceram para a minha sala de trabalho?

Onde estaria eu que não dei pelo trânsito cruciante?

Quando entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no
meu coração que estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!?
Olhei em volta… Mas toda aquela desordem – velas ainda acesas, o silêncio,
o lúgubre vazio…

Se o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos
presente; o morto, não!

A morte arrasta tudo consigo e ali nada mais havia, mais nada senão
um sulco revolto como o que fica nas águas à passagem de um
barco – fundo, mas de breve duração; agitado, mas só
em efêmeras espumas.

Onde estaria eu quando o desceram?

E foi diante daquele vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É
pelo diâmetro e profundidade da cova que se pode avaliar a extensão
das raízes da árvore derrubada.

Onde estaria eu quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo.
Foi melhor assim.

Não há hora mais triste que a do ocaso, hora do descer da luz.
A noite é o irremediável, com a consolação das
estrelas, que são lágrimas.

Fizeram bem em poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio.
Foi como se me adormecessem para uma operação dolorosa.

Quando dei acordo de mim tudo estava consumado.

A CHAVE

Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá
o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo
e rever o seu tesouro intacto.

Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às
vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas
entranhas de um peixe?

Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias
e covas submarinas, a jóia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a
ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.

Todos os abismos têm limite – de um só, o túmulo, ninguém
mediu ainda a profundidade. Quantos lá têm amores, desfeitos
em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos
meios, todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem,
mais aumentam o desespero.

O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.

Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam
na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão,
apagada no mergulho em que se precipitaram!

A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá
serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto,
guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias. Para que? De que
me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração
dando livre curso às lágrimas saudosas?

Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me
de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável
da Eternidade.

Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo
da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de
um cego – porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.

Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita
descer aos penetrais do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?

De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se
tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?

Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei
com mão tremente e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida
toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo
bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo
Céu e pela terra?

Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração
meigo e alma inteligente – força, movimento e afeto: lume no olhar,
idéia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação
e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores
no inverno.

Árvore!…

A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao
calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições
continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não
levanta.

De que me serve possuir a chave!… Antes eu a tivesse lançado ao
mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não
cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não
revelará jamais.

A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação
e martírio.

E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias; lembrando-me o
que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram,
toda a minha ventura.

SAUDADE

PRIMAVERA

Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores,
tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras
e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras
as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas
mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das
ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com
a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar
a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que
a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce
e vai desabrochando?

Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de
inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a
si, não lhe aquieta a ganância.

O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo
no lar, agora mísero.

Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades;
era a esperança de dois simples; era a religião de dois crentes;
um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora,
de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem
levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um
túmulo.

Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão
copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza
de um lar.

Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois
corações.

Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada
doméstica

Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.

Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo,
sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados
e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde,
anunciava-as eu em louvores jucundos.

Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e
os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito,
os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando
e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com
que, sem pena, os alanceaste.

E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo
as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados
do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua
claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos
córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á
retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e
o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito
em nossas almas.

Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no
lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à
duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe
enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não
conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria
nos corações que enlutaste.

Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó
Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.

Primavera, que mal te fizemos nós?

Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.

Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?

Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de
melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.

Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas,
virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o
no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.

Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!

Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa
álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes
pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação
de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como
a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que
era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?

E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o
contigo escondendo-o na cova para sempre!

O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E
tu, Primavera, que fizeste do que levaste?

Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era,
cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de
risos da Natureza?

Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida
e não temíamos a morte. E fomos traídos pela Vida, porque
foste tu que no-lo roubaste, Primavera.

Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os
por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos,
estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda
a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu,
inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação
da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram
em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda,
flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela
casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho
do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de
nossa velhice?

Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura
nossa?

CONTRASTE

Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se
para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.

Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas,
que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.

O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico.
Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía
ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada
de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente
junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.

Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas,
às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis
e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.

Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um
altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior
desastre da minha vida.

Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações
amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.

Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos,
fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali.
Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.

Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem
tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.

Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do
jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se
para encomendá-lo a Deus.

Era o sinal da partida.

Uma voz sussurrou-me:

“Que iam fechar o caixão”.

Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que
me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado

Que fazer?

Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida,
bênção derradeira.

Retiraram-lhe o crucifixo do peito.

Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim
já lhe não era necessário o símbolo da Fé,
porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito
suave já devia achar-se na presença de Deus.

Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar – algumas flores que lhe haviam
murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração.

Um a um alguém foi apagando os círios.

Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna
manhã rompera. Para que luzes noturnas?

Fecharam o caixão florido. Que mais?!

Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via
lágrimas em todos os olhos. Tudo estava acabado. Dali ao túmulo,
nada mais.

Levaram-no.

E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se – vazia da gente, vazia das flores,
vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.

E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira
e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável
à do azul infinito.

E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si
o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo
todo, só dela.

E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se
no horizonte a vela da última esperança.

E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu
estéril na vastidão do oceano.

Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte
o levava, a ele.

E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como
se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.

A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como
os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.

Águas que não cessam são as que jorram das fontes e
dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras
e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam
das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem
como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?

No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.

Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a
essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural.
Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E
na casa era tudo. Os corações, esses…

Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.

Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a
um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões
negros, também apagados, sem lágrimas.

Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse
em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça,
não achasse palavra para bradar a sua inocência.

Pobre mãe!

Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo
golpe e as nossas dores comunicaram-se.

Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba
árvores e barrancas e tais destroços represam-no até
que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam,
levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.

Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso
de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações
vitoriosas.

Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais
àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele,
dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo
em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.

E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes
da multidão em delírio?

Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo
dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas
vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam
intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.

E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e
os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não
se lembravam do enterro que dali saíra.

E, para o seu espírito, foi melhor assim.

Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado,
ressoando músicas e clamores. Quanta vez…

A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!

E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se
a pouco e pouco, galeando-se do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto
por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo
festivamente.

Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos:
na mesma desolação, na mesma saudade.

E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele
foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!

FLORES

Não há ainda um mês que adormeceu em Deus o ser do meu
ser, a minha criatura de amor e o leito em que ficou, no dormitório
silencioso, já se recama de flores.

As que o acompanharam, em ramos e em capelas, fanaram-se depressa; outras
substituíram-nas e também feneceram; em compensação
as sementes esparzidas pelo jardineiro funeral, que cuida dos pequeninos canteiros
mortuários, mal lhe caíram das mãos na terra fria logo
rebentaram em vida, formando uma colcha de verdura que veste e enfeita a melancolia
do jazigo.

E tal colcha matizou-se de violetas e margaridas, dálias, cravinas
e miosótis.

Quem terá realizado esse milagre de florescência tão
rápida? as nossas lágrimas? não! Tu, só tu, Primavera.

Será o remorso de no-lo haveres arrebatado que assim te faz solicita
ou pensas, por acaso, que, escondendo em teu manto o túmulo querido
farás com que o esqueçamos com a indiferença da terra
que sorri em flores sobre a mocidade morta?

Como te enganas, traidora!

Mais prestígio tem a saudade em nossos corações do que
tu na terra, cuja vida revigoras, porque, se fazes nascer flores, ela ressuscita
o que mataste, evoca-o a todo o instante, trá-lo da sombra eterna e
integração na vida e só não o refaz, tal como
o tínhamos, porque o corpo lá está no abismo ao qual
se desce por uma escada, cujos degraus aluem sobre o incluso como as águas
se fecham sobre o náufrago.

A casa está cheia dele: sentimo-lo em toda ela, presente, e, fora,
em toda a parte.

Ouvimo-lo. São os seus passos, é a sua voz que impregna o ambiente
e sentimo-lo quando o relógio bate, devagar, as horas: as horas em
que ele acordava e vinha dar-nos os bons dias; as horas em que ele saía;
as horas, lentas e longas, da sua ausência; as horas alegres que o traziam
do trabalho e as em que, à noite, ele regressava à casa, cauteloso,
indo sempre até o nosso leito dar-nos, na vigília preocupada
em que o esperávamos, a felicidade tranqüilizadora da sua presença.
Todas essas horas continuam e ele continua a viver em todas elas.

O que nos aflige é a angústia de o não podermos sentir
como o sentíamos outrora.

Vemo-lo como imagem refletida em espelho, vemo-lo, mas se tentamos tocá-lo,
ai! de nos.

Suplício igual ao de Tântalo é o que nos inflige a saudade.

Vê-lo, ouvi-lo no coração, senti-lo em toda a parte,
tê-lo sempre presente em nós e tão distante como a mais
remota das estrelas e todas as esperanças…

Temo-lo conosco, na família, que o não esquece.

O seu lugar vazio espera-o sempre.

Quando nos aparece, projetado pelo coração, fala, mas mussitantemente
apenas, sem palavras sonoras: batem-lhe os lábios como asas de pássaro
cativo. Caminha, e os passos não lhe soam. Estende-nos os braços
e nunca o alcançamos, porque, entre nós, interpõe-se
uma lâmina, como a de cristal de espelho, que se chama: infinito.

Temo-lo tão perto e tão longe, conosco e para sempre apartado,
vivo na imagem, só na imagem que é o reflexo da saudade.

Seria, talvez, melhor que os mortos partissem de vez, sem deixar rastro,
levando consigo para o túmulo todo o ser. Mas não! partem como
o sol tramonta: deixando a terra em escuridão, mas cheia de calor.
E esse calor na terra é vida; no coração é saudade.

Assim é na saudade dos vivos que os mortos se eternizam, nela é
que eles continuam a viver: é o paraíso de tristeza, como o
esquecimento é o inferno dos que não souberam fazer-se amar.

E em quantos paraísos de amor vive o espírito querido! Em quantos
corações soa o seu nome em apelo lamentoso!

As próprias coisas parecem sentir-lhe a ausência.

Que vazio à mesa e que silêncio! É que ele já
se não assenta entre os irmãos, ainda que o seu lugar seja mantido
como se ele apenas se haja demorado e possa aparecer de um momento para outro.

Mas ninguém lhe serve o prato, o seu talher não se descruza,
não se lhe desdobra o guardanapo, o copo mantem-se-lhe vazio, o seu
nome é pronunciado a medo, para não despertar nos corações
a dor; e a luz, que incide sobre a cadeira que ele ocupava, já não
tira a sombra que lhe traçava o perfil na parede.

Essa sombra ficou e, para sempre, em nossos corações.

E tudo que resta daquele corpo airoso, que era a coluna robusta do meu lar,
lá está no cemitério em flores.

Flores, eis o que de meu filho fez a Primavera.

Todo o riso, todo o viçor de uma sadia e honesta juventude, toda a
bondade de um coração magnânimo, toda a energia de um
caráter espartano, toda a nossa esperança, todo ele enfim, reduziu-se
ao que exorna a terra estreita de um túmulo: flores.

Os que passarem por elas, vendo-as lindas, como se ostentam e ignorando-lhes
a origem dolorosa, louvarão, decerto, a Primavera que as tirou da morte,
mas os que sabem o que elas representam e o que encobrem na terra em que nasceram,
esses…

A CASA

Mudar-nos… Por que? se a casa toda está impregnada da sua presença,
do seu ser, como o vaso que conteve essência longamente lhe conserva
o aroma?

Por que mudar-nos deixando o lar onde, por vezes em eco, os seus passos ressoam,
a sua voz timbra serena, e até a sua sombra desliza pelas paredes,
como inveterado hábito que se repete inconscientemente?

Quantas vezes, do meu leito, ouço ranger a escada e sinto-o que sobe
vagarosamente, ensurdecendo os passos para não despertar os que dormem!

Dar-se-á que os degraus conservem a impressão do seu andar
e trepidem, como os móveis estalam, à noite, retraindo ou dilatando
as fibras ao contato do ar?

As tábuas não soam por si e, se estalidam, é que algum
piso as recalca.

Paredes de pedra e cal, assoalhos de madeira morta, é possível
que dele vos lembreis às horas justas em que ele entrava, pé
ante pé, subtil, sem que o sono, que dominava a casa, fosse perturbado?

Se o lar assim se recorda como havemos nós de abandonar esse cantinho
cheio de reminiscências, (memória inerte em que ele persiste),
porque nele viveu toda a sua alegre infância, nele passou toda a sua
adolescência e nele começava a gozar a mocidade?

Se o túmulo, que lhe contém o corpo, não o relega, a
casa, que lhe guardou o espírito, não o havia de repudiar, decerto.

Em todos os cantos brincou, saltou, espalhou risos. O raio de sol que, todas
as manhãs, entra pela janela junto à qual ficava a sua cama,
mal o dia aponta, lá vem insinuando-se no mesmo filão de ouro
com que, desde pequenino, lhe enfeitava o sono.

A lâmpada, que o alumiava, acende-se todas as noites; e tudo continua
como dantes.

Ao passar junto do meu quarto sinto-o, lá dentro, andar, mover-se.
Faro, à escuta. Tudo cessa.

Para que insistir? Para que hei de, com a curiosidade ansiosa do meu desespero,
violar o segredo que já não é da vida?

Se ele ali está e não me aparece, ele! Tão meu amigo,
é porque não deseja ser visto.

Deixemo-lo com o seu misterioso pudor. É o filho em visita ao lar
paterno.

Bem-vindo seja e que Deus o abençoe.

E se, ouvindo aos que nos aconselhavam, nos houvéssemos mudado…?!
Pobre espírito!

Quem sabe o que sofreria recorrendo a casa e achando-a habitada por outros,
transformada em tudo – na disposição dos móveis, no arranjo
dos aposentos, com outros hábitos, outras vozes.

E a própria casa não sentiria com ele? Talvez!

Se vamos piedosamente visitar-lhe o túmulo no cemitério, porque
havíamos de fugir ao ambiente onde o seu espírito demora? Lá,
debaixo da terra, é a morte; aqui, em todos os ângulos, é
a vida: o que ficou, o que existe, o que não parece: ele.

Mudar-nos… Isso seria abandoná-lo, desertar o ninho da saudade,
o canto em que ele viveu. O mesmo seria arrancarmo-lo do coração
desprezando-o no esquecimento. Se a casa o retém, nós é
que o havíamos de repelir? Não!

Onde uma vida se exala fica sempre vestígio. Os tímidos receiam-no;
os fortes, os que verdadeiramente amam, com as veras da alma, instam por encontrá-lo,
como quem rastreia, em caminho, pegadas de alguém que procura.

Mudar-nos… Não! Fiquemos onde ele perdura.

Longe, entre outras paredes, que nunca lhe copiaram o corpo em sombra; com
outras portas, que nunca se lhe abriram; com outros aposentos nunca, em vida,
visitados por ele, como o poderíamos sentir?

Aqui, não. Aqui ele está conosco: é a sua casa. Que
nela viva.

A LUZ

Acordo. Ainda é noite. O céu esfuma-se na sombra e o perfil
umbroso da montanha, fronteira à minha janela, destaca-se no dilúculo.
Respira de leve a aragem.

Aclara aos poucos. Sente-se a luz em marcha. Já as árvores
aparecem e as casas realçam, brancas, na massa da verdura.

Chia uma cigarra; outras respondem vividas e um coro de chilreios enche o
silêncio pálido. É o despertar nos ramos.

Debruço-me à janela e, em êxtase, contemplo o maravilhoso
espetáculo do amanhecer.

O céu recama-se de cores: e uma palheta o oriente e as tintas, que
dele escorrem, broslam a paisagem, colorindo-a.

Chove polilha de ouro. Abre-se de todo o azul; responde a terra com o seu
verde.

O primeiro raio de sol recena um outeiro e logo as ervas rebrilham. A claridade
alastra.

Enche-se o ar de vôos ágeis. Estrídulo recresce o canto
matinal dos pássaros.

Um sino soa, límpido.

Passam trabalhadores ainda estremunhados; rodam veículos.

Ressoa soturnamente, longínqua, uma sereia de fábrica.

São os rumores da vida que recomeça.

A vida… Tudo ressurge! Entre as folhas rasteiras andam insetos minúsculos,
formigas desfilam em fieiras.

Tudo acorda e entra em atividade: os elementos da natureza, o homem, os animais,
os mínimos seres, as coisas, porque as folhas vibram, as flores exalam,
o mesmo pó levanta-se. É a vida!…

O relógio bate sonoramente: são os passos do tempo, as horas.

O próprio invisível agita-se, porque é ele, o vento,
que meneia, brando e brando, as folhas.

Entretanto, em todo esse deslumbramento ativo, há escuridão
e silêncio, falta alguma coisa que minha alma procura em vão.

Já o sol rebrilha, fúlguro. Abrem-se todas as janelas: são
as casas que acordam. Foi-se o sono dentro da noite.

E ele? Por que não acorda? Por que não vem do sono? Por que
não o despertará a luz; ela, que fez o milagre de vencer a noite
no céu, na terra e nos mares; ela, que desencantou a natureza toda;
ela, que fez desabrochar a manhã brilhante; ela, onipotente; ela, eterna;
ela divina, por que não despertará o que adormeceu?

E o sol ressurge; o sol, que é tudo. E um pouco de terra humana resiste
na morte ao reclamo miraculoso da madrugada.

De que me serve, a mim, todo o esplendor da tua claridade, ó Luz,
se, em vez de trazer-me alegria, mais me entristece o coração?

Fazes o dia, tiras o sol do oriente, és a Vida e não tens força
para arrancar de um túmulo um pouco de terra.

De que te serve o Poder? E, se o tens, porque só o manifestas no céu,
ressuscitando o dia, e deixas a terra cheia de saudades?

És como os pródigos que se dissipam em festins e negam um mendrugo
ao pobre que lhes estende a mão.

SEMPRE

No Dia de Finados

Dia dos mortos, teu dia… Não! O teu dia chama-se “Sempre”,
não é um só, de horas contadas, limitando estreitamente
o círculo das lembranças, que são os minutos da Saudade.

O dia de hoje é como os demais no tempo; o teu é infindo.

Dentro em pouco o crepúsculo baixará escuro e tudo desaparecerá
na sombra solitária e, mais do que sobre os túmulos, a treva
se adensará na memória efêmera dos que aguardam um dia
para recordar.

Dos círios que alumiaram mausoléus e carneiros nada, em breve,
restará senão lágrimas de cera e as flores murcharão
na terra como as lembranças nos corações volúveis.

Os círios que te alumiam são os nossos olho cujas lágrimas
não se condensam gélidas e são cada vez mais fluentes.
As flores que alfombram o teu túmulo são sempre frescas, porque,
além das que nascem de ti, das raízes do teu coração
de bondade, o nosso amor vela solícito para que te não falte,
todas as manhãs, a oferenda da nossa devoção.

Continuas a viver conosco, ainda que separado: nós, no sofrimento;
tu, no alívio; nós, onde o sol aclara; tu, onde a noite governa.
Há entre nós apenas uma lápide e é tanto, todavia,
como o espaço que separa o céu da terra.

Foi-se o teu vulto, mas a tua essência ficou; sentimo-la conosco, como
tornada a nós, de regresso ao amor de que saiu.

Teu nome é o estribilho da nossa melancolia: cai-nos, de vez em quando,
dos lábios como caem das árvores no outono as folhas mortas.

A Vida é a respiração da Natureza; um ir e vir continuo.
O bafejo que exalamos reentra-nos em fôlego purificado. Assim tu: foste
e tornaste ao nosso coração e nele assistes.

Vivo, saías, passavas horas longe de nós, mas estavas preso
à vida e vinhas por ela à casa com o teu passo senhoril e espalhavas
por ela o som da tua voz, a alegria do teu sorriso. Dividias-te com os amigos
que te disputavam.

Agora és todo nosso, não sais de nós, és nós
mesmos, como é mar a água que regressa ao oceano lançada
pela nuvem que a sorveu.

Teu dia! Como se pudéssemos destacar um dia entre tantos, só
respirar, só ver luz, ouvir vozes, viver, enfim, um só dia!

Sendo, como sempre foste, e és, o nosso amor, estás constantemente
conosco e continuamos a chamar-te filho, como se andasses entre os teus irmãos.

Se eu não te houvesse assistido na agonia, recolhendo, num beijo,
a lágrima derradeira que choraste, não acreditaria na tua morte,
tão rápida foi ela…

Onde se viu o céu anoitecer antes da tarde?

Se a natureza regula o tempo, não extinguindo a Luz senão quando
lhe chega o instante de apagar-se, por que havia a Morte de abater um jovem
no verdor da esperança, quando nele mais ardia a mocidade?

Custaste tanto a crescer! Primeiro entre nós, aninhado entre dois
corações, vigiado por olhos vígilos, aquecido a beijos;
depois no berço ajoujado ao nosso leito e quando menino, tiveste a
tua cama em quarto próprio. Quanta vez, alta noite, fomos, medrosamente,
pé ante pé, escutar o teu coração, sentir teu
hálito como se adivinhássemos a traição que havia
de arrebatar-te!

Na cama de menino sonhaste os teus primeiros sonhos, meditaste os teus primeiros
pensamentos e, começavas, talvez, a sentir a solidão do Paraíso
quando a Morte entrou em ti alanceando-te o corpo esbelto.

Pobre filho! O que a tortura fez de ti! Como tu te refugiaste na infância
imaginando, assim, com tal meiguice, esconder-te da pérfida!

Ressuscitaram na tua boca ressequida os diminutivos carinhosos com que nos
chamavas, à noite, quando temias a escuridão.

Ouvindo-te parecia-me que eras o pequenino que acalentávamos nos braços.
Saudoso tempo!

Vinte e quatro anos viveste dentro da nossa vida. Eras como uma torre que
construíramos pouco a pouco, dando-lhe eu, de mim, energia e coragem;
e ela brandura e fé, e, justamente quando contávamos contigo
para nosso amparo, quando nos fiávamos em ti para nossa defesa e sorríamos,
um ao outro, contentes em nossa velhice, por possuirmos a tua mocidade, veio
a Morte… e deixou-nos sós. Por que?

Se a alma é eterna como se explica que nos morresses, tu que eras
a nossa alma?

Como nos iludíamos com a Vida acreditando que a tivesses em nós
quando toda ela estava contigo!

Que é da nossa alegria? Não era nossa? Não a tínhamos
em sorrisos? Onde estão eles, tais sorrisos?

Ai! de nós! eram reflexos de ti e tanto é isto verdade que,
desde o teu desaparecimento, nunca mais se nos descolaram os lábios
nem em nossos olhos brilhou mais o lume da felicidade.

A nossa ventura eras tu e jazes num sepulcro.

Vinte e quatro anos de amor esvaídos num suspiro!

E vale a pena construir com tão carinhoso desvelo um ser, depositando
nele toda a nossa riqueza para que, a súbitas, a uma rajada do Destino,
tudo alua deixando-nos à mercê do tempo e míseros?

Como nos guiaremos doravante na escuridão silente?

Vives, mas vives como um sonho que se desvanece com a manhã. Sentimos-te,
mas se te procuramos não estás; és apenas lembrança,
rastro na alma, dor na saudade, espinho no coração.

A rosa de Jericó reabre-se se a mergulham na água. Se acontecesse
o mesmo com os mortos (tantas têm sido as nossas lágrimas!) já
terias ressurgido do túmulo como se emergisses à tona de um
oceano. Mas de que servem lágrimas?! Paraste na mocidade. Os teus irmãos
menores prosseguirão na vida e tu, que os precedias, quedarás
na hora em que caíste, vendo-os passar, transpor a idade em que foste
ferido, entrar pelos anos além, envelhecendo, e eles falarão
de ti, o irmão mais velho, morto com pouco mais de vinte e quatro anos.

E assim ficarás sempre jovem na saudade dos teus, que te perderam.

Os que buscam consolar-nos tentam convencer-nos de que Deus te chamou tão
cedo porque eras bom. E nós!? Por que nos havia Ele de ferir arrancando-te
dos nossos corações?

O teu dia, meu filho, há de durar, sem noite, enquanto vivermos para
a tua saudade.

O teu dia não terá horas, será toda a nossa existência.

O RETRATO

Como a lâmpada perene das capelas, símbolo da Fé pervígila,
o teu retrato, ante meus olhos, alumia-me a memória e, como fica o
sacrário entre luz e penumbra, assim jaz o meu coração
na saudade.

A imagem do teu corpo airoso, que se desfaz na terra podia desvanecer-se-me
na lembrança, posto que eu nela o sinta vivo como outrora. Todavia,
como tudo que é efêmero perece, para que o teu semblante e o
teu todo me não fujam, como foge a sombra com o corpo que a reflete,
tenho a lâmpada que nos aclara e, assim, com a alma que ficou comigo,
por ser minha, e o retrato que me acompanha, conservo-te tal qual foste.

Teu túmulo floresce, as flores, porém, ainda que delas cuide,
com esmero, o jardineiro, murcham em breve. O teu retrato, esse perdura; é
a flor imarcessível que ficou da tua mocidade.

Pena é que lhe falte o que na flor é perfume e em nós
é alma.

Olhamo-nos a fito. Eu vejo-te; e tu? A sombra não vê, não
ouve, não sente, é um enigma que nos segue porque, sendo filha
da luz, e escura; sendo a projeção de um corpo, é nada.

Vivo em contemplação diante do teu retrato e, de tanto fitá-lo,
já se me gravou nos olhos e, quer eu os tenha abertos, quer fechados,
vejo-te sempre.

Cego que ficasse ver-te-ia do mesmo modo, como vejo a luz. És como
um sentido novo em mim.

E como não há de ser assim, meu filho, se continuas a viver
comigo e, agora, mais do que nunca, és a razão de ser da minha
vida!

Pobre de mim! Como me iludo! Retratos. Que valem rastros de caminhantes numa
estrada sem fim!

Retratos… Miragens… Quando de vivos chamam-se lembranças, sendo
como o teu não passam de saudades.

LAMENTO

Antes chorasses tu! Águas primaveris seca-as depressa o sol.

A tua mocidade radiosa reagiria contra a tristeza e, ainda que, por vezes,
turvasse o teu coração a nuvem de saudade a sombra seria de
eclipse, e não de noite eterna.

A alegria, própria da juventude, é lume que se não apaga.

Abafem-no, embora! quanto maior for o acúmulo de folhagem e troncos
mais viva irromperá a chama vitoriosa.

Nos carvões que vasquejam uma gota de orvalho é quanto basta
para matar na cinza a brasa trêmula.

O sol na primavera é vida; no inverno é morte.

O que, em ti, faria nascer o esquecimento, em mim mais aviva a lembrança.

O sol, em campo verde, fá-lo rebentar em flores; nos píncaros
alpestres, fundindo a neve em torrentes, põe a descoberto abismos,
desnuda alcantis, escorcha escarpas, todas as agruras e arestas da montanha
merencória.

Quando se é moço o tempo é medicina para as chagas do
coração; na velhice…

Que valem ruínas! Só resistem se as sustêm enliços
de verdura, presilhas de hera que se emaranhe pelas frinchas; soltas, logo
se esboroam.

Antes chorasses tu!

Um coração de moço, ainda na maior tristeza, se a alegria
o ronda, ilumina-se e aquece-se.

Em meu coração, se a alegria passa-lhe por perto, a saudade,
que está sempre alerta, levanta-se como cão de guarda quando
pressente alguém se aproximar.

O que seriam risos em teus lábios correm-me em lágrimas dos
olhos.

Antes chorasses tu!

Mal conhecias a vida e, com ânsia de novidades, depressa esquecerias
o túmulo do morto.

Eu…

Que posso ver mais na vida se as lágrimas me empanam os olhos e o
mundo me aparece, através do pranto, como a paisagem, em dia de chuva,
nimbada pelas cordas de água.

Antes chorasses tu!

ESPERANÇA

Será crível que ainda resistas ou dar-se-á que haja
fantasmas de ilusões?

Serás tu mesmo que ficaste à flor do túmulo, flutuando
na morte, e que assim me apareces como sombra do que já não
existe?

Serás tu mesma, Esperança, que vens a mim do fundo da noite
perpétua?

Contam-se estrelas no céu, mortas há milênios, cuja luz,
entretanto, ainda nos deslumbra e guia.

Serás tu como tais astros?

Se és, em verdade, a Esperança, por que me martirizas, tu,
que sempre nos socorres como incentivo; tu, que nos manténs as forças
para que prossigamos e, na tarde da desdita, promete-nos a manhã da
felicidade?

Se és tu, benéfica, porque te fazes cruel acordando-me a alma
no coração com o timbre da sua voz, com o rumor dos seus passos
como se o trouxesses do além em visita à minha saudade?

A tais ruídos ilusórios, que se levantam no silêncio,
encolho-me em mim mesmo, atento, e ouço-te que me dizes em segredo:
“Ei-lo aí”.

Volto-me comovido, certo de que o vou encontrar, e só, então,
me convenço de que fui vítima do teu sortilégio, quem
quer que sejas, tu, que me trazes em tormentos de enganos.

Porque zombas de mim?

Não! Não podes ser tu, Esperança. Tu morreste com ele,
foste com ele enterrada, desapareceste para todo o sempre com a sua mocidade.

E como me rondas anunciando-me a sua presença, como se fosse possível
realizar o milagre dos milagres de arrancar do poder da morte a presa que
ela arrebatou?

Não! Não podes ser tu, deve ser o teu espectro que me obsidia,
porque tu, Esperança, ainda que sejas mentirosa, as tuas mentiras têm
sempre um fundo de verdade – são como as teias de aranha que, parecendo
soltas no ar, prendem-se por fios tênues a ramos ou folhas de árvores,
ou como as miragens que espelham visualidades no horizonte, mentiras que,
entretanto, são projeções do real.

Mas como podes tu reproduzir a morte, tirar vida da sepultura, ressuscitar
o que jaz na terra?

Não! Não és a Esperança, deves ser alguma advérsia.

Vou caminhando descuidado. De repente ouço-te a voz tão perto
como se saísse de mim próprio. Escuto e dizes-me que ele ainda
vive, que o vou encontrar adiante, em ponto que costumava freqüentar.

Aguardo-o, busco-o na multidão, procuro-o em certos grupos e avisto-o.
É ele! É o seu corpo senhoril, é o seu andar garboso.
Reconheço-lhe o trajo.

Adianto-me com o coração contente e os olhos rasos de água
e a ilusão, de súbito, desfaz-se.

Só, então percebo o logro, lembrando-me da impossibilidade
do seu retorno, porque ao destino para onde ele partiu vai-se por uma ponte
estreita, que só dá passagem a um por um, e a fila não
se interrompe como o curso dos rios.

E como poderá ele regressar se, até hoje, desde que começou
na vida a marcha para o abismo, nenhum outro conseguiu ainda remontar a correnteza
perene?

Se sei que mentes por que hei de dar ouvidos ao que me dizes? Se estou certo
de que é falso tudo quanto me segredas, como me deixo enganar, ainda
contando com o que me prometes?

Por que hás de insistir na tortura? Por que assopras o cineral se
não há nele centelha que reanime o lume?

Que nos enganes com a vida, compreende-se a vida existe; mas que nos tentes
iludir com a morte, é crueldade.

Que posso eu esperar de onde tudo é nada?

E, todavia, espero. Não me conformo com a idéia de que ele
não tornará mais, nunca mais! ao meu afeto.

Espero em vão, bem sei! mas bendigo-te, Esperança, bendigo-te
porque manténs a ilusão em minha alma.

Se a Saudade não tivesse, para nutrir-se, o alimento que lhe atiras,
devorava-nos o coração.

Bendita sejas, pois, Esperança, doce e triste alívio de desventurados.

ROSÁRIO

Como tal ou qual a quem se houvesse rebentado um colar de preço e
se pusesse a procurar as pérolas uma a uma por frinchas e taliscas,
assim vivemos nos reunindo recordações a ver se recompomos no
fio da memória, todos os episódios da sua existência efêmera,
desde a hora feliz do seu nascimento, a pérola menor, até a
cruz do doloroso instante.

Cada vez que, a um de nós, ocorre um fato ajuntamo-lo às lembranças.

Uma pérola, porém a maior, rolou no abismo e não há
como reavê-la. As outras mesmas, que recolhemos, quando as tentamos
engranzar logo se dissolvem em lágrimas.

Toda a riqueza que se perdeu, por mais que a busquemos ajuntar, foge-nos
em bagas de pranto, pérolas que nos caíram no coração,
com as quais, se não refazemos o colar de outrora, formamos o rosário
em que rezamos por ele a oração da saudade.

VIVER

Viver! Eu sei que a alma chora
E a vida é só dor ingrata.
Pranto, que a não alivia,
Olhos, que o estão a verter…
Sofra o coração, em hora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

Raimundo Correia

Rugem os ventos, estalam raios, o navio, desarvorado, guina, embica, empina-se,
trambolha; entra-lhe o mar a golfos pelas bordas, afreima-se a maruja e, na
profundeza, a máquina trabalha.

Não cessa e, quanto mais se enfuria a tormenta, mais se esforçam,
os que asseguram o movimento, em manter a fornalha acesa, a caldeira em força,
as juntas bem lubrificadas para que nada impeça a propulsão.

Em cima, é a grita espavorida; são preces, ordens, correrias;
um que acode ao leme; outro que marinha lesto enxárcia acima. Este,
calafeta abertas; aquele, entaipa escotilhas.

E já se desligam os cabos que suspendem aos turcos os barcos de salvamento,
cuida-se a palamenta, trazem-se salva-vidas e tudo e apresta para a possibilidade
iminente do naufr&aacaacute;gio.

E a máquina retroa no bojo do navio.

Aos embates da madria toda a construção abala-se. A hélice,
umas vezes aprofunda-se, outras vezes, no levantar da popa, gira rápida
no vácuo e toda a nave estremece, range convulsamente sacudida.

Remergulha. Faz-se tão rasa com o oceano crespo que parece ir em soçobro.
Surge a ímpeto, arfando; eleva-se mostrando a quilha, torna de chapa
ao abismo, bate estrondosamente e, com o choque, demora um instante a pique
no côncavo das vagas. Um vagalhão sustem-na, põe-na a
flux.

Ei-la a escorrer dos flancos cachoeira mar espumarento, ginga às tontas,
cambaleia ringindo e o terror cresce entre os homens e os escarcéus
cada vez mais se enfurecem, tudo é desespero. E a máquina trabalha.

Assim também procede o coração na angústia.

Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva ! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

A alegria de viver! Isso não torna ao coração. As máquinas
de aço e bronze, se conseguem vencer os temporais, quando os navios
chegam ao porto são examinadas peça por peça e, nem por
serem de metais fortíssimos, deixam de trazer mossa.

Entram, porém, os artífices com o trabalho e, onde encontram
falhas, reparam; onde descobrem eiva, corrigem; se um êmbolo ou mancal
sofreu dano, logo o substituem e a máquina, refeita, torna ao seu oficio,
íntegra como dantes e nela nem sal das ondas se conserva porque tudo
é limpado, lixado e ajustado.

O coração, esse… quando chega ao porto de bonança,
serenando, é que mais sofre.

Amaina-se o temporal, limpam-se os ares, abre-se o céu em luz, abranda-se
em brisa o vendaval, tudo torna à calma do bom tempo, o coração
quebrado, esse… quem o conserta?

Que artífice é capaz de substituir nele as peças que
a tormenta inutilizou?

Move-se, vive e bate… mas como vive. Ai! dele… Bate. De que lhe serve
bater?

Ao sair do estaleiro o navio corre ao mar e a hélice contra as águas
e revolve-as e, cada volta em que gira, leva-a para diante.

O coração, inclinado sobre o abismo, bate em vão, porque
toda a sua força perde-se no vácuo, como a da hélice,
quando o navio mergulha no côncavo das vagas.

O navio prossegue, singra mar em fora, vai a novos rumos, a novas praias.
O coração, de que lhe serve bater se não sai do vazio
da saudade?

Mas é preciso viver… Pois seja! Que o coração faça
o seu ofício:

Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

O QUE RESTA

Leva a tempestade o ninho e a ave, órfã e desabrigada, esvoaça
tonta e aflita. Vai de árvore a árvore, salta de ramo em ramo
ansiosa; eleva-se no ar, libra-se em pairo, torna ao chão, olha, pesquisa
e, do que foi, nem a mais tênue achega encontra.

Dolorida, ainda que tudo se lhe balde, revoa em volta da árvore em
que teve o pouso e a prole, até que, de todo desanimada, abala, fugindo
ao sítio da desventura.

Longe, porém, em verdes silvas, cantando aqui, ali palhiço
e folhas, tece outro ninho, reinstala-se em tépido aconchego e dorme
até que rompe a madrugada, e ei-la desperta, pronta para voar de novo,
cantar ao sol, feliz.

Teu nome!

Anda de boca em boca como, de ramo em ramo, voa e revoa a ave desditosa.
Ouço, a todo o instante, o doce nome ao qual dantes respondias. Mas
o ninho em que ele vivia foi-se levado pela tempestade, caiu da árvore
do amor, desfez-se em pó no chão.

Debalde soas, pobre nome! Não és mais que som. Andas nas falas,
voas nos suspiros, sinto-te nas lágrimas.

Isso, porém, que monta se não assentas, porque o corpo, que
era o teu pousadouro, desapareceu para sempre.

O desespero da ave cessa desde que ela refaz o ninho em outro sítio.
Teu nome, esse… ai! de nós! nunca mais se firmará na vida,
andará de boca em boca, de lembrança em lembrança em
nossa saudade, como a ave, de ramo em ramo, nas árvores da floresta,
mas sem poder fazer de novo o ninho, reinstalar-se e adormecer, para sair
com a luz da manhã, reentrar na vida alegremente, ao sol.

Pobre nome! E é tudo que resta do que se foi na tormenta.

CONSOLAÇÃO

Já entrando no gabinete, detive-me, porém, à porta,
comovido com aquele culto suave vendo-a escolher no ramo que, todas as manhã,
lhe é levado pelo florista, as mais belas rosas, de preferência
os botões com que ornamenta o retrato do filho amado, posto entre o
grande tinteiro de bronze e a caixa dos cigarros.

Deixei-me estar quieto como se assistisse a uma cerimônia religiosa.
E outra coisa não era aquele ofício de saudade, diante da mesa
que fora o altar em que ele estivera exposto toda uma noite, entre as colunas
flamejantes dos ciriais, com um crucifixo sobre o peito, e cercado de flores.

Com que enlevo ela colocava uma a uma no vaso, as rosas escolhidas!

Inclinava a cabeça para contemplá-las, a ver se estavam bem.
Endireitava uma, chegava outra mais ao centro, punha os botões às
bordas para que desabrochassem livremente, sem empeço.

Por fim, tomou o retrato delicadamente, a mãos ambas, chegou-o aos
lábios e reteve-o, muito tempo num beijo. Depô-lo no lugar próprio
e pôs-se a falar baixinho.

De repente, em ímpeto de desespero, ajoelhando-se, com os braços
estendidos sobre a mesa, de mãos postas, suplicava… O que? E, por
entre lágrimas, agitada por soluços, a voz saía-lhe humilde,
entrecortada e aflita.

Que diria a pobre mãe naquela ascese dolorosa?

Adiantei-me pé ante pé. O alto tapete abafava-me o rumor dos
passos e assim, sem ser sentido, pude chegar até junto dela, e ouvi-la.

Rezava. A Deus? Não, ao espírito do filho. Rezava diante da
imagem da sua grande, infinita saudade, pedindo-lhe o milagre da sua presença,
um aceno, que fosse, do Além, para consolo da sua alma vazia.

Senti com ela, e, docemente, para não assustá-la, chamei-a.

Apesar da meiguice com que a tirei do arroubo, sobressaltou-se, estremecendo
assustada. Ajudei-a a levantar-se, passei-lhe um braço pela cinta e,
beijando-a na fronte, disse-lhe compadecido:

– Falavas-lhe? – Ela fitou-me com os olhos rasos de água. – Também
eu converso com ele, disse-lhe – não como tu, dirigindo-me ao seu retrato
– converso com ele dentro de mim: são as nossas almas que se falam.
Tu queres o absurdo.

– Como absurdo?

– Sim. Queres que uma sombra te ouça; que o nada te responda. É
absurdo. O retrato é um simples cartão de visita, lembra-nos
a sua passagem, só isto; ele, ele mesmo, paira em volta de nós
como a luz, envolve-nos como o ambiente, penetra-nos como o ar que respiramos.

Eu sinto-o. Juro-te que o sinto e o que talvez te pareça indiferença,
é tranqüilidade que tenho pela certeza em que estou firmado de
que o não perdi de mim.

– Também eu o sinto – suspirou ela; – mas quisera vê-lo, ainda
que fosse por um segundo. Que ele me aparecesse em um relâmpago e eu
não sofreria mais. Por que não havemos nós de ver os
nossos mortos? Quando conseguiremos passar da sombra para a claridade do Além!
Deus devia ser bom para as mães…

– Deus é bom.

– Bom…! – disse meneando tristemente com a cabeça. – Bom… Bom
e nega-nos o pequenino consolo que lhe pedimos com tantas lágrimas.
Não mo quer mostrar durante a vigília, mostre-mo durante o sono,
num sonho.

Quando dormimos desprendemo-nos do corpo, a alma faz como um pássaro
que se ala do ramo onde tem o ninho. Pois bem, no sono, por que não
mo deixa ver enquanto durmo? Seria um sonho, um sonho feliz. Nem isso. Por
que?

– Por que? Ai! de nós, aí! da vida se conseguíssemos
desvendar o segredo da Morte. O azul é o azul da alma. Quando viajamos
que fazemos nós no largo oceano – atravessamos a cortina diáfana,
vencendo-a, deixando-a atrás? Não, porque ela sempre se nos
opõe, ao longe. E por que a temos diante dos olhos sustamos a marcha?
Não: prosseguimos com a certeza de topar em porto onde tomemos pé.

Ninguém se deixa ficar no oceano, à matroca – procura um rumo,
norteia-se, toma um destino, rompe o azul. É preciso ter coragem e
bússola para andar nos mares; é preciso ter crença e
fé para levar a alma além da dúvida. Desesperos são
temporais e é justamente nos temporais que se conhecem os mareantes.

Se, no furor da tormenta, com os ventos desencadeados e o mar grosso, a tripulação
descorçoa e abandona o governo do navio, não serão, decerto,
as vagas que o hão de salvar do soçobro. É preciso ter
fé, e tu duvidas.

– Eu quisera ver, ter uma prova, por menor que fosse.

– Não as tens porque as buscas materialmente. No escuro não
poderás achar o perdido; procura com luz e a Luz, para pesquisas tais,
e a fé. Espera, continua a esperar, espera sempre e um dia, talvez,
quem sabe…!

Como pensas? Concentrando-te, isto é: encerrando-te em ti mesma. É
em nos mesmos que encontramos os nossos mortos. Eles vêm a nos, como
a luz; nós não podemos ir a eles.

Achas que Deus não é bom porque cerra, em impenetrável
sigilo, o segredo da Morte. Engano teu. Que seria a vida, senão horrenda
tortura, se tal mistério não existisse? Fosse o Além
o Nada, o inferno ou o Paraíso… Se fosse o Nada, todos viveriam a
lamentar o perecimento, a destruição definitiva; se fosse o
inferno, que dor saberem todos que os aguardava o tormento; se fosse o Paraíso,
não haveria felicidade na terra porque, comparando a via contingente
e sofredora com a delicia da existência paradisíaca, tudo fariam
para desertar este mundo precário, com ânsia do outro, de eternidade
feliz. E os berços, que se aureolam de sorrisos, cercar-se-iam de lamentações,
porque viver seria tanto como penar.

Achas que Deus não é bom, porque não consente que o
vejas. O nosso egoísmo é que nos agrava o sofrimento. Tu, em
verdade, não choras o filho que deixou de viver, que está livre
de todos os males que nos torturam: choras o filho que perdeste, o bem que
te foi levado, o amor que te falta. Choras sobre ti mesma e julgas chorar
sobre o seu túmulo.

– E isto basta-te? consola-te?

– Sim, basta-me, consola-me como me basta, para consolação
de tudo quanto tenho sofrido, a certeza, em que estou, de que Deus existe.
E se tu invocas o espírito do morto é porque estás certas
de que ele não desapareceu com a morte, não se desfez como o
corpo e agora, mais do que quando convivia conosco, triunfal, puro e eterno,
tão puro como o teu amor, em que ele se encarnou, e eterno, tão
puro como a Essência a que regressou.

– E achas que faço mal em trazê-lo assim enfeitado de flores?

– Mal? Por que mal? É um culto e todos os cultos, quando neles há
sentimento, como nesse em que pões toda a alma, são belos e
dignos de respeito.

Falo-te assim para que não chores tanto. Flores são carinhos;
lágrimas são tormentos e, se ainda o chamas de filho e o queres
venturoso, porque o hás de perturbar, entristecendo-o com tantas lágrimas?

Flores, sim quantas queiras. O que a morte podia levar, levou. O que nos
resta ficará conosco eternamente, a saudade, e chorá-lo é
devolver ao coração as lágrimas que dele tiramos.

SOMBRAS

Que resulta da nossa aliança com a luz? Sombra, nada mais.

Alegria é luz e assim como na maior claridade as sombras tornam-se
mais negras, mais a tristeza se agrava se dela, em volta, a alegria exulta,

O silêncio é alivio: calma. Na quietude em que me refugio chego
a não acreditar na tua morte porque te sinto em mim, comigo, como se
vivo foras.

À noite as sombras não aparecem; todas se recolhem aos corpos
que as expuseram. De dia, porém, destacam-se, prolongam-se com a terra.

No apogeu meridiano, não suportando a claridade fúlgida, acolhem-se
ao de que saíram, como se concentra na dor um coração
ferido se, em torno dele, há expansões de vivida alegria.

Felizmente, porém, o sol pouco se demora no zênite e logo que
declina projetam-se, de novo, as sombras, até que todas se fundem em
uma única, que é a noite.

Isolo-me, não porque aborreça a vida e inveje a felicidade
alheia, mas para forrar-me no alvoroço da alegria.

Que o coração adormeça tranqüilamente, no silêncio,
e sonhe, como quem dorme.

Sonhando, anda que em vigília, – porque recordar é sonhar de
olhos abertos – vê o que foi, reconstitui, um a um, os dias venturosos
até aquele que ficou eterno na memória, como jazem imóveis
sobre as horas que não soam mais os ponteiros de um relógio
cuja máquina parou.

O PIANO

Seis meses já haviam passado e, todavia, ninguém ousava abrir
o piano. Mais do que escrúpulo havia medo.

Como que se temia o instrumento: negro, alongado a um canto da sala, em forma
de altar, tendo sempre em cima um vaso de flores.

Rondávamo-lo sem ânimo de o tocar. De quando em quando uma das
meninas folheava um álbum, de preferência o colecionado por ele,
com as peças de sua predileção. Marejavam-se os olhos
e, em silêncio, tornavam os volumes aos seus lugares, na estante.

E o piano permanecia mudo.

Um dia, porém, com receio de que as cordas se estragassem, abrimo-lo
e a enervação metálica do instrumento rebrilhou ao sol.

Levantada a tampa do teclado, como um lábio que se arregaçasse
em riso irônico, o fio das teclas apareceu ebúrneo.

Acercamo-nos todos do piano, olhando-o como se o víssemos pela primeira
vez e dele esperássemos pressagamente revelação de segredo
sombrio. Um momento ali ficamos, tácitos e quedos.

A mãe foi a primeira a afastar-se; as meninas seguiram-na às
surdas, como se temessem, com o rumor dos passos, despertar o mistério.
Bem sabiam elas que o instrumento havia de as fazer sofrer e a mim, e a todos,
à própria casa que ele, dantes, alegrava com as suas melodias.

Seria pelo som? Se por tal fosse por que não nos comoveriam as vozes
de tantos outros pianos que soam na vizinhança e só a daquele
nos havia de entristecer?

É que as outras são vozes alheias, de outros lares. Nunca soaram
para ele, nunca ele as despertara fazendo-as traduzir o que trazia na memória.

Ali passava ele horas e horas recordando trechos ou, entre nós, recolhido
em êxtase, ouvia a mãe repassar as melodias que tanto amava.

E como as sentia! Com que enlevo, verdadeiramente religioso, ficava a ouvi-las,
quieto, imóvel, sonhando. Enfim…

Um dia – era necessário que a casa retomasse o rumo na serenidade,
reentrando na vida costumeira – abriram o piano e as cordas, que dormiam,
despertaram.

Um frêmito percorreu todas a casa, a própria luz tornou-se tíbia
e pálida, como acontece com a das lâmpadas de vigília
quando entra na alcova o sol, e todos os olhos velaram-se de lágrimas.

Foi como se ele houvesse tornado: sentimo-lo presente.

E o instrumento gemia, soluçava. A própria musica, tão
alegre outrora, vinha em pranto.

Seria o instrumento que a modificava ou os nossos corações?
Eles, decerto.

O mesmo seria trasfegarmos de fonte a vasos que contivessem ou houvessem
contido essência a água pura que logo se infundiria em aroma.

A música, impregnando-se de saudade, recordava e, com tal transporte,
já não ouvíamos o instrumento, senão a ele, a
voz dele e víamo-lo, sentíamo-lo, tínhamo-lo conosco
e, a cada nota que vibrava, o coração respondia com uma lágrima,
mandada aos olhos.

Ó arte misteriosa, arte etérea e evocadora! De que força
superior dispões para que ressuscites mortos e exsurjas do túmulo,
redivivos, os que se foram; as vozes, que se calaram; o corpo, porque o sentimos;
o espírito, porque o percebemos no encantamento sonoro! Será
a música sortilega como os conjuros dos nigromantes, que têm
poder de trazer da Morte as presas sepulcrais?

O certo é que a música realizou o milagre que os nossos corações
deprecavam.

Ele veio por ela, acudiu à invocação dos sons, desceu
do Além e pairou sobre nós.

E toda a casa ficou, um momento, em alvoroço como a granja da parábola,
de onde desertara o filho pródigo, quando os seareiros, avistando-o
na estrada, largaram o serviço e correram alvissareiramente a dar a
boa nova aos pais e aos irmãos do que tornava.

E quando a mais triste das mães se assentou ao piano, abriu o álbum
que ele lhe dera e começou a executar débil, tremulamente e
chorando, foi ele quem mais atentamente a ouviu, porque todos nós o
sentimos, não aqui, ali, mas em nós mesmos, como todos vêem
e sentem a luz ou o perfume em uma sala, se nela há sol ou flores vivas.

Ó arte miraculosa! E nós que temíamos ouvir-te! Nós
que tanto tempo evitamos o altar da ressurreição, de onde ele
saiu nos sons, como se evola o aroma nas espiras de fumo dos incensórios,
vindo a nós, envolvendo-nos, visitando-nos com a sua presença
imaterial, enchendo com ela o grande vazio da nossa saudade, imenso, sem termo
como o infinito.

Já agora que importam as lágrimas! sabemos como atraí-lo.
Ele adorava a música, buscava-a onde ela soasse. Por que não
o havemos de chamar aos nossos corações com a voz harmoniosa?

E o piano, outrora temido, é hoje o nosso companheiro e confidente.

Abrimo-lo, e, em contraste com o sepulcro, que não nos restitui o
que, avaramente, guarda, ele, com a vibração das suas cordas,
traz-nos o espírito adorado, atrai-o do Além e fá-lo
vir até nós, conviver conosco, senão em corpo carnal,
na essência que dele se acha integrada em Deus, da qual conservamos
a lembrança na memória do coração, que é
a saudade.

A MEMÓRIA

Dantes não havia homem mais rico do que eu, e o meu tesouro chamava-se
– memória.

O que eu tinha ali acumulado o com que ordem! Desde a infância a ajuntar
por dia…

E tanto era eu desejar como ser logo atendido.

No dia último dos dez do meu martírio quando me convenci que
morrias, não sei que se passou em mim.

Foi como se reduzissem a cinzas todo o meu tesouro.

Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos.
Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu.

Assenhoreaste-te da casa das relíquias e nela imperas, solitário
e dono.

E, agora, se recorro à memória por um nome, é o teu
que, de pronto, me responde; se procuro recompor uma imagem, é a tua
que se me afigura; se atento a um som remoto, ouço-te voz; se insisto
em recordar uma cena, vejo te, e como? Infante, menino, adolescente ou jovem,
como te perdi? Brincando, estudando, na arena, no trabalho, à mesa,
na alegria da família, forte, feliz em suma? Não! Vejo-te sempre
na hora extrema, estendido no leito arfando encarado em mim, com o crucifixo
ao peito, entre as mãos gélidas, diluindo o derradeiro olhar
em lágrimas.

Que alivio seria para mim perder o que me resta da memória!…

Mas não! Perder esse pouco, que é tudo. seria esquecer-te,
nunca mais sentir-te, proceder com a tua lembrança como faz o túmulo
com o teu corpo.

Não! Pereça tudo! Esqueça eu tudo, contanto que fiques
no fundo da memória, tu, como fica a esperança no coração
do mais desventurado.

RECORDANDO

Fica-me em caminho a casa em que nascente. Vejo-a diariamente e, olhando-a,
lembro-me da manhã de alvoroço quando dissipaste o silêncio
daquele lar com a alegra do teu primeiro choro.

Como me ecoou no coração a tua voz deserta: sons apenas, vazios;
espaços em que deviam, com o tempo, desabrochar palavras, flores que
não se trazem do céu, por serem efêmeras, próprias
da terra.

Lembro-me de ti ao colo de tua mãe, tão pequenino e tão
chegado ao seio como se fosses o seu próprio coração.

No breve instante que dura a minha passagem por esse oriente toda a tua vida
passa-me pela alma, atravessa-a de golpe, cinde-a com a velocidade da luz.

Quantos sonhos ali entretecemos com idéias felizes, desenrolando infindavelmente
o novelo de ouro das nossas esperanças!

Sete irmãozinhos teus já nos haviam deixado sós. Sete
vezes, chorando, foram levar os enjeitadinhos da vida à roda lúgubre
dos que, expostos na terra, são recolhidos no céu.

Sete vezes havíamos perdido os bens que Deus nos dera.

Temendo que te acontecesse o mesmo redobrávamos, à noite, a
vigilância para que a Morte, ladra dos nossos amores, não nos
entrasse pelo sono furtando-te também.

Se te aquietavas serenamente desconfiávamos da tranqüilidade;
se te agitavas temíamos que fosse de febre. E tanto desvelávamos
em volta do teu berço que despertavas assustado aos gritos.

Que alegria quando te ouvíamos chorar!

E tua mãe, sorrindo, dava-te logo o seio e, inclinada sobre ti, mais
do que o leite, o que te oferecia era a própria alma. Tais eram as
cenas de amor, iluminuras da minha felicidade.

Aconselharam-me a mudar-me para casa mas desafogada, que tivesse jardim onde
respirasses ar livre, pudesses gozar o sol, passar as manhãs entre
árvores.

Achei perto o que desejava. Casa ampla, terreno vasto, arvoredo e flores.
Ali sim! Acordavas com o canto dos passarinhos.

Eras pequenino, de colo, quando me apartei de ti. Durante sete dilatados
meses, errando por brenhas, correndo o mar e rios, parando em vilas sertanejas
e em cidades, acompanhei o dealbar da tua vida pelas cartas de tua mãe.

Em uma anunciou-me ela os teus primeiros passos; em outra o teu primeiro
dente; em outra a tua primeira palavra. E eu via-te no meu pensamento, sentia-te
dentro de mim.

Quando regressei contavas um ano e três meses.

Ao entrar em casa, vendo-te formoso, com os cabelos em cachos, os dentinhos
alvos à flor do sorriso, como se acabasse de mamar e trouxesse ainda
a boca cheia de leite, olhando-me espantadamente, com a inocência a
brilhar dentro dos olhos, fui-me direito a ti de braços estendidos.

Refugiste arisco para junto de tua mãe, com um beicinho de choro,
que me fez sorrir.

Não me conhecias. Era natural. Pouco a pouco porém, fui conquistando
a tua confiança e já na tarde desse venturoso dia éramos
amigos íntimos.

E tu, tomando-lhe pela mão, levaste-me a percorrer o teu pequenino
paraíso, a chácara em que te criaste, entre árvores,
uma das quais a ameixieira, foi a tua ama mais solícita, dando-te os
frutos dos seus galhos e agasalhando-te à sua sombra, onde brincavas,
e, quanta vez! dormias.

Desde então até o dia triste se nos separamos foi por ausências
breves.

Cuidava eu, na minha confiança, que assim seria sempre até
que me soasse a hora de sair na viagem infinita.

S foste tu que partiste!

Eu deixei-te pequenino, quando não sentias ainda a minha falta: deixei-te,
mas regressei. Tu me deixaste cheio das tuas raízes, já me havias
tomado todo o coração… e não voltas, não voltarás
nunca mais!

Passo diariamente perto da casa em que nasceste, olhando-a, porém,
logo me lembro do túmulo em que jazes. Tu, não: teu corpo criado
por nós, a nossa parte humana, que a divina foi por Deus reavida e
lá está com Ele, longe de nós, longe da terra, tão
longe!

Longe, todavia está o sol e aclara-nos; longe estão os demais
astros, e vemo-los. Só tu não nos dás sinal de ti a não
ser pela saudade em que te transformaste e que não nos deixa, tão
viva em nós que eu, às vezes, tenho medo de que te estejamos
a prender conosco, privando-te do Paraíso, encarcerado, como te trazemos,
em nossos corações.

Mas se deles saíres que nos ficará neste mundo, perdida a única
consolação que nos resta, que é a tua, lembrança?

Vive, vive em nós, no mais íntimo da nossa alma: vive na saudade
como antes vivias, em esperança, no mais profundo do nosso amor.

VISITA

A súbitas, sem causa, constringe-se-me o coração. Enche-se-me
o peito de ânsia. Trava-se-me a respiração em angústia
asfixiante.

Abre-se-me um hiato na existência como se fendem abismos na terra quando
a convulsionam cataclismos.

Deve ser assim o morrer, o instante em que a alma, soltos os liames que a
retém ao corpo, emerge em surto demandando o espaço para ascender
ao céu, liberta.

O que se passa em mim em tais momentos lembra-se essas bolhas de ar que afluem
na profundeza dos lagos e, mal chegam à tona, dissolvem-se integrando-se
na atmosfera.

Sinto que alguma coisa se desprende do meu ser, como se desprende uma pétala
da flor.

Arrasam-se-me os olhos de água e o coração, em sobressalto,
precipita as pancadas.

És tu que passas por mim. És tu que me fazes vibrar de comoção.
És tu que me atravessas instantaneamente a memória como um pássaro,
em vôo de frecha, corta, alígero, o espaço.

Pássaros…! E que são as saudades senão aves de arribação?
Ao invés, porém das andorinhas, que, a maneira dos heliantos,
andam sempre procurando o sol e, as primeiras brumas, reunidas em caravanas,
partem, céus em flora, em busca de climas tropicais, elas emigram no
estio e é justamente no inverno que nos chegam.

Coração alegre não lhes serve: gostam de fazer os ninhos
à sombra da melancolia e aí vivem e procriam.

No mais rigoroso da tristeza, quando as lágrimas são mais copiosas,
levantam-se em revoadas e escurecem e entristecem ainda mais o que, já
de si, é lúgubre: o coração magoado.

Se no momento, tais evocações excruciam-me, deixam-me depois
a alma aliviada, como certos bálsamos que, no instante em que são
aplicados às feridas, exacerbam-lhes as dores para as lenirem depois!

E por que assim se converte a angústia em conforto? Porque, por ela,
me convenço da tua sobrevivência.

Se tornas, posto que só em espírito, é porque existes.

O nada não se levanta, não atende, não se manifesta.
E tu surges, vens a mim, anuncias-te presente, ainda que invisível.

Caminhando ao longo do silvedo eis que nos chega um aroma. Senti-lo e logo
saber que flor o exala é tudo um instante. E a flor ? Onde? Escondida
na balsa, oculta nas frontes ou refolhada nos aningais do lago, algures, invisível,
mas presente.

É o que se dá quando meu coração se retranse
de saudade. Entristeço-me, logo, porém, consolo-me sentindo-te.

Melhor seria que eu te visse, que vivesses conosco. Mas o maior tormento,
depois que te partiste, era imaginarmos que te havíamos perdido para
o sempre. Não!

Estás longe, mas existes, não desapareceste porque o essencial
de ti a parte eterna do que foste, vive.

O que lá está, na terra, é o casulo: a borboleta voa
livre, na luz, e, de quando em quando, saudosa, baixa do céu à
terra e pousa de leve em nossos corações.

TEMPESTADE

Noite lúgubre.

Estortegam-se agoniadamente as árvores ao vento. Bátegas rufam
nas telhas. Por entre as frinchas das janelas afuzilam clarões.

Rápido esfria em regelo. À rajada mais forte o arvorado rumoreja
estabanadamente. A enxurrada chofra, gorgoleja torrencial, rasgada, de quando
em quando, por automóveis que passam.

Troam, estrepitam, ribombam trovões.

No bater das portas e das janelas tem-se a impressão de que andam
a forçar a casa.

Acendem-se luzes. São as crianças que despertaram sobressaltadas
com os fragores.

A estampido mais rijo ei-las de pé, espavoridas. Correm a refugiar-se
junto a nós.

E o estridor aumenta.

Deflagram explosões seguindo-se-lhes silêncio pávido.

De repente a chuva jorra cheia e grossa estalando na rua.

O vento uiva rondando o espaço; distancia-se, torna, envolve a casa
como matilha que se encarniça furiosamente em presa.

Luzem relâmpagos mais freqüentes. A própria luz das lâmpadas
vasqueja, freme em crispações de espamo e, a súbitas,
apaga-se.

E a escuridão, que amedronta, laiva-se de livores convulsos.

Penso nos que se acham lá fora, à intempérie. Quantos!

Penso em ti!

Sentirás no teu túmulo o rigor da tormenta? Não creio.

Se tal se desse com mais razão terias sentido a que se desencadeou
em nossos corações quando, com a respiração já
flébil, nos arquejos dos últimos anélitos, tinhas em
nós os olhos fitos e marejados de água.

Nada sentias – nem os soluços, nem as deprecações, nem
as vozes desesperadas com que, através de lágrimas, bradávamos
para que não partisses.

Se não sentiste naquele angustioso instante, quando ainda te não
arrancaras de todo a nossa esperança. preso à vida pelo olhar,
que poderás sentir agora, silêncio cm que jazes, nessa profundidade,
a maior de todas as profundidades, onde, se riso chega o nosso amor, não
chegará, decerto, a raiva das tempestades!

RAJADA

Como explicar tais surtos?

A mim mesmo, surpreso, lanço esta pergunta.

Que ele venha, invocado pela saudade, quando o coração, que
se não resigna, o chama, é natural. Não há túmulo
que resista a tal reclamo, pesem-lhe, embora, em cima, mármores e granito,
metais e terra fúnera: o prestígio do amor tudo consegue.

Se a gota de água perene abre sulcos e atravessa penhascos, que não
farão as lágrimas, muito mais poderosas, por virem de fonte
divina?

Assim, compreende-se que a invocação do amor consiga trazer
da morte, em espírito, aqueles que desaparecem, mas que, de improviso,
espontaneamente, eles nos surjam, entrem-nos pelo coração…
só se neles também perdura o amor, se a saudade insiste em os
prender à vida para que, por ela, tornem, como a andorinha regressa
do exílio ao ninho antigo, mal se dissolve a neve que a repeliu para
outro clima.

Ainda que o não esqueça instantes há, porém,
em que o não sinto, tanto ele se aquieta como adormecido no fundo da
memória. Basta, porém, um rumor leve de lembrança, uma
subtil reminiscência para que ele desperte.

Assim, porém, como na vida quando os trabalhos nos solicitam e saímos
por eles, deixando em casa os filhos, cada qual naquilo que lhe consente a
idade – um, no estudo; outro, brincando e o pequenino no berço ou no
aconchego do colo maternal, sem que deles nos esqueçamos, posto que
os não tenhamos presentes, assim, também horas há em
que nos abstraímos dos mortos e se isso importasse em esquecimento
da mesma ingratidão se poderiam igualmente queixar os vivos.

Em tais momentos quem nos encontra no giro do trabalho, falando a um e outro,
rindo com eles, não dirá que toda essa aparência de alegria
ou indiferença assenta em melancolia.

Profundezas, quem as sonda? Penetrais, quem os alcança?

Julgue-se o oceano pela superfície que rebrilha ao sol em frisos ondulantes,
riso efêmero das águas que se desfaz em espumas.

Julgue-se a brenha pelo que dela se avista, verdura matizada pela florescência
dos ramos.

Julgue-se o infinito pelo azul que o olhar abrange. Quem sabe lá o
segredo do abismo, o mistério da selva, o arcano da altura.

O coração é a profundeza em que jazem os sentimentos,
em que se ocultam as paixões: amor e ódios, saudades e remorsos,
todo o bem e todo o mal.

A noite é bem a imagem da morte.

Vai-se o sol e as sombras parciais desaparecem, fundindo-se na escuridão
universal, que é a Treva. Vai-se a alma, que é luz, e o corpo,
sombra da terra, torna ao de que veio: a Terra.

E, assim como o sol, e retorno, refaz o dia, assim a alma, depois do tramonto
e da depuração, regressa à vida e ilumina outro ser,
efêmero como o dia.

Mas essa luz instantânea, luz que brilha e extingue-se, relâmpago
que apenas serve para mostrar-me o deserto, claridade que fulgura tão
só para que eu veja toda a imensa extensão da minha desventura,
quem a acende, e por que?

Como explicar tais surtos, esse ressurgimento do morto dentro da minha saudade?
Quem o invoca e que chamado atende? Será Deus que o mutila para consolo
da minha alma ou será ele próprio que se desprende da Eternidade
e, a súbitas como para certificar-se de que não morreu no meu
amor, desce em visita ao coração, que era o seu ninho? Não
sei.

Na maior serenidade, tudo em calma: o céu azul! com o sol em pleno,
as árvores imóveis nos ramos as aves alacres cantando. De repente,
sem nuvem que a anuncie, sopra de longe, das montanhas, frias, ríspida
rajada.

Curvam-se as frondes, sobe a poeira em torvelins, abrumam-se os ares, negros
bulcões empastam, escurecem o céu em cariz de borrasca.

Mas o sol esgueira um raio, abre, por fim, a larga alara de ouro. Reacende-se
a claridade, limpa-se de todo o azul, tornam os pássaros ao vôo
e a vida serenamente continua.

Assim, por vezes, no meu coração.

Trabalho na quiete do meu gabinete ou cruzo a multidão nas ruas: movimento
ou placidez, rumor de vida ou silêncio. Atento em dar forma a uma idéia,
torturando, polindo e repolindo a frase eu sigo distraído do turbilhão
tumultuário, tanto como folha morta levada ao léu da correnteza.
Nele não penso. Acha-se onde o amor o recolheu quando a morte o prostrou,
no mais recôndito do coração, onde a saudade conserva
carinhosamente o seu tesouro.

De repente o coração me estremece, como abalroado e, no alvoroço
que o agita, transbordam os seus veios sentimentais e logo se me marejam de
lágrimas os olhos.

Que encontro tê-lo-á abalado assim, ao pobre coração
tão quieto, para que dele tanto se ressinta? Que rajada passou por
ele toldando-lhe a alegria, perturbando-lhe a tranqüilidade, como esses
improvisos ventos das montanhas frias que, inopinadamente, se levantam, sopram
ríspidos carreando nuvens que escurentam o sol, retorcem angustiadamente
as árvores e tomam um céu claro acumulado bulcão de cúmulos
tempestuosos?

Rajada de saudade, vinda não se sabe de onde nem por que. De onde?
senão da morte; por que, senão por ciúme, desconfiança,
talvez, de que haja sido esquecido para surpreender a alma, apanhá-la
distraída e ver se nela o lugar que era, outrora, seu foi ocupado ou
esquecido, enchendo-se de nova alegria ou deixando em indiferença como
os terrenos que, por abandono, desaparecem em maninho agreste.

Como te enganas, espírito amoroso!

Vem! E sempre que apareças, baixando de onde assistes, acharás
o teu lugar florido de saudades, flores que não morrem nunca porque,
para regá-las, há no coração uma fonte que não
cessa de correr e cada vez em maior cópia.

Vem na vigília ou no sono, vem! e acharás o teu lugar tal como
o deixaste, e verificarás que és nele dono e único senhor;
que nada do que te pertencia, e te pertence, foi ali tocado que continuas
a ser nele quem dantes foste e agora és mais que nunca e vives e sobre
o que de ti ficou não tem poder a morte, porque é a mesma Vida,
que não perece, Vida como a da Eternidade, por ter a sua origem em
Deus: a alma.

Vem ou como quando atendes carinhosamente ao apelo da minha a saudade ou
surgindo, em meio da minha alegria ou do afã do trabalho, como costumas
aparecer inesperadamente, sempre bem-vindo, para consolo e martírio
da minha saudade.

MEMENTO

Como se há de esquecer toda uma vida, que se prendia a nossa, se o
operado, a quem amputam um membro, durante muito tempo guarda a impressão
de ainda o possuir?

Se as dores ficam assim vivas, como se alguma das suas raízes não
houvesse sido extirpada, se o sofrimento persiste em reminiscências,
ainda depois de curado, como se não há de perpetuar, mesmo que
a morte a leve?

Geme o enfermo dores que o não pungem só pelo hábito,
em que estava, de as sofrer; e não há de chorar o que não
se conforma com a desdita de haver perdido um ser amado?

Se de um membro apenas fica tão viva recordação no corpo
como não há de subsistir em saudade na alma a lembrança
de um ente estremecido?

O que se levanta do leito e dá pela ausência do que lhe foi
amputado custa a convencer-se do que vê, porque continua a sentir, posto
que em ilusão, o que, dantes, o atormentava. E o que perde um amor
há de esquecê-lo? Não!

Sinto-te como se estivesses comigo. Levaram-te de mim, a todo o instante,
porém, tenho-te presente.

E a ti não são dores que te recordam a minha alma, mas venturas,
pelo que sofro ainda mais o bem perdido.

Se o operado não esquece o que o fazia gemer, como me não hei
de eu lembrar do que me fazia sorrir?

A LUZ DA SAUDADE

Tanto se me fixou na mente o episódio lúgubre daquele imenso
instante que, todas as noites, mal apago a lâmpada à minha cabeceira,
a escuridão acende-se em luz lívida e nessa claridade fátua,
instantaneamente, a cena reproduz-se vem projeção fantástica.

Triste ressurreição da morte!

Vejo-o no leito, tal como o tive ante a minha impotência desgraçada,
extinguindo-se pouco a pouco, flébil: de olhos abertos, fitos, lábios
hiantes, mudos.

Tão grande era o silêncio no aposento como só mesmo pode
ser nos túmulos. Era a morte que entrava com ele, como a noite entra
com a treva e a madrugada com a luz.

Abraçado com o moribundo eu sentia-o ir pouco a pouco esfriando. O
silêncio já o havia penetrado parando-lhe o coração.

Pois assim havia de cessar aquela vida em flor?

Como prendê-la a mim? Como defender aquele ser querido que me era arrebatado
dos braços sem que toda a minha força, toda a minha fé,
que explodia em clamores a Deus, e o espanto em que se petrificara a pobre
mãe surpresa, o pudessem reter?

Quem há capaz de suster a luz ou a sombra, deter o dia ou a noite?

Pobre filho! De que lhe valia a mocidade? Vinte e quatro anos! Plena juventude!
E ali jazia, mais frágil do que quando eu o vira, recém-nascido,
naquele mesmo leito, entre os braços daquela mesma criatura que o encarava
extática sem compreender que ele, seu filho, sempre tão meigo,
nem sequer se voltasse para olhá-la, a ela, sua mãe, que o chamava
em desvairo, docemente, baixinho, com uma voz que lhe saia trêmula,
débil, chorando, do mais fundo do coração.

E tudo, em volta, parecia sentir: as próprias paredes, os móveis,
a mesma luz que tremia, como se soluçasse.

Sobre o peito robusto do jovem atleta, como em calvário, alguém
pousara um crucifixo de bronze.

Soluços faziam a pulsação do silêncio,

A vida, entanto, prosseguia fora no seu afã ruidoso e, indiferente,
contínuo, acompanhando o tempo, o relógio picava os segundos
como se desfiasse um rosário, conta a conta.

E o corpo juvenil imobilizou-se de todo, adormeceu sereno e fechou-se sobre
ele a vida como se unem as águas sobre o náufrago que afunda.

O pranto desatou-se em volta.

Ela só não teve lágrimas: estava como árido deserto,
ardendo em sede, na sua infinita e estéril desventura.

A dor imensa que me enchia todo o coração não achava
passagem bastante para expandir-se, salvo se o rebentasse.

E assim, enclausurada, mantinha-a naquela aparência de impassibilidade
pétrea, igual a que estatelou Maria junto à cruz.

E, todas as noites, é certo reproduzir-se a cena lúgubre. Eu
já a espero e mal apago a lâmpada à minha cabeceira, preparo-me
para o triste transe que se renova na escuridão, dentro dum halo feral,
que outra coisa não e senão saudade, luz que alumia os mortos.

INSTANTE ETERNO

Através dos minutos como em poeira de entrada, os dias giram velozes
na vertigem do Tempo.

Dealba, fulge o sol; empalidece a tarde; cinza-se o crepúsculo e a
noite obumbra-se. Treva, de todo negra ou cravejada de astros.

Eis, de novo. a manhã clara. Sob o dia, reluma; logo, porém.
começa a declinar e enubla-se. Anoitece.

E não cessa o movimento: dias sobre noites, noites sobre dias.

Aquele instante, porém, subsiste eterno, o mesmo em que para mim,
encerrou-se o ciclo da ventura.

Dias e noite são raios da roda que não pára; o lúgubre
momento é fixo, como o eixo em volta do qual o Tempo célere
circuita.

Anos que eu viva, séculos que vivesse, ainda que, por desdita, me
tornasse eterno, toda a minha existência os meus dias, anos, séculos
infindos haviam de girar em torno do minuto trágico em que o vi tombar
da juventude no túmulo, como flor talada em pleno viço que caísse
num lago e, ferindo as águas nelas abrisse círculos progressivos,
até os extremos das margens.

Assim também chegará até o fim da minha vida a lembrança
do instante em que o perdi de mim em torno do qual os dias passam, passam
os meses, hão de passar os anos sem que eu os sinta, porque todo me
concentro no momento em que ele caiu para o sempre, eixo de onde partem, abrindo-se
infinitamente e, cada vez maiores, as saudades no meu coração,
como as enciclias se frisam e dilatam na água ferida em um ponto, pela
flor decídua.

NA JAULA

Sentem-na os míseros leões cativos; sentem-na nos eflúvios;
sentem-na no aroma que lhes chega com a aragem; sentem-na no cheiro cálido
da terra adusta; sentem-na, a era da explosão da seiva, era em que
se enfeita e alegra a selva. Sentem-na e fremem de nostalgia.

A ânsia de rever os sítios florestais e as dunas do deserto
torna-os ferozes. Então, irritados, levantam-se, de ímpeto,
na jaula, põem-se a rondá-la iterativamente, chegam aos varões,
tentam mordê-los, grifam-nos a unhadas e, não os podendo quebrar,
arfam aos rugidos surdos.

Como a esperança não os abandona deitam-se junto aos ferros
inflexíveis e ali ficam, de olhos fitos no vago, o olfato esperto,
arejando nas auras a olência do que não podem alcançar,
do que lhes foi tomado para o sempre.

Vêem o que olham? Não! vêem o que sentem.

E o que sentem eles, os míseros leões? Sentem o que lhes acorda
na memória – a brenha verde: espessa e sombria aqui; aberta em clareira
além, com os voluteios cristalinos da água, os antros obscuros
onde branqueia, esparsa, a ossamenta das presas, sentem os companheiros livres:
uns, deitados sob ramarias, outros à espreita, nos juncais, à
margem dos rios largos; ainda outros, resupinos, brincando com os graciosos
cachorrinhos.

E colham tristes, alongam infinitamente o olhar querendo ver além
do seu, além da linha do horizonte a selva, as dunas, o que perderam
no jamais.

Como alcançá-lo? Como sair daquela prisão alerta em
grades que ainda lhes tornam mais triste o cativeiro com a ironia de lhes
deixarem ver a liberdade?

Fora melhor, menos cruel, sem dúvida, prenderem-nos em ergástulo,
onde não chegasse fisga de sol, onde não penetrasse o acre perfume
de silvedo: ergástulo profundo, bem negro de escuridade opaca como
a da cegueira; silêncios como a surdez, de onde se não vissem
aspectos, nem chegasse rumor de vida e tudo se resolvesse em olvido.

Mas não! Presos em jaula, os leões olham e vêem, respiram
o ar balsâmico, ouvem sussurros de árvores e aqueles mesmos ferros,
por entre os quais avistam a vida, dela os separam inexoravelmente.

Míseros leões! E é no tempo em que florescem os bosques
que o instinto se lhes aguça e mais os atormenta.

Assim, quando tudo é alegria e festa, na era de maior ventura para
os livres, é que os leões cativos atroam as noites indo e vindo
na jaula em fúria desesperada.

Melhor seria que os sepultassem em covas onde remasse escuridão eterna.

A jaula estreita, em que me agito sem sossego, é a minha angústia,
agravada a todo o instante por lembranças, agora ainda mais intensas
pelo tempo que se vem aproximando, florindo as árvores e desabotoando
em alegria os corações felizes.

Sinto-o presente, vejo-o através dos varões da minha jaula,
como os leões vêem o deserto e a selva – recordando.

Por que há de vir de tão longe, ao presídio onde peno,
a lembrança constante do bem que se me foi, como chega ao faro dos
felinos cativos a fragrância das florestas?

E agora, mais do que nunca, punge-me a saudade, porque os dias são
de ventura.

Natal! Tempo do convívio familiar, tempo em que todos se reúnem
– os que se acham fora acodem à casa pressurosos e a mesa rodeia-se
e amores.

E ele?

Assim como o aroma das brenhas irrita, enfurece os leões cativos,
assim essa alegria da vida aumenta o meu desespero.

Fora melhor para as feras que as encerrassem em covis subterrâneos,
sem luz de sol, sem ar de silvas, onde tudo fosse negrume, umidade e bafio
de sepulcro.

A nós fora melhor que Deus nos apagasse a memória.

Lembrar é como avistar através de grades, sentir o intangível,
ouvir sem poder escutar; lembrar é viver no mundo das ilusões,
entre espetros e sombras.

Neste tempo suave, todo do bonança, tempo em que os pais se revêem
nos filhos e, com a mesma fé, no altar doméstico, comemoram
a crença e o amor, o coração vibra mais sensível
à ternura.

Todos os lares preparam-se para a comunhão feliz na grande noite de
Cristo e, eu… Eu sofro como sofrem os beluinos sentindo na aragem o perfume
das selvas que florescem.

Como poderei ter alma para celebrar um natalício, ainda o do próprio
Deus, quando só penso na morte e, em vez de berço, o que se
me opõe aos olhos é um sepulcro?

O aroma que respiro é de flores funerais; os sinos que tangem hosanas
soam-me a finados.

O meu Natal é a saudade e, através das grades da jaula em que
me agito desesperadamente, vejo o céu, o céu longínquo,
o céu infinito… e nada mais!

A MINHA MESA

Sete palmos exatos mede a minha mesa, tantos como um túmulo. Não
lhe sabia eu a extensão e nunca atenderia a tal grandeza, para mim
maior do que a do mais vasto império, se a não houvesse tomado
com o teu corpo.

Não há chão mais fértil do que a tábua
desse móvel, solo em que mourejo há trinta e três anos,
sem repouso, granjeando a lenha, o pão e o linho e jamais deixou de
medrar, ainda que o escopelismo da maldade por vezes tenha procurado abafá-la.

Por mais ásperos que hajam sido os temporais – e quantos me têm
passado pela vida – nunca me sucedeu tornar desse abençoado alfobre,
que rego com o meu suor, de mãos vazias.

Em qualquer dos seus pontos pode ser posto um sacrário por que, em
toda ela, não há um milímetro inquinado.

Nunca a pena com que lavro abriu sulco para má semente: cova para
protérvias, esconderijo para amealhar suborno. O que dela vem a flux
pouco é, mas desse pouco é puro, sem cizânia, e sempre
me bastou, e jamais dele me servi com remorso.

Mal amanhece busco-a e ponho-me logo a trabalhar e, assim como o lavrador
enche os carros de ceifa, assim vou enchendo páginas com os meus sonhos.

E a imaginação, como as abelhas e as borboletas, que trazem
pólen para fecundar as flores, traz, igualmente, para os meus devaneios,
imagens e alegorias com que se ornamenta o agro dos meus escritos.

Nessa mesa fundei alicerces e levantei construções: ela é
o meu pequeno império, o meu domínio, o meu diversório
e o meu celeiro, o meu retiro de paz e o meu horto de oliveiras.

Sete palmos! Toda uma vida no espaço que tomou, estendido, um corpo
morto: o teu, meu filho!

Foi nessa mesa que passaste a tua derradeira noite em nossa companhia, em
tua casa, casa de teus pais e de teus irmãos.

Foi nesse campo de trabalho, transformado em essa, que ficaste exposto aos
nossos olhos toda uma noite, a última e definitiva, noite subterrânea,
impermeável à luz.

Ficaste onde ficam meus livros, na banca em que exerço o meu labor
ingrato à qual, em pequenino, vinhas engatinhando e distraias-me com
os teus tartareios infantis, que eram como botões das palavras que,
pouco a pouco, se te desabrochavam na boca.

Foi nessa mesa que aprendeste a ler com tua mãe e garranchastes, de
mão adunca. os primeiros gatafunhos.

E, quanta vez, à noite, enquanto eu trabalhava e ela sorria, contemplando-te
de longe, escondida na sombra, tu, com os teus soldadinhos de chumbo, improvisavas
batalhas, e o meu tinteiro era fortaleza e eram os meus livros e mais objetos
espalhados, baluartes pugnacíssimos contra os quais impelias os teus
batalhões de estanho.

E eu, suspendendo o que fazia, entrava no teu brinquedo, mais pueril do que
tu, porque tomava a sério os combates e, a golpes de caneta ou espátula,
arrasava as hostes que sitiavam um dicionário ou que procuravam escalar
o porta-cartas.

E como terminavam as guerras das tuas conquistas? Com os soldados espalhados
e os tachos da cabeleira do general no campo da batalha, porque a cabecinha
linda, que tantos planos terríveis engendrara, não resistia
ao sono e, inclinando-se sobre os bracinhos enrodilhados, ali ficava como
a dos anjos rafaelitas, até que a ama, tomando ao colo o herói,
que eras tu, deixava a mesa sem o seu gracioso ornato.

Agora, quando me sento para trabalhar, o que logo me aparece aos olhos é
o teu corpo imóvel, rígido, vestido de negro, cercado de flores,
entre círios, com um crucifixo nas mãos enclavinhadas. E depois
no caixão em que te levaram de nós… Por fim, desfeita a visão
a mesa reaparece, disposta, como outrora, antes do desastre, com os apetrechos
de trabalho.

Tu é que és agora a minha inspiração, tudo me
vem de ti e, assim como o teu corpo enche o âmbito da cova, a tua imagem
ocupa a minha mesa, como se nela houvesse ficado impressa e a saudade, que
é o que me resta de ti, enche-me a alma.

E tudo quanto imagino e busco traduzir em palavras ressente-se de ti – assim
a água que brota de terreno mineralizado satura-se das substâncias
que nele jazem e o ar que circula em silva em flor impregna-se de aroma.

Tornaste a minha mesa um campo santo. Nela demoraste horas: toda uma noite
e toda uma manhã; dela saíste para o sempre, mas o que eu nela
escrevo sente-se do que de ti lhe ficou.

Às vezes, no silêncio da casa adormecida, trabalhando, ouço
trepidações e uma voz que parece vir dentro de risos incitando
a combate. E a mesa enche-se de soldadinhos e uma cabecinha trêfega,
aureolada de cachos, agita-se nervosa… Cessa a trepidação,
aquietam-se os soldados, a cabecinha inclina-se…

Ó visão do passado, espetro da ventura, saudade! E tudo se
resolve; infelizmente, em tristeza e, em vez de vitória, terminada
com o sono do guerreiro, sono de que ele acordava com o renascer da luz, alegrando
em rumor a casa toda, o que eu, então, vejo, é a derrota, o
corpo inerte que adormeceu para o sempre entre flores e círios.

E é tudo que me resta na mesa em que trabalho, mesa que era o meu
império, o meu domínio, o meu alfobre feliz, toda a minha riqueza,
onde eu semeava e colhia à farta.

E não havia chão mais fértil do que a tábua desse
móvel.

Hoje… que se pode tirar de um cemitério?

Que se pode semear nos sete palmos de um túmulo?

Lágrimas não florescem e bom é que assim seja, porque
seriam letais, como as da mancenilha, as flores que produzissem.

O Duplo

Temos, então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido
amigo?

– Quem te disse ?

– Laura.

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com
a cabeça, desabafou contrariando:

– Laura… Laura faz mal em andar contando essa história por aí.

– Que tem?

– Ora! Que tem… Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que
eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que
lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua
conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o
cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o
com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja
ou o chá, aí por essas casas.

Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário, não
freqüento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda
que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso
à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não
ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente
os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os
quatro evangelistas; fora de tais “termos” não dou um passo
– nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem
para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos
grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí
ficarei até morrer.

Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de
rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões
que freqüenta.

O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me,
irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e, se alguém sorri
à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos
cabelos.

– Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além
de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos ai estão:
produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão
deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestam-se visível,
sensivelmente.

Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à
falta de argumentos com que os destruam, bradam contra os que os apregoam.
A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze
que nos veda um grande mistério, ou melhor – Mistério.

Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que
além dos túmulos, que são limiares de outro mundo, há
alguma coisa que… ninguém sabe o que é.

A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz
no qual flutuam indícios, revelações vagas, como átomos
nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde.
Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade…?

– Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais angustiosos
da minha vida.

Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres,
onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges sobre
coisas da vida.

O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos
milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para
aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda
em plano. O que me está parecendo é que o pobre está
com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas.
Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria,
onde comprei os jornais.

O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta
e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma
matrona anafada, dessas que se esparralham.

O bonde partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui
abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque,
em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os
olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido,
como deve acontecer com os aviadores que vêem, de muito alto, todo o
panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios,
apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes.
Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal
– a mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei
a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi…!

– Viste…?

– A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco
da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! como refletido
em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros
laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má sombra.

Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu:
nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas
reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo:

“Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá
o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta
deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava,
no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam.
E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica,
se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles
gordos.

Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma:
todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte,
o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre
em casa”.

Que angústia, meu amigo ! E o outro lá estava em frente a olhar-me,
como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me, então, de fazer um
movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém,
de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava,
raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos
e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d’alma que me
houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda
depois do motor parado.

Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de
frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o
outro sempre encarado em mim.

Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos
os passageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de
pé.

A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca
que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços,
que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente,
aprumando a cabeçorra quadrada de ulano com entono de desafio.

Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se
maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro “eu”, não
o vi mais.

Teria descido? Não ! Não descera. Tornara a mim, atraído
pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só
comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar,
debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.

E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de
tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento.

Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice
de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo.

E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite,
com um saimento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: ‘~ Quem era o
morto?” E logo lhe foi respondido:

– É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe
dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário
e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão foi que o levou
ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou
vendo; a mim, entendes? a mim! Como explicas tal coisa?

– Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são
observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro,
que será, talvez, Ciência da Verdade.

O Filósofo

Cesário, debruçado sobre um grande atlas, aberto em cima da
mesa, passeava o longo e nodoso dedo pela carta, resmoneando. Sentindo os
passos de Jorge, levantou a cabeça:

– Estamos independentes, hem? Foram-se as gralhas? Pois, meu amigo, grandes
e verdadeiras foram as palavras que eu aqui te disse: Tenho os ouvidos atordoados
ainda e atenta bem a ver se não escutas, de quando em quando, o eco abominável
das gargalhadas daquela partênia. Não sentes? São de assombrar,
palavra! Precisamos recitar aqui dentro a Oração de Demóstenes
ou alguma coisa de Cícero para purificar o ambiente. Dize-me: tens por
aí alguma carta do mundo antigo? Ando a refazer o roteiro dos Árias,
preciso disso para a minha obra e não encontro nesta carta sórdida
senão coisas de ontem, discriminações pulhas de lugarejos
vis, sem história, sem tradição, sem passado colônias
inglesas, terras esterilizadas pela cobiça e pela crueza dos homens e
dos tais sítios nem menção. Vê se descobres por aí
nos teus cabedais alguma coisa. Se não tens, dize de uma vez para que
eu desça. É possível que encontre na Biblioteca o que preciso.
Ainda assim prefiro que procures porque, como é coisa preciosa e útil,
decerto não será fácil achar nas estantes da Alexandria
indígena.

E curvou-se de novo, mas, sempre passeando o dedo pela carta, interpelou
o amigo: – E a Cegonha, hem? Não foi. Já a vi pensativa e murcha
ali na varanda a buscar sonhos no céu com os óculos radiantes.
Mulher forte! – Detesta as Moretti. Julga-as como eu.

– Ah! moralidade tem ela, isso tem. É mulher para exemplo. Deviam
citá-la num Tesouro das meninas como modelo de virtudes, a fealdade
inclusive, que é a maior das virtudes, porque repele o inimigo. Mas
dize, como há de ser? E o roteiro? – Que queres, não tenho livro
que te sirva.

– Diabo! E eu que tencionava começar hoje a minha obra. É
verdade… E se eu começasse pelo segundo capítulo? Há
exemplos. Eu, que aqui estou, nasci por um braço. Há quem tenha
nascido pelos pés: o Cosme, por exemplo, deve ter nascido assim. Hem?
que dizes? Se eu começasse pelo segundo capítulo? E aprumando-se:
Mas fala, homem… Estás mais triste do que a irlandesa. Fala e trata
de acender o gás ou de fazer com que o acendam, porque já não
vejo nada na Ásia: tudo é sombra. E o Mommsen? Tens aí
o Mommsen? A sala clareou de jacto e a luz forte do gás, esbatendo-se
no jardim, como que ainda mais lhe adensou as sombras crepusculares. Cesário
passou a mão pela calva e, espreguiçando-se, bocejou estrondosamente:
– Diabo! Estou com uma famosa courbature. Dobrou-se para trás, com
as mãos nos rins e, firmando-se, estendeu o braço para a chama
loura do gás: Bem andou Jeová criando a luz antes de mais nada.
Entanto há na sua grande obra alguma coisa anterior ao Fiat… a avareza,
por exemplo… que dizes? Essa claridade entra-nos pelos olhos e vai até
o mais fundo do cérebro como o sol atravessando os vidros de uma clarabóia.
E ainda há luz lá fora.

Lançou o olhar ao exterior e, voltando-se: – Dize, que tal achas
o pensamento que um dia procurei apertar em um soneto? e avançando
com grandes gestos dramáticos, foi até a porta e levantou os
olhos para o céu de opala: Ouve lá, não está em
metro ainda. Digo-te a coisa como a recebi do gênio. A cena do soneto
simples, tristonha: um crepúsculo. Eu digo então: Expira o sol!
e atirou o braço esticado para o teto. Expira o sol… e Deus!… arma
no céu um catafalco: a noite, trazendo para cirial do morto o plenilúnio.
Que te parece? indagou e, fitando-o com grandes olhos: Mas que tens, homem?
Estou aqui a falar-te como Apuléu aos bárbaros. Que tens? Jorge
caminhava ao longo da sala, de mãos para as costas, parando, de instante
a instante, para ouvir o “filósofo”. Que tens? – Estou aborrecido,
contrariado.

– Com a saída da menina? Não te preocupes. Descansa. Não
lhe pegam os vícios das outras. Lembra-te da Marina do mestre. Onde
é que Péricles a encontra? num alcouce infame e retira-a pura,
como se retira o lótus d’água pútrida. Não
te preocupes. Vamos cuidar de atravessar estas horas de sombra a rir. Queres
que te diga? se algum dia eu procurasse meus filhos haviam de conhecer tudo
filhos e filhas, tudo! A menina é sisuda, e, quando ela chegar, entrega-a
à Cegonha para um grande banho moral. Não te preocupes. Anda
daí. Olha a tarde que vai lá fora. Aposto que a Cegonha anda
a gozá-la. Vem daí. E voltando-se de golpe: Afinal nem julgaste
o meu pensamento. Que tal? Jorge encostou-se à mesa e, brincando com
a espátula de marfim, enfezado, deixando cair lentamente as palavras,
disse: – Nada me irrita tanto como essa amizade de Sara. Tenho insistido com
ela para que vá, pouco a pouco, evitando tais relações…
mas qual! É pior. Não a contrario, bem sabes; faço-lhe
todas as vontades, basta, porém, que demonstre que não me agrada
isto ou aquilo para que ela insista caprichosamente. E se me oponho, são
maus modos, choros, não quer comer. Afinal parece que lhe devo merecer
alguma coisa.

– Mas vem cá, não te aflijas, isso não tem valor. Não
consintas mais, aí tens. É dizer francamente, na cara, quando
elas aqui tornarem com convites: Não! não! e não! És
pai, estás no teu direito. E passando-lhe um braço pelo ombro:
Mas vem cá e sê franco: Tu o que sentes é falta da menina,
e é natural: criaste-a. Mas, meu amigo, isso é bom em parte
para que te vás acostumando porque, afinal, ela não há
de ficar solteira toda a vida. E quando casar? Houve uma pausa. Jorge afastou-se
da mesa e, passando a mão pelo rosto, estacou no meio da sala, a olhar
a panóplia que rebrilhava à luz. Voltou-se por fim dizendo,
com resignação: – Ah! bem, quando casar!… Mas vê-la
em companhia de tal gente!? – Enfureceu-se: – E não sei que mais hei
de fazer para que essas senhoras compreendam que não as tolero: evito-as,
pouco lhes falo quando as encontro. Ainda hoje, viste? passaram aqui o dia
e eu deixei-me estar a ler. Não sei mais que hei de fazer. – E caminhando,
a sacudir os braços: – Não as aturo, fazem-me mal. No Catete,
enquanto lá estivemos, nunca as visitei e elas não me saíam
de casa perturbando-me o trabalho e a paz. Deves lembrar-te? Cesário
sentara-se num pliant e acompanhava com o olhar os passos do amigo. De repente,
frenético, estrincando os dedos das mãos, bramiu: – Pois, meu
caro, com tal gente nada de eufemismos: não compreendem? é dizer-lhes
a coisa à bruta. – Forcejou nos dois braços e, escorregando
pelo linho, levantou-se pachorrento: – É dizer-lhe francamente.

Inocêncio apareceu à porta e, antes que falasse, Jorge despediu-o
com um gesto: – Já vamos; e para Cesário: – É o que ainda
faço, palavra de honra. E o que elas fazem com essa senhora…

– Com a Cegonha? Ora! ela não dá por isso. É fria,
não tem nervos. O que ela quer é que a deixem em paz. Pensas
que se zanga? Pois sim!… E, travando-lhe do braço, berrou-lhe ao
ouvido: Não tem nervos! E noutro tom: Vamos jantar… Vamos, e pelo
jardim, porque a irlandesa deve andar por lá extasiada, e assim, depois
de nos deliciarmos com um pouco de sublime, vamos preparados para mirar-lhe
os ângulos da cara macerada.

À porta Cesário estacou subitamente, apontando para o jardim:
– Olha, que te dizia eu? Olha lá… não vês aquela sombra
esguia? Que te dizia eu? E, ganhando o jardim, o “filósofo”
levantou os braços para o céu límpido: Mas admira! admira,
homem! Há lá céus que se comparem a este? e luares…?
Qual Nápoles, qual carapuça! Céu é isto! E como
a irlandesa viesse perto, Cesário saudou-a: Good evening, Miss!…
E ela, de longe, com um risinho, correspondeu: Good evening! E tomando a frente,
subiu as escadas, rija, ereta como um autômato. Cesário, de braço
com o amigo, sussurrava: – Olha bem… Vai ali um admirável tipo étnico.
Dize se por esta mulher um Spencer não reconstituiria a raça
dessa grande mina de John Bull, como os naturalistas, com um osso, reconstroem
o arcabouço de uma das bestas colossais das eras pródigas, anteriores
ao banho universal. Mas olha bem. Ela vai ali para o jantar com a mesma serenidade
fria com que os homens rijos do seu país vão para os gelos do
pólo ou para os cálidos sertões da Núbia.

Miss chegara à varanda e, voltando-se, lançou os olhos ao
céu: – Esplêndida noite! Admirável, Miss! E, já
no alto, de mãos aos flancos, o olhar erguido: Lembra-se, Miss? As
lindas frases do idílio entre Lourenço e a filha do Judeu, no
Mercador de Veneza, quando, olhando o luar, entram a recordar noites de amores?
– Sim, sim…

E Mamoaselle risonha, inflando as bochechas, com uma voz máscula
e cadente, recitou: The moon shines bright: in such a night as this…

Mas Cesário interrompeu-a delirante: – Isso! isso! Grande memória,
Miss! É fenomenal! Estupenda memória! E, como em monólogo:
The moon shines bright… Exatamente. Mas é admirável! Jorge
recostara-se à balaustrada. Miss, de olhos altos, contemplava o luar
e Cesário, em pequenos passeios, balançando os braços,
repetia baixinho: The moon shines… Súbito, porém, parando
diante da porta da sala iluminada, lembrou: E o jantar? Estamos aqui em hipnose
e a sopa esfriando. Entrando, voltou-se exclamando: Mas que memória,
Miss! Mamoaselle sorria.

Folhagens e flores em vasos alegravam a mesa, arranjada caprichosamente
como para um festim, debaixo do grande lustre, o “alampadário”
como dizia o filósofo que, de vez em vez, em assomos de entusiasmo,
lamentava ter nascido em tempos tão vis, sem arte, sem bravura, sem
cavalheirismo e, gesticulando para o bronze, saudava-o como um representante
da arte pura, antes da invasão do mercantilismo na estética.

Jorge e Cesário colocaram-se ao lado de Mamoaselle que se sentara
à cabeceira.

O copeiro serviu a sopa e, à primeira colherada, Cesário formulou
a receita de uma futura alimentação reconstituinte e breve,
tendo por base a peptona. E explicou: – O homem é o animal por excelência,
o rei da fauna, culminando na escala zoológica. É o ser que
fala e ri, o único que se veste, e corta as unhas, os calos e o cabelo,
reconhece as dívidas e casa-se. É o depositário do espírito
de Deus, etc., etc. E esse ente superior, apesar de milênios de cultura,
vive ainda como o troglodita nutrindo-se de carniça… só porque
tem dentes, remanescentes da brutalidade primitiva. Mas, que diabo! assim
como já não nos servimos das unhas nas lutas, tratando-as como
enfeites dos dedos, que o manicuro enforma e pule, por que não havemos
de fazer o mesmo aos dentes, conservando-os apenas como ornamentos? Há
por aí quem os tenha encastoados em ouro, com brilhantes… O homem,
a princípio, caçou para comer, como o leão e o urso,
e espostejava vorazmente a presa, devorando-lhe os tassalhos crus. Com o fogo
inventou o assado e toda a complicada culinária, causa da dispepsia.
Hoje, começa a preocupar-se com a alimentação sintética,
podendo trazer no bolso uma caixa de pílulas para nutrição
de um ano e um frasco de essência fluida de uva para emborrachar-se
às gotas.

Miss ouvia de olhos baixos, enlevada nas palavras sonoras do sábio
suspendendo, às vezes, a colherada que levava à boca. Jorge
interveio: – Cesário, vê se concilias a palestra com a sopa,
que está esfriando.

O “filósofo” baixou a cabeça e, durante um momento,
sorveu gorgulhantemente. Depois, passando o guardanapo pelas barbas, referiu-se
a Sarita: – Se ela aqui estivesse já nos tínhamos travado em
alguma discussão. Faz falta.

Mamoaselle correu com os olhos rapidamente de um a outro. Jorge tamborilava
com os dedos na borda da mesa, distraído. Notando que as suas palavras
caíam na indiferença do amigo, como folhas secas num chão
de areia, o “filósofo” calou-se, mas no momento de lhe servirem
o peixe, resmungou, amuado: – E dizer que isto é irmão da Afrodite.

Partiu o pão, trincou uma lasca e dirigiu-se a Mamoaselle.

– E eu posso falar, porque tenho um estômago de ferro. Como tutu de
feijão com lingüiça à meia-noite, deito-me e durmo
como um abade. Não sou homem de resguardos aqui como este senhor, que
anda sempre com bicarbonatos e elixires eupépticos e está aí
que é uma lástima. Tudo isso, esses enjôos pessimistas,
essa melancolia, essas rugas, esses cabelos brancos, precoces, tudo isso é
estômago.

Jorge contestou: – Enganas-te. Não tenho tão mau estômago
assim. O que isto é é obra do tempo e do que ele me tem trazido.
São quarenta e seis anos puxados.

Mamoaselle ponderou: – Não é muito, senhór doctór.
Na Europa um homem de quarenta e seis anos é moço. E o senhor
doctór tem-se em conta de velho? – Se tenho…! Cesário interveio:
– Pois não vê? É a própria decrepitude, a anciania.
É já um antepassado. Estás aí a pedir bordão
e curatela. Velho…

De ímpeto aprumou-se carrancudo, repeliu o talher e levantando as
mãos ambas à cabeça exclamou: – E eu? E eu então?
Eu que nem mais um fio de cabelo tenho na cabeça, porque as farripas
que me restam refugiaram-se na zona do pescoço, como vês? E puxou
as mechas com fúria. E, todavia, não tenho um cabelo branco,
nem um fio. Voltou-se arrebatadamente para Mamoaselle: Conheci um rapaz, aliás
um atleta, que, aos vinte anos, tinha a cabeça com um capulho de algodão.
Isso de cabelos brancos não quer dizer nada: é questão
de couro, como a vegetação depende em muito do terreno. A velhice
não está nos cabelos, mas no interior. Tu, por exemplo, Jorge:
tens todas as faculdades íntegras, tens estro, entusiasmo, ideal, és
são. Digeres bem, dormes oito horas a fio, pensas com idéias
próprias, que mais? Velhos caducos, monstros cacoquimos são
esses cretinos que por aí andam como trambolhos entulhando a vida com
ignorância e vícios. Esses sim! Chama a um de tais, pede-lhe
uma noção. Responderá com ornejo e coice. Velhice…
velhice…! É como a tal história das terras cansadas. A Europa
dá pão e vinha, linho e azeite desde os primeiros dias do mundo
já não falo da Ásia veneranda e não há
lá terras gastas. E aqui, com uns séculos de café, açúcar
e mandioca já os lavradores queixam-se de exaustação
do solo e pedem florestas virgens para o machado e o fogo. Preguiça
é que é! Aqui estou eu, à beira dos cinqüenta…
Pois tenho uma memória de anjo, menos para datas. Para datas sou uma
zebra! O copeiro entrava com uma terrina quando a campainha do telefone retiniu
vivamente.

– Deixa isso aí. Vai atender, disse-lhe Jorge. E os três imobilizaram-se,
à escuta.

Pelas afirmativas do criado: “Sim senhora. Estão jantando. Sim,
senhora. Já foi”, Mamoaselle concluiu: – É Miss.

Jorge pôs a cabeça a fito e, mal o copeiro reapareceu risonho,
perguntou: – Quem é? – É D. Sara que está pedindo a roupa.

– Já lha mandaram? – Já sim, senhor. O jardineiro saiu daqui
ind’agorinha mesmo.

O jantar foi rápido e só Cesário falou sobre a vanidade
da ciência. Mamoaselle, recolhida, respondeu apenas a uma pergunta do
“filósofo” à questão da Irlanda, aplaudindo
Gladstone, “o apóstolo venerado da liberdade de Erin”.

O café foi servido na varanda, ao luar. Cesário passeava de
um lado para outro, entourido. Jorge, em um dos bancos, fumava, d’olhos
no céu. Miss deixara-se ficar na sala, embalando-se em uma cadeira,
divertindo-se com as travessuras de Diana que saltava com uma bola de papel,
abocanhando-a, correndo assanhada e trêfega, a rosnar. Bá, arrastando
os passos, fechava os armários, discutindo com os criados e, no silêncio
diáfano do luar, vibravam silvos de locomotivas.

– Ora aí tens a vida disse Cesário. O dia de hoje, se houvesse
ponto na eternidade, devia ser marcado com a nota de falta para nós
ambos, porque afinal não aproveitamos um só minuto em obra de
espírito. Um dia que o pio Antonino consideraria perdido. Primeiro
a beleza radiante da manhã, que inutilizou todas as minhas forças
cerebrais, porque eu sou incapaz de conceber diante do maravilhoso extasio-me
e o meu êxtase é assim como uma beatitude besta. Linda manhã!
E, por uma reminiscência estranha, caminhando de mãos nos bolsos,
recitou baixinho: The moon shines bright… Logo, porém, abandonando
o poeta, repetiu enlevado: Linda manhã! Depois a estrondosa invasão
das mulheres. E, escarafunchado nervosamente a orelha, perguntou frenético:
Ó Jorge, não te parece que o mundo seria um paraíso se
Deus, inspirado pelo diabo, não houvesse feito a mulher? Já
sei que vens com a eterna cantiga da geração. Mas, que diabo!
as árvores são todas de um sexo e, para feminino, aí
está a terra venerável, perenemente fecunda. Nós faríamos
como as árvores. À medida que fôssemos envelhecendo, em
vez dessa hera ignóbil dos cabelos brancos, as nossas cabeças
cobrir-se-iam de sementes, que o sol fecundaria como fecunda as outras do
honesto mundo vegetal. No outono sacudiríamos a guedelha e a Terra
encarregar-se-ia de criar os epígonos que, na primavera, sairiam das
moitas dizendo “Papai! Mamãe!” e beijando a poeira maternal,
como fez o romano.

Seríamos senhores absolutos do planeta, habitaríamos ainda
o Éden, sem preocupações de senhorio e venda, alfaiate
e botica, cercados de flores sem espinhos e de animais sem ferocidade e o
chão sagrado não se teria tingido clamorosamente com o sangue
do fratricídio. Não haveria Vaidade e a Discórdia, mãe
das guerras, não acharia onde pousar. Seria a delícia, a bem-aveturança.
Todo o mal da Vida é de origem feminina. Está aí o testemunho
da História. A tal criação de Eva foi uma espiga e tanto…!
Que diabo! houve uma ilha só de mulheres: Lemos, e resistiu; por que
não há de ser o mundo só dos homens? Se o Criador não
fosse tão orgulhoso emendaria a sua obra eliminando Eva, não
te parece? Jorge falou baixinho como se não quisesse interromper o
silêncio da noite: – Sim… mas não haveria a bondade. O homem
é egoísta, essencialmente egoísta, sufoca todos os sentimentos
em favor do seu “eu”. É a mulher quem o faz amoroso, meigo,
resignado, emprestando-lhe ternura, piedade e crença.

– Egoísta! Egoísta, o homem! bradou Cesário. Em que
é que somos egoístas, nós que desistimos de tudo em favor
da mulher? Em que é que somos egoístas? – Em tudo, Cesário
afirmou Jorge pachorrentamente.

– Pelo amor de Deus!… E que é o ciúme na mulher senão
a explosão do egoísmo da carne? E o amor materno, que é
senão um egoísmo avaro, a manutenção eterna da
posse da criatura que a mulher prende, a princípio, ao colo, depois
nos braços, mais tarde retém com afagos quando percebe o despontar
do instinto de independência e, finalmente e é a sogra! roncou
soturno, a fúria trágica quando descobre que uma força
superior lhe arrebata o escravo do coração? Que é a bênção
senão uma prova de eterna submissão do filho? Egoísta,
o homem? em quê? História! Jorge ergueu-se com lentidão
e, debruçando-se à balaustrada, concluiu: – O teu caso já
foi descrito por Lafontaine. E recitou baixinho: Certain renard gascon d’autres
disent normand, Mourant presque de faim, vit au haut d’un treille Des
raisins…

Mas o filósofo atalhou-o esbravejando: – Estás enganado! Eu
é que não tenho querido. Conheço o perigo e evito-o.
Estás enganado. Apesar de toda a minha austeridade, já achei
uma dama que solicitou a minha presença em certo sítio misterioso,
lá para as bandas da Tijuca, perdida por mim, por me ter ouvido, uma
noite, em casa não sei de quem, discutir a Revolução
Francesa com um bacharel analfabeto.

– E então?! – Então? Eu não freqüento caramanchéis,
à noite. Prefiro a robustez dos meus pulmões a todos os beijos
das Circes que por aí andam. Demais, achei desaforada a proposta. A
mulher não queria o homem, não se apaixonara pelo homem, senão
pelas palavras do homem. Assim, pois, em vez de levar para lá o meu
corpo, mandei-lhe de presente uma história de França, onde ela
podia achar, e com a fulguração do estilo, tudo quando eu repetira
combatendo o jurista que cortejava uma dama à custa dos heróis
da campanha santa.

Não fui e a senhora, para os que têm olhos libidinosos, passa
por ser uma das maravilhas do grande mundo. Não sou um despeitado,
como pensas sou um homem de programa. E também não aborreço
a mulher como criatura, não! Um corpo de mulher bem feito e esbelto
encanta, não há dúvida, mas deixem-na ficar como ornato,
levem toda essa graça divina para um pedestal e eu serei o primeiro
entre os seus admiradores. Como esposa é que não, isso não,
porque com o seu espírito fútil vai, pouco a pouco, eliminando
a energia do homem, conseguindo, as mais das vezes, torná-lo escravo
dos seus nervos e dos seus sorrisos. Esposa é que não! Olha
para a história, meu amigo, e verás a mulher à frente
de todas as calamidades. Acordes vieram interromper a facúndia do filósofo:
Que é isso, Jorge? – Chopin.

– É a Cegonha. Mulher horrenda! mas grande artista. Grande artista!
Fossem todas como ela: só espírito. Porque afinal essa pobre
Miss não tem outra coisa senão espírito, não te
parece? Essa, garanto eu, não pecará jamais pela carne por falta
de matéria-prima. Horrenda, mas grande espírito, não
há dúvida. E o nocturno sentimental soava docemente no silêncio
do luar. Súbito Cesário levantou-se: – Ficas aí? Eu desço,
vou traçar o plano do livro. Estou em veia de trabalho. Vens? – Não,
fico ainda. Está fresco aqui.

– Então até logo. E recitando: The moon shines bright… foi-se
lentamente pela escada.

(Inverno em flor, capítulo V, in Obra seleta, vol. I, pp. 314-325.)

O Turbilhão

Revistas as últimas provas do conto de Aurélio Mendes o Anacharsis
dos “Idílios pagãos”, Paulo Jove arredou a cadeira
e pôs-se de pé, desabafando. Doía-lhe a espinha e, como
havia fumado quase todo o maço de cigarros, tinha a boca amarga e áspera,
os olhos ardidos, não só do fumo e da claridade intensíssima
das lâmpadas elétricas, como da fixidez atenta em que os mantinha
desde as sete e meia até àquela hora alta da noite.

Curvou-se de mãos nas ilhargas, d’ímpeto esticou os braços,
arrojou-os à frente com um ahn! surdo de atleta que exercita os músculos
entorpecidos e desabou-os depois, com força, sacudindo-se todo, virando,
revirando a cabeça, como em ânsia angustiosa. Levantou-os, de
novo, acima da cabeça, as mãos juntas, estrincando os dedos
enclavinhados e bocejou, espichando-se nas pontas dos pés caindo depois,
rijamente, sobre os tacões.

Já as primeiras páginas haviam descido para a clichagem. Embaixo,
martelavam pancadas crebas, como de matracas. A caldeira reboava num retroar
soturno de caverna que repercutisse, sem descontinuar, o gorgorejo possante
de águas encachoeiradas.

Na sala da revisão, estreita e abafada, mal comportando as quatro
mesas de serviço, os revisores repousavam; apenas o Brites, esgalgado
e míope, lia o antigo de fundo, todo em períodos lamentosos
augurando fome e lutas; e o Amaro, conferente, acusando a pontuação
de quando em quando batia na mesa pancadas secas com um lápis ou dizia
claramente uma palavra, repetindo-a devagar, sílaba a sílaba,
enquanto o Brites, debruçado sobre a prova, fazia a emenda resmungando.

O Malheiros, em mangas de camisa, suado, afogueado, derreava-se na cadeira,
com a cabeça no respaldo, fumando, de olhos distraidamente cravados
no teto, de onde escorriam os fios oscilantes das lâmpadas elétricas.
O Bruno, abaçanado, raquítico, nervoso, sempre a calcar sobre
a mola flácida do pince-nez, que lhe escorregava do nariz tressuante,
todo pendido para o Freire, com uma rosa murcha à botoeira, silvava
endecassílabos, preconizando a grande Arte do Mendonça, o inimitável
cinzelador do “Fauno Trêmulo”.

Paulo enxugou a fronte e, tirando de um prego o colete e o paletó,
lentamente, vergado de fadiga, a bocejar, vestiu-os, com os olhos no entusiasta
penegirista do Decadismo, que falava precipitado com desabalados gestos, sem
dar pelo estremunho do Freire que molemente com uma ponta de cigarro ao canto
da boca, sacudia a cabeça em afirmações condescendentes.

Na grande sala, ao lado, vozes morosas apregoavam letras e números.

A colmeia fervilhava. Os compositores – uns de pé, em mangas de camisa;
outros em altos bancos, em quatro filas paralelas, estendidas ao longo da
sala, cabisbaixos, à luz branca e viva das lâmpadas, precipitavam
os dedos nos caixotins, enchendo os componedores com um trepidar metálico
de gotas d’água em zinco.

O Mário, d’óculos, apressado, ia de um a outro, examinando:
inclinava-se sussurrando, como se comunicasse segredos, e havia, por vezes,
um zumbido de vozes surdas, interrompido pela tosse cavernosa de um rapaz
bronzeado, esguio e ossudo que, de instante a instante, ia à janela
escarrar e lá ficava, curvado, tossindo aos arrancos, cavadamente.
como se tivesse o peito devastado e oco.

O Sampaio, diante do mármore, a mascar o charuto, ia desligando os
paquets para a paginação, enquanto o Lúcio, retranca,
besuntado de tinta, mangas arregaçadas, tirava as últimas provas
que os revisores esperavam.

Subitamente um bufo, como da expansão de uma válcula, subiu
das oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente,
com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas
moveram-se, abalando o soalho em trepidações contínuas.

O Malheiros, dobrando-se, tomou entre as mãos enlaçadas um
dos joelhos e suspirou:

“Não podia ouvir aquilo sem saudade: lembrava-se da sua viagem
e pensava no Norte. Parecia-lhe que se achava a bordo, no convés, estirado
num banco, ao clarão da lua, ouvindo as fontes pulsações
da máquina que impelia o navio pelo mar luminoso.” E, sonhando,
deixava-se ficar muito quieto, olhos semicerrados, viajando imaginariamente
para o seu torrão longínquo: praias longas, ondulando em dunas
alvas, praias que o mar bravio lambe e assoalha de espumas, donde os jangadeiros,
cantando, arrastam as jangadas que, de velas pandas, aos galões, partem,
montando a vaga, perdendo-se nos horizontes azuis.

O Bruno, esse detestava a oficina: o “antro do Dragão”.
O prelo era: o Monstro devorador do gênio; e, sempre que ouvia a crepitação
das correias nas polias ou o rolar dos cilindros das marinônis, murmurava,
com ódio e nojo: “Lá está a besta mastigando!”

Nessa noite, mais irritado, irrompeu furioso:

– Eu podia estar na redação, ganhando mais e com outras regalias:
escrevo com sintaxe e com arte, tenho a minha porção de ciência
e de literatura, coisas que não possuem muitos dos que se inculcam,
com vaidade, jornalistas; mas não quero: prefiro ficar por aqui, em
nível inferior, conservando a integridade perfeita do meu espírito;
ao menos não se dirá que cevo o “Monstro” que lá
está experimentando as mandíbulas de ferro em folhas velhas,
babando-as de saliva negra, como a jibóia lubrifica a presa antes de
a engolir. Faz apetite à espera da ração, o estúpido.

“Eu sei que o escrito é um alimento indispensável ao espírito
das gentes: entendo, porém, que os intelectuais devem apenas preparar
o néctar divino e não essa mixórdia em que entra tudo
– desde o espargo até a couve tronchuda.

“Vejam vocês: um artista como o Penante faz uma bela página
de prosa ática – períodos polidos a capricho, como só
ele os sabe polir. Compõe o Mendonça, com a magnificência
do seu talento, um poemeto de rendilhados versos bizantinos. Escreve o Rocha
um daqueles antigos de original beleza, nos quais a gente encontra a Musa
cantando, desolada. no serralho da Política, como a Cativa, de Hugo,
na alcáçova do Turco, e vêm esses primores aqui para cima,
na mesma cesta em que sobem as ignomínias das penas anônimas,
como as rosas que chegam do mercado num samburá entre repolhos e nabos.

“Aqui misturam-se com os artigos pífios, cuja sintaxe temos de
arranjar, raspando-lhes os solecismos – porque, meus amigos, a verdade é
esta: nós somos como os ajudantes de cozinha, que lavam as ervas das
hortas tirando-lhes a terra e as lesmas. O mesmo rolo que passou sobre as
imbecilidades do a pedido, passa por eles; o mesmo componedor, onde se acomodaram
aqueles alexandrinos de ouro e aqueles períodos lapidares, acolhe a
mofina salaz e covarde e o atoucinhado anúncio, a ignomínia
da charada e o sórdido folhetim desconchavado, sem nexo, sem forma,
e, depois, lá vai tudo, como um guisado. ser triturado, digerido e
lançado, por fim, na página, alfuja onde fermenta a estrumeira
da civilização.

“Bolas! Arte é arte! A palavra é uma centelha, é
preciso que tenha uma trípode. Prefiro ser revisor. Não tenho
cérebro para regalo da Besta que se contenta com a panelada farta e
grossa. O meu cérebro, se algum dia fornecer alimento ao animal, dará
o néctar ideal, sem ingredientes pulhas da horta indígena, como
a mofina, ou da salsicharia universal, como os telegramas. Isso é a
Besta máxima da Vulgaridade. Lá está mastigando cérebros:
o cérebro suntuoso do Mendonça e o miolo infame do taverneiro,
que anuncia malas de carne-seca ou sessões na sua Beneficente. Que
te saiba, bruto! essa polenta ignóbil.”

Os companheiros riam vendo o Bruno, de mãos atafulhadas nos bolsos,
indo e vindo no estreito espaço que havia entre as mesas da revisão,
a cuspilhar, resmungando contra aquela “moenda infame”.

O Malheiros gostava de provocá-lo, sublinhando-lhe os disparates:

– Ó Bruno, o monstro come cérebros e faz estrumeira ou prepara
o guisado para o público? Vê lá em que ficas.

– Fico em afirmar que é o realejo da palavra! – concluiu, indignado,
o puritano da Arte.

Riram. E o Bruno foi resmungar, debruçado à balaustrada da
escada que descia para a oficina.

Paulo conservava-se indiferente. Debalde o Bruno bramia e gesticulava, ele
não estava de veia alegre: sentia-se mole, exausto, com uma dorzinha
de cabeça. Andara todo o dia, rua abaixo, rua acima com receitas e
medicamentos, porque a moléstia da mãe agravara-se com a umidade
daqueles dias, prendendo-a à cama. Não fora à Escola,
estava abatido e com um vazio no estômago como se estivesse em jejum.

Tomou o chapéu e o guarda-chuva a um canto, apanhou um embrulhinho
na mesa e, secamente, despediu-se dos companheiros atirando uma leve pancada
ao ombro do Brites, que respungou, sem levantar a cabeça: “Boa
noite!” O Sampaio, vendo-o sair, perguntou com o charuto nos dentes:

– Então, já?

– É verdade. – E foi descendo lentamente.

No primeiro andar, numa sala escura dos fundos, o pessoal do correio cortava
as listas da expedição e o Moraes, plantonista, gordo, pletórico,
sempre empanzinado, que tinha fama nos clubes de ser um garfo respeitável,
para não ficar só na redação, lá estava
encostado à comprida mesa, roncando pilhérias com ânsias
de asma e muita gosma.

Descendo mais alguns degraus, Paulo deteve-se, como sempre fazia para olhar
um instante, através das grades, a oficina toda tomada pelos complicados
maquinismos – desde as marinônis soberbas, juntas, como dois animais
de raça, ocupando uma ala à parte, até os pequenos prelos
de mão que uma criança movia.

O motor, ao fundo, com a chaminé esgalgada como um pescoço
de girafa, furava o teto atravessado de longos eixos sobre os quais giravam
polias movidas pelas correias, que eram como os nervos daquele possante organismo.

No meio da sala, ao rés-do-chão, dois cilindros brancos rodavam
rapidamente ligados por uma larga faixa. Sobre um deles caía um estilicídio
perene: eram os rolos de papel que, depois de umedecidos, deviam ser levados
às marinônis para que, impressos e cortados, saíssem aos
milheiros. com a primeira luz da madrugada, propagando sucessos e desastres.

Homens iam e vinham apressados, outros cercavam o mármore, onde jazia
a página e, com pedacinhos de papelão, iam acamando certos tipos
para que ressaltassem na estereotipia; outros levavam grandes folhas de estanho,
reluzentes como prata e mergulhavam-nas nos fundidores, onde se derretiam
como se fossem de neve e, com o volteio daquelas rodas céleres e as
vozes e os passos dos que se moviam e o chiar das correias que estralejavam,
de quando em quando, um constante e estranho rumor de vida agitava a oficina
onde as lâmpadas suspensas brilhavam como grossas gotas de luz.

– Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava
para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes.
De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou
com elas em volta do “Monstro” vendo, revendo, curvado, de cócoras.
Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à
alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas
folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas,
como as primeiras vasas anunciadoras do parto.

Paulo, satisfeita a curiosidade, desceu ouvindo sempre o estrondoso rumor
do trabalho. Era o “Monstro” do Bruno, pior que o touro brônzeo
de Fálaris, porque do seu bojo saíam, não os gemidos
de uma só vítima, mas o clamor de toda a humanidade, a resenha
da vida universal, cuja percentagem de angústias sobreleva-se avassaladoramente
à parte mínima de prazer. E, olhando, parecia-lhe ouvir o arquejo
doloroso do mundo, a zoada ansiosa do enxame humano atroando, subindo daquelas
finas lâminas flexíveis, como a voz cativa irrompe quando a despertam
nos tubos sensíveis do fonógrafo. Desceu.

No corredor, encostado à parede, com as pernas estiradas, um homem
dormia, a cabeça pendida sobre um dos ombros, os pés nus, imundos,
o peito da camisa aberto, uma bolsa a tiracolo. A porta, em torno dum negro
que vendia café, às canecas, um grupo chalrava alegremente,
na treva.

Paulo subiu a Rua do Ouvidor obscura e calada.

Um vento frio soprava. O céu negro, sem estrelas, ameaçava
aguaceiro e, como chovera copiosamente à tarde, com ventania e trovões,
poças d’água refletiam a luz dos combustores. Um cão
magro percorria a sarjeta farejando.

Na esquina da Rua dos Ourives estacionava a patrulha. Os soldados, emblocados
nos capotes, fumavam pachorrentamente, e os cavalos muito juntos, a cabeça
baixa, pareciam dormir fitando, de vez em vez, as orelhas agudas como se perscrutassem
rumores no vento.

Uma luzinha tíbia, como de lamparina, atraiu para uma casa os olhares
do retardatário. As portas eram fortes e negras, como de ferro e, por
um postigo engradado, via-se o interior de uma ourivesaria com os mostradores
atopetados de jóias de preço e de baixelas que reluziam.

Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já
longe, romperam em gargalhada estrondosa.

Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma exclamação e deitou
a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as cortinas descidas.
Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor: “Que ia recolher.”
Morando na Rua Senador Pompeu tanto lhe servia aquele como outro. Sentou-se,
acendeu um cigarro e, de pernas cruzadas, imaginando fortunas e aventuras,
foi-se deixando levar, como em sonho, sem ver, sem ouvir, alheio ao real que
o cercava. Repentinamente, porém, lembrou-se da mãe. Que seria
dele se a boa velha morresse?

Achacada, sempre a gemer, arrastando a perna túmida e pesada, era
ela, ainda assim, quem lhe prestava auxílios, cuidando da casa, regulando
as despesas, porque a irmã, sempre a pensar em enfeites, fazendo e
desfazendo penteados ao espelho, polindo as unhas, passava os dias na cadeira
de balanço, a ler romances e, à tarde, encharcada de essências,
com muito pó-de-arroz, debruçava-se à janela, para ver
os trens e receber bilhetinhos que os rapazes metiam por entre as rexas da
persiana.

Era bonita e esbelta, de um moreno quente de crioula, tez fina e rosada,
olhos negros, boca pequena, sensual, de lábios carnudos e úmidos.
Os cabelos, quando os desprendia, passavam-lhe da cinta em ondas negras e
reluzentes. Tinha uma voz lânguida, como ressentida de tristeza; falava
em tom dolente de queixa e o seu olhar quebrantado, sonolento, amortecia-se
em êxtases sob as longas pestanas curvas.

Paulo dominava-a com aspereza, exprobrando-lhe a vida desmazelada e, quando
a velha, na intimidade, referia-lhe algum pequenino escândalo de Violante,
rompia, assomado, ameaçando pregar a janela, atirar ao lixo todas aquelas
caixas, todos aqueles vidros que entulhavam o toucador. Mas a irmã
tinha crises – rolava pela casa, aos gritos, rangendo os dentes, rasgando
a roupa, escabujando. E a boa velha, lamentando-se, corria os cantos, procurando
remédios e, de joelhos, com a cabeça da filha ao colo, beijando-a,
chamava-a, pedindo ao outro que a não tratasse com tanta aspereza,
que tivesse pena dela, e instava para que, com afagos, procurasse chamá-la
à razão. Ele obedecia contrariado. E Violante, amuada e mais
linda depois da excitação nervosa, com os olhos mais brilhantes
e a cor das faces mais viva, ia trancar-se no quarto, resmungando ameaças.

Voluntariosa, criada aos joelhos do pai, que a tratava de “princesa”,
anunciando-lhe sempre um noivo formoso e rico, que a havia de cobrir de sedas
e carregá-la de jóias, foi acostumando o espírito com
estas idéias de nobreza e fausto; de sorte que, quando lhe morreu o
pai, já mocinha, sentiu-se como deserdada: foi como se, com ele, houvesse
perdido uma fortuna que já possuía e um noivo que já
a visitava em sonhos, formoso como os príncipes dos romances que ela
devorava, revendo-se, com enlevo, em todas as heroínas.

Com a monte do pai, major de cavalaria, condecorado por feitos no Paraguai,
todo o peso da casa recaiu sobre Paulo que, então, concluía
os preparatórios.

Abandonando a idéia de bacharelar-se no Ginásio, matriculou-se
na Faculdade de Medicina, conseguindo um lugar na revisão do Equador
e algumas lições particulares, com o que fazia uma soma regular
que, reunida ao meio-soldo que a mãe recebia, dava para irem vivendo,
se não com luxo, ao menos com decência e fartura.

Posto que não achasse gravidade no estado da mãe, andava apreensivo,
receoso, imaginando complicações e, volta e meia, lá
ia um médico à casa; eram, às vezes, colegas. E os frascos
de remédios enchiam prateleiras.

Com aqueles dias úmidos, Dona Júlia sofria atrozmente: mal
podia mover-se na casa; sempre acaçapada nas cadeiras, as mãos
espalmadas nas coxas, a gemer, dando ordens à cozinheira, que era a
criada única que tinham. Ainda assim, se as dores abrandavam, lá
ia ela para a vassoura, varrer, limpar os móveis ou arranjar a sala,
porque não podia ver um fósforo no chão, nem um átomo
de poeira nos seus velhos trastes do tempo do falecido. E, se a moléstia
a prendia à cama, lá mesmo, com a perna esticada e untada, com
o cesto de costura ao colo, ia cerzindo roupas, remendando meias ou reformando,
pacientemente, os casacos da filha.

Profundamente religiosa, tinha no seu quanto, defronte da cama, sobre a cômoda,
o oratório ante o qual ardia, perene, a lamparina de azeite iluminando
registros milagrosos e duas imagens: a da Conceição e a do Senhor
dos Passas.

Paulo ia pensando na boa velha e, quando o bonde passava pela Estrada de
Ferro, saltou, subindo a Rua do Dr. João Ricardo, deserta àquela
hora da noite. Grossas gotas de chuva bateram nas pedras, uma lufada de vento
passou e, ao clarão de um relâmpago, o céu apareceu negro,
acastelado de nuvens. Levantou a gola do casaco e, com o guarda-chuva à
frente, como um escudo, a cabeça encolhida, partiu, rompendo a ventania.

Capítulo II

Foi com surpresa pressaga que, ao avistar a casa, percebeu luzes por entre
as persianas, acusando desusada vigília e logo a idéia de um
acidente grave sobressaltou-lhe o espírito. Atravessou a rua a correr
e bateu açodadamente à porta, aflito, ouvindo soluços
e exclamações desesperadas que vinham do fundo da casa. A cozinheira
apareceu, embrulhada num xale, com um lenço à cabeça.
Ele entrou d’arremesso:

– Que é, Felícia? Que tem mamãe?

– Foi Nhá Violante que desapareceu, exclamou lamentosamente a negra.

Paulo ficou a olhar, num espanto, e, sem tirar o chapéu, avançou
pelo corredor, direito à sala de jantar, onde Dona Júlia, com
a cabeça entre os braços, dobrada sobre a mesa, soluçava.

– Que é, mamãe? Que foi? Então Violante desapareceu?
Como? Quando?

Ouvindo-lhe a voz, a velha senhora levantou o rosto demudado e, pondo nele
os olhos rasos de água, arrancou do peito um suspiro, pronunciando
o nome da filha, com uma expressão de imenso desespero. Paulo compreendeu
imediatamente o horror do crime que haviam levado a efeito na sua ausência.
Teve um movimento impetuoso, lançando os olhos ao corredor, como se
quisesse partir no mesmo instante, voltar à noite fria, para seguir
no encalço da fugitiva. Mas Dona Júlia, abalada, rompendo em
pranto convulso, lançou-lhe as mãos aos ombros, encostando-lhe
ao peito a cabeça, cujos cabelos brancos, desfeitos, esvoaçavam
e, numa queixa dorida, entrecortada, pôs-se a dizer: “Que nunca
esperara aquilo de uma menina que ela criara com tantos sacrifícios,
privando-se de tudo para que nada lhe faltasse, trabalhando como uma moura
para poder satisfazer os seus caprichos de moça. Ah! nunca esperara
tamanha ingratidão!”

– Mas como foi? perguntou Paulo, sentando-se numa cadeira próxima.

– Não sei, meu filho, não sei. Eu estava deitada, passara pelo
sono, um pouco aliviada, depois do curativo. Acordei de repente com uma dor
muito viva, umas alfinetadas que me subiam até o peito, como se me
estivessem picando. Quis levantar-me para ir buscar a pomada, que estava em
cima da cômoda, não pude: as dores eram muitas, tolhiam-me. Foi,
então, que cheguei à parede e bati, como sempre fazia. Bati,
bati, chamei, e tão alto, que Felícia ouviu na cozinha, e veio
correndo, coitada! saber se eu queria alguma coisa.

“Ah! meu filho! Eu estava adivinhando, o coração dizia-me
que havia acontecido alguma coisa. Antes de cuidar de mim, mandei Felícia
ao quarto de Violante. Não sei como não morri quando a rapariga
voltou espantada, dizendo que tua irmã não estava lá.
Não sei como não morri. Foi Deus que não quis. Fiquei
sufocada, com um bolo no peito, como se o meu coração fosse
rebentar, e, nem sei como, saltei da cama e fui ao quarto dela. Ah! Paulo,
meu filho, nunca pensei que aquela menina fosse capaz de uma coisa assim.”

O pranto abalou-a de novo, um pranto humilde, infeliz, cortado de gemidos.
A negra, então, que se conservava à distância, calada,
ousou continuar, e Paulo boquiaberto, esgazeado, levantou a cabeça
e fitou nela os olhos.

– Ela nem se deitou: a cama está assim mesmo.

– E com quem foi?

– Quem sabe lá! – gemeu Dona Júlia – algum malvado.

– Eu bem dizia a mamãe que não desse tanta liberdade à
Violante.

– Que havia eu de fazer? Ela é moça, todas as moças
namoram. Nunca me passou pela cabeça que minha filha fosse capaz de
dar um passo como esse. E agora, meu Deus! que há de ser dela?

Paulo, sem responder, ergueu-se, pôs-se a procurar alguma coisa pelos
cantos, sobre os móveis. “Meu chapéu…!?”

A negra adiantou-se:

– Vosmecê está com ele na cabeça, nhonhô.

Com o vento da noite, que entrava d’esfuzio pelo corredor, a chama do gás
zumbia, ruflava dobrando-se como a de um maçarico; bátegas de
água ruflavam nos vidros. Paulo dobrou as calças e, surdamente,
pôs-se a rilhar os dentes, curvado, com o pé sobre uma cadeira.
Dona Júlia, ouvindo o rumor forte da chuva, que desabara, perguntou
lacrimosa:

– Queres sair com este tempo?

– Então?

– Onde vais?

– Vou à polícia. Mas… mamãe não desconfia de
alguém?

– Eu? eu, não; eu vivia sempre metida aqui dentro.

A negra resmungou: “Que Nhá Violante conversava de noite com
um moço da vizinhança, um que costumava passear de velocípede.
As vezes, um soldado parava defronte, junto do muro da Estrada, e ficava até
tarde batendo a calçada”.

– Um soldado?

– Ele tem farda, explicou a negra.

– E tu és capaz de reconhecê-lo, se o vires?

A negra fez um momo:

– Hum… eu sou, como não? mas eu tenho muito medo dessa gente, nhonhô.
Ele é alto, tem bigode preto. Mas nhonhô não me chame,
sou uma pobre velha, ando por aí de noite sozinha. Tenho muito medo
dessa gente.

– Mas é preciso, Felícia.

– Mas não foi ele não, nhonhô; vosmecê pode ficar
certo de que não foi ele; Nhá Violante não gostava dele
– cuspia, batia com a janela, fazia toda a sorte de desfeitas quando ele se
punha a rondar a casa. Não foi ele não, nhonhô. Quem foi
não é daqui, fique vosmecê certo. Numa rua passa tanta
gente! Quem foi não é daqui, vosmecê há de ver.

Paulo encarava-a desconfiado, como se a suspeitasse de conivência no
caso. Por fim, resolvendo-se, caminhou alguns passos, mas, voltando-se, pediu
à mãe que se recolhesse, que se fosse deitar: Estava doente,
não devia ficar ali fora exposta ao frio – podia ter alguma coisa séria.
A polícia havia de descobrir o raptor. E insistiu: Que ele bem dizia:
tantas vontades haviam de dar naquilo. Violante fazia o que entendia e, se
ele falava, ai! porque era impertinente, grosseiro e mais isto e mais aquilo.
Ali estava o resultado. Pensou rapidamente no escândalo – nos comentários
da vizinhança, nos risinhos dos colegas, nas alusões dos companheiros
de trabalho.

– Vai, então, meu filho: tem paciência. Vai ver se ainda podes
salvar aquela infeliz. E que Deus te acompanhe. Nunca pensei que Violante
fosse capaz de fazer isto comigo. Nunca pensei!

– Bem, mamãe. a senhora não consegue nada com lágrimas;
vá deitar-se. Eu vou à polícia.

E baixinho, à negra, com voz trêmula, recomendou:

– Não a deixes, Felícia; tem paciência. Ela está
doente, pode ter alguma coisa séria com este choque.

– Vosmecê pode ir descansado.

– Até já, mamãe: e vá deitar-se.

Dona Júlia balançou a cabeça desanimadamente, e Paulo
enfiou pelo corredor, por onde o vento zunia. Na sala deteve-se, d’olhos altos,
trincando os lábios, e, como a negra lembrasse o sobretudo, voltou-se
repentinamente:

– Hem?

– Por que vosmecê não leva o sobretudo? Está chovendo
tanto.

– Não: não é preciso.

Escancarou a porta e mergulhou na escuridão tempestuosa, com o guarda-chuva
diante do peito, chapinhando em poças, sem ver, sem ouvir, atordoado
e com os olhos cheios de lágrimas que lhe rolavam pela face.

Diante da Central, obscura e deserta, elevando os olhos neblinados, viu que
eram duas horas. Nem um bonde, nem um tílburi: a praça estava
vazia, à chuva. O vento, com uivos, em fortíssimas rajadas,
apanhando-lhe o côncavo do guarda-chuva, arrastava-o, como se o quisesse
levar, em monção propícia, mais depressa e direito ao
destino. Em frente, a sombra era densa e os lampiões, brilhando, irradiavam
no aguaceiro como aranhas d’ouro em teias de cristal.

Que seria dela? Onde andaria?! Tirou um cigarro do bolso, rebuscou a caixa
de fósforos e, como não a encontrasse, teve um ímpeto
de cólera, atirando à lama o cigarro úmido e mole.

Caminhando, pensava: “Que poderia fazer a polícia sem uma indicação,
com uma noite daquelas? De manhã seria tarde; talvez mesmo àquela
hora já a sua pobre irmã…” Deteve-se subitamente, sustado
por uma cólera violenta, d’olhos cravados no chão; trincou os
lábios e um impropério saiu-lhe da boca ressecada. “E a
pobre velha? Que seria dela com tamanho choque?”

Ouviu um tinido de campainha através do surdo rufar da chuva, voltou-se
sôfrego: nada! Pôs-se de novo a caminho, com mais ânsia,
pelo meio da rua. Um Bêbedo resmungava, chafurdando nas poças,
aos trancos.

Passando por uma casa baixa, iluminada, ouviu falas. Sobressaltou-se-lhe
o coração num presságio. Talvez estivesse ali. Parou
um momento, à escuta, e, atrevendo-se, espiou pelas frestas da persiana
e viu, no meio da saleta triste, sobre uma mesa, um pequenino caixão
entre velas. Uma mulher contemplava-o chorando e, em volta, outras mulheres,
sentadas, cochichavam. Foi-se.

Não! Violante devia estar em algum sítio confortável,
algum hotel de luxo, com o sedutor. Conhecia-a bem. Não sairia senão
com quem lhe pudesse dar o fausto com que sonhava, vendo as gravuras dos figurinos
ou lendo as descrições dos romances. Bem certo estava de que
a irmã só se deixara arrastar à infâmia por vaidade,
calculadamente, não por impulso d’alma.

Dobrou instintivamente a Rua da Constituição. Os seus passos
ressoavam na rua deserta sem que ele os ouvisse, atordoado com os pensamentos
que lhe trabalhavam o espírito. Tomou pela Rua do Núncio, desceu
a do Visconde do Rio Branco e, achando-se na do Lavradio, houve nele um renascimento
de coragem, uma grande e desanuviada esperança. “Podiam encontrá-la
ainda pura. Os agentes conhecem todos os recantos e ela, talvez por pudor,
resistisse, dando tempo a que a salvassem.” E, quase a correr, aos saltos,
evitando os lameiros, lançou-se para a polícia. A medida, porém,
que se aproximava, como quem se avizinha de uma ilusão, ia-se-lhe a
esperança desfazendo n’alma.

Àquela hora o edifício parecia repousar em sono calmo: a própria
sentinela, atabafada no capote, com o capuz pela cabeça, agudo e negro,
a lembrar um monge, estava encostada a um dos umbrais, d’arma ao ombro, imóvel.
Atirou-se pelas escadas e, em cima, no corredor, à meia luz dormente
de um bico de gás, viu dois homens num banco, cochilando. Um deles,
porém, mais pronto, ouvindo o rumor, abriu os olhos, pigarreou e, firmando-se,
encarou-o carrancudo. Paulo, quase sem hálito, pediu para falar ao
delegado: Tinha urgência, era um caso grave.

– Se não é coisa de muita importância, o melhor é
o senhor entender-se lá embaixo com o tenente, porque o doutor está
descansando.

– Não; é mesmo com o delegado que pretendo falar.

– Quem é o senhor? – perguntou o homem molemente, abotoando o colete,
enquanto o outro, que acordara, coçando com fúria a grenha hirsuta,
engrolava escarros.

– Paulo Jove, estudante de medicina. – Já o homem caminhava quando,
adiantando-se, ele ajuntou, em tom confidencial: Olhe, diga que sou do Equador.
Tenho urgência, é um caso grave.

O homem correu o reposteiro e desapareceu. Paulo voltou à escada,
encostou-se à balaustrada, com o guarda-chuva a escorrer. Só
então pareceu dar pelas calças molhadas. Pôs-se a mirar
os pés e, tirando o lenço, passou-o pelo peito, pelos ombros,
pelas coxas. Estava regelado e, por vezes, uma dor fina atravessava-lhe a
cabeça, como se a varasse um estilete.

Um soldado subia a escada, com a espada a bater nos degraus. Em cima respirou
com força e tomou à direita, lento, achamboado, desaparecendo
num corredor, Impaciente, Paulo ia chegando ao reposteiro. quando o homem,
com uma voz gosmosa, o chamou:

– O senhor não pode entrar; espere um pouco.

– Pois não.

Ser Mãe

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!