Poesias – Bento Teixeira

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Canto de Proteu

Pelos ares retumbe o grave acento,

De minha rouca voz, confusa, e lenta,

Qual trovão espantoso, e violento,

De repentina, e hórrida tormenta.

Ao rio de Aqueronte turbulento,

Que em sulfúreas borbulhas arrebenta,

Passe com tal vigor, que imprima espanto,

em Minosrigoroso, e Radamanto.

De lanças, e d’escudos encantados,

Não tratarei em numerosa rima,

Mas de barões ilustres afamados,

Mais que quantos a Musa não sublima.

Seus heróicos feitos extremados

Afinarão a dissoante prima,

Que não é muito tão gentil sujeito,

Suprir com seus quilates meu defeito.

Não quero no meu Canto alguma ajuda,

Das nove moradoras do Parnaso,

Nem matéria tão alta quer que aluda,

Nada ao essencial deste meu caso.

Porque dado que a forma se me muda,

em falar a verdade, serei raso,

Que assim convém fazê-lo, quem escreve,

Se a justiça quer dar o que se deve.

Descrição do Recife de Pernambuco

Pera a parte do sul, onde a pequena

Ursa se vê de guardas rodeada,

Onde o céu luminoso, mais serena,

Tem sua influição, e temperada.

Into da nova Lusitânia ordena

A natureza mãe bem atentada,

Um porto tão quieto e tão seguro,

Que para as curvas naus serve de muro.

É este porto tal, por estar posta

Uma cinta de pedra inculta e viva,

Ao longo da soberba e larga costa,

Onde quebra Netuno a fúria esquiva.

Entre a praia e a pedra descomposta

O estanhado elemento se deriva

Com tanta mansidão, que uma fateixa

Basta ter à fatal Argos aneixa.

Em o meio desta obra alpestre e dura

Uma boca rompeu o mar inchado,

Que na língua dos bárbaros escura

Paranambuco – de todos é chamado:

De – Paraná – que é Mar, – Puca, rotura;

Feita com fúria desse mar salgado,

Que, sem no derivar cometer míngua,

Cova do mar se chama em nossa língua.

Para a entrada da barra, à parte esquerda,

Está uma lajem grande e espaçosa,

Quede piratas fora total perda,

Que uma torre tivera suntuosa.

Mas quem por seus serviços bons não herda,

Desgosta de fazer cousa lustrosa;

Que a condição do rei, que não é franco,

O vassalo – faz ser nas obras manco…

Sendo os deuses à lajem já chegados,

Estando o vento em calma, o mar quieto,

Depois de estarem todos sossegados,

Por mandado do rei, e por decreto.

Proteu no céu, c’os olhos enlevados,

Como que investiga alto secreto,

Com voz bem entoada, e bom meneio,

Ao profundo silêncio, larga o freio.

Prosopopéia

Prólogo

Dirigido a Jorge d’Albuquerque Coelho, Capitão e Governador
da Capitania de Pernambuco, das partes do Brasil da Nova Lusitânia,
etc.

Se é verdade o que diz Horácio, que Poetas e Pintores estão
no mesmo predicamento; e estes para pintarem

perfeitamente uma Imagem, primeiro na lisa távoa fazem rascunho, para
depois irem pintando os membros dela extensamente, até realçarem
as tintas, e ela ficar na fineza de sua perfeição; assim eu,
querendo dibuxar com obstardo pinzel de meu engenho a viva Imagem da vida
e feitos memoráveis de vossa mercê, quis primeiro fazer este
rascunho, para depois, sendo-me concedido por vossa mercê, ir mui particularmente
pintando os membros desta Imagem, se não me faltar a tinta do favor
de vossa mercê, a quem peço, humildemente, receba minhas Rimas,
por serem as primícias com que tento servi-lo. E porque entendo que
as aceitará com aquela benevolência e brandura natural, que costuma,
respeitando mais a pureza do ânimo que a vileza do presente, não
me fica mais que desejar, se não ver a vida de vossa mercê aumentada
e estado prosperado, como todos os seus súditos desejamos.

Beija as mãos de vossa mercê: (Bento Teixeira)

Seu vassalo.

Dirigida a Jorge d’Albuquerque Coelho,Capitão e Governador
de Pernambuco, Nova Lusitânia, etc.

I

Cantem Poetas o Poder Romano,

Sobmetendo Nações ao jugo duro;

O Mantuano pinte o Rei Troiano,

Descendo à confusão do Reino escuro;

Que eu canto um Albuquerque soberano,

Da Fé, da cara Pátria firme muro,

Cujo valor e ser, que o Céu lhe inspira,

Pode estancar a Lácia e Grega lira.

II

As Délficas irmãs chamar não quero,

Que tal invocação é vão estudo;

Aquele chamo só, de quem espero

A vida que se espera em fim de tudo.

Ele fará meu Verso tão sincero,

Quanto fora sem ele tosco e rudo,

Que por razão negar não deve o menos

Quem deu o mais a míseros terrenos.

III

E vós, sublime Jorge, em quem se esmalta

A Estirpe d’Albuquerques excelente,

E cujo eco da fama corre e salta

Do Carro Glacial à Zona ardente,

Suspendei por agora a mente alta

Dos casos vários da Olindesa gente,

E vereis vosso irmão e vós supremo

No valor abater Querino e Remo.

IV

Vereis um sinil ânimo arriscado

A trances e conflitos temerosos,

E seu raro valor executado

Em corpos Luteranos vigorosos.

Vereis seu Estandarte derribado

Aos Católicos pés vitoriosos,

Vereis em fim o garbo e alto brio

Do famoso Albuquerque vosso Tio.

V

Mas em quanto Talia no se atreve,

No Mar do valor vosso, abrir entrada,

Aspirai com favor a Barca leve

De minha Musa inculta e mal limada.

Invocar vossa graça mais se deve

Que toda a dos antigos celebrada,

Porque ela me fará que participe

Doutro licor melhor que o de Aganipe.

VI

O marchetado Carro do seu Febo

Celebre o Sulmonês, com falsa pompa,

E a ruína cantando do mancebo,

Com importuna voz, os ares rompa.

Que, posto que do seu licor não bebo,

À fama espero dar tão viva trompa,

Que a grandeza de vossos feitos cante,

Com som que Ar, Fogo, Mar e Terra espante

Narração

VII

A Lâmpada do Sol tinha encoberto,

Ao Mundo, sua luz serena e pura,

E a irmã dos três nomes descoberto

A sua tersa e circular figura.

Lá do portal de Dite, sempre aberto,

Tinha chegado, com a noite escura,

Morfeu, que com sutis e lentos passos

Atar vem dos mortais os membros lassos.

VIII

Tudo estava quieto e sossegado,

Só com as flores Zéfiro brincava,

E da vária fineza namorado,

De quando em quando o respirar firmava

Até que sua dor, d’amor tocado,

Por entre folha e folha declarava.

As doces Aves nos pendentes ninhos

Cubriam com as asas seus filhinhos.

IX

As luzentes Estrelas cintilavam,

E no estanhado Mar resplandeciam,

Que, dado que no Céu fixas estavam,

Estar no licor salso pareciam.

Este passo os sentidos comparavam

Àqueles que d’amor puro viviam,

Que, estando de seu centro e fim absentes,

Com alma e com vontade estão presentes.

X

Quando ao longo da praia, cuja area

É de Marinhas aves estampada,

E de encrespadas Conchas mil se arrea,

Assim de cor azul, como rosada,

Do mar cortando a prateada vea,

Vinha Tritão em cola duplicada,

Não lhe vi na cabeça casca posta

(Como Camões descreve) de Lagosta

XI

Mas uma Concha lisa e bem lavrada

De rica Madrepérola trazia,

De fino Coral crespo marchetada,

Cujo lavor o natural vencia.

Estava nela ao vivo debuxada

A cruel e espantosa bataria,

Que deu a temerária e cega gente

Aos Deuses do Céu puro e reluzente.

XII

Um Búzio desigual e retrocido

Trazia por Trombeta sonorosa,

De Pérolas e Aljôfar guarnecido,

Com obra mui sutil e curiosa.

Depois do Mar azul ter dividido,

Se sentou numa pedra Cavernosa,

E com as mãos limpando a cabeleira

Da turtuosa cola fez cadeira.

XIII

Toca a Trombeta com crescido alento,

Engrossa as veias, move os elementos,

E, rebramando os ares com o acento,

Penetra o vão dos infinitos assentos.

Os Pólos que sustem o firmamento,

Abalados dos próprios fundamentos,

Fazem tremer a terra e Céu jucundo,

E Netuno gemer no Mar profundo.

XIV

O qual vindo da vã concavidade,

Em Carro Triunfal, com seu tridente,

Traz tão soberba pompa e majestade,

Quanta convém a Rei tão excelente.

Vem Oceano, pai de mor idade,

Com barba branca, com cerviz tremente:

Vem Glauco, vem Nereu, Deuses Marinhos,

Correm ligeiros Focas e Golfinhos.

XV

Vem o velho Proteu, que vaticina

(Se fé damos à velha antiguidade)

Os males a que a sorte nos destina,

Nascidos da mortal temeridade.

Vem numa e noutra forma peregrina,

Mudando a natural propriedade.

Não troque a forma, venha confiado,

Se não quer de Aristeu ser sojigado.

XVI

Tétis, que em ser fermosa se recrea,

Traz das Ninfas o coro brando e doce :

Clímene, Efire, Ópis, Panopea,

Com Béroe, Talia, Cimodoce;

Drimo, Xanto, Licórias, Deiopea,

Aretusa, Cidipe, Filodoce,

Com Eristea, Espio, Semideas,

Após as quais, cantando, vem Sereas.

Descrição do Recife de Pernambuco

XVII

Pela a parte do Sul, onde a pequena

Ursa se vê de guardas rodeada,

Onde o Céu luminoso mais serena

Tem sua influïção, e temperada;

Junto da Nova Lusitânia ordena

A natureza, mãe bem atentada,

Um porto tão quieto e tão seguro,

Que pela as curvas Naus serve de muro.

XVIII

É este porto tal, por estar posta

Uma cinta de pedra, inculta e viva,

Ao longo da soberba e larga costa,

Onde quebra Netuno a fúria esquiva.

Entre a praia e pedra descomposta,

O estanhado elemento se diriva

Com tanta mansidão, que uma fateixa

Basta ter à fatal Argos aneixa.

XIX

Em o meio desta obra alpestre e dura,

Uma boca rompeu o Mar inchado,

Que, na língua dos bárbaros escura,

Pernambuco de todos é chamado.

de Para’na, que é Mar; Puca, rotura,

Feita com fúria desse Mar salgado,

Que, sem no dirivar cometer míngua,

Cova do Mar se chama em nossa língua.

XX

Pela entrada da barra, à parte esquerda,

Está uma lajem grande e espaçosa,

Que de Piratas fora total perda,

Se uma torre tivera sumtuosa.

Mas quem por seus serviços bons não herda

Desgosta de fazer cousa lustrosa,

Que a condição do Rei que não é franco

O vassalo faz ser nas obras manco.

XXI

Sendo os Deuses à lajem já chegados,

Estando o vento em calma, o Mar quieto,

Depois de estarem todos sossegados,

Por mandado do Rei e por decreto,

Proteu, no Céu c´os olhos enlevados,

Como que invistigava alto secreto,

Com voz bem entoada e bom meneio,

Ao profundo silêncio larga o freio.

Canto de Proteu

XXII

“Pelos ares retumbe o grave acento

De minha rouca voz, confusa e lenta,

Qual torvão espantoso e violento

De repentina e tórrida tormenta;

Ao Rio de Aqueronte turbulento,

Que em sulfúreas burbulhas arrebenta,

Passe com tal vigor, que imprima espanto

Em Minos riguroso e Radamanto.

XXIII

De lanças e d’escudos encantados

Não tratarei em numerosa Rima,

Mais de Barões Ilustres afamados,

Mais que quantos a Musa não sublima.

Seus heróicos feitos extremados

Afinarão a dissoante prima,

Que não é muito tão gentil sujeito

Suplir com seus quilates meu defeito.

XXIV

Não quero no meu Canto alguma ajuda

Das nove moradoras de Parnaso,

Nem matéria tão alta quer que aluda

Nada ao essencial deste meu caso.

Porque, dado que a forma se me muda,

Em falar a verdade serei raso,

Que assim convém fazê-lo quem escreve,

Se à justiça quer dar o que se deve.

XXV

A fama dos antigos co´a moderna

Fica perdendo o preço sublimado:

A façanha cruel, que a turva Lerna

Espanta com estrondo d’arco armado:

O cão de três gargantas, que na eterna

Confusão infernal está fechado,

Não louve o braço de Hércules Tebano.

Pois procede Albuquerque soberano.

XXVI

Vejo (diz o bom velho) que, na mente,

O tempo de Saturno renovado,

E a opulenta Olinda florescente

Chegar ao cume do supremo estado.

Será de fera e belicosa gente

O seu largo destrito povoado;

Por nome terá Nova Lusitânia,

Das Leis isenta da fatal insânia.

XXVII

As rédeas terá desta Lusitânia

O grão Duarte, valoroso e claro,

Coelho por cognome, que a insânia

Reprimirá dos seus, com saber raro.

Outro Troiano Pio, que em Dardânia

Os Penates livrou e o padre caro;

Um Públio Cipião, na continência;

Outro Nestor e Fábio, na prudência.

XXVIII

O braço invicto vejo com que amansa

A dura cerviz bárbara insolente,

Instruindo na Fé, dando esperança

Do bem que sempre dura e é presente;

Eu vejo c`o rigor da tesa lança

Acossar o Francês, impaciente

De lhe ver alcançar uma vitória

Tão capaz e tão digna de memória.

XXIX

Ter o varão Ilustre da consorte,

Dona Beatriz, preclara e excelente,

Dois filhos, de valor e d’alta sorte.

Cada qual a seu Tronco respondente.

Estes se isentarão da cruel sorte,

Eclipsando o nome à Romana gente,

De modo que esquecida a fama velha

Façam arcar ao mundo a sobrancelha.

XXX

O Princípio de sua Primavera

Gastarão seu destrito dilatando,

Os bárbaros cruéis e gente Austera,

Com meio singular, domesticando.

E primeiro que a espada lisa e fera

Arranquem, com mil meios d’amor brando,

Pretenderão tirá-la de seu erro,

E senão porão tudo a fogo e ferro.

XXXI

Os braços vigorosos e constantes

Fenderão peitos, abrirão costados,

Deixando de mil membros palpitantes

Caminhos, arraiais, campos juncados;

Cercas soberbas, fortes repugnantes

Serão dos novos Martes arrasados,

Sem ficar deles todos mais memória

Que a qu’eu fazendo vou em esta História.

XXXII

Quais dois soberbos Rios espumosos,

Que, de montes altíssimos manando,

Em Tétis de meter-se desejosos,

Vem com fúria crescida murmurando,

E nas partes que passam furiosos

Vem árvores e troncos arrancando,

Tal Jorge d’Albuquerque e o grão Duarte

Farão destruição em toda a parte.

XXXIII

Aquele branco Cisne venerando,

Que nova fama quer o Céu que merque,

E me está com seus feitos provocando,

Que dele cante e sobre ele alterque;

Aquele que na Idea estou pintando,

Hierônimo sublime d’Albuquerque

Se diz, cuja invenção, cujo artifício

Aos bárbaros dar total exício.

XXXIV

Deste, como de Tronco florescente,

Nascerão muitos ramos, que esperança

Prometerão a todos geralmente

De nos berços do Sol pregar a lança.

Mas, quando virem que do Rei potente

O pai por seus serviços não alcança

O galardão devido e glória digna,

Ficarão nos alpendres da Piscina.

XXXV

Ó sorte tão cruel, como mudável,

Por que usurpas aos bons o seu direito?

Escolhes sempre o mais abominável,

Reprovas e abominas o perfeito,

O menos digno fazes agradável,

O agradável mais, menos aceito.

Ó frágil, inconstante, quebradiça,

Roubadora dos bens e da justiça!

XXXVI

Não tens poder algum, se houver prudência;

Não tens Império algum, nem Majestade;

Mas a mortal cigueira e a demência

Co título te honrou de Deïdade.

O sábio tem domínio na influência

Celeste e na potência da vontade,

E se o fim não alcança desejado,

É por não ser o meio acomodado.

XXXVII

Este meio faltará ao velho invicto,

Mas não cometerá nenhum defeito,

Que o seu qualificado e alto esprito

Lhe fará a quanto deve ter respeito.

Aqui Balisário, e Pacheco aflito,

Cerra com ele o número perfeito.

Sobre os três, uma dúvida se excita:

Qual foi mais, se o esforço, se a desdita?

XXXVIII

Foi o filho de Anquises, foi Acates,

À região do Caos litigioso,

Com ramo d’ouro fino e de quilates,

Chegando ao campo Elíseo deleitoso.

Quão mal, por falta deste, a muitos trates

(Ó sorte!) neste tempo trabalhoso,

Bem claro no-lo mostra a experiência

Em poder mais que a justiça a aderência.

XXXIX

Mas deixando (dizia) ao tempo avaro

Cousas que Deus eterno e ele cura,

E tornando ao Preságio novo e raro,

Que na parte mental se me figura,

De Jorge d’Albuquerque, forte e claro,

A despeito direi da inveja pura,

Pela o qual monta pouco a culta Musa,

Que Meónio em louvar Aquiles usa.

XL

Bem sei que, se seus feitos não sublimo,

É roubo que 1he faço mui notável;

Se o faço como devo, sei que imprimo

Escândalo no vulgo variável.

Mas o dente de Zoilo, nem Minimo,

Estimo muito pouco, que agradável

É impossível ser nenhum que canta

Proezas de valor e glória tanta.

XLI

Uma cousa me faz dificuldade

E o esprito profético me cansa,

A qual é ter no vulgo autoridade

Só aquilo a que sua força alcança.

Mas, se é um caso raro, ou novidade

Das que, de tempo em tempo, o tempo lança,

Tal crédito lhe dão, que me lastima

Ver a verdade o pouco que se estima.”

XLII

E prosseguindo (diz: “que Sol luzente

Vem d’ouro as brancas nuvens perfilando,

Que está com braço indômito e valente

A fama dos antigos eclipsando;

Em quem o esforço todo juntamente

Se está como em seu centro tresladando?

É Jorge d’Albuquerque mais invicto

Que o que desceu ao Reino de Cocito.

XLIII

Depois de ter o Bárbaro difuso

E roto, as portas fechará de Jano,

Por vir ao Reino do valente Luso

E tentar a fortuna do Oceano.”

Um pouco aqui Proteu, como confuso,

Estava receando o grave dano,

Que havia de acrescer ao claro Herói

No Reino aonde vive Cimotoe.

XLIV

“Sei mui certo do fado (prosseguia)

Que trará o Lusitano por designo

Escurecer o esforço e valentia

Do braço Assírio, Grego e do Latino.

Mas este pressuposto e fantasia

Lhe tirará de inveja o seu destino,

Que conjurando com os Elementos

Abalará do Mar os fundamentos.

XLV

Porque Lémnio cruel, de quem descende

A Bárbara progênie e insolência,

Vendo que o Albuquerque tanto ofende

Gente que dele tem a descendência,

Com mil meios ilícitos pretende

Fazer irreparável resistência

Ao claro Jorge, baroil e forte,

Em quem não dominava a vária sorte.

XLVI

Na parte mais secreta da memória,

Terá mui escrita. impressa e estampada

Aquela triste e maranhada História,

Com Marte, sobre Vênus celebrada.

Verá que seu primor e clara glória

Há de ficar em Lete sepultada,

Se o braço Português vitória alcança

Da nação que tem nele confiança.

XLVII

E com rosto cruel e furibundo,

Dos encovados olhos cintilando,

Férvido, impaciente, pelo mundo

Andará estas palavras derramando”:

– Pôde Nictélio só no Mar profundo

Sorver as Naus Meónias navegando,

Não sendo mor Senhor, nem mais possante

Nem filho mais mimoso do Tonante?

XLVIII

E pôde Juno andar tantos enganos,

Sem razão, contra Tróia maquinando,

E fazer que o Rei justo dos Troianos

Andasse tanto tempo o Mar sulcando?

E que vindo no cabo de dez anos,

De Cila e de Caríbdis escapando,

Chegasse à desejada e nova terra,

E c`o Latino Rei tivesse guerra?

XLIX

E pôde Palas subverter no Ponto

O filho de Oileu por causa leve?

Tentar outros casos que não conto

Por me não dar lugar o tempo breve?

E que eu por mil razões, que não aponto,

A quem do fado a lei render se deve,

Do que tenho tentado já desista,

E a gente Lusitana me resista?

L

Eu por ventura sou Deus indigete,

Nascido da progênie dos humanos,

Ou não entro no número dos sete,

Celestes, imortais e soberanos?

A quarta Esfera a mim não se comete?

Não tenho em meu poder os Centimanos?

Jove não tem o Céu? O Mar, Tridente?

Plutão, o Reino da danada gente?

LI

Em preço, ser, valor, ou em nobreza,

Qual dos supremos é mais qu’eu altivo?

Se Netuno do Mar tem a braveza,

Eu tenho a região do fogo ativo.

Se Dite aflige as almas com crueza,

E vós, Ciclopes três, com fogo vivo,

Se os raios vibra Jove, irado e fero,

Eu na forja do monte lhos tempero.

LII

E com ser de tão alta Majestade,

Não me sabem guardar nenhum respeito?

E um povo tão pequeno em quantidade

Tantas batalhas vence a meu despeito?

E que seja agressor de tal maldade

O adúltero lascivo do meu leito?

Não sabe que meu ser ao seu precede,

E que prendê-lo posso noutra rede?

LIII

Mas seu intento não porá no fito,

Por mais que contra mim o Céu conjure,

Que tudo tem em fim termo finito,

E o tempo não há cousa que não cure.

Moverei de Netuno o grão distrito

Para que meu partido mais segure,

E quero ver no fim desta jornada

Se val a Marte escudo, lança, espada.

LIV

“Estas palavras tais, do cruel peito,

Soltará dos Ciclopes o tirano,

As quais procurará pôr em efeito,

Às cavernas descendo do Oceano.

E com mostras d’amor brando e aceito,

De ti, Netuno claro e soberano,

Alcançará seu fim: o novo jogo,

Entrar no Reino d’Água o Rei do fogo.

LV

Logo da Pátria Eólia virão ventos,

Todos como esquadrão mui bem formado,

Euro, Noto os Marítimos assentos

Terão com seu furor demasiado.

Fará natura vários movimentos,

O seu Caos repetindo já passado,

De sorte que os varões fortes e válidos

De medo mostrarão os rostos pálidos.

LVI

Se Jorge d’Albuquerque soberano,

Com peito juvenil, nunca domado,

Vencerá da Fortuna e Mar insano

A braveza e rigor inopinado,

Mil vezes o Argonauta desumano,

Da sede e cruel fome estimulado,

Urdirá aos consortes morte dura,

Para dar-lhes no ventre sepultura.

LVII

E vendo o Capitão qualificado

Empresa tão cruel e tão inica,

Per meio mui secreto, acomodado,

Dela como convém se certifica.

E, duma graça natural ornado,

Os peitos alterados edifica,

Vencendo, com Tuliana eloqüência,

Do modo que direi, tanta demência.”

LVIII

– Companheiros leais, a quem no Coro

Das Musas tem a fama entronizado,

Não deveis ignorar, que não ignoro,

Os trabalhos que haveis no Mar passado.

Respondestes ‘te ‘gora com o foro,

Devido a nosso Luso celebrado,

Mostrando-vos mais firmes contra a sorte

Do que ela contra nós se mostra forte.

LIX

Vós de Cila e Caríbdis escapando,

De mil baixos e sirtes arenosas,

Vindes num lenho côncavo cortando

As inquietas ondas espumosas.

Da fome e da sede o rigor passando,

E outras faltas em fim dificultosas,

Convém-vos aquirir uma força nova,

Que o fim as cousas examina e prova.

LX

Olhai o grande gozo e doce glória

Que tereis quando, postos em descanso,

Contardes esta larga e triste história,

Junto do pátrio lar, seguro e manso.

Que vai da batalha a ter vitória,

O que do Mar inchado a um remanso,

Isso então haverá de vosso estado

Aos males que tiverdes já passado.

LXI

Por perigos cruéis, por casos vários,

Hemos d’entrar no porto Lusitano,

E suposto que temos mil contrários

Que se parcialidam com Vulcano,

De nossa parte os meios ordinários

Não faltem, que não falta o Soberano,

Poupai-vos para a próspera fortuna,

E, adversa, não temais por importuna.

LXII

Os heróicos feitos dos antigos

Tende vivos e impressos na memória:

Ali vereis esforço nos perigos,

Ali ordem na paz, digna de glória.

Ali, com dura morte de inimigos,

Feita imortal a vida transitória,

Ali, no mor quilate de fineza,

Vereis aposentada a Fortaleza.

LXIII

Agora escurecer quereis o raio

Destes Barões tão claros e eminentes,

Tentando dar princípio e dar ensaio

A cousas temerárias e indecentes.

Imprimem neste peito tal desmaio

Tão graves e terríveis acidentes

Que a dor crescida as forças me quebranta,

E se pega a voz débil à garganta.

LXIV

De que servem proezas e façanhas,

E tentar o rigor da sorte dura?

Que aproveita correr terras estranhas,

Pois faz um torpe fim a fama escura?

Que mais torpe que ver umas entranhas

Humanas dar a humanos sepultura,

Coisa que a natureza e lei impede,

E escassamente às Feras só concede.

LXV

Mas primeiro crerei que houve Gigantes

De cem mãos, e da Mãe Terra gerados,

E Quimeras ardentes e flamantes,

Com outros feros monstros encantados;

Primeiro que de peitos tão constantes

Veja sair efeitos reprovados,

Que não podem (falando simplesmente)

Nascer trevas da luz resplandecente.

LXVI

E se determinais a cega fúria

Executar de tão feroz intento,

A mim fazei o mal, a mim a injúria,

Fiquem livres os mais de tal tormento.

Mas o Senhor que assiste na alta Cúria

Um mal atalhará tão violento,

Dando-nos brando Mar, vento galerno,

Com que vamos no Minho entrar paterno.

LXVII

“Tais palavras do peito seu magnânimo

Lançará o Albuquerque famosíssimo,

Do soldado remisso e pusilânimo,

Fazendo com tal prática fortíssimo.

E assim todos concordes, e num ânimo,

Vencerão o furor do Mar bravíssimo,

Até que já a Fortuna, d’enfadada,

Chegar os deixe a Pátria desejada.

LXVIII

À Cidade de Ulisses destroçados

Chegarão da Fortuna e Reino salso,

Os Templos visitando Consagrados,

Em procissão, e cada qual descalço.

Desta maneira ficarão frustrados

Os pensamentos vãos de Lémnio falso,

Que o mau tirar não pode o benefício

Que ao bom tem prometido o Céu propício.

LXIX

Neste tempo Sebasto Lusitano,

Rei que domina as águas do grão Douro,

Ao Reino passará do Mauritano,

E a lança tingirá em sangue Mouro;

O famoso Albuquerque, mais ufano

Que Iason na conquista do veo d’ouro,

E seu Irmão, Duarte valeroso,

Irão c`o Rei altivo, Imperioso.

LXX

Numa Nau, mais que Pístris, e Centauro,

E que Argos venturosa celebrada,

Partirão a ganhar o verde Lauro

À região da secta reprovada.

E depois de chegar ao Reino Mauro,

Os dois irmãos, com lança e com espada,

Farão nos Agarenos mais estrago

Do que em Romanos fez o de Cartago.

LXXI

Mas, ah! ínvida sorte, quão incertos

São teus bens e quão certas as mudanças;

Quão brevemente cortas os enxertos

A umas mal nascidas esperanças.

Nos mais riscosos trances, nos apertos,

Entre mortais pelouros, Entre lanças,

Prometes triunfal palma e vitória,

Para tirar no fim a fama, a glória.

LXXII

Assim sucederá nesta batalha

Ao mal afortunado Rei ufano,

A quem não valerá provada malha,

Nem escudo d’obreiros de Vulcano.

Porque no tempo que ele mais trabalha

Vitória conseguir do Mauritano,

Num momento se vê cego e confuso,

E com seu esquadrão roto e difuso”.

LXXIII

Anteparou aqui Proteu, mudando

As cores e figura monstruosa,

No gesto e movimento seu mostrando

Ser o que há de dizer coisa espantosa.

E com nova eficácia começando

A soltar a voz alta e vigorosa,

Estas palavras tais tira do peito,

Que é cofre de profético conceito:

LXXIV

“Entre armas desiguais, entre tambores

De som confuso, rouco e redobrado,

Entre cavalos bravos corredores,

Entre a fúria do pó, que é salitrado;

Entre sanha, furor, entre clamores,

Entre tumulto cego e desmandado,

Entre nuvens de setas Mauritanas,

Andará o Rei das gentes Lusitanas.

LXXV

No animal de Netuno, já cansado

Do prolixo combate, e mal ferido,

Será visto por Jorge sublimado,

Andando quase fora de sentido.

O que vendo o grande Albuquerque ousado,

De tão trágico passo condoído,

Ao peito fogo dando, aos olhos água,

Tais palavras dirá, tintas em magoa”:

LXXVI

– Tão infelice Rei, como esforçado,

Com lágrimas de tantos tão pedido,

Com lágrimas de tantos alcançado,

Com lágrimas do Reino, em fim perdido.

Vejo-vos c`o cavalo já cansado,

A vós, nunca cansado, mas ferido,

Salvai em este meu a vossa vida,

Que a minha pouco vai em ser perdida.

LXXVII

Em vós do Luso Reino a confiança

Estriba, como em base só, fortíssimo;

Com vós ficardes vivo, segurança

Lhe resta de ser sempre florentíssimo.

Entre duros farpões e Maura lança,

Deixai este vassalo fidelíssimo,

Que ele fará por vós mais que Zopiro

Por Dario, até dar final suspiro.

LXXVIII

“Assim dirá o Herói, e com destreza

Deixará o genete velocíssimo,

E a seu Rei o dará: Ó Portuguesa

Lealdade do tempo florentíssimo!

O Rei Promete, se de tal empresa

Sai vivo, o fará senhor grandíssimo,

Mas ‘te nisto lhe será avara a sorte,

Pois tudo cubrirá com sombra a morte.

LXXIX

Com lágrimas d’amor e de brandura,

De seu Senhor querido ali se espede,

E que a vida importante e mal segura

Assegurasse bem, muito lhe pede,

Torna à batalha sanguinosa e dura,

O esquadrão rompe dos de Mafamede,

Lastima, fere, corta, fende, mata,

Decepa, apouca, assola, desbarata.

LXXX

Com força não domada e alto brio,

Em sangue Mouro todo já banhado,

Do seu vendo correr um caudal Rio,

De giolhos se pôs, debilitado.

Ali dando a mortais golpes desvio,

De feridas medonhas trespassado,

Será cativo, e da proterva gente

Maniatado em fim mui cruelmente.

LXXXI

Mas adonde me leva o pensamento?

Bem parece que sou caduco e velho,

Pois sepulto no Mar do esquecimento

A Duarte sem par, dito Coelho.

Aqui mister havia um novo alento

Do Poder Divinal e alto Conselho,

Porque não hai quem feitos tais presuma

A termo reduzir e breve suma.

LXXXII

Mas se o Céu transparente e alta Cúria

Me for tão favorável, como espero,

Com voz sonora, com crescida fúria,

Hei de cantar Duarte e Jorge fero.

Quero livrar do tempo e sua injúria

Estes claros Irmãos, que tanto quero,

Mas, tornando outra vez a triste História,

Um caso direi digno de memória.

LXXXIII

Andava o novo Marte destruindo

Os esquadrões soberbos Mauritanos,

Quando sem tino algum viu ir fugindo

Os tímedos e lassos Lusitanos.

O que de Pura mágoa não sufrindo

Lhe diz”; – Donde vos is, homens insanos?

Que digo: homens, estátuas sem sentido,

Pois não sentis o bem que haveis perdido?

LXXXIV

Olhai aquele esforço antigo e puro

Dos ínclitos e fortes Lusitanos,

Da Pátria e liberdade um firme muro

Verdugo de arrogantes Mauritanos;

Exemplo singular para o futuro

Ditado, e resplandor de nossos anos,

Subjeito mui capaz, matéria digna

Da Mantuana e Homérica Buzina.

LXXXV

Ponde isto por espelho, por treslado,

Nesta tão temerária e nova empresa.

Nele vereis que tendes já manchado

De vossa descendência a fortaleza.

À batalha tornai com peito ousado,

Militai sem receio, nem fraqueza,

Olhai que o torpe medo é Crocodilo

Que costuma, a quem foge, persegui-lo.

LXXXVI

E se o dito a tornar vos não compele,

Vede donde deixais o Rei sublime?

Que conta haveis de dar ao Reino dele?

Que desculpa terá, tão grave crime?

Quem haverá que por traição não sele

Um mal que tanto mal no mundo imprime?

Tornai, tornai, invictos Portugueses,

Cerceai malhas e fendei arneses.

LXXXVII

“Assim dirá: mas eles sem respeito

À honra e ser de seus antepassados

Com pálido temor no frio peito,

Irão por várias partes derramados.

Duarte, vendo neles tal defeito,

Lhe dirá”: – Corações efeminados,

Lá contareis aos vivos o que vistes,

Porque eu direi aos mortos que fugistes.

LXXXVIII

“Neste passo carrega a Maura força

Sobre o Barão insigne e velicoso;

Ele, onde vê mais força, ali se esforça,

Mostrando-se no fim mais animoso.

Mas o fado, que quer que a razão torça.

O caminho mais reto e proveitoso,

Fará que num momento abreviado

Seja cativo, preso e mal tratado.

LXXXIX

Eis ambos os irmãos em cativeiro.

De peitos tão protervos e obstinados,

Por cópia inumerável de dinheiro

Serão (segundo vejo) resgatados.

Mas o resgate e preço verdadeiro,

Por quem os homens foram libertados,

Chamará neste tempo o grão Duarte,

Para no claro Olimpo lhe dar parte.

XC

Ó Alma tão ditosa como pura,

Parte a gozar dos dotes dessa glória,

Donde terás a vida tão segura,

Quanto tem de mudança a transitória!

Goza lá dessa luz que sempre dura;

No mundo gozarás da larga história,

Ficando no lustroso e rico Templo

Da Ninfa Gigantea por exemplo.

XCI

Mas, enquanto te dão a sepultura,

Contemplo a tua Olinda celebrada,

Coberta de fúnebre vestidura,

Inculta, sem feição, descabelada.

Quero-a deixar chorar morte tão dura

‘Té que seja de Jorge consolada,

Que por ti na Ulissea fica em pranto,

Em quanto me disponho a novo Canto.

XCII

Não mais, esprito meu, que estou cansado,

Deste difuso, largo e triste Canto,

Que o mais será de mim depois cantado

Por tal modo, que cause ao mundo espanto.

Já no balcão do Céu o seu toucado

Solta Vênus, mostrando o rosto Sancto;

Eu tenho respondido c`o mandado

Que mandaste Netuno sublimado”.

XCIII

Assim diz; e com alta Majestade

O Rei do Salso Reino, ali falando,

Diz: – Em satisfação da tempestade

Que mandei a Albuquerque venerando,

Pretendo que a mortal posteridade

Com Hinos o ande sempre sublimando,

Quando vir que por ti o foi primeiro,

Com fatídico esprito verdadeiro.

Epílogo

XCIV

Aqui deu [fim] a tudo, e brevemente

Entra no Carro [de] Cristal lustroso;

Após dele a demais Cerúlea gente

Cortando a veia vai do Reino acoso.

Eu que a tal espetáculo presente

Estive, quis em Verso numeroso

Escrevê-lo por ver que assim convinha

Para mais perfeição da Musa minha.

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