Crítica da Razão Pura

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Capítulo III

Immanuel Kant

Primeira Seção

I – Da Distinção Entre o Conhecimento Puro e o Empírico

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam
com a experiência, por­que, com efeito, como haveria de exercitar-se
a fa­culdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando
os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações,
e de ou­tra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los
entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração
da matéria informe das impressões sensíveis para esse
conhecimento das coisas que se denomina experiência?

No tempo, pois, nenhum conhecimento pre­cede a experiência, todos
começam por ela.

Mas se é verdade que os conhecimentos deri­vam da experiência,
alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva,
pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto
daquilo que recebemos das impres­sões e daquilo que a nossa faculdade
cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente pelas impres­sões
dos sentidos); aditamento que propria­mente não distinguimos senão
mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.

Surge desse modo uma questão que não se pode resolver à
primeira vista: será possível um conhecimento independente da
experiência e das impressões dos sentidos?

Tais conhecimentos são denominados “a prio­ri”, e
distintos dos empíricos, cuja origem e a posteriori”, isto é,
da experiência.

Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o significado
da questão proposta, porquanto há conhecimentos que derivam
indiretamente da experiência, isto é, de uma regra geral obtida
pela experiência, e que no entanto não podem ser ta­chados
de conhecimentos “a priori”.

Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, “a priori”
poderá esperar que ela desabe, sem precisar observar a experiência
da sua queda, pois, praticamente, já sabe que todo corpo aban­donado
no ar sem sustentação cai ao impulso da gravidade. Assim esse
conhecimento é nitida­mente empírico.

Consideraremos, portanto, conhecimento “a priori”, todo aquele
que seja adquirido indepen­dentemente de qualquer experiência.

A ele se opõem os opostos aos empíricos, isto é, àqueles
que só o são “a posteriori”, quer dizer, por meio
da experiência.

Entenderemos, pois, daqui por diante, por co­nhecimento “a priori”,
todos aqueles que são abso­lutamente independentes da experiência;
eles são opostos aos empíricos, isto é, àqueles
que só são possíveis mediante a experiência.

Os conhecimentos “a priori” ainda podem dividir-se em puros e
impuros. Denomina-se co­nhecimento “a priori” puro ao que
carece comple­tamente de qualquer empirismo.

Assim, p. ex., “toda mudança tem uma cau­sa”, é
um princípio “a priori”, mas impuro, porque o conceito
de mudança só pode formar-se extraído da experiência.

II – Achamo-nos de Posse de Certos Co­nhecimentos “A Priori”
e o Próprio Senso Comum não os Dispensa

Trata-se agora de descobrir o sinal pelo qual o conhecimento empírico
se distingue do puro. A experiência nos mostra que uma coisa é
desta ou daquela maneira, silenciando sobre a possibilidade de ser diferente.

Digamos, pois, primeiro: se encontramos uma proposição que
tem que ser pensada com caráter de necessidade, tal proposição
é um juízo “a prio­ri".

Se, além disso, não é derivada e só se concebe
como valendo por si mesma como necessária, será então
absolutamente “a priori”.

Segundo: a experiência não fornece nunca juízos com uma
universalidade verdadeira e rigo­rosa, mas apenas com uma generalidade
suposta e relativa (por indução), o que. propriamente quer dizer
que não se observou até agora uma exceção a determinadas
leis. Um juízo, pois, pensado com rigorosa universalidade, quer dizer,
que não ad­mite exceção alguma, não se deriva
da experiên­cia e sem valor absoluto “a priori”.

Portanto, a universalidade empírica nada mais é do que uma
extensão arbitrária de validade, pois se passa de uma validade
que corresponde à maior parte dos casos, ao que corresponde a todos
eles, como p. ex. nesta proposição: “Todos os corpos são
pesados.”

Pelo contrário, quando uma rigorosa universa­lidade é essencial
em um juízo, esta universali­dade indica uma fonte especial de
conhecimento, quer dizer, uma faculdade de conhecer “a priori”.
A necessidade e a precisa universalidade são os caracteres evidentes
de um conhecimento “a prio­ri”, e estão indissoluvelmente
unidos. Mas como na prática é mais fácil mostrar a limitação
empí­rica de um conhecimento do que a contingência nos juízos,
e como também é mais evidente a uni­versalidade ilimitada
do que a necessidade absolu­ta, convém servir-se separadamente
desses dois critérios, pois cada um é por si mesmo infalivel.

Ora, é fácil demonstrar que no conhecimento humano existem
realmente juízos de um valor ne­cessário, e na mais rigorosa
significação univer­sal; por conseguinte, juízos
puros, “a priori”. Se se quer um exemplo da própria ciência,
basta reparar em todas as proposições da Matemática.
Se se quer outro tomado do bom senso, pode bastar a proposição
de que cada mudança tem uma causa.

Neste último exemplo, o conceito de causa contém de tal modo
o de necessidade de enlace com um efeito e a rigorosa generalidade da lei,
que desapareceria por completo se, como o fez Hume, quiséssemos derivá-lo
da freqüente asso­ciação do que segue com o que precede
e do hábito (e por isso de uma necessidade simplesmente sub­jetiva)
de ligar certas representações.

Também se poderia, sem recorrer a esses exemplos, para provar a existência
de princípios “a priori” em nosso conhecimento, demonstrar
que são indispensáveis para a possibilidade da mesma experiência,
sendo portanto uma demonstração “a priori".

Porque, onde basearia a experiência a sua cer­teza se todas as
regras que empregasse fossem sempre empíricas e contingentes?

Assim, os que possuem esse caráter dificil­mente são aceitos
como primeiros princípios.

Basta-nos haver manifestado aqui o uso puro de nossa faculdade de conhecer
de um modo efe­tivo e os caracteres que lhe são próprios.

Não é só nos juízos, pois também nos concei­tos
encontramos uma origem “apriorística” de al­guns.

Realmente, subtrai do vosso conceito empírico de um corpo tudo quanto
possui de empírico: a cor, a dureza, a moleza, o peso, e a própria
impe­netrabilidade, e ficará o espaço que (ora vazio) ele
ocupava e que não pode ser suprimido.

Quando separais de alguns conceitos empíri­cos de um objeto, corpóreo
ou não, todas as pro­priedades que a experiência ministra,
não podeis no entanto privá-lo daquela, mediante a qual é
pensada como substância, ou aderente a uma substância (se bem
que esse conceito de substân­cia contenha mais determinações
que o de um ob­jeto em geral).

Deveis, pois, reconhecer que a necessidade com que este conceito se impõe
dá-se em virtude da sua existência, “a priori” na
vossa faculdade de conhecer.

III – A Filosofia Necessita de Uma Ciên­cia que Determine
a Possibilidade, os Prin­cípios e a Extensão de Todos os
Conheci­mentos “A Priori”

Há uma coisa ainda mais importante que o que precede: certos conhecimentos
por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não po­dem
ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que estendem
o círculo de nossos juízos além dos seus limites.

Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível,
aos quais a expe­riência não pode servir de guia nem de retificação,
consistem as investigações de nossa razão, inves­tigações
que por sua importância nos parecem su­periores, e por seu fim muito
mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo dos
fenômenos; investigações tão importantes que, abandoná-las
por incapacidade, revela pouco apreço ou indiferença, razão
pela qual tudo inten­tamos para as fazer, ainda que incidindo em erro.

Esses inevitáveis temas da razão pura são: Deus, liberdade
e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução
dessas questões denomina-se Metafísica. Sua marcha, é,
no princípio, dogmática; quer dizer, ela enceta confiadamente
o seu trabalho sem ter provas na potência ou impotência de nossa
razão para tão grande em­presa.

Parecia, no entanto, natural que, ao abando­nar o terreno da experiência,
não construíssem imediatamente um edificio com conhecimentos
adquiridos sem saber como, ou sobre o crédito de princípios
cuja origem ignoramos. E sem haver assegurado, antes de tudo, mediante cuidadosas
investigações, acerca da solidez do seu fundamen­to. Pelo
menos, antes de o construir, deveriam ter apresentado estas questões:
Como pode a inteli­gência chegar aos conhecimentos “a priori”?
Que extensão, legitimidade e valor podem ter?

Com efeito, nada seria mais natural, se esta palavra significa o que conveniente
e racionalmente deve suceder; mas se por ela entendemos o que de ordinário
se faz, nada é mais natural que dar ao olvido essas questões,
pois desfrutando de certeza uma parte de nossos conhecimentos, a Matemática,
concebe-se a fagueira esperança de que os demais cheguem ao mesmo ponto.

Por outra parte, abandonando o círculo da ex­periência,
podem estar seguros de não ser contra-ditados por ela. O desejo de
estender os nossos co­nhecimentos é tão grande que só
detém seus pas­sos quando tropeça em uma contradição
claríssi­ma; mas as ficções do pensamento, se estão
arru­madas com certo cuidado, podem evitar tais trope­ços,
ainda que nunca deixem de ser ficções.

As matemáticas fornecem um brilhante exemplo do que poderíamos
fazer independente­mente da experiência, nos conhecimentos “a
prio­ri”. É verdade que não se ocupam senão
de objetos e conhecimentos que podem ser representados pela intuição;
mas esta circunstância facilmente se pode reparar, porque a intuição
de que se trata pode dar-se “a priori” por si mesma, e por conse­guinte,
é apenas distinguível de um simples con­ceito puro.

A propensão a estender os conhecimentos, im­buida com esta prova
do poder da razão, não vê limites para o seu desenvolvimento.
A pomba li­geira agitando o ar com seu livre vôo, cuja resis­tência
nota, poderia imaginar que o seu vôo seria mais fácil no vácuo.

Assim, Platão, abandonando o mundo sensível que encerra a inteligência
em limites tão estreitos, lançou-se nas asas das idéias
pelo espaço vazio do entendimento puro, sem advertir que com os seus
esforços nada adiantava, faltando-lhe ponto de apoio onde manter-se
e segurar-se para aplicar forças na esfera própria da inteligência.

Mas tal é geralmente a marcha da razão hu­mana na especulação;
termina o mais breve pos­sível a sua obra, e não procura,
até muito tempo depois, indagar o fundamento em que repousa.

Uma vez chegado a esse ponto, encontra toda sorte de pretextos para consolar-se
dessa falta de solidez, ou, em último termo, repele voluntaria­mente
a perigosa e tardia prova. Mas o que nos livra de todo cuidado e receio durante
a constru­ção de nossa obra, e ainda nos engana por sua
aparente solidez, é que uma grande parte, quiçá a maior,
do trabalho de nossa razão, consiste na análise de conceitos
que já temos formados sobre os objetos.

Isso nos dá uma infinidade de conhecimentos que, se bem sejam apenas
esclarecimentos e ex­plicações daquilo que foi pensado em
nossos con­ceitos (ainda que de maneira confusa), estimam-se, todavia,
como novas luzes (Einsicheter), pelo menos, quanto à sua forma, por
mais que não aumentem a matéria nem o conteúdo de nossos
conceitos, pois simplesmente os preparam e orde­nam.

Como esse procedimento dá um conhecimento real “a priori”
que segue uma marcha segura e útil, enganada e iludida a razão,
sem o notar, en­tra em afirmações de uma natureza completa­mente
distinta e totalmente estranha ao conceito dado “a priori” e sem
que saiba como as conse­guiu, nem se lhe ocorra fazer-se semelhante per­gunta.

Por isso, pois, tratarei desde o começo da dife­rença que
existe entre essas duas espécies de co­nhecimentos.

IV – Diferença Entre o Juízo Analítico e o Sintético

Em todos os juízos em que se concebe a rela­ção
de um sujeito com um predicado (conside­rando só os juízos
afirmativos, pois nos negativos é mais fácil fazer, depois,
a aplicação), esta rela­ção é possível
de dois modos: ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo nele contido
(de um modo tácito), ou B é completamente estranho ao conceito
A, se bem se ache enlaçado com ele.

No primeiro caso chamo ao juízo analítico, no se­gundo,
sintético. Os juízos analíticos (afirmativos) são,
pois, aqueles em que o enlace do sujeito com o predicado se concebe por identidade;
aqueles, ao contrário, cujo enlace é sem identidade, devem chamar-se
juízos sintéticos. Poder-se-ia também denominar os primeiros
de juízos explicativos, e aos segundos, de juízos extensivos,
pelo motivo de que aqueles nada aditam ao sujeito pelo atributo, apenas decompondo
o sujeito em conceitos parciais compreendidos e concebidos (ainda que taci­tamente)
no mesmo, enquanto que, pelo contrário, os últimos acrescentam
ao conceito do sujeito um predicado que não era de modo algum pensado
naquele e que não se obteria por nenhuma decom­posição.
Quando digo p. ex.: “todos os corpos são ex­tensos”,
formulo um juízo analítico, porque não tenho que sair
do conceito de corpo para achar unida a ele a extensão, e só
tenho que decompô-lo, quer dizer, só necessito tornar-me cônscio
da di­versidade que pensamos sempre em dito conceito para encontrar o
predicado; é portanto um juízo analítico. Pelo contrário,
quando digo: “todos os corpos são pesados”, já o
predicado é algo comple­tamente distinto do que em geral penso
no simples conceito de corpo. A adição de tal atributo dá,
pois, um juízo sintético.

Os juízos da experiência, como tais, são todos sintéticos.

Porque seria absurdo fundar um juízo analí­tico na experiência,
pois para formá-lo não preciso sair do meu conceito e por conseguinte
não me é necessário o testemunho da experiência.
P. ex.: “um corpo é extenso” é uma proposição
“a priori” e não um juízo da experiência porque
antes de dirigir-me à experiência, tenho já em meu con­ceito
todas as condições do juízo; só me resta, se­gundo
o princípio de contradição, tirar o predicado do sujeito
e ao mesmo tempo chegar a ter cons­ciência da necessidade do juízo,
necessidade que jamais a experiência poderá subministrar-me.

Pelo contrário, embora eu não tire do conceito de corpo em
geral o predicado pesado, indica, sem embargo, aquele conceito um objetivo
da expe­riência, uma parte da experiência total, à
qual posso ainda aditar outra parte da mesma como pertencente a ela.

Posso reconhecer antes, analiticamente, o conceito de corpo pelas propriedades
da extensão, impenetrabilidade, forma etc., etc., as quais são
todas pensadas neste conceito. Mas se amplio meu conhecimento e observo a
experiência que me proporcionou o conceito de corpo, encontro enla­çada
constantemente com todas as anteriores pro­priedades e de gravidade (o
peso), que adito sinte­ticamente, como predicado, àquele conceito.

V – Os Juízos Matemáticos São Todos Sintéticos

Esta proposição parece ter escapado até hoje às
indagações dos que analisam a razão humana, e quase estão
opostas às suas conjeturas, apesar da sua incontrovertível certeza
e da suma impor­tância de suas conseqüências.

Como se observa que os raciocínios dos mate­máticos procediam
todos dos princípios de contradi­ção (exigido pela
natureza de toda certeza apodíti­ca), acreditava-se também
que os princípios ti­nham sido reconhecidos em virtude do mesmo
processo: no que se enganaram, porque se indubi­tavelmente uma proposição
sintética pode ser co­nhecida segundo o princípio de contradição,
isto não é possível dentro de si mesma, senão
supondo outra proposição sintética de que possa ser dedu­zida.

Deve notar-se, antes de tudo, que as proposi­ções propriamente
matemáticas são sempre juízos “a priori”
e não juízos empíricos, porque implicam necessidade,
que não se pode obter pela experiên­cia.

Mas, se não se quer conceder isto, limito mi­nha proposição
às matemáticas puras, cujo con­ceito traz consigo o não
conter conhecimentos em­píricos, mas tão-somente “a
priori”.

I – Poder-se-ia em verdade crer, à primeira vista, que a proposição
7 + 5 = 12 é puramente analítica, resultante, segundo o princípio
de con­tradição, do conceito de uma soma de sete e cinco.
Mas se a considerarmos com mais atenção, acha­remos que
o conceito de soma de sete e cinco não contém mais do que a
união dos dois números em um só, o que não faz
pensar qual seja esse nú­mero único que compreenda aos outros
dois. O conceito de 12 não é de modo algum percebido só
pelo pensamento da união de cinco e sete, e posso decompor todo meu
conceito dessa soma tanto quanto quiser, sem que por isso encontre o número
12.

É preciso, pois, ultrapassar esse conceito recorrendo-se à
intuição correspondente a um dos dois números, quiçá
aos 5 dedos da mão ou a cinco pontos (como faz Segner em sua Aritméti­ca),
e aditar sucessivamente ao conceito sete as cinco unidades dadas na intuição.

Com efeito, tomo primeiramente o número se­te, e auxiliando-me
de meus dedos como intuição para o conceito de 5, acrescento
sucessivamente ao número 7 as unidades que tive de reunir para formar
o 5, e assim vejo surgir o número 12.

Pela adição de sete e cinco tenho idéia desta soma 7
+ 5, é verdade; mas não que esta seja igual ao número
12. A proposição aritmética é, pois, sempre sintética:
o que se compreende ainda mais claramente se se tomam números maiores,
pois então é evidente que, por mais que volvamos e coloquemos
nosso conceito quanto quisermos, nunca poderemos achar a soma mediante a sim­ples
decomposição de nossos conceitos e sem o auxilio da intuição.
Tampouco é analítico um princípio qualquer de Geometria
pura.

É uma proposição sintética que a linha reta,
entre dois pontos é a mais curta, porque meu con­ceito de reta
não contém nada que seja quantida­de, senão só
qualidade.

O conceito de mais curta é completamente aditado e não pode
provir de modo algum da de­composição do conceito de linha
reta. É preciso, pois, recorrer-se aqui à intuição,
único modo para que seja possível a síntese.

Algumas poucas proposições fundamentais, que os geômetras
pressupõem, são realmente ana­líticas e se apóiam
no princípio de contradição; mas também é
verdade que só servem, como pro­posições idênticas,
ao encadeamento do método e não como princípios, tais
como, p. ex., a = a, o todo é igual a si mesmo: ou (a + b) < “a”,
o todo é maior do que a parte.

E, sem embargo, estes mesmos axiomas ainda que valham como simples conceitos,
são admitidos nas matemáticas somente porque podem ser re­presentados
em intuição.

A ambigüidade de expressão é que geralmente nos faz crer
que o predicado de tais juízos apodíti­cos existe já
em nossos conceitos, e que, conse­guintemente, é analítico
o juízo.

A um conceito dado temos que aditar certo predicado, e esta necessidade pertence
já aos con­ceitos. Mas a questão não é o que
devemos aditar com o pensamento a um conceito dado, senão o que realmente
pensamos nele, ainda que de um modo obscuro.

Vemos, pois, que o predicado se une necessa­riamente ao conceito, não
como concebido nele, senão mediante uma intuição que
a ele deve unir-se.

II – A ciência da natureza (Física) contém como
princípios, juízos sintéticos “a priori”.
Só tomarei como exemplos estas duas proposições: em todas
as mudanças do mundo corpóreo a quan­fidade de matéria
permanece sempre a mesma, ou, em todas as comunicações de movimento
a ação e reação devem ser sempre iguais.

Em ambos vemos, não só a necessidade e, por conseguinte, sua
origem “a priori”, senão que são proposições
sintéticas.

Porque no conceito de matéria não penso em sua permanência,
mas unicamente em sua pre­sença no espaço que ocupa, e,
portanto, vou além do conceito de matéria para atribuir-lhe
algo “a priori” que não havia concebido nele.

A proposição não é, pois, concebida analítica,
senão sinteticamente ainda que “a priori”, e as­sim
sucede com as restantes proposições da parte pura da Física.

III – Também devem haver conhecimentos sintéticos “a
priori” na Metafísica, ainda que só a consideraremos como
uma ciência em ensaio; mas que, não obstante, torna indispensável
a natureza da razão humana.

A Metafísica não se ocupa unicamente em analisar os conceitos
das coisas que nós formamos a priori”, e, por conseguinte, em
explicações ana­líticas, senão que por ela
queremos estender nos­sos conhecimentos “a priori”, e para
o efeito nos valemos de princípios que aos conceitos dados adi­tam
algo que não estava compreendido neles, e mediante os juízos
sintéticos “a priori” nos afas­tamos tanto, que a experiência
não pode seguir­-nos, p. ex., na proposição: o mundo
deve ter um primeiro princípio etc., etc.

Assim, pois, a Metafísica consiste, pelo menos segundo seu fim, em
proposições puramente sinté­ticas “a priori”.

VI – Problema Geral da Razão Pura

Muito se adiantou com haver podido trazer à forma de um só
problema uma infinidade de ques­tões: Com isso, não só
se facilita o próprio trabalho determinando-o com precisão,
como também se facilita o exame para outro que queira verificar se
cumprimos ou não o nosso desígnio. O verdadeiro problema da
razão pura contém-se nesta pergun­ta: como são possíveis
os juízos sintéticos “a prio­ri"? Se a Metafísica
permaneceu até agora em um estado vago de incerteza e contradição,
deve atribuir-se unicamente a que esse problema assim como também a
diferença entre o juízo analítico e o sintético,
não se tinham apresentado antes ao pensamento.

A vida ou morte da Metafísica depende da so­lução
desse problema, ou da demonstração de que é impossível
resolvê-lo. David Hume é, de todos os filósofos, o que
mais se aproximou desse proble­ma, mas esteve longe de o determinar suficiente­mente
e não o pensou em toda a sua originalidade; detendo-se só ante
o princípio sintético da relação de causa e efeito
(“principium causalitatis”), acre­ditou poder deduzir que
o tal princípio é absoluta­mente impossível “a
priori”, e, segundo as suas conclusões, tudo o que denominamos
Metafísica descansaria sobre uma simples opinião de um pre­tendido
conhecimento racional, que no fato nasce simplesmente da experiência
e que recebe, do há­bito, certo aspecto de necessidade.

Esta afirmação, destruidora de toda a Filosofia pura, não
seria nunca emitida, caso o seu autor houvesse abordado em toda a sua generalidade
esse problema, porque então teria compreendido que, segundo o seu argumento,
tampouco pode­riam existir as matemáticas puras, pois elas con­têm
certamente princípios sintéticos “a priori”, e seu
bom senso teria retrocedido ante semelhante asserto.

Na resolução do precedente problema está também
compreendida ao mesmo tempo a possibi­lidade do emprego da razão
pura na fundação e construção de todas as ciências
que contêm um conhecimento teórico “a priori” dos
objetos, quer dizer, está contida a resposta destas perguntas:

Como é possível uma Matemática pura?

Como é possível uma Física pura?

Não se pode perguntar destas ciências, mais do que como são
possíveis porque, ao existirem como reais, demonstram pois que o são.

No tocante à Metafísica, como seus passos têm sido até
hoje tão desditosos, tão distantes do fim essencial da mesma,
que pode dizer-se que to­dos têm sido em vão, perfeitamente
explica-se a dúvida de sua possibilidade e de sua existência.

Mas, todavia, esta espécie de conhecimento deve, em certo sentido,
considerar-se como dado; e a Metafísica é real, senão
como ciência feita, pelo menos em sua disposição natural
(Metaphisica na­turalis), porque a razão humana, sem que esteja
movida por uma vaidade de uma onisciência; se­não simplesmente
estimulada por uma necessi­dade própria, marcha sem descanso algum
para questões que não podem ser resolvidas pelo uso empírico
da razão, nem por princípios que dela emanem. Isso sucede realmente
a todos os ho­mens, logo que a sua razão começa a especular;
por isso a Metafísica existiu sempre e existirá onde esteja
o homem. De tal modo a nossa ques­tão é agora: como é
possível a Metafísica como disposição natural?
Quer dizer: como nascem da natureza da razão humana universal essas
ques­tões, que a razão pura formula e que por necessi­dade
própria se sente impulsionada a resolver?

Mas como todos os ensaios feitos até hoje para resolver essas questões
naturais (por exemplo: a de saber se o mundo teve princípio, ou se
é eterno etc.) têm encontrado contradições inevitáveis,
não podemos contentar-nos com a simples disposição natural
para a Metafísica, quer dizer, com a fa­culdade da razão
pura, de que procede uma Metafísica, qualquer que seja; senão
que deve ser pos­sível chegar com ela a uma certeza ou ignorância
dos objetos e poder afirmar algo sobre os objetos dessas questões ou
sobre a potência da razão, e, por conseguinte, a estender com
confiança seu po­der ou colocá-la em limites seguros e determinados.
­Esta última questão, que resulta do problema geral que
precede, se expressa nos seguintes ter­mos: de que modo é possível
a Metafísica como ciência?

A crítica da razão conduz, por fim, necessa­riamente, à
ciência; o uso dogmático da razão sem crítica conduz,
pelo contrário, a afirmações infun­dadas, que sempre
podem ser contraditadas por outras não menos verossímeis, o
que conduz ao ceticismo.

Nem tampouco pode essa ciência ter uma ex­tensão excessiva,
porque não se ocupa dos objetos da razão, cuja diversidade é
infinita, mas sim­plesmente da razão mesma, de problemas que nascem
exclusivamente do seu seio e que se lhe apresentam, não pela natureza
das coisas que di­ferem dela, senão pela sua própria.

Mas uma vez que conheça perfeitamente a sua própria faculdade
em relação com os objetos que pode fornecer-lhe a experiência,
ser-lhe-á fácil determinar com toda segurança a exatidão
a ex­tensão e limites de seu exercício, intentado fora dos
limites da experiência.

Pode-se e deve-se, portanto, considerar como ineficaz todo ensaio feito até
aqui para construir uma metafísica dogmática, porque o que neles
existe de analítico, a saber: a simples decomposi­ção
dos conceitos que “a priori” se encontram em nossa razão,
não é seu fim total, senão somente um meio preliminar
da Metafísica, cujo objeto é estender nossos conhecimentos científicos
“a prio­ri".

A análise é incapaz de realizar isto, pois se re­duz a
mostrar o que se acha contido em ditos con­ceitos, e não diz como
foi adquirido “a priori”, para poder depois determinar o seu legítimo
em­prego nos objetos de todos os nossos conhecimen­tos em geral.

Não se necessita grande abnegação para re­nunciar
a todas essas pretensões, posto que as evidentes e inevitáveis
contradições da razão con­sigo mesma no processo
dogmático, causaram por largo tempo o descrédito da Metafísica.

Por isso será mister muita firmeza para que a dificuldade intrínseca
e a oposição externa não nos afastem de uma ciência
tão indispensável à razão humana, cuja raiz não
poderia estragar-se ainda que se cortassem todos os seus ramos exte­riores,
e que, mediante um método diferente e oposto ao que até hoje
tem sido empregado, pode adquirir um útil e fecundo desenvolvimento.

VII – Idéia e Divisão de Uma Ciência Par­ticular
sob o Nome de CRÍTICA DA RAZÃO PURA

De tudo o que precede resulta, pois, a idéia de uma ciência
particular que pode chamar-se “crítica da razão pura”,
por ser a razão a faculdade que proporciona os princípios do
conhecimento “a priori”.

Razão pura é, por isso, a que contém os prin­cípios
para conhecer algo absolutamente “a prio­ri”. Um orgânon
da razão pura seria o conjunto de princípios mediante os quais
todos os conhecimen­tos “a priori” poderiam ser adquiridos
e real­mente estabelecidos. A aplicação extensa de tal orgânon
produzida um sistema da razão pura. Mas como isto seria exigir demasiado
e como fica ainda por saber se a extensão de nossos conheci­mentos
é possível, e em que casos, podemos con­siderar a ciência
do simples juízo da razão pura, de suas partes e limites, como
a propedêutica para o sistema de razão pura.

Uma tal ciência não deveria denominar-se doutrina, mas somente
“crítica da razão pura: sua utilidade, desde o ponto de
vista especulativo, seria puramente negativa e não servida para am­pliar
nossa razão, senão para a emancipar de todo erro, o que já
não é pouco.

Chamo transcendental todo conhecimento que em geral se ocupe, não
dos objetos, mas da ma­neira que temos de conhecê-los, tanto quanto
pos­sível “a priori”. Um sistema de tais conceitos
se denominada “Filosofia transcendental”. Mas esta filosofia é
demasiada para começar, porque deve conter todo o conhecimento, tanto
o analítico como o sintético “a priori”, e se estenderia
muito além do que corresponde ao nosso plano.

Devemos tratar somente da análise quanto seja indispensável
e necessária para perceber em toda a sua extensão os princípios
da síntese a priori. Síntese que constitui o nosso único
objeto (assunto). Esta investigação, que não podemos
chamar propriamente doutrina, mas tão-só “crítica
transcendental”, pois tem por fim não o aumento dos nossos conhecimentos,
mas a retificação dos mesmos, vem a ser como a pedra de toque
para estimar o valor ou a insignificância de todos os conhecimentos
“a priori”, que é do que nos ocu­pamos atualmente.

A crítica é, portanto, no possível, uma prepa­ração
para um orgânon, e se este não se distingue, será pelo
menos um cânon, segundo o qual possa em todo caso ser exposto analítica
e sintetica­mente o sistema completo da filosofia da razão pura,
que deve consistir na extensão ou na sim­ples limitação
do conhecimento racional.

Se se atende a que dito sistema tem por obje­to, não a natureza
das coisas, que é infinita, mas o entendimento que julga sobre a natureza
das coi­sas, e ainda esse entendimento considerado so­mente em relação
aos seus conhecimentos “a prio­ri” , podemos presumir que
o sistema não é impos­sível, nem tão vasto,
que se não possa esperar o seu termo.

Como não necessitamos procurar esse objeto exteriormente nem pode
permanecer oculto para nós, não parece que tenha de ser tão
extenso que não possamos abarcá-lo em seu justo preço.
Menos ainda deve esperar-se que esta obra seja uma crí­tica dos
livros publicados sobre sistemas da razão pura; aqui só se trata
de uma crítica da faculdade da razão pura.

Somente tomando essa crítica como base, se consegue uma segura pedra
de toque para apre­ciar o valor das obras filosóficas antigas e
moder­nas; sem ela, o historiador e o juiz condenam in­competentemente
as asserções de outros, tendo-as como infundadas em nome das
próprias, que não têm melhor fundamento.

A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência,
cujo plano deve traçar a crítica da razão pura de uma
maneira arquitetônica, quer dizer, por princípios e com a mais
plena segurança da perfeição e validez de todos os princípios
da razão pura.

Se a crítica não toma o nome de Filosofia transcendental é
só porque deveria, para ser um sistema completo, conter uma análise
detalhada de todos os conhecimentos humanos “a priori”. A crítica
deve, sem dúvida alguma, colocar ante nossos olhos uma perfeita enumeração
de todos os conceitos fundamentais que constituem o conhe­cimento puro;
mas se abstém da detalhada análise deles, em parte, porque essa
decomposição não seria conforme com seu fim, e, ademais,
não apre­senta tanta dificuldade como a síntese, que é
ob­jeto da crítica e, em parte, também, porque seria contrário
à unidade do plano entreter-se numa análise e derivação
tão acabados, podendo eximir-se de tal empenho.

Demais, assim a análise perfeita dos conceitos “a priori”,
como a dedução dos que depois hão de ser derivados, é
coisa fácil de suprir sempre que antes tenham sido expostos detalhadamente
como princípios da síntese e nada lhes falta em relação
a esse fim essencial.

Segundo isto, tudo o que constitui a Filosofia transcendental pertence à
crítica da razão pura, que é a idéia completa
da Filosofia transcenden­tal; mas não esta ciência mesma,
porque na aná­lise só se estende até o que lhe é
indispensável para o perfeito juízo do conhecimento sintético
“a priori”.

O principal propósito que deve guiar-nos na divisão desta ciência
é não introduzir conceitos que contenham algo de empírico,
quer dizer, que o conhecimento “a priori” seja completamente puro.

Daqui, que, ainda que os princípios superiores de Moral e seus conceitos
fundamentais sejam co­nhecimentos “a priori”, não pertençam
sem em­bargo à Filosofia transcendental; porque os con­ceitos
de prazer ou dor, de desejo ou inclinação têm todos uma
origem empírica, e ainda que seja certo que não fundamentam
os preceitos morais, devem, sem embargo, formar parte da moralidade pura,
juntamente com o conceito do dever de do­minar os obstáculos ou
dos impulsos a que não devemos entregar-nos.

Donde se segue que a Filosofia transcendental é a filosofia da razão
pura simplesmente especula­tiva, porque todo o concernente à prática,
que con­tém móveis, refere-se aos sentimentos que perten­cem
às fontes empíricas do conhecimento.

Se se quer fazer a divisão dessa ciência desde o ponto de vista
geral de um sistema, deve ela compreender:

1.º – uma teoria elementar da razão pura;

2.° – uma teoria do método da razão pura.

Cada uma destas partes principais terá suas sub-divisões cujos
fundamentos não poderão ser facil­mente expostos aqui. O
que parece necessário re­cordar na introdução é
que o conhecimento hu­mano tem duas origens e que talvez ambas proce­dam
de uma comum raiz desconhecida para nós; estas são: a sensibilidade
e o entendimento; pela primeira os objetos nos são dados, e pelo segundo,
concebidos.

A sensibilidade pertence à Filosofia transcen­dental enquanto
contém representações “a priori”, que por
seu turno encerram as condições mediante as quais nos são
dados os objetos. A teoria trans­cendental da sensibilidade deve pertencer
à pri­meira parte da ciência elementar, pois as condi­ções
sob as quais se dão os objetos ao conheci­mento humano precedem
àquelas sob as quais são concebidos esses mesmos objetos.

PARTE PRIMEIRA

DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL

Estética Transcendental

Qualquer que seja o modo de como um conhe­cimento possa relacionar-se
com os objetos, aquele em que essa relação é imediata
e que serve de meio a todo pensamento, chama-se intuição (An­sechauung).(1)
Mas esta intuição não tem lugar senão sob a condição
de nos ser dado o objeto, e isto só é possível, para
o homem, modificando o nosso espírito de certa maneira.

A capacidade de receber (a receptividade) re­presentações
dos objetos segundo a maneira como eles nos afetam, denomina-se sensibilidade.
Os ob­jetos nos são dados mediante a sensibilidade e somente ela
é que nos fornece intuições; mas é pelo entendimento
que elas são pensadas, sendo dele que surgem os conceitos. Todo pensamento
deve em última análise, seja direta ou indireta­mente, mediante
certos caracteres, referir-se às intuições, e, conseguintemente,
à sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado.

A impressão de um objeto sobre esta capaci­dade de representações,
enquanto somos por ele afetados, é a sensação. Chama-se
empírica toda intuição que relaciona ao objeto, por meio
da sen­sação. O objeto indeterminado de uma intuição
empírica, denomina-se fenômeno. No fenômeno chamo matéria
àquilo que corresponde à sensa­ção; aquilo
pelo qual o que ele tem de diverso pode ser ordenado em determinadas relações,
denomino “forma do fenômeno”. Como aquilo mediante o qual
as sensações se ordenam e são suscetíveis de adquirir
certa forma não pode ser a sensação, infere-se que a
matéria dos fenômenos só nos pode ser fornecida “a
posteriori”, e que a forma dos mesmos deve achar-se já preparada
“a priori” no espírito para todos em geral, e que por conseguinte
pode ser considerada independentemente da sen­sação.

Toda a representação na qual não há traço
daquilo que pertence à sensação chamo pura (em sentido
transcendental). A forma pura das intui­ções sensíveis
em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos é percebido pela
intuição sob certas re­lações, encontra-se
“a priori” no espírito. Esta forma pura da sensibilidade
pode ainda ser desig­nada sob o nome de intuição pura. Assim,
quando na representação de um corpo eu me abstraio da­quilo
que a inteligência pensa, como substância, força, divisibilidade
etc., bem como daquilo que pertence à sensação, como
a impenetrabiidade, a dureza, a cor etc., ainda me resta alguma coisa desta
intuição empírica, a saber: a extensão e a figura.
Estas pertencem à intuição pura, que tem lugar “a
priori” no espírito, como uma forma pura da sensibilidade e sem
um objeto real do sentido ou sensação.

Denomino Estética transcendental (2) à ciência de todos
os princípios “a priori” da sensibilidade. É pois
esta ciência que deve constituir a primeira parte da teoria transcendental
dos elementos, por oposição àquela que contém
os princípios do pen­samento puro e que se denominará Lógica
trans­cendental.
Na Estética transcendental, nós começaremos por isolar
a sensibilidade, fazendo abstração de tudo quanto o entendimento
aí acrescenta e pensa por seus conceitos, de tal sorte que só
fique a in­tuição empírica. Em segundo lugar, separaremos,
também, da intuição tudo o que pertence à sensa­ção,
com o fim de ficarmos só com a intuição pura e com a
forma do fenômeno, que é a única coisa que a sensibilidade
nos pode dar “a priori”. Resul­tará desta pesquisa
que existem duas formas pu­ras da intuição sensível,
como princípios do conhecimento “a priori”, a saber: o
espaço e o tem­po, de cujo exame vamos agora ocupar-nos.

Primeira SeÇÃO

Da EstÉtica Transcendental do EspaÇo

Exposição metafísica deste conceito

Por meio dessa propriedade de nosso espírito que é o sentido
externo, nós nos representamos os objetos como estando fora de nós
e colocados todos no espaço. É lá que sua figura, sua
grandeza e suas relações recíprocas são determinadas
ou de­termináveis. O sentido interno, por meio do qual o espírito
se percebe a si mesmo intuitivamente, ou percebe o seu estado interior, não
nos dá, sem dú­vida, nenhuma intuição da alma,
ela mesma como objeto; mas há todavia uma forma determinada pela qual
é possível a intuição do seu estado inter­no,
e segundo a qual tudo que pertence às suas determinações
internas é representado segundo relações de tempo. O
tempo não pode ser percebido exteriormente, assim como o espaço
não pode ser considerado como algo interior em nós outros. Que
são, pois, tempo e espaço? São entidades reais ou são
somente determinações ou mesmo simples re­lações
das coisas? E essas relações seriam de tal natureza que eles
não cessariam de subsistir entre as coisas, mesmo quando não
fossem percebidos como objetos de intuição?

Ou são tais que só pertencem à forma da in­tuição,
e, por conseguinte, à qualidade subjetiva de nosso espírito,
sem a qual esses predicados ja­mais poderiam ser atribuidos a coisa alguma?

Para obter uma resposta exporemos primeira­mente o conceito de espaço.
Entendo por exposi­ção a clara representação
(ainda que não seja ex­tensa) do que pertence a um conceito; a
exposição é metafísica quando contém o
que o conceito apre­senta como dado “a priori”.

1.° – O espaço não é um conceito empírico,
derivado de experiências exteriores. Com efeito, para que eu possa referir
certas sensações a qual­quer coisa de exterior a mim (quer
dizer, a qual­quer coisa colocada em outro lugar do espaço di­verso
do que ocupo), e, para que possa representar as coisas como de fora e ao lado
umas das outras, e por conseguinte como não sendo somente dife­rentes,
mas colocadas em lugares diferentes, deve existir já em princípio
a representação do espaço. Esta representação
não pode, pois, nascer por experiência das relações
dos fenômenos exteriores, sendo que estas só são possíveis
mediante a sua prévia existência.

2.° – O espaço é uma representação
necessá­ria, “a priori”, que serve de fundamento a
todas as intuições externas. É impossível conceber
que não exista espaço, ainda que se possa pensar que nele não
exista nenhum objeto. Ele é considerado como a condição
da possibilidade dos fenômenos, e não como uma representação
deles dependente; e é uma representação “a priori”,
que é o fundamento dos fenômenos externos.

3.° – O espaço não é um conceito discursivo,
ou, como se diz, universal das relações das coisas em geral,
mas uma instituição pura. Com efeito, não se pode representar
mais que um só espaço, e quando se fala de muitos, entende-se
somente que se refere às partes do mesmo espaço único
e uni­versal. Estas partes só se concebem no espaço uno
e onicompreensivo, sem que pudessem precedê-lo como se fossem seus elementos
(cuja composição fora possível em um todo). O espaço
é essencialmente uno; a variedade que nele achamos, e, conseqüentemente,
o conceito universal de espaço em geral, fundam-se unicamente em limitações.
Da­qui se segue que o que serve de base a todos os conceitos que temos
do espaço, é uma intuição “a priori”
(que não é empírica). O mesmo acontece cóm os
princípios geométricos, como quando di­zemos, por exemplo,
que a soma de dois lados de um triángulo é maior do que o terceiro,
cuja cer­teza apodítica não procede dos conceitos gerais
de linha e triângulo, mas de uma intuição “a priori”.

4.° – O espaço é representado como uma grandeza infinita
dada. É necessário considerar todo conceito como uma representação
contida em uma multidão infinita de representações distintas
(das quais é expressão comum); mas nenhum conceito como tal
contém em si uma multidão in­finita de representações.
Sem embargo, assim concebemos o espaço (pois todas as suas partes coexistem
no infinito). A primitiva representação do espaço é,
pois, uma intuição “a priori” e não um conceito.

Exposição Transcendental do Conceito de Espaço

Entendo por exposição transcendental a apli­cação
de um conceito, como princípio que pode mostrar a possibilidade de
outros conhecimentos sintéticos “a priori”. Ora, isso supôe
duas coisas:

1 – que realmente emanem do conceito dado tais conhecimentos;

2 – que esses conhecimentos não sejam pos­síveis
senão sob a suposição de um modo de explicação
dado e tirado desse concei­to.

A Geometria é uma ciência que determina sin­teticamente,
e, portanto, “a priori”, as proprieda­des do espaço.
Que deve ser, pois, a representação do espaço, para que
tal conhecimento seja possí­vel? Deve ser, primeiramente, uma intuição;
por­que é impossível tirar de um simples conceito pro­posições
que o ultrapassem, como se verifica em Geometria (Int. V).

Mas essa intuição deve achar-se em nós, “a priori”,
quer dizer, anteriormente a toda percepção de um objeto, e,
por conseguinte, ser pura e não empírica.
Efetivamente, as proposições geométricas, como esta por
exemplo: o espaço não tem mais que três dimensões,
são todas apodíticas, quer di­zer que elas implicam a consciência
de sua neces­sidade; mas tais proposições não podem
ser jul­gamentos empíricos ou de experiência, nem deles derivar
(Introdução, II).
Como se encontra, pois, no espírito, uma in­tuição
externa anterior aos mesmos objetos e na qual o conceito desses objetos pode
ser determi­nado “a priori”? Isso só pode acontecer
sob a con­dição de que ela tenha sua sede no sujeito, com
a capacidade formal que ele tem de ser afetado por objetos e de receber assim
uma representação imediata, quer dizer, uma intuição,
por conse­guinte como forma do sentido exterior em geral.

Nossa explicação é a única que torna compre­ensível
a possibilidade da Geometria como ciência sintética. Toda explicação
que não oferece essa vantagem pode ser por esse sinal distinguida da
nossa, por maior semelhança que com ela apre­sente.

Consequências dos conceitos precedentes

a) O espaço não representa nenhuma proprie­dade das coisas,
já consideradas em si mesmas, ou em suas relações entre
si, quer dizer, nenhuma determinação que dependa dos objetos
mesmos e que permaneça neles se se faz abstração de todas
as condições subjetivas da intuição; porque nem
as determinações absolutas, nem as relativas po­dem ser
percebidas antes da existência das coisas a que pertencem, e por conseguinte
“a priori”.

b) O espaço não é mais do que a forma dos fenômenos
dos sentidos externos, quer dizer, a única condição subjetiva
da sensibilidade, me­diante a qual nos é possível a intuição
externa. E como a propriedade do sujeito de ser afetado pelas coisas precede
necessariamente a todas as intui­ções das mesmas, compreende-se
facilmente que a forma de todos os fenômenos pode achar-se dada no espírito
antes de toda percepção real, e, conse­quentemente, “a
priori”. Mas como seja uma in­tuição pura onde todos
os objetos devem ser de­terminados, ela pode conter anteriormente a toda
experiência os princípios de suas relações.

Não podemos, pois, falar de espaço, de seres extensos etc.,
senão debaixo do ponto de vista do homem. Nada significa a representação
do espaço, se saímos da condição subjetiva, única
sob a qual podemos receber a intuição externa, quer dizer, ser
afetados pelos objetos.

Este predicado só convém às coisas, enquanto elas nos
aparecem a nós, quer dizer, enquanto são objetos da sensibilidade.
A forma constante desta receptividade, que denominamos sensibilidade, é
a condição necessária de todas as relações,
em que os objetos são intuídos como exteriores a nós
ou­tros; e se dita forma for abstraída dos objetos é en­tão
uma intuição pura, que toma o nome de Espa­ço.

Como as condições particulares da sensibili­dade não
são as condições da possibilidade das coisas mesmas,
senão somente as de seus fenô­menos, bem podemos dizer que
o espaço compre­ende todas as coisas que nos aparecem exterior­mente;
mas não todas as coisas em si mesmas, quer sejam ou não percebidas
e qualquer que seja o sujeito que as perceba; porque de modo algum poderemos
julgar as intuições dos outros seres pensantes, nem saber se
se acham sujeitas às mesmas condições que limitam as
nossas intui­ções, e que têm para nós um valor
universal.

Se acrescentamos ao conceito do sujeito a li­mitação de
um juízo, então nosso juízo tem um valor absoluto ou
incondicionado. Esta proposição: todas as coisas estão
justapostas no espaço, vale sob esta restrição: desde
que tais coisas sejam to­madas como objetos da nossa intuição
sensível; se eu adito a condição ao conceito e digo:
todas as coisas, como fenômenos externos, estão justapos­tas
no espaço, essa regra valerá universalmente e sem restrição
alguma.

Nosso exame do espaço mostra-nos a sua re­alidade, quer dizer,
o seu valor objetivo relativa­mente a tudo aquilo que se pode apresentar-nos
como objeto; mas ao mesmo tempo, também, a idealidade do espaço
relativamente às coisas con­sideradas em si mesmas pela razão,
quer dizer, sem atender à natureza de nossa sensibilidade.

Afirmamos, pois, a realidade empírica do es­paço em relação
a toda experiência externa possí­vel; mas reconhecemos também
a idealidade transcendente do mesmo, quer dizer, a sua não existência,
desde o momento em que abandona­mos as condições de possibilidade
de toda expe­riência e cremos seja ele algo que serve de fun­damento
às coisas em si.

Excetuando o espaço, não existe nenhuma re­presentação
subjetiva que se refira a qualquer coisa de externo, e que possa dizer-se
objetiva “a priori”, porque de nenhuma delas podem derivar-se
proposições sintéticas “a priori”, como aquelas
que derivam da intuição no espaço. Para falar exatamente,
nenhuma idealidade lhes correspon­de, ainda que tenham em comum com o
espaço a sua dependência unicamente da constituição
sub­jetiva da sensibilidade, por exemplo: da vista, do ouvido, do tato;
mas as sensações de cores, dos sons, do calor, sendo puras sensações
e não intui­ções, não nos fazem por si mesmas
qualquer objeto, pelo menos “a priori”.

O fim desta observação é somente impedir que se explique
a idealidade atribuida ao espaço por exemplos inadequados, como as
cores, o sabor etc., que se considera, com razão, não como pro­priedade
das coisas, mas sim como modificações do indivíduo, e
que podem ser muito diferentes, como o são os indivíduos.

Neste último caso, com efeito, aquilo que não é originariamente
senão um fenômeno, por exem­plo, uma rosa tem, no sentido
empírico, o valor de uma coisa em si, se bem que, quanto à cor,
possa a parecer diferente aos diferentes olhos. Pelo con­trário,
o conceito transcendental dos fenômenos no espaço nos sugere
esta observação crítica, de que em geral nada do que
é intuído no espaço, é coisa em si; e, ainda,
que o espaço não é uma forma das coisas consideradas
em si mesmas, mas que os objetos não nos são conhecidos em si
mesmos e aquilo que denominamos objetos exteriores con­siste em simples
representações de nossa sensibi­lidade cuja forma é
o espaço, mas cujo verdadeiro correlativo, a coisa em si, permanece
desconhe­cida e incognoscível, jamais sendo indagada da experiência.

Segunda SeÇÃO

Da EstÉtica Transcendental do Tempo

Exposição metafísica do conceito de tempo

1.° O tempo não é um conceito empírico deri­vado
de experiência alguma, porque a simultanei­dade ou a sucessão
não seriam percebidas se a re­presentação “a
priori” do tempo não lhes servisse de fundamento. Só sob
esta suposição podemos representar-nos que uma coisa seja ao
mesmo tempo que outra (simultânea), ou em tempo dife­rente (sucessiva).

2.° O tempo é uma representação necessária
que serve de base a todas as intuições. Não se pode suprimir
o tempo nos fenômenos em geral, ainda que se possa separar, muito bem,
estes da­quele. O tempo, pois, é dado “a priori”. Só
nele é possível toda realidade dos fenômenos. Estes po­dem
todos desaparecer; mas o tempo mesmo, como condição geral de
sua possibilidade, não pode ser suprimido.

3.° Nesta necessidade “a priori” se funda também a
possibilidade dos princípios apodíticos, das relações
ou axiomas do tempo em geral, tais como o tempo não mais que uma dimensão;
os di­ferentes tempos não são simultâneos, mas suces­sivos
(enquanto que espaços diferentes não são sucessivos mas
sim simultâneos). Estes princípios não são deduzidos
da experiência, porque esta não pode dar uma estrita universalidade
nem uma cer­teza apodítica.

Poderíamos dizer: assim o ensina a observa­ção geral;
e não: isto deve ser assim. Estes princí­pios têm,
pois valor como regras, que tornam a experiência possível em
geral, pois são elas que nos proporcionam o conhecimento da experiência.

4.° O tempo não é nenhum conceito discur­sivo ou, como
se diz, geral, mas uma forma pura da intuição sensível.
Tempos diferentes não são senão partes de um mesmo tempo.
Ora, uma re­presentação que só pode ser dada por
um objeto único, é uma intuição.

Assim a proposição: tempos diferentes não po­dem
ser simultâneos, não se deriva de um con­ceito geral. Ela
é uma proposição sintética que não pode
derivar somente de conceitos. Acha-se pois contida imediatamente na intuição
e repre­sentação do tempo.

5.° A natureza infinita do tempo significa que toda quantidade determinada
de tempo é somente possível pelas limitações de
um único tempo que lhes serve de fundamento. Portanto, a representa­ção
primitiva do tempo deve ser dada como ilimi­tada. Ora, quando as partes
mesmas e quantida­des todas de um objeto só podem ser representa­das
e determinadas por meio de uma limitação, então a representação
toda desse objeto não pode ser dada por conceitos (porque estes só
contém re­presentações parciais) devendo ter como
funda­mento uma intuição parcial.

Exposição transcendental do conceito de tempo

Para explicar este ponto, posso reportar-me ao número 3 precedente,
onde, para ser breve, colo­quei o que propriamente é transcendental,
sob o titulo de exposição metafísica. Aqui somente acrescento
que os conceitos de mudança e de mo­vimento (como mudança
de lugar), só são possí­veis por e na representação
do tempo, e que se essa representação não fosse uma intuição
(inter­na) “a priori”, não houve a possibilidade de
uma mudança, quer dizer, a possibilidade de união de predicados
opostos contraditoriamente em um só e mesmo objeto (por exemplo, que
uma mesma coisa esteja e não esteja em um lugar).

Somente no tempo podem encontrar-se essas duas determinações
contraditoriamente opostas em uma mesma coisa, quer dizer, só na sucessão.
Explica, pois, nosso conceito de tempo, a possibili­dade de tantos conhecimentos
sintéticos “a priori”, como expõe a ciência
geral do movimento, que não é pouco fecunda.

Corolários destes conceitos

a) O tempo não subsiste por si mesmo, nem pertence às coisas
como determinação objetiva que permaneça na coisa mesma
uma vez abstraí­das todas as condições subjetivas
de sua intuição. No primeiro caso, o tempo, sem objeto real,
seria sem embargo algo real; no segundo, sendo uma determinação
das coisas mesmas, ou uma ordem estabelecida, não poderia preceder
aos objetos com sua condição, nem ser conhecido e percebido
“a priori” por proposições sintéticas.

Mas este último tem lugar se o tempo não é mais flue
a condição subjetiva sob a qual são pos­síveis
em nós as intuições; porque, então, esta forma
da intuição interna pode ser representada anteriormente aos
objetos, e por conseguinte “a priori”.

b) O tempo é a forma do sentido interno, que quer dizer, da intuição
de nós outros mesmos e de nosso estado interior. O tempo não
pode ser de­terminação alguma dos fenômenos externos,
não pertence nem a uma figura, nem a uma posição, pois
ele determina a relação das representações em
nossos estados internos.

E como esta intuição interior não forma figura alguma,
procuramos suprir esta falta pela analo­gia e representamos a sucessão
do tempo por uma linha prolongável até o infinito, cujas diversas
partes constituem uma série de uma só dimensão, e derivamos
das propriedades desta linha todas as do tempo, excetuando só uma,
a saber: que as par­tes das linhas são simultâneas, enquanto
que as do tempo são sempre sucessivas. Donde se deduz também
que a representação do tempo é uma in­tuição,
porque todas as suas relações podem ser expressas por uma intuição
exterior.

c) O tempo é a condição formal “a priori”
de todos os fenômenos em geral. O espaço, como forma pura de
todas as intuições externas, só ser­ve, como condição
“a priori”, para os fenômenos exteriores. Pelo contrário,
como todas as represen­tações, tenham ou não por
objeto coisas exteriores, pertencem, não obstante, por si mesmas, como
esse estado, sob a condição formal da intuição
in­terna, pertence ao tempo, é o tempo uma condição
“a priori” de todos os fenômenos interiores (de nossa alma)
e a condição imediata dos fénômenos externos.

Se posso dizer “a priori”: todos os fenômenos exteriores
estão no espaço e são determinados “a priori”
segundo as relações do espaço, posso afir­mar também
em um sentido geral e partindo do princípio do sentido interno: todos
os fenômenos em geral, quer dizer, todos os objetos dos sentidos estão
no tempo, e estão necessariamente sujeitos às relações
do tempo.

O tempo é um pensamento vazio (nada) se fa­zemos abstração
de nossa maneira de intuição in­terna, do modo como compreendemos
todas as in­tuições exteriores em nossa faculdade de represen­tar
(mediante essa intuição), e tomamos, por con­seguinte, os
objetos tais como podem ser em si mesmos. O tempo tem um valor objetivo somente
em relação aos fenômenos porque estes são coisas
que consideramos como objetos de nossos senti­dos; mas deixa de ter esse
valor objetivo quando se faz abstração da sensibilidade de nossa
intuição (por conseguinte, desta espécie de representação
que nos é própria), quando se fala de coisas em geral.

O tempo, que não é senão uma condição
sub­jetiva de nossa intuição geral (sempre sensível,
quer dizer, só se produz quando somos afetados pelos objetos), considerado
em si mesmo e fora do sujeito, não é nada. É, não
obstante, necessaria­mente objetivo em relação a todos os
fenômenos, e por conseguinte, também a todas as coisas que a
experiência pode oferecer-nos. Não podemos dizer: todas as coisas
existem no tempo, porque, no con­ceito de coisas em geral, faz-se abstração
de toda maneira de intuição dessas coisas e sendo esta propriamente
a condição pela qual o tempo per­tence à representação
dos objetos.

Mas se esta condição se acrescenta ao con­ceito e se diz:
todas as coisas, como fenômenos (objetos da intuição sensível),
existem no tempo, então tem esse princípio o seu exato valor
objetivo e a sua universalidade “a priori”.

As nossas considerações mostram a realidade empírica
do tempo, quer dizer, o seu valor objetivo relativamente a todos os objetos
que possam oferecer-se aos nossos sentidos. E como a nossa in­tuição
é sempre sensível, não pode nunca oferecer-se a nós
outros um objeto na experiência, que. não seja sujeito às
condições do tempo.

Contestamos, portanto, toda pretensão da re­alidade absoluta do
tempo, a saber: a que o consi­dera, sem atender à forma da nossa
intuição sen­sível, como absolutamente inerente às
coisas, quer dizer, como condição ou propriedade. Tais proprie­dades
que pertencem às coisas em si, não podem nunca ser dadas pelos
sentidos.

Cumpre admitir a idealidade transcendental do tempo, no sentido de que se
se abstraem as condições subjetivas da intuição
sensível, não é absolutamente nada não podendo
ser atribuida, tampouco, as coisas em si mesmas (independen­temente de
toda relação com a nossa intuição).
Todavia, esta idealidade, a mesma que a do espaço, não deve
ser comparada aos dados subje­tivos das sensações, porque
aqui se supõe que o fenômeno mesmo a que se unem estes atributos
tem uma realidade objetiva; a realidade que falta completamente aqui, a não
ser que se considere só empiricamente, quer dizer, seja a título
de subs­tância, seja a título de qualidade. Veja-se sobre
isto a observação da primeira seção.

ExplicaÇÃo

Contra esta teoria, que admite a realidade empírica do tempo, combatendo
a sua realidade absoluta e transcendental, homens doutos formularam-me uma
objeção, que me parece ocorra ao comum dos leitores, pouco familiariza­dos
com estes assuntos. Tal é a objeção: há mu­danças
reais (o que é provado pela sucessão de nossas representações,
querendo-se negar os fe­nômenos externos e suas mudanças);
ora, a mu­dança das representações não é
possível senão no tempo; logo, o tempo é qualquer coisa
de real.

A resposta não é difícil: aceito todo o argu­mento.
O tempo, não resta dúvida, é qualquer coisa de real:
é, com efeito, a forma real da intui­ção interna.
Possui, pois, uma realidade subjetiva em relação à experiência
interna: quer dizer, te­nho realmente a representação do
tempo e de mi­nhas próprias determinações nele.

Conseqüentemente, o tempo não é real como objeto. Mas,
se eu mesmo ou um outro ente me pudesse perceber sem esta condição
da sensibili­dade, estas mesmas determinações que nós
nos representamos atualmente como mudanças nos dariam um conhecimento
em que não se encon­trará mais a representação
do tempo, nem, por conseguinte, a de mudança, não existiriam.
Sua realidade empírica permanece, pois, como condi­ção
de todas as nossas experiências. Mas a reali­dade absoluta não
se pode, segundo vimos, conce­der ao tempo.

Ele não é mais do que a forma de nossa intui­ção
interna. Se se tira desta intuição a condição
especial de nossa sensibilidade, desaparece igualmente o conceito de tempo,
porque esta forma não pertence aos objetos mesmos, mas ao sujeito que
os percebe.

Porém a causa, pela qual tal objeção é formu­lada
tão concordemente, entre os que nada têm a opor contra a idealidade
do espaço, é esta: é que não esperavam poder demonstrar
apoditicamente a realidade absoluta do espaço, inibidos, pelo idea­lismo,
segundo o qual a realidade dos objetos exteriores não é suscetível
de nenhuma demonstra­ção rigorosa, enquanto que a do objeto
do nosso sentido interno (de mim mesmo e de meu estado) lhes parecia imediatamente
claro pela consciên­cia.

Aqueles poderiam ser simples aparência; mas este, a seu juízo,
é inegavelmente qualquer coisa real. Entretanto, os partidários
de tal opinião olvi­dam que essas duas classes de objetos, sem
neces­sidade de combater sua realidade como represen­tações,
pertencem somente ao fenômeno, que tem sempre dois aspectos: um, quando
o objeto é con­siderado em si mesmo (prescindindo da maneira de
percebê-lo, cuja natureza permanecerá sendo sempre problemática);
outro, quando se considera a forma da intuição deste objeto,
forma que não deve ser buscada no objeto em si, mas no sujeito, a quem
aparece, e que, não obstante, pertence real e necessariamente ao fenômeno
que esse ob­jeto manifesta. São, pois, tempo e espaço duas
fontes de conhecimentos, de que podem derivar-se “a priori” diferentes
conhecimentos sintéticos, como mostra o exemplo das matemáticas
puras, respeito ao conhecimento do espaço e de suas re­lações.

Eles são, ambos, formas puras de toda intui­ção
sensível que tornam possíveis as proposições sintéticas
“a priori”. Mas estas fontes do conheci­mento “a priori”,
pela mesma razão de que só são simples condições
da sensibilidade, determinam o seu próprio limite, enquanto se referem
aos obje­tos, considerados como fenômenos, e não repre­sentam
coisas em si. O valor “a priori” de ditas fontes se limita aos
fenômenos; não tem aplicação objetiva fora dos
mesmos.

Esta realidade formal do tempo e do espaço deixa intata a seguridade
do conhecimento expe­rimental, porque estamos igualmente certos desse
conhecimento, quer essas formas sejam necessa­riamente inerentes às
coisas em si, quer somente à nossa intuição das coisas.

Pelo contrário, aqueles que sustentam a reali­dade absoluta do
espaço e do tempo, quer os to­mem como subsistentes por si mesmos,
quer como inerentes nos objetos, acham-se em contradição com
os princípios da experiência. Se se decidem pelo primeiro e tomam
espaço e tempo como sub­sistentes por si mesmos (partido comumente
se­guido pelos fisico-matemáticos), têm que admitir necessariamente
duas quimeras (espaço e tempo), eternas e infinitas, que só
existem (sem que seja algo real) para compreender em seu seio tudo quanto
é real.

Aceitando a segunda opinião seguida por al­guns metafísicos
da natureza, que consiste em considerar tempo e espaço como relações
de fenô­menos (simultâneos no espaço e sucessivos no
tempo), abstraídos da experiência, ainda que con­fusamente
representados nessa abstração, é pre­ciso negar a
validade das teorias matemáticas “a priori” das coisas
reais (p. ex., no espaço); ou pelo menos sua certeza apoditica, posto
que não possa ser esta achada “a posteriori”.

De igual modo, os conceitos “a priori” de es­paço
e tempo, segundo esta opinião, seriam só criação
da fantasia cuja verdadeira fonte deve buscar-se na experiência, porque
de suas relações abstraídas se tem valido fantasia para
formar algo que contenha o que de geral há nela, ainda que sem as restrições
que a natureza lhes tem posto.

Os primeiros têm a vantagem de deixar livre o campo dos fenômenos
para as proposições mate­máticas; mas essas mesmas
condições os embara­çam em extremo quando o entendimento
quer sair deste campo.

Os segundos têm neste último ponto a vanta­gem de que as
representações de espaço e tempo não os detêm,
quando quer julgar os objetos, não como fenômenos, mas em sua
relação com o en­tendimento; mas não podem nem dar
um funda­mento das possibilidades dos conhecimentos ma­temáticos
“a priori”, faltando-lhes uma verdadeira intuição
objetiva “a priori”, nem tampouco condu­zir a uma conformidade
necessária as leis da ex­periência e aquelas asserções.

Em nossa teoria da verdadeira natureza destas duas formas primitivas da sensibilidade
ficam re­solvidas ambas as dificuldades. Finalmente é ób­vio
que a Estética transcendental não pode conter mais do que esses
elementos, a saber: espaço e tempo, posto que todos os outros conceitos,
que pertencem à sensibilidade, mesmo o de movi­mento que reúne
os dois anteriores, implicam algo empírico, porque o movimento supõe
a percepção de algo movível.

O espaço considerado em si mesmo não tem nada de movível:
o movível deve ser, pois, algo que somente se encontra pela experiência
no es­paço, e, conseguintemente, um dado empírico. A Estética
transcendental não pode tampouco contar entre os seus dados “a
priori” o conceito de mu­dança; porque o tempo mesmo não
muda, mas sim algo que existe no tempo. Necessita-se, pois, para isso, a percepção
de uma certa coisa e da su­cessão de suas determinações,
por conseguinte, da experiência.

Observações gerais sobre a Estética transcendental

I – Com o fim de evitar erros e más interpre­tações
neste assunto, devemos explicar clara­mente nossa opinião sobre
a natureza fundamen­tal do conhecimento sensível em geral.

Temos querido provar que todas as nossas in­tuições só
são representações de fenômenos, que não
percebemos as coisas como são em si mes­mas, nem são as
suas relações tais como se nos apresentam, e que se suprimíssemos
nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos
nos­sos sentidos em geral, desapareceriam também todas as propriedades,
todas as relações dos obje­tos no espaço e no tempo,
e também o espaço e o tempo, porque tudo isto, como fenômeno,
não pode existir em si, mas somente em nós mesmos.

Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a natureza
das coisas em si, independen­tes de toda receptividade da nossa sensibilidade.
Não conhecemos delas senão a maneira que temos de percebê-las;
maneira que nos é peculiar; mas que tão pouco deve ser necessariamente
a de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.

É a esta maneira de perceber que nos atere­mos, unicamente.

Tempo e espaço são as formas puras desta percepção,
e a sensação, em geral, a sua matéria. Só podemos
conhecer “a priori” as formas puras do espaço e do tempo,
quer dizer, antes de toda percepção efetiva, e por isso se denomina
intuição pura; a sensação, pelo contrário,
é que faz ser o nosso conhecimento “a posteriori”, quer
dizer, in­tuição empírica. Aquelas formas pertencem
abso­luta e necessariamente à nossa sensibilidade, e qualquer espécie
que sejam as nossas sensações; estas podem ser mui diversas.

Por mais alto que fosse o grau de clareza que pudéssemos dar à
nossa intuição, nunca nos apro­ximaríamos da natureza
das coisas em si; porque em todo caso só conheceríamos perfeitamente
nossa maneira de intuição, quer dizer, nossa sen­sibilidade,
e isto sempre sob as condições de tempo e espaço originariamente
inerentes no sujeito.

O mais perfeito conhecimento dos fenômenos que é o único
que nos é dado atingir, jamais nos proporcionará o conhecimento
dos objetos em si mesmos.
Desnaturam-se os conceitos de sensibilidade e de fenômeno inutilizando
e destruindo toda a doutrina do conhecimento, quando se quer que toda a nossa
sensibilidade consista na representa­ção confusa das coisas,
representação que conte­ria absolutamente tudo o que elas
são em si, ainda que sob a forma de um amontoado de caracteres e representações
parciais, que não distinguimos cla­ramente uns de outros.

A diferença entre uma representação obscura e outra
clara é puramente lógica, e não se refere ao seu conteúdo.

Sem dúvida, o conceito de direito, empregado pela sã inteligência
comum, contém tudo o que a mais sutil especulação pode
desenvolver do mes­mo, ainda que no uso prático e comum não
se te­nha consciência das diversas representações
con­tidas nesse conceito. Mas não se pode dizer por isto que o
conceito vulgar seja sensível e não de­signe senão
um simples fenômeno; porque o di­reito não poderia ser um
objeto de percepção, pois o seu conceito existe no entendimento
e representa uma qualidade (a moral) das ações, que elas pos­suem
em si mesmas.

Pelo contrário, a representação de um corpo na intuição
não contém absolutamente nada que propriamente possa pertencer
a um objeto em si, mas somente o fenômeno (a manifestação)
de al­guma coisa e a maneira de como nos afeta.

Ora, esta receptividade de nossa faculdade de conhecer, que se denomina sensibilidade,
perma­nece sempre profundamente distinta do conheci­mento do objeto
em si, ainda que se pudesse pene­trar o fenômeno até o seu
âmago. A filosofia leib­nitzwolfiana adotou, nas suas indagações
sobre a natureza e origem dos nossos conhecimentos, um ponto de vista errôneo,
ao considerar como exclu­sivamente lógica a diferença entre
a sensibilidade e o entendimento.

Tal diferença é claramente transcendental, e não se
refere só à clareza ou obscuridade, mas também à
origem e conteúdo de nossos conheci­mentos; de tal sorte que, mediante
a sensibilidade, não conhecemos de nenhuma maneira as coisas em si
mesmas. Desde o momento em que fazemos abstração de nossa natureza
subjetiva, o objeto representado e as propriedades que lhe atribuímos
mediante a intuição desaparecem; porque a natu­reza subjetiva
é precisamente quem determina a forma desse objeto como fenômeno.

Por outro lado, sabemos distinguir muito bem nos fenômenos o que pertence
essencialmente à intuição dos mesmos, e vale em geral
para todo o sentido humano, daquilo que só lhe pertence de modo acidental,
e que não vale para toda relação em geral da sensibilidade,
mas unicamente para a posição particular ou organização
deste ou da­quele sentido. Do primeiro conhecimento se diz que representa
a coisa em si e do segundo que re­presenta meramente o fenômeno.
Porém essa dife­rença é só empírica.
Se se permanece nela (como comumente acontece) e não se considera nova­mente
aquela intuição empírica (conforme deverá suceder)
como um puro fenômeno, no qual não se encontra nada que pertença
a uma coisa em si, desaparece então a nossa distinção
transcendental e cremos conhecer as coisas em si, ainda que nas mais profundas
investigações do mundo sensível, só possamos ocupar-nos
de fenômenos.

Assim; por exemplo, se dissermos do arco-iris que ele é um simples
fenômeno que se mostra na chuva iluminada pelo sol, e da chuva que é
uma coisa em si, essa maneira de falar é exata, desde que entendemos
a chuva em um sentido físico, quer dizer, como uma coisa que, na experiência
geral, é determinada de tal modo e não diversamente, quaisquer
que sejam as disposições dos sentidos.

Entretanto, se tomamos esse fenômeno empí­rico de uma maneira
geral, e sem nos ocuparmos de seu acordo com todos os sentidos humanos, perguntarmos
se ele representa também um objeto em si (não direi das gotas
de chuva, porque são já, como fenômenos, objetos empíricos),
a questão da relação entre a representação
e o objeto vem a ser transcendental. Não somente essas gotas de chuva
são simples fenômenos, mas mesmo a sua forma e até o espaço
em que tombam nada são em si; não passam de modificações
ou de disposições de nossa intuição sensível.

Quanto ao objeto transcendental, permanece completamente ignorado por nós.

Outra importante advertência de nossa Esté­tica transcendental
é que não merece ser recebida somente como uma hipótese
verossímil, mas como um valor tão certo e seguro como pode exigir-se
de uma teoria que deve servir de orgânon. E para tornar completamente
evidente esta certeza, esco­lhamos um caso que mostre visivelmente o seu
va­lor e possa dar luz ao que já foi dito no número 3.

Suponho que o espaço e o tempo existem em si objetivamente e como
condições da possibilidade das coisas em si, uma primeira dificuldade
se apresenta. Nós tiramos “a priori” de um e doutro, mas
particularmente do espaço, que aqui toma­mos, como principal exemplo,
um grande número de proposições apodíticas e sintéticas.

Posto que as proposições da Geometria são co­nhecidas
sinteticamente “a priori” e com uma cer­teza apodítica,
pergunto: de onde tomais seme­lhantes proposições e em que
se apóia o nosso en­tendimento para chegar a essas verdades absolu­tamente
necessárias e universalmente válidas?

Só existem dois meios para elas: os conceitos e as intuições.
Tais meios nos são fornecidos “a priori” ou “a posteriori”.

Os conceitos empíricos e o seu fundamento, ou seja, a intuição
empírica, nunca podem fornecer-nos outras proposições
sintéticas além das empíri­cas e de que caracterizam
todas as proposições da Geometria.

O outro meio restante consistiria em alcançar esses conhecimentos
com simples conceitos ou in­tuições “a priori”;
mas resulta que de simples conceitos não se pode chegar a nenhum conheci­mento
sintético, pois só permitem conhecimentos analíticos.
Tomai, por exemplo, a proposição: en­tre duas linhas retas
não pode encerrar-se um es­paço e, por conseguinte, não
é possível figura al­guma; procurai deduzi-la dos conceitos
de reta e do número dois. Tomai outro exemplo: uma figura é
possível com três linhas retas, e intentai deduzi-la desses mesmos
conceitos.

Todos os vossos esforços seriam inúteis, e vos verieis necessitados
de recorrer à intuição, que é o que sempre fez
a Geometria.

Dai-nos um objeto na intuição; mas de que es­pécie
é essa intuição? É ela pura, “a priori”,
ou empírica? Se fosse esta última, nunca poderia provir dela
uma proposição universal, e menos ainda, uma apodítica
porque, mediante a expe­riência, não podem ter esta necessidade
e esta universalidade que, sob esse título de proposições
experimentais, não se podem jamais conseguir de semelhante natureza.

Ver-vos-eis obrigados a dar “a priori” vosso ob­jeto na intuição
e fundar nele vossa proposição sintética. Se não
existisse em vós uma faculdade de intuição “a priori”,
e se esta condição subjeti­va, quanto à forma, não
fosse ao mesmo tempo a geral condição “a priori”,
única que torna possível o objeto desta intuição
(externa) mesma; se fosse, enfim, o objeto (o triângulo) algo em si
mesmo e alheio a toda relação com vosso sujeito, como po­dei-íeis
dizer que o que é necessário em vossas condições
subjetivas para construir um triângulo deve também pertencer
imprescindivelmente ao triângulo em si?

Porque vós não podeis acrescentar aos vossos conceitos (de
três linhas) nada de novo (a figura), que necessariamente deva encontrar-se
no objeto porque esse objeto é dado anteriormente ao nosso conhecimento
e não por ele. Se não fosse, pois, o espaço (e mesmo
o tempo) uma forma pura de vossa intuição, que contém
as condições “a prio­ri”, as únicas que
podem fazer com que sejam para vós as coisas objetos exteriores, e
que sem esta condição subjetiva não são nada em
si, não poderíeis determinar nada sinteticamente “a prio­ri”
dos objetos externos. É portanto indubitavel­mente certo, e não
só verossímil ou possível, que espaço e tempo,
como condições necessárias para toda experiência
(interna e externa) não são mais do que condições
puramente subjetivas de todas as nossas intuições, e que a este
respeito todos os objetos são somente fenômenos e não
coisas em si dadas desta maneira.

Destes pode dizer-se muito “a priori”, refe­rente à
forma desses objetos; mas nada da coisa em si mesma que possa servir de fundamento
a esses fenômenos.

II – Para confirmar esta teoria da idealidade e do sentido interno
e externo e, conseqüentemen­te, de todos os objetos do sentido, como
puros fe­nômenos, pode-se todavia observar que tudo o que pertence
à intuição em nosso conhecimento (exce­tuando o sentimento
de prazer, de dor e a vontade, que não são conhecimentos) não
contém mais que simples relações: relações
de lugar em uma intui­ção (extensão), de mudança
de lugar (movimento) e de leis que determinam essa mudança (forças
motrizes).

Mas o que está presente no lugar ou o que atua nas coisas mesmas fora
da mudança de lugar não está dado na intuição.
Pois bem; como pelas simples relações não pode ser conhecida
uma coisa em si, é justo julgar que o sentido externo, que só
nos fornece simples representações de rela­ções,
não possa compreender em sua representa­ção mais
do que a relação de um objeto com o su­jeito, e não
o que é próprio ao objeto e lhe pertence em si.

O mesmo sucede com a intuição interna. Não são
só as representações dos sentidos externos que constituem
a matéria própria com que enriquece­mos nosso espírito,
porque o tempo (no qual colo­camos estas representações,
e que precede à cons­ciência das mesmas na experiência,
servindo-lhes de fundamento como condição formal da maneira
que temos de dispô-las em nosso espírito) compre­ende já
relações de sucessão, de simultaneidade, e do que é
simultâneo com o sucessivo (permanen­te)

Ora, tudo o que pode, como representação, preceder a todo ato
de pensamento, é a intuição; e como ela não contém
senão relações, a firma da intuição, que
não representa nada até que alguma coisa seja dada no espírito,
não pode ser outra coisa mais do que a maneira segundo a qual o es­pírito
foi afetado por sua própria atividade, ou por esta posição
de sua representação, por conseguin­te, por si mesmo, quer
dizer, um sentido interno considerado em sua forma.

Tudo o que é representado por um sentido é sempre um fenômeno,
e, por conseguinte, ou não deve reconhecer-se um sentido interno, ou
o su­jeito que é objeto do mesmo não pode ser repre­sentado
por este sentido interno senão como um fenômeno, e não
como ele se julgaria a si mesmo, se sua intuição fosse simplesmente
espontânea, quer dizer: intelectual. Toda a dificuldade consiste em
saber-se como um sujeito pode perceber-se intuitivamente a si mesmo; mas esta
dificuldade é comum a todas as teorias.

A consciência de si mesmo (apercepção) é a representação
simples do eu; e se tudo que existe de diverso no sujeito fosse dado espontaneamente
nesta representação, a intuição interna seria
ente intelectual. Esta consciência exige no homem uma percepção
interna diversa, previamente dada no sujeito, e o modo segundo o qual é
dada no es­pírito sem alguma espontaneidade deve, em vir­tude
dessa diferença, chamar-se sensibilidade.

Para que a faculdade de ter consciência de si mesmo possa descobrir
(apreender) aquilo que está no espírito, cumpre que aquele seja
afetado: só sob esta condição podemos ter a intuição
de nós mesmos; mas a forma desta intuição, existindo
previamente no espírito, determina na represen­tação
do tempo a maneira de compor a diversidade no espírito; ele se percebe
intuitivamente, não como se representara a si mesmo imediatamente e
em virtude de sua espontaneidade, mas segundo a maneira pela qual ele é
intuitivamente afetado, e, por conseguinte, tal como ele se oferece a si pró­prio
e não como é.
III – Ao afirmar que a intuição dos objetos exteriores,
e a que o espírito tem de si mesmo, re­presentam, no espaço
e no tempo, cada uma de per si, seu objeto, tal como este afeta os nossos
sentidos, isto é, segundo nos aparecem, não quero dizer que
esses objetos sejam mera aparência. E sustentamos isto, porque, no fenômeno,
os objetos e também as propriedades que lhe atribuímos são
sempre considerados como algo dado realmente; somente, como essas qualidades
dependem uni­camente da maneira de intuição, do sujeito
em sua relação com o objeto dado, este objeto, como manifestação
de si mesmo, é distinto do que ele é em si.

Assim, não digo que os corpos parecem existir simplesmente fora de
mim, ou que minha alma só parece estar dada em minha consciência,
quando afirmo que a qualidade do tempo e do espaço, se­gundo me
represento e onde coloco a condição de sua existência,
existe em meu modo de intuição e não nos objetos em si.
Seria culpa minha se o que deve considerar-se como fenômeno fosse tido
como uma pura aparência.(3)

Mas isto não se dá com o nosso princípio de idealidade
de todas as nossas intuições sensíveis; concedendo-se,
pelo contrário, uma realidade obje­tiva a essas formas da representação,
tudo inevi­tavelmente se converte em pura aparência. Ao considerar
tempo e espaço como qualidades que devem encontrar-se nas coisas em
si para sua pos­sibilidade, reflita-se nos absurdos a que chegam, admitindo
duas coisas infinitas sem ser substân­cias, nem algo realmente inerente
nelas, mas que devem ser algo existente para condição necessária
de existência para todos os objetos, e que subsisti­riam ainda mesmo
que cessassem de existir todas as coisas.

Não se deve censurar ao bom Berkeley, por ter reduzido tudo à
aparência. Nossa própria existên­cia, dependente em
tal caso da realidade subsis­tente em si de uma quimera, tal como o tempo,
será como este uma vá aparência: absurdo que até
agora ninguém ousou sustentar.

IV – Na Teologia natural, em que se con­cebe um objeto que não
só não pode ser para nós outros objeto de intuição,
nem tampouco o pode ser de nenhuma intuição sensível,
distingue-se cuidadosamente de sua própria intuição as
condi­ções de espaço e tempo (digo de sua intuição,
por­que todo o seu conhecimento deve ter este caráter e não
o de pensamento, que supõe limites).

Mas, com que direito se procede assim, uma vez que se consideram espaço
e tempo como for­mas dos objetos em si, e formas tais que subsisti­riam
como condições “a priori” da existência das
coisas, ainda que estas desaparecessem? Se são condições
de toda existência em geral, devem ser também da existência
de Deus.

Se não são, pois, considerados espaço e tempo como formas
objetivas de todas as coisas, é indis­pensável tê-los
por formas subjetivas de nosso modo de intuição, tanto interna
como externa. E afirmamos de tais intuições a sua qualidade
de sensíveis, porque não são tais que por si sós
pro­duzam a existência real do objeto (cujo modo de intuição
cremos que só pode pertencer ao ser su­premo), mas que depende
da existência do objeto e só são possíveis sendo
afetada a faculdade repre­sentativa do sujeito.

Tampouco é necessário que limitemos a ma­neira de conhecer
por intuição pelas quais repre­sentamos as coisas no espaço
e no tempo, à sensi­bilidade humana. Quiçá todos
os seres finitos, pensantes, conformem necessariamente nisto com os homens
(ainda que nada possamos decidir neste particular); mas nem por essa universali­dade
deixará a intuição de ser sensibilidade, por­que
é derivada (intuitus derivatus) e não primi­tiva (intuitus
originarius), e, por conseguinte, não é intuição
intelectual, como a que parece per­tencer tão-só ao ser
supremo pelas razões antes indicadas e não um ser independente,
tanto pela sua existência como pela sua intuição (que
deter­mina a sua existência em relação com os objetos
dados). Esta última observação não deve ser con­siderada
mais do que um esclarecimento e não como uma prova de nossa teoria
estética.

ConclusÃo da EstÉtica transcendental

Já possuímos um dos dados requeridos para a solução
do problema geral da Filosofia transcen­dental: como são possíveis
as proposições sintéti­cas “a priori”?

Quer dizer, estas intuições puras “a priori”: espaço
e tempo. Quando em nosso juízo “a priori” queremos sair
do conceito dado, encontramos algo que pode ser descoberto “a priori”
na intuição cor­respondente e não no conceito, e
que pode ser en­laçado sinteticamente a este conceito; mas juízos
que, por esta razão, só alcançam aos objetos dos sentidos
e só valem para os da experiência.

Primeira Divisão da Lógica Transcendental – Analítica
Transcendental

Esta analítica é a decomposição de todo nosso
conhecimento “a priori" nos elementos do conhe­cimento puro
do entendimento. É preciso levar em conta os seguintes pontos: 1.°
que os conceitos sejam puros e não empíricos; 2.° que os
mesmos não pertençam à intuição e à
sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento; 3.° que sejam conceitos
elementares diferentes dos derivados ou dos que são compostos; 4.°
que seu quadro seja completo e abarque todo o campo do entendimento puro.

Esta perfeição de uma ciência não pode ser admitida
com toda confiança, se ela não for mais do que um agregado formado
por simples tentati­vas: ela só é possível por meio
de uma idéia do todo do conhecimento “a priori” devida
ao enten­dimento, e, pela divisão, precisa por isso mesmo dos conceitos
que a constituem, em uma palavra, por meio de sua ligação em
um sistema. O enten­dimento puro não se distingue somente de todo
elemento empírico, mas ainda de toda sensibilida­de. Ele forma
uma unidade que existe por si mes­ma, que subsiste em si mesma, e que
não pode ser acrescida por qualquer adição de elemento
estra­nho.

O conjunto de seu conhecimento formará, pois, um sistema compreensível
e determinável, sob uma só idéia e cuja totalidade e
organização servem para provar a legitimidade e valor de todos
os elementos constitutivos do conhecimento. Mas esta parte da Lógica
transcendental se divide em dois livros, compreendendo um os conceitos e ou­tro,
os princípios do entendimento puro.

LIVRO PRIMEIRO

DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL

Analítica dos conceitos

Entendo por analítica dos conceitos, não a análise dos
mesmos ou o método, geralmente se­guido nas indagações
filosóficas, consistente em decompor os conceitos que se apresentam
para dar clareza ao seu conteúdo, mas a decomposição,
ainda pouco intentada, da faculdade mesma do entendimento, para examinar a
possibilidade dos conceitos “a priori” que buscamos somente no
en­tendimento, como no seu lugar de origem, e consi­derar, em geral,
a aplicação pura desta faculdade. Tal é o objeto da Filosofia
transcendental; o res­tante é o estudo lógico dos conceitos,
tal como se usa na Filosofia.

Seguiremos os conceitos puros até as suas raí­zes ou seus
primeiros rudimentos, no entendi­mento humano, onde existiam precedentemente,
à espera da experiência para o seu desenvolvimento e que, livres
por esse mesmo entendimento das condições empíricas que
lhes são inerentes, che­guem a ser expostos em toda a sua pureza.

CAPÍTULO I

Orientação para a descoberta de todos os conceitos puros
do entendimento

Ao exercitar a faculdade de conhecer em de­terminadas circunstâncias,
apresentam-se diferen­tes conceitos que mostram a existência desta
faculdade, e que podem ser expostas em uma lista mais ou menos extensa, segundo
seja a sua obser­vação mais detida e profunda. Não
se pode assina­lar, com segurança, o termo desta indagação,
cujo procedimento é, para dizer assim, mecânico.

Existem também conceitos, que se descobrem só ocasionalmente,
e que não estão em uma ordem dada nem em uma unidade sistemática.
A ordena­ção destes conceitos só pode fazer-se mediante
certas analogias e a importância de seu conteúdo, indo do simples
ao composto; tal série nada possui de sistemático ainda que
tenha sido realizada me­todicamente.

A Filosofia transcendental tem a vantagem, e por seu turno a missão,
de investigar estes concei­tos, segundo um princípio porque procedem
do entendimento puro e sem mescla alguma, como de uma unidade absoluta, e
devem, por conseguinte, compor-se entre si sob um conceito ou idéia.
Mas tal composição proporciona uma regra, segundo a qual o lugar
de cada conceito puro do entendimen­to, e a integridade de seu conjunto,
podem ser de­terminados “a priori”, pois dependeriam do capri­cho
ou do azar, em caso contrário.

Primeira SeÇÃo

Orientação Transcendental Para a Descoberta de Todos os Conceitos
do Entendimento

Do uso lógico do entendimento em geral

O entendimento foi definido, antes, de uma maneira puramente negativa: uma
faculdade de conhecer não sensível. Pois bem; como não
pode­mos ter nenhuma intuição independente da sensi­bilidade,
não é portanto o entendimento uma fa­culdade intuitiva.
Mas fora da intuição, não há outra maneira de
conhecer senão por conceitos. É, por conseguinte, o conhecimento
do entendimento, pelo menos o do homem, um conhecimento por conceitos, quer
dizer, não intuitivo, mas discursi­vo.

Todas as intuições enquanto sensíveis apóiam-se
nas afeições, mas os conceitos supõem funções.
Entendo por função a unidade de ação para ordenar
diferentes representações sob uma comum a todas elas. Fundam-se,
pois, os conceitos na espontaneidade do pensamento, do mesmo modo que as intuições
sensíveis na receptividade das impressões. O entendimento não
pode fazer destes conceitos outro uso senão julgar por seu in­termédio.

Como nenhuma representação se refere ime­diatamente ao
objeto, a não ser a intuição, nunca um conceito se referirá
imediatamente a um ob­jeto senão a qualquer outra representação
desse objeto (seja intuição, seja conceito). O juízo
é, pois, o conhecimento mediato de um objeto, por conseguinte, a representação
de uma representa­ção do objeto. Em todo juízo há
um conceito apli­cável a muitas coisas e que sob esta pluralidade
compreende também uma representação dada, a qual se refere
imediatamente ao objeto. Assim, por exemplo, no juízo: todos os corpos
são divisíveis, o conceito de divisibilidade se refere também
a ou­tros, entre os quais se faz aqui uma relação espe­cial
ao conceito de corpo, referido por seu turno a certos fenômenos que
se oferecem à nossa vista. Assim, pois, estes objetos são representados
pelo conceito de divisibilidade.

Todos os juízos são função da unidade entre as
nossas representações, que, em lugar de uma re­presentação
imediata, substitui outra mais ele­vada que compreende em seu seio a esta
e outras muitas e que serve para o conhecimento do objeto reunindo deste modo
muitos conhecimentos possí­veis em um só. Mas podemos reduzir
todas as ope­rações do entendimento a juízos; de
modo que o entendimento em geral pode ser representado como a faculdade de
julgar. Porque, segundo o que precede, é uma faculdade de pensar.

O pensamento é o conhecimento por conceitos. Mas os conceitos se relacionam
como predicados de juízos possíveis com uma representação
qual­quer de um objeto ainda indeterminado. Assim, o conceito de corpo
significa algo, por exemplo, um metal que pode ser conhecido mediante aquele
conceito. É, pois, somente, conceito conquanto diante as quais pode
referir-se a objetos. É, pois, o predicado de um juízo possível,
por exemplo, des­te: todo metal é um corpo. As funções
do entendi­mento podem ser achadas se se expõem com cer­teza
as funções de unidade no juízo. A seção
que segue mostrará que isto pode ser feito perfeita­mente.

CAPÍTULO II

DeduÇÃO dos Conceitos Puros do Entendimento

Primeira SeÇÃO

Dos princípios de uma dedução transcendental em geral

Quando os jurisconsultos falam de direito e de usurpações,
distinguem no caso a questão do di­reito “quid juris”,
da questão de fato “quid facti”; e, como exigem uma prova
de cada uma delas, denominam dedução à primeira, que
é aquela que deve demonstrar o direito ou a legitimidade da pretensão
(dedução).

Servimo-nos de um grande número de concei­tos empíricos
sem achar oposição alguma; e nos cremos autorizados também
sem dedução para atribuir-lhes um sentido imaginado, porque
sem­pre temos à mão a experiência como para demons­trar
a sua realidade objetiva.

Por outro lado existem conceitos usurpados como os de destino, etc., que
circulam com uma aquiescência quase geral, contra os quais ocorre às
vezes perguntar: “quid juris?”, não sendo então
pequeno o obstáculo que oferece ao deduzi-los, visto como não
se pode alegar nenhum princípio claro de direito, seja da experiência,
seja da razão, que justifique o seu uso.

Mas entre os numerosos conceitos que formam o complicadíssimo tecido
do conhecimento humano, alguns há destinados a um uso puro “a
priori” (completamente independentes de toda experiên­cia)
e cujo direito necessita sempre uma dedução porque os quadros
tomados da experiência não bastam para estabelecer a legitimidade
de um tal uso, sendo, não obstante, preciso saber como esses conceitos
podem referir-se a objetos que não pro­cedem de experiência
alguma.

Denomino dedução transcendental à explica­ção
do modo como se referem a objetos-conceitos “a priori”, e a distingo
da dedução empírica que indica a maneira como um conceito
foi adquirido por meio da experiência e de sua reflexão, e que,
portanto, não concerne à sua legitimidade, mas ao fato mesmo
de que resulta a aquisição deste con­ceito. Temos já
duas espécies bem distintas de conceitos, mas que têm de comum
o referir-se completamente “a priori” a objetos, a saber: os conceitos
de espaço e de tempo, como formas da sensibilidade, e as categorias
como conceitos do entendimento.
Querer buscar neles uma dedução empírica, fora vão
intento, porque o distintivo que os carac­teriza se refere aos seus objetos
sem haver tomado da experiência qualquer elemento para a sua re­presentação.
Se pois uma dedução desses concei­tos é necessária
cumpre que ela sempre seja transcendental. Entretanto, desses conceitos, como
de todo conhecimento, pode-se procurar experiência, na falta do princípio
da sua possibili­dade, as causas ocasionais de sua produção;
com efeito, as impressões dos sentidos nos oferecem primeiro motivo
para desenvolver toda nossa faculdade de conhecer e para constituir as experiên­cias.

Contém, pois, a experiência dois elementos bem distintos, a
saber: uma matéria para o conhecimento, que oferecem os sentidos, e
certa forma ordenadora desta matéria, procedente da fonte in­terna
da intuição e do pensamento puro, que, uni­camente motivada
pela primeira, produz os con­ceitos. É sumamente útil indagar
os primeiros es­forços da nossa faculdade de conhecer para elevar-nos
das percepções particulares a conceitos gerais.

O célebre Locke foi quem primeiro devassou esse caminho. Mas é
impossível conseguir por esse meio uma dedução de conceitos
puros “a priori”, pois não está de modo algum dentro
desse cami­nho, porque relativamente ao seu uso futuro, que deve ser totalmente
independente da experiência, necessitam mostrar um outro ato de nascimento
que o faz derivar da experiência. Essa tentativa de derivação
fisiológica, que não é, propriamente falando, uma dedução,
porque diz respeito a uma questão de fato, eu a denominei explicação
da posse de um conhecimento puro. É claro, portanto, que só
pode haver desses conceitos senão por uma dedução transcendental,
e de nenhum modo uma dedução empírica, e que esta não
é, relativamente aos con­ceitos puros “a priori”, senão
uma vã tentativa, de que se pode ocupar aquele que não compreendeu
a natureza própria desta espécie de conhecimento.

Mas, ainda que não haja mais do que uma maneira possível de
dedução do conhecimento puro “a priori”, a saber:
a que se segue por via transcendental, disto não resulta que ela seja
ab­solutamente necessária. Anteriormente seguimos os conceitos
de espaço e tempo até as suas fontes, mediante uma dedução
transcendental, e deter­minamos e explicamos “a priori” seu
valor objeti­vo; não obstante, a Geometria segue os seus pas­sos
seguros por conhecimentos puramente “a prio­ri", sem necessidade
de pedir um certificado à Fi­losofia para a pura e legítima
origem de seu con­ceito fundamental de espaço.

Entretanto, nesta ciência o uso do conceito al­cança somente
ao mundo exterior sensível de que espaço é a forma pura
de sua intuição. Tem, por conseguinte, todo conhecimento geométrico,
uma existência imediata, porque ela se funda sobre uma intuição
“a priori” e que os objetos são dados a priori” (quanto
à forma) na intuição pelo co­nhecimento mesmo.

Os conceitos puros do entendimento, pelo contrário, fazem nascer em
nós uma indispensável necessidade de procurar não somente
sua dedução transcendental, mas também aquela do espaço.
Com efeito, como os predicados que se atribuem aqui aos objetos não
são aqueles da intuição e da sensibilidade, mas se relacionam
a objetos em ge­ral, independentemente de todas as condições
da sensibilidade; e como eles não são fundados sobre a experiência,
não podem mostrar na intuição “a priori”
nenhum objeto sobre o qual se funde a sua síntese anteriormente a toda
experiência.

Daqui resulta que não somente fazem suspei­tar com respeito ao
seu valor objetivo e aos limites de sua aplicação, como também
convertem em duvidoso o conceito de espaço pela inclinação
que tem em usá-lo além das condições da intuição
sensível. É, portanto, necessária a presente dedu­ção
transcendental do dito conceito, O leitor deve estar convencido da indispensável
necessidade de semelhante dedução transcendental antes de dar
um só passo no campo da razão pura; porque, de outro modo, procederia
cegamente e, depois de haver vagado de um ponto para outro, voltaria à
ignorância de onde partira. Mas é também preciso que antes
dê conta das suas naturais dificuldades, para que se não queixe
depois da obscuridade em que o assunto mesmo está envolvido, e para
que não desfaleça muito cedo ante os obstáculos a transpor,
porque se trata de renunciar completa­mente a toda pretensão com
respeito à razão pura, em seu campo mais atraente, a saber:
além dos limites de toda experiência possível, encami­nhando
esta indagação crítica à sua completa per­feição.

Não nos foi difícil fazer compreender como os conceitos do
espaço e do tempo, ainda que conhe­cimentos “a priori”,
devem, necessariamente, referir-se a objetos, e como possibilitam um co­nhecimento
sintético dos mesmos, independente­mente de toda experiência.
Efetivamente, como somente mediante essas formas puras da sensibi­lidade
pode oferecer-se-nos um objeto (quer dizer, ser objeto da intuição
empírica), resulta que o es­paço e o tempo são intuições
puras que contêm “a priori” as condições de
possibilidade dos objetos como fenômenos, e tem a síntese nas
mesmas um valor objetivo.

Não representam, pelo contrário, as categorias do entendimento,
as condições sob as quais os ob­jetos se dão na intuição,
e, por conseguinte, po­dem aparecer como tais objetos sem que necessa­riamente
tenham que relacionar-se com as fun­ções do entendimento
e sem que este contenha as condições “a priori”
dos mesmos. Daqui resulta uma dificuldade, que não achamos no campo
da sensibilidade, a de saber como as condições subje­tivas
do pensar devem ter um valor objetivo, quer dizer, dar as condições
de possibilidade de todo conhecimento de objetos, porque, indubitavelmen­te,
podem oferecer-se fenômenos na intuição sem as funções
do entendimento.

Tomo por exemplo o conceito de causa, que significa uma maneira especial
de síntese, na qual se une algo A, segundo uma regra, a B, que lhe
é totalmente diferente. Não se vê claramente “a
priori” porque os fenômenos devam conter antes algo semelhante
(porque as experiências não o provariam, posto que o valor objetivo
deste con­ceito deve poder-sé demonstrar “a priori”),
se o re­ferido conceito de causa é completamente vazio, e em parte
alguma pode achar-se objeto entre os fe­nômenos. É evidente
que os objetos da intuição sensível devem conformar-se
com as condições formais da sensibilidade, existentes “a
priori” em nosso espírito, pois que de outra maneira não
se­riam objetos para nós outros; mas é dificil conce­ber
porque esses objetos devem além disso estar de acordo com as condições
que o entendimento necessita para a compreensão sintética do
pensar.

Bem pudera ser que os fenômenos fossem de tal natureza que o entendimento
não os achasse de modo algum conforme com as condições
de sua unidade, e que tudo estivesse em tal confusão que, por exemplo,
na sucessão dos fenômenos não exis­tisse nada capaz
de fornecer uma regra de síntese, correspondente ao conceito de causa
e efeito, e que fosse portanto dito conceito completamente vão, nulo
e sem significação.

Não ofereceriam, por isto, os fenômenos me­ros objetos para
a intuição, porque não necessito de maneira alguma das
funções de pensar.

Pretendendo evitar o trabalho destas investi­gações dizendo-se
que a experiência apresenta sem cessar exemplos desta espécie
de regulari­dade nos fenômenos, que nos fornecem suficien­temente
a ocasião de tirar delas o conceito de causa e confirma ao mesmo tempo
o valor objetivo do mesmo conceito, olvida-se que o conceito de causa não
pode produzir-se de modo algum desta maneira e que, ou deve achar-se fundado
comple­tamente “a priori" no entendimento, ou abandonar-se
totalmente como uma pura quimera. Porque o tal conceito exige necessariamente
que A seja de tal espécie, que o B siga mediante uma re­gra absolutamente
geral.

Os fenômenos apresentam casos de que se pode tirar uma regra segundo
a qual acontece algo comumente, mas jamais se deduzirá daqui que a
conseqüência seja necessária. Na síntese de causa
e efeito há também uma dignidade que é impossí­vel
exprimir empiricamente, a saber: que o efeito não se adita simplesmente
à causa, mas, por esta mesma, se vê posto e produzido.

A estrita universalidade da regra não é tam­pouco uma propriedade
das regras empíricas, por­que não pode receber na indução
mais do que uma generalidade comparativa, quer dizer, uma extensa aplicação.
O uso dos conceitos puros do entendimento variaria totalmente se tão-só
se qui­sesse empregá-los como produtos empíricos.

Passagem à dedução transcendental das categorias

Somente há dois casos em que a representação sintética
e seus objetos podem coincidir, re­lacionar-se necessariamente, e, por
assim dizer, encontrar-se. Ou o objeto torna possível a repre­sentação,
ou a representação torna possível o obje­to. No primeiro
caso, a relação é somente empírica e a representação
é impossível “a priori”; tal é o caso dos
fenômenos relativamente àqueles dos seus elementos pertencentes
à sensação. No se­gundo caso, como a representação
não dá por si mesma a existência ao seu objeto (porque
não se fala aqui da causalidade que pode ter mediante a vontade, ela
determina, no entretanto, o objeto “a priori”, neste sentido de
que ela só pode permitir conhecer qualquer coisa como objeto.

Ora, há duas condições para a possibilidade do conhecimento
dos objetos: primeira, intuição, pela qual o objeto é
dado como fenômeno; a seguir o conceito, pelo qual se pensa um objeto
que corres­ponde a essa intuição. Mas é claro, segundo
o que se disse, que a primeira condição, aquela sob a qual não
podemos perceber por intuição os objetos, serve em realidade
“a priori” no espírito de fun­damento aos objetos,
quanto à sua forma. Com esta condição formal da sensibilidade,
concordam, pois, necessariamente, todos os fenômenos, posto que só
possam oferecer mediante ela, quer dizer, perceber-se e dar-se empiricamente.

Agora se trata de saber se os conceitos “a prio­ri” precedem
também como condições para perce­ber ou pensar algo
como objeto, do que se dedu­zirá que todo conhecimento empírico
de objetos está de acordo necessariamente com esses concei­tos,
porque sem a suposição destes nada é possível
como objeto da experiência. Ora, toda experiência contém
além da intuição dos sentidos, pela qualquer coisa é
dada, um conceito de um objeto dado na intuição ou nos aparecendo.
Há pois conceitos ­de objetos em geral que servem, como condições
­“a priori”, de fundamento a todo conhecimento experimental.

Conseguintemente, o valor objetivo das categorias ­como conceitos “a
priori”, apóia-se em que só elas tornam possível
a experiência (quanto o fo­ram do pensamento). Referem-se, pois,
necessa­riamente, “a priori”, aos objetos da experiência,
posto que somente mediante elas em geral é que se pode pensar algo
empírico.

Tem, pois, a dedução transcendental de todos os conceitos “a
priori” um princípio com o qual deve dirigir-se toda investigação,
a saber: que es­ses conceitos devem reconhecer-se como condições
“a priori” da possibilidade da experiência (seja da intuição,
ou do pensamento, que se ache nela). Os conceitos que fornecem o fundamento
objetivo da possibilidade da experiência são por isso mesmo necessários.

O desenvolvimento da experiência onde eles se acham não é
a sua dedução (mas sim seu conhe­cimento) pois de outro
modo só seriam acidentais. Sem esta primitiva relação
com uma experiência possível na qual se apresentam todos os objetos
de conhecimento, não poderia compreender-se a rela­ção
desses conceitos com um objeto qualquer.

Por não haver feito esta observação, o célebre
Locke encontrou na experiência conceitos puros do entendimento, que
fez derivar da própria expe­riência, e foi, portanto, tão
inconseqüente, que procurou conhecimentos que ultrapassam os limi­tes
da experiência.

David Hume reconhece que, para poder con­seguir este último, era
preciso que esses conceitos tivessem uma origem “a priori”. Mas
não pôde ex­plicar como é possível que a inteligência
conceba como necessariamente ligados no objeto conceitos que o não
são em si, no entendimento, e não lhe ocorreu no espírito
que talvez o entendimento fos­se, por estes conceitos mesmos, o autor
da expe­riência que lhe fornece os seus objetos, acontece que os
deduziu, premido pela necessidade, da ex­periência (quer dizer,
dessa necessidade subjetiva que resulta de qualquer associação
freqüente­mente repetida na experiência, e que se acaba por
ter erradamente como objetiva, em uma palavra, do hábito).

Mas a seguir se revelou conseqüente, conside­rando ser impossível
sair dos limites da experiên­cia com conceitos dessa natureza ou
com os prin­cípios a que dão lugar. Infelizmente esta origem
empírica, a que Locke e Hume recorreram, está refutada pelo
fato de não poder conciliar-se com a realidade dos conhecimentos cient&iiacute;ficos
“a priori”, que possuímos, como p. ex.: os das matemáticas
puras e da Física geral.

O primeiro destes dois homens ilustres abriu todas as portas ao exagero,
porque a razão, quando uma vez ela pensa ter de seu lado o direi­to,
não se inibe mais por vagos conselhos de mo­deração;
o segundo mergulhou completamente no ceticismo quando creu ter demonstrado
que aquilo que se toma pela razão não é mais que uma
ilusão geral de nossa faculdade de conhecer. Chegamos, assim, ao ponto
de ver se podemos ensaiar a con­dução da razão humana
por entre esses dois esco­lhos e intentar se podemos demonstrar seus de­terminados
limites, conservando, todavia, aberto todo o campo de sua legítima
atividade. Antes de­sejo recordar somente a definição das
categorias.

As categorias são conceitos de um objeto em geral, por meio dos quais
a intuição desse objeto é considerada como determinada
relativamente a uma das funções lógicas do julgamento.
Assim, função de julgamento categórico é aquela
de rela­ção do sujeito com o predicado, como quando digo:
todas as coisas são divisíveis. Mas, do ponto de vista do uso
puramente lógico do entendimento, não se determina a qual dos
dois conceitos quer-se atribuir a função de sujeito, e ao qual
a de predi­cado.

Com efeito, pode-se dizer também: algo divisí­vel é
um corpo. Pelo contrário, quando faço entrar na categoria de
substância o conceito de um cor­po, determina-se por isso que a
intuição empírica desse corpo na experiência não
pode jamais ser considerada como sujeito e nunca como predicado, e assim o
mesmo para as restantes categorias.

Segunda Seção

DeduÇÃo Transcendental dos Conceitos Puros Intelectuais

A possibilidade de uma síntese em geral

A diversidade das representações pode dar-se em uma intuição
que é puramente sensível, quer dizer, que não é
mais do que uma receptividade e a forma desta não pode ser fornecida
pelos senti­dos, e, consequentemente tampouco pode encer­rar-se na
forma pura da intuição sensível, porque é um ato
espontâneo da faculdade representativa Como se deve chamar esta faculdade
de entendi­mento, para distingui-la da sensibilidade resulta sempre que
é um ato intelectual toda ligação, cons­ciente ou
inconsciente, quer abranja intuições ou conceitos diversos,
quer sejam ou não sensíveis es­sas intuições.

Designaremos este ato sob o nome comum de síntese para fazer notar
com isto que não podemos representarnos nada ligado a um objeto sem
tê-lo ligado antes no entendimento, e que, de todas as representações,
a ligação é a única que não nos pode ser
fornecida por objetos, mas somente pelo sujeito mesmo, porque ela é
um ato da sua espon­taneidade. É fácil notar aqui que este
ato deve ser originariamente um e aplicar-se igualmente a toda ligação,
e que a decomposição, a análise, que pa­rece ser
o seu contrário, a supõe sempre; porque onde o entendimento
nada ligou, ele não saberá desligar, Porque é só
por seu intermédio que pôde dar-se como ligado aquilo que foi
dado como tal à faculdade representativa.

Mas o conceito de ligação comporta, além da­quele
da diversidade e da síntese dessa diversida­de, aquele da unidade
dessa diversidade. A ligação é a representação
da unidade sintética da diversi­dade. A representação
dessa unidade não pode, pois, resultar dessa ligação;
porquanto ao unir-se à representação da diversidade,
torna possível o conceito de ligação. Esta unidade que
precede “a priori” a todos os conceitos de ligação,
não é de modo algum a categoria de unidade (§ 10); Porque
todas as categorias se fundam sobre funções lógi­cas
dos nossos julgamento, e nesses julgamentos já está pensada
uma ligação, conseguintemente, uma unidade de conceitos dados.

A categoria pressupõe, portanto, a ligação. Cumpre procurar
essa unidade (como qualitativa, mais alta ainda), isto é, naquilo que
contém o princípio mesmo da unidade de diferentes conceitos
no bojo dos julgamentos, e, por conseguinte, da possibilidade do entendimento,
mesmo sob o ponto de vista de seu uso lógico.

Da unidade primitivamente sintética da apercepção

O eu penso deve acompanhar todas as minhas representações;
pois se fosse de outro modo have­ria em mim algo representado que não
podia pensar-se e que equivaleria a dizer: que a repre­sentação
é impossível ou que pelo menos é para mim igual a nada.
A representação que pode dar-se antes de todo pensamento chama-se
intuição. Toda diversidade da intuição tem, pois,
relação necessária com o eu penso no mesmo sujeito em
quem se encontra esta diversidade. Mas esta re­presentação
é um ato da espontaneidade, quer di­zer, que não se pode
considerá-la como perten­cente à sensibilidade.

Denomino-a apercepção pura para diferenciá-la da empírica,
ou ainda também apercepção primitiva por ser a consciência
de si mesmo, que produzindo a representação eu penso, que deve
acompanhar todas as demais representações, e que em toda consciência
é sempre una e a mesma, não outra maior que por seu turno possa
acompanhar a este.

Denomino também à unidade desta represen­tação,
unidade transcendental da consciência, para indicar a possibilidade
do conhecimento “a priori” que dali resulta. Porque as diversas
repre­sentações, dadas em certa intuição,
não seriam todas juntas a minha representação, se todas
também não pertencessem a uma mesma cons­ciência;
quer dizer, que como representações mi­nhas (ainda que não
tenha consciência delas como minhas) devem conformar-se necessariamente
com a condição, mediante a qual só podem coexis­tir
em uma consciência geral, pois de outro modo não poderiam pertencer-me.
Desta primitiva liga­ção resultam muitas consequências.

Esta identidade permanente da apercepção de uma diversidade
na intuição contém uma síntese de representações,
e só é possível mediante a consciência desta síntese;
a consciência empírica que acompanha diferentes representações
está por si mesma disseminada e não tem relações
com a identidade do sujeito. Esta relação não se verifica
só porque cada representação é acompanhada da
consciência; é preciso para aquilo que eu una uma à outra
e que eu tenha consciência dessa síntese.

Não é portanto senão sob a condição de
poder ligar em uma consciência uma diversidade de re­presentações
dadas que me é possível re­presentar-me a identidade da
consciência nessas representações mesmas, quer dizer,
que a unidade analítica da apercepção não é
possível senão na suposição de qualquer unidade
sintética.(5)

Este pensamento de que “estas representações dadas na
intuição me pertencem todas”, é o mesmo que se
dissesse: eu as reúno em uma consciência única, ou pelo
menos posso reuni-las; e ainda que esse pensamento não seja ainda a
consciência das sínteses das representações, pres­supõe,
não obstante, a sua possibilidade, quer di­zer, que somente porque
posso compreender a di­versidade das representações em uma
consciência única, denomino a todas minhas; pois se assim não
fosse, seria meu eu tão diverso e extravagante como as representações
cuja consciência tenho.

É, pois, o princípio da identidade da apercep­ção
mesma a unidade sintética da diversidade das intuições
dadas “a priori”. Dita apercepção pre­cede “a
priori” a todos os meus pensamentos de­terminados. A ligação
existe, pois, nos objetos e não pode tampouco derivar-se destes por
percep­ção alguma, e receber-se depois no entendimento;
mas ela é unicamente uma operação do entendi­mento,
que não é ele mesmo outra coisa que a fa­culdade de formar
ligações “a priori”, e de condu­zir a diversidade
das representações dadas à uni­dade da apercepção.
Esse é o princípio mais ele­vado de todo o conhecimento
humano.

Este princípio da unidade necessária da aper­cepção
é idêntico, e, por conseguinte, uma propo­sição
analítica; mas, não obstante, demonstra a necessidade de uma
síntese da diversidade dada em uma intuição, sem a qual
a identidade perma­nente da consciência não pode perceber.

Porque, pelo eu, como representação simples, não se
dá diversidade alguma; o diverso só pode dar-se na intuição,
que é diferente dessa represen­tação, não
pode pensar-se senão ligado com a consciência una. Um entendimento
no qual toda diversidade se desse ao mesmo tempo pela própria consciência,
seria intuitivo; o nosso pode somente pensar e dele buscar a intuição
nos sentidos. Eu tenho pois consciência de um eu idêntico, relati­vamente
à diversidade das representações que me são dadas
na intuição, porque as denomino todas, minhas representações,
e elas não constituem senão uma só.
Ora, isso equivale a dizer: eu tenho consciên­cia de uma síntese
necessária “a priori” dessas re­presentações,
a que denomino unidade sintética primitiva da apercepção,
sob a qual estão todas as representações que se me dão,
mas à qual devem também reunir-se por meio de uma síntese.

Esta última proposição é, como se disse, analí­tica,
ainda que faça da unidade sintética a condi­ção
de todo pensamento; com efeito, expressa que todas as minhas representações,
dada uma intui­ção qualquer, devem sujeitar-se à
condição pela qual somente posso atribuí-las a um eu
idêntico e, daqui, uni-las sinteticamente em uma só apercep­ção
e compreendê-las na expressão geral eu pen­so.

Mas este princípio não o é, todavia, para todo entendimento
possível em geral, senão exclusivamente para aquele por cuja
apercepção pura não se deu ainda nada de diverso na representação:
eu sou. Um entendimento cuja consciência lhe desse ao mesmo tempo a
diversidade da intuição, cuja representação fizera
existir os objetos destas re­presentações, não necessitaria
um ato particular da síntese da diversidade para obter a unidade da
consciência como o que exige o entendimento hu­mano, o qual pensa
simplesmente, mas carece de poder intuitivo. Porém para o entendimento
hu­mano é indispensável o primeiro princípio, de
tal sorte que não pode formar-se a mesma idéia de ou­tro
entendimento que se funde em intuição sensí­vel;
mas que é, não obstante, de outra espécie que o que tem
seu princípio no tempo e no espaço.

Natureza da unidade objetiva da própria consciência

A unidade transcendental da apercepção é aquela por
meio da qual o diverso dado em uma intuição se reúne
em um conceito do objeto. Por isto se chama objetiva e deve distinguir-se
da uni­dade subjetiva da consciência, que é uma deter­minação
do sentido interno, mediante a qual o di­verso da intuição
se dá empiricamente para reunir-se deste modo. Que eu possa ser consciente,
empiricamente desses elementos diversos como simultâneos ou como sucessivos,
depende de cir­cunstâncias ou condições empíricas.

A unidade empírica da consciência, pela asso­ciação
das representações, reporta-se a um fenô­meno e é
contingente. Pelo contrário, a forma pura da intuição
no tempo, como intuição em ge­ral contendo diversos elementos
dados, é unica­mente pela relação necessária
da diversidade da intuição a um só eu penso; e, por conseguinte,
pela síntese pura do entendimento que serve de fundamento “a
priori” à síntese empírica.

Essa unidade só tem valor objetivo e a uni­dade empírica
da apercepção, que não examina­mos aqui, não
é mais do que uma derivação feita da primeira sob condições
dadas em conceito e só têm um valor subjetivo. Usam uns a representa­ção
de certa palavra com uma coisa, outros com outra, e a unidade da consciência
no que é empíri­co, e em relação ao que é
dado, não possui um va­lor universal e necessário.

A forma lógica de todos os juízos consiste na unidade objetiva
da apercepção dos conceitos que neles se contêm

Jamais me satisfez a definição que os lógicos dão
do juízo em geral como a representação de uma relação
entre dois conceitos. Sem discutir aqui com eles o imperfeito daquela definição,
so­mente aplicável em todo caso aos juízos categóri­cos
e não aos hipotéticos e disjuntivos (não con­tendo
estes últimos relação entre conceitos, mas sim entre
os juízos mesmos), farei notar somente (sem atender às conseqüências
inconvenientes que este erro causou à lógica) (7) que sua definição
não determina em que consiste essa relação.

Procurando determinar mais exatamente a re­lação dos conhecimentos
dados em cada julga­mento, e distinguindo essa relação,
própria do en­tendimento, daquele que se faz segundo a lei da imaginação
reprodutora (que só tem valor subjeti­vo), acho que um julgamento
não é mais do que uma maneira de conduzir conhecimentos dados
à unidade objetiva da apercepção. A função
que preenche nesses julgamentos a cúpula é de distin­guir
a unidade objetiva das representações dadas de sua unidade subjetiva.

Com efeito, ela designa a relação dessas re­presentações
com a apercepção originária e sua unidade necessária,
ainda que o julgamento em si mesmo seja empírico e, por conseguinte,
contin­gente, como este exemplo: os corpos são pesados.

Não quero dizer com isso que essas represen­tações
se relacionam necessariamente umas com as outras na intuição
empírica, mas que se rela­cionam mutuamente na síntese da
intuição, por meio da unidade necessária da apercepção,
quer dizer, segundo os princípios da determinação obje­tiva
de todas as representações, pela qual podem resultar conhecimentos
e princípios que todos se derivam da unidade transcendental da apercep­ção.

Assim é, como desta relação pode nascer um juízo,
quer dizer, uma relação que tem um valor objetivo, e que se
distingue suficientemente da re­lação dessas mesmas representações,
cujo valor é puramente subjetivo, p. ex.: conforme as leis da associação.
Segundo estas últimas, só poderia di­zer: quando eu tenho
um corpo, sinto a impressão de seu peso; mas não poderia dizer:
o corpo é pe­sado; o que aqui equivaleria a exprimir que essas
duas representações estão ligadas com o objeto, ou o
que é o mesmo, que são independentes do estado dos sujeitos
e não estão simplesmente associadas na apercepção
(por mais freqüentemente que se repita).

Todas as intuições sensíveis são submetidas às
categorias como as únicas condições sob as quais o que
existe nelas de diverso pode reunir-se à consciência una

A diversidade dada numa intuição sensível está
sujeita necessariamente à unidade primitiva da apercepção,
pois só por esta é possível a uni­dade da intuição
(§ 17). Mas o ato do entendi­mento pelo qual a diversidade das representações
dadas (sejam intuições ou conceitos) se submete a uma apercepção
em geral, é a função lógica dos juízos
(§ 19).

Conseguintemente, toda diversidade, enquanto se verifica em uma só
intuição empírica, é deter­minada com relação
a uma das funções lógicas do juízo, por meio da
qual se leva esta diversidade à consciência una. Mas as categorias
são essas mesmas funções do juízo, enquanto a
diversidade de uma intuição dada é determinada por relação
a essas funções.

A diversidade de uma intuição dada se acha, pois, sujeita,
também, às categorias necessaria­mente.

Observação

Uma diversidade contida em uma intuição que denomino minha,
representa-se pela síntese do en­tendimento como pertinente à
unidade necessária da consciência própria, e isto acontece
por meio da categoria. (8)

Esta demonstra, pois, que a consciência empí­rica da diversidade
dada em uma intuição se acha sujeita a uma consciência
pura “a priori”, do mesmo modo que uma intuição
sensível pura, que igualmente tem lugar “a priori”. Na
proposição precedente se começou uma dedução
dos conceitos puros do entendimento; e como as categorias não se produzem
senão no entendimento, independen­temente da sensibilidade, devo
fazer abstração da maneira segundo a qual se deu o diverso em
uma intuição empírica, para considerar só a unidade
que o entendimento, por meio das categorias, põe na intuição.
Ulteriormente (§ 20) se demonstrará a ma­neira segundo a qual
se dá intuição empírica na sensibilidade, posto
que a unidade desta intuição é a que a categoria prescreve,
segundo o precedente § 20, para a diversidade de uma intuição
dada em geral, e, portanto, o fim da dedução não está
com­pletamente atingido até que o valor “a priori”
des­tas categorias se defina em relação com todos os objetos
de nosso sentido. Mas há uma coisa de que não poderia abstrair
na demonstração precedente: é que os elementos diversos
da intuição devem ser dados anteriormente à síntese
do entendimento e independentemente desta síntese, embora o por­quê
fique aqui indeterminado.

Efetivamente, se em conseqüência supusesse em mim um entendimento
que fosse ele mesmo intuitivo (uma espécie de entendimento divino,
que não se representaria por objetos dados, mas em que a representação
desse ou produzisse os próprios objetos), relativamente a um conheci­mento
desse gênero, as categorias não teriam mais sentido. Elas não
são mais do que regras para um entendimento cujo poder consiste no
pen­samento, quer dizer no ato de reduzir à unidade da apercepção
a síntese da diversidade dada.

Não conhece, conseguintemente, nada por si mesmo este entendimento,
somente unindo e or­denando a matéria do conhecimento, a intuição
que lhe deve ser dada pelo objeto. Pretender de­monstrar porque nosso
entendimento não alcança a unidade da apercepção,
senão mediante as catego­rias, segundo seu número preciso,
é tão difícil como explicar por que temos estas funções
do juízo e não outras, ou por que o espaço e o tempo
são as únicas formas de todas as nossas possíveis intuições.

A categoria não tem outro escopo que o conhecimento das coisas na
sua aplicação aos objetivos da experiência

Pensar e conhecer um objeto não é o mesmo. Ao conhecimento
pertencem duas partes: primei­ramente, o conceito pelo qual em geral se
pensa um objeto (a categoria); e, depois, a intuição pela qual
ele é dado; porque não pudesse dar-se ao conceito uma intuição
correspondente, o conceito seria um pensamento quanto à forma, mas
sem objeto algum, e nenhum conhecimento seria pos­sível mediante
ele, pois não teria nem haveria coisa alguma, que eu saiba, a que pudesse
aplicar-se meu pensamento.

É de suma importância a proposição preceden­te,
porque determina os limites do uso dos concei­tos puros do entendimento
em relação com os ob­jetos, do mesmo modo que a Estética
transcenden­tal determinou os limites do uso da forma pura de nossa intuição
sensível. O espaço e o tempo, como condições de
possibilidade para que os objetos nos sejam dados, só têm valor
quando postos em rela­ção com os objetos dos sentidos, é
unicamente para a experiência. Além desses limites não
repre­sentam absolutamente nada; porque só estão nos sentidos,
e fora deles não têm realidade alguma.

Os conceitos puros do entendimento estão li­vres desta limitação
e se estendem aos objetos da intuição em geral, seja ou não
semelhante à nossa contanto que seja sensível e não intelectual.
Po­rém essa extensão dos conceitos além da nossa
in­tuição sensível não nos serve para nada.
Em tal caso são conceitos vãos de objetos, ineficazes até
para julgar se tais são possíveis ou impossíveis. Limitam-se,
pois, a ser simples formas do pensa­mento sem realidade objetiva, embora
não tenha­mos intuição alguma a que possa aplicar-se
a uni­dade sintética da apercepção, que unicamente
contém os conceitos, e que é desta maneira que eles podem determinar
um objeto. Nossa intuição sensível e empírica
é pois só capaz de dar-lhes um sentido e um valor.

Se, pois, se supõe como dado o objeto de uma intuição
sensível, pode representar-se, sem dúvida alguma, por todos
os predicados que existem já na suposição de que não
existe nele nada daquilo que pertence à intuição sensível;
por conseguinte, que não tem extensão o que não está
no espaço, que a duração do mesmo não tem tempo,
que não há nele mudança alguma (conseqüência
das deter­minações no tempo) e assim sucessivamente. Mas
não constitui, propriamente, um conhecimento dizer o que não
é a intuição de um objeto, omitindo o que contém.

É que, neste caso, eu não me representei a possibilidade de
um objeto para meu conceito puro do entendimento, por não ter podido
dar-lhe a in­tuição que lhe correspondia, pois me limitei
a di­zer que a nossa não lhe convém. Mas o principal aqui
é que as categorias não possam aplicar-se a semelhantes coisas,
quer dizer, ao conceito de substância, que só existe como sujeito,
nunca se concebe como simples predicado. A razão disso é óbvia,
porque ignoro se posso chamar uma coisa que corresponda a esta determinação
de pensar, enquanto a intuição empírica não me
ofereça oca­sião para sua aplicação. Ainda
nos ocuparemos deste assunto.

Aplicação das categorias aos objetos dos sentidos em geral

Os conceitos puros intelectuais se relacionam simplesmente mediante o entendimento
com os objetos da intuição em geral, sem distinguir se esta
é nossa ou alheia, contanto que seja sensível, e precisamente
por isso são simples formas do pensamento, mediante as quais não
conhecemos ainda nenhum outro objeto determinado. A síntese ou ligação
da diversidade nestes conceitos se rela­ciona unicamente com a unidade
da apercepção e é, deste modo, o princípio da
possibilidade do co­nhecimento “a priori”, enquanto ele repousa
sobre o entendimento, e, por conseguinte, não é somente transcendental
mas também puramente intelec­tual.

Mas como há em nós “a priori” uma certa forma da
intuição sensível que assenta sobre a re­ceptividade
de nossa capacidade representativa (da sensibilidade), o entendimento pode
então, como uma espontaneidade, determinar o sentido interno, de acordo
com a unidade sintética da apercepção pela diversidade
das representações dadas, e conceber “a priori”
a unidade sintética da apercepção do que há de
diverso na intuição sen­sível, como condição
à qual necessariamente de­vem sujeitar-se todos os objetos de nossa
(huma­na) intuição.

Deste modo, pois, as categorias, como simples formas do pensamento, recebem
uma realidade objetiva, quer dizer, uma aplicação aos objetos
que nos podem ser dadas na intuição, mas só como fenômenos;
porque unicamente com relação a eles, podemos ter intuição
“a priori”.

Esta síntese da diversidade da intuição sensí­vel
que é possível e necessária “a priori”, pode
chamar-se figurada (“synthesis speciosa”), para distingui-la daquela
outra que se conceberia pela relação da diversidade de uma intuição
em geral com as simples categorias e que se denomina sín­tese intelectual
(“synthesis intellectualis”); ambas são transcendentais
porque procedem “a priori” e fundam a possibilidade de outros
conhecimentos “a priori”.

Entretanto, quando a síntese figurada se re­fere unicamente à
unidade sintética primitiva da apercepção, quer dizer,
a esta unidade transcen­dental que se concebe nas categorias, deve chamar-se,
para sua distinção da síntese pura­mente intelectual,
síntese transcendental da imaginação. A imaginação
é a faculdade de represen­tar na intuição um objeto
embora não esteja pre­sente. Mas como toda intuição
nossa é sensível, a imaginação pertence à
sensibilidade em virtude desta condição subjetiva que só
lhe permite dar a um conceito do entendimento uma intuição cor­respondente.
Porém enquanto a sua síntese é uma função
da espontaneidade, a qual é determinante e não somente, como
os sentidos, determinável, e que, por conseguinte, ela pode determinar
“a priori” a forma do sentido conforme a unidade da apercepção,
a imaginação é sob esse titulo um po­der de determinar
“a priori” a sensibilidade; e a síntese a que ela submete
as suas intuições, de acordo com as categorias, é a síntese
transcenden­tal da imaginação.

É esta síntese um efeito do entendimento so­bre a sensibilidade
e a primeira aplicação do mesmo (aplicação que
é a um tempo o princípio de todas as outras) a objetos de uma
intuição possível para nos.

Como síntese figurada, ela se distingue da sín­tese intelectual,
que é operada só pelo entendi­mento, sem o concurso da imaginação.
Dou à imaginação, enquanto ela é espontânea,
o nome da imaginação produtora, cuja síntese é
subme­tida simplesmente a leis empíricas, quer dizer, às
leis da associação, e que, por conseguinte, não concorre
em nada para a explicação da possibili­dade do conhecimento
“a priori”. Por tal razão não pertence à
Filosofia transcendental, mas à Psico­logia.

Este é o lugar de explicar o paradoxo que toda gente deve ter notado
na exposição da forma do sentido interno.

Este paradoxo consiste em dizer que o sentido interno não nos apresenta,
à nossa consciência, não como somos em nós mesmos,
mas como nos aparecemos, porque nos percebemos conforme te­mos sido interiormente
afetados, o que parece ser contraditório, porque devíamos considerar-nos
como passivos para nós mesmos. Daí o fato de, nos sistemas de
Psicologia, identificar-se o sentido interno e a faculdade da apercepção
(que distin­guimos cuidadosamente).
O que determina o sentido interno é o enten­dimento e sua faculdade
originária de enlaçar os elementos diversos da intuição,
quer dizer, de compô-los sob uma apercepção (como o lugar
mesmo no qual assenta a sua possibilidade). Mas, como o entendimento humano
é uma faculdade de intuição (a sensibilidade não
poderia, não obstan­te, apropriar-se dela para reunir a diversidade
da sua própria intuição), sua síntese, considerada
em si mesma, é só a unidade do ato do qual tem cons­ciência
como tal, até sem o auxílio da sensibilida­de, mas pelo
qual pode determinar interiormente a sensibilidade em relação
à diversidade que possa oferecer-lhe na forma de sua intuição.

Exerce, pois, o entendimento no sujeito pas­sivo (ao qual é uma
faculdade) sob o nome de sín­tese transcendental da imaginação,
um ato em virtude do qual dizemos que o sentido interno foi afetado. São
tão diferentes a apercepção e a sua unidade sintética
com o sentido interior, que a primeira como fonte de todo enlace se refere,
sob o nome de categorias, à diversidade das intuições
em geral, antes que a toda intuição sensível dos objetos;
enquanto que, pelo contrário, os sentidos internos só contêm
a simples forma da intuição e não têm ligação
alguma da diversidade que há nela e que, por conseguinte, não
contém nenhuma intuição determinada.

Esta só é possível mediante a consciência da determinação
deste sentido pelo ato transcenden­tal da imaginação (a
influência sintética do en­tendimento sobre o sentido interno)
que chamei síntese figurada. Isto é o que sempre observamos
em nós mesmos. Não podemos conceber uma li­nha sem traçá-la
no pensamento, nenhum círculo sem descrevê-lo, nem representar-nos
as três di­mensões do espaço sem tirar de um ponto
três li­nhas perpendiculares entre si.

Tampouco poderíamos representar-nos o tempo sem tirar uma linha reta
(que deve ser a representação exterior figurada do tempo) e
aten­der o ato da síntese do diverso pelo qual determi­namos
sucessivamente ao sentido interno e me­diante esta a sucessão desta
determinação que nele tem lugar.
O que produz desde logo o conceito de suces­são é o movimento
como ato do sujeito (não como determinação de um objeto)
e, por conseguinte, a síntese da diversidade no espaço, quando
fazemos abstração deste para não atender senão
ao ato pelo qual determinamos ao sentido interno segundo sua forma.

Não encontra, pois, o entendimento, seme­lhante ligação
do diverso no sentido interno, senão que ao ser afetado por este o
produz. De que ma­neira o eu penso pode distinguir-se do eu que se percebe
(podendo ainda representar-me intuições de outra espécie,
ao menos como possíveis) sem deixar de ser com este um só e
mesmo sujeito? Como posso dizer que eu, como inteligência e su­jeito
pensante, me conheço enquanto objeto pen­sado, oferecendo-me à
intuição como os demais fenômenos, quer dizer, não
tal como sou ante o entendimento, mas tal como me apareço?

O princípio da unidade sintética da apercepção
é o princípio supremo de todo uso do entendimento

O princípio supremo da possibilidade de toda intuição
com relação à sensibilidade era segundo a Estética
transcendental, o de que toda diversidade da intuição está
submetida às condições formais de espaço e tempo.
O princípio supremo desta mesma possibilidade relativamente ao entendi­mento
é o de que toda a diversidade da intuição se acha submetida
às condições da unidade origina­riamente sintética
da apercepção.(6)

Obedecendo ao primeiro destes princípios es­tão todas as
diversas representações das intuições enquanto
nos são dadas, e enquanto podem ser ligadas em uma só consciência.
Sem isto nada se pode pensar nem conhecer porque as representa­ções
dadas, se não têm por comum a todos o ato da apercepção
eu penso, não poderão reunir-se em uma mesma consciência.
O entendimento, para falar geralmente, é a faculdade de conhecimentos.
Estes conhecimentos consistem na determinada relação de representações
dadas com um objeto. Um objeto é aquele em cujo conceito se reúne
a diversidade de uma intuição dada. Ora, toda reu­nião
de representações exige a unidade da cons­ciência
na síntese dessas representações.

A unidade da consciência é pois aquilo que só constitui
a relação das representações a um obje­to,
quer dizer, seu valor objetivo; esta é a que forma conhecimentos dessas
representações, e nela descansa, e portanto é a possibilidade
mesma do entendimento.

É, pois, o princípio da unidade sintética origi­nária
da apercepção o primeiro conhecimento puro do entendimento,
no qual se funda toda a aplica­ção ulterior deste, sendo
a um tempo independente de todas as condições da intuição
sensível. Assim, a simples forma das intuições exteriores,
o espaço, não chega a ser um conhecimento; só da diversi­dade
da intuição “a priori” para um conhecimento possível.

Mas para conhecer qualquer coisa no espaço, por exemplo, uma linha,
é preciso que eu a trace, e, portanto, efetue sinteticamente uma ligação
de­terminada da diversidade, de tal modo, que a uni­dade desta ação
seja ao mesmo tempo a unidade da consciência (no conceito de uma linha)
e que por isso conheça um objeto (um espaço determi­nado).

A unidade sintética da consciência é, pois, uma condição
objetiva de todo conhecimento de um objeto, como também sob ela deve
estar toda intuição para que possa ser esta fora de mim um objeto;
porque, de outro modo, sem esta síntese, o diverso não se reuniria
em uma mesma consciên­cia.

Tal questão oferece a mesma dificuldade que a de averiguar como posso
eu ser para mim mesmo um objeto e também um objeto de intuição
e de percepções internas. É fácil provar que isto
deve ser realmente assim, se se reconhece que o espaço é uma
forma pura dos fenômenos dos sen­tidos externos, e que o tempo,
que não é um objeto da intuição externa, só
é representável sob a forma de uma linha que traçamos,
sem cujo es­quema não podemos conhecer a unidade de sua medida.
De igual modo temos que tomar sempre para a determinação de
um período ou para a de todas as percepções internas
o que nos oferecem de mutável as coisas exteriores; por conseguinte,
as determinações do sentido interno devem ordenar-se precisamente
enquanto fenômenos no tempo, da mesma maneira que ordenamos no es­paço
as determinações dos sentidos externos.
Se se reconhece, pois, que estes últimos não dão conhecimento
de objetos só enquanto somos afetados exteriormente, é preciso
também admitir com respeito ao sentido interno que só nos perce­bemos
interiormente mediante esse sentido, con­forme formos afetados por nós
outros mesmos, quer dizer, que pelo que concerne à intuição
in­terna, não conhecemos nosso próprio sujeito mais do que
como fenômeno, não como coisa em si.(10)

Ao contrário, tenho consciência de mim mesmo na síntese
transcendental da diversidade das representações em geral, por
conseqüência da unidade sintética primitiva da percepção,
não como me apareço, nem tampouco como sou em mim mesmo, mas
só tenho consciência do que eu sou. Esta representação
é um pensamento, não uma intuição. Mas como para
o conhecimento de nós mesmos se exige, além do ato de pensar
que compõe a diversidade de toda intuição possível
na unidade da apercepção, uma espécie determinada de
intuição que dá esta diversidade, minha própria
existência não é em verdade um fenômeno (muito menos
ainda uma simples aparência).

Pois bem: a determinação de minha existên­cia (11)
só pode ter lugar segundo a forma do sen­tido interior, e segundo
a maneira particular em que o diverso que eu enlaço está dado
na intuição interna e, por conseguinte, não me conheço
como sou, mas simplesmente como ante mim apareço.

Dedução transcendental do uso experimental geralmente possível
dos conceitos puros do entendimento

Na dedução metafísica temos provado a ori­gem das
categorias “a priori” em geral, por sua perfeita conformidade
com as funções lógicas ge­rais do pensar; na dedução
transcendental, fize­mos ver a possibilidade dessas categorias como conhecimentos
“a priori” de objetos de uma intui­ção em geral
(§§ 20 e 21). Devemos agora explicar a possibilidade de conhecer
“a priori”, mediante essas categorias, objetos que não
podem oferecer-se mais que a nossos sentidos e conhecê-los, não
em verdade na forma de sua intuição, mas nas leis de sua ligação,
e como por conseqüência se podem prescrever leis à natureza
e em certo modo torná-las possíveis, porque sem esta explicação
não se compreende como o que pode oferecer-nos a nossos sentidos, deve
submeter-se a leis que bro­tam “a priori” só do entendimento.
Notarei em primeiro lugar que entendo por síntese da apreen­são
a composição da diversidade em uma intuição empírica,
pela qual a percepção, quer dizer, a consciência empírica
desta intuição (como fenô­meno) é possível.
Temos nas representações de espaço e tempo formas “a
priori” da intuição externa e interna. Com elas deve sempre
concordar a síntese da apreensão da diversidade do fenômeno,
porque só pode efetuar-se de acordo com estas formas. Mas o espaço
e o tempo não representados simplesmente como formas da intuição
sensível, mas como in­tuições (que contêm uma
diversidade); por conse­guinte, com a determinação da unidade
desta di­versidade neles “a priori” (V. neste livro Estêtica
Transcendental).

Com (não em) essas intuições estão já
dadas “a priori” como condição da síntese
de toda apre­ensão, a unidade mesma da síntese da diversidade
que se encontra em nós outros ou fora de nós, e por conseguinte
também uma união (Veirbin­dung), com a qual deve conformar
tudo o que há de ser representado determinadamente no espaço
e no tempo. Esta unidade sintética não pode ser outra que a
da união em uma consciência primi­tiva da diversidade de
uma intuição dada em ge­ral; mas aplicada, segundo as categorias,
só à nossa intuição sensível. Por conseqüência,
toda síntese, pela qual a percepção mesma é possível,
está sujeita às categorias, e como a experiência é
um conhecimento por percepções entrelaçadas, as categorias
são as condições da possibilidade da experiência,
e valem por conseguinte “a priori” para todos os objetos empíricos.
Quando faço, pois, por exemplo, a intuição empírica
de uma casa, uma percepção da apercepção das diversas
partes da mesma, a unidade necessária do espaço e da intuição
sensível exterior em geral me serve de fundamento, e desenho, por assim
dizer, a forma dessa casa de acordo com a unidade sintética das diversas
partes do espaço. Mas esta mesma uni­dade sintética, se
faço abstração da forma do es­paço, tem seu
lugar no entendimento e é a catego­ria da síntese do homogêneo
de quantidade, com a qual deve, por conseguinte, conformar a síntese
da apreensão, isto é, a percepção.

Quando (formulando outro exemplo) observo a congelação da água,
conheço dois estados (liquido e sólido) que estão como
tais, respectivamente, em uma relação temporal. Mas no tempo
que eu, como intuição interna, coloco por fundamento ao fenômeno,
me represento necessariamente a uni­dade sintética da diversidade,
e sem a qual esta relação não poderá ser dada
determinadamente em uma intuição (com respeito à sucessão).

Esta unidade sintética (como condição “a priori”
sob a qual reúno o diverso de uma intuição em geral,
e faço abstração da forma constante de mi­nha intuição
interna, do tempo) é a categoria de causa mediante a qual determino,
aplicando-a à sensibilidade, tudo o que sucede conforme sua re­lação
em geral como o tempo.

Portanto, a apreensão em tal acontecimento, por conseguinte, o acontecimento
mesmo, acham-se relativamente à possível percepção,
sujeitos ao conceito da relação de causa e efeito. É
o mesmo nos outros casos. As categorias são conceitos que pres­crevem
“a priori” leis aos fenômenos, por conse­guinte à
natureza, considerada como conjunto de todos os fenômenos (“natura
materialiter specta­ta”). Agora se trata de saber como não
sendo essas categorias derivadas da natureza e não se regu­lando
como se fossem seu modelo (porque de outro modo seriam simplesmente empíricas),
pode compreender-se que a natureza seja quem rege por elas, quer dizer: como
podem determinar “a priori” a união da diversidade da natureza
sem tomá-la da própria natureza?

Eis aqui a solução deste enigma.

Existe semelhança entre a conformidade das leis dos fenômenos
na natureza com o entendi­mento e com sua forma “a priori”
(quer dizer, com sua faculdade de unir a diversidade em geral) e a que os
fenômenos mesmos têm com a forma “a priori” da intuição
sensível. Assim como as leis existem relativamente no individuo (de
quem de­pendem os fenômenos), enquanto têm entendi­mento,
os fenômenos não são coisas em si, exis­tem só
no mesmo sujeito, enquanto possui senti­dos.

As coisas em si estariam também necessaria­mente sujeitas às
leis ainda que não houvesse um entendimento que as conhecera. Mas os
fenôme­nos são unicamente representações de
coisas que são desconhecidas no que em si podem ser. Como simples representações,
não estão sujeitas a ne­nhuma outra lei de união
que a prescrita pela fa­culdade de unir.

A imaginação é a faculdade que enlaça os elementos
diversos da intuição sensível, que de­pende do entendimento
pela unidade de sua sín­tese intelectual, e da sensibilidade pela
diversi­dade da apreensão. Mas como toda percepção
pos­sível depende da síntese da apreensão, e esta
sín­tese empírica da síntese transcendental, e por
conseguinte, das categorias, todas as percepçôes são possíveis.
E também tudo o que pode chegar à consciência empírica,
quer dizer, todos os fenô­menos da natureza se acham, quanto a sua
união, sujeitos às categorias das quais depende a natu­reza
(simplesmente considerada como natureza em geral) como da razão primitiva
de sua legiti­midade necessária (como “natura formaliter
specta­ta”).

Mas a faculdade do entendimento puro não pode prescrever “a
priori” outras leis aos fenôme­nos por simples categorias
que servem de funda­mento a uma natureza em geral, como legitimi­dade
dos fenômenos em tempo e espaço. Referindo-se empiricamente a
fenômenos deter­minados, não podem as leis particulares proceder
somente das categorias do entendimento, não obs­tante todas se
acharem submetidas a estas.

É, pois, necessário que a experiência interve­nha
para conhecer estas últimas leis; mas só as primeiras nos dão
“a priori” ensinamentos da ex­periência em geral e do
que pode ser conhecido como objeto da mesma.

Resultado desta dedução dos conceitos do entendimento

Não podemos pensar um objeto sem as cate­gorias, não podemos
conhecer um objeto pensado sem as intuições correspondentes
a esses concei­tos. Mas todas as nossas intuições são
sensíveis, e o conhecimento, enquanto o objeto está dado, é
empírico.

Mas o conhecimento empírico é experiência. Por conseguinte,
não é possível nenhum conheci­mento “a priori”
a não ser o de um objeto de uma experiência possível.

Limitado simplesmente aos objetos empíricos, este conhecimento não
procede todo ele da expe­riência, pois tanto as intuições
puras como os con­ceitos puros do entendimento são elementos do
conhecimento que se encontram em nós outros “a priori”.
Para conceber a conformidade necessária da experiência com os
conceitos de seus objetos: ou é a experiência que possibilita
os conceitos, ou são os conceitos que possibilitam a experiência

A primeira explicação não pode convir às ca­tegorias
(nem mesmo à intuição sensível pura), porque as
categorias são conceitos “a priori”, e que por conseguinte
elas são independentes da ex­periência (atribuir-lhes uma
origem empírica seria admitir uma espécie de “generatio
aequivoca”).

Resta pois a segunda explicação (que é como sistema
da epigênese da razão pura), a saber que as categorias contêm
do lado do entendimento, os princípios da possibilidade de toda experiência
em geral. Elas, porém, tornam possível a experiência.
E quais princípios da possibilidade da experiência fornecem elas
em sua aplicação aos fenômenos?

É o que mostrará o capítulo seguinte, sobre o uso transcendental
do julgamento.

Uma hipótese fácil de refutar é a que se forma aceitando
uma via intermediária entre as duas que assinalamos, e dizendo que
as categorias não são nem primeiros princípios “a
priori” de nosso conhecimento, espontaneamente concebidos, nem tampouco
produzidas pela experiência a que e que o autor de nosso ser regulou
de tal sorte, que seu uso concorda exatamente com as leis da Nature­za,
segundo as quais se forma a experiência (que seria como uma espécie
de sistema de pré-formação da razão pura).

Além de, em tal hipótese, não se ver termo à
suposição de disposições predeterminadas para
os juízos ulteriores, existe contra esse novo meio imaginado um argumento
decisivo, e é que em semelhante caso as categorias careceriam da ne­cessidade,
que é essencialmente inerente aos seus conceitos.

Porque o conceito de causa, por exemplo, que manifesta a necessidade de consequência,
sob uma condição suposta, seria falso, se somente se fundasse
em uma necessidade subjetiva, arbitrá­ria, inata em nós
outros, de unir certas represen­tações empíricas
segundo uma regra de relação.

Eu não poderia dizer: o efeito está unido com a causa no objeto
(quer dizer, necessariamente) mas: eu sou de tal natureza que não posso
conceber esta representação mais do que ligada com outra; isto
precisamente é o que quer o cético, porque en­tão
todo nosso saber pelo pretendido valor objetivo de nossos juízos não
seria mais do que pura expe­riência e não faltaria tampouco
quem negasse esta necessidade subjetiva (que deve ser sentida).
Pelo menos não se poderia discutir com nin­guém uma coisa
que dependia unicamente da or­ganização de seu sujeito.

Resumo Desta Dedução

É a exposição dos conceitos puros do entendi­mento
(e com eles de todo conhecimento teórico “a priori”) como
princípios da possibilidade da expe­riência; mas tendo a
esta como a determinação dos fenômenos em tempo e espaço
em geral e tirando-a enfim do princípio da unidade sintética
primitiva da apercepção, como da forma do enten­dimento
em relação com o espaço e tempo, como formas primitivas
da sensibilidade.

LIVRO SEGUNDO

ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS

O plano pelo qual está construída a Lógica ge­ral
corresponde, exatamente, à divisão das facul­dades superiores
do conhecimento, a saber: enten­dimento, juízo e razão.
Trata, pois, essa ciência, em sua analítica, de conceitos, juízos
e raciocí­nios, segundo as funções e ordem dessas
faculda­des do espírito, que se compreende em geral sob a ampla
denominação de Entendimento.

Como a Lógica puramente formal de que fa­lamos aqui faz abstração
de todo conteúdo do co­nhecimento (da questão de saber se
ele é puro ou empírico), e não se ocupa senão
da forma do pen­samento em geral (do conhecimento discursivo), ela pode
encerrar, também, em sua parte analítica um cânon para
a Razão, pois se pode aperceber “a priori”, decompondo
os atos da Razão em seus momentos, sem que haja necessidade de fixar-se
na natureza especial do conhecimento que aí é empregado.

Já a Lógica transcendental sendo restringida a um conteúdo
determinado, quer dizer, unicamente ao conhecimento puro “a priori”,
não poderia acompanhar a primeira em sua divisão. Vê-se,
efe­tivamente, que o uso transcendental da razão não tem
valor objetivo, e, por conseguinte, não per­tence à Lógica
da verdade, quer dizer à analítica, mas que, como Lógica
da aparência, exige, sob o nome de Dialética transcendental,
um lugar espe­cial no edifício escolástico.

O entendimento e o juízo acham na lógica transcendental o cânon
de seu emprego objetiva­mente válido, isto é, de seu uso
verdadeiro, sendo por isso que pertencem à parte analítica desta
ciência.

Quando a razão, porém, intenta decidir “a priori”
algo referente a certos objetos, e estender o conhecimento além dos
limites da experiência possível, ela então é dialética,
e suas asserções ilusórias não concordam com um
cânon como o que deve conter a analítica.

A analítica dos princípios será, pois, um cânon
para o julgamento; ela lhe ensina a aplicar aos fe­nômenos, aos
conceitos do entendimento, que con­têm a condição
das regras “a priori” do entendi­mento; eu me servirei da
doutrina do julgamento, que designa mais exatamente este trabalho.

IntroduÇÃO

Do juízo transcendental em geral

Definindo-se o entendimento em geral como a faculdade das regras, o juízo
será a faculdade de subsumar sob regras, quer dizer, de determinar
se uma coisa entra ou não sob uma regra dada (“ca­sus datae
legis”). A Lógica geral não contém pre­ceitos
para o juízo nem pode contê-los, porque, como faz abstração
de todo conteúdo do conheci­mento, só lhe incumbe expor
separadamente e por via de análise simples forma do conhecimento em
conceitos, juízos e raciocínios, com o que estabe­lece as
regras formais de todo uso do entendimen­to.

E se quisesse mostrar, de um modo geral, como se subsumam estas regras, quer
dizer, deci­dir se algo entra ou não, achar-se-ia que ela, por
seu turno, só poderia atingi-la por meio de uma regra. Mas como esta
regra, na qualidade de re­gra, exigiria uma nova instrução
por parte do juí­zo, adverte-se que o entendimento pode instruir-se
e formar-se por regras, enquanto que o juízo é um dom particular
que se exerce mas que não pode apreender-se.

Desse modo o julgamento é o caráter distintivo daquilo que
se denomina bom senso, cuja falta nenhuma escola pode suprir. A um entendimento
limitado pode-se procurar um número de regras e inculcar-lhe certos
conhecimentos, mas é mister que o individuo por si mesmo tenha a faculdade
de servir-se exatamente; e na ausência desse dom da natureza, não
há regra que seja capaz de premuni-lo contra o abuso que fa&ccediccedil;a.

Um médico, um juiz, ou um publicista podem ter em sua mente magníficas
regras patológicas, jurídicas ou políticas, ao ponto
de parecerem ter uma ciência profunda, e, no entretanto, falharem com
a maior facilidade na aplicação dessas re­gras; ou porque
lhes falte o julgamento natural, sem faltar-lhes por isso o entendimento,
e que, se eles vêem bem o geral “in-abstracto”, são
incapa­zes de decidir se um caso está aí contido “in
con­creto”, seja porque não estão exercitados nesta
es­pécie de julgamentos por exemplos e negócios re­ais.

A grande utilidade dos exemplos, a única que se quer, é exercer
o juízo, porque no tocante a exatidão e à precisão
dos conhecimentos do enten­dimento eles são, sobretudo, funestos;
é raro, com efeito, que preencham de um modo adequado a condição
da regra (como “casus in terminis”); além disso, debilitam
geralmente essa tensão ne­cessária ao entendimento para
aperceber as regras em toda a sua generalidade e independentemente das circunstâncias
particulares da experiência, até o ponto que se acaba por tomar
o costume de empregá-los antes como fórmulas do que como princípios.

Vêm a ser os exemplos para o juízo como a muleta para o inválido,
de que não pode prescindir aquele que não tenha essa faculdade
natural. Mas com a Lógica transcendental não sucede que não
possa dar preceitos ao juízo como a Lógica geral; pelo contrário,
parece que sua própria função é corrigir e assegurar
o juízo mediante regras de­terminadas no uso do entendimento puro.
E, real­mente, se for dar extensão ao entendimento no campo do
conhecimento puro “a priori” parece que não só é
inútil volver à Filosofia, mas perigoso, porque apesar de tantas
tentativas feitas se avan­çou pouquíssimo no terreno ou
quase nada; já a Filosofia terá o seu valor quando a tomamos,
não como doutrina, mas como crítica, que sirva para prevenir
os passos falsos do juízo (“Lapsus judi­cil”), no uso
do pouco número de conceitos puros intelectuais que possuímos.

Neste caso, ainda que sua utilidade seja nega­tiva, a Filosofia se apresenta
com toda sua pene­tração e habilidade de exame. A Filosofia
trans­cendental tem a particularidade de, ao mesmo tempo que a regra (ou
melhor dito, a condição ge­ral das regras) que está
dada no conceito puro do entendimento, poder também indicar “a
priori” o caso em que a regra deve aplicar-se.

A superioridade que tem por isto sobre todas as demais ciências instrutivas
(exceto as matemá­ticas) estriba em tratar de conceitos que devem
referir-se “a priori” aos seus objetos, e cujo valor objetivo,
conseguintemente, não pode demons­trar-se “a posteriori”.
Mas ao mesmo tempo neces­sita ela expor por meio de signos gerais e suficientes
as condições sob as quais possam dar-se objetos em harmonia
com esses conceitos; os quais, de outro modo, não teriam conteúdo
algum, e seriam, por conseguinte, puras formas lógicas e não
conceitos puros do entendimento.

Esta doutrina transcendental do juízo conte­rá, pois, dois
capítulos: o primeiro tratará da con­dição
sensível com a qual é unicamente possível empregar os
conceitos puros do entendimento, quer dizer, do esquematismo do entendimento
pu­ro; e o segundo, dos juízos sintéticos que saem “a
priori” sob estas condições dos conceitos puros do entendimento
e servem de fundamento a todos os demais conhecimentos “a priori”,
quer dizer, de princípios do entendimento puro.

CAPÍTULO 1

Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento

Em toda subsunção de um objeto só num con­ceito,
a representação do primeiro deve ser homo­gênea àquela
do segundo, quer dizer, que o con­ceito deve encerrar aquilo que é
contido no objeto que motivou a subsunção. Em verdade é
isso o que se entende quando se diz que um objeto está con­tido
em um conceito.

Assim, por exemplo, o conceito empírico de um prato tem qualquer coisa
semelhante com o conceito puramente geométrico de um círculo,
posto que a forma redonda que no primeiro se pensa, se concebe no segundo.
Mas os conceitos puros do entendimento comparados com as intui­ções
empíricas (ou sensíveis em geral) são por completo heterogêneas,
dessemelhantes, e não se encontram jamais em intuição
alguma.

Como, pois, é possível a subsumação dessas intuições
sob esses conceitos, e, por conseguinte, a aplicação das categorias
aos fenômenos, posto que ninguém pode dizer de tal categoria,
por exemplo:~a causalidade se percebe pelos sentidos e que está contida
no fenômeno?

E esta pergunta, é tão natural e tão importan­te,
que faz com que uma doutrina transcendental do julgamento seja necessária
para explicar como os conceitos puros do entendimento podem aplicar-se aos
fenômenos em geral. Em todas as outras ciências, onde os conceitos
pelos quais o ob­jeto é pensado de um modo geral não são
essen­cialmente distintos dos que representam este ob­jeto “in
concreto”, tal como é dado, não é necessá­rio
dar qualquer explicação para a aplicação do conceito
ao objeto.

É, pois, evidente que deve existir um terceiro termo que seja semelhante
por uma parte à cate­goria e por outra ao fenômeno, e que
torne possí­vel a aplicação da categoria ao fenômeno.
Esta re­presentação intermediária deve ser pura (sem
ne­nhum elemento empírico) e, portanto, é preciso que ela
seja de um lado intelectual, e do outro, sensível.

Tal é o esquema transcendental.

O conceito do entendimento contém a unidade sintética pura
da diversidade em geral. O tempo, como condição formal das representações
diversas dos sentidos internos, e, por conseguinte, de sua ligação,
contém uma diversidade “a priori” na in­tuição
pura. Ora, uma determinação transcenden­tal do tempo é
homogênea, semelhante à categoria (que faz a unidade) enquanto
é universal e as­senta sobre uma regra “a priori”.

Mas, por outro lado, é homogênea ao fenô­meno enquanto
também o tempo está contido em todas as representações
empíricas da diversidade. Será, pois, possível a aplicação
da categoria aos fenômenos mediante a determinação transcenden­tal
do tempo; e esta determinação, por seu turno, torna possível
a subsumação dos fenômenos à ca­tegoria como
esquema dos conceitos do entendi­mento.

Espero que ninguém duvidará já, depois do que ficou
estabelecido na dedução das categorias, sobre a questão
de saber se o uso destes conceitos puros do entendimento é simplesmente
empírico ou se ele é transcendental, quer dizer, se eles não
se relacionam “a priori” senão como fenômenos, como
condição de uma experiência possível, ou se eles
podem estender-se, como condição da possibi­lidade das coisas
em geral, aos objetos em si (em ser restritos à nossa sensibilidade).

Temos visto, com efeito, que os conceitos são impossíveis ou
que carecem de sentido se um ob­jeto não é dado, seja a
esses conceitos mesmos, seja pelo menos aos elementos de que eles se compõem,
e que, por conseguinte, eles não podem aplicar-se a coisas em si (sem
considerar-se como elas podem nos ser dadas). Vimos que o único modo
que existe para que os objetos nos sejam dados é por uma modificação
de nossa sensibilida­de. E, por último, temos visto também
que os con­ceitos puros “a priori” devem conter “a priori”,
além da função do entendimento na categoria, certas condições
formais da sensibilidade (em es­pecial do sentido interno), condições
estas as úni­cas que permitem a aplicação das categorias
a um objeto qualquer.
Chamaremos a esta condição formal e pura da sensibilidade, que
limita em seu uso ao conceito do entendimento, o esquema desse conceito, e
es­quemas, o esquematismo do entendimento puro.

Por si mesmo, o esquema não é sempre mais do que um produto
da imaginação; mas como a síntese desta não tem
por fim nenhuma intuição particular, senão, unicamente,
a unidade na de­terminação da sensibilidade, é preciso
não con­fundir o esquema com a imagem. Quando eu co­loco cinco
pontos seguidos, faço uma imagem do número cinco. Pelo contrário,
quando penso um número em geral, seja cinco ou cem, este pensa­mento
é antes a representação de um método que serve
para representar em uma imagem uma quantidade (p. ex.: mil), de acordo com
certo con­ceito que não é esta mesma imagem, o que, aliás,
não seria muito difícil de fazer se quiserem percorrê-las
com os olhos e compará-las com meu conceito.

Pois bem, o que eu denomino esquema de um conceito é a representação
de um processo geral da imaginação que serve para dar sua imagem
a esse conceito.

E, com efeito, nossos conceitos sensíveis puros não têm
por fundamento imagens de objetos, mas esquemas. Não há imagem
alguma de um triân­gulo que possa ser jamais adequada ao conceito
de um triângulo em geral. Com efeito, nenhuma po­deria atingir a
generalidade do conceito, fazer com que aquele se aplique igualmente a todos
os triân­gulos, retângulos, ângulos e poligonos etc.,
mas ela é sempre restrita a uma parte desta esfera. O esquema do triângulo
não pode existir mais do que no pensamento, e significa uma regra da
síntese da imaginação relativamente a certas figuras
pu­ras (concebidas pelo pensamento puro) no espaço.

Um objeto da experiência ou uma imagem deste objeto atinge bem menos
ainda o conceito empírico, mas aquele se relaciona sempre imedia­tamente
ao esquema da imaginação como a uma regra que serve para determinar
nossa intuição de acordo com um conceito geral. O conceito de
cor, p. ex., designa uma regra segundo a qual minha imaginação
pode representar-se de um modo geral a figura de um quadrúpede, sem
limitar-se a uma figura particular da experiência, nem a qualquer imagem
possível que “in concreto” possa representar-me.

Este esquematismo do entendimento, relativo aos fenômenos e à
sua simples forma, é uma arte oculta nas profundidades da alma humana,
bem difícil de conhecer em sua natureza e em seu se­gredo. Não
podemos dizer mais que a imagem é um produto da faculdade empírica
da imaginação criadora, e que o esquema dos conceitos sensíveis
(como de figuras no espaço) é um produto e de certo modo um
monograma da imaginação pura “a priori”, mediante
o que e pela qual são só pos­síveis as imagens, e
que essas imagens não se po­dem enlaçar ao conceito senão
por meio do es­quema que designam, se não estão nelas mesmas
perfeitamente adequadas.

O esquema de um conceito puro do entendi­mento é, pelo contrário,
algo que não pode reduzir-se a nenhuma imagem; não há
mais do que a síntese pura operada conforme uma regra de unidade, de
acordo com os conceitos em geral e expressa pela categoria. É um produto
transcen­dental na imaginação, que consiste em determinar
o sentido interno em geral, segundo as condições de sua forma
(do tempo), em relação a todas as representações,
enquanto devem unir-se “a priori” em um conceito de acordo com
a unidade da per­cepção.

Sem nos determos em uma seca e fastidiosa análise, daquelas que exigem
em geral os es­quemas transcendentais dos conceitos puros do entendimento,
nós os exporemos muito melhor se­gundo a ordem das categorias e
em relação com elas.

A imagem pura de todas as quantidades (“quantorum”) para o sentido
externo é o espaço, e a todos os objetos dos sentidos em geral,
o tempo. Mas o esquema puro da quantidade (“quantitatis”) como
conceito do entendimento, é o número, que é uma representação
que compreende a adição su­cessiva de um a um (homogêneos
em si). O número não é, pois, mais do que a unidade de
síntese do diverso de uma intuição homogênea em
geral, ao introduzir eu o tempo mesmo na apreensão da intuição.

No conceito puro do entendimento, uma reali­dade é o que corresponde
a uma sensação em ge­ral; por conseguinte, os objetos como
fenômenos, o que neles corresponde à sensação é
a matéria transcendental de todos os objetos como coisas em si (a realidade).
Mas toda sensação tem um grau ou uma quantidade com que pode
encher mais ou menos o tempo, quer dizer, o sentido interno, com a mesma representação
de um objeto até que se reduz a zero (= “o negatio”).

Existe, pois, uma relação e um encadeamento, ou melhor, uma
ponte da realidade à negação, o que torna representável
esta realidade como quan­tidade. E o esquema desta realidade, como quan­tidade
de algo que enche o tempo, é precisamente esta contínua e uniforme
produção da realidade no tempo, quando se desce cronologicamente
da sen­sação, que tem um certo grau, até sua inteira
de­saparição, ou quando se sobe sucessivamente da negação
da sensação até sua quantidade.

O esquema da substância é a permanência do real no tempo;
quer dizer, que se representa o real como um substrato da determinação
empírica do tempo, em geral; substrato que permanece, en­quanto
que tudo o mais varia. Nele não escoa o tempo, mas a existência
do mutável. Ao tempo, pois, que em si fixo e imutável, corresponde
no fe­nômeno o imutável na existência; quer dizer,
a substância. Somente nesta podem determinar-se a sucessão e
a simultaneidade dos fenômenos em re­lação ao tempo.

O esquema da causa e da causalidade de uma coisa em geral é o real;
que, uma vez posto, ne­cessariamente está sempre seguido de alguma
ou­tra coisa. Consiste, pois, na sucessão da diversi­dade enquanto
sujeito a uma regra.

O esquema da reciprocidade, ou da mútua causalidade de substância
em relação com seus acidentes, é a simultaneidade das
determinações de uma com as de outras, conforme uma regra geral.
O esquema da possibilidade é a conformidade da síntese de diferentes
representaçôes com as condições do tempo em geral;
por exemplo: o con­trário não pode existir ao mesmo tempo
em uma coisa, mas sim sucessivamente. Por conseguinte, a determinação
da representação de uma coisa em um tempo dado.

O esquema da realidade é a existência em um tempo determinado.

O esquema da necessidade é a existência de um objeto em todo
tempo.

Em tudo isto se vê, pois, o que contém e repre­senta o esquema
de cada categoria: o da quanti­dade, a produção (a síntese)
do tempo mesmo na apreensão sucessiva de um objeto; o da qualidade,
a síntese da sensação (da percepção com
a repre­sentação do tempo ou ocupação do tempo);
o de relação, o enlace que une as percepçôes em
todo tempo (quer dizer, conforme, uma regra de deter­minação
do tempo); por último, o esquema da modalidade e de sua categoria,
o tempo mesmo, para ver como e se este objeto pertence ao tempo.

Os esquemas não são, pois, mais do que de­terminações
“a priori” do tempo feitas regras, e que, segundo a ordem das
categorias, têm por ob­jeto a série do tempo, o intervalo
do tempo, e, por fim, o conjunto do tempo em relação a todas
as coisas possíveis.

De tudo isto resulta que o esquematismo do entendimento, pela síntese
transcendental da imaginação, tende unicamente à unidade
dos ele­mentos diversos da intuição no sentido interno,
e assim mesmo, ainda que indiretamente, à unidade da percepção,
por ser função que corresponde ao sentido interno (a sua receptividade).
Os esque­mas dos conceitos puros do entendimento são, pois, as
únicas e verdadeiras condições pelas quais podem estes
conceitos pôr-se em relação com obje­tos e dar-lhes,
por conseguinte, uma significação.

De sorte que se vê que, em definitivo, as cate­gorias só
têm possível um uso empírico, porque unicamente servem
para submeter os fenômenos às regras gerais da síntese
por meio de princípios de uma unidade necessária “a priori”
(por causa da união necessária de toda consciência em
uma só apercepção primitiva), e tomar desse modo os fenômenos
suscetíveis de uma ligação universal em uma experiência.
Mas todos os nossos conhe­cimentos radicam neste conjunto de toda expe­riência
possível e a verdade transcendental que precede à empírica,
e a possibilita na relação geral do espírito com essa
experiência.

Ao mesmo tempo é evidente que, se os esque­mas da sensibilidade
realizam em primeiro lugar as categorias, também as limitam, isto é,
reduzem-nas em estado tal que ficam fora do En­tendimento (quer dizer,
da sensibilidade). Assim, o esquema é apenas o fenômeno no conceito
sensí­vel de um objeto de conformidade com a sua cate­goria.

NUMERUS est quantitas phoenomenon, SENSATIO, realitas phoenomenon, CONSTANS
et perdurabile rerum substantia phoenomenon, AETERNITAS, NECESSITAS, phoenomena
etc., etc. Se tirarmos uma condição restritiva, estende­mos,
segundo parece, o conceito anteriormente li­mitado.

Consideradas as categorias em seu sentido puro e independente das condições
da sensibilida­de, valerão, neste caso, para os objetos em geral
tal como eles são, enquanto que os seus esquemas somente os representam
como eles nos aparecem, tendo, assim, as categorias um valor independente
de todo esquema e de grande extensão.

É verdade, entretanto, que os conceitos puros do Entendimento conservam
sempre um certo sen­tido, mesmo depois de ter sido feita a extração
de toda condição sensível, porém é um sentido
me­ramente lógico; quer dizer, o da simples unidade das representações,
embora estas sem um fim de­terminado, razão pela qual esses conceitos
care­cem de significação, posto que não têm
um obje­tivo a que referir.

A substância, p. ex., separada da determina­ção sensível
da permanência, significa apenas que uma coisa pode conceber-se como
sendo sujeito (embora não seja o predicado de outra coisa). Mas nada
podemos fazer com essa representação, uma vez que não
conhecemos as determinações que deve possuir a coisa para atingir
o titulo do pri­meiro sujeito. Desta forma, as categorias sem es­quemas
são apenas funções do Entendimento rela­tivas aos
conceitos sem que representem qualquer objeto. Sua significação
provém da sensibilidade que realiza o Entendimento a par de limitá-lo.

CAPÍTULO II

Sistema de todos os princípios do entendimento puro

Examinamos no capítulo precedente a facul­dade transcendental
de julgarmos somente sob o ponto de vista das condições gerais
necessárias para aplicação dos conceitos puros do Entendi­mento
aos juízos sintéticos. Exporemos, agora, em ordem sistemática
os julgamentos que o Entendi­mento forma “a priori” sob esta
reserva crítica. Nossa tabela de categorias dar-nos-á infalivel­mente
para isto um guia natural e seguro.

Justamente a relação dessas categorias com a experiência
possível é a que deve constituir “a priori” todos
os conceitos puros do Entendimento e, por conseguinte, a sua relação
com a sensibili­dade geral é que nos fará conhecer integralmente
e sob a forma de um sistema, todos os princípios transcendentais do
uso do Entendimento.

Os princípios “a priori” levam esse nome, não somente
porque servem de fundamento ao dos juí­zos, mas também porque,
por sua vez, estão base­ados em conhecimentos mais elevados e gerais.
Mas essa propriedade não os dispensa, sempre, sem embargo, de uma prova.

Embora esta prova não possa ser estabelecida mais objetivamente e
sirva antes de fundamento a todo conhecimento do seu objetivo, não
impede que seja impossível e até necessário tirá-la
das fontes subjetivas que possibilitam o conhecimento de um objeto em geral.
De não ser assim, fica o princípio exposto à grave suspeita
de ser mera e subreptícia afirmativa.

Limitar-nos-emos simplesmente aos princípios que se referem às
categorias. Vamos prescindir assim, no campo das nossas investigações,
dos princípios da Estética transcendental, segundo os quais,
Tempo e Espaço são as condições da possi­bilidade
das coisas como fenômenos e também, da restrição
desses princípios, de que não podem aplicar-se às coisas
em si mesmas. Tampouco fa­zem parte desse sistema os princípios
matemáti­cos, porque procedem da intuição e não
dos con­ceitos puros do Entendimento.

Sendo juízo sintético “a priori” terá aqui
sua possibilidade necessariamente de um lugar, mas não apenas para
demonstrar sua exatidão nem a certeza apodítica, o que é
desnecessário, senão unicamente para poder compreender e deduzir
a possibilidade desta espécie de conhecimentos evi­dentes “a
priori”.

Falaremos também do princípio dos juízos analíticos
em oposição aos juízos sintéticos, que são
dos que necessariamente temos que nos ocu­par, porque opondo-os uns aos
outros nos livrare­mos dos equívocos na teoria dos últimos
e torna­remos mais visível sua própria natureza.

Primeira SeÇÃo

Do princÍpio supremo de todos os juÍzos analÍticos

A condição universal, embora puramente ne­gativa, de todos
os nossos juízos em geral, seja qual for o conteúdo do nosso
conhecimento e a maneira que estiver em relação com o objeto,
é a de não se contradizerem a si mesmos, e se assim não
for são de per si nulos (mesmo independente­mente do objeto). Pode
acontecer também que mesmo nosso juízo não contendo qualquer
contra­dição, que junte os conceitos de maneira contrária
ao objeto e que não se baseiam em fundamentos “a priori”
e “a posteriori” e por isso que seja falso ou mal fundamentado,
sem conter, sem embargo uma contradição interior.

Este conceito, pelo qual um predicado está em contradição
com uma coisa que não lhe convém, chama-se o “princípio
de contradição”. É este um critério universal
da verdade, embora meramente negativo, pelo que pertence exclusivamente à
Ló­gica em virtude de se aplicar aos conhecimentos considerados
apenas como conhecimentos em ge­ral e independentemente do seu conteúdo,
limitando-se a declarar que a contradição o destrói completamente.

Pode-se fazer dele, entretanto, um uso positi­vo; isto é, não
somente para rechaçar o erro (em­bora se baseie em uma contradição),
senão também para conhecer a verdade. Porque se o juízo
é ana­lítico, quer seja afirmativo ou negativo, sempre poderemos
conhecer perfeitamente a verdade por meio do princípio de contradição.
De fato, o con­trário do que já está contido como
conceito ou do que é concebido no conhecimento do objeto, será
negado sempre com razão, e necessariamente afirma-se esse conceito
porque o contrário a este conceito estaria em contradição
com o objeto.

Devemos, pois, dar valor ao princípio de con­tradição,
um princípio universal e suficiente para todo conhecimento analitico,
porém, até aí so­mente chega a ser usado como critério
suficiente da verdade. Este princípio é a condição
“sine qua non” de nossos conhecimentos, porque nenhum deles pode
ser contrário sem destruir-se por si mesmo, embora não possa
ser destruido o princí­pio determinante da verdade do nosso conheci­mento.

Agora temos apenas que ocupar-nos da parte sintética do nosso conhecimento
e cuidaremos de não ir contra esse inviolável princípio,
embora nada possamos esperar dele que nos sirva de luz para a verdade nesta
espécie de conhecimentos.

Existe uma fórmula deste célebre princípio, embora puramente
formal, que contém uma sín­tese que indevida e desnecessariamente
passou com o próprio princípio. A fórmula é esta:
é im­possível que uma coisa seja e não seja ao mesmo
tempo. Além de aplicar aqui a certeza apodítica (pela palavra
“impossível”) de um modo supérfluo, porque ela mesma
se subentende pela proposição, fica esta afetada pela condição
do Tempo.

Diz isto: uma coisa = A, que é algo = B, não pode ao mesmo
tempo ser não B. Porém, isto não impede que sucessivamente
possam ser ambas as coisas (B igual a não B). Por exemplo, o homem
que é moço não pode ser ao mesmo tempo velho, porém,
esse mesmo homem pode ser jovem num tempo e em outro não jovem, isto
é, velho.

Mas, o princípio da contradição, como princí­pio
puramente lógico, não deve limitar suas afir­mativas às
relações de tempo, pelo que essa fór­mula é
completamente contrária ao seu fim. A confusão provém
de que após termos separado um predicado de uma coisa, do conceito
desta, une-se a seguir a esse predicado seu contrário, o que ja­mais
dá uma contradição com sujeito mas apenas com o predicado
que lhe foi anexado sinteticamen­te, e contradição que somente
se apresenta quando se põe o primeiro e o segundo predicados num mesmo
tempo.

Se eu disser: um homem que é ignorante não é instruído,
tenho que acrescentar a condição: ao mesmo tempo, mesmo porque
o ignorante numa época pode ser instruído em outra, mas se eu
afirmar: nenhum homem ignorante é instruído, a proposição
então é analítica, porque o caráter da ignorância
constitui aqui o conceito do sujeito, re­sultando imediatamente esta proposição
negativa do princípio de contradição, sem ser necessário
acrescentar a condição ao mesmo tempo.
É esta a razão porque anteriormente troquei a fórmula
desse princípio, de sorte que o caráter analítico de
proposição está claramente exposto.

Segunda SeLÇÃO

Do princÍpio supremo de todos os juÍzos sintÉticos

A explicação da possibilidade dos juízos sintéeacute;­ticos,
em geral, é um problema que nada tem que ver com a Lógica geral,
nem precisa sequer conhecer-lhe o nome. Não é assim na Lógica
transcendental, onde o seu assunto mais impor­tante e até podemos
dizer o único, consiste na in­vestigação da possibilidade
dos juízos “a priori” suas condições e extensão
de seu valor; porque somente depois de haver preenchido este cometi­mento
é quando está em condições de cumprir sua finalidade,
consistente em determinar a extensão e os limites do Entendimento.

Nos juízos analíticos não preciso sair do con­ceito
dado para dizer algo sobre esse conceito. Se o juízo for afirmativo,
apenas acrescento ao conceito o que nele estava já pensado; se for
negativo ex­cluirei do conceito seu contrário.

Nos juízos sintéticos é preciso que eu saia do conceito
dado a fim de considerar sua relação com outra coisa do que
nele se pensava; por conseguin­te, essa relação não
é nunca uma relação de iden­tidade nem de contradição
e, por isso mesmo, não pode o juízo apresentar nem erros nem
verdades.
Admitindo, pois, que é necessário sair de um conceito dado para
compará-lo sinteticamente com outro, devemos também admitir
um terceiro termo no qual possa ter lugar a síntese dos dois concei­tos.

Qual será, então, esse terceiro termo, que é como o
meio de todos os juízos sintéticos?

Somente poderá ser um conjunto no qual este­jam compreendidas
todas as nossas representa­ções; isto é, o sentido
interno e a sua forma “a priori”, ou Tempo. A síntese da
representação ra­dica na imaginação, porém,
sua unidade sintética (que o juízo exige) está baseada
na unidade da apercepção.
Agora é mister buscar a possibilidade dos juí­zos sintéticos
e como também esses três termos possuem fontes de representações
“a priori”, a possibilidade dos juízos sintéticos
“a priori”; e se­rão também necessários
pôr esses princípios quando precisarmos um conhecimento dos objeti­vos
que se baseiam exclusivamente na síntese das representações.

A fim de que um conhecimento possa ter uma realidade objetiva, isto é,
referir-se a um objeto, encontrando seu valor e sua significação,
é neces­sário que o objeto possa ser dado de alguma for­ma.
Sem isto, os conceitos são vãos e qualquer coisa que assim for
concebida será como se nada tivesse sido feito: é apenas brincar
com represen­tações. Dar um objeto se neste, ao mesmo tempo,
não se pensar imediatamente, se não representar imediatamente
na intuição, é apenas relacionar sua representação
com a experiência (real ou pos­sível).

Espaço e Tempo são seguramente conceitos puros de todo elemento
em perigo e, por conse­guinte, representados “a priori” em
nosso espírito; mas, mesmo assim, careceriam de todo valor obje­tivo
e significação se a sua aplicação não fosse
necessária nos objetivos da experiência.

A própria representação é apenas um esquema que
sempre se refere à imaginação produtiva, aquela que provoca
os objetivos da experiência, sem os quais não teriam nenhuma
significação e, mesmo assim, com todos os conceitos, sem distin­ção.

É, pois, a “possibilidade de experiência” o que
dá realidade objetiva a todos os nossos conheci­mentos “a
priori”. A experiência, porém, baseia-se na unidade sintética
dos fenômenos, isto é, na sín­tese do objeto dos fenômenos
em geral, e segundo conceitos, síntese sem a qual a experiência
nem os conhecimentos seriam senão como uma rapsódia de percepçôes
sem qualquer seqüência entre si, segundo as regras de uma consciência
única (pos­sível), e não serviriam assim à
unidade transcen­dental necessária da apercepção.

Desta forma, a experiência fundamenta-se em princípios que determinam
sua forma “a priori”, isto é, regras gerais que constituem
a unidade na síntese dos fenômenos, regras que podem sempre demonstrar
sua realidade objetiva e possibilidade na experiência, como condições
necessárias. Fora isto, são absolutamente impossíveis
as proposições sintéticas “a priori”, porque
lhes falta um terceiro termo, isto é, um objetivo puro no qual a unidade
sintética dos seus conceitos possa estabelecer a sua realidade objetiva.

Mesmo que do Espaço em geral e das figuras que nele a imaginação
produtiva descreve conhe­cemos “a priori” muitas coisas por
meio de juízos sintéticos, sem necessitarmos para isso da expe­riência,
este conhecimento seria apenas uma vã quimera se o Espaço não
fosse aceito como condi­ção de fenômenos que constituem
a matéria da experiência externa.

Os juízos sintéticos puros referem-se, pois, embora de um modo
mediato, à experiência possí­vel, ou melhor ainda,
à sua própria possibilidade e nisso, unicamente, fundamentam
o valor objetivo da sua síntese.

Sendo, pois, a experiência, como síntese empí­rica
em sua possibilidade, o único modo de conhe­cimento que dá
realidade a toda outra síntese, es­ta, como de conhecimento “a
priori”, não é verda­deira (em desconformidade com
o objeto), senão enquanto não contém mais que o que é
necessário à unidade sintética da experiência em
geral.

O princípio supremo de todos os juízos sintéti­cos
é, pois, que todo objeto está submetido às con­dições
necessárias à unidade sintética da diversi­dade da
intuição numa experiência possível.

Assim, são possíveis os julgamentos sintéticos “a
priori” quando referimos condições formais da intuição
“a priori”, a síntese da imaginação e sua
unidade necessária numa apercepção transcen­dental,
a um conhecimento experimental possível em geral e que podemos dizer:
as condições da possibilidade da experiência” em
geral são ao mesmo tempo as da “possibilidade dos objetivos da
experiência”, e é por isso que têm um valor ob­jetivo
num juízo sintético “a priori”.

Adrede escolhi estas denominações para que sobressaiam as diferenças
que têm sob o ponto de vista da experiência e da prática.
Depois se ad­vertirá que quanto à evidência e à
determinação “a priori” dos fenômenos, segundo
as categorias da quantidade e qualidade (atendendo só à forma
desses fenômenos), que os princípios destas cate­gorias diferem
consideravelmente dos das outras duas; pois as primeiras têm só
uma certeza intui­tiva e as segundas, simplesmente discursiva, por mais
que uns e outros tenham uma certeza perfei­ta. Por isto chamo aos primeiros
princípios mate­máticos e aos segundos, dinâmicos.

Tenho de advertir que não atendo aqui mais aos princípios matemáticos
em um caso que aos da dinâmica geral (Física) em outro, mas única
e ex­clusivamente aos do entendimento puro em sua relação
com o sentido interno (sem distinção das representações
que nele se dão). Ao denominá-las assim, faço-o mais
em virtude de sua aplicação do que no do seu conteúdo,
e empreendo agora seu exame segundo a ordem em que são apresentados.

I – Axiomas da IntuiÇÃo

Princípio: Todas as intuições são quantidades
extensivas

PROVA

Todos os fenômenos compreendem, quanto à forma, uma intuição
no espaço e no tempo que lhes serve de fundamento “a priori”.
Eles não po­dem ser apreendidos, isto é, recebidos na cons­ciência
empírica, senão por meio desta síntese do diverso, pela
qual são produzidas as representa­ções de um espaço
ou de um tempo determinados; quer dizer, pela composição de
seus elementos homogêneos e pela consciência da unidade sinté­tica
destes elementos diversos (homogêneos). Mas a consciência da diversidade
homogênea na intui­ção em geral, enquanto que a representação
de um objeto só assim é possível, consiste no conceito
de uma quantidade (“quanti”).

Conseguintemente, a mesma percepção de um objeto, como fenômeno,
não é possível senão por meio dessa mesma unidade
sintética do diverso na intuição sensível, unidade
pela qual a da decom­posição do homogêneo diverso
se concebe no con­ceito de uma quantidade; quer dizer, que os fenô­menos
são todos quantidades, e melhor, quantida­des extensivas, porque
são representados necessa­riamente como intuições
no espaço ou no tempo, mediante esta mesma síntese pela qual
se deter­minam em geral espaço e tempo.

Denomino quantidade extensiva aquela em que a representação
das partes torna possível a do todo (a que necessariamente precede).
Não posso representar-me uma linha, por pequena que seja, sem traçá-la
no pensamento; quer dizer, sem re­produzir sucessivamente todas as partes
de um ponto a outro, e sem fazer com esta plástica a in­tuição.
O mesmo sucede com qualquer parte do tempo, por pequena que seja. Eu não
posso concebê-la senão por meio de uma progressão su­cessiva
que vai de um momento a outro; e da adi­ção de todas estas
partes do tempo resultará logo uma quantidade de tempo determinada.

Como a intuição pura em todos os fenômenos é o
espaço ou tempo, todo fenômeno, enquanto in­tuição,
é uma quantidade extensiva, porque não pode conhecer-se senão
por meio de uma síntese sucessiva (de parte a outra) que a apreensão
veri­fica. Todos os fenômenos, pois são primeiramente percebidos
como agregados (como multidão de partes dadas já antes), o que
não sucede sempre em todas as classes de quantidades, mas somente nas
que representamos e aprendemos como exten­sivas.

Aqui, nesta síntese sucessiva da imaginação produtiva
na criação de figuras, é que se fundam as matemáticas
da extensão (Geometria) com seus axiomas, que exprimem as condições
da intuição sensível “a priori”, que são
as únicas que possibili­tam o esquema de um conceito puro da intuição
externa, como por exemplo, que entre dois pontos não cabe mais que
uma só linha reta possível, ou que duas linhas retas não
contêm um espaço, etc. São estes axiomas que não
se referem propria­mente senão a “quanta”, como tais.

Relativamente à quantidade (“quantitas”), quer dizer,
à questão de saber qual é o tamanho de uma coisa, sobre
isto não há axiomas no verda­deiro sentido da palavra, por
mais que muitas des­tas proposições sejam sintéticas
e imediatamente certas (“indemonstrabilia”). Porque, que o par
adi­tado ao par ou tirado do par dê o par, são estas proposições
analíticas, posto que tenho consciên­cia imediatamente da
identidade da produção de uma quantidade com a outra. Os axiomas,
pelo contrário, devem ser princípios sintéticos “a
prio­ri".

As proposições evidentes que exprimam as re­lações
numéricas são seguramente sintéticas, pelo que não
merecem o nome de axiomas senão só o de fórmulas numéricas.
A proposição de 7 + 5 = 12 não é de modo algum
analítica. Com efeito, eu não penso o número 12 nem na
repre­sentação de 7, nem na de 5, mas naquela da união
desses dois números (que eu concebo necessaria­mente na adição
dos dois, embora aqui não seja essa questão apropriada, porque
em uma proposi­ção analítica não se trata
de saber se eu concebo realmente o predicado na apresentação
do sujeito).

Mas ainda que sintética, esta proposição é par­ticular.
Enquanto aqui só consideramos a síntese das quantidades homogêneas
(das unidades), esta só de uma maneira pode realizar-se, por mais que
depois seja o uso destes números geral.

Quando digo: um triângulo se constrói com três linhas,
em que duas juntas podem ser maio­res que a terceira, não há
nisso mais do que pura função da imaginação produtiva,
que pode traçar linhas mais ou menos grandes e fazer com que formem
toda classe de ângulos.

O número 7, pelo contrário, não é possível
se­não por uma só maneira, e assim também o 12, produzido
pela síntese do primeiro com o 5. Tais proposições, pois,
não podem chamar-se axiomas (pois do contrário haveria um número
infinito), mas fórmulas numéricas.

Esse princípio transcendente da ciência ma­temática
dos fenômenos estende consideravel­mente nosso conhecimento “a
priori”, porque só por ele podem as matemáticas puras
aplicar-se com toda a sua precisão aos objetos da experiên­cia,
e sem ele não só não seria evidente por si mesma sua
aplicação, como também daria mar­gem a certas contradições.
Os fenômenos não são coisas em si. A intuição
empírica é possível só pela intuição
pura (de tempo e espaço).

Desde então não se poderia pretextar que os objetos dos sentidos
não devem conformar-se as leis da construção no espaço
(p. ex.: com a infi­nita divisibilidade das linhas ou dos ângulos);
por­que assim se negaria ao mesmo tempo todo valor objetivo ao espaço
e com ele a todas as matemáti­cas, e não se saberia já
por que nem até que ponto são estas aplicáveis aos fenômenos.

A síntese de espaços e tempos é o que possibi­lita,
como formas essenciais de toda intuição, a apreensão
do fenômeno, e, por conseguinte, toda experiência externa, e também
todo o conhecimento de objetos da experiência. E tudo quanto provém
da Matemática em sua aplicação pura a esta síntese
vale também, necessariamente, para a experiência.

Todas as objeções feitas contra não passam de argúcias
de uma razão pouco ilustrada que erro­neamente crê que pode
libertar aos objetos dos sentidos da condição formal de nossa
sensibilidade e que os representa como objetos em si dados ao entendimento,
ainda que não sejam mais do que fenômenos. Se assim fosse, nada
deles poderia se­guramente ser conhecido “a priori"; e, por
conse­guinte, mediante os conceitos puros do espaço e a ciência
que os determina, a Geometria seria im­possível.

II – AntecipaÇÕes da PercepÇÃo

Princípio: Em todos os fenômenos, o real, que é um objeto
da sensação, tem uma qualidade intensiva, quer dizer, um grau

PROVA

A percepção é a consciência empírica, isto
é, a consciência acompanhada de sensação. Os fenô­menos
como objetos da apercepção não são intui­ções
puras (puramente formais) como o espaço e o tempo (que não podem
ser percebidos em si mes­mos). Eles contêm, pois, além da
intuição, a maté­ria de qualquer objeto em geral
(pelo qual é apre­sentada qualquer coisa de existente no espaço
ou no tempo), quer dizer o real da sensação, conside­rado
como uma representação puramente subje­tiva de que se não
pode ter consciência senão en­quanto o sujeito é afetado,
e que relaciona este com um objeto qualquer.

Mas pode ter lugar uma transformação gra­dual da consciência
empírica em pura, em que o real da primeira desapareça por completo
e que não reste mais do que uma consciência puramente formal
“a priori” da diversidade contida no espaço e no tempo;
por conseguinte, pode haver também uma síntese da produção
da quantidade de uma sensação depois de seu começo: a
intuição pura – 0, até uma grandeza qualquer. E
como a sensa­ção não é por si mesma uma representação
objeti­va, não havendo nela nem intuição do espaço
nem do tempo, ela não tem grandeza extensiva, ainda que tenha uma quantidade
(por meio da sua apre­ensão, onde a consciência empírica
pode crescer em um certo tempo depois do nada até um grau dado), e
por conseguinte ela tem uma grandeza in­tensiva, à qual deve corresponder
também em to­dos os objetos da percepção enquanto
esta contém uma sensação, quer dizer, um grau de influência
nos sentidos.

Pode chamar-se antecipação a todo conheci­mento pelo qual
posso conhecer e determinar “a priori” o que pertence ao conhecimento
empírico, e essa é seguramente a significação
que dava Epi­curo. Mas como existe nos fenômenos algo que jamais
é conhecido “a priori”, e que constitui desse modo a diferença
verdadeira entre o empi­rismo e o conhecimento “a priori”,
e que esse algo é a sensação (como material da percepção)
segue-se que o que propriamente não pode ser anteci­pado é
a sensação. Poderemos, pelo contrário, de­nominar
às determinações puras no espaço e no tempo, já
com relação à figura, já pela quantida­de,
antecipações de fenômenos porque represen­tam “a
priori” o que sempre pode dar-se “a poste­riori” na
experiência.

Suponhamos, porém, que exista algo que possa conhecer-se “a
priori” em cada sensação, considerada como uma sensação
geral (sem que uma sensação particular se tenha dado); esse
algo mereceria também chamar-se antecipação, ainda que
em sentido excepcional. Digo excepcional, porque é bem estranho, certamente,
antecipar so­bre a experiência naquilo mesmo que constitui a sua
matéria e que só dela pode tomar-se. Isto é, entretanto,
o que aqui sucede.

A apreensão não enche, só com a sensação,
senão um instante (não se fala aqui da sucessão de várias
sensações). Enquanto ela é no fenômeno alguma coisa
cuja apreensão não é uma síntese sucessiva que
precede indo das partes à representação total, esta apreensão,
por conseguinte, carece de quantidade extensiva; a ausência de sensação
no mesmo ins­tante representaria este instante como vazio, como igual
a zero. O que corresponde à sensação na in­tuição
empírica é, pois, realidade (“realiter phae­nomenon”);
e o que corresponde à ausência da sensação é
a negação. Ademais, toda sensação é suscetível
de diminuição, de tal sorte que ela pode decrescer e desaparecer
insensivelmente.

Há, pois, entre a realidade no fenômeno e a negação,
uma cadeia contínua de sensações in­termediárias
possíveis, entre as quais há sempre menos diferença que
entre a sensação dada e o zero ou a inteira negação.
Isto é o mesmo que di­zer que o real em um fenômeno tem sempre
uma quantidade, mas que esta quantidade não se acha na apreensão,
posto que esta se verifica no ins­tante por meio da simples sensação
e não por uma síntese sucessiva de muitas sensações,
não proce­dendo, por conseguinte, das partes ao todo. Tem, pois,
uma quantidade, mas que não é exterior.

Agora, a esta quantidade, que só como uni­dade se apreende, e
em que a pluralidade não pode ser representada mais do que por aproxima­ção
à negação, denomino-a quantidade intensiva. Toda realidade
no fenômeno tem, pois, uma quan­tidade intensiva, quer dizer, um
grau. Quando se considera esta realidade como causa (seja da sen­sação
ou de outra realidade no fenômeno, por exemplo, de uma mudança),
denominamo-la um momento, p. ex.: o momento da gravidade, e isto porque o
grau não designa senão a quantidade cuja apreensão não
é sucessiva, mas momentâ­nea. Toco neste ponto, de passagem,
pois ainda não vou tratar da causalidade.

Toda sensação, e por conseguinte também toda realidade
no fenômeno, por pequena que seja, tem um grau; quer dizer, uma quantidade
inten­siva que todavia pode ser diminuída, havendo en­tre a
realidade e a negação uma série contínua de realidades
e de percepções possíveis, cada vez menores. Uma cor
qualquer, p. ex.:, a vermelha, possui um grau que, por pequeno que seja, nunca
é o último menor possível; ocorre o mesmo com o calor,
com o momento da gravidade, etc.

A propriedade das quantidades que faz com que nenhuma de suas partes seja
a menor possível nelas (nenhuma parte é simples) é o
que se chama sua continuidade. Espaço e tempo são quantidades
contínuas (“quanta” contínua), porque nenhuma de
suas partes pode dar-se sem estar contida em limites (pontos e instantes),
e de tal sorte que essa mesma parte não seja por sua vez um espaço
ou um tempo. O espaço, pois, não se compõe senão
de espaços, e o tempo, de tempos.

Os instantes e os pontos não são limites do tempo e do espaço;
quer dizer, simplesmente os lugares de sua circunscrição. E
estes lugares su­põem sempre intuições que os limitam
ou deter­minam, e nem tempo nem espaço podem conceber-se como compostos
de simples lugares de partes integrantes que se supõem dadas anterior­mente.
Pode chamar-se a esta classe de quantida­des fluentes, porque a síntese
(da imaginação criadora) as produz por uma progressão
no tempo, cuja continuidade se designa geralmente com a palavra fluxão.

Todos os fenômenos em geral são, pois, quan­tidades contínuas,
tanto por sua intuição, ao ser quantidades extensivas, como
também por sua simples percepção (sensação
e, por conseguinte, realidade) como quantidades intensivas. Quando se interrompe
a síntese da diversidade dos fenô­menos, essa diversidade
não é então um fenômeno como “quantum”,
mas simplesmente um agregado de vários fenômenos, produto da
repetição de uma síntese sempre interrompida, em vez
de ser pela simples progressão da síntese geradora de uma espécie
dada. Quando digo que 13 thalers repre­sentam certa quantidade de dinheiro,
sirvo-me de uma expressão exata se com isso entendo um marco de prata
fina.

Esse marco de prata é seguramente uma quantidade contínua na
qual não há parte alguma que seja a menor possível, e
onde cada parte podia formar uma moeda que por sua vez conteria sem­pre
matéria para outras menores. Mas se entendo por aquela expressão
13 thalers redondos, quer di­zer, 13 moedas (qualquer que seja o seu valor),
será impróprio que a isso denomine eu uma quan­tidade de
thalers; é mister chamá-lo um agregado, quer dizer, um número
de moedas. E como em todo número é necessária uma unidade
que sirva de fundamento ao fenômeno, como unidade, é um “quantum”,
e como tal sempre um contínuo.

Como todos os fenômenos, considerados bem como extensivos ou como intensivos,
são quanti­dades contínuas, a proposição de
que toda mu­dança (passagem do estado de uma coisa para ou­tra)
é contínua, poder-se-ia demonstrar aqui fa­cilmente e com
evidência matemática se a causa­lidade de uma mudança
em geral não estivesse por completo fora dos limites da Filosofia trans­cendental
e não supusesse princípios empíricos. Por que possa existir
uma causa que mude o es­tado das coisas, quer dizer, que as determine
em um sentido contrário a certo estado dado, sobre isso o entendimento
nada nos diz “a priori”, e não só porque não
veja a possibilidade (o que nos falta na maior parte dos conhecimentos “a
priori”), mas também porque a mutabilidade atinge tão-só
a certas determinações dos fenômenos que só a ex­periência
pode demonstrar-nos, enquanto que a causa permanece no imutável.

Mas, como aqui só dispomos dos conceitos pu­ros, fundamentais
de toda experiência possível, e nos quais nada de empírico
deve haver, não po­demos, sem quebrar a unidade do sistema, anteci­par
nada da Física geral, fundados sobre certos princípios da experiência.

Não carecemos, não obstante, de provas que demonstrem a grande
influência de nosso princí­pio na antecipação
das percepções, e até suprindo-as também, de sorte
que evita as falsas consequências que poderiam tirar-se.

Se toda realidade na percepção tem um grau, entre esse grau
e a negação há uma série infinita de graus sempre
menores, e, não obstante, cada sentido deve ter um grau determinado
de recepti­vidade para as sensações. Não existe,
pois, per­cepção, e por conseguinte experiência, que
prove, quer imediata, quer mediatamente (qualquer ca­minho que se escolha
para chegar a essa conclu­são), a ausência absoluta de toda
realidade no fe­nômeno; que da experiência não se pode
tirar a prova de um espaço ou de um tempo vazios.

Primeiramente, a ausência absoluta de reali­dade na intuição
sensível não pode nem ser perce­bida; depois, tampouco,
pode deduzir-se a de ne­nhum fenômeno particular, nem da diferença
de seus graus de realidade, e não se pode admitir nunca para explicar
esta realidade. Efetivamente, ainda que toda intuição de um
espaço e de um tempo determinado seja inteiramente real, quer dizer,
que nenhuma parte desse espaço ou tempo esteja vazio, não obstante,
como toda realidade possui o seu grau, que pode decrescer segundo uma infinidade
de graus inferiores atéeacute; o nada, sem que a grandeza extensiva do fenômeno
cesse de ser a mesma, deve haver uma infinidade de graus diferentes enchendo
o espaço e o tempo, e a grandeza intensiva nos diversos fenômenos
deve poder ser menor ou maior, ainda que a grandeza extensiva da intuição
permaneça a mesma. Da­remos um exemplo.

Os fisicos, ao notarem uma grande diferença na quantidade de matéria
contida em um mesmo volume em corpos de diversas espécies (pelo peso
ou pela resistência oposta a outras matérias em movimento), pensaram
que esse volume (quanti­dade extensiva do fenômeno) deveria conter
o va­zio em todas as matérias, ainda que em propor­ções
distintas. Quem havia de pensar que esses naturalistas, em sua maioria matemáticos
e me­cânicos, fundavam sua conclusão em uma simples hipótese
metafísica, que tanto pretenderam evi­tar?

É isso o que fazem, no entanto, ao admitirem que o real no espaço
(não digo aqui impenetrabili­dade ou peso, porque são conceitos
empíricos) é em todas as partes idêntico, e que não
pode distinguir-se mais do que pela quantidade extensi­va; quer dizer,
pela pluralidade. A esta suposição, que não tem nenhum
fundamento na experiência e que é puramente metafísica,
eu oponho uma prova transcendental, que na verdade não explica a diferença
na maneira como o espaço se ocupa, mas que suprime por completo a suposta
necessi­dade de supor que esta diferença só pode explicar-se
admitindo os espaços vazios, e que, pelo menos, tem a vantagem de permitir
ao espí­rito que a conceba de qualquer outra maneira, se a explicação
física exige aqui qualquer hipótese.

E, em verdade, vemos que se espaços iguais podem perfeitamente ser
ocupados por matérias distintas, de tal sorte que em nenhum deles haja
um ponto em que a matéria não esteja presente, todavia, todo
real da mesma quantidade tem seu grau (de resistência ou gravidade)
que pode ir di­minuindo, sem que a quantidade extensiva ou a pluralidade
diminuam ou desapareçam no vazio. Assim, uma dilatação
que ocupa um espaço, por exemplo, o calor ou qualquer outra realidade
(fe­nomenal), pode ir minguando por graus até o infi­nito,
sem deixar por isso vazia a menor parte do espaço, enchendo então
o espaço com esses graus inferiores, o mesmo que encheria com outro
fenô­meno, com outros mais elevados.

Não pretendo afirmar aqui que seja esta a ra­zão da diferença
das matérias quanto ao seu peso específico, mas só demonstrar
por um princípio do entendimento puro que a natureza de nossas per­cepções
possibilita essa explicação, e que é um erro considerar
ao real do fenômeno como sendo igual quanto ao grau, e que não
difere senão por sua agregação e sua quantidade extensiva,
e tam­bém crer que afirmo isso “a priori” por um princí­pio
do entendimento.

Para um investigador afeito às considerações transcendentais,
e, por conseguinte, circunspecto, esta antecipação de percepção
é algo chocante, e não pode deixar de arquitetar alguma dúvida
so­bre a faculdade do entendimento de antecipar uma proposição
sintética, como a de grau de toda realidade nos fenômenos, e,
por conseguinte, a possibilidade da diferença intríseca da sensação
mesma, abstração feita de sua qualidade empíri­ca.
É pois, uma questão muito importante, saber como o entendimento
pode aqui decidir “a priori” e sinteticamente sobre fenômenos,
e antecipá-los no que é própria e simplesmente empírico;
quer dizer, no que tange à sensação.

A qualidade da sensação é sempre puramente empírica,
e não pode representar-se “a priori” (p. ex.: a cor, o
gosto, etc). Mas o real que corres­ponde às sensações
em geral, por oposição à nega­ção,
representa só algo cujo conceito contém em si uma existência
e não significa mais do que a síntese em uma consciência
empírica em geral. Com efeito, no sentido interno, a consciência
empírica pode elevar-se do nada até um grau superior qual­quer,
de sorte que a mesma quantidade extensiva da intuição (como
uma superfície iluminada) pode excitar uma sensação tão
grande como outras muitas reunidas (superfícies menos iluminadas).

Pode-se, pois, fazer completa abstração da quantidade extensiva
do fenômeno e representar-se, não obstante, em um momento só
na sensação, uma síntese da graduação uniforme
que se eleva desde nada até uma consciência empírica dada.
Todas as sensações estão, pois, como tais, dadas somente
“a posteriori”, mas a propriedade que possuem de ter um grau pode
ser conhecida “a priori".

Assim é de notar que não podemos conhecer “a priori”
nas quantidades em geral mais que uma só qualidade, a saber, a continuidade,
e em toda qualidade (no real do fenômeno) sua quantidade intensiva,
quer dizer, a propriedade que ela tem de ter um grau; o restante pertence
à experiência.

III – Analogias da ExperiÊncia

Princípio: A experiência só é possível
pela representação de uma ligação necessária
das percepções

PROVA

A experiência é um conhecimento empírico; quero dizer,
um conhecimento que determina seu objeto por percepções. É,
pois, uma síntese de per­cepções que não está
contida, nessas percepções, mas encerra a unidade sintética
de sua diversi­dade no seio de uma consciência, unidade que constitui
o essencial de um conhecimento dos ob­jetos dos sentidos, quer dizer,
da experiência (e não somente da intuição ou da
sensação dos senti­dos). Na experiência, as percepções
não se rela­cionam umas com as outras senão de um modo acidental,
de tal sorte que das percepções mesmas não resulta nem
pode resultar entre elas qualquer ligação necessária;
a apreensão, com efeito, não é senão uma composição
do diverso da intuição em­pírica, e não se
dá nela nenhuma representação da necessidade da união
de fenômenos que em es­paço e tempo ela forma.

Mas, como a experiência é um conhecimento de objetos por meio
de percepções, e que por con­seguinte a relação
na existência do diverso deve representar-se na experiência, não
como esse di­verso está composto no tempo, mas tal como é
ob­jetivamente o tempo; e como, de outra parte o tempo mesmo não
pode ser percebido, segue-se que não se pode determinar a existência
de objetos no tempo, senão tal como objetivamente é o tem­po;
e como, de outra parte, o tempo mesmo não pode ser percebido, segue-se
que não se pode de­terminar a existência de objetos no tempo
pela sua união no tempo em geral, quer dizer, por meio de conceitos
que os unam “a priori”.

Entretanto, como esses conceitos vão sempre acompanhados da necessidade,
a experiência não é possível senão por meio
de uma representação da ligação necessária
das percepções.

Os três modos do Tempo são a permanência, a sucessão
e a simultaneidade. Daí três leis que re­gulam todas as relações
cronológicas dos fenôme­nos, e segundo as quais a existência
de cada um deles pode ser determinada em relação à unidade
de todo o tempo, e essas leis são anteriores a toda experiência,
que elas tornam possível. O princípio geral destas três
analogias assenta sobre a uni­dade necessária da apercepção,
relativamente a toda consciência empírica possível (da
percepção) em cada tempo, e por conseguinte porque essa unidade
é um fundamento “a priori”, sobre a uni­dade sintética
de todos os fenômenos sob o ponto de vista de sua relação
no tempo.

Efetivamente a percepção originária se rela­ciona
com o senso íntimo (ao conjunto de todas as representações)
e “a priori” com a sua forma, quer dizer, com a relação
dos elementos diversos da consciência empírica no tempo. Ora,
todos esses elementos diversos devem ser ligados, conforme suas relações
de tempo, na percepção originária, porque é isso
o que exprime a unidade sob a qual entra tudo quanto deve fazer parte de meu
conhe­cimento (quer dizer, de meu próprio conhecimen­to), e,
por conseguinte, tudo quanto pode ser um objeto para mim.

Esta unidade sintética na relação cronológica
de todas as percepções que é determinada “a prio­ri”,
é pois a lei que faz com que todas as determi­nações
empíricas do tempo estejam submetidas às regras da determinação
geral do tempo, e que as analogias da experiência, de que vamos ocupar-nos,
estejam também no mesmo caso. Estes prin­cípios oferecem
a particularidade de não se ocupa­rem de fenômenos nem da
síntese de sua intenção empírica, mas tão-somente
de sua existência e de sua relação entre si com relação
a essa existência. Mas a maneira de como algo é apreendido no
fe­nômeno, pode determinar-se “a priori” de tal sorte
que a regra de sua síntese possa subministrar esta intuição
“a priori” em cada caso empírico dado; quer dizer, realizá-la
por meio destas mesmas sín­teses.

A existência dos fenômenos, porém, não pode ser
conhecida “a priori”, e ainda que avancemos por esse caminho a
dizer algo sobre alguma exis­tência, nós não a conheceríamos
de uma maneira determinada, quer dizer, que não poderíamos an­tecipar
que sua intuição empírica não se distingue de
outra qualquer. Os dois princípios precedentes, que denominei matemáticos,
porque nos autori­zam a aplicação das matemáticas
aos fenômenos, referiam-se a fenômenos sob o aspecto de sua simples
possibilidade e nos ensinavam como esses fenômenos podem ser produzidos
conforme as re­gras de uma síntese matemática, não
só quanto à sua intuição como quanto ao real em
sua percep­ção. Por essa razão podem empregar-se
em um e outro caso as quantidades numéricas, e com elas, conseguintemente,
determinar o fenômeno co­mo quantidade. Assim, por exemplo, eu posso
de­terminar “a priori” e construir o grau de sensação
da luz solar acrescentando aproximadamente 200.000 vezes a da Lua.

Podemos, pois, designar esses princípios com o nome de constitutivos.
Bem diferente há de ser com os princípios que submeter a existência
dos fenômenos a regras “a priori”. Porque, como esta não
pode constituir-se, resulta que esses princípios não alcançam
mais que uma relação de existên­cia, e só podem
ser princípios reguladores. Não se pode, pois, buscar aqui nem
axiomas nem anteci­pações; trata-se, unicamente, de saber-se
quando uma percepção nos é dada em uma relação
de tempo com outra (ainda que indeterminada), na qual é essa outra
percepção e qual a sua quanti­dade, senão como está
enlaçada necessariamente com a primeira, quanto à existência
nesse modo do tempo.

As analogias têm na Filosofia um sentido muito diferente daquele que
oferecem na Matemá­tica. Nesta, são fórmulas que
exprimem a igual­dade de duas relações de quantidade e são
sempre constitutivas, e de tal modo que, quando dois membros da proposição
estão dados, por si mesmo se dá o terceiro; quer dizer, constrói-se.

Na Filosofia, pelo contrário, a analogia não é a igualdade
de duas relações de quantidade, mas de duas relações
de qualidade, pelo que, dados três membros, não posso conhecer
e determinar “a priori” mais do que sua relação
com um quarto; mas não esse mesmo quarto membro. Tenho so­mente
uma regra para buscá-lo na experiência e um signo para o encontrar.

A analogia da experiência não é, pois, mais do que uma
regra segundo a qual a unidade da expe­riência (não a percepção
mesma como intuição empírica em geral) deve resultar
de percepções e se aplica aos objetos (fenômenos) simplesmente
como princípio constitutivo. Assim sucede com os postulados do pensamento
empírico em geral, que se referem ao mesmo tempo à síntese
da simples intuição (da forma de fenômeno), à da
percepção (da matéria do fenômeno) e à da
experiência (da relação dessas percepçôes).

Não têm outro valor que o de princípios regu­ladores,
e se distinguem dos princípios matemáti­cos, que são
constitutivos, não precisamente pela certeza, que é solidamente
estabelecida “a priori” nuns e noutro, mas pela natureza da evidência,
quer dizer, pelo seu lado intuitivo (e, por conse­guinte, também,
pela demonstração).

Mas o que se tem advertido em todos os prin­cípios sintéticos,
e que aqui deve-se agora denotar particularmente, é que essas analogias
têm seu valor e significação como princípios do
uso empí­rico do entendimento e não como o uso transcen­dental,
e que por conseguinte só sob esse titulo podem ser demonstrados. Por
conseqüência, os fe­nômenos não podem subsumar-se
às categorias, mas aos esquemas somente. Porque, se os objetos a que
devem referir-se esses princípios fossem coi­sas em si, seria absolutamente
impossível ter de­les “a priori” algum conhecimento
sintético. Mas não são senão fenômenos,
e a experiência possível, o conhecimento perfeito desses fenômenos,
na qual terminam definitivamente todos os princípios “a priori”.
Estes princípios não podem, pois, ter por ob­jeto senão
as condições da unidade do conheci­mento empírico
na síntese dos fenômenos. Entre­mentes, esta unidade só
se concebe no esquema do conceito puro do entendimento, posto que, como síntese
em geral, acha na categoria uma função que não limita
nenhuma condição sensível.

Estamos, assim, autorizados por estes princí­pios a compor os
fenômenos só na analogia com a unidade lógica e geral
dos conceitos; e, por conse­guinte, se no princípio mesmo nos servimos
da ca­tegoria, na execução (aplicação dos
fenômenos) substituiremos o princípio com o esquema da ca­tegoria,
como sendo a chave de seu uso; ou, me­lhor ainda, colocaremos a seu lado
esse esquema como condição restritiva, com o nome de fórmula
do princípio.

PRIMEIRA ANALOGIA

Princípio da Permanência da Substância

A substância é permanente em todas as mudanças dos fenômenos
e sua quantidade nem aumenta nem diminui na natureza

PROVA

Todos os fenômenos estão no tempo, e só nele podem ser
representadas a simultaneidade e a su­cessão como substratum (ou
forma permanente da intuição interna). O tempo, pois, onde deve
ser pensada toda mudança de fenômenos, permanece e não
muda; e a sucessão ou a simultaneidade não podem ser representadas
senão nele e com suas determinações. Ora, o tempo não
pode ser perce­bido em si mesmo. É, pois, nos objetos da percep­ção,
quer dizer, dos fenômenos, que cumpre pro­curar o substratum que
representa o tempo em geral, e onde pode ser percebido na apreensão,
por meio da relação dos fenômenos com ele, toda mu­dança
ou toda sucessão.

Mas o substrato de tudo o que é real, isto é, de tudo que pertence
à existência não pode ser pensado senão como determinação.
Por conseguin­te, essa qualquer coisa de permanente, relativa­mente
à qual todas as relações dos fenômenos no tempo
são necessariamente determinadas, é a substância do fenômeno,
isto é, aquilo que existe nele de real, e aquilo que permanece sempre
o mesmo, como “substratum” de toda mudança. E como esta
substância não pode mudar em sua existência, sua quantidade
na natureza não pode nem aumentar nem diminuir.

Nossa apreensão dos elementos diversos do fenômeno é
sempre sucessiva, e, por conseguinte, sempre mutável. É, pois,
impossível que possamos jamais determinar por meio deste único
meio se esta diversidade, como objeto da experiência, é simultânea
ou sucessiva, a menos que não tenha por fundamento algo que sempre
esteja, algo du­rável, permanente, de que toda mudança e
toda simultaneidade não sejam mais que outros tantos modos de ser (“modi”).
Por conseguinte, só no permanente são possíveis as relações
do tempo (porque a simultaneidade e a sucessão são meras relações
de tempo); quer dizer, que o permanente, para a representação
empírica do tempo mesmo, e o “substratum” que torna só
possível toda determinação do tempo.

A permanência expressa em geral, o tempo como o correlativo constante
de toda existência de fenômenos, de toda mudança e de toda
simulta­neidade. Com efeito, a mudança não se refere ao
tempo em si, mas só aos fenômenos no tempo, da mesma maneira
que a simultaneidade não é um modo do tempo mesmo, no qual não
existem par­tes simultâneas mas só sucessivas.

Se se atribuísse ao tempo uma sucessão, seria preciso conceber
de novo outro tempo, em que fosse possível essa sucessão. Só
pelo permanente recebe a existência, nas diferentes partes da série
sucessiva do tempo, uma quantidade que se de­nomina duração.
Por que na simples sucessão, a existência aparece e desaparece
sem cessar, não tendo nunca a menor quantidade. Mas, como o tempo não
pode ser percebido em si mesmo, segue-se que esse permanente nos fenômenos
é o “substratum” de toda determinação do
tempo, e também, por conseguinte, a condição da possibili­dade
de toda unidade sintética das percepções, quer dizer,
da experiência. E toda existência, toda mudança no tempo,
não deve considerar-se mais do que um modo do que dura e não
muda.

O permanente, pois, nos fenômenos é o objeto mesmo, quer dizer,
a substância (“phaenome­non”); mas o que muda ou pode
mudar é só o modo de existência desta substância,
ou melhor dito, suas determinações. Eu vejo que em todo tempo,
não só os filósofos, como também o vulgo, consideram
esta permanência como um “substra­tum” de toda mudança
de fenômenos e seguirão sempre supondo-o como coisa indubitável.

O que fazem os filósofos é expressá-lo com um pouco
mais de precisão, ao dizerem: em meio a todas as mudanças que
ocorrem no Mundo, a substância permanece; só o acidente muda.
Mas não acho em parte alguma a menor tentativa de demonstrar esta proposição
sintética, e até só ra­ramente a vejo figurar em
seu lugar, nas obras, à frente dessas leis puras e inteiramente “a
priori” da Natureza. Na verdade, dizer que a substância é
permanente, é uma expressão tautológica. Por­que
esta permanência é a única razão pela qual aplicamos
aos fenômenos a categoria de substân­cia, e seria mister provar
que em todos os fenôme­nos existe algo permanente, cuja existência
é de­terminada pelo mutável.

Tal prova, porém, não pode ser fornecida dogmaticamente, quer
dizer, por meio de concei­tos, pois ela se refere à proposição
sintética “a priori" e como ninguém pensou jamais
que seme­lhantes proposições não têm valor
senão em rela­ção com a experiência possível,
e por conseguinte não podem ser provadas senão por meio de uma
dedução da possibilidade da experiência, não tem
nada de particular que, ainda colocando esta pro­posição
sintética como fundamento de toda expe­riência (por que é
indispensável no conhecimento empírico), nunca tenha sido demonstrada.

Perguntou-se a um filósofo qual era o peso do fumo, ele respondeu:
“Tirai do peso da Lenha quei­mada o da cinza e tereis o peso do
fumo.” Ele su­punha, pois, como coisa inegável, que a matéria
(a substância) nem mesmo no fogo perdia nada, e que só a sua
forma mudava. Também a proposi­ção nada não
sai do nada, não é senão outra con­sequência
do princípio da permanência, ou melhor dito, da existência
sempre subsistente do sujeito próprio dos fenômenos. Porque,
se o que se deno­mina substância no fenômeno há de
ser propria­mente o “substratum” de toda determinação
de tempo, é necessário que toda existência, tanto passada
como futura, esteja única e exclusivamente determinada nele.

Damos, pois, a um fenômeno o nome de subs­tância, porque
supomos sua existência em todo tempo, e isto não exprime bem
o termo permanên­cia, que mais parece referir-se ao futuro.

Todavia, como a necessidade interna, de ser permanente, é inseparável
de tê-lo sido sempre pode seguir-se conservando essa expressão.
Gigni de nihilo nihil, in nihilum nil posse reverti, eram duas proposições
que os antigos uniam intimamente e que hoje indevidamente se separam al­gumas
vezes, supondo que se aplicam a coisas em si, e que a primeira é contrária
à idéia de que o Mundo depende de uma causa suprema (ainda que
quanto à sua substância). Mas esse tema é in­fundado,
porque aqui só se trata de fenômenos no campo da experiência,
cuja unidade nunca seria possível se admitíssemos que ocorrem
coisas no­vas (quanto à substância). Neste caso, com efeito,
desapareceria o que só pode representar a unidade do tempo, quer dizer,
a identidade do “substra­tum”, no qual unicamente acha toda
mudança a sua completa unidade. Esta permanência, não
obstante, não é mais do que a maneira de como nos representamos
a existência das coisas (no fe­nômeno).

As determinações de uma substância, as que são
modos de sua existência, chamam-se aciden­tes. Sempre são
elas reais, porque concernem também à existência da substância
(as negações só são determinações
que exprimem a não exis­tência de alguma coisa na substância).
Quando se atribui uma existência particular a essas determi­nações
reais na substância (p. ex., ao movimento considerado como um acidente
da matéria), chama-se então a essas existências inerência,
para distingui-la da substância que se denomina subsistência.
Como disto resultam muitas confu­sões errôneas, se falaria
com maior exatidão e precisão, designando unicamente por acidente
a maneira como a existência de uma substância foi positivamente
determinada.

Em vista, todavia, das condições a que está sujeito
o uso lógico de nosso entendimento, é im­possível
isolar, em certo modo, o que pode mudar na existência de uma substância,
enquanto que a substância permanece e de considerá-lo em sua
re­lação com o que é propriamente permanente e ra­dical.
Por isto se encontra esta categoria sob o ti­tulo de relações;
mais como condição dessas rela­ções do que
como contendo em si uma relação. Nesta permanência se
funda também a legitimi­dade do conceito de mudança. O nascimento
e a morte não são mudanças do que nasce e morre. A mudança
é um modo de existência que sucede a outro modo de existência
do mesmo objeto. Tudo o que muda é, pois, permanente, e só o
seu estado é que varia. E como esta mudança não é
mais que das determinações que podem acabar ou começar,
pode dizer-se, ainda que pareça paradoxo, que só o permanente
(a substância) muda, e que o mutável não sofre alteração
alguma, mas só uma vicissitu­de, posto que certas determinações
cessam e ou­tras começam.
A mudança, pois, não pode ser percebida se­não nas
substâncias, e não há percepção possível
do nascer e do morrer, senão enquanto são simples determinações
do permanente, porque precisa­mente é esse permanente que possibilita
a repre­sentação da passagem de um estado a outro, e do
não ser ao ser, e empiricamente só podem conhecer-se como determinações
mutáveis do que é permanente.

Para supor que uma coisa começa a ser abso­luta, é necessário
admitir um momento em que não existia. Mas, em que ligar esse momento,
se­não com o que já existiu? Porque um tempo va­zio
anterior não pode ser objeto de percepção. Mas, se se
enlaça esse nascimento com coisas que já antes existiram e que
permaneceram até este instante, este nascimento não foi mais
do que uma modificação do que já existia, quer dizer,
do pe r­manente. E assim mesmo com o perecimento de uma coisa: isto pressupõe
a representação empí­rica de um tempo onde um fenômeno
cessa de ser.

As substâncias (nos fenômenos) são os “subs­tratuns”
de todas as determinações de tempo. O nascimento de uns e o
término de outros suprimi­riam até a única condição
da unidade empírica do tempo, e os fenômenos se relacionariam,
então, como duas classes de tempo cuja existência corre­ria
simultaneamente, o que é um absurdo.

Porque não existe mais que um tempo em que todos os demais tempos
não estão simultaneamen­te, mas necessariamente. A permanência
é, pois, uma condição necessária, pela qual unicamente
podem determinar-se os fenômenos como coisas ou objetos em uma experiência
possível. Mas no que segue buscaremos qual o critério empírico
desta perman&ecircecirc;ncia necessária, e também qual o da substanciabilidade
dos fenômenos.

SEGUNDA ANALOGIA

Princípio da Sucessão no Tempo, Segundo a Lei da Causalidade

Todas as mudanças acontecem conforme a lei do enlace de causas e
efeitos

PROVA

(O princípio precedente demonstrou que todos os fenômenos da
sucessão no tempo não são mais do que mudanças,
quer dizer, uma existência e não existências sucessivas
de determinações da substância permanente, e que, por
consequência, não é admissível que uma existência
da mesma substância siga a sua não existência ou uma não
existência a sua existência; ou, por outros termos, um começo
ou um fim da substância mesma. Po­deria formular-se este princípio
dizendo: toda su­cessão de fenômenos não é
mais do que mudança; porque o começo ou fim da substância
não são mudanças dessa substância, posto que o
conceito de mudança supõe o mesmo sujeito existente com duas
determinações opostas, por conseguinte, permanente. Feita esta
advertência, passemos a prova.)

Observo, eu, que os fenômenos se sucedem uns aos outros, quer dizer,
que certo estado de coi­sas se dá em um momento, enquanto que o
con­trário existia no estado interior. Eu reúno, pois, propriamente
falando, duas percepções no tempo. Mas esta ligação
não é obra só do sentido nem da intuição,
mas produto de uma faculdade sintética da imaginação
que determina o sentido interno re­lativamente às relações
de tempo.

É esta faculdade que une entre si os dois esta­dos, de tal sorte
que um ou outro precedeu no tempo, porque o tempo em si não pode ser
perce­bido, e só por relação com ele se pode determinar
no objeto o que precede e o que segue, e isto empi­ricamente. Tenho, pois,
consciência somente de que minha imaginação põe
a um antes e a outro depois, e não de que no objeto um estado precede
ao outro. Em outros termos, a simples percepção deixa sem determinar
a relação objetiva dos fe­nômenos que se sucedem.

Para que isto possa ser conhecido de um modo determinado, é mister
que a relação entre os dois estados seja de tal sorte concebida
que a ordem na qual devem ser postas se encontre determinada como necessária,
esteja antes, o outro depois, e não inversamente. Mas o conceito que
porta con­sigo a necessidade da unidade sintética não pode
ser senão um conceito puro do entendimento, o qual não pode
encontrar-se na percepção. Esse conceito é aqui de relação,
de causa e efeito, isto é, de uma relação cujo primeiro
termo determina ao segundo como sua conseqüência, e não
tão-só como algo que poderia preceder na imaginação
(ou não ser percebido de nenhuma maneira).

Só, pois, porque submetemos a sucessão de fenômenos,
por conseguinte, toda mudança à lei de causalidade, é
possível a experiência mesma, quer dizer, o conhecimetno empírico
de seus fe­nômenos. Por conseqüência, só em virtude
desta lei são estes possíveis como objetos da experiên­cia.

A apreensão da diversidade do fenômeno é sempre sucessiva.
As representações dos fatos se sucedem umas a outras. Enquanto
a saber se também nos objetos se sucedem, é este já um
se­gundo ponto de exame que não está contido no primeiro.
Em verdade, pode-se muito bem deno­minar objeto a toda coisa e até
a toda representa­ção, de que tenhamos consciência;
mas se se per­gunta que significa esta palavra em relação
aos fenômenos, considerados não como objetos (repre­sentações)
mas como somente designando um ob­jeto, questão é já
esta de maior profundidade. En­quanto são simplesmente como representações,
objetos de consciência, não se distingue da apre­ensão,
quer dizer, do ato que consiste em admiti-las na síntese da imaginação,
e, por conseguinte, pode dizer-se que o que há de diverso nos fenôme­nos
foi sempre produzido no espírito.

Se os fenômenos fossem coisas em si, nin­guém poderia explicar,
pela sucessão das repre­sentações do que têm
de diverso como esta diver­sidade está enlaçada no objeto.
Porque nós outros só temos que ver com as nossas representações;
e está fora por completo da esfera de nossos conhe­cimentos o saber
o que podem ser as coisas em si (independentemente consideradas das representa­ções
com que nos afetam). Mas, ainda que os fe­nômenos não sejam
coisa em si e sejam, não obs­tante, a única coisa de que
possamos ter conheci­mento, devo, todavia, mostrar a ligação
que con­vém no tempo à diversidade dos fenômenos mesmos,
ainda quanto a representação desta diversi­dade seja sempre
sucessiva na apreensão.

Assim, por exemplo, a apreensão do que há de diverso no fenômeno
de uma coisa, posta diante de mim, é sucessiva. Mas, se se pergunta
se as diver­sas partes dessa coisa são também sucessivas
em si, ninguém seguramente responderá que sim. Mas, elevando
meus conceitos, de um objeto até um ponto de vista transcendental,
vejo que a coisa não é um objeto em si, mas só um fenômeno,
quer dizer, uma representação, cujo objeto transcen­dental
é desconhecido; que é, pois, então, o que eu entendo
por esta questão, a saber, como o que há de diverso no fenômeno
mesmo (que, sem embar­go, não é nada em si) pode ser ligado?
Aqui se considera o que se acha na apreensão sucessiva como representação;
mas o fenômeno que me é dado, ainda que seja só um conjunto
de represen­tações, considera-se como objeto dessas mesmas
representações, como um objeto com o qual deve concordar o conceito
que tirei das representações da apreensão.

Imediatamente se adverte que, como a con­cordância do conhecimento
com o objeto é a ver­dade, não se pode buscar aqui senão
as condições formais da verdade empírica, e que o fenômeno
por oposição às representações da apreensão,
só pode ser representado como objeto distinto dessas representações,
enquanto que a apreensão está su­jeita a uma regra que a
distingue de toda outra, e que torna necessária uma espécie
de ligação, de síntese, de sua diversidade. O objeto
é quem con­tém no fenômeno a condição
desta regra necessá­ria da apreensão.

Dirijamo-nos agora ao nosso próprio assunto. Que uma coisa suceda,
quer dizer, que uma coisa ou um estado, que antes não existiam, atualmente
existam, não se poderia perceber empiricamente, se precedentemente
não houvesse um fenômeno que contivesse esse estado; porque,
uma realidade que sucede a um tempo vazio, por conseguinte, um começo
que não precede a um estado de coi­sas, não pode para nós
outros ser melhor apreen­dido que o tempo mesmo vazio.

Toda apreensão de um evento é, pois, uma percepção
que sucede a outra. Mas como em toda síntese da apreensão se
dá o que antes fiz ver com a apreensão de uma coisa, por isso
não se distin­gue ainda das outras. Além disso, notarei
também que, se em um fenômeno contendo um aconteci­mento,
denomino A ao estado anterior da percep­ção, e B ao seguinte,
B, não pode seguir A na apreensão, e, na percepção,
A não pode seguir B, mas somente precedê-la. Vejo, por exemplo,
um navio descer o curso de um rio. Minha percepção do lugar
que ocupo mais abaixo segue ou sucede a do que mais acima tinha, e é
assim mesmo impossível que na apreensão desse fenômeno
possa ser percebido o barco primeiro mais abaixo e depois mais acima. A ordem
sucessiva das percepções na apreensão está, pois,
aqui determinada e dele mesmo é que depende.

No exemplo precedente da apreensão de uma casa, podem minhas percepções
começar pelo teto da casa e concluir pelos alicerces, ou começar
por baixo e acabar por cima, e podia também começar a apreender
pela direita ou pela esquerda os ele­mentos diversos da intuição
empírica. Na série dessas percepções, não
havia, pois, uma ordem de­terminada que forçasse a começar
por este ou ou­tro ponto para unir empiricamente os elementos diversos
de minha apreensão.

Por esta regra deve sempre achar-se na per­cepção do que
acontece e tomar necessária a or­dem das percepçôes
sucessivas (na apreensão desse fenômeno). Derivarei, pois, no
caso que nos ocupa, a sucessão subjetiva da apreensão, da su­cessão
objetiva dos fenômenos, posto que a pri­meira sem a segunda estaria
absolutamente inde­terminada e não distinguiria um fenômeno
de ou­tro. Ela, por si só, nada nos prova no tocante à li­gação
do diverso no objeto, porque é completa­mente arbitrária.

A segunda consistirá, pois, na ordem da diver­sidade do fenômeno,
na qual a apreensão de um (que acontece) segue, segundo uma regra,
à de ou­tro (que precede). Somente assim é que posso di­zer
do fenômeno mesmo, e não somente de minha apreensão, que
existe neles sucessão; o que signi­fica que não posso estabelecer
a apreensão senão nesta sucessão.

Segundo este princípio, é, pois, no que precede em geral a
um evento que se acha a condição da regra pela qual este evento
continua sempre e su­cessivamente; mas eu não posso inverter a
ordem partindo do evento e determinar (pela apreensão) o que precede.
Porque nenhum fenômeno volve do momento seguinte ao que o precede (por
mais que todo fenômeno se refira sempre a algum momento anterior) mas
ao contrário, a um tempo dado, se­gue sucessivamente outro tempo
determinado. E, posto que existe algo que segue, é de todo ponto necessário
que eu o refira a algo que preceda e a quem siga, segundo uma regra, quer
dizer, neces­sariamente; de tal sorte que o evento, como condi­cionado,
nos conduz seguramente a uma condição que o determina.

Suponhamos que um evento não esteja prece­dido de nada, e que
deva seguir segundo uma re­gra; toda sucessão, então, na
percepção, não exis­tiria senão na apreensão,
quer dizer, que o que propriamente precederia e que o que seguiria nas percepções
seria só como condicionado, nos con­duz seguramente a um modo objetivamente.

Desta sorte, só teríamos um jogo de represen­tações,
que não se refeririam a nenhum objeto, quer dizer, que, por nossa percepção,
um fenô­meno em nada seria distinto de outro, sob a rela­ção
de tempo, porque a sucessão no ato de apreen­são é
sempre idêntica, e por conseguinte não há nada no fenômeno
que a determine de tal maneira que torne necessária determinada sucessão.
Não direi, pois, então, que dois estados se seguem no fenômeno,
mas somente que uma apreensão segue a outra, o que é puramente
subjetivo e não deter­mina nenhum objeto, e não pode por
conseguinte equivaler ao conhecimento de um objeto (nem ainda no fenômeno).

Quando vemos que algo sucede, sempre su­pomos que alguma outra coisa
a precedeu, a que segundo uma regra seguiu. De outro modo eu não poderia
dizer do objeto que segue, posto que a simples sucessão em minha apreensão,
se não está determinada por uma regra, representa a algo que
precedeu, não prova uma sucessão no objeto.

É pois, sempre relativamente a uma regra se­gundo a qual são
os fenômenos determinados em sua sucessão, quer dizer, tal como
se dão, pelo es­tado precedente, que dou à minha síntese
subje­tiva (da apreensão) um valor objetivo; e só sob esta
suposição é possível a mesma experiência
de algo que sucede. Isto certamente parece contradi­zer todas as observações
que sempre se fizeram sobre a marcha do nosso entendimento. Segundo aquelas
observações, só pela percepção e compa­ração
de muitos eventos que se verificam sucessi­vamente de um modo uniforme,
com fenômenos antecedentes, nos permite descobrir uma regra, pela qual
certos eventos seguem sempre a certos fenômenos e de fazer-nos formar
o conceito de causa.

Nesse sentido, esse conceito seria puramente empírico e a regra que
dá, a saber, que tudo que sucede tem uma causa, seria tão contingente
como a própria experiência; sua universalidade e sua necessidade
seriam, pois, meramente fictícias, sem nenhum verdadeiro valor, porque
não se fun­dam “a priori”, mas na ilusão. Dá-se
aqui o mesmo que com outras representações puras “a priori”
(p. ex., espaço e tempo) que podemos ex­trair da experiência
em estado de conceitos claros, porque os colocamos nela nós mesmos
e a reali­zamos por seu intermédio.

Mas se esta representação de uma regra que determina a série
de eventos não pode obter a cla­ridade lógica de um conceito
de causa, senão quando a empregamos na experiência, o conheci­mento
desta regra, como condição da unidade sin­tética
dos fenômenos no tempo, é o fundamento da própria experiência
e por conseguinte a precede “a priori".

É preciso mostrar, por exemplo, que na expe­riência mesma
nunca atribuímos ao objeto a su­cessão (que nós representamos
em um evento quando algo acontece que antes não existia) e que a distinguimos
de nossa apreensão subjetiva, como se uma regra feita a princípio
nos obrigue a observar esta ordem de percepção de preferência
a outra, até o ponto que é propriamente essa neces­sidade
que possibilita a representação de uma sensação
no objeto.

Temos em nós mesmos representações das quais podemos
também ter consciência. Mas por extensa, exata e precisa que
essa consciência possa ser, essas não são mais do que
representa­ções, quer dizer, determinações
interiores de nosso espírito, nesta ou noutra relação
de tempo. Como, pois, é, que as supomos um objeto ou lhes atri­buímos,
além da realidade subjetiva que como modificações possuem,
não sei que espécie de re­alidade objetiva? O valor objetivo
não pode consis­tir na relação com outra representação
(como aquela do que se atribuiria ao objeto) porque, se não, apresenta-se
outra vez a questão de saber como sai esta representação
de si mesma, além do subjetivo que lhe é próprio como
determinação do estado de espírito.

Se encontramos que uma qualidade adita a re­lação com um
objeto a nossas representações, e que é a importância
que tiram, achamos que só serve para tomar necessário o enlace
das repre­sentações em certo sentido e submetê-la
a uma regra, e que reciprocamente adquirem um valor objetivo só por
ser necessária certa ordem entre elas sob a relação de
tempo.

Na síntese dos fenômenos, o diverso das re­presentações
é sempre sucessivo. Nenhum objeto se representa com isso; porque por
esta sucessão que é comum a todas as apreensões não
se distin­gue nada de nada. Mas desde que percebo ou su­ponho nesta
sucessão uma relação com um estado precedente, de que
resulta a representação con­forme uma regra, não
me apresento então algo como acontecimento ou como o que sucede; quer
dizer, que conheço um objeto que devo colocar no tempo em certo ponto
determinado, o qual, dado o estado anterior, não pode ser mais do que
esse.

Quando percebo, pois, que algo sucede, esta representação implica,
primeiro, que algo há pre­cedido, porque precisamente é
por relação a este algo anterior que o fenômeno entra
no tempo, quer dizer, que é representado como existindo depois de um
tempo anterior no qual não existia. Mas nesta relação
não recebe seu lugar de tempo determi­nado senão supondo
em um estado quando algo a quem segue sempre, quer dizer, de acordo com uma
regra. Donde resulta um primeiro termo, que não pode inverter a série
colocando o que sucede antes do que precede; e, em segundo lugar, que, dado
o estado precedente, o evento determinado tem lugar necessária e infalivelmente.
Segue-se dai que há certa ordem em nossas representações,
segundo o que o presente (como sucedido) indica um estado precedente como
correlativo, ainda que indeterminado, do evento dado, unido a este como a
sua conseqüência e necessariamente ligado na série do tempo.

Se é, pois, uma lei necessária de nossa sensibi­lidade,
e por conseguinte uma condição formal de todas as percepções,
que o tempo que precede de­termina necessariamente o que segue (porque
não posso chegar a este senão passando por aquele), é
por seu turno também uma lei essencial da repre­sentação
empírica, da sucessão no tempo, que os fenômenos do tempo
quando determinem todas as existências do tempo que segue e que estas
não tenham lugar como eventos, senão enquanto os primeiros determinam
sua existência no tempo, quer dizer, as fixam, segundo uma regra. Porque
não podemos conhecer empiricamente esta conti­nuidade no encadeamento
do tempo senão nos fe­nômenos. Toda experiência supõe
o entendimento, e este constitui sua possibilidade e o primeiro que para isto
faz não é achar a representação de um objeto,
senão possibilitar a representação de um objeto em geral.

Não se pode, porém, chegar a isto senão transportando
a ordem do tempo aos fenômenos e a sua existência, quer dizer,
dando a cada um, considerado como consequência, um lugar deter­minado
no tempo, em relação aos fenômenos pre­cedentes, lugar
sem o qual não concordaria com o tempo mesmo, o qual determina “a
priori” o lugar de todas as suas partes. Mas estas determinações
dos lugares não podem proceder da relação dos fe­nômenos
com um tempo absoluto (porque não é um objeto de percepção);
é mister, pelo contrário, que os fenômenos se determinem
reciprocamente uns aos outros seus lugares no tempo e os tomem necessários
na ordem do tempo, quer dizer, que o que segue ou sucede deva seguir, segundo
uma lei geral, ao que estava contido no estado precedente.

Daí uma série de fenômenos que por meio do entendimento
produz e torna necessários precisa­mente a mesma ordem, o mesmo
encadeamento contínuo na série de percepções possíveis,
que o que se encontra “a priori” na forma da intuição
interna (no tempo), onde devem ter seu posto to­das as percepções.

O evento de algo é, pois, uma percepção que pertence
a uma experiência possível e que é real, desde que percebo
o fenômeno como determinado no tempo, quanto ao seu lugar, e por conseguinte
como um objeto que pode sempre ser achado se­gundo uma regra no encadeamento
das percep­ções. Mas esta regra, que serve para determinar
algo na série do tempo, consiste em que a condi­ção
que faz com que o evento siga sempre (quer dizer, de um modo necessário)
se encontre no que precede. O princípio de razão suficiente
é, pois, o princípio de toda experiência possível,
quer dizer, do conhecimento objetivo dos fenômenos, sob o aspecto de
sua relação na sucessão do tempo.

Mas a prova desta proposição está somente nas considerações
que seguem. Todo conheci­mento empírico supõe a síntese
do diverso operada pela imaginação, o que é sempre sucessiva,
quer dizer, que nela (a imaginação) estão sempre as re­presentações
umas depois das outras. Mas a or­dem de sucessão (o que deve preceder
e o que deve seguir) não está de modo algum determinado na imaginação,
e a série das representações que se seguem pode tornar-se
a mesma do que segue ao que precede que do que precede ao que segue. Mas se
esta síntese é uma síntese da apreensão (da diversidade
de um fenômeno dado), a ordem, então, está determinada
no objeto, ou, para falar mais propriamente, há na síntese sucessiva
que determina um objeto, uma ordem, segundo a qual um algo tem necessariamente
que preceder, e uma vez esse algo posto, outro algo segue-o indis­pensavelmente.
Para que minha percepção conte­nha o conhecimento de um
evento ou de algo que acontece realmente, é, pois, mister, que seja
um juízo empírico, donde eu conceba que a sucessão está
determinada; quer dizer, que este evento su­põe no tempo outro
fenômeno, a que segue neces­sariamente, conforme uma regra.

De outro modo, se dado o antecedente, o evento não o seguisse necessariamente,
ser-me-ia preciso considerá-lo como um jogo meramente subjetivo de
minha imaginação e ter como um so­nho o pudera supor como
objetivo. A relação em virtude da qual nos fenômenos (considerados
como percepções possíveis) a existência do que
segue (que sucede) está necessariamente, e segundo uma regra, determinado
no tempo por algo que precede; em uma palavra, a relação de
causa e efeito, é a condição do valor objetivo de nossos
juízos empíricos relativamente à série de percep­ções,
por conseguinte, de sua verdade empírica, e portanto da experiência.

O princípio da relação de causalidade na série
de fenômenos tem, pois, também um valor ante­rior a todos
os objetos da experiência (sujeitos às condições
da sucessão), posto que ele mesmo é o princípio que possibilita
esta experiência.

Mas aqui se oferece uma dificuldade que urge resolver. O princípio
da ligação causal entre os fenômenos está limitado,
em nossa fórmula, à su­cessão se vê que também
se aplica a sua simulta­neidade, e que causa e efeito podem ser ao mesmo
tempo. P. ex., faz em um quarto calor que não existe ao ar livre. Busco
a causa e acho uma la­reira acesa. Logo, esta lareira é, como causa,
ao mesmo tempo que seu efeito, quer dizer, o calor do quarto; não existe
aqui sucessão no tempo entre a causa e o efeito, pois são simultâneos;
e, não obs­tante, não deixa por isso de ser menos aplicável
a lei. A maior parte das causas eficientes da Natureza existe ao mesmo tempo
que os seus efeitos, e a sucessão destes consiste unicamente em que
a causa não pode produzir todo o seu efeito num ins­tante.

Porém, no instante em que o efeito se produz é sempre coetâneo
da causalidade da sua causa; porque se esta causa tivesse desaparecido instan­tes
antes o efeito não se teria produzido. É neces­sário
advertirmos que aqui estamos tratando so­mente da ordem do Tempo e não
do seu curso; a relação, pois, fica, embora não tenha
transcorrido tempo nenhum.

O Tempo entre a causalidade da causa e seu efeito imediato pode desaparecer
(e por conse­guinte serem ambos simultâneos); mas a relação
de um para o outro continua sendo sempre deter­minável no Tempo.
Se, por exemplo, uma bola posta sob uma almofada fofa produz uma ligeira depressão,
esta bola, considerada como causa, está ao mesmo tempo que seu efeito.
Entretanto, distingo-os um do outro pela relação de Tempo que
existe na sua união dinâmica.

De fato, quando eu ponho a bola sob a almofa­da, a depressão desta
sucede à forma lisa que ti­nha na sua superficie, mas se a almofada
já tinha outra depressão (causada não importa por que),
então não produz o efeito anteriormente mencio­nado.

A sucessão é, pois, absolutamente o único cri­tério
empírico do efeito na sua relação com a cau­salidade
da causa que precede. O copo é a causa da elevação da
água sobre sua superficie horizon­tal, apesar de ambos os fenômenos
se verificarem ao mesmo tempo. Realmente, quando eu tirar água com
um copo de uma vasilha maior, acon­tece o seguinte: a mudança da
posição horizontal existente na vasilha maior pela mesma posição
que toma dentro do copo.

Esta causalidade conduz ao conceito de ação, este ao conceito
de força e por este ao de substân­cia. Como não desejo
misturar no meu trabalho crítico (que unicamente é dirigido
às fontes do co­nhecimento sintético “a priori”)
a análise de con­ceitos que apenas tem por objetivo a sua explicação
(e não a sua extensão), deixo o exame deta­lhado para um
futuro sistema da Razão pura; por outro lado, esta análise é
encontrada em grande parte nas obras clássicas que tratam dessas maté­rias.
Entretanto, não posso deixar de falar do cri­tério empírico
de uma substância, enquanto que esta se manifesta, não pela permanência
do fenômeno, mas melhor e mais facilmente pela ação.

Onde existe a ação, e por conseguinte a ativi­dade e a
força, está também a substância e ape­nas nesta
é que devemos buscar o assunto daque­la, que são as fontes
fecundas dos fenômenos. Ora, muito bem; mas se for necessário
explicar o que se entende por substância e não cairmos num círculo
vicioso, a resposta, agora, já não é tão fá­cil.

Como deduzirmos imediatamente da ação, a permanência
do agente, o que é, entretanto, um critério essencial próprio
da substância (“phaeno­menon”)? Porém depois
do que verificamos, a questão nada tem de complicado, embora seja in­solúvel,
se for apresentada de maneira comum (o de tratar analiticamente nossos conceitos).
A ação indica-nos a relação do sujeito da causalidade
com o efeito.

E como todo efeito é resultante de algo que sucedeu e, por conseguinte,
em algo transformá­vel, que o Tempo caracteriza pela sucessão,
o úl­timo sujeito deste efeito é, pois, o permanente, considerado
como “substratum” de toda transfor­mação, quer
dizer, a substância.

Porque segundo o princípio da causalidade, as ações
são sempre o primeiro fundamento ocasional dos fenômenos, por
conseguinte, não podem estes encontrar-se num sujeito que mude por
si mesmo, porque então teríamos que admitir outras ações
e outro sujeito que determinassem essa mudança.

Por este princípio a ação é um critério
empí­rico bastante para provar a substancialidade, sem ser preciso
procurar a permanência do sujeito pela comparação de percepções,
o que não poderia ser feito por este caminho com o cuidado que reque­rem
a grande importância e absoluta universali­dade do conceito.

De fato, que o primeiro sujeito da causalidade do que nasce e morre não
pode ele mesmo nascer nem morrer (no campo dos fenômenos), é
essa uma conclusão exata que nos conduz à necessi­dade empírica
e à permanência na existência e, por conseguinte, ao conceito
de uma substância como fenômeno.

Quando algo sucede, o próprio acontecimento, abstração
feita da sua natureza, é por si mesmo um objeto de investigação.
A passagem da não-existência de um estado para o estado atual,
em­bora este não contenha nenhuma qualidade feno­menal, é
por si mesma coisa que se deve investi­gar.

Este acontecimento como já foi demonstrado no inciso A, não
se refere à substância (pois esta não nasce), senão
ao estado da substância. Não é, pois, mais do que uma
simples mudança e não origem de algo que proceda do nada.

Quando esta origem é considerada como efeito de uma causa estranha,
é chamada criação. Uma criação não
pode ser considerada como sucesso porque esta possibilidade quebraria a unidade
da experiência.

Entretanto, considerando todas as coisas, não como fenômenos
senão como coisas em si e como objetos somente do Entendimento, podem
então ser estimadas, embora substância, como depen­dendo
quanto à sua existência, de uma coisa es­tranha. Mas, tudo
isso supõe outra significação nas palavras e não
se aplica aos fenômenos como objeto possível da experiência.

Como, então, algo pode mudar e como um es­tado que ocorre num
momento dado pode aconte­cer em outro a outro estado oposto? Não
temos disto a melhor noção “a priori”. Para isto,
necessi­tamos conhecer as forças reais, por exemplo, das forças
motrizes, ou o que é o mesmo, de certos fe­nômenos menos
sucessivos (como movimento) que revelem essas forças, o que somente
empirica­mente pode acontecer.

Mas a forma de toda mudança, condição sem a qual não
pode efetuar-se, como sucesso resul­tante de outro estado (seja qual for
sua matéria, isto é, seja qual for o estado mudado), e, por
con­seguinte, a sucessão dos mesmos estados (a coisa que sucede),
pode, entretanto, ser considerada “a priori” segundo a lei da
causalidade e as condições do Tempo. Quando uma substância
passa de um estado “a” a outro “b”, o momento do segundo
é diferente do momento do primeiro e o segue. Mesmo assim, o segundo
estado, como realidade (no fenômeno) é diferente do primeiro,
onde esta realidade não existia, como “b” de “zero”,
quer dizer, que se o estado “b” se diferencia do estado “a”
apenas pela quantidade, então a mudança é o acontecimento
“b-a”, que não se encontravam no estado prece­dente
e em relação ao qual esse estado é O.

Trata-se, pois, de ver como é possível que uma coisa possa
passar de um estado = “a” a outro es­tado = “b”.
Entre dois momentos há sempre um Tempo, e entre dois estados nesses
momentos há sempre uma diferença que possui uma quantidade (porque
todas as partes dos fenômenos são, ao mesmo tempo, quantidades).
Toda passagem de um estado ao outro, pois, ocorre sempre num es­paço
de tempo entre dois momentos, donde o pri­meiro determina o estado que
a coisa deixou, e o segundo no que ela se transforma.

Assim, ambos são os limites do Tempo de uma mudança e, por
conseguinte, de um estado inter­mediário entre dois estados, pertencendo
como tais à mudança integral. Porém, toda mudança
tem uma origem que revela a sua causalidade durante o tempo em que se verifica.

Esta causa não produz repentinamente a sua mudança (num instante
indivisível) mas, sim, num Tempo, de tal modo, que assim como o Tempo
cresce desde o primeiro instante “a” até a sua integridade
“b”, assim também a quantidade da realidade (“b-a”)
se produz por todos os graus inferiores compreendidos entre o primeiro e o
se­gundo momentos.

Toda mudança é, pois, possível somente por uma ação
contínua da causalidade, que, por ser uniforme, chama-se um momento.
A mudança não se compõe desses momentos, se não
que é o resultado do seu efeito. Tal é a lei da continuidade
de toda mudança. O princípio desta lei é o seguinte:
“Nem o Tempo nem o fenômeno em Tempo, se compõe de partes
que sejam as menores possíveis”, e, sem embargo, a coisa em sua
mudança não chega ao seu segundo estado senão passando
por todas essas fases como por outros tantos elementos. Não existe
ne­nhuma diferença no real do fenômeno como na quantidade
de tempos que seja a menor possível.

E o novo estado da realidade passa, saindo do primeiro onde não existia
por todos os graus infini­tos desta mesma realidade, entre os quais as
dife­renças são todas menores que a que existe entre o "0"
e "a".

Não precisamos aqui pesquisar a utilidade que pode prestar este princípio
na investigação da Na­tureza. Porém, desperta nosso
interesse examinar como esse princípio, que tanto parece dilatar os
nossos conhecimentos, seja possível “a priori” por completo,
apesar de verificarmos imediatamente que é real e legítimo,
e que, por conseguinte, é desnecessário explicar como é
possível.

Mas como quase sempre precisam de funda­mento as pretensões de
estender os nossos conhe­cimentos pela Razão pura, convém,
como medida, ser nisto muito desconfiado; não acreditar em nada nem
aceitar nada, mesmo com os argumen­tos dogmáticos mais claros,
sem os documentos que nos proporcionem uma dedução positiva
e firme.

Todo aumento do conhecimento, todo pro­gresso da percepção,
é apenas uma extensão da determinação do sentido
interno; quer dizer, uma progressão no Tempo sejam quais forem entre­tanto
os objetivos, fenômenos ou intuições puras. Esta progressão
no Tempo determina tudo e em si permanece indeterminada, isto é, que
as partes es­tão necessariamente no Tempo e que sondadas pela síntese
do Tempo, porém não antes dela.

Por isso, toda passagem da percepção é algo que continua,
é uma determinação do Tempo efe­tuada pela produção
dessa percepção, e como esta determinação é
sempre e em todas as suas partes uma quantidade, representa ele a produção
que passa, como quantidade, com todos os graus em que nenhum deles é
o menor, desde zero até o seu grau determinado.

É, pois, evidente que com isso podemos co­nhecer “a priori”
a lei das mutações enquanto à sua forma. Nós somente
antecipamos nossa pro­pria apreensão, cuja condição
essencial deve ne­cessariamente poder ser conhecida “a priori”,
posto que reside em nós, anteriormente a todo fe­nômeno.

Do mesmo modo que o Tempo contém a con­dição sensível
“a priori” da possibilidade de uma progressão contínua
do que existe ao que deve se­guir, da mesma maneira, também, o
Entendimen­to, por meio da unidade da apercepção, contém
a condição “a priori” da possibilidade da determina­ção
de todos os instantes dos fenômenos no Tem­po, mediante a série
de causas e efeitos, onde as primeiras conduzem necessariamente à existência
dos segundos, dando, assim, valor em cada Tempo (no geral), por conseguinte,
objetivamente, o co­nhecimento empírico das relações
de Tempo.

TERCEIRA SEÇÃO

Princípio da Simultaneidade, Segundo a Lei da Ação
e da Relação ou da Reciprocidade

Todas as substâncias, enquanto possam ser percebidas no Espaço,
estão numa ação recíproca geral

PROVA

As coisas são simultâneas quando a intuição empírica
da percepção de uma e a da outra podem seguir reciprocamente
(o que não pode acontecer com os fenômenos como verificamos no
segundo princípio). Assim, posso começar pela percepção
da Lua e passar à da Terra, ou, reciprocamente, começar pela
da Terra e passar para a da Lua; e, justamente, porque as percepções
desses objetos podem seguir-se reciprocamente, por isso, pode­mos dizer
que existem simultaneamente.

A simultaneidade é, pois, a existência de coi­sas diferentes
no mesmo Tempo. Porém, não pode perceber-se o Tempo em si mesmo
para deduzir que as coisas estão num mesmo Tempo e que as percepções
possam seguir reciprocamente.

A síntese da imaginação na apreensão indica­ria
apenas que cada uma dessas representações está no sujeito
quando a outra não está nele e, re­ciprocamente; porém,
não que os objetos estejam ao mesmo tempo; quer dizer que quando um
existe o outro também existe no mesmo Tempo e que isso é necessário
a fim de que possam as per­cepções seguirem-se reciprocamente.

É, pois, necessário um conceito intelectual da sucessão
recíproca das determinações destas coi­sas que existem,
simultaneamente, umas fora das outras, para poder dizer que a sucessão
recíproca das percepções tem seu fundamento no objeto
e para representar-se também a simultaneidade como objetiva.

A relação das substâncias, porém, na qual uma
contém determinações cuja causa, por sua vez, se contém
na outra, essa relação, repetimos, é a relação
de influência, e quando reciprocamente a segunda contém a causa
das determinações da primeira, é quando se verifica a
relação de reci­procidade ou da ação recíproca.

A simultaneidade das substâncias no Espaço não pode ser
conhecida na experiência senão su­pondo sua ação
recíproca e esta suposição é, ao mesmo tempo,
por conseguinte, a condição da possibilidade das próprias
coisas como objetivo da experiência.

As coisas são simultâneas enquanto existem num mesmo e só
Tempo. Porém, como conhecer que estão num mesmo e só
Tempo, quando a or­dem na síntese da apreensão disto é
indiferente, isto é, quando pode igualmente ir de A a E por B, C, D,
que reciprocamente de E a A?

De fato, se houvesse sucessão no Tempo (na ordem que começa
por A e termina por E), seria impossível começar por E a apreensão
na percep­ção e retroceder até A, posto que A pertenceria
ao Tempo passado e não poderia, assim, ser um obje­tivo de apreensão.

Se admitirmos que numa variedade de subs­tâncias consideradas como
fenômeno estiver cada uma perfeitamente isolada, isto é, que
nenhuma aja sobre a outra e receba reciprocamente a sua influência,
diremos então que “a sua simultanei­dade” não
pode ser objeto de nenhuma percepção possível e que a
existência de uma não poderia le­var por meio nenhum da síntese
empírica, à da outra.

De fato, se imaginarmos que estão separadas por um Espaço inteiramente
vazio, a percepção que vai de uma a outra no Tempo, determinaria
realmente a existência desta última por meio de uma percepção
ulterior, mas não poderíamos veri­ficar se o fenômeno
segue a primeira objetiva­mente ou se é simultâneo.

Deve, pois, haver, além da simples existência, algo pelo que
A determine a B o seu lugar no Tempo e, reciprocamente, também, B o
seu lugar a A; pois, somente reconhecendo a substância sob esta condição
podem ser representadas empirica­mente como “existindo simultaneamente”.
Mas somente aquilo que é a causa de uma coisa, ou das suas determinações,
pode determinar o seu lugar no Tempo.

Por conseguinte, toda substância (posto que não pode ser consequência
somente pela rela­ção às suas determinações)
deve conter em si a causalidade de certas determinações nas
demais substâncias, e ao mesmo tempo os efeitos da cau­salidade
das outras substâncias, quer dizer, que todas devem estar imediata ou
mediatamente em comunidade dinâmica para que seja possível co­nhecer
na experiência a simultaneidade.

Porém, tudo isso, sem o que a própria expe­riência
dos objetos em estudo seria impossível, é necessário,
entretanto, para estes mesmos objeti­vos. É, pois, mister a todas
as substâncias, quando consideradas como fenômenos, enquanto que
fo­ram simultâneas, estarem em comunidade “Ge­meinschaft”
geral de ação recíproca.

Em alemão, a palavra “gemeinschaft” tem dupla significação
e tanto equivale a “communio” (comunidade) em latim, que a “commercium”
(comércio). Nós a empregamos aqui como desig­nando uma comunidade
dinâmica, sem a qual a comunidade local “communio spatii”,
em si, não poderia ser reconhecida empiricamente.

É fácil notar em nossas experiências que as influências
continuas em todas as partes do Es­paço podem por si conduzir nosso
sentido de um objetivo a outro; que a luz que brilha em nossos olhos e nos
corpos celestes produz um comércio mediato entre nós e esses
corpos, o que demonstra assim a sua simultaneidade que não podemos
mu­dar empiricamente de Lugar (perceber essas mu­danças), sem
que de todas as formas da matéria nos torne possível a percepção
dos lugares que ocupamos e que é exclusivamente por meio da sua influência
recíproca que se pode comprovar sua simultaneidade, e, daí (embora
só mediatamente), a coexistência dos objetos desde os mais distantes
até os mais próximos.

Sem comunidade, toda percepção (do fenô­meno no Espaço)
está isolada das outras e a cor­rente de representações
empíricas, isto é, a expe­riência, começaria
novamente em cada objeto sem que a precedente estivesse relacionada no mais
mínimo ou pudesse estar com ela numa relação de Tempo.

Não cogito com isso refutar a idéia de um Es­paço
vazio; porque pode sempre estar ali onde não há percepções
e onde, portanto, não existe o co­nhecimento empírico da
simultaneidade; porém, neste caso, não poderia ser um objeto
para nossa possível experiência.

Acrescento o que segue para maior clareza.

Todos os fenômenos, enquanto estão contidos numa experiência
possível, estão em espírito na comunidade (“communio”)
de apercepção; e para que os objetos possam ser representados
como en­trosados, necessário será que determinem recipro­camente
os seus lugares no Tempo e que formem assim um todo. Mas para que esta comunidade
subjetiva possa basear-se num princípio objetivo ou ser relacionada
com fenômenos como substân­cias, é preciso que a percepção
de um, como prin­cípio, possibilite a do outro, e reciprocamente,
a fim de que a sucessão, que está sempre nas per­cepções,
como apreensões, não seja atribuida aos objetos, senão
que possam estes representar como coexistentes.

Mas isto é uma influência recíproca, quer di­zer,
um comércio real de substâncias, sem o qual a relação
empírica da simultaneidade não poderia ser encontrada. Por meio
deste comércio, os fenô­menos, embora externos uns aos outros,
e assim mesmo entrosados, formam um composto “compo­situm reale”,
do qual podem existir numerosas es­pécies. As três relações
dinâmicas de que resultam todas as demais são, pois, de influência,
de consequência e de composição.

* * *

Tais são as três analogias da experiência. São
apenas princípios que servem para determinar a existência dos
fenômenos no Tempo, segundo seus três “modos”, isto
é, segundo a relação com o Tempo mesmo, como quantidade
(quantidade, existência ou duração), segundo a relação
no Tempo como série (sucessão), e segundo o Tempo como conjunto
de todas as existências (simulta­neidade).

Esta unidade da determinação do Tempo é completamente
dinâmica; isto é, que o Tempo não pode ser considerado
como aquilo em que a expe­riência determina imediatamente a cada
instante seu lugar, o que é impossível porque no Tempo absoluto
não é um objeto de percepção onde os fe­nômenos
se pudessem unir entre si; porém, a re­gra do Entendimento, única
que pode dar à exis­tência dos fenômenos uma unidade
sintética fun­dada nas relações de Tempo, determina
a cada um deles o seu lugar no Tempo, e, por conseguinte, a determina “a
priori” e com valor para todos os Tempos e para cada Tempo.
Entendemos por Natureza (no sentido empíri­co) o encadeamento de
fenômenos entrosados no que diz respeito à sua existência,
por regras ne­cessárias, isto é, por leis. São, pois,
certas leis e leis “a priori” que antes de tudo possibilitam uma
Natureza; as leis empíricas não podem ocorrer nem serem descobertas
a não ser por meio da ex­periência, mas de conformidade com
essas leis primitivas, sem as quais a experiência seria em si impossível.

Nossas analogias apresentam, pois, propria­mente a unidade da Natureza
no seu entrosamento de todos os fenômenos sob certos “expoen­tes”,
que somente exprimem a relação do Tempo (enquanto abarcar toda
a existência) com a uni­dade da apercepção, unidade
esta que somente pode existir numa síntese baseada em regras.

Assim, as três possuem esta significação: to­dos
os fenômenos residem numa Natureza, e as­sim deve ser, porque sem
esta unidade “a priori”, toda a unidade da experiência,
por conseguinte, toda determinação de objetivos na experiência
se­riam impossíveis.

Mas, devemos fazer uma advertência a res­peito da prova que demos
dessas leis transcenden­tais da Natureza e sob o caráter particular
desta prova tendo também esta observação extraordiná­ria
importância ao mesmo tempo, como regra para qualquer outro intento de
provar “a priori” propo­sições intelectuais
que são ao mesmo tempo sinté­ticas.

Se quiséssemos demonstrar dogmaticamente, isto é, por conceitos,
essas analogias, como seja: que tudo quanto existe somente se encontra em
algo permanente e que todo acontecimento supõe algo num estado precedente,
a quem segue uma regra, e, finalmente, que na diversidade das coisas simultâneas
os estados estão simultaneamente re­lacionados uns com os outros,
segundo uma regra (em comércio recíproco), então nosso
labor teria sido um trabalho perdido. Porque não podemos ir de um objetivo
e da sua existência à existência de outro ou à sua
maneira de existir, por simples conceitos dessas coisas seja qual for o modo
pelo qual forem analisados, O que nos restaria depois?

A possibilidade da experiência, como conhe­cimento no qual em último
termo podem ser-nos dados todos os objetivos, tem na sua representação
para nós uma realidade objetiva. Porém, nesta si­tuação
intermediária, cuja forma essencial con­siste na “unidade”
sintética da apercepção de to­dos os fenômenos,
achamos condições “a priori” da determinação
cronológica, necessária e perma­nente de toda existência
no fenômeno, sem as quais a determinação empírica
é em si impossível, tendo desta forma descoberto as regras da
unidade sintética “a priori”, por meio das quais podemos
antecipar a experiência.

Na falta deste método e na falsa persuasão das proposições
sintéticas que o uso experimental do Entendimento recomendava como
princípios, sucedeu que sempre foi procurada, embora em vão,
uma prova do princípio, da razão suficiente. Ninguém
pensou nas outras duas analogias, em­bora se servissem sempre delas sem
notá-lo. E, porque não pensaram nisto, aconteceu que lhes faltava
o fio condutor das categorias, aquele que pode descobrir e tomar sensíveis
todas as lacunas do Entendimento, quer nos conceitos, quer nos princípios.

IV – Postulados do Pensamento Empírico em Geral

1.° – Aquilo que condiz com as condições formais
da experiência (com referência à intuição
e aos conceitos) é “possível”.
2.° – Aquilo que condiz com as condições materiais
da experiência (da sensação) é “real”.
3.° – Aquilo que, na conformidade com o re­al, está determinado
segundo as condições gerais da experiência, é “necessário”
(existe necessaria­mente).

Explicação

As categorias da modalidade têm de particular que não aumentam
em nada, como determinação do objetivo, o conceito a que se
unem como predi­cado senão que apenas exprimem a relação
com a faculdade de conhecer.

Quando o conceito de uma coisa é já perfeito, posso ainda perguntar
se esta coisa é simples­mente possível ou se é real,
e, neste último caso, se além disso é também necessária.
Não pensa­mos com isso nenhuma determinação com refe­rência
ao próprio objeto, pois somente tratamos de saber qual é a relação
deste objeto (e de todas as suas determinações) com o Entendimento
e o seu uso empírico, com o juízo empírico e com a razão
(na sua aplicação à experiência).

Precisamente, por este motivo, os princípios da modalidade são
apenas explicações da possibi­lidade, da realidade e da
necessidade em seu uso empírico, e, ao mesmo tempo, a restrição
das ca­tegorias somente ao uso empírico, sem permiti-las nem admiti-las
pelo uso transcencental.

Realmente, se possuem apenas um valor ló­gico e limitam-se a exprimir
analiticamente a forma do “pensamento”, senão que se referem
a “coisas" a sua possibilidade, realidade ou necessi­dade,
é mister que se apliquem à experiência pos­sível
é à sua unidade sintética, na qual somente entram os
objetivos do conhecimento.

O postulado da possibilidade das coisas exige que o seu conceito esteja de
acordo com as condi­ções formais da experiência em
geral; mas esta, isto é, a forma objetiva da experiência em geral,
contém toda a síntese desejada para o conheci­mento de objetivos.

Um conceito que encerrar uma síntese deve ser considerado vazio e
é como se não referindo a nenhum objetivo, se esta síntese
não pertencer à experiência, quer extraída dela,
e neste caso seu conceito se denomina conceito empírico, quer como
condição “a priori" da experiência em geral
(como sua forma), quando então é um conceito puro, o qual pertence
à experiência, porque so­mente nesta pode ser encontrado
o seu objetivo.

De fato, de onde tirar o caráter da possibili­dade de um objetivo
idealizado por um conceito sintético “a priori”, senão
da síntese que constitui a forma do conhecimento empírico dos
objetivos?

É também uma condição lógica absolutamente
necessária que nesse conceito não deve existir ne­nhuma
contradição. Porém, isto está muito longe de ser
o bastante para constituir a realidade obje­tiva do conceito, quer dizer,
a possibilidade de um objetivo tal como é idealizado pelo conceito.

Deste modo, não existe contradição alguma no conceito
de uma figura contida entre duas linhas retas, porque o conceito de duas linhas
retas e do seu encontro não contém a negação de
nenhuma figura. A impossibilidade não está, pois, no próprio
conceito, senão na sua construção no Espaço, isto
é, nas condições do Espaço e de suas determina­ções,
condições estas que, por sua vez, têm reali­dade objetiva,
quer dizer, relacionam-se com coisas possíveis, posto que contêm
“a priori” a forma da experiência em geral.

Apresentemos, agora, toda a utilidade e toda a influência desse postulado
da possibilidade. Quando eu represento uma coisa que é permanen­te,
de maneira que quando há nela uma transfor­mação
pertence, somente, ao seu estado, não posso apenas por esse conceito
conhecer se essa coisa é possível.

Igualmente, quando imagino alguma coisa que é de tal natureza, que
uma vez colocada nal­gum lugar, outra segue-a imediatamente, posso considerá-la
sem contradição, mas não poderia por isso julgar se uma
propriedade dessa espécie (como causalidade) se encontra em algum objeto
possível.

Finalmente, posso imaginar coisas (substân­cias) diversas, de tal
maneira constituídas, que o estado de uma produza uma conseqüência
no de outra, e reciprocamente; porém, segundo essas conclusões
que apenas se baseiam numa síntese arbitrária, não posso
deduzir se uma relação dessa espécie pode pertencer também
às coisas. Somente enquanto esses conceitos exprimem "a priori”
as relações das percepções em cada ex­periência
é como se conhecêssemos a sua reali­dade objetiva, isto é,
a sua verdade transcenden­tal, e isto, em verdade, independentemente da
ex­periência, embora sem ter relação com a forma de
uma experiência em geral e com a unidade sinté­tica na qual
somente podemos conhecer empiricamente os objetos.

Mas, se quisermos formular novos conceitos de substâncias, de forças,
de ações recíprocas, com a matéria que a percepção
nos oferece sem tirar da referida experiência o exemplo da sua re­lação,
cairíamos ent&atildatilde;o puramente em quimeras e não poderíamos
reconhecer a possibilidade dessas fantásticas concepções
por meio de um critério, porque não foi tomada como guia a experiência
nem foram derivados dela.

Tais conceitos inventados não podem receber “a priori”,
como as categorias, o caráter da sua possibilidade, como condições
de que toda expe­riência depende, senão somente “a
posteriori”, como dados pela própria experiência. Assim
sendo, sua possibilidade deve ser conhecida “a posteriori” e empiricamente,
ou então não pode sê-lo.

Uma substância que estiver constantemente no Espaço, porém
sem enchê-lo (como esse inter­mediário que alguns quiseram
introduzir entre a matéria e o ser pensante), ou uma faculdade par­ticular
que tivesse nosso espírito de “prever” o porvir (sem deduzi-lo),
ou, finalmente, a faculdade que teria este espírito de estar em comunhão
de pensamento com outros homens por muito distan­tes que se encontrem,
são todos eles conceitos, cuja possibilidade carece por completo de
funda­mento porque não se apóia na experiência nem
nas suas leis já conhecidas, sem o que são apenas um conjunto
arbitrário de pensamentos, e embora sem nenhuma contradição,
de modo algum podem pretender a uma realidade objetiva, nem por con­seguinte
à possibilidade de objetivos tais como nesse caso foram concebidos.

No que se refere à realidade, desnecessário será dizer
que não pode ser concebida como tal “in concreto”, sem
recorrermos à experiência, em vir­tude que somente pode ser
posta em relação com a sensação como matéria
da experiência e não com a forma da relação, com
a qual poderia melhor o espírito argúir suas ficções.

Deixo, porém, de lado aquilo cuja possibili­dade só pode
ser deduzida da realidade na expe­riência para referir-me aqui à
possibilidade de coi­sas baseadas em conceitos “a priori”.
Insisto em sustentar que desses conceitos apenas, não se pode tirar
nunca as próprias coisas, senão somente enquanto forem condições
formais e objetivas de uma experiência em geral.

Parece, de fato, que a possibilidade de um triângulo poderia ser conhecida
em si mesma pelo seu conceito, que em realidade é independente da experiência;
porque, de fato, podemos dar-lhe um objetivo completamente “a priori”,
quer dizer, construí-lo.

Mas, como esta construção é a forma apenas de um objeto,
o triângulo seria apenas um produto da imaginação, cujo
objetivo teria somente uma possibilidade duvidosa, porque faltar-lhe-ia para
ser de outro modo, alguma coisa a mais, isto e: que esta figura fosse concebida
somente sob as condições em que descansam todos os objetos da
experiência.

Porém, a única coisa que acrescenta a esse conceito a representação
da possibilidade de tal objeto, é que o Espaço é uma
condição formal “a priori” de experiências
externas, e que esta mesma síntese figurativa, pela qual construímos
um triângulo na imaginação, é idêntica em
abso­luto à que produzimos na apreensão de um fenô­meno
para formarmos dele um conceito experi­mental.

Desta forma, a possibilidade das quantidades contínuas e até
a das quantidades em geral, pois, seus conceitos são todos sintéticos,
não é o resul­tado desses conceitos por si mesmos, senão
en­quanto forem considerados como condições for­mais
da determinação de objetivos na experiência em geral.

Onde, pois, encontrar os objetivos que corres­pondem aos conceitos, senão
na experiência, pela qual unicamente recebemos os objetos? Podemos,
é verdade, sem experiência prévia, conhecer e ca­racterizar
a possibilidade das coisas; porém, so­mente em relação
às condições sob as quais al­guma coisa em geral
é determinada na experiên­cia como objetivo; sendo-o por
conseguinte, “a priori”, porém sempre em relação
à experiência e nos seus limites.

O postulado para o conhecimento da “realida­de” das coisas
exige uma “percepção”; isto é, uma sensação
acompanhada de consciência (embora não imediata) do próprio
objeto cuja existência devemos conhecer; mas também é
preciso que este objetivo esteja de acordo com alguma percep­ção
real segundo as analogias da experiência, as que patenteiam o entrosamento
real na experiên­cia possível.

Nenhuma característica da existência de uma coisa pode, de qualquer
forma, ser encontrada em seu simples “conceito”. Porque mesmo
que esse conceito seja tão completo que nele nada falte para imaginar
uma coisa com as suas determina­ções internas, a existência,
sem embargo, nada tem de comum com todas essas determinações;
a questão fica reduzida apenas a sabermos se uma coisa nos é
dada de maneira que a sua percepção possa preceder sempre ao
conceito.

O conceito, precedendo a percepção, significa a simples possibilidade
da coisa; a percepção que dá ao conceito a matéria
é unicamente o caráter da realidade. Porém, podemos também
conhecer a existência de uma coisa antes de percebê-la, por conseguinte,
relativamente “a priori”, desde que esteja unida a determinadas
percepções, segundo os princípios do seu enlace empírico
(as analo­gias).

Então, de fato, a existência da coisa está li­gada
com as nossas percepções numa possível ex­periência,
e podemos, seguindo o fio dessas analo­gias, passar da nossa percepção
real à coisa na sé­rie de possíveis percepções.

É assim que conhecemos pela percepção da agulha de ferro
imantada a existência de uma ma­téria magnética nos
corpos, apesar de ser-nos im­possível a percepção
imediata desta matéria pela natureza dos nossos órgáos;
porque pelas leis da sensibilidade e “contextus” de nossas percepções
chegaríamos numa experiência a ter a intuição imediata
desta matéria se os nossos sentidos fos­sem mais delicados, porém,
o limite desses senti­dos nada faz à forma da experiência
possível em geral.

Até onde chega a percepção e o que dela de­pende,
segundo leis empíricas, até ali também chega o nosso
conhecimento da existência das coi­sas; se não começarmos
pela experiência ou se não procedermos seguindo as leis do encadea­mento
empírico dos fenômenos, em vão pretende­remos adivinhar
ou conhecer a existência das coi­sas.

O idealismo faz graves objeções contra essas regras da demonstração
mediata da existência, e por isso é esta a ocasião de
refutá-lo.

Refutação do Idealismo

O idealismo (quero dizer, o material) é a teoria que declara a existência
de objetos exteriores no espaço como duvidosa e indemonstrável,
como falsa e impossível. A primeira doutrina é o idea­lismo
“problemático” de Descartes, que admite somente como irrefutável
esta asserção empírica: “eu sou”; a segunda
é o idealismo “dogmático” de Berkeley, que considera
o Espaço com todas as coisas das quais é inseparável
como algo impossí­vel em si, e, por conseguinte, como vãs
quimeras as coisas que nele se produzem.

O idealismo dogmático é inevitável quando se faz do
espaço uma propriedade pertinente às coi­sas em si: porque
então ele bem como tudo o que o condiciona é um nada.

Entretanto, na estética transcendental destruímos todos os
princípios deste idealismo. O idea­lismo problemático, que
nada afirma neste parti­cular, mas que sustenta apenas nossa impotência
para demonstrar pela experiência imediata uma existência diferente
à nossa, é racional e demons­tra uma investigação
filosófica e fundamental, que não consente em formular um juízo
decisivo senão após ter achado uma prova suficiente.

Trata-se, pois, de demonstrar, que não so­mente nós “imaginamos”
as coisas externas, mas que temos também a “experiência”,
o que so­mente podemos obter demonstrando . que nossa experiência
interna, indubitável para Descartes, é possível somente
sob a suposição da experiência externa.

Teorema – A simples consciência da minha própria existência,
embora empiricamente determinada, demonstra a existência de objetos
fora de mim no Espaço

PROVA

Eu tenho consciência da minha existência como determinada no
Tempo. Toda determinação supõe algo “permanente”
na percepção. Mas esse permanente não pode ser algo em
mim, justa­mente pela razão que a minha existência não
pode ser determinada no tempo senão pelo permanente. A percepção
deste permanente só é possível por meio de uma “coisa”
que exista fora de mim e não simplesmente pela representação
de uma coisa ex­terna a mim.

Por conseguinte, a determinação da minha existência no
Tempo só é possível pela existência de coisas reais
que percebo fora de mim. Mas como esta consciência no Tempo está
necessaria­mente ligada à consciência da possibilidade desta
determinação do Tempo, segue-se daí que também
está necessariamente ligada com a existência das coisas fora
de mim, como à condição da determi­nação
do Tempo; quer dizer, que a consciência da minha própria existência
é ao mesmo tempo uma consciência imediata da existência
de outras coi­sas externas.

Primeira Observação – Notar-se-á na prova precedente
que rebatemos o jogo do Idealismo com as suas próprias armas e que
nos deu um resul­tado contraproducente para ele. Este admitia que a única
experiência imediata era a interna e que daí somente se deduzia
a existência das coisas ex­ternas; porém, isto sem certeza,
como sempre que se deduz de efeitos dados causas “determinadas”,
e porque a causa das representações pode-se en­contrar também
em nós, podendo acontecer atribuí-las falsamente a coisas externas.

Demonstramos, porém, que a experiência ex­terna é
propriamente imediata e que somente por meio desta, não a consciência
da nossa própria existência, porém, sim, a determinação
desta exis­tência no Tempo, quer dizer, a experiência inter­na.

Está claro, que a representação “eu sou”,
que exprime a consciência que pode acompanhar todo pensamento é
o que encerra imediatamente em si a existência de um sujeito, porém,
nenhum “co­nhecimento”, por conseguinte, nenhum conheci­mento
empírico, quer dizer, nenhuma experiência.

É mister para isto, além do pensamento de algo existente, a
intuição, e aqui, a intuição inter­na, em
cuja relação, isto é, ao Tempo, deve o su­jeito ser
determinado o que somente por meio de objetos externos pode realizar-se, de
tal maneira, que a própria experiência não é possível
senão mediatamente e por meio da experiência externa.

Segunda Observação – O que acabamos de dizer está
perfeitamente de acordo com todo uso experimental da nossa faculdade de conhecer
na determinação do Tempo. Não somente não pode­mos
perceber nenhuma determinação do tempo a não ser pela
mudança nas relações exteriores (o movimento) relativo
ao permanente do Espaço (por exemplo, o movimento do Sol relativamente
aos objetos da Terra), senão que nada temos permanente que possamos
submeter como intuição ao conceito de uma substância,
a não ser a “matéria”.

E note-se que esta permanência não foi tirada de modo algum
da experiência externa, senão su­posta “a priori”,
como condição necessária de toda determinação
de Tempo e, por conseguinte, tam­bém, como determinação
do sentido interno relati­vamente à nossa própria existência
pela existência das coisas externas.

A consciência de mim mesmo na representa­ção “eu”,
não é de modo algum uma intuição, é uma
representação puramente intelectual da es­pontaneidade de
um sujeito pensante. Esse não contém, pois, o menor predicado
da intuição que, como permanente, possa servir de correlativo
à de­terminação do Tempo no sentido interno, como,
por exemplo, a impenetrabilidade da matéria, como intuição
empírica.

Terceira Observação – Pelo fato da existên­cia
de objetos exteriores ser necessária para possi­bilidade da consciência
determinada de nós mes­mos, não significa que toda representação
intui­tiva de coisas externas contenha ao mesmo tempo a sua existência,
pois esta representação pode muito bem ser consequência
da imaginação (como acontece nos sonhos e na loucura); porém,
ela, en­tretanto, somente se manifesta pela reprodução de
antigas percepções, a que, como já demonstramos, somente
são possíveis pela “realidade” de objetos “externos”.

Foi, pois, suficiente demonstrar que a expe­riência interna em
geral somente é possível pela experiência externa em geral.
Para certificarmo-­nos de que tal ou qual pretendida experiência
não é um simples brinquedo da nossa imaginação,
consegue-se por meio das suas determinações par­ticulares
e dos critérios de toda experiência real.

Finalmente, o terceiro postulado se refere à necessidade material
na existência e não à pura­mente formal e lógica
no entrosamento de concei­tos. Mas, como nenhuma existência de objetivos
dos sentidos pode ser conhecida completamente “a priori”, senão
relativamente, isto é, pela relação a outro objeto já
conhecido, que nunca poderá referir-se mais que a uma existência
compreen­dida de alguma forma no conjunto da experiência, da qual
a percepção dada forma parte; a necessi­dade da existência
nunca pode ser conhecida por conceitos senão pelo entrosamento que
a une no que é perceptível segundo as leis gerais da expe­riência.

Por outro lado, como a só existência que se pode reconhecer
como necessária sob a condição de outro fenômeno
é a dos efeitos resultantes de causas dadas pela lei de causalidade,
não é da existência de coisas (substâncias) senão
somente da de seus estados que poderemos conhecer a ne­cessidade, e isto,
em virtude das leis empíricas da causalidade, por meio de outros estados
conheci­dos na percepção.

Segue-se, daí que o critério da necessidade re­side apenas
nesta lei da experiência possível, a saber: que tudo o que sucede
está determinado “a priori” no fenômeno por sua causa.

Conhecemos apenas a necessidade de “efei­tos” naturais, cujas
causas nos foram dadas; o ca­ráter da necessidade na existência
não se estende além do terreno da experiência possível
e todavia nesse terreno não se aplica a existência de coisas
como substâncias, posto que estas não podem nunca ser consideradas
como efeitos empíricos ou como algo que é e que não nasce.

A necessidade, pois, refere-se somente às rela­ções
de fenômenos segundo a lei dinâmica da cau­salidade e à
possibilidade, por nós fundamentada, de deduzir “a priori”
de uma existência dada (uma causa) outra existência (o efeito).

Tudo o que acontece é hipoteticamente neces­sário; é
este um princípio que submete a mudança no mundo a uma lei,
isto é, a uma regra da exis­tência necessária, sem
a qual a própria Natureza não poderia existir.

Por este motivo, o princípio: nada acontece por acaso “in mundo
non datur casus”, é uma lei “a priori” da Natureza,
O mesmo acontece com este outro: não há na Natureza uma necessidade
cega, senão condicional, e, por conseguinte, inteligente “non
datur fatum”. Estes dois princípios são leis que submetem
o jogo de mudanças a uma “natureza de coisas (como fenômenos),
ou seja, à unidade intelectual, na qual somente pode pertencer à
experiência considerada como unidade sintética de fenômenos.
Ambos são dinâmicos.

O primeiro é propriamente uma conseqüência do princípio
de causalidade (sob as analogias da experiência). O segundo pertence
aos princípios da modalidade, que acrescenta à determinação
cau­sal, o conceito de necessidade, porém, necessidade sujeita,
sem embargo, a uma regra do entendi­mento.

O princípio da continuidade impossibilita qualquer salto “in
mundo non datur saltus” na sé­rie de fenômenos (das
mudanças) e ao mesmo tempo toda lacuna ou vazio entre dois fenômenos
no conjunto de todas as intuições no espaço (“non
datur hiatus”).

Este princípio pode enunciar-se assim: nada existe na experiência
que prove um “vacuum” nem que apenas o permita como uma parte
da sín­tese empírica. Porque este vazio, que pode ser concebido
fora do campo da experiência possível (do mundo), não
está dentro da jurisdição do En­tendimento somente,
o qual unicamente se refere às questões relativas ao uso dos
fenômenos dados em relação ao conhecimento empírico,
sendo além disso um problema para a razão idealista, que foge
da esfera de uma experiência possível para julgar o que circunda
e Limita esta mesma esfera.

Esta é, portanto, uma questão que deve ser examinada na dialética
transcendental.

Poderíamos com facilidade representar esses quatro princípios
“in mundo non datur hiatus, non datur saltus, non datur casus, non datur
fatum” como todos os demais princípios de origem trans­cendental,
na sua ordem, conformando-nos o seu lugar, mas o leitor experimentado fá-lo-á
por si mesmo ou encontrará com facilidade o caminho condutor para isso.

Esses princípios confirmam todos em que não permitem nada na
síntese empírica que possa al­cançar o entendimento
e ao encadeamento contí­nuo de todos os fenômenos; quer dizer,
à unidade de seus conceitos. Porque o Entendimento é aquele
em que é possível a unidade da experiência onde todas
as percepções devem encontrar o seu lugar.

É maior o campo da possibilidade e o da reali­dade, e o desta
que o da necessidade? Questões são estas interessantes ao extremo
e que exigem uma solução sintética, porém que
entram nos fo­ros da razão, porque equivalem quase a perguntar
se todas as coisas como fenômenos pertencem ao conjunto e ao todo de
uma só experiência, da qual toda percepção indicada
é somente uma parte, e por conseguinte não poderia ligar-se
a outros fe­nômenos, ou se as minhas percepções podem
per­tencer (no seu encadeamento geral) a algo mais que a uma única
experiência possível.

Em geral o Entendimento não nos dá “a prio­ri”
a experiência mas, apenas, a regra, segundo condições
subjetivas e absolutas da sensibilidade e da apercepção, as
úmcas que possibilitam essa experiência. Entrementes, foram possíveis
outras formas da intuição (Espaço e Tempo), ou outras
formas do Entendimento (a forma discursiva do pensamento ou a do conhecimento
pelos concei­tos), não poderíamos, de forma alguma, concebê-­las
nem compreendê-las e, se isso fosse possível, não pertenceria
sempre à experiência como único conhecimento no qual os
objetivos nos foram da­dos.

Porque devem existir mais percepções que as que em geral constituem
o todo da nossa expe­riência possível, e pode, por conseguinte,
existir outro campo diferente da matéria? A respeito disto nada pode
dizer o Entendimento, que apenas se ocupa da síntese do que está
dado.

Além disso, a pobreza dos nossos raciocínios comuns com os
quais criamos o grande império da possibilidade, do qual toda coisa
real (todo objetivo de experiência) é somente uma mínima
parte, e tão patente que salta à vista.

Tudo o que é real é possível; resultando dai, naturalmente,
segundo as leis lógicas da inversão, esta proposição
particular: algumas coisas possi­veis são reais. O que também
significa: existem muitas coisas possíveis que não são
reais.

Parece, é certo, que pode ser posto o número do possível
muito por cima do real, porque é pre­ciso acrescentar algo àquele
para que resulte isto. Mas desconheço esta adição ao
possível, porque o que seria preciso acrescentar seria impossível.
A única coisa que no meu entendimento poderia acrescentar-se à
conformidade com as condições normais da experiência é
o entrosamento com al­guma percepção, e o que está
entrosado com uma percepção, segundo as leis empíricas,
é real, em­bora não seja imediatamente percebido.

Mas não podemos deduzir pelo que é dado, e menos ainda se nada
nos foi dado (porque nada, absolutamente nada, pode ser pensado sem maté­ria),
que no entrosamento universal, com aquilo que nos é dado na percepção,
possa existir outra série de fenômenos, e por conseguinte seja
possí­vel mais de uma experiência, a única que tudo
compreende.

Porém, o que é possível apenas sob as próprias
condições, simplesmente possíveis, não o é
sob “todas as relações”. E sem embargo, a questão
deve ser considerada sob este ponto de vista geral quando se trata de sabermos
se há possibilidade das coisas se estender além da experiência.

Mencionei estas questões apenas para não deixar qualquer lacuna
no que pertence, segundo a opinião geral, aos conceitos do Entendimento.
Porém, na realidade, a possibilidade absoluta (que é a que vale
sob todos os conceitos) não é um sim­ples conceito do Entendimento
e não pode ter ne­nhum uso empírico; pertence exclusivamente
à Razão, que sobrepuja todo uso empírico possível
do Entendimento.

Foi por isso que nos contentamos com uma li­geira observação
crítica, deixando as coisas no mesmo estado em que estavam até
que mais tarde façamos das mesmas um estudo meticuloso. Antes de terminarmos
este quarto número e com ele o sistema de todos os princípios
do Entendimento puro, devo explicar por que chamei de postulados aos princípios
da modalidade.

Não considero aqui essa palavra no sentido que lhe deram alguns filósofos
modernos contra a teoria dos matemáticos, aos quais propriamente pertencem;
quero dizer, como significando uma proposição que foi dada como
imediatamente cer­ta, porém sem justificá-la nem demonstrá-la.

Porque se admitirmos que deve conceder-se um assentimento absoluto logo à
primeira vista e sem dedução das proposições sintéticas
por evi­dentes que estas sejam, destrói-se com isso toda crítica
do Entendimento. Como não faltam preten­sões absurdas às
quais nem a fé comum é recu­sada (sem ser uma autoridade),
nosso Entendi­mento ficaria aberto a todas as opiniões sem que
fosse possível negar sua aceitação a proposições
que, mesmo ilegítimas, exigiriam serem aceitas como verdadeiros axiomas.

Assim, pois, quando uma determinação “a priori”
é acrescida sinteticamente ao conceito de uma coisa, é preciso
unir necessariamente a uma proposição dessa espécie,
senão uma prova, pelo menos uma dedução da legitimidade
desta asser­ção.

Mas, os princípios da modalidade não são ob­jetivamente
sintéticos, porque os predicados da possibilidade, da realidade e da
necessidade, não estendem sequer o conceito a que se aplicam, quando
acrescentam algo à representação do obje­tivo. E,
embora sejam sempre sintéticos, não o são, entretanto,
senão subjetivamente; isto é, que aplicam ao conceito de uma
coisa (do real), do qual nada mais dizem, a faculdade de conhecer onde tem
sua origem e base.

Se esse conceito é idêntico no Entendimento com as condições
formais da experiência, chama-se então como possível ao
seu objetivo; mas, se es­tiver encadeado com a percepção
(com a sensação como matéria dos sentidos) e determinado
por ela mediante o Entendimento, chama-se real ao seu objeto, e se, finalmente,
está determinado pelo en­trosamento das percepções
segundo conceitos, en­tão o seu objetivo é necessário.

Os princípios da modalidade não exprimem, pois, com referência
a um conceito, apenas que o ato da faculdade de conhecer que o produz. Entre­tanto,
denominam-se postulados em Matemática à proposição
prática que somente contém a síntese pela qual obtemos
um objeto e produzimos o con­ceito; com uma linha dada descrever de um
ponto determinado um círculo numa superfície.
Semelhante proposição não pode ser demons­trada porque
o procedimento exigido é justamente aquele que produzimos primeiramente,
o conceito dessa figura.
Podemos, portanto, da mesma forma, postular os princípios da modalidade,
posto que não es­tende seu conceito das coisas (18) senão
que se li­mitam a mostrar a maneira como esse conceito em geral está
ligado à faculdade de conhecer.

Observação Geral Sobre o Sistema dos Princípios

Uma coisa mui digna de nota que nós não podemos perceber pela
categoria só a possibilidade de alguma coisa, mas que tenhamos sempre
ne­cessidade de uma intuição para descobrir a reali­dade
objetiva do conceito do entendimento.

Tomemos, por exemplo, as categorias de rela­ção.

Como primeiro, qualquer coisa pode existir como sujeito e não como
simples determina&ccccedil;ão de outra coisa; quer dizer, como pode ser
substância; ou, segundo, porque um algo é, outro também
deve ser; por conseguinte, como algo em geral pode ser causa; ou, terceiro,
como quando muitas coisas são, porque uma existe, algo nas outras a
segue, e reciprocamente, e como um comércio de substâncias pode
assim estabelecer-se.

Simples conceitos não podem indicar-nos isso.

E assim se dá com todas as outras categorias. P. ex.: como uma coisa
pode ser idêntica a mui­tas, quer dizer, como pode ser uma quantidade
etc.. Assim, enquanto a intuição falta não se sabe pelas
categorias, se pensa um objeto, nem se em geral pode convir-lhe um objeto;
por onde se vê que por si mesmos não são conhecimentos,
mas simples formas de pensar, que servem para trans­formar em conhecimentos
as intuições dadas. Re­sulta também que nenhuma proposição
sintética podemos tirar somente das categorias.

Quando digo, por exemplo, que em toda exis­tência há uma
substância, quer dizer, algo que só como sujeito pode existir
e não como simples pre­dicado, ou que uma coisa é um “quantum”,
em tu­do isso nada há que nos sirva para sair de um con­ceito
dado a uni-lo a outro. Assim, pois, nunca se pôde provar por simples
conceitos puros do enten­dimento uma proposição sintética;
esta, por exem­plo: tudo que existe acidentalmente tem uma cau­sa.
Quanto nisto se tem feito é demonstrar que, sem esta relação,
não compreenderíamos a existência acidental; quer dizer,
que não podemos co­nhecer “a priori", pelo entendimento,
a existência de tal coisa.

Mas não se segue disto que esta relação seja a condição
da possibilidade da coisa mesma. Se re­cordamos nossa prova do princípio
de causalidade, que tudo que ocorre (todo evento) supõe uma cau­sa,
se advertirá que não podemos realizá-la mais do que em
relação aos objetos da experiência, por conseguinte como
princípio do conhecimento de um objeto dado na intuição
empírica e não só por conceitos.

Não se pode, porém, negar que esta proposi­ção:
todo evento tem uma causa, não seja evi­dente para todos por simples
conceitos; mas então o conceito de acidente está já entendido
de tal maneira que contém, não a categoria de modali­dade
(como algo cuja não existência pode conceber-se) mas a de relação
(como algo que só pode existir como conseqüencia de outra coisa);
e, neste caso, a proposição é por completo idêntica
a esta outra; tudo o que não pode existir, senão como conseqüência,
tem sua causa. Com efeito, quando queremos dar exemplos de existência
aci­dental, recorremos sempre a mudanças e não à
simples possibilidade de conceber o contrário.

Mudança, porém, é sucessão, e, como tal, não
é possível mais senão por uma causa, e cuja não-existência,
por conseguinte, em si é possível. Reconhece-se desse modo a
contingência em que não pode existir senão como efeito
de uma causa. Quando se admite, pois, uma coisa como contin­gente, é
uma proposição analítica dizer que tem uma causa.

Todavia, é mais notável que para compreender a possibilidade
de coisas pelas categorias, e, por conseguinte, para demonstrar a realidade
objetiva destas últimas, tenhamos sempre necessidade, não só
de intuição, como também de intuições ex­teriores.
Tomemos, por exemplo, os conceitos pu­ros de relação e achamos:

1.° Para dar ao conceito de substância na in­tuição
algo de fixo que corresponda (provando com isto a realidade objetiva desse
conceito), temos necessidade de uma intuição no espaço
(da intui­ção da matéria), porque só o espaço
determina constantemente, enquanto que o tempo, e por con­seguinte, quando
se encontra no sentido interior, transcorre sem cessar.

2.° Para apresentar a mudança como intuição correspondente
ao conceito de causalidade, somos obrigados a tomar como exemplo o movimento,
como mudança no espaço; e somente assim pode­mos fazer-nos
perceptíveis mudanças cuja possibi­lidade não pode
compreender nenhum entendi­mento puro.
Mudança é união de determinações contradi­toriamente
opostas entre si na existência de uma só e mesma coisa. Mas,
como agora é possível que de um estado dado siga, na mesma coisa,
outro es­tado que lhe seja oposto? Coisa é esta que não
pode compreender nenhuma razão sem exemplos, não podendo ser
inteligível sem uma intuição. Esta intuição
é a do movimento de um ponto no espaço, cuja existência
em diferentes lugares (como conseqüência de determinações
contrárias) nos faz perceber a mudança; porque, ainda para que
possamos conceber mudanças internas, é mis­ter que nos representemos
o tempo de uma ma­neira figurada, como forma do sentido traçado
desta linha (pelo movimento), e, por conseguinte, nossa existência sucessiva
em diferentes estados por uma intuição exterior.

A razão consiste em toda mudança como algo fixo na intuição,
ainda que para poder ser perce­bido supõe como mudança e
que não se encontre no sentido interno nenhuma intuição
fixa.

3.° Enfim, a categoria de reciprocidade não pode ser compreendida,
quanto a sua possibilida­de, só pela razão; e, por conseguinte,
a realidade objetiva desse conceito não pode ser apercebida sem intuição,
e intuição exterior no espaço. Com efeito, como conceber
a possibilidade de que, exis­tindo muitas substâncias, da existência
de uma resulta algo (com efeito) na da outra, e reciproca­mente; e que,
por conseguinte, pela razão que existe algo na pri meira que só
pela existência da segunda pode compreender-se, deva suceder outro tanto
com a segunda com respeito à primeira?

Porque isto é necessário para que exista reci­procidade;
mas que não pode compreender-se de coisas que subsistem umas de outras
por sua subs­tância, completamente isoladas. Assim, Leibnitz, ainda,
atribuindo uma reciprocidade às substân­cias do mundo, mas
às substâncias tais como as concebe só o entendimento,
teve necessidade de recorrer à intervenção da divindade;
porque viu com razão que esse comércio de substâncias
era incompreensível só por sua existência.

Mas nós outros podemos fazer-nos admissível a possibilidade
desta reciprocidade de substâncias como fenômenos, representando-as
no espaço, por conseguinte, na intuição exterior; porque
o espaço contém “a priori” relações
formais exteriores como condições da possibilidade de relações
reais em si na ação e na reação, por conseguinte,
na recipro­cidade. Assim mesmo é fácil provar que a possibi­lidade
de coisas como quantidades, e, por conseguinte, a realidade objetiva da categoria
de quan­tidade, não podem ser expostas senão na intuição
exterior, nem aplicadas depois ao sentido interno senão por meio dessa
intuição. Para não ser pro­lixo deixo os exemplos
ao cuidado do leitor.

Toda esta observação é de grande importân­cia,
não só para confirmar nossa precedente refu­tação
do idealismo, como também ainda para, quando se falar do conhecimento
em si a simples consciência interna, e a determinação
de nossa natureza sem o auxílio de intuições empíricas,
fazer-nos ver os estreitos limites da possibilidade de semelhante conhecimento.

Esta já é a última conseqüência de toda esta
seção. Todos os princípios do entendimento puro não
são mais do que princípios “a priori” da possi­bilidade
da experiência; com esta unicamente se relacionam todos os princípios
sintéticos “a priori”, e sua mesma possibilidade radica
por com­pleto nesta relação.

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