Cenas e Paisagens do Espírito Santo

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Júlia Lopes de Almeida

I

Propaganda do Brasil – o que se dizia do Estado do Espírito
Santo – viagem – Os trens da Leopoldina – Jornais de Campos
– Itabapoana – Paisagens espírito-santenses – O Saturno
– Habitações camponesas – O destino das terras marginais
da linha férrea – A construção dessa linha e a
iniciativa do Governo espírito-santense – A estação
terminal de Argolas – A luz – a travessia do canal em lanchas
– As senhoras de Vitória – Cais de embarque, etc.

Estou convencida, agora mais do que nunca, de que precisamos fazer a propaganda
do Brasil—não só na Europa, onde ela deve ser feita com
extrema habilidade, como no próprio Brasil. Porque a verdade é
esta: nós conhecemos muito imperfeitamente o nosso país. Acabo
eu própria de obter uma prova disto, observando num estado vizinho
coisas, que estava bem longe de imaginar.

Deliberei por esse motivo expô-las a quem tinha delas a mesma ignorância
que eu tinha. Escrevo com inteira e absoluta isenção, por não
ser presa à política por nenhum vínculo quer de família,
quer de simpatia pessoal.

Comecemos:

Quando constou que eu arrumava minhas malas para uma excursão à
Vitória, alguém, que não há muitos anos viveu
por algum tempo nessa cidade, correu a avisar-me que as suas ruas eram fétidas,
verdadeiros depósitos de lixo, não devendo eu esquecer-me de
carregar comigo frascos de desinfetante e perfumarias. Obedeci sem hesitação,
pondo um vidro de Feno, em cada canto da mala e enchendo de frascos de essências
a bolsinha de mão. Além dessa calamidade, avisava-me o meu informante,
há a da falta d’água. Um chafariz pinga uma lágrima hipócrita
de cinco em cinco minutos, ainda assim espremida com inaudito esforço
e esperada pela população com enorme anseio. Em frente do chafariz
há sempre uma multidão de carregadores, homens, mulheres e crianças,
com bilhas e latas vazias de querosene, fazendo cauda, à espera do
momento feliz de ir aparar o choro da fonte quase exaurida.

Só esse espetáculo basta para demonstrar a apatia daquela gente.
Quem quiser, após as agruras de uma longa viagem, refrescar-se, ao
chegar ao hotel, com um banho geral, terá de avisar o hoteleiro com
certo tempo de antecedência por carta ou por telegrama, para que ele
possa dar para isso as suas providências.

Ouvindo tais palavras eu não sabia se havia de sorrir, se de tremer,
tanto elas me pareciam mentirosas ou apavorantes! Logo a onda das informações
engrossou. Toda a gente que dizia conhecer o Espírito Santo me descrevia
com pena o seu atraso material. Além do mais afirmava-se que o fanatismo
do seu atual presidente criara por todo o estado uma atmosfera opressiva de
desconfiança e de terror. Ninguém dobrava uma esquina sem se
benzer. Falava-se em funcionários exonerados de cargos vitalícios
por não assistirem à missa (!); em ruas coalhadas de batinas
e de gente escorrida, de olhos postos no chão ou espreitando pelas
frinchas a vida alheia para fazer ressuscitar na terra brasileira a alma terrível
da Inquisição.

Procuro orientar-me pela leitura dos jornais. Mas o jornais não me
orientam. Ao contrário, agravam-se a expectativa, comentando com acrimônia
um contrato de madeiras firmado pelo governo do Espírito Santo com
uma firma estrangeira, em que, segundo dizem, as florestas famosas desse estado
serão devastadas, pondo a nu a terra e amesquinhando os mananciais
dos rios. Eu, que sou uma defensora das florestas, toda me sinto arrepiar
a esses comentários. Diante de tantas informações desagradáveis,
não será muito mais prudente deixar-me ficar quietinha em casa?
Voltando-me, entretanto, a falar da beleza da baía de Vitória,
Afonso Celso, alma de artista e de poeta, recomenda-me que não deixe
de navegar em horas de vária luz por entre as sua penedias e as suas
ilhas maravilhosas. Há qualquer coisa que me chama, que atrai o meu
coração e o meu pensamento para essas terras tão nossas
vizinhas e tão nossas desconhecidas; tomo uma resolução
e invisto para o trem.

***

Às nove horas de uma sexta-feira parti da estação de
Santana, em Niterói, para a Vitória num confortável vagão-leito
da Leopoldina. O quarto, iluminado a luz elétrica, fornecida ao trem
pelo movimento das rodas e nunca interrompida, porque ele dispõe de
acumuladores, permite que, mesmo deitada, eu continue a leitura de um livro
que me interessa. A cama é boa, de alvos lençóis de linho
e cobertor branco, de lã. Para início da viagem não estou
mal; de resto, o movimento de tangage (dos pés para a cabeça)
imprimido ao corpo por esse leitos transversais parece-me menos enjoativo
que os colocados no sentido longitudinal, como os da Central. Com pequenas
interrupções, durmo até a vizinha cidade de Campos, onde
se passa ao carro-salão, e onde há uns tantos minutos de demora
para o café. Percorro a gare — olho para todos os lados, a ver
se lobrigo algo da cidade: pontas de torre ou dorsos de telhados. Mas a cidade
deve ficar longe; não vejo nada e verifico com alegria que, se nada
posso julgar, embora furtivamente, da sua grandeza material, tenho do seu
desenvolvimento intelectual uma prova ao alcance das minhas mãos: os
jornais. Nada menos de cinco. Compro-os com avidez e atiro-me para o trem,
que partiu logo.

Da minha travessia pelo estado do Rio tinha-me ficado um desgosto: não
ter visto a estação, já que não podia ser mais,
da velha cidade de Macaé, a que sou afeiçoada por tradições
de família e que não conheço. Mas agora, à luz
da manhã toda azul e ouro, eu não tinha tempo para lamentar
coisa nenhuma e só para ver.

A região descampada que percorríamos respondia à nossa
curiosidade amiga com uma nuvem de pó, e foi só transposto o
rio da divisa, o claro e manso Itabapoana, que essa nuvem loura e importuna
se dissipou, como que por encanto.

Por maior que seja a simplicidade com que procuro escrever estas linhas,
desornando-as de todo o luxo de uma adjetivação embaraçosa,
tornando-as, tanto quanto possível, numa espécie de fotografia
intelectual, em que se veja mais a nudez da verdade do que a atmosfera que
a envolve, é bem possível que me fuja da pena uma ou outra expressão,
que possa parecer ao leitor demasiada em relação à beleza
dessa estrada que sobe em voltas de valsa de longas elipses até a uma
altura de setecentos e dezesseis metros, e que desce do mesmo modo até
quase ao nível do mar.

Os cortes das montanhas desenham pórticos de roxo antigo no fundo
verde da vegetação. A estrada, evitando a perfuração
de túneis, como se tivesse medo ao escuro, coleia pelo dorso das montanhas,
quase na grimpa, ora aproximando-se, ora fugindo de águas que se despenham
ou que deslizam. Aqui ondeia o Muqui, de leito tachonado como uma pele de
tigre, e de alma sossegada como uma pomba juriti. Apertado entre colinas e
penedias, acompanha por algum tempo a estrada, dando lugar depois a outros
rios mais fortes e cachoeirosos.

Há, porém, um trecho nesta belíssima estrada da Leopoldina,
de que jamais se esquecerá quem o tenha percorrido com a cabeça
fora da portinhola do trem: é o "Soturno" ou Garganta do
Inferno. O trem corta o flanco da penedia imensa, cosendo o seu corpo de réptil
negro e fumegante ao corpo duro e frio de pedra branca. O precipício
é terrível. Não tem mistérios. É a ribanceira
enorme, íngreme, alvadia, em que se despedaçaria, implacavelmente,
carne humana ou ferro bruto, que nele fosse despenhado.

Vista de cima, do caminho estreito em que parece haver apenas espaço
para os trilhos, cortado parte na rocha, parte suspenso sobre um viaduto,
a pedreira do Soturno, na sua nudez e austera simplicidade, acorda fatalmente
em quem a veja a idéia da morte. Vista de fora, de uma curva da estrada,
tem o aspecto de uma obra de arte monumental, escultura da nossa natureza
posta ali pela mão formidável de um ignoto Miguel Ângelo.

A par de belezas imponentes há doçuras de paisagens, que atraem
a imaginação para outras idéias.

Não me sinto nunca afagada pela sombra fria de florestas densas. As
regiões que atravesso devem ser antes propícias a campos de
criação, embora todas ondeadas pelos dorsos dos morros sucessivos.
Há de longe em longe restos de cafezais e um ou outro canavial sem
importância.

O destino daquelas terras deve estar realmente preso ao gado. Entre montes
de vegetação rasteira e clara aparecem aqui e além grandes
tufos de árvores. São os bosques de mataria, em que sobressaem
as umbaúbas e imbaíbas com os seus troncos altos, esguios, muito
brancos, como ossos descarnados ou grossos traços verticais de giz
sobre o fundo verde-negro da vegetação.

Sempre que viajo pelo interior dos nossos estados procuro, embora de passagem,
observar o tipo de habitação dos nossos camponeses. Estes, do
Espírito Santo, parece terem certos instintos de gosto. As casa, se
ainda têm telhados de palha, esta é subjugada por linhas paralelas
de trançados de embiras aparadas com maior ou menor perfeição.
Entretanto, entre estes telhados são freqüentes outras cobertas
de escamas de madeira com a sua cor natural. As casa são em geral bem
caiadas, resplandecendo de alvura no meio dos prados, e tanto os seus umbrais
como as suas portas vêm-se ao longe pela violenta tinta azul anil com
que são pintadas. O aspecto é agradável e dá,
francamente, a quem o vê, uma impressão saudável de alegria
e de asseio. Uma outra nota que afina com essa é a de fazerem paredes
divisórias de terrenos com pés de laranjeiras, plantadas tão
perto umas das outras que os seus ramos se embaralham e confundem, a ponto
que elas mesmas, interrogadas, não poderiam dizer quais seriam os seus
galhos, quais os das suas vizinhas.

Isto, que parece coisa nenhuma, é já, aos meus olhos, um magnífico
sintoma. Passam-se, todavia, largos trechos sem que veja nenhuma habitação.
A terra está à espera do trabalhador que a fecunde, do rebanho
que a anime. Ao longe, a famosa pedra Itabira aponta silenciosamente o azul
limpo do céu, entre os grandes rochedos — o Frade e a Freira.
Por mais curvas que o trem faça, vejo-a sempre ao longe como uma sentinela
sonhadora, coberta pelo véu azul da idealidade.

Eis-me, porém, sobre o raso Itapemirim, largo e cantante, em frente
à cidade do Cachoeiro, que, a julgar pelo movimento da gare, deve ser
animada.

Tendo almoçado no próprio trem, no seu bem organizado salão-restaurante,
eu não tinha, desde a véspera à noite, posto o pé
em terra senão na curta estadia em Campos, para o café matinal.
Não me sentia, contudo, enfadada pela viagem; ao contrário,
tinha a convicção de que, só por si, ela justificaria
interesse de uma excursão à Vitória.

Essa estrada, inaugurada pelo Dr. Nilo Peçanha, creio que no último
mês da sua administração, é um verdadeiro desafogo
para o estado do Espírito Santo . Ela é tanto uma estrada estratégica
como um traço de união entre o progresso da capital da República
e a Vitória, e representa um golpe de alto tino administrativo do homem
que, como depois observei, à energia silenciosa de um esforço
incansável, alia a habilidade de um fino diplomata: o Dr. Jerônimo
Monteiro.

Quando esse senhor assumiu a presidência do Espírito Santo,
encontrou feito um trecho dessa estrada, entre a cidade da Vitória
e a do Cachoeiro, tendo, portanto, princípio e fim em terras do mesmo
estado, numa zona de insignificante produção agrícola
e pequeno movimento comercial. O custo desse trecho da estrada tinha sido
excessivamente caro e sua manutenção era incompensada, mesmo
onerosa. À vista desse embaraço econômico, o governo do
estado tomou a resolução progressista de o vender por preço
reduzidíssimo à Leopoldina, impondo-lhe a obrigação
de, em prazo determinado, inaugurar a viação férrea entre
Vitória e Niterói e exigindo ainda dessa Companhia outras obrigações
entre as quais figura a construção de uma grande ponte movediça
que ligue a cidade da Vitória ao continente. Houve naturalmente quem
pusessem as mãos na cabeça, clamando contra o desperdício
de ver vender por quase nada o que tanto dinheiro tinha custado ao estado;
mas tudo leva a crer que essas mesmas pessoas estejam hoje convencidas de
que, mesmo que o governo tivesse feito presente desse trecho de caminho de
ferro à Leopoldina, ainda assim teria lucrado com a transação.
Graças a esse rasgo administrativo, nem as pessoas nem os progressos
da Capital Federal precisam esperam, com oito dias de intervalo, o enjoativo
transporte marítimo, a fim de seguirem para a terra capixaba.

Estas primeiras informações foram-me fornecidas no próprio
trem por um viajante português, que eu conheci há anos no rio
de Janeiro e que é atualmente morador na Vitória. Nenhum laço
o prende à política nem às pessoas da representação
oficial. É, pois, uma voz insuspeita, a primeira voz que me revela
alguma coisa sobre a organização administrativa do Espírito
Santo.

É ainda esse viajante quem me aponta, na vertiginosa corrida do trem,
uma grande represa de águas e uma usina fornecedora de eletricidade.

— Então a cidade da Vitória…

— É iluminada a luz elétrica. Devemos também esse
melhoramento ao governo atual. E vai ver que boa luz!

— Antes, havia gás?

— Não; havia lampiões de querosene e lanternas. Quem
se aventurasse a sair à noite teria de levar luz consigo… Passar-se
do petróleo e da vela à lâmpada elétrica é
caminhar aos saltos!

Era já noite quando o trem parou na sua estação terminal,
em Argolas, em face da cidade da Vitória. A gare estava coberta de
povo, sendo grande parte dele constituído por senhoras, elegantemente
trajadas. A estação tem o caráter provisório;
é feia e de madeira. Espera naturalmente o lançamento da ponte
para se mudar definitivamente para a outra margem. Mas não há
tempo de olhar para isso, já as lanchas estão atracadas à
espera dos passageiros, e temos todos de saltar para elas sem perda de um
minuto.

Ainda não rompeu o luar, mas no céu de veludo azul ferrete
brilham os astros com um esplendor diamantino. Nas águas escuras tremeluzem
reflexos de ouro e de escarlate de várias luzes, as lanchas partem,
e em poucos minutos pisávamos o solo da Vitória, desembarcando
no Éden-parque. A cidade tinha uma feição alegre e tumultuosa,
a que não me referirei por ser anormal; somente posso assegurar que
ao adormecer, tarde, nessas noite no hotel, eu me sentia abalada pela doce
impressão de uma agradável surpresa.

II

Cidade de granito e de mangue – O estilo da cidade – Maria Ortiz
e os Holandeses – Casas comerciais – Uma esperança –
Uma crisálide que rompe o casulo abandonado – Vila Moscoso –
Um parque e duas avenidas – O quartel de Polícia – Lodaçais
e mangues que desaparecem – O hospital novo – Habitações
populares -A cidade acorda de um letargo – O Bairro do Rubim ou a cidade
de palha – Os telhados – A água – Os filtros –
Elementos de salubridade – O astro saudoso encarregado do policiamento
da cidade – A luz elétrica – Águas servidas –
Os esgotos – Quando as famílias dos oposicionistas devem discordar
dos seus chefes – O futuro Mercado – O futuro hotel – O
papel desempenhado pelos frascos de Fenol e de essências -Serviço
de limpeza pública e domiciliária – Em duas horas de passeio
– O Suá – A capela do Rosário – O palácio
presidencial; o cais do imperador; o jardim da Esplanada – Velhos conventos
– Maravilhosa transparência da atmosfera – Os astros –
Partida para Vila Velha.

Vitória, se não é, como a Lisboa cantada pelo poeta,
uma cidade de mármore e de granito, é uma cidade de granito
e de mangue.

A casaria apertada, no estilo das velhas cidades minhotas, encarrapita-se
pelo morro acima formando ladeiras e vielas que fazem, a quem as veja pela
primeira vez, pensar nas aventuras dos romances de capa e espada.

Aqui na rua estreita descendo em sucessivos lances de escadas entre prédios
altos, de janelas à antiga, de uma das quais Maria Ortiz despejou água
a ferver sobre os holandeses invasores; acolá a sinuosidade de um caminho
beirando as paredes de um convento ou de um colégio fundados pelos
jesuítas nos tempos coloniais e, de repente, um corte de terreno, de
onde se descortina o azul do mar ou o dorso verde das colinas da outra banda,
isto é, do continente.

Na linha plana, em baixo, as ruas comerciais têm muito maior movimento
do que eu poderia supor, à vista do que me diziam no Rio da apatia
do povo e do atraso do lugar. Nessa parte da cidade as casas, já com
fachada à moderna, infundem, muitas delas, a idéia da abastança
e da prosperidade.

Há coisas que não se vêem nem se explicam — sentem-se.
O ambiente de um lugar tem a sua voz que, embora intraduzível, nos
assegura se nele se vive com esperança ou desespero. E tudo, neste
torrãozinho pitoresco que é a velha cidade de Vitória,
me fala do futuro, porque, todo ele é uma esperança que lateja,
uma crisálide que rompe o tosco casulo abandonado para espanejar à
luz as asas multicores.

Basta olhar, de qualquer ponto em que se descortine uma área considerável,
para se observar o seu esforço de transformação. Os mangues,
a que aludi, começam a desaparecer sob as camadas do aterro. Na parte
baixa da cidade, em uma planície conquistada a um antigo e extenso
lodaçal, Vila Moscoso, vi o debuxo de duas avenidas e um parque já
com o leito do seu lago pronto e já combinadas as suas futuras sombras
pelo agrupamento das plantas, indicadas nos relvados nascentes.

Em frente a esse campo, agora todo drenado e enxuto, onde em vez de caranguejos
patinhando em lama correrão em breve as crianças por sob a galharia
das árvores benéficas, o Quartel de Polícia, livre agora
das umidades geradoras do béri-béri, que se infiltravam nas
suas paredes precipitando a ruína do edifício e a morte dos
soldados, firma-se em terra seca e mostra internamente condições
de higiene, que não sei se serão comuns em outros quartéis.
No alojamento das praças, por exemplo, vi camas com lastros de arame
revestido de sola. Essas camas são móveis, ficando durante o
dia suspensas, para que toda a sala livre e nua possa ser lavada sem estorvo.
O ofício rude do soldado é adoçado assim na sua hora
de repouso. Não tive tempo de visitar as aulas de leitura e de música
no curso policial, porque a minha visita a esse estabelecimento foi apenas
uma visita de passagem, matinal e apressada.

Não longe desse lodaçal desaparecido, está desaparecendo
também um mangue, engolido pelo aterro do hospital novo. Esse hospital
é edificado em pavilhões separados, quase concluídos,
olhando do alto de uma colina para a cidade e para o mar. Se bem entendi o
meu cicerone, para construírem esses pavilhões em terreno nivelado
fizeram um platô no alto da colina, e é com a terra tirada para
esse efeito que aterram o mangue próximo, saneando o local e prolongando
uma das ruas mais bonitas de Vitória, que é a avenida Schmidt.

Foi um curto passeio matinal que tive ocasião de observar estas coisa,
que desejaria descrever com absoluta clareza, porque tenho a convicção
que serviriam de estímulo a muitas atividades ainda adormecidas…

Realmente a impressão, que tive naquele curto passeio, foi uma alegre
impressão de trabalho.

Enquanto as carroças cobriam o lodo salgado com a terra seca do morro;
enquanto os trolhas e os pintores davam a última demão a uma
grande série de habitações populares higiênicas
e baratas, feitas por iniciativa do governo de acordo com um poderoso capitalista
do lugar, com quem contratou a edificação de duzentas casas
sob várias condições de preço, de tipo e de tamanho,
prestando com isso grande benefício à população
crescente da Vitória, enquanto as paredes do hospital novo cresciam
para refúgio de futuros padecimentos, cá em baixo na estrada
os engenheiros eletricistas se apressavam mandando a turma dos seus empregados
abrir covas no chão para os postes dos bondes elétricos.

A cidade acorda de um letargo de séculos e quer ganhar tempo aos saltos.

Foi no bairro Rubim, antigamente Cidade de Palha, que eu vi as obras, que
acabo de citar. Essa visita não figurava no programa estabelecido para
os seis dias da minha demora na Vitória.

Para ver a Cidade de Palha não roubei nada ao meu programa, mas roubei
ao meu sono algumas horas, que só no Rio recuperei. Pelo menos isto
indica que a Vitória tem que ver!

Vila Rubim
Vila Rubim

Que é a cidade de palha? Uma vila de operários, uma espécie
do nosso Morro de Santo Antônio, mas sem lixo, com alegria, com asseio,
com água. Até ao alto do mais alto barranco, onde se aninha
um casebre, ali vereis uma torneira jorrando água em abundância.

Antigamente todas as cobertas das habitações desse bairro eram
trançadas com folhas de palmeira ou com sapé.

Era o canto da pobreza, bem significativo e bem pitoresco, entretanto.

Numa colina, em frente ao canal que divide a ilha do continente, esse bairro
policromo e modesto dá a impressão de um quadro curioso, uma
grande tela coberta de borrõezinhos de tintas disseminadas sem ordem,
ao salpicar dos pincéis, pela mão fantasiosa de um paisagista
risonho.

Hoje as casas têm paredes caiadas, e a maioria delas é coberta
de telhas. Pode-se ainda assim, conforme observou o ilustre médico
que me acompanhava, presidente do Congresso espírito-santense sr. dr.
Júlio Leite, a cujo espírito e a cuja amabilidade seria ingratidão
muito feia não fazer eu aqui uma referência, estudar nesses telhados
da Vila Rubim, alinhados em vários planos como nas camadas geológicas,
as diferentes épocas da sua história.

Ao lado de um ou outro teto de palha ainda refratário, vê-se
um de zinco com a sua cor natural, para logo adiante aparecerem outros também
de zinco, mas já pintados de vermelhão ou verde, até
aos outros, de telha comum. Não será preciso esperar muito para
surgirem entre eles alguns de terraço, com as competentes balaustradas
e tinas para flores…

Mas a principal alegria para os habitantes do Rubim, como para os de toda
a cidade, é a água. Se para os ricos e os remediados a água
era ainda há três anos na Vitória um líquido quase
tão precioso como o Champagne, imagine-se o que seria para os operários,
que a não podiam comprar com a mesma facilidade, porque na estação
estival cada lata (das de querosene) cheia de água custava 200 réis,
500 réis e, quando a seca apertava, dez tostões e por muito
favor! Então ela era colhida dos mananciais escassos da ilha, distribuída
em quatro chafarizes da cidade, fora alguns poços para serventia pública.
Parece impossível que um tal estado de coisas pudesse durar perto de
um século, para só agora ser remediado, mas felizmente remediado
de um modo absoluto e definitivo. Disseram-me haver na Vitória água
pura para uma cidade de dez vezes maior população, e que haverá
em breve para uma cidade de cem vezes maior população, porque
está sendo atacada com vigor uma nova obra para abastecimento de água
aos arrabaldes do continente, bem como outra muito importante — que
é a construção dos filtros. A água sairá
já filtrada das torneiras, e não em pranto gotejado como outrora,
mas em torrentes copiosas.

Tanto este elemento de alegria e de salubridade como o da luz elétrica,
que substituiu as lâmpadas belgas a querosene que alumiavam as ruas,
com exceção das noites de luar, em quem de boa ou de má
vontade, o astro saudoso ficava encarregado do policiamento da cidade; tanto
esses dois melhoramentos como ainda o dos esgotos, inaugurado no ano passado,
deram tamanha popularidade na Vitória ao atual governo do Espírito
Santo, que não se pode deixar de falar num, e com justo louvor, sempre
que se tenha de falar da outra.

Até há bem pouco tempo era um problema saber-se nessa cidade,
em que a maioria das casas não tem quintais, onde atirar-se um pouco
de água servida, visto que nem sempre pode ser considerada obra meritória
vazar-se de uma varanda qualquer tachada de barrela a ferver sobre a cabeça
de quem passe, seja holandesa ou cabocla, pacífica ou belicosa.

Mas foi sobretudo o abastecimento da água, primeira comodidade estabelecida
pelo sr. Jerônimo Monteiro na capital do Espírito Santo, que
lhe granjeou a simpatia da cidade, e muito especialmente a de todas as donas
de casa. As próprias famílias dos oposicionistas discordam com
certeza dos seus chefes sempre que abrem as torneiras dos seus banheiros ou
das suas cozinhas.

A par das obras que observei nessa excursão matinal, citam-me outras
já contratadas e com proteção do governo, como por exemplo
o mercado. O de agora será substituído por um outro de ferro
e de vidro, com aquário para peixes e câmaras frigoríficas
para carnes e frutas. Falam-se também da construção de
um hotel com cerca de oitenta quartos e todos os rigores da higiene e do conforto
moderno, preocupação que não pode ser adiada, porque
já é considerável o número de forasteiros nessa
cidade. E esse número crescerá em pouco tempo enormemente, sem
a menor dúvida.

Volto para o meu hotel com a cabeça cheia de surpresas. Realmente,
será esta a gente apática, de que me falavam, e esta a cidade
fétida atapetada de lixo? Para certificar-me ainda, chego à
janela do meu quarto. Em frente, a ladeira da Matriz sobe apertada entre casaria
de paredes brancas; em baixo, ondeia outra rua edificada em estilo mais moderno.
Olhei: tanto uma como outra estavam limpas. Inclinei-me da sacada, dilatei
as narinas no esforço de perceber a qualidade do cheiro dessa cidade
marítima. Não senti nada. Se nas varandas não havia rosas,
também nas portas não havia lixo. Lembrei-me então dos
meus vidros de fenol e de essências, ainda arrolhados, e não
pude deixar de sorrir.

Contando eu isto a algumas pessoas nesse mesmo dia, retrucaram-me que na
verdade até pouco tempo o leito das ruas da Vitória permanecia
por longas horas enfeitado por pequenos montículos de retalhos e de
detritos de toda a espécie. O atual governo estabeleceu o serviço
de limpeza e de higiene pública e domiciliária, de modo a fazer
cessar por completo essa vergonhosa exibição de imundícies.

Em duas horas de passeio, feito ora de bonde, ora a pé, tive assim
nessa manhã ensejo de observar, colhendo-a a bem dizer, em flagrante,
a ânsia de progresso que se está desenvolvendo na capital do
Espírito Santo, essa pequena cidade, hoje de tão originais aspectos
e tão alegres coloridos e destinada a ser em futuro não remoto
um grande empório marítimo; assim lhe sucedam a este atual outros
governos igualmente patrióticos e ativos.

Em contraposição ao bairro dos operários, a antiga Cidade
de Palha, há o bairro elegante da Praia do Suá, preferido por
toda a gente que pode hoje na Vitória construir um chalé ou
um palacete, Fica um pouco distante do centro. Corresponde em ponto muito
mais pequeno e em relação à cidade à nossa Copacabana.
Demais a mais, é a melhor, se não única praia de banhos
da Vitória, e parece que muito concorrida, pela facilidade de condução,
indo o bonde até à praia em viagens amiudadas. O bonde atravessa
grandes extensões ainda por edificar, ora em linhas retas, ora em estradas
curvas marginando golfos e mangues. Mas esses mangues estarão em breve
cobertos de bosques de eucaliptos e essas colinas alegradas pelos talhões
das hortas e dos jardins.

Praia de Banhos Suá
Praia de Banhos Suá

O seu destino está escrito pelo progresso da cidade que desperta,
guardada à vista pelo penhasco majestoso do Penedo, que desempenha
na baía da Vitória, com mais austeridade, o mesmo papel ornamental
do nosso Pão de Açúcar.

Conquanto a cidade seja constituída num terreno rochoso, há
nela em vários pontos alguns tufos de vegetação forte
de um verde intenso, como um, do qual se destaca o palacete do coronel Guaraná,
e o outro que serve de fundo à capela do Rosário, que se vê
de longe com a sua branca escadaria de pedra e o seu adro cingido de pilastras
e de grades.

Como em toda a parte do mundo por onde andem, os jesuítas souberam
escolher na Vitória os pontos mais culminantes e melhores para suas
edificações. Dá disso testemunho o próprio palácio
presidencial, que é um antigo convento construído na parte alta
da cidade, e dominando por uma das suas faces laterais uma larga escadaria
de pedra que vai até a baixo, o cais do Imperador. Em frente à
sua fachada principal há um novo jardim, de esplanada, sustentado por
muralhas, e onde duas vezes por semana tocam as bandas locais para alegrar
o povo. Junto ao palácio, tem a igreja de S. Tiago, que não
visitei, como não visitei também o velho convento de S. Francisco,
o que lamento, porque deve haver dentro deles algum assunto antigo e artístico
digno de atenção. Nem ousei falar nisso, porque havia um programa
a cumprir, e eu começava a perceber que a pequena e tão singular
cidade de Vitória não se mostrava toda em poucos dias a ninguém.

O que notei ali desde o primeiro dia até ao último, foi uma
admirável transparência na atmosfera, uma claridade puríssima
que envolvia as coisas, fazendo-as realçar com todos os seus detalhes.

Essa nitidez que deleitava os meus olhos deve fazer o desespero dos pintores
que tentem passar para a tela as encantadoras paisagens espírito-santenses.
Águas, troncos, pedras, galharias de árvores, telhados de casas
ou barrancos de estradas, não se dissimulam nem se fazem adivinhar
sob nenhum véu de névoa que os idealize; mostram-se cruamente,
nuamente, em todas as minúcias da sua cor e da sua contextura. O céu
tem por isso tintas de um fulgor delicioso, manhãs de turquesa líquida,
crepúsculos cor de rosa que tingem de vermelho as águas fundas
do mar. Mas é sobretudo à noite, que na sua transparência
e profundidade o firmamento mais se embeleza pelo clarão lucilante
dos seus astros.

Mas não nos detenhamos a olhar para as estrelas feiticeiras, porque
é tempo de tomar a lancha e partirmos para Vila Velha.

III

A baía da Vitória – Um canteiro ambulante de papoulas
– Vila Velha – O fim destes artigos – Um período
de transformação – A sociedade – Pedro Palácios
– O Convento da Penha – Um quadro de Velasquez – Efeitos
da fé – A construção do Convento no alto da Penha
– Rivalidade de Vila Velha e da Vitória – A Diamantina
e seus prodígios futuros – Ladeira mais fácil de subir
que descer – Promessas – Hospedagem fidalga – Escolas –
Governo Municipal de Vila Velha – Fortaleza de Piratininga – Beleza
do local – Ordem do estabelecimento – Ginástica sueca –
"Five o’clock tea" – Doçura ambiente – Volta
à Vitória.

Eram oito horas da manhã, quando "Santa Cruz" zarpou da
Vitória com rumo à cidade do Espírito Santo.

Ora, até que enfim, ia eu ver essa poética baía tão
recomendada pelos poetas e pelos navegantes. Propensa às contemplações
da natureza, desviei a atenção das pessoas que me rodeavam,
o que posso garantir não ser coisa fácil, visto que a sociedade
da Vitória tem na singeleza do seu trato seduções imperiosas,
e abri bem os olhos para as maravilhas dessa porção de mar em
que a "Santa Cruz" ia estendendo o lençol do seu rasto escumoso.

A quem já conhece a baía Guanabara parece impossível
poder encontrar motivo de admiração em outra baía, de
mais a mais do mesmo país, o que quer dizer da mesma natureza e a pequena
distância, relativamente. E, todavia, encontra-o. A da Vitória
tem surpresas. Toda ela é feiticeira, toda ela é um misto de
poema e de graça, de transparências lúcidas e de recortes
airosos. Porque eu levasse talvez nos olhos a impressão majestosa da
baía do Rio, tudo nessa do Espírito Santo me parecia de proporções
reduzidas e tendo nisso mesmo um encanto muito peculiar e muito interessante.
As montanhas que a rodeiam não assombram ninguém; guardam proporções
perfeitamente compreensíveis e de uma normalidade de formas quase inquietante.

Em certos pontos, quem está dentro dela pode julgar-se em um lago,
tanto a conformação das terras que a cingem parece isolá-la
do grande Atlântico.

Alguém, dentro da lancha, chama a minha atenção para
os pontos mais pitorescos: aqui uma ilhota; acolá uma linha branca
de praia, ou a habitação de um inglês, de bom gosto, numa
colina solitária e verde, ou um bosque à beira da água.
No cimo de tal montanha azul, cujo nome a minha triste memória esqueceu,
descrevem-me uma cavidade natural, para onde os índios atiravam os
seus mortos.

Ficava assim o seu alto cemitério de fácil comunicação
com o céu.

Reconheço de longe a graciosa Praia do Suá com as suas barracas
brancas ainda armadas para os banhistas; e perto o forte de S. João,
Penedo, e o contorno de terras vistas na véspera. O mar está
de um azul veemente. Cruzamos com outra lancha, em que escolares de vestidos
escarlates, uniforme dos colégios, fazem lembrar a floração
de papoulas num canteiro ambulante.

Sacodem-se lenços, mas já alguém me faz voltar a cabeça
para a Pedra dos Ovos, ilhota que lembra as da vizinhança de Paquetá.

Seria estultice tentar sequer descrever com esta minha pena rombuda e trôpega
o encanto das terras, que circundam a baía da Vitória. De resto,
o fim destes artigos não é fazer literatura, mas dar, com a
possível clareza, idéia do movimento de um dos nossos estados
de menores recursos e em um período que é para ele, positivamente,
de transformação.

Foi a verificação deste fato que me impulsionou a escrever
estas linhas, com a esperança de que elas possam servir de alento a
outros estados de mais frouxa iniciativa.

Fique, pois, entendido que a baía da Vitória não desmentiu,
antes confirmou absolutamente todo o bem, que dela me tinham dito, e que foi
com os olhos cheios da sua beleza que aportei a Vila Velha, primeiro pouso
desse desventurado boêmio Vasco Fernandes Coutinho, a quem por mercê
de D. João III foi doada a capitania do Espírito Santo.

Rodeada, ali como na Vitória, por uma sociedade fina e carinhosa,
empreendi corajosamente a subida do convento da Penha, proeza de que me sinto
ainda agora um pouquinho espantada. Não sei a quantos metros de altura
fica esse templo, mas posso assegurar que jamais pisei rampas mais resvaladiças
nem mais íngremes do que as da Penha, em que ele está assente.

Antes de subir, para que eu tomasse fôlego, levaram-me a ver, perto
do portão da entrada, uma pequena gruta natural, onde um frade, frei
Pedro Palácios, salvo de um naufrágio, se acolheu, ou antes
se escondeu, talvez com medo dos índios, guardando consigo um registo
a óleo da Senhora da Penha, que atribuem a Velasquez, não sei
por quê, e que também não sei como pode escapar são
e perfeito do naufrágio aludido. Mas lendas não são assuntos
de comentário neste gênero de artigos meramente descritivos,
não se podendo gastar com eles senão o tempo da referência.
Não sei quantos dias viveu frei Palácios agachado no seu obscuro
buraco, sob uma lapa suspensa e úmida.

O caso espantoso não é esse; o caso espantoso é que
todas as noites o quadro a óleo da Senhora da Penha, com o seu bendito
filho nos braços, via na gruta da planície adormecer o frade
em santa paz, para, ao romper da aurora, aparecer bem do alto da alta penha,
em que vive agora definitivamente! O poder do milagre fez os seus efeitos.
índios e colonos, tocados por ele, consentiram em carregar à
cabeça as pedras, as madeiras, todos os materiais, enfim, com que lá
em cima se construiu o grande convento, com a sua torre quadrangular, a sua
capela, em que a obra de talha conserva a cor natural da madeira em que é
feita, as suas grandes cisternas, porque não havendo fontes no morro
seria preciso prevenirem-se para conservar as águas da chuva; as suas
celas e corredores e as suas escadarias e terraços. Bem como as pedras,
foi carregada à cabeça a água com que se argamassou o
barro e a areia para edificação de tantas e tão grossas
paredes!

O caso espanta o touriste, mesmo o menos impressionável, e que ainda
arquejante dá por bem empregado o esfalfamento da subida, quando lá
em cima espalha a vista pelo panorama em redor e vê de um lado o mar,
de que emergem aqui e além dorsos de rochas ou pontas de serras de
vários cambiantes, estendendo-se depois azul e largo até ao
infinito horizonte. Em baixo, a grande planície de Vila Velha, verde-clara
e branca, toda ela coberta de gramíneas curtas e de areais, com os
seus grupos de casas aqui e além, ruas bem alinhadas e campos cortados
de esteiros, que lampejam ao sol e que ali estão à espera da
futura cidade, que os há de aproveitar como elemento de graça,
margeando-os de árvores, cobrindo-os de longe em longe por pontes elegantes.

Parece-me perceber uma certa rivalidade entre Vila Velha e Vitória,
mas essa rabugice ingênua desaparecerá logo que as duas cidades
formem uma só, ligada que seja a ilha ao continente pela ponte móvel
da Leopoldina. Se as distâncias hoje são grandes entre si, também
grande será o incremento dado à capital do Espírito Santo
pela Estrada de Ferro da Leopoldina, destinada a transformar o porto da Vitória
num dos portos mais ativos do Brasil.

Calculam-se já as toneladas de ferro bruto, que os comboios dessa
estrada trarão diariamente de Minas e dos confins do próprio
estado do Espírito Santo, para despejarem nos porões dos transatlânticos
estrangeiros à sua espera na Vitória, e o número dessas
toneladas atinge a uma soma enorme. Mas, voltemos a falar do convento.

Como a ladeira do fado português, que é mais fácil de
subir que de descer, porque ao subi-Ia levava o namorado a esperança
de ver lá em cima a sua amada, e descendo-a já vinha carregado
de saudades suas — assim, mas por outras razões, está
claro, é a do convento da Penha de Vila Velha.

Para cima, o peito arfa, mas os pés não escorregam; para baixo,
é necessário vir-se executando prodígios de equilíbrio
para não se cair redondamente sobre os duros calhaus denegridos e lustrosos,
que revestem o solo. E ao pisá-los pensa a gente com espanto na resistência
de certas criaturas, que sobem aquelas rampas de rastos por promessa, chegando
a cima quase exânimes, ensangüentadas, mas, enfim, ainda vivas!

Parece que hoje não são permitidos tais excessos e que mesmo
as ofertas de cera, de cabelos, de trabalhos a miçanga e de quadrinhos
ingênuos e grotescos, que ali, como em todos os templos milagrosos,
cobrem as paredes das sacristias, vão ser pouco a pouco substituídas
por pequenas placas de mármore com o voto do ofertante.

Creio bem que a imaginação do povo relute em aceitar essa substituição,
não encontrando na pedra fria o símbolo correspondente ao ardor
da sua fé.

Chegamos a baixo com os joelhos trêmulos, mas com os pulmões
revigorados por um grande hausto de ar puro e livre, e trazendo para sempre
refletida nos olhos a visão maravilhosa dessas terras e rochedos, desse
imenso mar, e desse imenso céu todo azul e ouro.

Escola de Aprendizes Marinheiros
Escola de Aprendizes Marinheiros

Depois de algumas horas de repouso numa hospedagem fidalga, de uma visita
ao governo municipal de Vila Velha e outras visitas aos colégios públicos
do lugar, cujas aulas estavam repletas de crianças robustas e alegres,
seguimos por uma linda estrada para a Fortaleza de Piratininga, Escola de
Aprendizes Marinheiros.

Tinha de notável essa estrada, perfeitamente construída, ter
sido feita pelos aprendizes da Escola, sob a direção de um dos
seus oficiais. E eis aí uma iniciativa, que deve ter lisonjeado a municipalidade
de Vila Velha, por facilitar a comunicação do povo da terra
com a pitoresca e velha fortaleza. Aí, ao transpor o portão
da entrada, não tive a impressão de penetrar numa praça
militar, mas num belo e vasto parque de castelo europeu, com as suas largas
alfombras veludosas e as suas aléias de belas perspectivas.

O local é amplo, todo numa curva de terra beijada pelo mar. No pátio
do edifício, de forma convexa, tocava a banda dos aprendizes com muito
garbo e afinação, embora constituída havia poucos meses.

O diretor da Escola, comandante Maurício Pirajá, oficial distinto
e que alia às suas qualidades de militar severo as de um perfeito gentleman,
teve a delicadeza de percorrer conosco todo o estabelecimento: enfermaria,
farmácia, alojamentos, aulas, refeitório, cozinha, lavanderia
e paiol, fazendo notar em tudo o maior asseio e a ordem mais absoluta.

Sobre uma das portas da fortaleza, hoje remoçada e até florida,
vê-se ainda, como documento histórico, uma pedra gravada com
dizeres no português do tempo relativos à sua fundação.

Depois de ter percorrido todo o interior do edifício saí, a
ver no parque os exercícios de ginástica sueca executados com
precisão admirável pelos menores.

De cima de um terraço eu dominava o grande tapete relvado onde os
aprendizes, dirigidos por um companheiro, faziam ao mesmo tempo que ele todos
os movimentos disciplinares, do mais suave ao mais torturado, como se os músculos
de todos eles obedecessem a um só maquinismo e a uma só vontade.

A tarde estava de um encanto inesquecível. Numa parte do jardim lateral
do edifício, uma grande quantidade de pequeninas mesas brancas e floridas
para o five o’clock, e dispostas com arte de modo a poderem os que estavam
em uma delas ver os que estavam em outras, traziam à lembrança
naquele cenário de macias relvas, de praias claras, em que o murmúrio
das ondas se casava ao ramalhar das árvores e ao som dá música
ao ar livre, cenas de outros lugares distantes, talvez Nice, talvez Cannes…

E até sol-posto foi um rumor alegre de vozes naquele jardim, e um
correr de meninos pelos gramados, tachonando-os com as cores alegres dos seus
vestidos e dos seus chapéus floridos.

E se o mar não prometesse mau embarque, ali ficaríamos até
o romper do luar, para navegarmos depois em mar de prata e gozarmos por mais
tempo as doçuras daquele ambiente delicioso…

IV

Ora, pois, abro um parêntese na série destes artigos descritivos,
para me referir a um fato, que nos impressionou a todos no Rio de Janeiro,
porque teve na imprensa carioca uma horrível repercussão. Não
é preciso uma extraordinária perspicácia para se adivinhar
qual ele seja; já o leitor percebeu que aludo ao contrato feito pelo
Governo do Estado do Espírito Santo com a firma Lichtenfels & Cª
para exploração de matas do Estado e desenvolvimento da sua
imigração.

Quando parti para a cidade da Vitória levava o espírito apoquentado
por esse assunto e vou dizer por quê, para que não pareça
exagerada a minha sensibilidade. É o caso que desde que peguei na pena,
resolvida a escrever para o público, me arvorei, por minha conta própria,
em advogada das nossas árvores urbanas e florestais.

Corajosamente, sem medo de criar com a minha insistência fama de monótona
a propósito de tudo, e manda a boa verdade dizer que muitas vezes fora
de propósito, procurei sempre fazer entre nós a propaganda da
árvore e da flor, e, se a minha vaidade, ou veleidade, já se
tem consolado com alguns triunfos nesse sentido, confesso que ainda estou
bem longe de ver confirmados todos os meus propósitos. Tendo em artigos
de jornais, em conferências, em livros, clamado sempre contra a devastação
inútil das nossas matas e a favor do plantio e replantio do arvoredo
benéfico, é fácil de imaginar qual seria a minha opinião
em face desse famoso contrato, destinado, segundo diziam, a desnudar por uma
miséria a linda terra espírito-santense!

E, por isso mesmo, porque esse assunto me interessasse vivamente, ardia em
curiosidade de indagar de alguém bem informado todos os seus detalhes
e circunstâncias, não ousando fazê-lo, com receio de ferir
susceptibilidades e melindres, tanto o caso me parecia monstruoso.

Em face, porém, dos progressos que via realizados na Vitória
e que me atestavam a boa orientação do Governo do Espírito
Santo, comecei a duvidar do meu critério anterior, e, sem poder sopitar
curiosidades, pedi a alguém, cujo espírito me pareceu Imparcial
e justo, que me demonstrasse o verdadeiro espírito da questão.
A nossa palestra, no pacato recanto do velho salão do hotel, foi rápida
e concisa. O meu ilustre informante afirmou, com espanto para mim, considerar
o contrato, em volta do qual se levantou tanta celeuma, de magníficos
resultados para o Estado, acrescentando:

"Minha senhora, não se podem abrir estradas em matarias; fazer
vilas em pontos disseminados dos sertões para colônias agrárias;
cultivar terras até hoje inexploradas, sem que muitas árvores
das florestas gemam sob os golpes do machado derrubador. O progresso também
faz as suas vítimas, e parece-me de boa política aproveitar-lhes
os corpos inermes, não para aquecer locomotivas das estradas de ferro,
como se faz em alguns Iugares, mas para convertê-Ias em dinheiro para
os magros cofres do Estado. Já que se interessa pelo assunto, eu lhe
arranjarei algumas notas positivas a seu respeito. Os meus vagares de aposentado
permitem-me esse trabalho."

A palavra foi cumprida. As notas vieram, e é sobre elas que ou escrevo
estas linhas.

Entre os problemas nacionais, que mais nos preocupam, existe um que no conceito
geral merece a primazia:

"Atrair imigrantes o localizá-los definitivamente no país."

Não há sacrifícios a que não nos tenhamos submetido
para conseguir semelhante resultado, e ainda a esta hora até humilhações
recebemos mesmo das nações de 2a ordem em troca deste triste
papel de mendigos de colonos que representarmos, batendo às portas
de quem abertamente nos repele e injuria.

Espalhar agentes pelo mundo civilizado, subvencionar a imprensa, banquetear
autoridades, derramar folhetos e mapas em todas as línguas, pagar passagens
em linhas terrestres e marítimas, fazer gastos com alojamentos, alimentação,
assistência de toda ordem, despender com transportes, salários,
adiantamentos, ferramentas, sementes, casas e até com caprichos, eis
o que nos custa o agenciamento de meia dúzia de colonos, que, não
raro, meses depois nos abandonam em busca da Argentina, ou se transformam
em mascates drenadores de nossas economias para o Oriente.

Mas não é tudo: — Os núcleos exigem direção,
fiscais, intérpretes, instrutores, escolas, boas estradas, cercados
seguros, mercados garantidos, centros industriais e outros complementos, representando
no conjunto avultado dispêndio, arriscado e aleatório. Tomemos
no Brasil os últimos quatro anos; somemos as quantias todas empregadas
com a introdução e manutenção de imigrantes, computadas
as despesas acima enumeradas, o dividamo-las pelo número de famílias
realmente localizadas.

— Qual o resultado? Nem com dois contos de réis conseguiremos
representar a quota de cada uma!

A colônia Afonso Pena custara ao Estado do Espírito Santo mais
de 120 contos de réis ao ser transferida à União e, no
entanto, não recebera ainda um só colono. Rios de dinheiro tem
custado ao Governo o núcleo Itatiaia; e quais as suas atuais condições?
Que produz? Que importância representa para atrair imigrantes?

De agora em diante a imigração vai-se tornar cada vez mais
difícil e dispendiosa, porque pouco a pouco nos estão fechando
os portos as nações, onde nos habituáramos a abastecer-nos.
Mas não levemos em conta essa circunstância e digamos que cada
família introduzida e localizada em nosso país, de bons imigrantes,
vale somente por dois contos de réis. É essa quantia que em
plena consciência e acertadamente está buscando aplicar a União
para povoar alguns dos nossos Estados, entre outros o Paraná, Minas
e mesmo (em escala reduzida) o Espírito Santo.

Este Estado que, todo ele com uma superfície superior várias
vezes à da Bélgica, não conta senão duzentos mil
habitantes, isto é a quinta parte, tão somente, da população
do Rio de Janeiro, precisa antes de tudo cuidar de povoar o seu território,
coberto em grande parte de matas e montanhas.

Preocupação constante de alguns dos seus governos, não
tardou que se lhes apresentasse como insolúvel o problema, em face
da renda exígua do Tesouro, dificilmente mantida, ainda assim, por
uma população pobre e desaparelhada.

Foi em uma situação de tal ordem que, ao atual presidente do
Estado, se apresentou a casa Lichtenfels & Cª pretendendo extrair
madeiras do Estado, alegando dispor de facilidades excepcionais para lhe colonizar
o território. Era a solução que se oferecia, afinal,
tão ansiosamente buscada, por isso, após acurado estudo, tendente
a harmonizar os recíprocos interesses, o acordo se estabeleceu, traduzido
em um contrato que é uma glória para o Governo, a despeito dos
repetidos mais infundados ataques, de que tem sido alvo até por quem
confessa nunca ter lido as cláusulas que firmaram na transação.

A casa contratante viu diante de si terras abundantes, cobertas de cerradas
matas virgens, e muito naturalmente acreditou que mediante um bem estudado
plano de exploração, apoiado em um conjunto de medidas que mutuamente
se auxiliassem, poderia gerar para os capitais, com que contava, uma razoável
fonte de renda. Sabia onde encontrar colonos, que acudissem ao seu chamado
e viessem ocupar as terras oferecidas, não somente sem lhe exigir as
despesas, a que jamais se podem furtar os governos no pagamento e colocação
de imigrantes, como dos mesmos colonos recebendo até, e muito justamente,
uma certa soma pelo patrimônio recém-adquirido.

Para tornar acessíveis os núcleos projetados seria necessário
construir centenas de quilômetros de estradas de rodagem, mediante uma
despesa inevitável e sem duvida no valor de muitas centenas de contos
de réis, mas era possível atenuá-la utilizando essas
novas vias de comunicação com o transporte de madeiras até
os rios navegáveis ou as linhas férreas em tráfego.

Esse plano inteligente, governo algum poderia utilizá-lo, porque se
existe trabalho fora do alcance dos meios oficiais, esse trabalho é
sem dúvida o de explorar madeiras. Assim, aquilo que seria ruinoso
e inexeqüível para o Governo, tornava-se nas mãos de um
particular arguto uma medida complementar de alto valor econômico.

Cumpre acentuar que a exploração de madeiras, no Brasil, somente
pode ser lucrativa se aquele que as quiser extrair dispuser de abundantes
capitais e estiver seguro dê lhe não faltarem avultadas reservas
de matas que assegurem compensações pelas despesas a fazer com
a abertura de estradas e com a indispensável e dispendiosa organização
comercial, que o abrigue contra o ruinoso monopólio exercido por meia
dúzia de casas da praça do Rio. Não fora a necessidade
de tais reservas e certamente a casa contratante preferiria comprar madeiras
em matas particulares à razão de um ou dois mil réis
o metro cúbico — como é corrente no interior do Estado
— a pagá-las a 5$000 em regiões desprovidas de meios de
transporte e de população. Só os que não conhecem
o assunto acreditarão que 800.000 metros cúbicos de madeiras
nas brenhas de um Estado despovoado podem fornecer 20 a 30 mil contos de lucros
aos que se abalançaram a extraí-las. Basta refletir que é
9$000 a diferença apontada entre os ônus fiscais que gravam os
atuais possuidores de matas e os que vão pesar sobre o novo contratante,
para, feitos os cálculos, verificar-se que o lucro, se o houvesse,
seria no máximo de 9$000 vezes 800.000, isto é, 7.200 contos,
tão-somente.

Esse lucro, conforme deixamos dito, só se verificaria se o contratante
não fosse onerado de outros encargos e se obtivesse as suas madeiras
ao longo das estradas ou dos rios navegáveis, como acontece com os
terrenos particulares. No entanto, nada disso acontece; muito ao contrário.
Assim, pois, o contratante só poderá ter lucros (e é
muito justo que os tenha), nas seguintes condições:

1º, se dispuser de grandes capitais;

2º, se puder, sem despesas, atrair colonos para o Estado, colonos que
tenham recursos e sejam realmente agricultores;

3º, se tiver tino comercial para bem colocar as madeiras que extrair;

4º, se desenvolver qualidades administrativas para, de modo econômico,
extrair e transportar as madeiras contidas nas matas devolutas, que lhe forem
concedidas.

Aceitando ele o contrato, é de presumir que possua esses requisitos:
será para o Espírito Santo uma felicidade, que assim seja!

E o Governo sob que móveis agiu?

O seu pensamento fundamental foi colonizar o Estado. Como consegui-lo? Sendo
dispendioso e difícil realizar tão legítima aspiração,
um caminho somente se oferecia a quem não dispunha de dinheiro: ceder
terras e o que nelas se contivesse, em troca dos braços que deverão
cultivá-las, para enriquecimento do Estado. Ceder gratuitamente terras
devolutas a colonos. Que é que fazem os Estados, às claras,
doando-as ou, veladamente, vendendo-as a preços irrisórios,
sem juros, a prazos que sempre se prorrogam e mediante pagamento proveniente
do salários elevados, pagos por compromissos formais o expressos pelos
cofres oficiais? Milhares de hectares recebeu do Estado a União a título
gratuito, quando lhe foi transferido a Colônia Afonso Pena, mediante
menos ainda da quantia, que em benfeitorias despendera o Governo que a fundara.
Por que motivo não investiram contra ambos? O complemento da paga ao
contratante forneceu-o o Governo dispensando de impostos a madeira das terras
cedidas. Examinemos, para fulminá-lo, o ato perdulário. A madeira
em causa é das terras devolutas. Esta, se não fosse dispensada
do imposto, não seria evidentemente exportada, porque outras, ao longo
das linhas de transporte, existem que se vendem por menos de cinco mil réis,
preço cobrado pelo Governo no contrato. E nesse caso, que sorte teriam
tais madeiras?

Seriam queimadas sem proveito para ninguém.

Com efeito, sendo impossível colonizar terras sem lhes derrubar as
matas e transformá-las em culturas, claro é que em breve estariam
reduzidas a cinzas as suas madeiras. E é Isso mesmo que se tem feito
em toda a parte, a despeito de estéreis clamores da imprensa e das
vãs promessas interventoras das administrações. Assim,
o Governo dispensou de impostos aquilo que jamais poderia ser taxado, porque
estava condenado a ser devorado nas queimadas.

Vendendo árvores por 4 mil contos, o Governo salvou para o Estado
essa grande soma. Foi hábil e tornou-se um benemérito.

Cem contos, que as matas produzissem, já seria uma bela conquista
ao incêndio. Quando, porém, não militassem tão
justos motivos para a transação, é fácil demonstrar
que o preço de 5$000 por metro cúbico de madeira em pé,
nos sertões do Espírito Santo, não é um preço
baixo. Informem-se dos preços vigentes em regiões mais acessíveis,
e verão que ninguém vende por mais, nem por tanto. Próximo
à linha da Leopoldina, na Serra do Frade, em Macaé, as madeiras
escolhidas podem ser e são compradas a 2 e 3 mil réis o metro,
se não menos. E ainda mais perto, à margem da Central, a 3 léguas
apenas de distância, paga-se 3 a 4 mil réis, somente, pela mesma
unidade de madeira de 1a classe em árvore. Se levantam os preços,
afastam-se os compradores o não tarda então que o fogo realize
a sua obra…

Eis aí os fatos esmagadores, que não receiam contestação.

Mas, na realidade, por quanto foram vendidos os 80.000 metros cúbicos
de madeira que figuram no contrato? Vejamos:

  Contos de réis
1º Em dinheiro 4.000
2º Como renda dessa quantia, por ter sido fornecia adiantada.
Sendo de 10 anos o prazo concedido, tomemos metade desse prazo para
média do tempo, em que devem ser contados os juros, que suporemos
de 7,5% ao ano, teremos: 4.000 contos, a 7,5% ao ano, em 5 anos
1.500
3º Custo de introdução e localização
de 3.500 famílias a 1 conto de réis somente (em lugar
de 2 contos)
3.500
Total de 9.000

Eis o que diretamente vai receber o Estado pelos 800.000 metros cúbicos
de madeira, em árvore, nos sertões do Espírito Santo.

Em árvores disputadas ao fogo! Mas de modo menos expresso, mas não
menos categórico, são bem maiores os serviços e vantagens
auferidos pelo Estado no contrato. Em primeiro lugar há a obrigação
de introduzir mais 300 famílias para a lavoura, e isso não vale
menos de 200 a 300 contos de réis. Em segundo lugar, em virtude da
cláusula 35a combinada com a cláusula 3a, obrigou-se o contratante
a introduzir mais 1400 famílias, sob pena de reverterem ao domínio
do Governo os lotes a elas destinados. Eis aí mais uma verba de mil
contos, pelo menos. Em resumo: as vantagens do Governo, traduzidas em dinheiro,
não somam menos de 10 a 11 mil contos de réis.

As conseqüências de outra ordem são extraordinárias
para o Estado:

1º – O número de imigrantes, que nele se deverão
localizar, será de cerca de 20.000. Ora, sendo de 200.000 apenas o
número total de habitantes do Estado, conclui-se que a sua população
vai ser de pronto aumentada em 10%.

E esse colossal resultado se fará sem ônus ou incômodos
de qualquer natureza para o Governo Federal.

2º – Sendo, no presente momento, de cerca de 40.000 contos de
réis o valor da produção do Estado, é lícito
admitir que essa produção será em breve elevada de 10%,
isto é, a 44.000 contos, só por influência do contrato.

3º – A renda fiscal do Estado, avaliada no corrente ano em cinco
mil contos, poderá em breve, sob aquela mesma influência, elevar-se
a 5.500 contos.

Se se quisesse aprofundar o estudo dos resultados da introdução
e localização de 3.500 famílias nas terras devolutas
do Estado do Espírito Santo, a abertura de estradas, daí decorrentes,
a movimentação do interior atualmente despovoado, a repercussão
no país de origem dos colonos, e inúmeros outros efeitos evidentes,
não haveria louvores bastantes para galardoar o ato de quem assinou
o novo contrato. Se este se realizar, como tudo faz prever, acontecerá
com este caso o mesmo que se passou com outros na apreciação
dos atos administrativos do atual Governo: as mais acerbas criticas e os mais
sombrios vaticínios seguidos dos mais retumbantes sucessos. Argüiu-se
de ruinosa loucura a execução das obras que deram água,
luz e esgotos à Capital. — "Despender 3.000 contos era empobrecer
o Estado, porque, se a obra se fizesse, não daria senão prejuízos"
— eis o que de todos os lados se ouvia.

Pois bem! Fizeram-se as obras. Não são passados senão
meses, e aquilo que custou 2.500 contos está vendido por mais de 5.000.
O Governo fez construir casas na Capital, e não faltou quem condenasse
a resolução. Resultado: as casas estão sendo disputadas
e não bastam para as necessidades da população acrescida.
O mesmo acontecerá ao contrato das madeiras e a quantos atos administrativos
praticar o Governo, inspirado pela confiança nas condições
naturais daquele solo privilegiado, na energia de seus filhos e no futuro
brilhante, que aguarda o Estado do Espírito Santo.

***

A estas informações, que aqui ficam expostas, vieram juntar-se
ainda, a meu pedido: um esquema representativo da superfície do Estado
do Espírito Santo, contendo os terrenos ocupados, os devolutos e a
área suficiente para a extração de 800.000 metros cúbicos
de madeiras, e mais as seguintes ponderações sobre o mesmo assunto:

Se considerarmos um hectare de terras cobertas por mata virgem, podemos representar
esta área por um quadrado que tem 100 metros de lado.

Se supusermos que haja apenas uma árvore de 20 em 20 metros, teremos,
que em um hectare existirão 5×5, ou 25 árvores. Tendo cada uma
dessas árvores, em média, três metros cúbicos,
teremos 75 metros cúbicos de madeira em um hectare, e, portanto, em
10.667 hectares encontraremos 800.025 metros cúbicos de madeira.

A área 10.667 hectares é equivalente à de um retângulo
cujos lados são: 10.667 e 10.000 metros. Neste retângulo não
há lado que atinja sequer a duas léguas, pois o maior lado tem
uma légua, três quartos e uma pequena fração, e
o menor tem exatamente uma légua e três quartos.

O Estado tem cerca de 6.000.000 de hectares de terras devolutas, e há
proprietários no Espírito Santo de duas e meia sesmarias cobertas
de matas virgens ou de 2.222,5 alqueires, área esta que representa
1/282 aproximados dos 3.000.000 de hectares. Esses proprietários poderiam,
pois, extrair e exportar os 800.000 metros cúbicos de madeiras.

O contrato para extração dos 800.000 metros cúbicos
de madeira estabelece a obrigação da fundação
de sete núcleos coloniais por parte da firma concessionária.
Será feita para cada uma das "500 famílias" de colonos,
que compõem cada núcleo, uma derribada de 5 hectares.

Já vimos acima que cada hectare contém 75 metros cúbicos
de madeira e, portanto, cada lote colonial fornecerá na derribada dos
5 hectares 375 metros, e cada núcleo 187.500 metros cúbicos.
Fundados os 7 núcleos coloniais, a firma concessionária terá
feito a derribada de árvores, cujo volume é de 1.312.500 metros.

ESQUEMA

representativo da superfície do Estado do Espírito Santo, contendo
os terrenos ocupados, os devolutos e nestes a área suficiente para
a extração de 800.000 metros cúbicos de madeiras, representada
pelo quadrado que tem o sinal A.

  km²
Superfície do Estado 44.800
Superfície das terras devolutas 30.000
Área para a extração dos 800.000 metros cúbicos
de madeira
106.67


Escala: 0ms,01=20k².

E depois deste eloqüente quadro, que mostra de modo prático e
evidente quão exígua é a área, não já
do Estado, mas das "terras devolutas", bárbaras e incultas
do Estado, comprometidas no malsinado contrato, o que deu azo à acusação
fantasiosa e mirabolante, de que o presidente do Espírito Santo vendera
o seu Estado ao concessionário, só me resta esperar a publicação
deste artigo para entregar ao Jornal o 5º e último das "Cenas
e paisagens do Espírito Santo".

V

Comparação de aspectos — Partida pela Diamantina —
O que será dentro em pouco tempo essa via férrea — Fazenda
Modelo da Sapucaia — Terras do Sul e terras do Norte — Pastor
e arado — Primeira condição de agrado da Fazenda Modelo;
exemplos admiráveis que devem ser seguidos pelos governos de intenções
sinceras — A segunda condição de agrado; simplicidade,
rusticidade; como se deve ensinar os pobres; a casa; a hospedagem; passes
gratuitos — Prêmios; seu estímulo — Máquinas
— Ceifadeira de arroz ; quadro de José Malhôa; as moças
no arrozal; os discípulos; o mestre; cereais; produções;
diversas instalações; substituição de jacarés
por feijão; capitães que hão de correr por seus pés
— Vias de comunicação; construções de estradas;
colônias; fábricas e ainda mais núcleos coloniais e ainda
fábricas — O maior benefício prestado pelo senhor Jerônymo
Monteiro — O ensino público — A alma da Vitória
— O entusiasmo do estudo — Instituto de Pintura — As crianças
do Espírito Santo — A freqüência dos colégios
— Asilo do Coração de Jesus — Nem uma batina nas
ruas nem hábitos de frade — A impressão da viagem —
Saudade e agradecimento.

Só os fatos louvam sem mentira
Ruy Barbosa.

Porque o aspecto da capital do Espírito Santo me tivesse impressionado,
não só pela sua feição original e pitoresca, como
pelo seu frêmito de progresso, desejei conhecer também o de seus
campos de lavoura.

Para isso, partimos por uma lindíssima manhã pelo trem da Diamantina,
estrada que será muito breve a grande artéria propulsora de
progresso e de fortuna desse esperançoso Estado, para a Fazenda Modelo
da Sapucaia, a poucos quilômetros da Vitória.

As terras cortadas pela Diamantina fazem já promessas diferentes das
outras atravessadas pela Leopoldina. Deram-me estas a impressão de
terem nascido para a fartura dos rebanhos e as lidas do pastor; e aquelas,
mais coloridas, mais exuberantes, para os sulcos do arado e a glória
das sementeiras.

A primeira condição de agrado que me proporcionou a "Fazenda
Modelo Sapucaia", criada pelo doutor Jerônymo Monteiro, e inaugurada
em 4 de dezembro do ano passado, foi a de ser organizada mesmo às margens
da estrada de ferro, que a corta pelo meio. Assim, e há nisso uma tática
muito inteligente, quem passar no trem, verá forçosamente por
qualquer dos lados do comboio por que olhe, os talhões das diferentes
culturas da fazenda estendendo-se, como mostradores em exposição
permanente, pelos campos e alegrando a paisagem aqui com um tapete dourado
de trigo maduro ou de arroz seco, ali com um azul, de linho em flor; acolá
com um outro verde de um feijoal novo ou de um canavial. O exemplo oferecido
assim a prevenidos e desprevenidos é de conseqüências admiráveis
e deve ser seguido, sempre que for possível, pelos organizadores de
escolas dessa natureza; porque enterrar tais estabelecimentos em lugares de
condução difícil e longe da vista das populações,
quase sempre preguiçosas e indiferentes, é gastar dinheiro sem
pena e perder grande parte de trabalhos e de exemplos, que ficam desaproveitados.

Há coisas que parecem insignificantes e que têm, entretanto,
um grande alcance administrativo. Esta pareceu-me uma delas. Na realidade,
a um povo sem educação é preciso meter-lhe pelos olhos
dentro tudo que possa cooperar para a sua felicidade e que a sua inércia
não descobrirá de outro modo. Um apeadeiro na própria
fazenda facilita a visita dos curiosos.

A segunda condição de agrado, que me proporcionou aquela propriedade
agrícola, criada para educar agricultores pobres, foi a sua simplicidade,
mais do que simplicidade: a sua rusticidade.

Ali, tudo o que pôde ser feito com materiais fornecidos pela própria
fazenda: madeira, barro ou pedra bruta, é — o de preferência
a ser executado em metais mais ou menos caros, madeiras envernizadas ou pedras
britadas a capricho. Em face daquele exemplo o lavrador pobre não levantará
os ombros desdenhosamente com a convicção de que objetos de
preço só podem servir nas propriedades dos ricos, ou do Governo,
e nunca nas suas propriedades modestíssimas. Ao contrário, observando
os processos postos ali em prática, aprenderá a fazer obras
de utilidade agrícola aproveitando com acerto em seu beneficio os elementos
naturais oferecidos pela terra em que trabalha.

O muxoxo, com que o caipira olha sempre para tudo que está fora da
sua compreensão ou das suas posses, é assim substituído
por um olhar de curiosidade, de surpresa e de estudo. Porque o que ele vê
diante de si é iam modelo que não lhe será impossível
imitar. Certamente que aquela fazenda não foi feita para ser mostrada
à gente pomposa das cidades, mas só para servir de escola a
populações pobres e sem engenho.

Quantos infelizes desesperam por não saber tirar partido de recursos
que tem muitas vezes mesmo embaixo das mãos! É essa facilidade
e essa independência, que a "Fazenda Modelo Sapucaia" estimula
e sugere com o seu exemplo, visando facilitar assim a aplicação
das teorias que difunde.

A casa, no mesmo estilo singelo, verdadeiramente roceiro, tem acomodações
para hospedagem gratuita, até o prazo de trinta dias, para os agricultores
que desejarem demorar-se nela, estudando os processos agronômicos modernos.
Para facilitar tanto quanto possível a freqüência dessas
visitas, o Estado fornece, também gratuitamente, passes da Estrada
de Ferro a todos os agricultores que os solicitarem. Procura desse modo animar
a lavoura, que vinha de longe arrastando uma crise pesada, de desesperança.

Foi também com o intuito de fazer vibrar os ânimos dos lavradores
que o mesmo Governo estabeleceu uma lei, em 1908, criando 241 prêmios
em dinheiro para os agricultores, que mais se distinguissem em produção,
qualidade e exportação de culturas agrícolas, além
de outros prêmios, representados por um reprodutor de raça, já
aclimado no país, para o criador que no Estado criasse mais de duzentas
cabeças de gado lanigero, vacum, muar ou cavalar.

Essa lei, traduzida em alemão e em italiano, que são os idiomas
da maioria dos colonos do Espírito Santo, foi publicada, assim como
em português, em folhetos, largamente distribuídos pelos principais
centros agrícolas do Estado.

O fruto dessa sementeira não tardou a aparecer. Tanto o nosso povo
rural carece de estímulo! Já no ano seguinte foram distribuídos
vários prêmios e, desde então, a roda nunca mais parou,
fazendo, na sua rotação, salpicar prêmios para um lado
ou para outro, sob vários pretextos: a este industrial, porque mantém
uma usina; àquele criador, porque exportou tantos mil quilos de toucinho,
de truta em conserva, ou uma quantidade considerável de sacos de arroz
beneficiado, etc.

Não é nada? É como um punhado de milho louro, espalhado
para o alvoroço e alegria de pintos, que, já na contenda de
apanharem os grãos mais gordos, encontram meio de satisfação
e de atividade. Eu aprecio essas coisas, achando nelas assunto de interesse
especial, porque representam gestos independentes, livres de peias, com que
a política costuma embaraçar os Governos dos Estados, e, muito,
principalmente os Estados de poucos recursos.

Assim, ora acoroçoando lavradores e industriais agrícolas com
certas somas de dinheiro, ora criadores com exemplares de reprodutores de
raça, o Governo do Espírito Santo tratou pari-passu de combater
os processos rotineiros, ainda empregados na lavoura do Estado, estabelecendo
um campo de demonstração (fazenda-modelo da Sapucaia), onde
o lavrador pode fazer praticamente a sua aprendizagem, manejando instrumentos
agrários que o estabelecimento lhe fornece pelo preço do custo,
mediante pagamento em prestações, previamente combinadas.

Quando o lavrador não se quiser sujeitar a isso, o Governo mandará,
a seu requerimento, montar as máquinas e ensinar a manejá-las,
gratuitamente, à sua propriedade. Tudo isso me pareceu muito bem determinado
e muito digno de divulgação.

Na manhã em que visitei a "Fazenda" fazia-se nela a experiência
de uma nova máquina de ceifar e de enfeixar arroz. E a essa experiência
cabiam perfeitamente as palavras da chapa: estava sendo coroada de magnifico
êxito. O arrozal maduro lourejava ao sol. Lembrava um quadro pintado
por José Malhôa, e várias vezes as alegres tonalidades
desse artista exuberante e rural me acudiram à memória naquela
transparente a luminosa manhã de maio.

A Ceifadeira mergulhava na onda loura o seu pesado corpo de ferro, atirando
o arroz, já em feixes atados rapidamente por ela mesma com um solido
nó, de embira para o campo devastado, onde ficavam apenas pequenas
touceiras do arrozal, rentes ao chão. Aos lavradores que dirigiam a
máquina e a outros lavradores que acompanhavam para observá-la
de perto, reuniu-se um grupo de senhoras, curiosas, cujas toilettes claras
e sombrinhas de cor juntaram ao bucolismo do quadro uma nota risonha, que
o completava. Dentro de poucos minutos não havia ali chapéu
nem cinto que não estivesse enfeitado com um penacho de arroz.

Do lado oposto da estrada, em outros campos da mesma propriedade, empregavam-se
alguns discípulos na aprendizagem dos processos aratórios, preparando
o terreno para novas plantações. Surpreendi assim, a fazenda
numa hora de atividade, e de aplicação dos modernos processos
de trabalho. O mestre de culturas, senhor Agostinho de Oliveira, que se me
afigurou sinceramente apaixonado pela sua profissão, informou-me, mostrando-me
uma vitrina, em que estavam vários punhados de cereais, que já
se têm feito ali experiência de 57 variedades de plantas forraginosas,
alimentícias, têxteis, oleaginosas, etc. Dando a aveia na razão
de 46 hectolitros por hectare; alfafa, 10 cortes por ano; trigo, 12 hectolitros
por hectare; linho, 80 centímetros de altura; algodão, 0,m60
de extensão de fibra; sorgo, 700 alqueires por alqueire de semente,
etc.

Embora as terras em que está organizada a fazenda, não sejam
das melhores do Estado, tendo sido escolhidas pela sua situação,
a cujas vantagens aludi, e pela sua facilidade de comunicação,
ainda assim o quadro comparativo da sua produção de trigo, por
exemplo, com a de outros países, é-lhes extremamente lisonjeiro.

Enquanto Portugal colheu 9 hectolitros por hectare, a Argentina 11, a Austrália
40, os Estados Unidos 7, — o Espírito Santo colheu 12, o que
já constitui uma diferença razoável, guardando as mesmas
proporções nas diferentes qualidades de trigo que cultivou como
experiência e demonstração, tendo igualmente obtido magníficos
resultados de plantas estrangeiras, ainda não conhecidas no Brasil,
ao mesmo tempo que, provado as vantagens das plantas conhecidas quando tratadas
pelos processos mecânicos que aumentam, melhoram e barateiam a sua produção.

As instalações da fazenda para os seus animais estão
ainda de acordo com o seu tipo modesto. São modelos de fácil
imitação e em que, na sua rudeza, estão previstas todas
as condições de higiene.

Entretanto, falava-se na construção de novas baias, de um posto
zootécnico e não me lembra mais o quê. Em todo caso, os
carneiros Lincoln, os touros Gersey, ou as galinhas Plymouth encontram condições
de vida farta nos campos da fazenda da Sapucaia, para onde têm sido
remetidos alguns exemplares deles, e que sempre serão mais proveitosos
que os terríveis jacarés que ali habitavam um charco, hoje transformado,
pelo aterro, num vistoso e fértil feijoal!

Ainda com o sentido de animar a lavoura, tendo sido fundado o Banco de Crédito
Agrícola e Hipotecário, o jornal oficial da Vitória começou
a imprimir uma seção diária, de tipo gordo e entrelinhado,
com explicações e conselhos sobre agricultura. Este ardil facilita
a leitura, pelo menos desse trecho do jornal, às pessoas de vista cansada,
ou que saibam apenas soletrar.

É alguma coisa: é o interesse levado a toda gente, em doses
de fácil assimilação, pelo mais portentoso assunto do
país.

Observando esses pequenos nadas, penso com alegria que o nosso vício
de politicagem começa a transformar-se em séria atividade administrativa…
Mas quem me dirá se nos outros Estados se faz o mesmo?

Nós os brasileiros gostamos pouco de viajar em nosso país;
desde que se não possa ir para o estrangeiro proferimos a tudo ficar
em casa; daí a ignorância de muitos aspectos curiosos e de muitos
fatos interessantes de nossa terra e da nossa gente. Quando porém,
por qualquer circunstância inesperada, visitamos um ou outro dos nossos
Estados, dizemos não trazer deles impressões que valham a pena
de ser comunicadas a ninguém! É um mal e um erro, porque da
nossa crítica ou do nosso louvor podem resultar benefícios imprevistos
para o país.

Por minha parte confesso que tive intenso prazer surpreendendo no Estado
do Espírito Santo, tão acoimado de pobre e de rotineiro, um
tão grande movimento de progresso e de transformação,
e que julgo cumprir um dever de patriotismo afirmando a convicção
que nutro de que essas terras, dentro em pouco tempo, atrairão só
por si capitais importantes que para elas irão espontaneamente, na
certeza de ótimas recompensas. Já não é um Estado
rotineiro; é um Estado progressista. Ao mesmo tempo que o Governo dava
à cidade principal água, luz, esgotos, serviço de higiene
publica e domiciliaria, escolas, habitações populares e um novo
e moderno hospital; ao mesmo tempo transformava os seus lodaçais em
parques secos e drenados, contratava diversas vias de comunicação:
linhas de bondes elétricos, construções de estradas para
carros e automóveis; navegação a vapor pelos rios Doce
e Itapemirim, construções de estradas de ferro que atravessam
regiões feracíssimas; e tudo em vários pontos do Estado,
simultaneamente. Não contente com isso, o Governo põe outros
serviços em execução, contratando com particulares construções
de outras estradas e a fundação de colônias, de fábricas,
de serrarias, de usinas, do plantio do cacau, de exploração
de matas e desenvolvimento da imigração com a fundação
de 7 núcleos coloniais de 500 famílias cada um; e ainda de mais
estradas e ainda de mais imigrantes, e ainda de mais fábricas e de
mais usinas elétricas!

Mas sobrepujando a todos, o grande beneficio prestado pelo doutor Jerônymo
Monteiro ao seu Estado natal está na reforma do seu ensino publico.
Hoje a alma da Vitória é a colegial. Ela dá à
cidade, provinciana e sossegada, uma nota de alegria vibrante pelo seu ar
decidido e entusiasmado e pelo seu traje encarnado ou azul, segundo o grupo
escolar a que pertence. A certas horas, quem chegar às janelas ou andar
pelas ruas, verá surgir em vários pontos essas manchas luminosas,
e inconfundíveis, que fazem pensar que também as hortênsias
e as papoulas andam!

Não são só as pequenas, também as mocinhas vestem
com orgulho os seus uniformes de normalistas. Toda a mocidade da Vitória
estuda e fá-lo com um entusiasmo como jamais observei em parte alguma;
o seu Instituto de pintura é freqüentado com imenso interesse
por muitos moços e moças da sua melhor sociedade.

Mas o seu maior encanto está sobretudo nas escolas publicas refundidas
pelo modelo das de São Paulo, que são as mais afamadas do país.
Em geral as crianças no Espírito Santo são fortes e desembaraçadas,
o que duplica o encanto das salas escolares, que estão bem organizadas,
com aparelhos e mobílias modernas. A prova do grande interesse que
há na Vitória pelo estudo está bem expressa pelas suas
estatísticas escolares.

No mês de maio, em que visitei essa cidade, foram as suas escolas públicas
freqüentadas por mil e oitenta e sete crianças, o que representa
uma soma respeitável numa cidade de pequena população,
tanto mais quanto nela não há só escolas publicas, mas
também particulares de grande freqüência. Eu mesmo visitei
uma, o "Asilo Coração de Jesus", em que era muito
grande o numero de discípulas, aparte as órfãs pobres
do Estado, ali recolhidas, se me não engano, em número de 200,
e por cuja manutenção o Governo subvenciona esse estabelecimento
com uma determinada quantia.

E o engraçado é que foi preciso entrar num edifício
religioso para eu ver a primeira touca de religiosa no católico Estado
do Espírito Santo! Foi só então que ma ocorreu à
lembrança o que me tinham afirmado no Rio, isto é, que eu iria
esbarrar com batinas de padres e hábitos de monges por todos os ângulos
e curvas da Vitória, quando a verdade é que, em cinco dias,
eu ainda não vira nem uma só batina, nem um só habito
de freira ou de frade, nas ruas da Vitória nem nas estações
do caminho de ferro do Estado do Espírito Santo!

Isso não acontece em São Paulo nem em Minas, nem aqui, verdadeiro
refúgio de religiosos exilados da Europa.

Ora pois, até nisso aquela terra era diferente do que me tinham afirmado
antes da minha partida.

De fato, em vez de uma sociedade fanática, tristonha, desconfiada,
achei-me no centro de uma sociedade carinhosa, risonha, desembaraçada
e vivaz, de que guardarei sempre saudades.

E porque de tudo trouxe uma impressão de agrado, de esperança,
ou de surpresa, quis fixá-la nestas linhas, em que escondi quanto pude
a gratidão pelo excepcional acolhimento que devo a esse Estado, para
só deixar transparecer a verdade nua dos fatos que nele observei, sem
véus de fantasia, nem parcialidade de sentimento.

E, também, para isso, não escrevi precipitadamente. Esperei;
dei tempo a que as minhas idéias amadurecessem antes de rever as notas
feitas no tropel das horas movimentadas, que passei na Vitória e que
tão imperfeitamente descrevi. Sinto-me, porém, satisfeita de
poder afirmar a todos os brasileiros, mesmo aos mais indiferentes, que esse
pedaço da Pátria achou quem o despertasse do sono letárgico
que ha tanto tempo o entorpecia e que, agora, despertado e fortalecido, caminhará
ativamente, alegremente, para um futuro nobre e feliz.

Fonte: www.estacaocapixaba.com.br

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