A Campanha Abolicionista

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José do Patrocínio

PRIMEIRA PARTE

COM O CORAÇÃO NOS LÁBIOS

«Se fosse possível reunir todos os artigos, todos os discursos,
com que Patrocínio atacou a escravidão e seus defensores, o
livro em que ficassem compendiados esses libelos seria o mais belo poema da
Justiça […]». Olavo Bilac.

O filho do padre João Carlos Monteiro e de sua escrava de 13 anos,
Justina Maria do Espírito Santo, nascido em Campos em 1853, conhecido
oficialmente como José Carlos do Patrocínio, que era Zeca para
os amigos, Zé do Pato para o povo, Proudhomme para os combatentes da
abolição, foi um homem complexo que viveu na fronteira de mundos
distintos, se não conflitivos. A começar pela fronteira étnica:
pai branco, mãe negra, um mulato, como se dizia na época, cor
de tijolo queimado, em sua própria definição. Depois,
a fronteira civil: mãe escrava, pai senhor de escravos e escravas.
A fronteira do estigma social, a seguir: oficialmente registrado como exposto,
só mais tarde constando o nome da mãe, nunca legalmente reconhecido
pelo pai. Mais: a fronteira entre o mundo interiorano em que se criou e viveu
até os 15 anos e o mundo da corte em que exerceu a atividade profissional
e política. Ainda: a fronteira intelectual de uma formação
superior mas de baixo prestígio, a de farmacêutico, convivendo
com a formação dos bacharéis em direito, medicina e engenharia.
Por fim, a fronteira entre o reformismo e o radicalismo políticos.

A marca dessas determinações variadas, às vezes contraditórias,
combinava-se em Patrocínio com um temperamento apaixonado e explosivo.
Momentos de grande cólera eram seguidos de outros de imensa ternura.
Sua reconhecida generosidade era tisnada por acusações de desonestidade
e venalidade feitas com insistência pelos inimigos. A absoluta coerência
e a constância na luta pela abolição não se repetiam
em relação a outras causas, como a da República, e com
amigos e inimigos. O produto de tudo isto era uma apurada sensibilidade para
captar as contradições da época e a capacidade para encarná-las
na própria personalidade. Patrocínio era um vulcão de
paixões que despertava grandes entusiasmos e grandes aversões.
Como ele próprio confessou, falava e escrevia com o coração
nos lábios. Do coração brotavam a crítica devastadora
e o ataque impiedoso mas também o apelo dramático e o aplauso
entusiástico. Ninguém podia ficar indiferente a sua ação
e ninguém ficou. Teve amigos incondicionais como Olavo Bilac e Angelo
Agostini e inimigos irreconciliáveis como Medeiros e Albuquerque.

Acima de tudo, estava sua paixão pela causa abolicionista, nascida
talvez já em Campos no convívio com a mãe escrava. Esta
paixão deu sentido a sua luta e a sua vida, sobretudo desde que passou
a redator do jornal abolicionista, a Gazeta de Notícias, de Ferreira
de Araújo, em 1877. A luta ganhou nova dimensão a partir de
1878 quando Joaquim Nabuco foi eleito deputado pela primeira vez e deu início
à batalha parlamentar do abolicionismo. Neste ano os liberais voltaram
ao poder depois de dez anos de ausência. Embora as duas grandes leis
abolicionistas do Segundo Reinado, a de 1850 e a de 1871, tivessem sido aprovadas
por gabinetes conservadores, a bandeira do abolicionismo era dos liberais.
Era lógico que os abolicionistas pusessem grandes esperanças
na nova situação. A expectativa em relação aos
liberais era ainda justificada pela morte do grande abolicionista conservador,
Rio Branco, em 1880. Patrocínio fez o elogio fúnebre do visconde,
afirmando que ele minerara cidadãos nas jazidas negras da escravidão
(artigo de 8 de novembro de 1880).

O ano de 1880 foi ainda particularmente importante por outras razões.
Na Câmara, Nabuco provocou os escravocratas pedindo urgência para
a discussão de projeto de abolição imediata. O pedido
foi derrotado por 77 votos a 18. A luta extravasou, então, do Congresso.
Foi criada por Nabuco, Rebouças, João Clapp, Patrocínio
e outros a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, inspirada na British
and Foreign Society for the Abolition of Slavery. Como produto da Sociedade,
começou a ser editado o jornal O Abolicionista. Surgiu ainda nesse
ano a Gazeta da Tarde do abolicionista negro Ferreira de Meneses, mais militante
do que a Gazeta de Notícias. Do ponto de vista da propaganda, a iniciativa
mais importante de 1880 foi o início das Conferências Abolicionistas
organizadas pelos mesmos lutadores da Sociedade. Não era ainda a rua,
mas eram os teatros do Rio que se tornavam arena de luta, ampliando e democratizando
o que até então se passara dentro do limitado espaço
das Câmaras. Nesse contexto mais popular, assim como posteriormente
nas ruas da cidade, Patrocínio sentia-se à vontade e foi aí
que desenvolveu sua vocação oratória, responsável
por seus maiores triunfos. Lembre-se ainda que 1880 foi o ano da Revolta do
Vintém que trouxe de volta o povo às ruas da capital. Entre
os oradores que arengavam o povo estava o republicano José do Patrocínio.

De 1880 a 1889, Patrocínio dedicou-se integralmente à causa
da libertação dos escravos e à luta contra os que exigiam
indenização. Primeiro na Gazeta de Notícias (1878), depois
na Gazeta da Tarde (1881), finalmente na Cidade do Rio (1887), jornal que
comprou com a ajuda do sogro. A passagem de um jornal para outro significava
sempre uma escalada no radicalismo da luta. A campanha desenrolava-se ainda
nos teatros, nos banquetes, nos comícios, nos leilões. Tentou
também eleger-se para a Câmara dos Deputados em 1884 pelo terceiro
distrito da corte mas foi derrotado. Elegeu-se, no entanto, vereador em 1886,
em seguida à campanha feita em cima do tema da abolição
à qual não faltaram comícios populares. Chegaram até
nós seus artigos de jornal. Eles são retrato fiel do pensamento
de Patrocínio e da tática de campanha desenvolvida ao longo
da década. É possível que nos discursos em que arengava
platéias populares sua linguagem fosse algo distinta, talvez mais incendiária.
Mas como nunca o acusaram de jogo duplo, é provável que as idéias
e a tática não fossem muito distintas das que aparecem nos artigos
de imprensa.

Ao ler os artigos, é necessário que se levem em conta, além
da personalidade de Patrocínio, as circunstâncias em que foram
escritos e a finalidade a que se destinavam: eram armas de combate esgrimidas
no calor da refrega. O objetivo final de Patrocínio nunca variou: abolição
imediata sem indenização, a ser conquistada no máximo
até 1889, centenário da Revolução Francesa. Quatro
anos antes da abolição, ele chegou a indicar com antecipação
profética o texto da Lei Áurea: «Fica abolida, nesta data,
a escravidão no Brasil» (artigo de 11 de abril de 1885). Mas
se o objetivo não mudava, a tática variava, as alianças
variavam, assim como variava o julgamento de pessoas e instituições.
Ele próprio dizia durante a campanha para vereador que para combater
a escravidão todos os meios eram legítimos e bons. Não
há, pois, que buscar coerência em pontos que não se refiram
ao objetivo final. A Lei do Ventre Livre é às vezes elogiada,
às vezes criticada; ministros e políticos em geral são
avaliados de acordo com suas posições diante de propostas abolicionistas.
Com alguns polemizou sempre. Foram os casos do conservador Cotegipe e do liberal
Martinho Campos, ambos escravistas, presidentes do Conselho de Ministros em
1882 e 1885-88, respectivamente. A outros defendeu com unhas e dentes, como
ao liberal Dantas, e ao conservador João Alfredo, o primeiro presidente
do Conselho em 1884 e autor do projeto original da Lei dos Sexagenários,
o segundo chefe do gabinete abolicionista de 1888.

Com outros teve relações cambiantes, de acordo com as vicissitudes
da luta. Com Sílvio Romero, aliado no começo, brigou feio quando
o sergipano escreveu um artigo racista e ofensivo aos abolicionistas, chamando
Nabuco de pedantocrata e Patrocínio de «sang-mêlé».
No artigo, Sílvio Romero afirmava ainda que o negro era «um ponto
de vista vencido na escala etnográfica». A resposta de Patrocínio
foi exaltada e cheia de ataques pessoais. Sílvio Romero era o «teuto
maníaco de Sergipe», o «Spencer de cabeça chata»,
uma alma de lacaio, um canalha. Outro com quem teve relações
complexas foi Rui Barbosa. Aliados em alguns momentos da luta, separaram-se
em outras quando Rui, por exemplo, em nome de formalidades jurídicas,
se opôs a proposta do governo, feita após a abolição,
de perdoar os escravos condenados nos termos da Lei n.º 4, de 10 de junho
de 1835, que estabelecia pena de morte para crimes violentos de escravos contra
seus senhores. Patrocínio acusou Rui de defender o seqüestro social
do ex-escravo em artigos «lúgubres como tribunal de inquisidores»
(artigo de 29 de abril de 1889).

Complicada foi também sua relação com o Partido Liberal.
A emancipação dos escravos constava dos programas liberais de
1868 e 1869. Era, pois, natural que, voltando ao poder em 1878, o partido
fosse sensível à questão. Cedo, no entanto, os abolicionistas
descobriram que as coisas não eram tão simples. Assim como Rio
Branco dividira o Partido Conservador em 1871 ao fazer aprovar a Lei do Ventre
Livre, o Partido Liberal estava dividido em relação à
abolição. Ao lado de abolicionistas como Dantas, havia «escravocratas
da gema», como se autodefinia Martinho Campos. Em posição
intermediária tímida ficavam líderes como Paranaguá,
Lafaiete, ex-republicano, e Saraiva, todos presidentes do Conselho de Ministros
no período. Patrocínio deblaterou contra Martinho Campos, entusiasmou-se
com Dantas e irritou-se com os outros. Dantas foi duas vezes derrotado pela
Câmara liberal. Saraiva esvaziou a Lei dos Sexagenários. Contra
este último, Patrocínio lançou ainda a acusação
de ter feito aprovar a lei da eleição direta em 1881, que tirara
o voto a centenas de milhares de brasileiros e cujo efeito teria sido devastador
sobre os candidatos abolicionistas. A prática levou-o a concluir que
os liberais só eram capazes de fazer democracia na oposição
e que era mais eficaz entregar aos conservadores a solução do
problema da abolição, como fez Isabel em 1888, repetindo o que
Pedro II fizera com Eusébio de Queirós em 1850 e Rio Branco
em 1871 (artigo de l9 de março de 1888).

Relação tumultuada foi também a que manteve com os republicanos.
Republicano ele próprio, Patrocínio não perdoava aos
correligionários as hesitações e tergiversações
em relação ao problema da abolição. Assim como
Luís Gama não conseguira definição clara do Partido
Republicano de São Paulo, Patrocínio também teve dificuldades
com os republicanos do Rio, sobretudo com seu chefe, Quintino Bocaiúva.
A questão central estava na hierarquia de prioridades. Os outros republicanos
colocavam a República em primeiro lugar. A abolição ou
vinha em segundo lugar, ou não era vista com simpatia. Para Patrocínio,
a abolição era prioridade absoluta, a República vinha
depois. Não via, aliás, como falar em República sem abolição.
Neste ponto concordava com Nabuco que colocava a campanha abolicionista acima
dos partidos. O republicano Patrocínio a colocava acima da forma de
governo. Por essa razão, não hesitou em ficar ao lado da regente
Isabel, e da Monarquia, quando ela se decidiu pela abolição
imediata. Abandonou a República e só voltou a apoiá-la
no dia 15 de novembro de 1889.

Assim como não perdoava a ambigüidade dos republicanos, esses
não lhe perdoavam ter trocado a República pela abolição.
O período que mediou entre a abolição e a proclamação
da República foi um inferno astral para Patrocínio. Vencedor,
sofreu cruel campanha de desmoralização por parte dos republicanos,
inclusive Silva Jardim. O epíteto que lhe deram de «último
negro que se vendeu», além de racista, era de crueldade atroz,
pois o que fizera fora apenas antepor a reforma social à reforma política.
Patrocínio passou o período defendendo-se das acusações
e contra-atacando os republicanos por sua aliança com os ex-senhores
de escravos que buscavam indenização. Sua linguagem ferina não
ficou atrás da dos inimigos em cunhar expressões duras e candentes:
«republicanos do 14 de maio», «piratas do barrete frígio»,
«pirataria sans-culotte», «neo-republicanos da indenização»,
e outros assemelhados. A briga marcou-o pelo resto da vida. Mesmo o fato de
ter promovido a única ação autenticamente popular no
dia 15 de novembro, quando o chefe republicano, Quintino Bocaiúva,
acompanhava a parada militar, foi suficiente para o redimir aos olhos dos
republicanos. Sua vida após a proclamação foi um decair
constante até o final melancólico.

Por fim, Patrocínio também mudou várias vezes de posição
em relação à Coroa, ao Poder Moderador e à própria
Monarquia. Entusiasmava-se quando o imperador chamava ao poder um abolicionista
como Dantas, desesperava-se quando o chamado era Martinho Campos ou Cotegipe.
Em um momento via a Coroa à frente da luta, em outro acusava-a de ser
o principal sustentáculo do escravismo. Dirigia-se freqüentemente
ao próprio imperador incentivando-o a solidificar o reinado pelo apoio
à causa emancipacionista, ou ameaçando-o com a queda da Monarquia,
caso ele não desse ouvidos ao clamor popular. Os elogios foram grandes
durante o Gabinete Dantas e, sobretudo, na regência de Isabel. As ameaças
maiores no Governo Cotegipe. Diante da freqüente resistência da
Câmara em aprovar medidas abolicionistas, fato que atribuía ao
afastamento entre a nação e seus representantes causado pela
lei da eleição direta de Saraiva, chegou a pedir o exercício
ditatorial do Poder Moderador como único meio de fazer aprovar a reforma.
Seria a maneira de aproximar o imperador da opinião nacional por cima
da representação parlamentar (artigo de 16 de julho de 1887).
Quando a regente decidiu chamar o abolicionista João Alfredo, que em
dois meses fez aprovar a abolição total sem indenização,
o entusiasmo de Patrocínio não conheceu limites. Começara,
segundo ele, naquela data, a história moderna do Brasil, operara-se
a maior revolução social de nossa terra. Isabel era a redentora,
ao lado dos batalhadores do abolicionismo que vinham desde José Bonifácio.

Idiossincrasias de um temperamental que falava com o coração
nos lábios? Sem dúvida. Mas não só isto. Sua condição
de homem de fronteira permitia-lhe refletir com precisão as contradições
da política e dos políticos da época. Os partidos Liberal,
Conservador e Republicano estavam de fato divididos frente à questão
da abolição; a lei da eleição direta cassara de
fato o voto a milhares de brasileiros, dando maior consistência à
Câmara mas afastando-a da opinião pública; o Poder Moderador
tornara-se nesta conjuntura de fato ambíguo: seu exercício podia
ser formalmente ditatorial mas estar, ao mesmo tempo, mais próximo
da opinião pública. Neste sentido, a batalha da abolição
corroeu a base dos partidos nacionais e contribuiu não só para
o fim da monarquia como para a proclamação da república
manu militari. Culpa dos abolicionistas? Sem dúvida, não. O
sistema representativo é que não funcionava adequadamente.

Patrocínio apenas ajustou-se às condições da
luta. Combinou a perspectiva da elite ilustrada da época com seu toque
popular. Distinguia-se de Nabuco e Rebouças pelo lado popular, pelo
gosto do contato com o povo na praça pública, pela volúpia
de agitar as multidões. Era um agitador dionisíaco em contraste
com o organizador estóico que era o extraordinário Rebouças.
Seu lado popular fazia com que em alguns momentos ameaçasse o Governo
e a Monarquia com a ira dos escravos e libertos, a quem apresentava Spartacus
como modelo. Mas a ameaça não passava de retórica. Logo
depois acusava o povo brasileiro de ser um «cordeiro submisso»
que deixava nas mãos do imperador a solução de seus problemas
mais graves (artigos de 21 de novembro de 1887 e de 30 de agosto de 1884).
Punha-se ao lado do aristocrático Nabuco que preferia que a questão
fosse resolvida de cima para baixo e não de baixo para cima. A abolição,
segundo Patrocínio, foi literalmente uma «revolução
de cima para baixo», feita mediante a aliança do soberano com
o povo (artigo de 9 de março de 1888).

Era inegável a paixão de Patrocínio pela liberdade dos
escravos. Havia aí um lado pessoal, gravado na cor da pele e no fundo
da alma, que estava ausente, por exemplo, em Nabuco. Não se duvida
da sinceridade do abolicionismo de Nabuco, mas nele tratava-se de uma batalha
filantrópica e política antes que pessoal. Ou melhor, o lado
pessoal não era nele tão profundo, tão vital, como em
Patrocínio. Mas, fora este aspecto, e fora o estilo plebeu e exaltado
de Patrocínio, não se separavam muito na maneira de encarar
o problema da escravidão. Taticamente, preferiam dirigir-se ao imperador,
à elite política, aos proprietários, à população
livre, antes que aos próprios escravos. Esta opção, no
caso de Patrocínio, talvez se tenha consolidado durante o Gabinete
Dantas que lhe fez vislumbrar a possibilidade de uma solução
monárquica do problema. Ele mesmo admitiu que naquele momento o abolicionismo
aceitou recuar para o segundo plano, reduzir o ímpeto, para permitir
uma solução parlamentar (artigo de 11 de abril de 1885). Substantivamente,
ao argumento da liberdade acrescentavam sempre o argumento político
da razão nacional. A honra do país, o patriotismo, os interesses
da nação em contraposição aos interesses dos proprietários
e dos partidos, a imagem externa do país são expressões
e argumentos que estão presentes desde o primeiro artigo incluído
nesta coletânea. A razão nacional parece predominar no argumento
sobre a razão da liberdade individual. Neste ponto ele não estaria
também muito distante da tradição do abolicionismo luso-brasileiro.

Ficou, no entanto, como marca registrada de Patrocínio a paixão
com que se dedicou de corpo e alma à luta abolicionista; ficou sua
contribuição insubstituível em levar para a rua uma batalha
até então limitada ao parlamento; ficou seu papel central na
criação do primeiro grande movimento político popular
da história do país. Quanto a este último ponto, é
preciso observar que a afirmação de que a abolição
foi uma revolução de cima para baixo deve ser interpretada também
levando-se em consideração a conjuntura em que foi feita. Patrocínio
precisava justificar o apoio dado a Isabel. Com esta preocupação,
acabou fazendo injustiça a si próprio e aos outros abolicionistas
que desde 1880 tinham dado início à campanha extraparlamentar
contra a escravidão. É verdade que não se materializou
sua expectativa de que um exército de ingênuos invadisse as ruas
para lutar pela liberdade dos pais. Mas é também verdade que
a partir de 1880 houve mudança qualitativa na luta abolicionista, mudança
em que ele teve papel importante. Se as leis de 1850 e 1871 tinham sido decididas
dentro do governo, o mesmo não se deu com as leis de 1885 e 1888. Mesmo
deturpada, a Lei dos Sexagenários foi precedida da mobilização
popular que acompanhou o gabinete Dantas. Quanto à Lei Áurea,
ela apenas ratificou o que já fora feito revolucionariamente fora do
parlamento, como reconheceu o próprio Cotegipe. O que fora feito deve
ser creditado a Patrocínio, aos outros abolicionistas e aos próprios
escravos. É difícil superestimar a importância do abolicionismo
como o movimento que permitiu falar-se no Brasil, pela primeira vez, em algo
parecido com uma opinião pública, uma vontade nacional.

Diante desses méritos, não cabe censurar Patrocínio
por não ter invadido as portas das fazendas para lá dentro incitar
os escravos à revolta contra os senhores. O saldo de sua ação
é mais do que positivo. Não há também por que
diminuir um patriotismo que era feito de uma visão democrática
da política, que se baseava na idéia de uma nação
construída com a participação do povo. Sobre seu patriotismo,
aliás, não resisto à tentação de repetir
a história, verdadeira ou falsa, não importa, relatada por R.
Magalhães Júnior, da resposta genial atirada aos que o chamavam,
durante um discurso, de negro vendido: -«Sou negro, sim! Deus me deu
a cor de Otelo para que eu tivesse ciúmes de minha pátria!»

O amigo João Marques conta que, em meio ao delírio das aclamações
populares a Patrocínio no dia 13 de maio, lhe teria dito: «Que
belo dia para morreres, Patrocínio!» Foi uma observação
perfeita. Patrocínio deveria ter morrido de uma síncope naquele
dia, enquanto era aclamado pela multidão. Depois da República,
rejeitado pelos republicanos, não encontrou outra causa à altura
de seu talento e de sua paixão. Os abolicionistas monárquicos
também se recolheram. Nabuco refugiou-se na diplomacia e na redação
da magnífica biografia do pai e das próprias memórias.
Rebouças escolheu o exílio e terminou tragicamente pondo fim
à própria vida. O fim de Patrocínio foi melancólico.
Sem causa política por que lutar, viu-se envolvido nas agitações
dos primeiros anos da República. Desterrado para Cucuí por Floriano,
para onde foi no mesmo vapor Alagoas que levou Pedro II ao exílio,
ao voltar teve que se ocultar da polícia. Correu mesmo o boato de que
teria sido fuzilado por ordem de Floriano. Depois da posse de Prudente, acabaram-se
as perseguições mas ficou preso a disputas mesquinhas indignas
de seu talento.

A partir de 1894, buscou sua própria fuga no sonho de construir um
balão dirigível, o Santa Cruz. Sonhava poder desprender-se da
terra para voar acima de seus concidadãos, «longe, respirando
o grande ar virgem das alturas», com o diria a Coelho Neto. Refugiava-se
no sonho, assim como Rebouças se refugiara na morte. Em 1903, perdeu
por falência o Cidade do Rio. Já tuberculoso, dedicou-se, então,
integralmente, à construção do balão que jamais
levantou vôo. Morreu em 1905, em meio a uma hemoptise, pobre e abandonado,
em modesta casa de Inhaúma. Tinha 52 anos.

Milhares de pessoas desfilaram perante o caixão depositado na igreja
do Rosário e outras tantas acompanharam o féretro até
o cemitério de São Francisco Xavier. Pálido reconhecimento
para quem conquistou a liberdade sonhada de seus irmãos negros e sonhou
em vão com a conquista da própria liberdade voando nas alturas:
«Lá vai o Zé do Pato!»

José Murilo de Carvalho

Critérios de edição

Na organização desta obra foram adotados os
seguintes critérios:

1- Os artigos foram retirados dos três jornais do Rio de Janeiro
em que José do Patrocínio escreveu regularmente no período
da campanha abolicionista e sua sequência imediata até a proclamação
da República: Gazeta de Notícias (1880-1881), Gazeta da Tarde
(1882-1887) e Cidade do Rio (1887-1889). Foram selecionados os artigos cujo
tema era a abolição e que traziam a assinatura de José
do Patrocínio ou de Proudhomme, seu pseudônimo jornalístico
adotado desde 1877. Alguns artigos não assinados, provavelmente redigidos
por ele, não foram incluídos. Também não o foram
os artigos eventualmente publicados em outros jornais, como O Paiz.

2- A ortografia foi atualizada de acordo com o sistema ortográfico
em vigor. Foram conservadas, no entanto, formas alternativas como cousa, dous,
esclavagismo, etc.

3- Nas notas, em geral só foram identificadas, quando possível,
as pessoas mencionadas pelo apelido ou por um nome apenas. Somente em casos
especiais, de pessoas pouco conhecidas, ainda que citadas por dois ou três
nomes, foi também feita a identificação.

4- Na reprodução das ilustrações de Ângelo
Agostini a impressão original das legendas foi substituída por
uma nova (em corpo maior e letra caligráfica, cuja forma aproxima-se
a do autor), de modo a assegurar a plena leitura. Foi mantida, no entanto,
a grafia da época.

Gazeta de Notícias

6-IX-1880

O Ministério fez questão de confiança da simples apresentação
de um projeto de emancipação da escravatura. A augusta câmara
das bofetadas bateu, como sempre, as palmas e, comovida pela eloqüência
de Cebolas e Chique-Chique, passou à ordem do dia.

Dias depois o Ministério vestiu-se de casaca, franziu o sobrolho e
veio fazer frente à interpelação do sr. Joaquim Nabuco
para que o Governo lhe explicasse em que lei se baseava para intervir numa
questão de ordem.

Apesar da proibição expressa do Regimento, o Governo declarou
que interveio na questão de ordem, que interviria tantas vezes quantas
S. Ex.ª pedisse urgência, e a Câmara achou que é assim
que o Governo deve proceder regularmente.

Chegados a esta conclusão, Ministério e Câmara deram
a questão por terminada.

O folhetinista não perderá tempo em qualificar o ato da Câmara.
O país já a conhece bem; sabe o que ela vale em hombridade e
coerência. Demais para entrar na discussão, em que descobriria
o qualificativo, era mister conhecer as irritações do terreiro,
as expressões agressivas da revista, e do eito, e, finalmente, esconder
a pátria por detrás dos engenhos, ao passo que a pessoa se acocorasse
por detrás da imunidade parlamentar e do equívoco.

Isto, porém, tomaria tempo e desviaria a questão da sua verdadeira
esfera. Trata-se de conquistar o direito de mais de um milhão de homens,
e conciliar essa conquista com os interesses do país. Fique ao parlamento
a demagogia legal, e à imprensa a calma de que necessita.

O problema da escravidão está neste pé. A lei de 1831
suprimiu o tráfico e não só declarou criminosos os introdutores,
como obrigados à restituição do africano os compradores.
Há quarenta e nove anos e dois dias, pois, nenhum africano podia mais
ser escravizado no Brasil.

A especulação da carne humana, porém, havia entrado
nos hábitos nacionais, e durante vinte e três anos continuou
o crime do tráfico.

Tomando a estatística apresentada para alguns anos pela Coleção
de Tratados do dr. Pereira Pinto, de saudosa memória, entraram no Brasil:

Em 1845 19.453
Em 1846 50.324
Em 1847 56.172
Em 1848 60.000
Em 1849 54.000
Em 1850 23.000
Soma 262.949

Este enorme algarismo de africanos é, porém, para seis anos,
e sabemos que durante vinte e três anos certos, ainda que haja quem
afirme que só em 1856 acabou definitivamente o tráfico; durante
vinte e três anos deu-se o infame comércio. Não é
muito, pois, calcular a média dos outros anos em 20.000 homens entrados
no país, o que dá 340.000, ou de 1831 a 1854, 602.949.

Calculando que a terça parte destes infelizes eram mulheres, e calculando
a geração por elas dada aos seus criminosos exploradores em
três filhos, o número de homens livres reduzidos à escravidão,
provenientes desta fonte, é de 600.000.

Ora, pelas estatísticas atuais, criminosamente toleradas pelo Governo,
que tem na matrícula a confissão do crime dos proprietários,
o número dos africanos escravos sobe no Brasil a 200.000.

Supondo que metade deste número é tirado dos importados depois
do tráfico, temos que o número das pessoas livres reduzidas
à escravidão é no Brasil nada menos de 700.000.

Não se objete que não se deixa neste cálculo margem
para a mortalidade.

Todos sabem quão dificilmente se registram óbitos de africanos,
e no cálculo fica uma margem de 500.000 para a mortalidade.

Sabe-se também que os senhores, querendo tirar todo o proveito do
gado humano, ávidos de tirarem todo o lucro da pirataria á roda
do berço, como se exprimia o grande Sales Torres Homem, expunham as
mulheres desde os treze e quatorze anos à procriação.
Há muitos fatos de indivíduos, que começando a vida apenas
com cinco ou seis escravas boçais, legaram aos filhos escravaturas
de mais de cem pessoas provenientes daqueles troncos.

Supor, portanto, que da geração das escravas vingam apenas
três descendentes, é deixar uma larga margem à mortalidade.
Tanto mais que dezesseis anos depois de 1831, isto é, em 1847 já
há produção, e em 1863 produção da produção.

E, pois, quase matematicamente certo que há reduzido a escravidão
um número de 700.000 homens, metade, portanto, da escravatura atual.

Ora, é de lei que o salário do homem escravizado seja pago
por quem o escravizou, ou quem herdou os capitais deste.

Logo, os atuais proprietários de escravos devem à sociedade
em geral, ou melhor, à raça negra, quarenta e nove anos de salário.
Fazendo o cálculo a 200 rs. por dia, e não computando já
o espaço que vai de 1831 a 1854, tempo que, por deferência com
os srs. fazendeiros deixamos de incluir no cálculo, temos:

Por um dia de trabalho de 700.000 homens escravizados
140:000$000
Por um ano 51.100:000$000
Em 26 anos 1.328.600:000$000

Apesar do número avultado que dá o cálculo, é
preciso notar a insignificância do salário que foi marcado. Nunca
no Brasil um trabalhador de enxada ganhou, no período apontado, semelhante
ridicularia.

Não se pode argumentar com o valor decrescente do salário na
razão inversa do tempo; para compensá-la há a grande
margem de vinte e três anos, e além disso há a compensação
do valor crescente do escravo.

A conclusão a tirar é, pois, que sendo o número atual
dos escravos mais ou menos 1.435.000, dos quais 700.000 emancipados por força
da lei de 1831 e subseqüentes leis de 1850 e 1854, segue-se que há
em salários da raça negra 1.328.600.000$ para indenizar a emancipação
dos 735.000 restantes.

Tirada esta conclusão, que sai inteira e irrefutável da lei
de 1831, que se impõe à acepção geral; ninguém
pode de boa fé reprovar a atitude da imprensa em relação
ao pensamento abolicionista, que há mais de quarenta anos atravessa
todas as camadas do país, e que presentemente agita o espírito
público sensato. Diante do direito positivo, que é a única
base da escravidão, a escravatura está extinta de jure entre
nós.

O interesse dos senhores fazendeiros pode entender que há um perigo
em discutir esta matéria, mas a sociedade deve responder-lhes que a
sua missão principal é ser órgão da Justiça
e do aperfeiçoamento dos associados. O interesse é, pois, forçado
a calar-se diante do Direito.

Entretanto, tirando a moderação da própria gravidade
do problema, o folhetinista não levanta um grito de revolta, mas unicamente
um alarma a favor dos próprios possuidores do solo.

Os agricultores têm visto que o atraso dos seus processos de cultura
os tem colocado em dificuldades diante do mercado do mundo, a ponto de não
lhes ser possível arrostar a concorrência. Foi assim com o açúcar,
foi assim com o algodão. O café por sua vez não tem tido,
apesar da sua qualidade atual, a boa reputação que lhe compete.
Longe, porém, de promover a vulgarização do gênero,
o Governo ainda agora concorre para estagnar a venda nos Estados Unidos, onde
melhor nome havia conseguido o café brasileiro.

Esse ato é de uma importância extraordinária, porque
gera no mercado a suspeita de ter de entrar em luta com um negociante como
o Governo, que não perde com a perda, e que não ganha com o
lucro; suspeita fundada, porque o parlamento, longe de condenar a desastrada
intervenção do Governo, antes o aplaudiu.

Por outro lado, a cultura do café aumenta anualmente em todo o mundo
e com a cultura aumenta a produção. O cálculo da produção
próxima de café no mundo há de vir a pesar necessariamente
no espírito dos agricultores, que já têm dolorosa experiência
da maneira pela qual são apeados da preponderância no mercado.

Nestas circunstâncias, parece que o melhor caminho que pode ser dado
à questão da escravatura não é a dos engenhos
fazendeiros, mas a do parlamento. Aí se verificaria como a escravatura,
longe de ser uma garantia da produção, é hoje uma grande
ameaça ao seu desenvolvimento.

Hoje ninguém mais pode impedir que haja entre o senhor e o escravo
uma suspeição, que se há de aumentar dia a dia. O senhor
pelo temor da abolição, o escravo pela convicção
de que a sua posição não tem base nem na lei, nem na
natureza; tratarão ambos de se prejudicar o mais possível. O
senhor buscará extrair da mina negra todo o ouro possível, sem
pensar no prejuízo, que resultará de exauri-la. O escravo buscará
por todos os meios produzir o menos que lhe for possível.

O prejuízo de tal luta não será, porém, sofrido
unicamente pelos dois lutadores, mas pela sociedade inteira. O resultado será
em definitivo o fenômeno, que querem conjurar pela inércia -a
diminuição da produção. A este fenômeno
deve-se acrescentar que a diminuição não traz nenhum
proveito para o país; porque não é a iniciação
de uma época nova, mas o gasto imprevidente do sistema de trabalho.

É, pois, um direito social inconcusso agitar e insistir na questão.

Um fazendeiro estadista, o sr. presidente do Conselho, disse que o meio de
cortar a dificuldade era lançar um imposto geral. E a causa é
que se fosse lançado um imposto especialmente sobre os lavradores,
estes o fariam pagar pelo próprio escravo, ao qual aumentariam uma
hora de trabalho.

Cumpre observar desde já que não é a sociedade que deve
ao fazendeiro, ao proprietário de escravos. São eles que devem
à sociedade. Além disso a confissão ingênua do
sr. presidente do Conselho é a condenação dos seus próprios
clientes, e deixa ver bem qual o pensamento do atual fazendeiro para os seus
escravos. A frase é -produz, besta, embora morras.

Mas, se o fazendeiro assim procede, a sociedade pode ter confiança
de que pela condescendência com ele garantirá de futuro a produção.
O fazendeiro não vendo no escravo um instrumento de riqueza social,
mas uma propriedade sua, pode garantir à sociedade a firmeza da produção?

O folhetinista não acredita. Está certo de que o fazendeiro,
por falta de compreensão do problema, é o menos competente para
falar a respeito.

Não advoga senão o seu próprio interesse, não
visa senão à conservação do seu bem.

A lei, em nome da sociedade, deve intervir para criar a pequena propriedade,
para criar o colono no seio dos trabalhadores atuais, para fazer com que a
própria escravidão contribua para a segurança da produção.
O folhetinista procurará demonstrar a possibilidade de tal mudança,
olhando-se para a pátria e não somente para o fazendeiro.

6 set. 1880

8-III-1880

Visconde do Rio Branco

A semana foi ocupada por um esquife, que se alongou por sobre os seus dias
até a mais remota posteridade.

Não é muito porque ele continha as esperanças de mais
de um milhão de homens.

O nome do homem que tinha tamanhas dimensões, cuja vida era servida
pelos corações de uma geração inteira de desgraçados,
o país o sabe, a história o registrou, o folhetinista o tomou
para merecimento destas linhas.

Victor Hugo, nos assomos de sua imaginação incomparável,
pintou um quadro esplêndido.

Um sultão, acostumado a vergar cabeças como o vento as searas,
duro, mau, capaz de assistir ao morticínio de uma cidade sem uma única
contração da face, sai a passeio.

O sol obriga a natureza a modorrar, amolentada pelo rigor da canícula.

Há na alta vegetação como que uma síncope, a
galhagem ramalha com a frouxidão da queda de um braço alevantado
a um desmaiado.

Uma cena triste vem chamar a atenção do passeador abstrato.

Alguns homens estão à sombra de uma clareira. Um deles acaba
de enterrar uma faca larga e polida nas entranhas de um porco; o sangue golfa
em borbotões da profunda ferida.

Há nas faces do que mata a satisfação do lucro. Os seus
companheiros, rindo alegremente, trazem palhas para atear a fogueira que devia
lavar em chamas o couro do animal.

O sultão aproxima-se; o moribundo revira para ele os olhos negros,
banhados na ternura dolorida que lhes punha a angústia da morte.

A alma dura, ambiciosa, que ensurdecia a todas as grandes dores, comove-se.
Com um aceno imperioso susta o tremendo sacrifício da vítima
indefesa, e, num transporte de sentimentalismo profundo, como que se lhe embaciam
os olhos uma lágrima.1

Volvem os anos. A morte vem surpreender o poderoso dominador dos crentes
no meio do fastígio do poder. Todas as galas da vida faustosa confundem-se
dentro em pouco com a podridão do último dos vermes.

O cenário é agora na região das crenças religiosas,
para além das estrelas, onde a luz é intensa como se a sombra
da terra, batendo nos contornos das constelações, produzisse
o efeito de um abat-jour no globo de um lampião enorme.

Comparece triste e desamparada a alma do sultão. O brilho da bem-aventurança
ofusca-lhe a vista consagrada a espiolhar, com a gula do tigre, a dignidade
dos seus súditos.

O tribunal resplende, com o fulgor divino, e com a austeridade da justiça
inquebrantável.

Um anjo segura a balança em que se pesam as ações humanas,
mas ai! só a concha destinada ao mal pode ser carregada. A fisionomia
dos juízes tem a tristeza dos espíritos bons quando obrigados
a condenar. O eterno aresto está quase a magoar os lábios do
juiz supremo.

Nisto ouvem-se no tribunal os sons de uma voz estranha que se semelha a um
grunhido doloroso. No azul imaculado aparece uma mancha negra, transluzindo
um brilho que era como um descor crepuscular.

Ah! exclama o anjo: e na balança que pesa ouro fio as ações
da humanidade, deposita a piedade do grande senhor contra o animal desprezado.

Imediatamente os braços do sempiterno instrumento começam de
pender, e, agora, em vez de inclinar-se para a concha do mal, carregam-se
para a concha do bem.

E o sultão, às bordas das galés eternas, ouve-se aclamado
para a bem-aventurança.

O folhetinista pediu à imaginação do poeta a expressão
do que sente pela memória do visconde do Rio Branco. Não teve,
é certo, a fereza de carácter do pontífice dos crentes.
Era, pelo contrário, nobre e generoso; não tinha pela humanidade
o tremendo desprezo, que fazia aquele rejubilar-se com as inundações
de sangue.

Não obstante, teve erros, os quais talvez ainda tenhamos de resgatar
com as armas e com o sangue.

Enviado ao Rio da Prata continuou a política do marquês do Paraná;
e essa política foi para o Brasil uma infelicidade, porque deu fundamento
à suspeita de intervenção, causa quase irremovível
dos receios dos nossos vizinhos e de grandes encargos para os nossos orçamentos.

Ainda aí, porém, é força distinguir o procedimento
que tinha como arma a finura do trato e a delicadeza dos meios.

A História, obrigada a fazer justiça, pesará seguramente
todos os atos do grande homem e proferirá as suas sentenças
com a extensão que tinha o seu talento, a sua ilustração,
os seus princípios honrados pelo trabalho e pela pobreza.

Um ato da vida do visconde do Rio Branco basta, porém, para resgatar
toda a sua vida política.

Glorioso, aclamado, levantando populações de volta à
pátria, o homem de Estado teve no auge do poderio a piedade do temido
islamita.

Encontrou no seu caminho um animal moribundo. Revoava sobre ele o mosqueiro
da cobiça, nutrindo-se da sangueira que dele se derramava.

A posição desse animal era em tudo igual à do porco
em terras do Islame; o seu horizonte limitava-se também à lama
e ao desprezo.

A sociedade, cheia de repugnância pela digestão das suas carnes,
negava-se a recebê-lo nesse estômago sadio em que principia a
preparação do sangue das nações: -a família.

Negavam-lhe tudo: o aperfeiçoamento da inteligência, as inspirações
da vontade, as expansões do sentimento.

Davam-lhe para morada habitações infectas como os chiqueiros;
engordavam-no por aspiração de lucro, porque nos músculos
robustecidos por uma ceva feita à custa do caldo de cana, e dos aferventados
dos inhames, viam a probabilidade de capinação mais expedita
e de colheita mais abundante.

Encerrada na mais baixa humilhação, tendo como espectro alevantado
diante da sua vontade o chicote do feitor; vendo os filhos mandados para longe
dos seus carinhos, os pais para bem distante do seu amparo, as esposas para
lugares afastados dos seus amores; todos os sentimentos desses pobres seres
desprotegidos acabavam por embotar.

Na lama, que de toda a parte os cercava, entregavam-se à promiscuidade
e à lascívia dos porcos; no detrimento do espírito deixavam
que se bacanalizasse a carne.

O visconde, com a cabeça ainda cingida pelos louros triunfos colhidos
no campo da diplomacia; com os ouvidos ainda azoinados das aclamações
de um povo, parou ao pé do mísero animal, e comoveu-se de tão
inditoso destino.

Dobrou uma página do livro da glória, fechou-o por momentos,
para ir abrir o arquivo sombrio em que inscrevera com as lágrimas da
penúria, com as tristezas do trabalho pouco recompensado, os primeiros
anos da mocidade.

De toda parte levantaram-se clamores. A grande propriedade que levantara
e engrandecera o partido, que consentiu que o estadista desse aplicação
a sua vocação; a grande propriedade trocou os aplausos da véspera
em maldições tremendas.

A voz dos seus representantes esqueceu muitas vezes a urbanidade, e respondendo
à discussão com a ameaça, à sinceridade com o
apodo, à condescendência com o insulto, tentou sufocar a palavra
do adversário, que fazia ecoar no seio da lei os gemidos de uma raça.

Mas o mensageiro da civilização aos arraiais negros da cobiça
caminhou impávido. Todos os dias arquivava uma amargura, mas em breve
no livro do sofrimento acabaram as folhas em branco, e o estadista teve de
voltar a escrever no outro, que por meses estivera fechado.

Neste dia, porém, estava terminada também a via-sacra do sofrimento,
e ele voltou à estrada larga da glória.

O animal desprezível redimira-se em parte, e teve, ao menos, um testemunho
de que tinha também direito à vida, fora do lameiro.

O ventre da escrava, do animal, que era até então o laboratório
da miséria de uma raça e da vergonha de um povo, passou a ser
a matriz sacrossanta onde a liberdade fecunda uma geração de
cidadãos.

Este único ato da vida do cidadão era muito para a sua grandeza
diante do futuro, a que ele dava habeas corpus da prisão forçada
em que esperava os descendentes da escrava. Mas na hora de morrer, ainda quis
tornar-se maior.

A sua última palavra foi uma proclamação do Direito
que a civilização advoga.

Pediu que deixassem evoluir tranqüilamente a idéia, que caminha,
impelida por séculos de sofrimentos e de humilhação.

-«Não perturbem a questão do elemento servil» -foi
a última frase dos lábios que haviam chamado, com a doçura
de Jesus, as criancinhas negras à comunhão do Direito e da Justiça.

Pois bem: como na lenda do poeta o afago do sultão ao animal moribundo
bastou para resgatar-lhe o crime de hecatombes, esta única frase, posta
na balança da História, em contraposição a todos
os erros políticos da carreira do eminente estadista, basta para restabelecer-lhe
o equilíbrio e constituir para a sua memória a imortalidade
nas bênçãos da nação.

Dentro em poucos anos a geração emancipada pelo visconde do
Rio Branco sairá das senzalas para a casa do homem livre.

Trará no coração a dolorosa lembrança do cativeiro.
Sentirá a sensação inexplicável de quem sai da
desgraça para entrar logo na ventura, na maior das venturas: a liberdade.

O quadro da fazenda se esbaterá sombrio na sua imaginação.
Lembrar-se-á do cafezal nas madrugadas frias; do canavial ao meio-dia,
do canavial, que, à semelhança de um inquisidor a serviço
do seu senhor, farpeava-lhe impassível a pele suarenta.

Neste dia ele, que não podia levantar os olhos, que não podia
sentir sem que lho proibissem, que não podia querer sem que cometesse
uma insubordinação; nesse dia de delícias indizíveis,
quando ele puder como qualquer outro dizer: eu quero, eu amo, eu sustento
isto; há de necessariamente lembrar-se do grande benfeitor.

Sentindo-se homem, lutará contra quem quiser enxovalhar seus pais;
sentindo-se livre, bradará contra quem escravizar os entes a quem mais
preze; e, ainda nessa hora de energia, ressoada na dignidade do seu amor filial,
o nome do visconde do Rio Branco será por ele abençoado.

Foi talvez pela antevisão desse tremendo resultado que o moribundo
soltou no limiar da morte um grito de concórdia.

O folhetinista pede-a também em nome do morto. A perturbação,
que será filha da resistência insensata, será a ruína;
e não foi isto o que teve em mira o trabalhador audaz, que foi minerar
cidadãos nas jazidas negras da escravidão.

8 mar. 1880

21-II-1881

O Governo prepara-se para executar a sua palavra de honra, de dar à
urna a verdade relativa de que ela é capaz.

Ocupa-se com a nomeação dos presidentes.

Parece deliberado a empregar a flor da sua confiança, para perfumar
os dias eleitorais das províncias.

Há com certeza o melhor intuito da parte do Governo, e a prova é
a indicação do nome do sr. Martinho Campos.

De feito, a questão de mais alcance, que preocupa hoje a vida nacional,
é a conversão do trabalho escravo em trabalho livre.

O problema da escravidão colocou-se definitivamente em face do país,
e pede uma solução.

O véu espesso com que até hoje o Império tinha conseguido
ocultar aos olhos do mundo a medonha monstruosidade, que se constituía
pelo calote, pela quebra de compromissos os mais solenes, pela fraude da lei,
pela conivência do Governo com os traficantes de mercadoria; esse véu
negro sobre o qual o Império aplicou a lei de 28 de setembro, para
melhor mascarar o seu crime, acaba de ser despedaçado.

A humanidade civilizada começa a olhar para dentro do Brasil, e, apesar
da parede de interesses que tenta empanar-lhe a vista, ela consegue ver os
horrores até hoje mascarados.

Dentro do país a agitação dos espíritos é
tamanha, que parece ter a aspiração de medir a sua generosidade
pela desgraça daqueles cuja causa esposa.

O número das manumissões cresce; as assembléias do Sul
legislam contra a invasão dissimulada das províncias do Norte.
Proíbem indiretamente a pirataria interior. Abrem um valo em torno
das suas fronteiras; abrem para o escravo uma nova época, em que a
sua pessoa começa a aparecer através do animal, da cousa, que
era.

O mercado de escravos paralisa-se: o preço da carne humana baixa consideravelmente.

A escravidão vê rarear o número dos seus defensores;
ao passo que o escravo vê que vai ter como apóstolo um povo inteiro.

O crédito, o termômetro real da economia, nega-se a aceitar
a base negra.

Enfim, por manifestações populares, legislativas e comerciais,
percebe-se que, dentro em pouco tempo, meses no máximo, o país
será obrigado a pedir ao parlamento a sua palavra, o seu juízo,
o seu aresto sobre a escravidão.

O Governo tem plena convicção de que o parlamento não
se pode pronunciar em sentido oposto ao da vontade expressa da nação.

O ano passado, quando ainda o movimento abolicionista não passava
do ímpeto de meia dúzia de homens generosos, o qual, representando-se
primeiramente na imprensa, afirmara-se em seguida no parlamento; o ano passado,
quando se podia saber se havia uma força que tornasse esse movimento
uniformemente acelerado; o Governo, que entende que estávamos bem dentro
da lei de 28 de setembro, viu-se obrigado a ceder à reclamação
do sr. Joaquim Nabuco, relativamente ao fundo de emancipação.

Um ano antes quebraram-se em vão lanças por essa idéia,
no entanto, pouco depois, dentro da mesma legislatura, e com a mesma Câmara,
trabalhando no Senado os mesmos oposicionistas de que o Governo dependia,
o fundo de emancipação é dobrado.

A vitória abolicionista não pode ser mais clara; negá-la
é impossível.

Em face de semelhantes fatos, o que é a nomeação do
sr. Martinho Campos? Julgará acaso o Governo que, tendo consentido
na sanção da lei de averbações, fez o que podia
a respeito do escravo?

Quer o Governo, com a nomeação, declarar que não dará
entrada na Câmara à idéia abolicionista?

A nomeação é, pois, um caso gravíssimo.

O Governo sabe que o sr. Martinho Campos tem como grande honra ser escravocrata.

Sabe também que a lei de averbações interpretada pelo
Governo provincial pode na primeira parte da interpretação dar
lugar a grandes abusos.

Ora, o sr. Martinho Campos é de opinião que a escravidão
é uma prova de caridade cristã; que o senhor faz um grande favor,
presta um grande serviço ao seu escravo.

Em virtude dos seus princípios, levado pela melhor intenção,
pois que é a sua convicção, o sr. Martinho Campos pode
perfeitamente consentir na violação da lei de averbação.

Não será um ato de que sua consciência o exprobre. S.
Ex.ª tem unicamente em mira fazer uma obra meritória. Abrindo
as portas da província ao mercado clandestino de escravos, S. Ex.ª
franqueará apenas aos fazendeiros ocasião para praticarem uma
boa ação.

Este perigo iminente de ser burlada a lei aumenta com uma consideração.

A determinação legislativa deve apenas vigorar durante um exercício
orçamentário. A presença do sr. Martinho Campos, combinada
com a hipótese da dissolução da Câmara, é
uma séria ameaça de que no futuro exercício a disposição
orçamentária desaparecerá.

Estas hipóteses, que dizem particularmente respeito à economia
administrativa da província, são por si graves motivos de suspeição,
as quais militam contra a escolha do sr. Martinho Campos para a presidência
do Rio de Janeiro.

A influência do sr. Martinho Campos junto do atual Gabinete é
incontestável e incontestada.

S. Ex.ª, que até o ano passado nunca teve força para nomear
um contínuo, porque a sua carreira gloriosa no parlamento o punha em
sítio para com o Governo, põe e dispõe agora do gabinete.

Mas o sr. Martinho Campos rompeu com a sua vida de oposicionista, e durante
a última legislatura praticou muito dos atos que foram por S. Ex.ª
mesmo censurados.

Sepultou o seu passado de político impecável, e aconteceu-lhe
então como Inês de Castro, que só depois de morta foi
rainha.

Hoje o sr. Martinho Campos quer, pode e manda.

S. Ex.ª está no seu direito de dizer -eu chovo!

O seu procedimento nas eleições será necessariamente
sancionado pelo Governo, que seguramente não quererá aumentar
a sua oposição com a palavra do sr. Martinho Campos, que tem
por si uma lenda de terror.

A Província do Rio de Janeiro, porém, estará obrigada
a receber o sr. Martinho Campos com cara de Páscoa?

S. Ex.ª foi pelo Governo incumbido de dirigir a divisão dos círculos
da província. Arranjá-los-á, de certo, ao seu modo, apesar
do sr. Paulino.

Feito o trabalho da divisão, organizado o maquinismo, é o mesmo
sr. Martinho Campos quem o deve fazer funcionar?

Esta concentração de força na mão de um só
homem, cujas idéias são positivamente contrárias a qualquer
avanço no sentido do melhoramento da condição escrava,
não é uma questão séria contra a nomeação
do sr. Martinho Campos?

O parlamento, ou por vontade ou por força, será chamado a pronunciar
sobre a escravatura no Brasil.

Questões de maior alcance, relativas à abolição,
estão agitando-se no pensamento e na consciência da nação.

A dificuldade que há em conseguir unicamente do Poder Judiciário
o cumprimento dos tratados e das leis que aboliram o tráfico, exige
da parte do parlamento uma solução definitiva.

Pensa o Governo que o partido abolicionista está disposto a calar-se
e a deixar que os gabinetes, no interesse da sua conservação,
transijam com as opiniões dos indivíduos a quem teme?

Pensa o Governo que, armado com a lei escrita, com as obrigações
mais solenes tomadas pelo país; armado com o prestígio que lhe
dá, por um lado o terror dos adversários, por outro as aclamações
do povo civilizado, cederá terreno e consentirá que se mantenha
no mesmo pé a questão?

Não conta com a própria coragem que dá o perigo, não
conta com o impulso natural da consciência dos propagandistas, impulso
que é filho da certeza, ou de vencer, ou de desonrar-se?

O Governo vê, pois, que é materialmente impossível impedir
que o parlamento seja constrangido a dizer a palavra da lei sobre o assunto.

O que a boa política aconselha é que o Governo não irrite
o debate.

Um dos meios a empregar é pelo menos aparentar isenção
nas eleições; é dotar as províncias com administradores,
que, pelo menos, não tenham uma acentuação positivamente
escravagista.

Além das recordações tristíssimas da última
sessão legislativa, durante a qual negou-se ao partido abolicionista
até o direito de fazer perguntas ao Governo, relativamente a leis não
revogadas, leis que não podem ser revogadas sem que um povo inteiro
falte à sua palavra; sessão em que planearam-se as mais vergonhosas
ciladas à liberdade da tribuna parlamentar; desde a intervenção
de ministros em questões de ordem; as discussões sobre um requerimento
de urgência e a negação desta para a simples fundamentação
de um projeto; além de todas essas recordações, o partido
abolicionista terá como argumento a nomeação dos administradores
de província.

O Governo sabe perfeitamente que é um perigo assentar a ordem sobre
desgraça de mais de um milhão de homens.

O coração dos oprimidos bate sempre com extraordinária
violência, e, por mais peritos que sejam os operários do Governo,
eles não conseguirão assentar solidamente alicerces em um terreno
sujeito a contínuos estremecimentos.

A ordem só é durável quando é o progresso realizado.
Ora, ninguém ousa negar, nem mesmo os escravagistas, que a liberdade
do trabalhador agrícola é um progresso. O parlamento que se
negar a incorporar na legislação esse progresso, contribuirá
decididamente para a anarquia.

O Governo faça, pois, o que entender: nomeie, se lhe aprouver, o sr.
Martinho Campos presidente de todas as províncias do Brasil.

As portas do parlamento hão de se abrir necessariamente à idéia
abolicionista, porque, se aquele tem os sufrágios dos amigos do sr.
Martinho Campos, a idéia abolicionista tem por si os sufrágios
da humanidade inteira.

Gazeta da Tarde

19-VI-1882

Duas vezes chamadas a pronunciar-se a respeito da questão servil,
as câmaras da situação liberal têm votado o silêncio.

Não quis a primeira Câmara desta situação discutir
o projeto Nabuco; a segunda acaba de negar-se ao debate do projeto proibindo
o tráfico interprovincial.

Apreciando o voto pelo valor moral de quem o dá, o fato não
deve causar admiração.

A dignidade é o ambiente necessário à coragem das opiniões
e a situação liberal nasceu, consolidou-se, vive, e há
de morrer, sem dignidade.

O Governo é a Cápua desses cartagineses irrequietos. Aí
amolecem, desfibram-se e aniquilam-se em rega-bofes de cama e mesa, na farta
fruição dos despojos opimos do eterno combalido -o tesouro.

O voto da Câmara não nos surpreendeu, portanto. Foi para nós
uma simples afirmação do que pensávamos a respeito desse
conluio indecente, presidido pelo bacalhau de Cebolas e o anjinho de Macuco.

Seria fenomenal obter duma casa de tolerância o sufrágio do
pudor nacional. O que ali tem valor é a mesa de tavolagem em que se
jogam garantias de juros, subvenções, empregos e candidaturas.

Pouco se importa o sr. Prado Pimentel, por exemplo, que a escravidão
seja uma tremenda mancha para o país.

S. Ex.ª, bela peça, um bom mulato, sabe somente que a pele dos
africanos, seus ascendentes, pode servir de pergaminho a diplomas de deputados
de sua laia.

No caso do sr. mulato Prado Pimentel está a maioria da Câmara.

Nós os conhecemos. Eram uns vadios sem eira, nem beira, uns bacharéis
escrevinhadores que formigavam na oposição, como vermes, em
torno de uns homens de nome feito.

À tarde descompunham o Governo, à noite enluvavam-se e iam
namorar as filhas dos fazendeiros. Diziam alto quais os dotes presumíveis.
Iam às conquistas avisando que não eram tolos, que não
estavam para morrer de fome.

O sr. Sousa Carvalho definiu bem este modo de viver: é o judaísmo
oposicionista. S. Ex.ª teve uma vantagem sobre todos esses demolidores
do amor da família e da pátria: ficou fora como advogado, cavando
as minas das secretarias com a sua pena.

Essa origem do que S. Ex.ª tem hoje a perder, não podia deixar
de prejudicar-lhe os sentimentos patrióticos.

Já o violento Rouillères dizia a Mirabeau que era indispensável
a justa compreensão do valor moral da família para bem sentir
o amor da pátria.

Ora, quem edifica a família sobre a especulação do dote,
quem não faz do matrimônio senão uma origem de fortuna,
cujas fontes, assim como foram a pirataria nas costas africanas, podiam ter
sido o bacamarte e a emboscada na estrada; quem não se vexa de testar
aos filhos as lágrimas e a liberdade de irmãos, não pode
ter da pátria compreensão diversa da que tem a Câmara
dos Deputados da situação liberal. A pátria é
um vasto arraial onde se faz a feira brutal e ignominiosa da honra de um povo.

O voto da Câmara não nos surpreendeu, portanto. Não podia
ser outro, devia ser este mesmo: negar-se à discussão.

Nós que escrevemos por inspiração da honra do país
para o mundo civilizado; nós que temos a responsabilidade do futuro,
que não engordamos à custa das privações das senzalas
para acabar estupidamente na administração por uma degenerescência
gordurosa da probidade individual e do civismo, temos o direito de desprezar
o voto da Câmara para interrogar o imperador.

O que conclui Sua Majestade dos fenômenos a que assiste?

Enquanto a Câmara dos seus representantes se nega a discutir, enquanto
o sr. Martinho Campos, agente do Poder Executivo, celebra pactos monstruosos
com o sr. Paulino de Sousa, o Machiavel fanhoso, enquanto os presidentes de
província como o sr. Gavião do Marmeleiro e o sr. Sancho-Pança
de Sergipe suprimem ou ameaçam associações, o sentimento
abolicionista revivesce.

Na capital quinze associações disputam-se a primazia na coragem
cívica e na dedicação pela sorte dos cativos; em S. Paulo
desabrocha o sentimento abolicionista em clubes nos principais órgãos
da sua imprensa; no Rio Grande do Sul a propaganda assoberba todas as dificuldades,
coroando-se com o prestígio do nome de Silveira Martins; no Ceará
dão-se as mãos todos os grandes elementos das grandes transformações.
Desde a vela branca da jangada até o sorriso da mulher, desde a dedicação
dos homens eminentes até a greve dos artistas, tudo é esperança
para os cativos naquela província, sobre a qual se curva, como auréola
inextinguível, a luz equatorial.

Não sente Sua Majestade alguma coisa de extraordinário nesse
momento que em dois anos se comunicou a todo o país?

Não lhe parece que é o produto de um terremoto que se aproxima?

Quando fender-se o amaldiçoado solo árido, que tem bebido por
três séculos o suor e o pranto de milhões de homens, não
teme Sua Majestade que uma das ruínas seja o seu trono?

A lealdade impõe-nos uma advertência a Sua Majestade.

Com uma fisionomia protéica, mudando de aspecto conforme o ponto de
que é vista, só há atualmente neste país uma questão
séria: é a abolição da escravidão.

Para ela convergirão fatalmente pelo impulso da propaganda, como pela
resistência dos oposicionistas, todas as energias vivas do país.

Dentro em pouco o que é hoje o conluio negro dos srs. Martinho &
Paulino será o procedimento de todos os Vernecks e Prados Pimentéis
do escravagismo, para a formação do Exército negro.

Um movimento geral de aliança se dará naturalmente, como está
iniciado, de todos os abolicionistas, formando a legião sagrada, que
terá como estatutos a nossa palavra solenemente empenhada no ato do
reconhecimento da nossa independência.

A luta que se travar não ficará no terreno estreito das discussões
do Segundo Reinado.

A sorte da Monarquia brasileira será nela resolvida.

Os Braganças brasileiros têm consolidado o seu trono com as
revoluções e por isso, provavelmente, Sua Majestade promove
pelos seus dóceis instrumentos, por todos os Martinhos do seu uso,
a revolução abolicionista.

O resultado da provocação de Sua Majestade é ainda um
segredo, e o tempo das profecias passou.

Lembre-se, porém, Sua Majestade, de que os elementos são diversos.

As revoluções de que Sua Majestade tem notícia nasceram
de simples questões políticas, de paixões muitas vezes
ridículas. Poucas foram as que se inspiraram em grandes sentimentos
e estas venderam muito caro a derrota.

No presente o móvel é inteiramente diverso. Os soldados não
irão buscar no fogo as dragonas do comando; as balas serão simplesmente
o alfabeto que vai escrever na nossa história um decreto de fraternidade
humana.

Sua Majestade podia, se quisesse, fazer um grande serviço ao país.

Era simples. Chamar o sr. Martinho Campos, muito à puridade, e dizer-lhe
assim:

«Martinho: você vê o que estão fazendo a sua câmara
e o seu ministério.

O Alves de Araújo declara-se patrono de um indivíduo. Tiraram-lhe
um quiosque.

Pois bem, o Manuel comovido dá de presente ao referido indivíduo
um logradouro público.

O Franco de Sá não se ajeita com a pasta.

Já descobriu um rio, que nunca existiu.

O Mafra é uma desgraça. Coitado, vale menos que as ordenanças
que o acompanham.

O Rodolfo, apesar de ser um pouco vivo, é o que você sabe. Não
diz coisa com coisa.

O Pena é uma lástima. Não sabe uma palavra a respeito
dos negócios da pasta. É um polichinelo, puxado pelos cordéis
dos oficiais-de-gabinete.

O Carneiro da Rocha é bom, mas se continuar por muito tempo em companhia
de vocês, fica perdido.

Quanto a você Martinho… Bom, excetuam-se os presentes.

A Câmara, Martinho, é uma vergonha. Você bem sabe qual
é a opinião do povo a respeito do Sousa Carvalho e do Cândido
de Oliveira. Dizem que estes dois sujeitos não cortam as unhas. Acerca
do primeiro contaram-me que você apostou quinhentos mil-réis
em como ele não seria por mim escolhido.

Ora são esses dois e o Penido, um pobre de Deus, inofensivo, excetuante
a gramática, os seus grandes corifeus. É verdade que os Afonsos
também ajudam, mas você deve estar lembrado do café…

A menos que você, quando veio para cá, não houvesse deixado
a memória afogada no lodo do Manuel Pinto (não é o Dantas),
rio que fica na vizinhança do matadouro, deve ter de memória
que tais governos são mal vistos pela opinião. Seu Martinho,
faça-me um favor, vá-se embora. Olhe, eu o nomeio conselheiro
de Estado. Você paga o que deve ao Banco, entregando-lhe a fazenda;
arranja como puder outro negócio, e vai viver descansado, porque fica
com um conto e tanto por mês.

Vá-se embora, seu Martinho.»

Era este um grande serviço de Sua Majestade ao país.

19 jun. 1882

17-VII-1882

Dar ao nosso país plena e absoluta certeza das intenções
patrióticas, que nos colocam em oposição permanente às
instituições vigentes, foi o nosso intuito concedendo armistício
voluntário ao atual ministério.

Acusavam-nos de impaciência, de açodamento prejudicial; respondemos
por um tratado público de paz, demonstrando assim que o nosso intuito
é conseguir pacificamente a grande reforma de que depende a moralidade
política e civil do país -a abolição da escravidão.

A nossa atitude, a nossa linguagem para o ministério e o imperador
tem sido a de um aliado leal, que procura usar de suas forças de modo
a desbravar o caminho à magna reforma.

Não quisemos regatear glórias ao imperador e ao Ministério.
Condescendentes na vitória, como somos enérgicos a inexoráveis
na luta, deixamos ao Governo a redação dos artigos de lei, que
devem operar a pacificação geral dos ânimos e dar à
propaganda abolicionista a serenidade indispensável a um debate, em
que entram de par com os mais imprescritíveis direitos da civilização
os mais vitais interesses do país.

Há quinze dias que vive o Ministério 3 de Julho.

No estado atual da propaganda abolicionista, nenhum Governo que tenha exata
compreensão da sua responsabilidade histórica, pode assumir
a direção dos negócios públicos sem ter um plano
assentado acerca da questão, cuja complexidade enleia o país
na sua honra e na sua riqueza.

Subir ao poder sem um projeto é confessar implicitamente a mais perigosa
incapacidade.

A Câmara dos Deputados finge acreditar que derrubou o sr. Martinho
Campos numa questão de revisão eleitoral.

A verdade, porém, é que o Ministério de 21 de Janeiro
caiu por impossibilidade de se manter.

A opinião havia tornado imprestável a canoa carregada de interesses
escravagistas.

Repugnava à imprensa, enjoava o parlamento o Ministério, que
se ufanava de ter como bandeira o pano negro do tráfico.

Via-se que em vez de intimidar a propaganda abolicionista, esta pelo contrário
se acentuava cada vez mais e já se preparava para abandonar o terreno
da discussão e colocar-se no do combate.

O próprio programa ministerial veio desmentir a Câmara.

Ela havia tolerado as declarações do presidente do Conselho;
tinha-lhe continuado o apoio, apesar da confissão de que era escravocrata
da gema.

Pelos atos do parlamento, pois, o novo ministério não era obrigado
a incluir no seu programa a questão servil.

A Câmara dos Deputados não lho podia exigir, quando havia dias
antes rejeitado a urgência ao projeto proibindo o tráfico interprovincial.

O Senado não lho exigiria também porque os srs. Silveira Martins,
Otaviano e Silveira da Mota, os liberais mais adiantados no assunto, não
se julgaram no dever de apresentar projeto.

A inclusão do elemento servil no programa do Governo foi, portanto,
uma vitória exclusiva da opinião.

O ministério canalizou assim uma torrente que ameaçava inundar
tudo e inundará, se, em vez do canal, cavar-se fundo na legislação,
for simplesmente um desvio temporário.

De duas uma: ou o sr. Paranaguá tem projeto feito e cumpre apresentá-lo
com a maior brevidade, ou o sr. Paranaguá nada pensou, nada resolveu
a respeito, e é incapaz de governar.

Devemos ao ministério e ao país a máxima franqueza.

A maioria dos homens, que assumiram a responsabilidade do movimento abolicionista,
está de tal modo comprometida com as esperanças dos escravos
e com as convicções de suas consciências; adiantou-se
tanto e com tamanho impulso que lhe é impossível parar.

Se o Governo pretende por um adiamento quebrantar as forças abolicionistas,
engana-se fatalmente.

O que está feito basta para fazer voar, numa explosão tremenda,
homens e instituições, se, fechando os olhos à Justiça,
quiserem servir os interesses da pirataria triunfante.

Já não está nas mãos de ninguém conter
o movimento, que é filho do impulso combinado do pudor do nosso tempo
e das injustiças de três séculos.

Para os raios dessa horrorosa tempestade só há hoje um recurso,
é o pára-raio da lei.

Fácil será ao Governo levantá-lo no vértice do
parlamento.

Basta tonificar-se com a opinião e meter ombros resolutamente ao trabalho,
que se não for aplaudido pelos interesses negreiros, nem por isso deixará
de o ser pela maioria da nação e pela posteridade.

Não blasonamos, prevenimos.

O adiamento da questão pelo Ministério, que dizem unicamente
ocupado com a reforma judiciária e planejar somente o aumento do fundo
de emancipação, começa a produzir desconfiança
no seio da família abolicionista.

Não é o fundo de emancipação, duplicado ou triplicado
o que se pede.

Este paliativo será, quando muito, aceito pelos contentáveis.
A maioria da nação rejeita-o como uma das muitas artimanhas
do Segundo Reinado para iludir a boa-fé pública.

O que se pede é a inamovibilidade pronta da escravidão; a conversão
imediata do escravo-mercadoria em instrumento necessário de trabalho,
mas instrumento remunerado, com a esperança de ser trabalhador livre.

Desengane-se o imperador.

A opinião está formada acerca da questão servil.

Conhece-lhe o passado e o presente, sabe que a lei de 28 de setembro foi
um simples engodo, que deu em resultado uma hecatombe herodiana de crianças
e a redução dos africanos livres e seus descendentes à
escravidão.

Sabe que só a desídia do Segundo Reinado é a responsável
pela cegueira em que viveu o país, desbaratando as suas forças
na conservação de uma criminosa e hedionda instituição.

Ou o imperador coloca-se francamente à frente do movimento, aproveita
pela sua inércia constitucional o trabalho e o sacrifício dos
que tudo arrostaram para levar à alma do povo o convencimento de que
é preciso condenar já e de uma vez a escravidão; ou o
imperador terá o desprazer de ver os seus últimos dias entenebrecidos
pelo mais assombroso acontecimento da nossa história.

Uma recente estatística do sr. senador Godói, lembrada pelo
veterano dos abolicionistas, o dr. Nicolau Moreira, demonstra que a soma dos
trabalhadores livres nas principais províncias é muito maior,
mais do dobro da dos trabalhadores escravos.

Esta estatística põe-nos a salvo da acusação
de que promovemos o aniquilamento da fortuna pública.

Será o Governo o promotor de uma revolução desnecessária,
se quiser adiar uma solução que se impõe a todos os espíritos
sensatos.

Não cabe ao folhetim discutir os grandes problemas.

Ele se encarrega somente de levar à meditação do Governo
o pensamento abolicionista.

A responsabilidade ficará deste modo circunscrita aos verdadeiros
responsáveis.

E para concluir afirmaremos com a maior sinceridade:

Só há neste país uma forma de governo possível:
é aquela que resolver com justiça e com sabedoria a questão
servil.

Se o imperador cercar-se de homens dignos, se tomar a resolução
de fechar essa medonha história de lágrimas e crimes dando-lhe
como epílogo a liberdade, terá feito ao país um tamanho
serviço, que ninguém lho poderá contestar.

O seu trono estará assentado sobre a gratidão de um povo inteiro.
Se formos, porém, nós os republicanos os que levarmos por diante
o movimento, dobre Sua Majestade os seus meios de corrupção,
sirva-se de todos os recursos do seu processo de inutilizar homens e revoluções,
e verá que não conseguirá senão agravar a sua
sentença no tribunal da honra nacional e da História.

Convença-se o Governo que a vitória é dos abolicionistas
e que eles só cedem dos seus direitos, em nome da pátria, para
vê-los encarnados em uma lei redentora…

A abolição se fará no parlamento, ou na praça
pública; terá como laurel ou as claridades da paz, ou as labaredas
vermelhas do combate.

É por isso que ainda uma vez, em nome da pátria, convidamos
o Governo a trabalhar conosco unido por um pensamento de justiça e
de paz.

17 jul. 1882

28-VIII-1882

A augusta cobardia do parlamento e do Governo deve a esta hora resfolegar
serenamente.

Na questão da escravidão ela não se pejou de apelar
para a aliança da morte.

A sombria aliada tem sabido cumprir o pacto.

Anda pelas fazendas a recolher no ventre os negros condenados ao martírio,
os desgraçados que foram lançados à fornalha obrigados
a beber decoada submetidos à tortura da castração.

Anda pelas rodas de enjeitados a engolir esse lixo humano, criado pela lei
de 28 de setembro, o ingênuo, que o senhor atira à rua para fazer
do leite da mulher escrava a moeda, que sustenta a sua preguiça e o
seu luxo.

Esta peregrinação horrorosa não a cansa. Ainda lhe sobram
forças para vir bater às fileiras abolicionistas e levar daí
vítimas para a satisfação dos seus aliados.

Há três dias acometeu Luís Gama. A legião viva
da Justiça caiu de súbito, e o ruído da sua queda espalhou
nos corações de seus companheiros o temor supersticioso de que
são perseguidos por uma fatalidade!

Feliz governo o do sr. d. Pedro II. A corrupção e a morte formam
em torno dele uma impenetrável muralha.

Quem não se deixa corromper morre!

Na hora em que o parlamento premeditava mais uma vergonha para o país;
na hora em que para iludir a opinião ele se divertia em discutir às
pressas, para logo passar para o fim da ordem do dia, o projeto proibindo
o tráfico interprovincial de escravos, caía Luís Gama
para não mais se levantar.

A sua palavra fulminante substituía a tremenda afonia do túmulo;
o seu heroísmo inimitável cedia o passo à inércia
absoluta.

Feliz Governo o do sr. d. Pedro II.

Os acontecimentos agrupam-se sempre de modo a garantir-lhe a vitória.

Enquanto a confederação dos Ratisbonas aumenta, rareiam as
fileiras dos patriotas.

Causa victrix Diis placet, exclamou o poeta e nós repetimos com ele
esta sentença cruel contra a probidade política e o patriotismo
sincero.

Parece que a Divina Providência dos nossos estadistas se compraz com
o estado de coisas do país.

É ela quem mata a fé no coração popular; é
ela quem segreda o descrédito daqueles que se esforçam; é
ela finalmente quem se insinua como um veneno imperceptível no organismo
dos homens de caráter e os impossibilita de prosseguir na luta redentora
da pátria.

O sr. Ratisbona engorda e rejuvenesce e no entanto Luís Gama falece.

O que é vergonha para o país, perdura; o que é glória,
tem uma vida caduca.

A voz tremenda dos fatos ulula neste momento agoureiramente dentro do meu
cérebro. Confesso que tenho medo.

O Segundo Reinado dispõe de uma força superior a todo o país.

Só o imperador pode querer, sem morrer.

Ele quis a pirataria triunfante e teve-a.

A lei de 1831 foi rasgada escandalosamente sem que houvesse um protesto do
Governo.

Para que dessem por ela, foi preciso que os morrões da esquadra inglesa
se encarregassem de espancar as trevas do arquivo nacional.

Em vão a imprensa agarrava pela goela os piratas conhecidos e os trazia
para a praça pública, declinando-lhes os nomes e denunciando-lhes
os crimes.

Os homens do Império respondiam à imprensa banqueteando-se
com os piratas e condecorando-os.

Então, como hoje, esses infames que vivem do sangue dos seus irmãos,
esses miseráveis que procuram apadrinhar o seu crime com a riqueza
do país cobriam de baldões, babujavam de torpezas os nomes daqueles
que lhes faziam frente.

E afinal conseguiam impor silêncio!

Foi assim que se passaram vinte e um anos de 1850 a 1871 sem que nada se
fizesse para punir a ladroeira, a mais torpe que o mundo tem visto e que o
sr. Ratisbona aplaude.

Quando a civilização veio de novo pedir contas ao Segundo Reinado,
o sr. d. Pedro II contentou-a com a lei de 28 de setembro.

Mandou decretar essa lei ridícula que ensinou o infanticídio
ao coração brasileiro, que decretou a hecatombe das crianças!

Agora que uma nova cruzada se levanta em prol dos cativos, Sua Majestade
pretende iludir ainda uma vez o mundo proibindo o tráfico interprovincial
de escravos!

Fica proibida a venda de escravos de uma para outras províncias, mas
pode continuar a imoralidade da venda do homem de município a município,
de casa a casa da mesma província.

O imperador e os seus homens, os seus estadistas, entendem que têm
feito muito.

E nesta hora, em que nós outros temos, diante da civilização,
diante dos princípios os mais sagrados da Justiça e do patriotismo,
o direito de gritar ao escravo: levanta-te e conquista a tua liberdade; a
morte vem arrancar-nos o general que nos devia conduzir ao campo da desafronta
da honra nacional.

Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II.

É preciso aceitá-lo tal como ele é.

O trono do imperador tem como fundamento a escravidão.

Não há resistir-lhe sem morrer.

Pela escravidão nós vemos decretada a grande naturalização.
Os herdeiros e os piratas são todos da mesma pátria. Fizeram
uma Constituição para o seu uso. Intervêm nos nossos negócios,
ainda que a lei fundamental do país lhes proíba a intervenção.
Dizem-se eles os patriotas, porque são eles os que têm o bolso
cheio porque são eles que fizeram do ombro africano a escada para escalar
o poder.

Nós outros somos os valdevinos, os anarquistas, os irrefletidos.

Os ladrões riram-se sempre dos roubados.

Não é possível desafrontar a nossa História.

O país só será grande deixando-se fechar na burra dos
aventureiros, que nos negam até o direito de governar a nossa pátria
como queremos.

O que nos cumpre somente é obedecer.

Manada de negros e mulatas, tu nasceste para ser escravo e para ser soldado.
O eito e o Exército é o teu destino. Num, não chegarás
a cidadão, no outro não chegarás a oficial.

A tua função histórica há de ser esta unicamente.

Julgas que tens pátria, porque nasceste sob este céu azul?
Enganas-te. O primeiro que chega pode comprar-te, e surrar-te à vontade.
Aí estão o parlamento e a polícia para garantir-lhe a
plena posse do teu espírito e do teu corpo.

Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II.

Desdobra-se sobre um país em que não temos o direito de estremecer
a nossa Pátria; em que acima de uma vida de sacrifícios se coloca
a burra dos herdeiros dos traficantes de carne humana.

Quem clama pela justiça é apontado como revolucionário.

A ordem é o roubo, é o assassinato do escravo, é o morticínio
das crianças.

O Império e a escravidão são solidários.

A sua legislação visa somente manter esta solidariedade.

Enquanto nós outros clamamos pela abolição, o Governo
aprova os bancos de crédito real, quando pela Carteira Hipotecária
do Banco do Brasil se vê que a propriedade rural entre nós é
representada pelo escravo.

À vista de semelhante desembaraço governamental é claro
que há o propósito de não dar ouvidos ao Direito, e pelo
contrário continuar a sufragar a pirataria vencedora.

Não seremos nós quem se queira colocar em frente do Governo.

Continue ele serenamente.

Nós pelo contrário lhe segundaremos no trabalho e lhe oferecemos
um projeto para ser discutido e votado pela câmara dos Ratisbonas:

«Art. 1º Ficam revogadas as leis de 1831, 1850, 1854 e 1871 e
bem assim a convenção de 1826.

§ O país não reconhece as instruções dadas
pelo Governo do sr. d. Pedro I aos negociadores de reconhecimento da nossa
independência pela Inglaterra.

Art. 2º Ficam considerados escravos todos os negros e mulatos de ambos
os sexos, existentes no Brasil.

§ 1º Esses novos escravos ficarão pertencendo aos fundadores
de bancos e aos fazendeiros que tenham influência política.

§ 2º O Governo fará entre esses novos escravos a escolha
dos mais válidos, de 20 a 25 anos de idade, para dar-lhes praça
no Exército como escravos da Coroa.

§ 3º Excetuam-se somente os mulatos que tenham atualmente assento
nas Câmaras e que tenham votado pela conservação da escravidão.

Art. 3º Não se admite de forma nenhuma a libertação
de negros e mulatos visto como eles poderiam aspirar a concorrer no comércio,
nas letras e na política.

Art. 4º Ficam revogadas as disposições em contrário.»

Dói-nos extraordinariamente a pecha de revolucionários neste
país tão feliz em que o brasileiro tem tanta autonomia política,
comercial e literária.

Não a queremos sobre nós, quando vemos que da escravidão
sai Luís Gama e da aristocracia emprestada pelos fazendeiros da Paraíba
do Sul e pela Coroa saem o sr. Ratisbona e o sr. Paranaguá.

Aí fica o nosso projeto.

Que as Câmaras o aprovem e Sua Majestade o sancione.

28 ago. 1882

19-VII-1884

Já estão formuladas em projeto as medidas que o Ministério
julga suficientes para contrapor à agitação abolicionista
do país e ativar a extinção da escravatura.

Não é ainda o momento de dizer o que pensamos desse conjunto
de medidas. Nossas opiniões filhas de longo estudo do assunto, em todos
os seus aspectos, em todas as suas conseqüências, e desde muito
tempo expendidas, não mudaram, nem mudarão. Estamos dispostos
a enristar contra a inflexibilidade do esclavagismo a inflexibilidade dos
direitos do escravizado e da civilização.

O sr. Moreira de Barros, com aplausos da Santa Aliança negra, disse
que sacrificaria, contente, a sua carreira à derrota do projeto do
Governo; nós consideraremos a nossa própria vida insignificante
holocausto ao triunfo completo da abolição.

Sem tratar de apurar se o projeto é bom ou mau, se ele abrange ou
não a grandeza da reforma orgânica do país registremos
com prazer o ódio da oligarquia agrícola contra ele.

Desde o dia da apresentação os cruzados negros manobram incessantemente
ara tomar de assalto o Gabinete e garroteá-lo, abafando, assim, o brado
de justiça que está contido em certas disposições
do projeto.

Felizmente, como acontece todas as vezes que se pleiteia a vitória
de uma causa que ofende as leis naturais do progresso humano, os nossos adversários
batem-se com armas falhas, que não resistem ao primeiro choque da luta.

É assim que o sr. Moreira de Barros vê um grande efeito na contagem
dos votos da moção de confiança, que se seguiu ao apoiamento
do projeto. Por essa votação quer S. Ex.ª concluir a derrota
do Gabinete, sem se lembrar de que os seus aliados, como S. Ex.ª mesmo,
já confessaram que a temerosa questão não se esvaza em
moldes de partido; tem os grandes lineamentos de um problema social.

E para dar maior valor a este modo de ver, a Santa Aliança negra procede
de conformidade com a sua palavra.

Foi assim que o sr. Paulino de Sousa convocou a minoria conservadora, propôs
e fez aceitar por ela decidido apoio ao Ministério Martinho Campos.

Foi assim que na véspera da apresentação do projeto
Dantas, os srs. Paulino de Sousa e Moreira de Barros convocaram uma reunião
em que foi combinado o plano de ataque contra o projeto.

É assim que nos Clubes de Lavoura os candidatos esclavagistas são
aceitos sem o menor escrúpulo, quanto à bandeira política,
sob a qual militem.

Provado pelas palavras e pelos atos de que se trata, não de uma questão
normal de parlamentarismo, porém de uma nova questão especial;
que valor deve ter a contagem dos votos pedida pelo sr. Moreira de Barros?

Um valor tão negativo para a força moral da Santa Aliança,
quanto é negativo o do sr. Contagem no crédito de luz e saber,
que a oligarquia agrícola quer abrir para si na conta corrente do país
com os seus destinos.

Quando impugnamos intransigentemente, violentamente, a atual lei eleitoral,
o nosso principal argumento era a glebagem do voto popular à oligarquia,
que nos empobrece e barbariza.

Dizíamos que o voto passava das mãos da nação
para as de uma classe, e assim explicávamos o maquinismo que seria
construir a lavoura como centro, as classes literárias, filhas dela
ou dela dependentes, servindo de raios, o Governo como circunferência,
pela grande curva do funcionalismo.

O sr. Moreira de Barros veio provar que tivemos visão exata do organismo
eleitoral e tanto que se jactou da derrota dos poucos deputados que na legislatura
passada se afoutaram a declarações abolicionistas.

Quer isto dizer que a oligarquia agrícola era o poder único;
que ela se enfeudara na posse legislativa e governamental da nação
e que dela excluíra todas as outras classes nacionais.

À luz desse critério, o que significam o projeto e a votação
da Câmara na moção de confiança, implícita
na renúncia da Presidência pelo sr. Moreira de Barros? Vitória
ou derrota?

Projeto e votação querem dizer que está quebrado o sistema
unitário da oligarquia; que a nação entrou no dualismo
natural de funções parlamentar e governamental.

O mais vulgar bom senso basta para decidir que não é vencedor,
é vencido o poder que se deixou assim escapar em frente de si mesmo
e vem passar metade da sua força para o campo contrário.

Mas o sr. Moreira de Barros é lógico como a escravidão.
No debate dos destinos da instituição condenada, S. Ex.ª
não faz questão de honra, mas de número.

Citemos textualmente o seu grito de guerra:

-A minha questão não é de honra, é de número.

Submetamo-nos à aritmética do líder do parlamentarismo
agrícola.

No princípio da legislatura, a Câmara, filha da eleição,
que expeliu todos os abolicionistas, era unanimemente pela escravidão.
O sistema parlamentar funcionava de modo que o sr. Martinho Campos, presidente
do Conselho, podia dizer: sou esclavocrata da gema e tenho muita honra em
sê-lo.

Chega-se ao fim da legislatura e o espetáculo é outro. O sr.
Dantas, presidente do Conselho, vem dizer ao parlamento: a extinção
do elemento servil é uma aspiração nacional; diante dela
não se pode nem retroceder, nem parar, nem precipitar.

Em seguida, malogrando as esperanças de traição, acalentadas
pelo sr. Moreira de Barros, o sr. presidente do Conselho formula um projeto
em que procura juntar ao mecanismo da lei de 28 de setembro uma pequena mola
abolicionista.

Pois bem, a Câmara unanimemente esclavagista, segundo o sr. Moreira
de Barros, decide-se imediatamente a subscrever com trinta assinaturas o projeto,
e, por cinqüenta e cinco votos, declara que o projeto é assunto
digno de cogitação e que o ministério deve permanecer
no poder para defendê-lo e dirigir a opinião parlamentar no debate.

Quem é, pois, o vencido?

Pela aritmética do sr. Moreira de Barros não são cinqüenta
e cinco, mas cinqüenta e três os votos do Governo, e isto porque
há alguns deputados que têm emendas a fazer e opiniões
expressas.

Entendamo-nos. Antes de tudo, é preciso contar com quatro ministros
que estão fora da Câmara, que eram deputados e, entrando para
o ministério, deram o seu apoio prévio ao Gabinete.

Estes quatro votos são ao mesmo tempo honra e número; não
podem ser postos de parte, porque foram dados, atenda bem o sr. Moreira de
Barros, sob a coação de uma Câmara unanimemente esclavagista,
com a consciência do sacrifício, segundo a opinião mesma
do parlamentarismo oligarca.

O voto do sr. Antônio de Siqueira é mais adiantado que o projeto;
quer uma decisão sobre a lei de 31, que o sr. Moreira de Barros mesmo
já quis revogar, e, porque esse voto é mais completo e mais
adiantado, deixa supor que ele procederá conforme com a regra geral:
quem quer o mais quer o menos. Demais, o voto foi expresso e cientemente dado,
porque partiu do sr. Antônio de Siqueira a exigência da definição
do voto, como de confiança ao Gabinete, e, como tal, o aceitou S. Ex.ª
com a maioria da Câmara.

Temos, pois, que, pelos próprios princípios da aritmética
do sr. Moreira de Barros, os votos em número são 59.

Não nos demoraremos em considerar a honra do voto porque esta não
tem valor diante de V. Ex.ª. Se o fizéramos, teríamos a
reclamar para o projeto do Governo alguns votos expressos, que são:

O do sr. deputado João Caetano, redator e proprietário da Gazeta
de Uberaba, da qual podemos transcrever alguns trechos para provar que S.
Ex.ª é abolicionista e dos que, sem meias palavras e sem condescendências,
querem a abolição imediata e sem indenização.

O sr. barão de Canindé, que acaba de declarar que o seu voto
foi um grande sacrifício à disciplina partidária, mas
não uma negação das suas idéias e das idéias
da sua província. Não se podia esperar de S. Ex.ª uma traição
aos seus eleitores, que hoje fazendo parte de um estado constitucional livre,
não podem querer ser representados por um esclavagista. Da declaração
de S. Ex.ª se conclui, pois, logicamente que ele no momento sagrado de
optar pela escravidão com o seu partido, ou pela redenção
do escravo com o projeto, não hesitará. S. Ex.ª será
impelido pela sua própria honra.

O do sr. Álvaro Caminha está nas mesmas condições
do voto do sr. barão de Canindé. S. Ex.ª tem na própria
fisionomia a sombra da sua honra melindrada, pela suspeita de que pode passar
como esclavagista, ele que, não há ainda dous meses, era alma
e garantia do prestígio da Sociedade Abolicionista Cearense!

Adicionando, pois, estes três votos aos já expressos, por palavras
e por atos, segue-se que, na esfera da honra, a questão abolicionista
foi pelo menos aceita por 62 deputados, ainda que aparentemente só
se houvessem contado 55.

Pode, na mesma esfera, contar a oligarquia agrícola com o sr. Taunay?
O vice-presidente da Sociedade Central de Imigração pode subscrever
com o seu voto o manifesto negro da inviolabilidade da escravidão?

No entanto, este voto, por si só, vale ou a desonra nacional no estrangeiro
ou um atestado da nossa probidade nacional, quando vamos pedir à Europa
o concurso do seu trabalho livre.

Pela aritmética do sr. Moreira de Barros, conclui-se, pois, que o
esclavagismo está vencido, completamente vencido. A sua unidade parlamentar
e governamental está quebrada, e da maneira a mais estrepitosa.

Ao passo que o sr. Moreira de Barros diz: nós advogamos os nossos
próprios interesses, nós, os oposicionistas; a maioria responde-lhe,
em torno dos srs. Severino Ribeiro, Antônio Pinto, Rodolfo Dantas e
Afonso Celso Júnior, nós representamos os direitos da civilização
triunfante da pátria agitada pelo progresso.

Fora da aritmética do sr. Moreira de Barros, a demonstração
é ainda mais palpável.

O próprio número de votos, concedido ao Ministério por
S. Ex.ª vai confundi-lo.

Graças à oligarquia agrícola, o Brasil conta apenas
145.000 eleitores, que dirigidos por 122 deputados dão para cada um
deles a média 1.188 votos.

Pois bem, a soma de eleitores representados pelos que votaram o projeto,
reunida a massa da população espoliada será menor constitucionalmente
que a soma dos votos da oligarquia!

O sr. Moreira de Barros contou ao Ministério um caso de vice-rei do
Peru, que, por necessidades agrícolas, falava francês. Querendo
sair a passeio, avisou o ministro e este preparou logo uma manifestação
tal que por toda parte o vice-rei só encontrava aplausos. Afinal o
vice-rei, surpreendido por ver que até os índios se manifestavam,
agarrou o maioral destes e passando-lhe a mão pelo rosto viu simplesmente
nele o seu próprio ministro disfarçado pela pintura.

Tal é a idéia que S. Ex.ª faz do aplauso que recebe o
Gabinete: manifestações de encomenda.

Nós queremos contar também um caso ao sr. Moreira de Barros.

Um certo mandarim ordenou, sob pena de morte, a todos os tecelões,
que lhe fosse feita uma túnica de tecido tão fino que se lhe
não pudesse ver o fio.

Intimou-se, pois, o primeiro tecelão da cidade a obedecer à
ordem do mandarim e o pobre operário foi fechado num quarto para, no
fim de quinze dias, dar a primeira amostra do pano.

Expirado o prazo, o tecelão recebeu serenamente a visita do mordomo
do palácio que lhe vinha pedir contas da encomenda.

-Onde está a túnica? -perguntou.

-Ali -respondeu o tecelão, apontando para um cabide.

-Não a vejo -observou o mordomo.

-Mas vós mesmo me encomendastes uma túnica de fio invisível
e impalpável.

A resposta convenceu o mordomo que foi comunicar ao mandarim a sua admiração.

Contente por se ver obedecido, o mandarim correu logo a vestir a túnica.

Tirou as suas roupas de seda e ficou completamente nu, colocou-se em frente
ao tecelão que o revestiu com a sua encomenda.

Saindo logo à rua, o mandarim viu reunir-se o povo açodadamente:
ruas e praças se encheram: milhares de indivíduos quedavam boquiabertos.

-Que trabalho! -exclamava o mordomo. -Faz honra a um reinado.

-De feito -disse todo ancho o mandarim. -Veja como toda a gente me admira.

Mas uma voz malcriada rompe do seio da multidão e grita:

-É uma indecência o mandarim sair nu à rua.

Dezenas, centenas, milhares de vozes repetem o grito sedicioso; a multidão
se agita, percorrida por um frêmito de indignação, e ao
mesmo tempo que estrugem os -fora e morra! os braços e os pés
se movem, prodigalizando chulipas e cascudos ao mandarim, agora instituição
desmoralizada.

A tirania pode violentar algum tempo, quando se exerce a portas fechadas.
Os seus dias, porém, são contados logo que ela vem pedir aplausos
ao tal povo. Na praça pública só a espera a vaia e o
pontapé.

19 jul. 1884

16-VIII-1884

O mundo espera por uma fé, que o faça marchar, respirar e
viver, mas não serão a intriga, a falsidade, os pactos da mentira
os dogmas dessa almejada fé.

Estas palavras são de Michelet, do eminente historiador da Revolução
Francesa e o eleitorado fluminense há de ficar admirado de que apliquemos
à nossa pátria tão transcendentais palavras.

No entanto, também nós estamos à espera de uma fé,
de uma crença, que nos agite moral e intelectualmente e estamos convencidos
de que ela não pode ser o resultado de um pacto, da mentira, que há
mais de meio século nos enfraquece e nos desnorteia no caminho da civilização.

Amanhã, as urnas, chamadas oficialmente para proverem um lugar vago
no Senado, devem em realidade dizer se querem prover o futuro de aspirações
condignas de nosso século, ou se preferem continuar a obrigar o país
a abdicar da sua soberania em favor de uma oligarquia sem talento, sem patriotismo
e sem escrúpulos.

O eleitorado, entre nós, costumou-se a não ver na eleição
mais que a conveniência do seu partido, e, no entanto, nunca se preocupou
em saber se as idéias ou os interesses desse partido são conformes
com o bem geral da nação; com as exigências do seu progredimento,
com a estabilidade da sua fortuna.

No momento atual essa despreocupação, que deu em resultado
o adiamento de todos os problemas, que saltearam a nação desde
o momento em que ela se organizou, seria um crime, porque todos esses problemas
reclamam solução imediata, e, quer o eleitorado queira, quer
não, ela será dada.

As nações se comportam, no sistema da civilização,
do mesmo modo que os astros num sistema solar: movem-se por atrações
e repulsões fatais, independentes de nenhuma vontade. O progresso,
como a natureza, tem um equilíbrio fatal, e mesmo quando grandes transformações
se operam, quando movimentos se desenfreiam, há uma ordem imprescritível
que os preside.

Em vão os interesses se obstinam; em vão os preconceitos alarmam
as consciências singelas; a idéia necessária a uma certa
organização triunfa sempre. Como no equilíbrio da natureza,
as resistências só servem para aplicar e distribuir a força
em movimentos regulares; no mundo social as oposições, apenas,
servem para concretizar e sistematizar as idéias e dar-lhes a orientação
mais adaptada para se desenvolver e vencer.

O nosso século mais do que nenhum outro tem demonstrado à evidência
a fatalidade das leis naturais de organização social.

A nossa fé está praticamente demonstrada.

Por isso mesmo nos dirigimos ao eleitorado fluminense com a maior tranqüilidade.
Não lhe falamos às afeições, mas à consciência,
e começamos por dizer-lhe que ele errará, e crassamente, se
sufragar a chapa da oposição esclavagista.

Passemos à prova.

Nenhum partido tem o direito de viver senão para realizar idéias
no Governo.

Que idéias quer o Partido Conservador realizar?

Com relação ao problema da escravidão, quem o definiu
bem foi o sr. Taunay. S. Ex.ª disse, em plena Câmara, que o Partido
Conservador não queria ser fiel nem à lei de 28 de setembro
de 1871.

Os fatos em que baseou a sua alegação primam pela evidência.

Em primeiro lugar, adiou-se durante longos anos o cumprimento da lei, só
depois de decorridos quatro exercícios foi aplicado o fundo de emancipação.
Quer isto dizer que o Partido Conservador, sem escrúpulos, sem compaixão,
reteve em cativeiro ilegal a grande massa de homens a que devia aproveitar
a aplicação imediata da lei de 28 de setembro.

Não contente com essa prova pública da sua insubordinação,
do seu crime, esse partido escolhe os seus candidatos e no número desses
escreve o nome do sr. Andrade Figueira.

Que quer esse homem? Restituir os ing&ececirc;nuos a seus legítimos
senhores!

Não há, parece-nos, dúvida a nutrir com relação
aos intuitos do Partido Conservador.

O seu passado está arquivado nesta frase do sr. senador Antão,
quando deputado na fase da repressão do tráfico: vós
subistes ao poder pela escada do tráfico.

O seu presente pinta-se já pela declaração do sr. Andrade
Figueira, já pela aliança com o sr. Sousa Carvalho.

Não é preciso, pois, grandes comentários para deixar
patente que o Partido Conservador não olha meios, não tem escrúpulos,
não respeita leis, quando trata de sustentar a escravidão.

Todos os recursos lhe servem.

Aqui vai aliar-se aos católicos, ali ao sr. João Alfredo, sem
se lembrar que ontem aqueles lamentaram-se, com razão, de fazer parte
de um país em que se perseguiam com afronta das leis os representantes
mais graduados da religião do Estado -os bispos.

Entre o sr. Paulino de Sousa e os católicos deviam-se interpor a prisão
e o exílio, que violentaram os direitos de d. Antônio de Macedo
e d. Frei Vital, uma vez que o sr. João Alfredo é hoje sustentado
pelo sr. Paulino, visto como o Partido Conservador do Norte desertou para
as bandeiras deste. Mas, ao contrário, os católicos se unem
com o sr. Paulino de Sousa.

Ali é com o sr. Sousa Carvalho que o sr. Paulino de Sousa se congrega,
formando para fins eleitorais a liga Sousa & Sousa, que deve merecer os
sufrágios dos povos de Monte Verde.

Não obstante, quando publicamente assim se cerca de elementos, que
devem gerar suspeitas em todos os espíritos, porque patenteiam pacto
sem escrúpulos; secretamente o sr. Paulino manda aos seus amigos uma
confidencial declarando-lhes que votem só tendo em vista a disciplina
e força do Partido Conservador.

E para contar ainda mais certamente com o êxito, dizem que se insinua
particularmente, por deliberação do conselho supremo do Partido
Conservador, não ser mau cortar o nome do sr. Pereira da Silva.

Esta versão tem o seu valor, porque nem o Brasil, nem o sr. Paulino
de Sousa veio ainda contrariar a liga de Monte Verde, na qual é excluído
o nome do terceiro candidato do Partido Conservador.

À vista de semelhantes fatos, que descobrem o cálculo político
de dous homens, que se querem substituir ao seu partido e à sua pátria
-os srs. Paulino de Sousa e Andrade Figueira; de dous homens que não
escrupulizam alianças, que não se comprometem ao menos a respeitar
a liberdade já decretada por lei, poderá o eleitorado fluminense
pensar que há nesse país alguém ingênuo, que considere
um triunfo a eleição de tais políticos?

A eleição de qualquer deles, ou de todos eles vem repassada
da força moral necessária para deter a propaganda abolicionista,
ou, pelo contrário, evidenciando ainda mais o estado de corrupção
eleitoral no país, virá aconselhar, como recurso urgente, deixar
as urnas à oligarquia, e defender de outro modo qualquer a liberdade
parlamentar?

Nós esperamos por uma fé nova que nos anime e nos oriente,
mas esta não pode sair da chapa conservadora triunfante.

O que temos de ver nela?

A aliança da lavoura com os srs. Sousa Carvalho e Paulino de Sousa,
o Governo Sousa & Sousa.

A aliança do clericalismo com o Partido Conservador.

Ou a disciplina e a força real do Partido Conservador.

Quem fará triunfar a chapa conservadora: a liga de Monte Verde, o
partido católico, ou só o Partido Conservador?

Qual o interesse que deve sobrepujar os outros?

Tais são as interrogações que surgem das alianças
e da confidencial do sr. Paulino de Sousa e está claro que o futuro
não pode ater-se, nem à escravidão revogando a lei de
28 de setembro, nem ao clericalismo, nem ao Partido Conservador suprimindo
para viver o próprio escrúpulo.

A fé, que nos é indispensável e que nós queremos
ver robustecida, tem necessidade de ir abeberar-se em fonte diversa da do
voto.

Ela já nos diz que 145.000 indivíduos não representam
um país de milhões de habitantes.

Depois da eleição de amanhã, ela nos dirá que
145.000 indivíduos estão constituídos de modo a reduzirem
à escravidão um país de 12 milhões de cidadãos;
que uma oligarquia que vive de ilegalidades e de intrigas se mostra tão
audaz que pretende abafar com o interesse de algumas famílias de uma
província os reclamos de uma nação inteira.

Tais são as observações que julgamos conveniente fazer
ao eleitorado fluminense.

A propaganda abolicionista não se parece nada com o passado partidário
deste país, não tem interesses pessoais mas as idéias
e só as idéias, a pátria e só a pátria.

Tem, pois, a serenidade necessária para ver claro e dizer alto a verdade.
Dando ganho de causa à chapa conservadora, o eleitorado desta capital
se condena de uma vez para sempre ao mais pesado cativeiro.

Aos funcionários públicos nos cumpre dizer que, com o jogo
do câmbio, imoral e indecente, com o retraimento proposital de capitais,
o esclavagismo encarece os gêneros de primeira necessidade com a mesma
crueldade com que o sr. Andrade Figueira ameaça reduzir os vencimentos
do colaborador da paz e da fortuna pública -o funcionário.

Aos militares devemos lembrar que o sr. Andrade Figueira não trepidou
nunca marear-lhes a reputação, e aí estão os seus
discursos para comprovar.

Ainda ultimamente S. Ex.ª e os seus amigos fizeram questão de
adiar o aditivo, que reformava a organização do Exército,
e só explicava a urgência dessa reforma por ter o Governo de
precisar de mais força para combater os seus adversários.

O que quer dizer que -aos olhos do sr. Andrade Figueira- o Exército
não passa de um títere, um instrumento que serve para assassinar
os seus irmãos.

O sr. Andrade Figueira não disse, como qualquer outro oposicionista
o faria: o Governo lança mão da reforma para se popularizar
no Exército; não, S. Ex.ª, atendendo à idéia
que ele formado soldado brasileiro, só viu um meio de adquirir instrumentos
de compressão e de morticínio.

À lavoura e ao comércio, pedimos que reflitam, em que mais
vale assentar bases para uma transformação que é fatal,
do que se apegar a quimeras vãs.

Os homens, que se contrapõem hoje à propaganda abolicionista,
são os vencidos de 1871 e se eles então nada puderam fazer,
o que conseguirão hoje que o Ceará, o Amazonas e o Rio Grande
do Sul, apertam pelas fronteiras o esclavagismo, obrigando-o a entrar no círculo
de liberdade, que a civilização já traçou em nossa
nacionalidade.

Que as urnas falem pela voz da pátria e não pela do interesse.

16 ago. 1884

30-VIII-1884

No horizonte negro, que nos cerca, não se vê neste momento
senão o sulco diamantino da coroa imperial.

Ela irrompeu bruscamente em meio dos graves acontecimentos políticos
do dia, como um cometa na solidão da noite. Todas as vistas convergiram
naturalmente para ela e não há meio de desviá-las.

Todos quantos interrogam a esfinge do tempo e se preparam para ser por ela
devorados, pensando descobrir-lhe o enigma, estão de acordo em responsabilizar
o imperador pelo que se está passando entre nós.

O povo brasileiro habituou-se a entregar a Sua Majestade a solução
dos problemas sociais, que mais de perto entendem com a organização
definitiva de nossa nacionalidade.

Sempre que alguma idéia consegue bruxulear no crepúsculo parlamentar,
que se estendendo desde 1834 até hoje -meio século às
portas da noite-, tem tornado indistintas as linhas, fantásticas as
figuras da nossa política, toda a gente aponta o imperador como patrono
dessa idéia.

Não se repara em quanto vai de humilhação para o povo
brasileiro neste fato; não se reflete que se está alimentando
uma presunção perigosa no espírito do soberano e que
se vai gerando a mais tremenda das desilusões sociais -a desilusão
da autonomia.

Esse hábito inveterado acaba de investir o imperador da responsabilidade
da propaganda abolicionista.

Proclamam-no o chefe do abolicionismo.

Qual o intuito de semelhante jogo político?

Deixando de parte o que vai de injustiça para os poucos homens, que
iniciaram a campanha atual contra a escravidão, perguntemos aos dous
grupos que julgam conveniente trazer para a frente a pessoa do imperador,
qual o resultado que desejam tirar?

Os conservadores, acusando o imperador de ser o chefe do abolicionismo e
querendo vencer esta propaganda, o que pretendem? Conter o imperador nos limites,
que eles dizem ser os constitucionais, ou obrigar o imperador a abdicar?

Mas o imperador não fez senão usar das suas atribuições
constitucionais.

Quando chamou o Ministério Dantas para dirigir os destinos políticos
do país, a propaganda abolicionista já havia produzido o Ceará
livre, e o Amazonas, ao termo da sua libertação o Rio Grande
do Norte com o município de Mossoró livre, Piauí com
o município da Amarração completamente emancipado, e,
em contraposição a tudo isso, a efervescência esclavagista
organizando clubes secretos, assalariando a imprensa, pondo cabeças
a prêmio, desterrando magistrados, aplicando a Lei de Lynch a escravos
que assassinavam senhores ou feitores; finalmente, fazendo a mais desbragada
oposição à tentativa de libertação do município
neutro.

Negar a pujança de uma tal opinião, que se representava já
por uma luta apaixonada em todo o Império, que se cobre hoje de uma
rede de associações abolicionistas e de centros de resistência
esclavagistas, é negar a verdade.

Podia o Poder Moderador fechar os olhos a tal movimento, que agitava nos
seus mais íntimos recessos a vida nacional? Não eram os mesmos
esclavagistas, que vinham dizer ao país: a segurança pública,
a riqueza, as instituições correm perigo? Não eram eles
mesmos que proclamavam, como ainda hoje repetem, que ao conflito entre a abolição
e a escravidão se devia o fenômeno social?

O que devia fazer o imperador? Reagir?

Mas a propaganda nascera sob o Ministério Sinimbu, que dizia: não
daria um passo além da lei de 28 de setembro; crescera sob o Ministério
Saraiva que se limitara a dizer: eu não cogito da questão: começara
a ameaça sob o Ministério Martinho, que pela voz do presidente
do Conselho, se permitiu a pose de Jefferson Davis de segunda ordem e se despejara
nesta frase: resistirei, porque sou esclavocrata da gema; acentuara-se pela
libertação do Acarape e de 16 municípios sob o Ministério
Paranaguá, que, pretendendo iludir a propaganda, prometera encarar
de frente a questão e só se ocupou em perseguir o abolicionismo,
já demitindo no Ceará os funcionários acusados de tal
opinião, já removendo desta província e desmembrando
o Batalhão 15º de Infantaria, que se revelara favorável
à abolição; finalmente adquirira toda a pujança
sobre o Ministério Lafaiete que pretendeu marombar sobre a ação
abolicionista e a reação negreira.

Devia o imperador reagir ainda? Seria constitucional um tal procedimento?

Dizem os conservadores que sim e acusam o imperador por haver concedido a
dissolução da Câmara, quando devia fazer do voto deste
a clava de Hércules para fulminar a propaganda, que os intimida e desnorteia.

Mas se é este o pensamento dos conservadores, se é por ele
que se empenham em campanhas eleitorais, para insistir no seu voto contra
o abolicionismo, só podem ter dois pensamentos:

-Vencer o imperador e neste caso ou suprimem o Poder Moderador, por que o
obrigam a não ter liberdade de julgar os acontecimentos e o restringem
a obedecer aos votos da Câmara e isto só pode dar em resultado
a abdicação, pelo menos moral, do imperador, ou os conservadores
estão convencidos de que, vencendo eleitoralmente, conseguem da parte
de Sua Majestade a confissão pública de que se submete à
vontade do esclavagismo.

É este o pensamento oculto? Pretende-se, como sob os Ministérios
Paranaguá e Lafaiete, à sombra da tolerância do abolicionismo
exercer a tirania da escravidão?

O imperador que não quis reagir ativamente pensa em reagir passivamente,
ou por outra: quer lavar-se diante da História da responsabilidade
pessoal e talhar-se a mortalha inglória, mas cômoda do coagido?

E por este desfecho que esperam os conservadores?

Alguns republicanos, principalmente os que são as secundinas da lei
de 28 de setembro, seguem o mesmo caminho dos conservadores, quanto à
responsabilidade imperial na propaganda abolicionista.

Que resultado político esperam esses republicanos de semelhante procedimento,
que é, antes de tudo, uma injustiça clamorosa contra muitos
dos seus correligionários, que têm sido os mais sacrificados
na propaganda?

Que proveito antevêem nesse tripúdio ingrato sobre os túmulos
de Luís Gama, de Numa Pompílio, de Ferreira de Meneses e sobre
os corações feridos de muitos dos seus correligionários,
empenhados no combate contra a escravidão?

Nunca nenhuns partidários deram mais triste prova de falta de compreensão
da missão, que se incumbiram de desempenhar.

Contemporizar com a escravidão, em nome do ideal da liberdade, é
uma concepção de tal sorte monstruosa, que só pode gerar-se
na alucinação do interesse o mais baixo.

Dizer que o imperador é chefe do abolicionismo é confessar
que o republicano atraiçoou o seu mandato histórico, é
cercar de um prestígio sagrado a Coroa que se quer destruir.

Que papel histórico para o imperador! É a abnegação
de Codro ressuscitado. O oráculo pede o sacrifício do rei para
a salvação da pátria; o rei não hesita, precipita-se
impávido e sereno nos braços da morte.

Que inversão moral de papéis! O rei que se fez mártir,
o republicano que se proclama vil especulador!

O rei que desce do seu trono, porque o considera manchado pela escravidão,
o republicano que faz dessa mancha o distintivo do seu estandarte!

No meio dessa confusão sociológica, o espírito se debate
em dúvidas atrozes e não sabe mais encontrar a linha, que se
havia traçado serenamente.

A nação foi suprimida em nome dos interesses conservadores
e das aspirações republicanas; ficam, pois, face a face, o abolicionismo
e o imperador e entre eles o Gabinete 6 de Junho e o Partido Liberal.

Raciocinemos, pois, com a calma relativa que a fé nos princípios
ainda me dispensa.

É, realmente, o imperador o chefe do abolicionismo?

Se o é, por que o ministério não procura os meios de
intervir já e já como opinião no pleito eleitoral?

É justo que a máquina oligárquica funcione desassombradamente,
montada, como está, dentro das repartições públicas,
nas patentes superiores do Exército, nas posições vitalícias
do parlamento e da magistratura, e em cada movimento dificulte a ação
governamental e irrite a propaganda pacífica do abolicionismo?

É justo que, ao tempo em que a oposição, recorrendo
a um eleitorado de fazendeiros, se proclama vitoriosa; as notícias
do abolicionismo sejam de par com a libertação em massa do Rio
Grande do Sul e em Goiás, as de perseguição do abolicionismo
em S. Paulo e no Rio de Janeiro, províncias vergonhosamente negreiras?

Quererá o imperador chamar opinião do país a conspiração
dessas duas protetoras do tráfico, usufrutuárias da pirataria?

Se o imperador é nosso chefe, quer ir conosco à imortalidade,
ou prefere que o repudiemos publicamente, como um traidor que faz da lealdade
dos seus soldados termos da equação do seu problema dinástico?

A Coroa está em evidência e não seremos nós que
a procuraremos ocultar.

Temos cumprido com o nosso dever e não podemos consentir que ninguém
falte ao seu.

O imperador vê a opinião da Europa e da América pronunciada;
vê a opinião do país manifestada nas libertações
integrais do Ceará e do Amazonas, na vertiginosa marcha do Rio Grande
do Sul, nas comoções de Goiás, do Piauí e do Rio
Grande do Norte.

O imperador ou é um cego, ou aproveitou as lições de
seu próprio reinado. Sabia que a grita dos interesses devia ser atordoadora,
e que, antes de tudo, era preciso dispor-se a não ouvir senão
o que fosse justo.

Se é cego, se não viu o caminho por onde enveredou e pretende
recuar, nós lhe prevenimos de que cada passo dado no caminho da liberdade
cava um profundo valo no terreno da escravidão, e, quem pretende retroceder,
cai no abismo.

Se não aproveitou as lições do seu longo reinado, será
vítima de si mesmo e não terá razão de queixar-se
senão da própria obra.

Quem vive de um falso crédito de força acaba por ver a fraqueza
real fazê-lo vítima de uma falência fraudulenta.

Republicano, eu creio que o imperador vale mais do que muitos dos meus correligionários,
e que a pátria vale mais do que nós todos.

Os acontecimentos colocaram a Coroa à frente: muito bem que a Coroa
ande, para que a liberdade não seja obrigada a empurrá-la.

30 ago. 1884

20-XII-1884

Quem vence?

O Gabinete? No campo eleitoral, solene e venerando como o cadáver
de Aquiles, ficou a candidatura de Rui Barbosa que, na última fase
da propaganda abolicionista no parlamento, foi a encarnação
da sua força, da sua coragem e do seu patriotismo.

Os conservadores? Nas vésperas do pleito eleitoral, vieram pela voz
de um de seus chefes declarar que podiam, queriam e deviam ampliar a lei de
28 de setembro.

Os partidos não se atreveram a levantar as suas velhas bandeiras,
sem recomendá-las com as vestes rotas do escravo.

Não houve coragem para dizer francamente, pela abolição
ou pela escravidão.

A palavra murmurada desmentiu muitas vezes a palavra escrita e o ato de véspera.

Os centuriões do obstrucionismo, os condenados da dissolução
arrastaram para o campo das pequenas questiúnculas de poder o pleito
em que se decide a orientação moral e econômica da nação.

Por outro lado, os companheiros -em número crescido- entenderam e
era possível transigir com os compromissos tomados.

De parte a parte, a carência de fé, a falta de firmeza na marcha,
a irresolução em decidir-se.

Fácil, pois, é saber quem vence.

O vencedor está fora dos partidos e fora das urnas, dentro da consciência
nacional. É a idéia abolicionista, única senhora, árbitro
supremo do amanhã brasileiro.

A estreiteza de vistas partidárias pode inspirar desânimos aqui,
temeridades ali.

Os monomaníacos do poder pensam em vão que, à força
de ameaças, de sentenças, de crimes, poderão fazer recuar
a onda abolicionista, que é feita com o impulso de todo o oceano da
civilização atual.

A decepção será proporcional ao engano.

Já o dissemos e o repetimos: não é aos propagandistas
nacionais que o nosso Governo tem de dar contas; é ao congresso dos
povos, e à humanidade civilizada.

O sr. Paulino de Sousa não conservará, como troféu,
a bandeira, que pretende arrancar das mãos do sr. Dantas.

Há de acontecer-lhe o mesmo que ao indivíduo que, impensadamente,
segura no condutor elétrico que fecha um circuito: ser-lhe-á
impossível abandoná-lo, sem que a pilha deixe de funcionar.

O Gabinete 6 de Junho pode ser vencido parlamentarmente; historicamente é
ele o vencedor, porque nasceu da propaganda abolicionista, invencível
como o Direito.

Os conservadores, no poder, não darão batalha; surpreenderão,
apenas, o comboio luminoso da legião abolicionista, e com as suas provisões
matarão a fome de glória sem sacrifício.

Desenganem-se os nossos adversários; o tempo da escravidão
passou.

É inútil apelar para as coligações de interesse
e dar-se ao espetáculo oprobrioso de recorrer até aos estrangeiros,
que só visam aos seus lucros, para combater a mais vivaz aspiração
da pátria.

O futuro abolicionista está escrito, pela própria fatalidade
da evolução social.

Quanto maior for a resistência tanto mais fácil será
o triunfo.

O que poderão conseguir no parlamento? Leis compressoras para fazer
calar os propagandistas? Essas leis serão impotentes para matar no
coração do escravo a sofreguidão de liberdade.

No dia em que se abrir a primeira prisão ou o primeiro túmulo
para a propaganda abolicionista, está aberta a fase da luta de força
contra força, de violência contra violência.

A boa política, longe de aconselhar a louca intransigência dos
nossos adversários, impõe-lhes o dever de mediar por uma honrosa
condescendência a negociação que o Ministério 6
de Junho se propôs fazer entre os interesses da civilização
e os interesses dos chamados proprietários de escravos.

Os fatos virão dentro em pouco dar-nos inteira razão, a menos
que o Brasil não tenha sido condenado a mais lastimosa exceção
histórica.

É verdade que o estado atual de nos… (ilegível no original)
e de alguns banqueiros estrangeiros de nossa praça, impondo por ameaça
o sufrágio à causa dos seus clientes.

Das repartições públicas partem também ameaças
de funcionários, que aliás ocupam cargos de confiança.

E os ameaçados se calam ou limitam-se a queixar-se à meia voz,
porque não têm confiança na reparação dada
pelo civismo e patriotismo brasileiro.

Mas, apesar desses fatos contristadores, nós podemos garantir aos
nossos adversários que eles não levarão inteiramente
de vencida o país.

As urnas são uma ridícula minoria: a nação está
fora delas, fustigada pelo arbítrio, indignada pela incerteza dos seus
destinos.

Se amanhã subirem os conservadores, se por um assomo de dignidade
quiserem manter os compromissos tomados com o esclavagismo, muitos dos seus
aliados de hoje serão inimigos rancorosos amanhã.

Poderão servir aos liberais, que desertaram por interesse das fileiras
do seu partido?

Os conservadores que, há longos anos, esperam pelo poder em mãos
de seus correligionários, que se sacrificaram por essa esperança,
não consentirão no pagamento, e, se ele se der, romperão
o pacto.

Esclavagismo não é convicção, é negócio.

O poder para os conservadores negreiros não é vitória
de princípios, é letra vencida, que será protestada pelo
despeito, se não for paga com todos os juros.

O que será o Governo dos conservadores? Satisfação de
dívidas eleitorais e impopularidade.

Mas para que as ordens de pagamento possam circular no mercado eleitoral
é indispensável a assinatura do imperador.

Pode o imperador assiná-las? Onde ficará a sua honra?

Sua Majestade quis que se soubesse que ele não pactuava com o esclavagismo,
nem de outra forma se explica o decreto de dissolução, dado
ao Ministério 6 de Junho, organizado em pleno desbragamento de resistência
esclavista.

De duas uma: ou Sua Majestade falou sério -como nós acreditamos;
ou Sua Majestade quis iludir-nos.

No primeiro caso, os conservadores no poder terão de lutar contra
o soberano, e o terão de tratar como a um vencido; no segundo caso,
a questão da abolição se transformará em uma questão
de mudança, pelo menos de soberano.

Vêem, pois, os nossos adversários que para vencer a propaganda
abolicionista há muito que vencer primeiro.

Antes de chegar à cidadela sagrada do direito humano, que nós
representamos, é preciso saltar por cima da resistência do Partido
Liberal, por cima da honra do imperador.

Porque é preciso dizer, e repetir até à saciedade: o
imperador entrou com tudo quanto dá prestígio ao seu cargo no
pleito em favor dos escravos: com a sua magnanimidade em beneficiar os desgraçados,
com a distinção àqueles que promovem a libertação,
com a livre ação do Poder Moderador, quer nomeando o ministério,
quer dissolvendo a Câmara.

Um passo atrás e Sua Majestade estará desonrado.

Nós outros, expatriados desde esse dia, iremos dizer ao mundo que
há um país na América, que é governado pela dobrez
de César Bórgia, que mata os convidados instados para comparecer
às festas da sua própria glória.

Que toda casta esclavagista se congregue e vença.

Com a queda do Gabinete 6 de Junho cairá também a última
concessão, que lhe é feita.

O sr. Dantas tem a grandeza de Turgot. Se, como este, sair do poder antes
da revolução operar-se de cima para baixo, ai dos que o fizeram
sair!

Terão de assistir à revolução de baixo para cima.

20 dez. 1884

10-I-1885

Não há como o Partido Conservador para aclarar situações
e defini-las nos seus verdadeiros termos.

Sabendo qual a complexidade do problema servil; tendo-o estudado em todas
as suas ligações com a vida doméstica e pública
da nação, desde a organização da família
até a produção da riqueza nacional; os próprios
abolicionistas tiveram muitas vezes horas de dúvida, momentos em que
interrogaram a consciência, perguntando-lhe se não tinham deixado
o sentimento sufocar o raciocínio, e o humanitarismo obscurecer as
conveniências pátrias.

O Partido Conservador veio dissipar inteiramente essa dúvida, robustecer
a fé em que estamos de que o país nada perde com a transformação
radical do trabalho agrícola, pela substituição total
e em globo da máquina-escravo pelo trabalhador livre.

E para que a sua decisão fosse tomada na merecida conta, os conservadores
escolheram a hora mais solene da vida atual da nação para pronunciá-la.

Superexcitados os ânimos pela emancipação de duas províncias
e pela resistência ameaçadora das províncias do sul, o
Poder Moderador nãatilde;o só chamou um ministério francamente
hostil à escravidão, como infligiu à Câmara temporária
a sentença de dissolução. Em seguida apelou para a nação.

Se os conservadores considerassem a escravidão uma necessidade indeclinável,
se, como Jefferson Davis, eles pensassem que ela é pedra angular do
edifício da nossa nacionalidade; seguramente durante o pleito eleitoral
teriam tratado de extremar as suas convicções, de doutrinar
os eleitores no sentido de se travar o pleito exclusivamente sob o ponto de
vista da questão social.

Mas não aconteceu assim.

Primeiro fizeram falar o sr. barão de Cotegipe e não falar
o sr. João Alfredo, isto depois de declarações as mais
terminantes do sr. Andrade Figueira.

O sr. Cotegipe disse que o Partido Conservador queria, podia e devia ampliar
a lei de 28 de setembro.

O silêncio do sr. João Alfredo, no momento em que todo o país
se definia, essa neutralidade sistemática denunciou da parte de S.
Ex.ª reserva, que não pode ser considerada como adesão
aos conservadores do sr. Paulino de Sousa.

As declarações do sr. Andrade Figueira, que quer restituir
os ingênuos aos seus legítimos donos, importam em uma tática
de guerra, que tem por fim chamar o inimigo a um ponto, em que a batalha vai
ser levada a outro muito diferente.

Em resumo, as diversas declarações e atitudes dos chefes conservadores
querem dizer que eles não consideram tão grave como se afigurou
ao Poder Moderador a questão servil.

Para esses velhos políticos a questão é mera arma de
combate para chegar ao poder.

A ponte para as idéias abolicionistas estando de antemão lançada.

Ainda mais: o dr. Paulino de Sousa, dizem os seus adeptos, tem pronto um
projeto, que extingue em cinco anos a escravidão.

Os fatos vêm, pois, demonstrar que para os conservadores a questão
abolicionista está por si mesma terminada e que a qualquer governo
é lícito dar-lhe o golpe decisivo, sem se importar com o que
possam dizer certas classes eleitorais, para as quais eles apelam somente
para aumentar votação.

Os abolicionistas devem, guiados por tão conspícuos cidadãos,
estabelecer em termos definitivos o problema e não fazer mais nenhuma
concessão.

O pleito eleitoral aí está para justificá-lo cabalmente.

Podem objetar que os conservadores apelaram para os esclavagistas e com que
estes se ligaram com a mais sincera solidariedade.

A objeção cai por si mesma, atendendo-se a que não houve
outro fim senão arrebanhar assim maior número de sufrágios
para os candidatos do partido.

Todos sabem que os conservadores não tiveram escrúpulo de aceitar
coadjuvação dos estrangeiros, comissários de café,
banqueiros e empreiteiros da praça do Rio de Janeiro.

Ninguém dirá por isso que o Partido Conservador quer entregar
aos estrangeiros o país e converter de novo o Brasil em colônia.

Batendo às portas dos estrangeiros, o Partido Conservador não
visou aproveitar-se da influência poderosa do comércio.

Ele sabe que o comércio no Brasil é propriedade estrangeira
e propriedade que nenhum nacional pode tentar compartir, não porque
falte ao brasileiro capacidade e aptidão para ele, mas porque o mais
vergonhoso pólio lho fechou, fecha e há de fechar, se, por uma
inspiração de patriotismo, custe o maior sacrifício,
não nos salvar o futuro.

Tirando proveito da lei do recrutamento e da Guarda Nacional, os estrangeiros
tiveram tempo de se organizar fortemente, de modo a estabelecer um seguro
mútuo que impede qualquer tentativa de brasileiros para tomar conta
de um ramo da indústria, que em toda parte do mundo pertence em sua
maioria aos nacionais.

As fortunas se revezam, sempre vedadas aos brasileiros, sempre longe da influência
nacional.

O patrão casa a filha com o caixeiro de sua nacionalidade, para que
a firma e as tradições da casa se conservem.

As casas recentemente criadas facilitam-se todos os meios de prosperidade,
ao passo que se negam às casas brasileiras, ainda que pelo trabalho
dos seus donos mais se recomendam, os mais simples obséquios.

O comércio constituiu-se uma espécie de realeza de hicsos no
Egito, realeza cujo fundador criara, tendo chegado àquela nação
trazendo apenas uma das mãos atrás e outra adiante.

No Rio de Janeiro, principalmente, não se pode sequer protestar contra
esse poder arbitrário, que não tem por si mais do que a fortuita
intervenção do acaso.

Pode-se falar contra o imperador, contra os ministros, contra os magistrados,
contra todas as instituições, porém, ai do ousado que
se lembrar de insurgir-se contra algum dos maiorais da metrópole comercial
e de protestar contra a sua ingerência indébita em negócios
que a nossa Constituição lhes proibiu tratar! É homem
perdido.

Os pobres jornais fluminenses limitam-se a fazer barretadas aos fidalgos,
que cheiram a toucinho, com medo de que os anúncios lhes fujam e as
assinaturas escasseiem.

Nós, só porque tomamos a liberdade de dizer estas coisas que
estão na consciência de todos os brasileiros dignos, de todos
os homens de trabalho, temos realmente medo da mais franca perseguição.

Já das barraquinhas do Clube Ginástico Português foi
excluído o nosso nome, e entretanto a imprensa portuguesa, todas as
províncias do Brasil repetem.

Os conservadores mais avisados do que nós aproveitam para o pleito
o dinheiro dos estrangeiros, fazem com ele obra de corrupção
e depois procedem no poder como muito bem lhes parece.

Para adoçar a boca aos aliados, distribuem aqui uns hábitos
da Rosa e concorrem para que venham de Portugal algumas comendas da Vila Viçosa.

Nós, com o impacto da mocidade e da dignidade, aceitamos francamente
a posição que nos impõe o patriotismo. Os conservadores
dissimulam a vergonha de ver o seu país levado à mercê
de uma invasão de interesses, e tiram deles o quinhão que lhes
convém.

Mas ninguém dirá que eles querem ser dominados pelo estrangeiro
e elevar ao trono o primeiro comissário de café audaz que se
julgue talhado para trazer coroa diferente da de princês.

O pleito eleitoral trouxe-nos, pois, esta consoladora certeza: a questão
abolicionista está definitivamente julgada e ganha.

Não há partido organizado para resistir-lhe. Tudo quanto há
contra ela é a aliança dos interessados àqueles que são
bastante hábeis, e suficientemente pouco escrupulosos, para aproveitarem-se
da boa fé dos aliados.

Podemos, pois, tomar a atitude ainda mais decisiva.

Que os abolicionistas se convençam finalmente de que podem e de que
devem fazer.

As urnas acabam de reeleger quase todos os deputados que, na passada legislatura,
tomaram lugar em torno da bandeira abolicionista.

Joaquim Nabuco está eleito.

Continuemos com mais fé o trabalho.

Que a assembléia que vai decretar a liberdade funcione em território
livre.

A postos e mãos à libertação do Município
Neutro.

Não há quem possa vencer a um partido que sabe querer.

As urnas do Município Neutro acabam de decretar a redenção
dos cativos; executemos o seu decreto.

10 jan. 1885

21-II-1885

A luz triunfa.

Já há no horizonte vermelhidões precursoras do dia de
fraternidade, que emancipará o trabalho e a pátria, congraçará
os cidadãos pelo mais fecundo dos sentimentos -o de solidariedade.

Em vão os profetas de ruínas pregaram o juízo final
da pátria para o dia em que os ecos repetissem, pela vastidão
de nosso território, a proclamação criadora da redenção
total dos cativos.

A lavoura, a quem se queria catequizar para a religião ensangüentada
da destruição da alma de uma raça, religião fatal
que exige para o seu culto holocaustos humanos, parecendo a princípio
querer prestar-lhe ouvidos, começa a desconfiar dos evangelistas, e
a reclamar para si o livre exame das suas necessidades e dos remédios
que lhe aproveitem.

A lavoura de Campos se fez o Lutero contra esse catolicismo das catacumbas
da civilização econômica, e que, só trazendo ao
espírito desconfortos, idéia de morte, tinha como cântico
religioso o gemido dos mártires, que o confessavam, e das vítimas
que a sua intolerância brutal sacrificava.

Está quebrada a unidade da fé negra. Enquanto uns se abraçam
à cruz inquisitorial do trabalho escravo, outros se voltam para essa
religião do espírito, em que a razão pontifica, a consciência
é altar, e os ensinamentos do século o Evangelho sagrado.

A manifestação da lavoura de Campos há de ser posta
à margem pela massa esclavagista, como perigosa heresia.

Os argumentos são felizmente conhecidos; dir-se-á de Campos
o mesmo que se diz do Norte: a qualidade da sua lavoura dispensa o braço
escravo.

Mas o que fica desde já acentuado é o princípio da indenização
da suposta propriedade pela própria renda da propriedade, ou o que
é o mesmo, o reconhecimento de que na lavoura, como em qualquer indústria,
todo o capital que se indeniza tem em si mesmo o meio de resgatar-se.

Houve, entretanto, quem negasse este princípio comezinho, espécie
de conclusão de Calino, e foi contrariando-o e é refutando-o
pelo absurdo que se mantém no país um partido esclavagista,
com grande prejuízo da honra e da riqueza nacional.

A lavoura campista será incluída na excomunhão geral
imposta a todos os que afirmam a possibilidade da transformação
do trabalho sem indenização pecuniária do Estado ao senhor
de escravo, mas é também incluída na classe dos pensadores
sérios, que cuidam mais do dia de amanhã da pátria, que
é o patrimônio de muitas gerações, do que dos interesses
de hoje que podem ser mal julgados pelos preconceitos e pelas paixões.

O que a lavoura de Campos pede não é o que o país lhe
pode dar; sente-se o erro econômico através da boa vontade dos
representantes, mas as suas palavras são repassadas de um sabor de
patriotismo, que arrebata e inebria.

Prevendo as acusações, que hão de ser feitas aos patrióticos
lavradores, pressentimos também a revolução que as suas
palavras vão causar no espírito dos seus pares na indústria.

Não tardará muito que os fazendeiros do Brasil compreendam
que os seus inimigos não são os abolicionistas, mas os seus
supostos advogados.

Haverá ocasião de traçar o paralelo, em pleno calor
dos acontecimentos.

E que diferença?

Enquanto os abolicionistas se limitavam pela imprensa e pela tribuna a formar
opinião, para dar uma solução legal por meio do parlamento
ao problema inflamável da liberdade pessoal; os comissários
de café e os seus assalariados políticos aconselhavam aos lavradores
que se reunissem em clubes de lavoura, com estatutos secretos, com polícia
especial, e aplaudiam a lei das causas perdidas ou das situações
desesperadas -a Lei de Lynch.

A conseqüência do emprego desses recursos era revelar nos centros
rurais aos escravos o abalo da instituição servil, a fraqueza
dos seus mantenedores, o que importava animar a insubordinação,
incitar à desordem.

Nas fazendas, os escravos estão hoje convencidos de que tudo depende
de um pouco de esforço da parte deles; que podem escrever com as suas
próprias mãos sua carta de emancipação.

Os abolicionistas falavam ao espírito e ao coração dos
senhores, apelando para a solidariedade na manutenção da honra
nacional; os esclavagistas falavam ao escravo, esporeando-lhes o desespero
com a alucinação da esperança.

Os abolicionistas advogaram sempre os meios de aumentar o valor da riqueza
rural, pela divisão do solo, a imigração, a criação
de mercados no interior, a concentração comercial nas regiões
agrícolas. Com estas medidas eles concorriam para melhorar as tarifas,
pelo aumento da renda das estradas de ferro, e por conseqüência
dar maior valor à produção, quer pela abundância
de trabalhadores, quer pela economia realizada na diferença dos fretes.

Os esclavagistas procediam de um modo contrário. A pretexto do perigo
da instituição servil, perturbaram o trabalho pela negação
de crédito aos fazendeiros pela mudança brusca no regime de
cobrança, e pela conversão da hipoteca em fábrica de
miséria.

Em vez de encorajar, intimidaram, em vez de remediar, agravaram o mal da
lavoura.

Protetores não diminuíram o juro, aumentaram-no; em vez de
promover a criação de novos produtos, fizeram a convicção
de que só o café é que acha comprador e só ele
é capaz de indenizar o capital rural.

Tendo preso em suas mãos o fazendeiro, deram maior desenvolvimento
à especulação vergonhosa das contas correntes e da falsificação
das qualidades do café.

Felizmente o paralelo, que vamos fazer, há de deixar bem claro que
tudo quanto pedimos redunda em benefício para a lavoura e tudo quanto
os nossos adversários -comissários e políticos, estrangeiros
e oligarcas- aconselharam é uma série de males para os fatores
da riqueza pública.

A História preparou-se para tomar vingança dos difamadores
da pátria.

Um espetáculo curioso está prestes a ser representado. Os procuradores
da lavoura estão reunidos em grande número na Câmara temporária
e, pelos seus primeiros atos, podemos inferir já que eles dirão
-continue-se, quando a lavoura disser, como começou a dizer- acabe-se;
que eles aconselharão guerra, quando a lavoura aconselha paz.

Será curioso um país inteiro a condenar uma instituição
e alguns negociantes estrangeiros e seus advogados a querer mantê-la.

Esperamos por este momento, para repetir a frase do povo francês aos
trintanários parlamentares de Carlos X quando os enxotou da Câmara:
para fora, bandidos, este lugar é do povo.

21 fev. 1885

7-III-1885

Vai bater a hora soleníssima da abertura da sessão parlamentar,
destinada a arquivar a página de maiores esperanças ou de maiores
decepções em nossa História.

Apesar do propósito de alguns em nivelar com o passado a missão
da legislatura, que começa, o futuro provará que ela não
tem nada de comum com essas reuniões sem responsabilidade, que se limitavam
às funções de chancelaria do Poder Executivo.

A gravidade da situação presente manda-nos olhar para a Câmara
temporária de amanhã, com a visão de Necker diante dos
Estados Gerais de 4 de maio de 1789, e dizer como ele que -a assembléia
deve pertencer ao presente e ao futuro.

No presente queria o estadista que se meditasse nas relações
das finanças, no futuro que os Estados estivessem preparados para o
dia em que se tivesse de lançar um olhar de compaixão sobre
esse povo desventurado de que se fez um bárbaro objeto de comércio;
sobre esses homens, nossos semelhantes pelo pensamento e sobretudo pelo sofrimento,
homens, que, entretanto, sem comiseração pelas suas lágrimas,
eram amontoados no porão dos navios e levados, a velas cheias, ao encontro
das cadeias que os esperavam.

A Câmara deve dar resolutamente costas ao passado, porque lá,
como num pesadelo tremendo, em que se vissem esqueletos e demônios tripudiando
ao som de uma orquestra de gemidos de moribundos, só há cenas
que horrorizam, vergonhas que entibiam.

Olhar para o passado será continuar a servir aos interesses da oligarquia
de senhores de escravos, único poder real, que tem tido este país.

Desde o berço da nossa nacionalidade, o fantasma da escravidão
nos guarda ominosamente o destino, manchando-nos a história com a sua
sombra pavorosa.

Ao lado de Tiradentes, ela inspira-lhe uma baixeza de par com a idéia
da emancipação da pátria.

Não é porque a metrópole dificulta o desenvolvimento
da nascente nacionalidade brasileira que ela entende que a província
de Minas Gerais deve unir-se para reagir contra o domínio português;
não, o primeiro mártir da Independência nacional restolha
na odiosidade contra a capitação -imposto sobre escravos- a
cólera dos senhores e os convida à reação porque
a METRÓPOLE VAI DECRETAR QUE NINGUÉM PODE POSSUIR MAIS DE DEZ
ESCRAVOS.

A Inconfidência é assim rebaixada a uma infamíssima conspiração
de réus de lesa-humanidade contra o Governo, que os ameaçava
com obstáculos à perpetração desse crime, em larga
escala.

Manchando a primeira revolução emancipadora, a escravidão
incumbiu-se de matar a segunda.

A Confederação (sic) de 1817 ameaçou fulminar o monstro,
que já havia sido mal ferido pelos golpes dos filantropos estadistas
ingleses, pela Convenção Nacional, pelo Congresso de Viena e
pela própria legislação portuguesa, quer quando o marquês
de Pombal considerava-a grande indecência, que as ditas escravidões
inferiam aos vassalos, as confusões e ódios que entre eles causavam
e os prejuízos que resultavam ao Estado de ter tantos vassalos lesos,
baldados e inúteis, quer quando o alvará de 24 de novembro de
1818 considerava o tráfico um arbítrio, até agora praticado
como necessidade da produção.

Tanto bastou para que uma das mais liberais das revoluções
humanas fosse sacrificada e que de tanto sacrifício e de tanto heroísmo
não nos restasse senão a lembrança indelével da
vida branda da jangada do padre Roma, como a via-láctea em que os nossos
sonhos de moços idealizam o brilho das constelações do
futuro pátrio.

Realizada a nossa Independência, a escravidão não quis
deixar de ter o seu quinhão nos meios vis por que a obtivemos.

Por ela os nossos plenipotenciários rojaram-se aos pés da Inglaterra;
por ela vimo-nos forçados a comprar a dinheiro a emancipação
que já nos havia custado sangue de mártires.

Constituída a nação, ela faz imediatamente dividir a
história parlamentar em duas fases, cada qual a mais vergonhosa: -uma
que vai de 1821 a 1850 e tem por fim garantir a pirataria; outra que se estende
daí aos nossos dias e se compromete a manter a escravatura.

Na primeira fase, a escravidão invoca todos os pretextos, submete-nos
a todas as humilhações para subsistir.

Defendendo o tráfico como necessidade indeclinável da agricultura,
ela não se vexa de ver o país tratado a abordagens e bombardeios,
representado pelos cadáveres de piratas pendurados nas vergas dos cruzeiros.

Chama a essas rudezas da Justiça abusos da força inglesa, e
negando ao mesmo tempo os compromissos solenes de 1828, a Convenção
de 26, a lei de 1831, como outrora já negara o Tratado de 1810 e os
compromissos do Congresso de Viena, as Convenções de 1815 e
1817, só se rendeu quando, por uma lei falaz de repressão do
tráfico, houve um governo bastante miserável para se fazer cúmplice
do crime de redução de 600.000 homens livres à mais ilegal
e à mais monstruosa das escravidões, porque é a escravidão
regida pela infamíssima lei de 1835.

Batido e vencido o tráfico, ficava constituída a força
que devia manter a escravidão.

De um lado a lavoura, que se empenhara para se prover de braços e
só neles tinha a sua riqueza, de outro os políticos que fizeram
do tráfico a arma de Governo e se acusavam de partido a partido como
assalariados dos piratas. Entre eles como poder, mais forte que ambos, levantava-se
o comércio traficante, que, representado por Manuel Pinto da Fonseca,
fazia e desfazia situações.

Com tais elementos, que ainda hoje subsistem, tendo apenas Manuel Pinto da
Fonseca tomado o nome de Centro da Lavoura e do Comércio, fácil
foi continuar a manter a escravidão contra todos os brados do sentimento
humano indignado e os ensinamentos mais intuitivos da ciência econômica.

A última palavra dessa torpíssima especulação
foi escrita pela lei de 28 de setembro, em que o legislador declara que bastam
sete anos para resgatar um escravo, isto é, para indenizar a quantia
por ele dada em contrato de serviço, e, não obstante, em nome
dessa mesma lei, quatorze anos depois de sua decretação, há
um partido que ousa chamar anarquistas aos que pedem a libertação
dos escravos, e pede em nome dessa lei que não se adiante um passo
mais no caminho da emancipação.

A morte é o único legislador que se admite, como capaz de resolver
o problema.

Tal é a instituição e tais são os homens que
a Câmara, como tribunal da nação, tem de julgar.

Oxalá que ela se inspire nas lições dos outros povos
e se decida a medir a pátria pelas gerações vindouras
e não pela estatura de alguns homens, que não bastam nem para
aferir o comum da espécie humana.

7 mar. 1885

21-III-1885

Ainda que, em consciência, não nos julguemos já obrigados
a dar explicações do nosso procedimento, nem a revelar as nossas
determinações aos adversários da extinção
do elemento servil, queremos levar a extremo a nossa longanimidade e mais
uma vez proceder com a lealdade, que foi e é a nossa maior força
na propaganda sacrossanta da igualdade humana, civil e economicamente.

A nossa obra está à vista de todos, só os cegos não
a querem ver.

O sr. senador Afonso Celso a descreveu assim, na sessão do Senado,
ontem:

-«O status quo não pode manter-se; ninguém se iluda.
Quaisquer que fossem as causas determinantes desse fato, a propaganda libertadora
desenvolveu-se, ganhou terreno, e hoje impõe-se a todos os espíritos.
Agora só resta encaminhá-la, dirigi-la de modo a atenuar os
sacrifícios dos interesses, que ela combate, e impedir que se desvaire.

Ela chegou a todos os recantos do país; ecoa por toda a parte, e convém
não esquecer que ainda nos estabelecimentos onde a disciplina mais
severa segrega a escravatura de qualquer contato estranho, -a esperança
da liberdade anima, conforta e contém os que estão cativos.

Como isso aconteceu, como foi levada e repercutiu em todos os centros a idéia
de emancipação, quem saberá dizê-lo? Também,
às vezes, a ventania transporta para o fundo do deserto a semente fecunda
de outras regiões que aí brota e floresce!

O fato inegável é esse: hoje não há ponto nenhum
do Império onde não se pense e não se discuta a questão
da emancipação; onde essa idéia não fomente alegrias,
ou desperte receios.»

A primeira vitória está, portanto, ganha; a segunda ninguém
no-la pode disputar.

A mesma resistência ao Direito, a mesma obstinação em
desconhecer a Justiça, os dous melhores instrumentos da propaganda
abolicionista, nos hão de dar o triunfo completo.

Contra a vontade dos Governos e do parlamento, da magistratura e da polícia,
realizamos a grande odisséia da consciência nacional; contra
eles e apesar deles havemos de chegar ao termo das nossas aspirações,
o mais tardar no prazo fatal que marcamos: 1889.

O Direito não precisa de outra força além do consenso
universal. A oposição dos interesses de castas coligadas nada
pode contra ele. Dique impotente, serve apenas para converter o rio em inundação.

As ilusões restolhadas no passado, as tradições do predomínio
oligárquico em toda a nossa história acalentam, é certo,
em espíritos mal preparados, a esperança de que é possível
ainda fazer parar a propaganda e nivelá-la com os interesses dos partidos.

Em 1823 a lei de 20 de outubro mandava aos presidentes de província,
com os conselhos provinciais, propor árbitros, para facilitar a lenta
emancipação dos escravos.

Ditada pela Constituinte, esta lei ficou, entretanto, letra morta, porque
a Constituição outorgada suprimiu criminosamente o compromisso
nacional.

Em 1831 decretou-se a 7 de novembro a proibição do tráfico
de africanos e entretanto, em 1837, havia bastante impudor para se formular,
no Senado, um projeto mandando anistiar os réus de pirataria e a anistia
que a lei não concedeu tornou-se desde logo fato.

Estas duas recordações devem, de certo, dar aos advogados da
escravidão uma noção falsa a respeito da atual propaganda
abolicionista, tanto mais eles resistem dispondo dos mesmos elementos de força
com que se aguerriam outrora.

Mas, para desfazer-lhes o engano, basta uma consideração.

A lei de 28 de setembro, à parte todos os seus erros, realizou um
grande benefício: vacinou a escravidão com a liberdade.

A vacina chama-se ingênuo.

Dentro em quatro anos, o ingênuo de 1871 será um adolescente
válido, braço forte para lutar, com espírito capaz de
raciocinar, consciência preparada para decidir.

As leis naturais, essas que zombam dos códigos tacanhos, das instituições
políticas infames, viveram sempre e viverão até lá.

Essas leis ensinarão ao ingênuo que o dever do filho é
reagir contra tudo que avilta os pais, contra as injustiças que os
torturam, contra as lesões feitas aos seus direitos.

Ora, a estatística apresenta centenares de ingênuos, o que equivale
a dizer em quatro anos a propaganda abolicionista deve ter recrutado, só
nos domínios da lei de 28 de setembro, um exército formidável
para ditar a lei da libertação total dos escravos no Brasil.

Daqui não há fugir.

A lei de 28 de setembro foi uma das santas emboscadas da liberdade.

Sabe-se que o visconde do Rio Branco pretendeu tomar medidas bem diversas
das que a resistência escravista lhe impôs.

Quis organizar e entretanto constrangeram-no a formular essa lei anárquica,
que preparou no próprio ventre da escravidão a sagrada conspiração
abolicionista.

O sr. senador Afonso Celso é vítima da mesma pressão
moral.

S. Ex.ª proclamando o direito de propriedade sobre o homem, direito
que não tem outro fundamento senão o interesse do senhor, prega
a anarquia em nome da lei.

Quiséramos que S. Ex.ª nos dissesse onde está a lei que
estabelece a escravidão atual.

O que há na origem é o resgate. O trabalho do catecúmeno
indenizando o sacrifício do cristão, que foi disputá-lo
à morte para a vida da fé católica.

Desde que esta relação social degenerou em cativeiro, a igreja
a condenou imediatamente e atenta à origem da instituição
que se ia criar, só a igreja era poder competente.

Vencido o direito pelo interesse dos estados, decretado o tráfico,
a legislação portuguesa falando pela voz do marquês de
Pombal, ou pela de d. João VI, declara terminantemente que não
há direito real do senhor sobre o escravo, que o tráfico é
um arbítrio.

A escravidão é uma espécie de milícia desventurada,
criada pela política colonial, para a guerra da agricultura e de todas
as outras indústrias contra a natureza selvagem.

A revolução econômica operada pelos descobrimentos aconselhou,
é certo, os revolucionários ao confisco da liberdade dos povos
selvagens e bárbaros, mas nem por isso a civilização
humana, único tribunal competente, legitimou o ato.

O sr. Afonso Celso não quererá por certo dar como base sólida
de Direito uma legislação em conflito, denunciada através
da nossa história parlamentar como o fruto da venalidade dos legisladores,
uma legislação que tem como berço opiniões como
estas.

Diz Eusébio de Queirós:

«Sejamos francos, o tráfico no Brasil prendia-se a interesses,
ou, para melhor dizer, a presumidos interesses dos nossos agricultores; e
num país em que a agricultura tem tamanha força, era natural
que a opinião pública se manifestasse em favor do tráfico.

O que há, pois, para admirar em que os nossos homens políticos
se curvassem a essa lei de necessidade!»

Assim, pois, depois de compromissos tomados com a Inglaterra no momento em
que se reconhecia a nossa Independência, depois da convenção
de 26, depois da lei de 1831, os homens públicos submetiam-se à
opinião pública, formada pelos supostos interesses dos agricultores,
e esta lei da necessidade dos partidos legitima e legaliza um crime!

E, prosseguindo, Eusébio de Queirós não apela para nenhuma
lei, que se pusesse ao menos em conflito com as leis que condenavam o tráfico,
limita-se a justificar o atentado pela unidade de conduta dos partidos no
Governo.

Sousa Franco denuncia nos mesmos termos a legalidade da escravidão,
chamando o tráfico ato de conivência dos governos com os traficantes.

Quando se recorre aos anais vê-se que, para conservar o tráfico,
lançou-se mão de uma suscetibilidade nacional com relação
ao cruzeiro inglês, e foi explorando um falso sentimento de patriotismo
que se conseguiu legalizar aquilo mesmo que a lei condenou.

Se não fosse demasiado pretensioso no Brasil emprazar homens de posição
oficial a aceitar debate com quem a não tem, provocaríamos os
defensores da legalidade para uma discussão larga e desapaixonada diante
da história parlamentar e da imprensa.

Não temos receio de ser vencidos. Nenhuma lei pode ser invocada para
sustentar a escravidão. Basta o confronto da importação
de africanos com a emancipação destes, para demonstrar que a
escravidão no Brasil é um roubo.

Lamentamos profunda e sinceramente que o sr. senador Afonso Celso, cabeça
cientificamente organizada, deixando-se dominar por um preconceito político,
se aferre à idéia da indenização.

Indenizar o que, com que e para quê? Só se indeniza o que é
propriedade legal e o escravo é uma espoliação praticada
por algumas castas contra o Estado.

Mas, dada a hipótese de que essa propriedade exista, com que recurso
havíamos de indenizar os senhores?

Resta-nos também saber para que se daria tal indenização,
quando ela não pode corresponder sequer à quarta parte do valor
de cada escravo indenizado?

Indenizar é iludir, já o demonstramos; porém, voltaremos
sobre o assunto, uma vez que não conseguimos ainda fazer sentir aos
políticos o gravíssimo erro, que vão mais uma vez cometer,
principalmente ao persistir no fatalíssimo sistema da lei de 28 de
setembro.

O patriotismo aconselhou ao sr. Afonso Celso uma declaração
digna de seu merecimento: é que está pronto a votar pelo projeto
do Governo, porque vê nele um meio de remediar os males do presente.

Pois bem, em nome desse mesmo patriotismo pedimos ao sr. Afonso Celso que
se encarregue de estudar, fora dos interesses do partido, a questão
servil.

Estamos certos de que S. Ex.ª chegará conosco a esta conclusão;
tu do quanto há a fazer é fazer com que a agricultura nacional
entre no regime geral da indústria.

Nada de leis de exceção.

O país deve à lavoura proteção, mas esta não
pode ser dada a preço da liberdade de mais de um milhão de indivíduos
e dos interesses da riqueza pública.

Sobretudo, o sr. Afonso Celso, como estadista, deve saber medir o tempo,
e não há dúvida de que a solução do problema
servil tem atualmente prazo fixo.

Fazer leis que tenham de ser rasgadas pela fatalidade da evolução
é um trabalho inglório.

O grande congresso nacional dos filhos da mulher escrava está convocado.

Não queira o sr. Afonso Celso contribuir para que ele decrete leis
cruéis.

O parlamento pode hoje mandar pagar o fazendeiro, a civilização
considerará esse dinheiro um empréstimo, que ela cobrará
executivamente em 1889, época em que a escravidão será,
queiram ou não queiram, abolida.

Que o parlamento coopere com a lavoura para garantir os capitais, como a
propaganda cooperou com a escravidão para garantir-lhe a redenção.

21 mar. 1885

28-III-1885

É para impressionar profundamente a moderação que têm
tido, estes últimos dias, os conservadores.

Este procedimento destoa tanto do que eles tiveram no começo da sessão,
que necessariamente corresponde a algum plano secreto, e quem sabe se conchavo
nas trevas, para empolgar de improviso o poder e mais uma vez ensangüentar
o país com alguma das suas costumadas reações monstruosas.

Todos os que estudam a história parlamentar deste país sabem
que o Partido Conservador chamou a si a resolução do problema
servil.

A história desse partido é a história da escravidão,
a partir de 1831.

Foi ele quem escandalosa e criminosamente protegeu o tráfico, já
proibido; foi ele quem não tendo conseguido anistia de direito concedeu-a
de fato aos réus de pirataria, aos traficantes apontados pela imprensa
e pelas reclamações da Inglaterra; é ele, finalmente,
quem pela voz dos srs. Paulino de Sousa e João Alfredo ainda ousa vir
falar em propriedade legal, depois do Projeto 133 do Senado, em 1837, e das
vergonhosas revelações de todos os Governos e dos parlamentares
brasileiros, com relação aos abusos flagrantes, à violação
proposital da lei, que fechou os nossos portos à introdução
de africanos.

Está na memória pública a atitude dos sustentadores
da propriedade escrava, durante as discussões da lei de 28 de setembro
de 1871.

Essa atitude, em tudo igual à que tiveram o sr. Vanderlei, hoje barão
de Cotegipe o sr. Pereira da Silva e seus correligionários na ocasião
em que Silva Guimarães apresentou o seu projeto emancipador e pretendeu
justificá-lo, não se conforma com o meio desprendimento que
se nota na pujante e numerosa falange negra, disciplinada na Câmara
pelo sr. Andrade Figueira.

Essa tolerância relativa faz até acreditar aos que julgam de
leve haver da parte dos abolicionistas falta de tática política
em não ir ao encontro dos chefes conservadores, para testemunhar-lhes
a esperança de que, não tendo compromissos políticos,
estão prontos a con… (ilegível) deles como de qualquer outro,
a sorte da propaganda e das medidas de extinção do elemento
servil.

A nossa justificação é fácil.

Os conservadores insistem no direito de propriedade escrava, sem levar em
linha de conta as decisões do direito das gentes, a história
da escravidão no país e as próprias declarações
de seus chefes.

Em sessão de 1º de setembro de 1854, na Câmara dos Deputados,
sustentando o seu projeto acerca de transporte de escravos, disse o atual
sr. barão de Cotegipe:

«Ora, senhores, se isso dá-se na propriedade considerada em
geral, o que acontecerá quando se tratar de uma propriedade que funda-se
no abuso? (Apoiados.) A sociedade não terá o direito de limitar
esse abuso, de fazer com que ele seja menos prejudicial à mesma sociedade?
(Apoiados.) Se nós entendêssemos que devíamos acabar a
escravatura entre nós, haveria alguém que se nos viesse opor
e a quisesse perpetuar, porque assim feriríamos o direito de propriedade?
(Muitos apoiados. Prosseguem os apartes.) Como, pois, entende-se que é
inconstitucional fazer-se cessar o comércio de escravos de província
a província? (Apartes.)

Posso usar e abusar da minha propriedade, é uma conseqüência
dela -diz-me o ilustre deputado por Mato Grosso.

O sr. VIRIATO: -Apoiado.

O sr. VANDERLEI: -Podeis abusar, sim, da vossa propriedade em geral; mas,
da propriedade sobre o homem não podeis abusar (muitos apoiados) se
entenderdes que podeis abusar até o ponto de destruí-la, esse
abuso poder-vos-á levar até a forca.»

Tal era o modo de pensar do sr. barão de Cotegipe, há trinta
anos!

S. Ex.ª declarou terminantemente que essa propriedade infamante vinha
do abuso e, no entanto, hoje, consente em que os seus correligionários
a proclamem legal! E para não deixar dúvida sobre a sua convicção
de que a escravidão é o abuso, palavra em que dissimulou uma
outra -um crime, diz ainda S. Ex.ª com relação ao tráfico
de escravos do Norte:

Não é tudo, senhores, já como conseqüência
vai aparecendo no Norte uma outra especulação, que é
a de reduzir à escravidão pessoa livre…

«O sr. AGUIAR: -Apoiado; isto é que é lamentável.

O sr. VANDERLEI: -Homens a quem estão confiados desgraçados
meninos de cor parda e preta têm-nos vendido; outros empregam violência
para roubar crianças e vendê-las! Fatos destes têm sucedido
mesmo na minha província.

O sr. SILVEIRA DA MOTA: -Em praça pública faz-se isto em toda
parte.

O sr. VANDERLEI: -O quê? Reduzir à escravidão pessoa
livre? Pode-se considerar sem alcance moral o projeto que tende a acabar com
semelhante imoralidade?

O sr. SILVEIRA DA MOTA: -Não acaba tal, há de haver sempre
leilão de escravos.

O sr. VANDERLEI: -O ilustre deputado não atendeu: estou dizendo que
essa indústria, essa nova especulação, essa nova traficância
de carne humana (apoiados) que anda explorando todas as vilas, todo o centro
das províncias para comprar homens e transportá-los para os
novos valongos da corte, tem trazido mais uma outra imoralidade que é
a tendência de reduzir à escravidão pessoas livres.»

Assim, pois, essa propriedade legal não proveio só dos antigos
Valongos, apenas desconhecidos pelo dr. Paulino de Sousa, pai; proveio de
novos Valongos criados para mercado de crianças livres roubadas a pais
brasileiros!

Legalidade passa a ser em nossa legislação sinônimo de
imoralidade triunfante, de pirataria impune. O parlamento que a reconhece,
que a decreta, não sai do art. 13 da Constituição mas
do art. 179 do Código Criminal.

Entretanto, é a esse direito de propriedade que se apegam os correligionários
do ilustre estadista brasileiro, que por sua vez consente que os deputados,
que dependem imediatamente da sua influência provincial, votem e discutam,
sob a direção do sr. Andrade Figueira, que legaliza a pirataria
até nas águas lustrais do batismo.

Para apoiar a opinião do sr. barão de Cotegipe, quanto à
legalidade da escravidão, quantas outras no seu partido, sobrelevando-as
principalmente a de Eusébio de Queirós, que mais de perto estudou
a história da traficância de carne humana!

O marquês de S. Vicente, o benemérito abolicionista, sobre cujo
túmulo têm sido regateadas as coroas que lhe devem os correligionários,
como justa homenagem à sua memória, entendia deste modo a propriedade
escrava, sob o ponto de vista da sua legalidade.

«Em matéria de propriedade puramente legal, em matéria
de instituição excepcional vigora o princípio que -quem
adquire tal gênero de propriedade, quem entende tirar proveito da exceção,
o faz a seu risco e perigo, por isso que sabe que tal estado de cousas deve
ser abolido algum dia. Demais é princípio que quem coloca assim
sua fortuna entende achar nos benefícios de tal emprego a compensação
das eventualidades a que se expõe, a amortização do capital
arriscado. O princípio contrário obrigaria o Estado a indenizar
a abolição de todo e qualquer privilégio.»

Esta opinião da comissão francesa por ele perfilhada, sustentou-a
brilhantemente, para apoiar o mesmo sr. João Alfredo que, hoje, seria
capaz de fazer oposição ao imortal jurisconsulto brasileiro.

Posta nestes termos a questão da legalidade da escravidão,
não se pode admitir boa-fé da parte dos seus sustentadores e
não se compreende a pertinácia na sustentação
comparada à atitude descomunalmente moderada dos conservadores.

Haverá na nossa história parlamentar algum fato semelhante?

Felizmente.

Em 1848, o Partido Liberal iniciou a discussão da lei para reprimir
o tráfico.

Dispensamo-nos dos qualificativos que convêm ao modo como procedeu,
porque é sabido que os liberais no Governo são de uma contradição
dolorosa com as suas teorias.

O Ministério exumou timidamente dos arquivos da Câmara o cadáver
moral da legislação brasileira, conhecido pelo nome de projeto
nº 133, de 1837, do Senado, e pretendeu galvanizá-lo pela discussão.

Parecia que o Partido Conservador estava deliberado a sustentar o Gabinete
nesta iniciativa.

Pois bem, de súbito, apareceram complicações, dentro
e fora do parlamento.

Os dias 6,7 e 8 de setembro de 1848 assinalaram-se por distúrbios,
sendo o gabinete acusado de conivência com os desordeiros.

O elemento português foi explorado habilmente contra o Governo, do
mesmo modo que presentemente o exploram para formar caixas eleitorais.

Finalmente, em 29 de setembro, subiu o ministério miguelista, como
o apelidaram, isto dois dias depois da sessão secreta, em que se discutiu
e se rejeitou o ignominioso art. 13, que anistiava os piratas.

A tramóia de então foi organizada de modo tão precipitado,
que nem se pôde guardar a tal ou qual compostura histórica da
aliança velha dos conservadores com os traficantes de escravos.

Nunes Machado assim a denunciava: «Se não conseguimos discutir
às claras a lei dos caixeiros nacionais e comércio a retalho,
como discutiremos esta que ainda é mais importante?»

Repetimos: a atitude dos conservadores é para inspirar receio. Depois
do debate abolicionista de 1848, seguiu-se a reação a mais desenfreada.

A situação miguelista, que principiou por um ministério
que nem se apresentou à Câmara dos Deputados, acabou pelo derramamento
de sangue em Pernambuco; pelos tremendos dias de terror, que se seguiram ao
novo triunfo esmagador da facção áulica.

Preparemo-nos, pois.

Os abolicionistas não devem consentir em que mais uma vez se iluda
a nação.

O que os conservadores querem é a perpetuidade da pirataria.

O poder para adiar a solução de problema servil é o
agravamento da nossa situação precária, que, empobrecendo
cada vez mais a nação, arrasta a agricultura a uma crise fatal.

Dentro da lei 28 de setembro só há o ingênuo, o fundo
de emancipação e a morte.

O ingênuo foi perfeitamente definido pelo visconde de Itaboraí
nestes termos:

«Mas, é com efeito possível que os ingênuos possam
ser constrangidos a servir do mesmo modo que os escravos? Senhores, não
concebo que se possa obrigar um homem a trabalhar para outro senão
por duas maneiras: ou pagando-se-lhe uma remuneração do serviço
que presta, ou mantendo-o na escravidão. Se declarais livre um indivíduo,
se ele tem consciência de que é livre, como podeis obrigá-lo
a trabalhar para outrem, a não mudar de um para outro amo, a não
deslocar-se do estabelecimento em que nasceu? Não acredito que possais
realizar esse intento.

Agravaríeis assim a condição da escravidão, declarareis
livre um homem, mas a liberdade seria uma ilusão, a realidade seria
o cativeiro! Esse homem que declarais livre, mas que constantemente sente
que na realidade é escravo, terá de sofrer, além dos
efeitos da escravidão, os da luta contínua que se há
de travar em seu coração, entre a consciência de que é
livre e a realidade do cativeiro.

Esta luta é um novo tormento que ides criar para os vossos ingênuos;
embora digais que eles ficam sujeitos às mesmas condições
de escravos, nem por isso haveis de conseguir que eles queiram de boa vontade
trabalhar para os senhores de suas mães. (Apoiados.)

O escravo até hoje, sr. presidente, acreditava que nasceu para servir
a seu senhor; sem aspiração à liberdade, resignava-se
à sua condição; seus filhos nascerão livres, terão
consciência de que o são; não poderão, pois, amoldar-se
a servir ao senhor de sua mãe; não haverá força
que os obrigue a trabalhar por conta alheia, sem receber a menor remuneração.
Vós não podeis obrigá-los a viver nas mesmas condições
que os escravos; será isto motivo de contínuas agitações,
de contínuos perigos, de contínuas tramas entre eles e os escravos,
para se libertarem da escravidão.»

Eis o que é o ingênuo, na autorizada opinião de um dos
papas do esclavagismo.

Quanto ao fundo de emancipação, todos sabem que é ele
uma espécie de morte de estóico; sangria em banho morno a esgotar
lentamente e sem dor a vida do suicida.

Apelar para o fundo de emancipação é o mesmo que recorrer
ao deserto para manter a produção.

Quanto à morte, ela só tem uma vantagem, a de ser parlamentarmente
invocada como solução de um problema que é a honra de
uma nação.

Preparemo-nos, pois, com os olhos fitos na história do país.

Se os conservadores têm, como em 1848, quem os apóie para levar
a efeito uma conspiração antipatriótica, fiquem desde
já sabendo, eles e seus auxiliares, que hão de pelo menos ter
mais uma vez o trabalho de fazer de cadáveres de brasileiros, que valem
mais que eles, a escada ensangüentada do poder.

28 mar. 1885

11-IV-1885

Enquanto, no Senado, a alma nacional se expandia na sua eterna poesia e
intrepidez cívica, tomando o som das vozes de José Bonifácio
e Silveira Martins; o Partido Conservador na Câmara temporária
procurava rebaixar a instituição parlamentar, convertendo-a
em praia deserta, onde se refugiam piratas acossados.

Por maior que seja o nosso empenho em conservar a calma do vencedor, é
impossível consentir por mais tempo na desmoralização
sistemática da maior das nossas instituições, porque
é ela a melhor das afirmações da vitória da democracia
universal; o ramo parlamentar de livre escolha do povo.

Os conservadores acostumaram-se a desdenhar da força da opinião,
porque há 62 anos a trazem presa ao leito de Procusto da oligarquia
e da escravidão.

Como os velhos fidalgos corruptos da França, que foram acordados pelo
carrasco, porque faziam ouvidos moucos ao estrondear da revolução
nas assembléias do povo; os fidalgos, enobrecidos pelo dinheiro do
tráfico humano ensurdecem também aos avisos reiterados da imprensa
e da tribuna popular e querem ser arrastados pela torrente impetuosa da fatalidade
histórica, que, finalmente, rompeu a represa feita com as ossadas de
muitas gerações escravas.

Dói-nos profundamente antever as conseqüências da nova
fase, que vai atravessar a solução do problema servil.

Temos procurado por todos os meios dar arras do nosso patriotismo, os demorados
e dolorosos dias da propaganda abolicionista.

Vencendo todas as resistências do poder, havíamos conseguido
agitar a consciência nacional até as suas últimas profundezas,
abalar até os seus fundamentos o velho edifício da escravidão.

Ao mesmo tempo que provocávamos no espírito público
um fenômeno de luz, semelhante a uma chuva de meteoros, o das emancipações
por todos os motivos, junto aos berços, como junto aos túmulos,
por que se engrinaldavam noivas, ou se quebravam tálamos conjugais;
emancipações que se foram grupando, como estrelas em constelações,
como constelações em nebulosas, e formaram as fazendas, os municípios,
as províncias livres; ao mesmo tempo, dissemos, provocávamos
a baixa do preço do homem-cousa em todos os mercados, trancávamos
os portos de exportação e importação; levávamos
o terror aos proprietários de almas alheias, e provocávamos
essa organização miseranda do pânico, feita com o rebutalho
da nossa e das nações estrangeiras, conhecida pelo nome de clubes
de lavoura.

A onda da abolição crescia diluvialmente, ameaçando
tudo, prestes a engolir a senzala e o trono.

Pintamo-la já uma vez com a majestade do estilo de Edgard Quinet,
no seu Ashaverus, arfando pesadamente, a balouçar cadáveres
e a abater com eles a porta do último refúgio do rei, que a
pretende acalmar, com os despejos de sua grandeza e que a vê subir zombeteiramente,
sorrindo ao desfazer-se da espuma, até que o devora silenciosa e lentamente
como incomensurável boa esfaimada.

E dizíamos verdade, porque citávamos os fatos.

As expulsões de magistrados, às prisões de abolicionistas,
às execuções de Lynch respondiam as províncias
organizando clubes de propaganda abolicionista, que se avolumavam miraculosamente.

Em poucos anos, moços desconhecidos viam os seus nomes cobertos de
louros e de lama em toda a extensão do país.

É que no meio do tumultuário combate, amigos e inimigos sabiam
a quem deviam obedecer e atacar. Os chefes deste vertiginoso movimento, como
os chefes gauleses, eram eleitos pelo sufrágio espontâneo dos
companheiros no campo do combate.

Pois bem, quando a vaidade ou a presunção nos podia cegar,
quando poderíamos, ao menos como Tibério Graco, ser acusados
de ter levado inconscientemente a mão à cabeça, retiramo-nos,
sem discutir, da alta posição conquistada pelo nosso esforço
e pelo nosso sacrifício, e demos o lugar ao Governo, que se propunha
a fazer pelo debate do parlamento o que nós fazíamos pelas expansões
do coração.

Desde este dia, todo o nosso empenho foi arrefecer o ardor natural dos nossos
companheiros, porque preferíamos a glória de vencer por nossas
mãos à de aplaudir aqueles que iam fazer florescer os nossos
sacrifícios.

Dez meses são passados. Durante eles temos tido, em vez de apreço,
injustiça.

Os conservadores, que nada fazem sem o imperador, que são um produto
da instituição anômala, que desequilibra a política
sul-americana, disseram que a propaganda abolicionista era obra do seu amo.

Tristíssimo espetáculo o do presente: uma rebelião de
lacaios atacando o amo com os ossos do banquete.

Está na consciência deles que o imperador é a única
pessoa viva neste país, vasto cemitério formado pela epidemia
da escravidão.

Vencer o imperador, pensam eles, é vencer a abolição.

E organizaram-se para o combate.

Quem estuda os anais do parlamento encontra nas suas páginas contínuas
recriminações dos partidos, a respeito da conivência com
os traficantes de homens.

Nenhum se julga com força para atirar ao outro a primeira pedra, tanto
lhes remorde a certeza do adultério com a pirataria.

Nada mais natural do que, ainda no momento em que o Partido Liberal quer
lavar-se nas águas lustrais da redenção, desertar das
suas fileiras um grupo para o esclavagismo.

É com esse grupo que os conservadores contam. E ele o contingente
para a linha negra do acampamento.

Está a seu cargo derribar o Ministério 6 de Junho.

Mas a vida deste Ministério já custou uma dissolução.

Eis a suprema dificuldade para o imperador.

Abandonar o Ministério na derrota, é sacrificar em parte a
autonomia do Poder Moderador, porque o ministério cai pela idéia
que o imperador julgou bastante forte para justificar a condenação
da legislatura passada.

Conservá-lo, e dissolver de novo a Câmara, é comparecer
diante dos mesmos elementos eleitorais, do mesmo tribunal que preferiu a anarquia
atual à regularização dos movimentos legais para decretação
de uma medida universalmente reclamada.

Que fará o imperador?

Mudará o ministério, mudará a situação?
Conservar-se-á rei de escravos ou preferirá ser cidadão
com as suas idéias?

Sacrificará o trono ou a humanidade? Preferirá as homenagens
dos trintanários do poder, ou as bênçãos de mais
de um milhão de desgraçados, entremeadas pelos aplausos do mundo
civilizado?

Terá forças para tirar as conseqüências lógicas
do seu ato de dissolução, contraposto ao da resistência
da nova Câmara?

Que enxurro de miséria vem do encanamento negro da escravidão!

Essa dissidência que vai derrotar o Ministério Dantas apoiará
um novo ministério com as mesmas idéias?

O imperador que apoiou o sr. Dantas, negando indenização pelos
negros de 60 anos, se prestará também a apoiar a política
da indenização?

Que papel ficará fazendo este país, se consentir em qualquer
das duas hipóteses?

Não reconhecerá ele finalmente que tem sido governado por uma
facção, assalariada pelo Tesouro e decidida a tudo empenhar
para garantir o salário?

Deixamos aí de pé esta série de interrogações.

A lógica da História faz destas emboscadas.

Quem transigir com a pirataria aí está a conseqüência.

O direito natural diz: ninguém pode reduzir a cousa pessoa humana.

A religião diz: é inviolável na sua liberdade a imagem
de Deus sobre a Terra.

A lei diz: eu tranquei os mares d’Africa pela convenção de
26 e pela lei de 31 e vi-me obrigada a fazer novas leis em 1850 e 1854 para
reprimir o que eu havia proibido.

A estatística diz: eu vi entrar 536.000 homens neste país e
sei que eles foram reduzidos à escravidão, de 1830 a 1856, porque
destes só consegui libertar 1.027, em 1864.

E acrescenta: sei que eles são a fonte da escravidão atual,
porque até 1827 não se tratava da criação de crioulos.

A conseqüência de todas estas declarações era uma
lei com um só artigo:

Fica abolida, nesta data, a escravidão no Brasil.

Por eqüidade se poderia, quando muito, proceder como se procedeu com
a emancipação dos africanos livres, marcar um prazo para a organização
da economia rural.

Mas não.

O imperador quis aceitar a cumplicidade dos governos coniventes com a pirataria.

Pede os moribundos para a liberdade e deixa os válidos para a escravidão.

A conseqüência é a desordem governamental que aí
lavra e contra a qual o remédio não pode deixar de ser a humilhação
de Sua Majestade.

Quanto a nós, que não fomos pedir no paço de Sua Majestade
a senha e o santo da abolição, continuaremos no nosso caminho.

Sem poder contar com o patriotismo do parlamento, apelamos para o direito
natural e para a lei, que fulminou a pirataria.

Procederemos de hoje em diante em nome de Deus e da lei de 1831.

Fecham-nos as portas do parlamento; abrimos a da História.

O dia das exéquias do Gabinete 6 de Junho é o da hégira
da propaganda abolicionista.

11 abr. 1885

27-VI-1885

O sr. Afonso Pena deve estar muito contente com a sua sorte.

Depois da sua ascensão ao poder, depois que empunhou a espada com
que pretende pertransir a hidra do abolicionismo, o júri já
absolveu uma turma de linchadores, as cadeias já se abriram para encarcerar
vários abolicionistas e o povos rurais já se têm manifestado
em sua província, quer felicitando ao gabinete, quer esquartejando
pretos rebeldes e espancando barbaramente estrangeiros humanitários.

Não pode ser mais róseo o horizonte do esclavagismo. A vermelhidão
do assassinato a foiçadas e facadas pinta a desejada aurora da glória
do ministério.

O carrasco Simão, vendo sangrar a face de Maria Antonieta, não
teve com certeza maior prazer do que o sr. Afonso Pena diante dos fatos do
Rio Bonito, Campos e Mar de Espanha, bofetada tremenda dada na face da propaganda
abolicionista.

Para que o prazer seja completo, S. Ex.ª acaba de autorizar a criação
da polícia noturna, com o direito de armar-se, o que equivale e dar
ao sr. Ramalho Ortigão meios para trazer sob sua guarda a vida dos
abolicionistas e dos brasileiros audazes que não reconhecem a sua realeza.

Dentro em pouco principiarão os linchamentos na própria capital
do Império, com autorização tácita do Governo.

Era de presumir o que se está passando.

Edgard Poe, em um dos seus contos sedutores, descreveu perfeitamente o caráter
dos anões, e desenhou com uma segurança admirável a ferocidade
dos seus sentimentos de vingança.

É o caso que um anão ofendido planeja vingar-se do rei, em
cuja corte fazia o papel de bobo.

Ora, certo dia o rei desfeiteou-o, batendo na anãzinha, que ele -o
anão- amava.

Aproximando-se o carnaval, o rei, que costumava pedir aos membros da sua
corte os figurinos das fantasias, preferiu o que lhe apresentou o anão:
um vestuário imitando o orangotango.

Chegada a noite do carnaval, o rei prontificou-se a vestir a roupa extravagante,
feita de pano pintado de alcatrão e induzido em aguarrás.

À meia-noite, em ponto, Sua Majestade se exibiria, com os maiorais
da corte, todos vestidos do mesmo modo.

Do grande salão de baile foi retirado o lustre central, ficando em
seu lugar uma forte haste de ferro, pela qual o rei e a sua comitiva de orangos
deviam marinhar, enquanto embaixo o anão, com uma esponja embebida
em espírito de vinho inflamado, fingiria querer queimá-los.

A haste férrea distava do assoalho de uma altura imensa, de modo que
uma queda atordoaria.

Para chegar até a haste, o rei e os seus companheiros servir-se-iam
de uma escada.

À hora aprazada, o grupo dos orangos irrompeu no grande salão
do baile, enchendo-o de uma confusão jovial e no meio dela trepou pela
escada, fazendo momos e trejeitos simianos; e marinhou a haste, acompanhado
pelas gargalhadas dos convidados da festa.

O anão fez retirar a escada e começou logo a sorte da esponja
inflamada. Os orangos se aconchegavam, gritavam, assobiavam, coçavam-se,
provocando hilaridade geral.

Mas, de súbito, a alegria estancou. Um espetáculo horrível
se desdobrou diante da multidão tomada de pânico. A chama da
esponja inflamada comunicou-se às roupas dos foliões, e, como
por encanto, os envolveu em uma túnica de chamas.

Os desgraçados despenharam-se, dando gritos lancinantes e batendo
em cheio no assoalho, estorciam-se, enquanto a sala se esvaziava tumultuariamente.

No dia seguinte, o grande palácio se tinha convertido, parte em um
feixe de labaredas, parte em vasto brasido e cinzeiro.

O imperador esqueceu-se de que, em hora de mau humor, esbofeou a pirataria,
a esposa política do sr. Afonso Pena, o rancoroso anão da sua
corte.

No entanto, Sua Majestade lembrou-se de confiar a S. Ex.ª o figurino
das fantasias do último carnaval político do seu reinado.

A vestimenta à orangotango já está cortada; o pano é
também inflamável como o do conto de Edgard Poe.

O alcatrão do tráfico escorre de todos os artigos do Projeto
12 de Maio, a terebintina fatal está na disposição monstruosa
que extingue o arbitramento, aumenta ao esclavagismo as regalias que lhe dão
o código e a lei de 1835.

O pano é tecido com as idéias retrógradas com esses
preconceitos bárbaros, que nos criaram uma singular posição,
tão humilhante quanto notável, no meio da humanidade livre,
e que nos diferencia dela como o único país cristão,
onde ainda impera a escravidão.

A esponja inflamável já labareda na destra do anão da
justiça. É esse orgulho, tão vasto quanto irritante,
que o faz supor maior que duas províncias livres dezenas de municípios
também livres, o voto de vários distritos eleitorais, a opinião
dos maiores homens e da maioria da imprensa do país, e finalmente o
veredicto unânime da civilização, que em júri soleníssimo
sentenciou a escravidão à pena última.

Ainda uma vez queremos avisar o imperador e dizer-lhe que Sua Majestade deve
entristecer-se na proporção da alegria do sr. Pena.

É fato, hoje, sabido por todos, que o imperador não apresenta
a menor objeção ao ministério, sejam quais forem as medidas
propostas.

O sr. Afonso Pena tem tanta liberdade para autorizar a criação
de uma polícia noturna do sr. Ramalho Ortigão, como para decretar
a criação de um corpo de carrascos.

A notícia não merece a Sua Majestade o menor amuo sequer.

Dizem que é propósito seu deixar, dentro em um ano, a coroa
à herdeira presuntiva, principalmente se continuar a ter governos do
quilate do que atualmente o aborrece de modo a não lhe ser possível
dissimular.

Nos seus últimos momentos de reinado, Sua Majestade resolvera fazer
uma derradeira experiência para ver se o povo está bem domesticado.

Daí, dentro da jaula da escravidão enfurecida, a se dar crédito
aos preletores do sr. Saraiva, mandar entrar o sr. Pena, tendo na mão
a virga-férrea do tráfico, avermelhada na ponta com o sangue
dos linchamentos autorizados pela frase do sr. Martinho Campos -é justo
que a lavoura se defenda.

Sua Majestade quer ver se até o negro escravo se submete à
perda de toda a esperança de liberdade; se ele, apesar das manifestações
pessoais de Sua Majestade, das demonstrações da opinião,
do sacrifício dos propagandistas, considera a escravidão a negra
cidade da dor, onde quem entra deve contar com a eternidade do desespero.

Soberano constitucional, pretextando não poder contrapor a sua à
opinião da pátria oficial, Sua Majestade quer, como Marco Aurélio,
sobressair em virtude no fundo negro da corrupção geral do país.

Mas o que é certo é que nós outros, os poucos que protestamos,
deliberados a fazer do holocausto da vida o último protesto, não
podemos admitir que o imperador se entregue a esse estoicismo platônico,
para não amargurar de todo a sua velhice.

É por isso que pensamos que Sua Majestade deve se entristecer da alegria
do sr. Pena.

Na hora da última desilusão, a mão do povo não
se estenderá sobre o anão ministerial. Pela sua própria
pequenez, S. Ex.ª escapa-se dela, como o camundongo da garra do leão.

O próprio trono do imperador será o empolgado, porque no momento
em que a realeza protestar pela sua constitucionalidade, nós lhe responderemos
que essa mesma Constituição armou o soberano com o poder de
nomear e demitir livremente os seus ministros.

Não há dúvida de que o sr. Afonso Pena tem razão
para alegrar-se.

Em outro qualquer país, o ministério que não tivesse
logo respondido ao discurso do imortal senador Otoni, tornando evidente o
seu esforço para garantir a ordem pública, seria hoje enxotado
do poder pelo soberano ou pelo povo.

Não se conservaria mais vinte quatro horas no Governo, porque os cidadãos
veriam em cada ministro um punhal manejado contra a sua vida, e um insulto
vivo à honra da sua nação.

Se foi permitido fazer uma crise, porque um deputado, que não sabe
medir-se pelo seu mandato, foi apupado; se algumas pedras atiradas puderam
fazer cair um gabinete, sustentado por tudo quanto o país tinha de
mais inteligente e limpo; como é que se conserva no poder um ministério
que é invocado como o estímulo a linchadores e a perseguidores
ferozes?

O imperador, em outro país, estaria hoje moralmente obrigado a apontar
a porta a esse ministério, que não sabe do que se passa no país,
e não diz que providências tomou para impedir que o Brasil seja
considerado, não uma nação civilizada, mas uma tribo
selvagem.

Deve, pois, alegrar-se o sr. Pena, mas o imperador deve entristecer-se.

Victor Schoelcher não o chama senão -rei de escravos; de hoje
em diante o mundo civilizado deverá chamá-lo -imperador de linchadores.

27 jun. 1885

19-IX-1885

Dentro de alguns dias será lei do país oficial o projeto monstro,
o conchavo indecente de 12 de maio.

Em vez do mundo igualitário que a propaganda abolicionista inaugurava,
teremos o caos tempestuoso, produto do choco da pirataria no cérebro
silencioso do sr. Saraiva. Em vez da aurora de esperança que havíamos
sonhado para o espírito de mais de um milhão de desventurados,
a treva perpétua, as galés de escuridão para esses condenados,
cujo crime único foi terem construído, com a sua resignação,
com o seu suor, com as suas lágrimas e com o seu sangue, a pátria
ingrata, que lhes desconhece o direito.

Dizem que o imperador quer sancionar no dia 28 de setembro a grande obra,
que se está ultimando no Senado.

Que lhe faça bom proveito. É como colocar a porta do inferno
de Dante, no lugar em que durante quatorze anos esteve a entrada florida das
nossas gerações infelizes para a vida livre.

Quem viu o Fausto deve recordar-se de que Mefistófeles, o demônio
velho, não arrebicou a ingênua Margarida senão para perdê-la.

Tal fez o imperador com a propaganda da abolição entre nós;
vestiu-a um momento com as roupas e as jóias de sua sereníssima
filha, para depois entregá-la ao sr. barão de Cotegipe, Fausto
político rejuvenescido pelo posso, quero e devo.

Fazemos votos para que Sua Majestade realize mais esta profanação.

Desde a ascensão do sr. Saraiva, sentimos que a Monarquia já
não tinha mais forças para resistir à nostalgia do pântano.
Queria voltar para a lama das paixões de que provinha.

E sabido que todos os Braganças foram sempre amigos da escravidão,
ao ponto de fazerem dela meio de ganhar dinheiro.

Desde d. Pedro II, de Portugal, o moedeiro falso, até Pedro I, do
Brasil, a casa do bastardo João IV se desenha na História com
a fisionomia de uma família de traficantes. A única exceção
é de d. José I, porém este, todos sabem, não passou
de um jumento manso, em que o marquês de Pombal subiu a montanha da
imortalidade, comodamente, como a gente sobe a serra de Sintra em jericos
de aluguel.

D. João VI fez do Tratado de 1817 meio de pilhar seiscentas mil libras
da Inglaterra; d. Pedro I aconselhava o nosso ministro Brant, junto à
corte de Londres, que empregasse todo o esforço para que fosse permitido
ao Brasil mais oito anos de tráfico; reinando o sr. d. Pedro II, usufrutuário
dos escravos da nação, a mordomia recebia dinheiro e mandava
avaliar a liberdade de escravos.

É um fato histórico que a Monarquia só se fundou no
Brasil por ser a da escravidão.

O honrado Muniz Tavares, historiando a Revolução de 1817, demonstra
que o meio de que se serviu a Monarquia para impopularizar a Confederação
do Equador foi lembrar aos fazendeiros que perderiam os seus escravos, visto
como a República decretaria a liberdade imediata.

Foi, pois, a pele esticada do escravo o tecido de que se fez o manto imperial
do Brasil.

A Monarquia é o penhor da escravidão, e muita razão
teve o sr. Joaquim Nabuco fazendo notar que estas duas instituições
serviam-se mutuamente de guarda-costas, e que uma corria em socorro de outra,
para dar golpes de Mefistófeles -o tal do Fausto- quando a honra chamava
a duelo uma dessas duas encarnações do vício.

A impassibilidade do ministério diante dos senadores José Bonifácio,
Afonso Celso, Dantas, Otoni, Inácio Martins, Silveira da Mota e Franco
de Sá demonstra que não há meio de convencer pela discussão.

Mas, antes que o imperador envileça para sempre o seu nome, assinando
um decreto que manda a nação pagar a instituição
que a arruinou, e perseguir aqueles que denunciam os réus do art. 179
do nosso Código Criminal, sejamos ainda generosos fazendo algumas ponderações.

Ei-las:

Sua Majestade está tratando da questão abolicionista como tem
tratado de todas as outras, como se fosse uma questão de simples direitos
políticos, para a qual os povos concedem adiamentos.

É um erro. O escravo não pleiteia a causa de uma liberdade
política, mas a liberdade de possuir-se a si mesmo.

Até ontem ele não sabia que tinha direito a exigir que o restaurassem
na sua condição de homem; hoje, por um decreto de dissolução,
lavrada pelo próprio punho de Sua Majestade, ele sabe que tem poder
para interpor-se à marcha regular do Estado e fazer cominar a pena
capital do sistema representativo àqueles que a lei investiu da inviolabilidade
das suas opiniões.

Até ontem ele não sabia o que podia, hoje ele sabe que pode
tudo, e que lhe basta cruzar os braços para vencer os que se supõem
fortes contra ele.

Pela marcha do debate parlamentar dos projetos, o escravo soube que a sociedade
em que vive se governa não pelo que mandam o Direito, a Moral e a Religião,
mas pela contagem dos votos, pela força do número parlamentar.

E o escravo amanhã vai, por sua vez, contar-se, e logo que ele vir
que a soma dos desgraçados da sua condição é maior
que a daqueles que a exploram, ele se esquecerá também desse
Direito, que para ele nunca existiu, dessa Moral, que os senhores violavam
para violentá-lo, dessa Religião, que não lhe serviu
nunca senão para registrar na escravidão a sua descendência.

A prova de que não declamamos é uma informação
que nos dá o Vinte Cinco de Março, de Campos: os escravos começam
a cruzar os braços.

O fato deu-se em uma fazenda, mas há de reproduzir-se em dez, em cem,
em todas.

E de duas, uma: ou o Governo decreta a abolição, ou emprega
a violência para obrigar os paredistas a trabalhar.

Na primeira hipótese, o Governo demonstra a sua imprevidência,
porque faz com que gerações não preparadas para a vida
representativa se iniciem nela legislando pelo terror. Semelhante fato desacautelará
o futuro e deixará a nação à mercê de tremendos
perigos.

Na segunda hipótese, o imperador terá de ver o seu trono de
novo salpicado de sangue; passará pelo dissabor -se é que um
rei tem coração para sentir- de ver a sua velhice presidir a
um tribunal que não terá mãos a medir para mandar réus
para as galés e para a forca, e de um governo que só se ocupará
em decretar a morte.

Sua Majestade conta com a sua boa estrela, que o fez reinar sobre um povo
desfibrado, povo de proletários hepáticos, nação
de mendigos envergonhados e de herdeiros audazes de piratas e moedeiros falsos.

Espera talvez que os escravos se humilhem e sofram sem protesto mais uma
violência aos seus direitos.

Dando-se mesmo essa hipótese, garantimos ao imperador que não
ficará tranqüilo.

Há um punhado de homens que está deliberado a fazer frente
a Sua Majestade; que entendeu que neste país não há lugar
para eles, Sua Majestade e a escravidão. Que dos três, um é
demais, e por isso mesmo deliberaram lançar mão de todos os
meios para obrigar Sua Majestade a sair da sua política de ciladas,
política de Tibério com máscara de Marco Aurélio.

Sua Majestade tem vivido muito comodamente, entregando seus ministros, como
judas de palha em sábado de Aleluia, e enquanto os desgraçados
são espatifados nas ruas, Sua Majestade se diverte nos teatros, nas
conferências, nos passeios a Petrópolis.

Diz-se abolicionista e come a sua lista civil honradamente, sem se lembrar
que esse dinheiro é o suor, a lágrima e o sangue do negro.

Não, não será mais assim.

Agora é cartas na mesa e jogo franco.

Os ministros que são outras tantas vítimas de Sua Majestade,
ou melhor instituição que Sua Majestade sustenta por todos os
meios, desde o assassinato de Nunes Machado até a corrupção
de Timandro, os ministros não nos bastam.

O nosso mundo oficial é um imenso casco de que Sua Majestade é
a tartaruga.

Seria inútil chibatear o casco para fazer o bicho andar. O essencial
é lançar mão dos meios para obrigá-lo a pôr
a cabeça de fora.

É o que vamos fazer.

Sua Majestade nos ameaça com o código e a vergonha de continuarmos
a ser cidadão do único país de escravos, no mundo cristão.

As nossas contas são com Sua Majestade.

É inviolável e sagrado. Não contestamos; porém
a sua inviolabilidade nem ao menos foi decretada por nós, e é
contrária à natureza, e tão audaz que se revolta contra
a inviolabilidade da pessoa humana, decretada pela independência natural
do espírito e do coração.

A sua sagração não é ao menos igual a esta outra
que a humanidade inteira reconhece: a que todas as religiões deram
à pessoa humana, fazendo-a imagem de Deus.

Que Sua Majestade ao assinar o decreto se lembre de nós e conte conosco.

Arme-se com o Código, com a Correção, com ministros
e autoridades sem escrúpulos, com a capangada desumana; nós
cá estamos armados com as três espadas que fizeram a civilização
e a liberdade humana -a Religião, a Moral, o Direito, e o desafiamos.

O mundo vai ver mais uma vez como é que um punhado de homens de bem
atira com um pontapé um trono pelo ar ou como é que poucos homens
de bem fazem dos seus cadáveres os alicerces da liberdade da sua pátria.

19 set. 1885

17-X-1885

O rio e o oceano encaram-se indiferentemente; um, seguro da fatalidade do
seu curso pela fatalidade do declive; o outro, confiado na invencibilidade
da sua força pela sua própria vastidão.

E enquanto o rio desliza sereno, o oceano ondula tranqüilo; aquele trazendo
no dorso as flores e folhas que morreram, este se vestindo de espuma no descuido
do seu movimento.

Mas há horas em que de súbito se trava um conflito entre os
dous indiferentes. O oceano orgulhoso, porque não é desconhecido
pelo astro do amor e da saudade que, lá do azul, não o esquece,
tumefaz-se, avoluma-se, e na sua presunção indomável,
de tudo dominar, subindo, subindo, até roçar o astro, que o
seduz, busca reter o curso do rio, em que ele vê um rival na fruição
dos beijos luminosos.

Então, força contra a força, o rio firmando-se nas suas
margens, o oceano nos seus abismos, travam luta, que nem Homero descreveu,
tão extraordinária é ela.

A princípio o oceano vence; o rio recua, enrosca-se por assim dizer,
como incomensurável serpente, mas cobrando forças na própria
humilhação da derrota roborificando com a própria superioridade
dinâmica do contendor, entesta agora contra águas e como se dessa
grande massa, desse exército líquido, se destacasse um delegado
de cada um para o combate singular, ergue-se de parte a parte uma montanha
d’água, que se choca, bamboleia, redemoinha e espumando, na peleja
tremenda, se despedaçam finalmente com um fragor uníssono.

Na vida política do povo brasileiro deu-se também o fenômeno,
que no Amazonas tem o nome de pororoca.

A opinião e o Império estiveram por mais de um século,
uma em face do outro, aquela deslizando na fatalidade histórica do
progresso, o Império absorvendo a corrente, sem modificar o sabor das
suas águas, nem diminuir o seu movimento.

É chegada a hora da maré.

O sr. presidente do Conselho anunciou na Câmara e no Senado e a Câmara
e o Senado lhe emprestaram a força de que ele carecia; a Lei 3.270,
que devendo levar a tranqüilidade à lavoura, converterá
a sua gratidão em adesão sincera ao Império.

Infelizmente, porém, é lei natural o rio continuar o seu curso
e a maré não servir senão para demonstrar a imutabilidade
do seu destino.

Se ainda fosse possível aconselhar ao Império, se a sua última
hora não o houvesse já ferido da insensatez do náufrago;
nós nos limitaríamos a provar o lucro moral que teria o imperador
abdicando por si e pelos seus.

Sua Majestade não pode justificar o seu reinado, que o destino quis
que principiasse na inconsciência, começando-o na irreflexão
de uma criança e terminando-o na obcecação de um velho.

A História nos diz que o imperador tomou as rédeas do Governo,
quando havia um pouco de vida provincial, quando todo o organismo nacional
se agitava, graças ao Ato Adicional, e, entretanto, durante o seu reinado
as províncias foram gradativamente perdendo autonomia, reduzindo-se
a miseráveis membros paralíticos do corpo deforme do Império.

A História nos diz que o imperador ao assumir as rédeas do
governo encontrou um povo cioso da sua liberdade, capaz de mover por ela até
desordenadamente e forneceu mártires ao seu triunfo; povo que se batia
no interior em revoluções, e que empunhava improvisadamente
as armas para levar guerra a território estrangeiro.

Entretanto, gradativamente o amor da liberdade se foi amortecendo; perdeu-se
a coragem para protestar; julgou-se ato indigno de cidadão sofrer e
morrer pelos seus direitos políticos.

Quanto ao pundonor nacional, o Governo o afere de tal modo que, depois de
haver declarado à República Argentina que não admitia
arbitragem sobre um ponto que julgava liquidado, volta sobre este ultimatum
para concordar em que se deve explorar, para fixar direitos, um território
há mais de um século completamente conhecido e há cerca
de meio século delimitado.

Na administração o imperador encontrou, no começo do
seu reinado, homens que estudavam e que se dedicavam desinteressadamente à
causa pública; gente que sabia se engrandecer com a pobreza; que se
orgulhava de legar à sua família o nome singelo e imaculado
dos bons e leais servidores de uma causa.

Entretanto, hoje, o imperador olha em derredor de si e vê de todos
os lados surgir a denúncia de uma improbidade, e ouve de todas as partes
o clamor difamatório contra aqueles que o cercam.

Achou a nossa moeda ao par e hoje a vê depreciada cinqüenta por
cento; achou os nossos orçamentos circunscrevendo a despesa à
receita e hoje os vê inteiramente descuidosos desse escrúpulo.

Ao subir ao trono encontrou uma lei votada nove anos antes proibindo o tráfico;
encontrou arquivadas as opiniões dos nossos homens a respeito dele,
e, entretanto, hoje, apesar de todas as demonstrações do crime
de pirataria praticado pelos réus daquela lei, vê-se obrigado
a fazer do respeito à pirataria a segurança do seu trono.

E não é só isso: morreram cidades, que possuíam
estaleiros navais, morreram indústrias prosperamente iniciadas; o povo
perdeu o amor ao trabalho; singularizou-se a produção, que prometia
pluralizar-se; sobresteve-se na decretação de princípios
civilizadores, que haviam sido aventados no parlamento, tais como os que dizem
respeito à aquisição do direito de naturalização,
e constituir famílias e regular a vida pela religião de cada
um.

Não tememos que nos contestem todos estes fatos, porque a verdade
é incontestável.

Ora, diante dos resultados da política do seu reinado, o imperador
só tem dous caminhos a seguir: ou abrir francamente reação
contra aqueles que o criticam; ou então abdicar por si e pelos seus,
o mais depressa possível.

Dentro em quatro anos a dinastia já não terá oportunidade
de se retirar como um hóspede, que deu prejuízo a quem o hospedou,
mas de quem não se pede nenhuma indenização, nem se formula
nenhuma queixa.

O povo brasileiro é um sonolento, custa muito a abrir os olhos e gasta
anos para esfregá-los e poder ver claro o menor fato.

Mas desta vez ele acordará, extremunhado pelo safanão da miséria
e da vergonha.

De um lado ele verá que a mania do café reduzirá a sua
riqueza a um simples incentivo à mina; porque a produção
aumentando baixará o preço, e a baixa deste exigirá cada
vez maior esforço, o que é o mesmo que tirar-lhe a remuneração
necessária e privá-lo dos lucros desejados.

De outro lado, ele verá todos os seus sacrifícios feitos pelo
Estado, convertidos não em serviços públicos, em instrumentos
do seu progresso, mas em simples repasto aos previdentes, que desde já
começam a gritar, enchendo os bolsos: salve-se quem puder.

Eis por que, se pudéssemos, daríamos a Sua Majestade o salutar
conselho da abdicação.

É o melhor caminho, cômodo para todos.

Reagindo, o imperador pode aumentar mais alguns nomes à lista das
vítimas do Império, mas não pode impedir a sucessão
natural e fatal dos acontecimentos.

Demais na América os reis são malsinados. Dos três que
temos tido, um foi Pedro I, banido, o outro Maximiliano, fuzilado, e o sr.
d. Pedro II, que tem feito a ruína de um povo, o que será demonstrado
em poucos anos, sem precisar de outra lógica além do fato.

O melhor, portanto, é abdicar.

Se a opinião abre um inquérito no seu reinado, como o Ministério
do Império, no Matadouro, o relatório dirá cousas de
espantar.

Ora, é impossível que este inquérito não se abra,
porque dentro em pouco tempo a miséria o requererá.

17 out. 1885

16-I-1886

As urnas foram de uma generosidade perdulária para com os conservadores.
Eles pediram somente uma boa maioria, disciplinada e passiva, e elas responderam
por uma quase unanimidade.

Este fenômeno, inexplicável para observador superficial, é,
entretanto, de facílima interpretação para quem aprofunda
a crítica do estado do espírito e do caráter nacional.

O Partido Conservador não precisava de pedir às urnas que o
sufragassem: elas sabiam que era este o seu dever.

O Partido Conservador é a síntese dos elementos que constituem
a soberania eleitoral.

Mera engrenagem da oligarquia, a lei de 9 de janeiro de 1881 garante de antemão
a pujança e o prestígio do partido, que tem por missão
domar as aspirações e impaciências democráticas.

Os dentes dessa engrenagem prendem-se naturalmente ao funcionalismo, para
comunicar o movimento que recebe do imperador, a todo o mecanismo constitucional.

O oligarca sabe que deve sufragar o Partido Conservador, porque sem ele o
seu domínio estará derrocado.

O funcionalismo sabe que deve sufragar o Governo, porque no caso contrário
será punido.

O empregado público depende exclusivamente do Poder Executivo; a lei
não lhe garante o direito; não o cobre com a sua inviolabilidade;
não o protege com a sua imparcialidade retilínea.

O acesso e a aposentadoria são duas amarras que prendem o funcionário
às bóias com que o imperador baliza o mar morto da nossa autonomia
nacional.

Ora, se o Governo conservador, apesar de contar com todos estes elementos
de força, ainda julga necessário dizer que quer vencer, é
claro que as classes que o prestigiam estão moralmente obrigadas a
dar-lhe o mais que puder.

O Governo conta com alguns eleitores que são de todos os partidos.
Um deles é a fome.

Num país sem indústria, sem artes, sem mercado honestamente
lucrativo para o trabalho, ameaçar o empregado público com a
demissão é o mesmo que condená-lo à morte pela
miséria.

Está nas tradições do Partido Conservador a derrubada.
Quando ele sobe ao poder o funcionalismo treme com medo do dia seguinte. Tem
plena certeza de que só lhe resta desde então uma liberdade,
a de concordar, para apoiar, com tudo quanto esteja no programa do gabinete.
Iniciada a derrubada, os funcionários ficam de sobreaviso com a independência
própria, com a altivez ingênita, porque sabem que a menor manifestação
dela é um perigo sério.

O outro eleitor que não trai, que é de uma fidelidade exemplar,
chama-se esclavagismo.

Este aceita a cédula de toda a mão em que descubra vestígio
das lágrimas e do sangue da raça escravizada.

Não reconhece senão uma forma de governo: a que legaliza a
escravidão; não admite senão uma bandeira política:
a da perpetuidade da instituição bárbara.

Tanto lhe faz que estejam no poder os liberais do sr. Saraiva, como os conservadores
do sr. barão de Cotegipe. São apelos diversos do mesmo céu
negro, em que habita a deusa Escravidão. Crentes fervorosos da sua
fé, não escolhem altar para o sacrifício do seu voto.

O Governo, entretanto, duvidando um momento da sua força, ainda empregou
o recurso das transferências contra os militares, das ameaças
de espancamento, processos e morticínios, no dia da eleição,
das demissões e das remoções de todos os exaltados das
repartições públicas, dos favores os mais extraordinários
àqueles que tinham influência nos distritos, assim como do emprego
de todas as violências até a negação de toda a
justiça, fatos sintetizados no recrutamento e na negação
do habeas corpus.

Como não obter uma vitória estrondosa; como não conseguir
o assombroso resultado das eleições de ontem?

A esta base segura de operações políticas para derrotar
os seus adversários, acresce o próprio futuro da situação
conservadora.

O imperador precisa retirar-se para a Europa; já tem marcado o dia
da viagem, 9 de junho de 1886. O estado de sua saúde reclama esta viagem.
A sua idade aconselha-lhe o ensaio de seus herdeiros na governação
do Estado.

Ora, sob a regência, é impossível esperar mudança
de situação; primeiro, porque sendo um lance político
perigoso para o futuro Império, não será empregado; segundo,
porque a fatalidade das cousas o impede.

O Partido Conservador é hoje necessário à administração
do Estado. Só ele sabe o segredo de manter a ordem, sem o prestígio
da autoridade; só ele tem a experiência da imposição
das leis as mais selvagens, apelando para as medidas as mais violentas. Não
o assustam cóleras revolucionárias; não é a primeira
vez que ele as sufoca em sangue.

O futuro Império depende dele. Um ato de hostilidade da regência
de junho vindouro, o indisporia e irritaria, e ele chama-se antes de tudo
plutocracia, oligarquia e esclavagismo: dinheiro, castas coligadas, sistematização
do servilismo.

O terceiro reinado n&atiatilde;o pode dispensar a sua colaboração
e, entretanto, está às portas da responsabilidade histórica.

O imperador, quer abdique, segundo se diz insistentemente, quer não,
precisa dos conservadores.

Se abdicar, o partido de que é principal chefe, é o único
capaz de cimentar o trono vacilante e de suprir a inexperiência da imperatriz
e a impopularidade do imperador honorário.

Bem odiosa era a lei de 3 de dezembro de 1841; compêndio hediondo da
tirania, e que valeu para nós o mesmo que a invasão dos hicsos
para o Egito antigo: desnacionalizou-nos a pátria, reduzindo-nos à
mais lastimável servidão. E o Partido Conservador fê-la
vigorar, inflexível na sua aplicação, assegurou a sua
longa e ensangüentada existência, respeitada por aqueles mesmos
a quem vitima.

Se o imperador não abdicar, como a soberania dos reis não estende
até à vassalagem do Tempo, Sua Majestade sobreviverá,
somente em corpo, à lucidez do seu espírito, à tenacidade
das suas resoluções, à energia passiva da sua vontade,
que representa, na marcha da civilização brasileira, não
essa inércia providencial da matéria para o equilíbrio
do universo, mas essa inércia de rochedo, que desfibra e desfalece
a força, de quem tenta removê-lo.

O Partido Conservador terá de representar o papel dos políticos
chineses junto dos seus reis valetudinários; representar por eles a
soberania e a orientação política do Estado.

Ponderemos ainda que essa intervenção é necessária.

No pleito eleitoral, de ontem, ficou provado o desalento e dispersão
do Partido Liberal, e demonstrada a força moral que o Partido Republicano
vai ganhando na opinião pública.

Apesar das estreitas malhas da lei eleitoral, a idéia republicana
pôde chegar até à consciência e à reflexão
de mais de 600 eleitores no município, exceção gloriosa
à indiferença de muitos e à covardia de outros tantos.

A propaganda republicana recebeu finalmente, no grande centro da vida nacional,
o batismo da luta, e recebeu-o de centenas de energias, que são outros
tantos protestos.

Como força armazenada para futuras lutas, aí está o
grande número de abstenções.

Abster-se é um meio de protestar.

Instituições que não têm meio de despertar a indiferença
do eleitorado, que ela julgou capaz para garanti-la e apoiá-la, são
instituições moribundas.

Essa indiferença é tão significativa como o sufrágio
dado aos republicanos; a abstenção completa de alguma forma
a propaganda.

A vitória conservadora era, pois, natural e se não fosse tão
estrondosa não fotografaria com verdade o estado do país.

Damos-lhe os parabéns: pelo seu triunfo sabemos que não está
muito longe o amanhã da liberdade brasileira.

16 jan. 1886

6-II-1886

Senhor,

Eu sei que a prodigalidade dos deuses para convosco foi sem limite. No vosso
dote de noivado com a vida entraram a fortuna e o talento.

Sem que houvésseis provado por atos a vossa capacidade para reinar,
nascestes rei; sem que houvésseis demonstrado por obras a vastidão
do vosso saber e a clareza da vossa inteligência, proclamaram-vos universalmente
sábio. Em todas as províncias do pensamento o vosso nome coroa-se
com os louros do triunfador.

Os artistas quando arrancam do som, da palavra, do mármore e da tela
algum desses grandiosos sonhos, que divinizam a cabeça que se iluminou
com eles, não se julgam verdadeiramente grandes sem que um olhar de
Vossa Majestade os laureie. O vosso aplauso é para todos a suprema
apoteose.

Os estudiosos e os sábios, todos os que imaginam e comovem, que descobrem
e generalizam, esperam pela vossa crítica monossilábica, e o
sim, ou o não de Vossa Majestade são para eles o Panteão,
ou o Letes, a perpetuidada glória, ou a eternidade do olvido.

Para Vossa Majestade a vida é um céu primaveril, onde o luar
prefacia o poema das manhãs serenas, de que o zênite, enfartado
de luz, é episódico, e o crepúsculo da tarde epílogo
suave, que deixa no espírito indelével reminiscência.

No drama de Schiller, em que a condenada Stuart desmaia e suspira, humilha-se
e soluça, esquecendo às vezes a rainha para ser somente a mulher
sofredora; Isabel, a rainha vitoriosa, tem uma hora de tristeza e de revolta
e num solilóquio repassado de despeito exclama:

«Sou obrigada a respeitar a opinião, e a captar os encômios
da multidão, a dirigir-me ao sabor da plebe, que só estima realmente
os charlatães. Não é deveras rei aquele que deve agradar
ao povo. Só é verdadeiramente rei o soberano que reina sem ter
de dar contas a ninguém.»

Vossa Majestade chegou a essa onipotência que Isabel cobiçava.

Os acontecimentos e o meio colocaram Vossa Majestade acima do apoio da oposição
dos seus súditos fiéis.

O que Vossa Majestade quer, o país quer.

Em 1878 Vossa Majestade mandou que o país fosse liberal, e o país
votou uma Câmara unânime para sustentar o ministério que
Vossa Majestade nomeou.

Em 1885 Vossa Majestade decretou que o país fosse conservador, e ele
imediatamente, a noventa dias de vista, como uma letra sacada por Vossa Majestade,
elegeu uma Câmara genuinamente conservadora para fortalecer, consolidar
a nova situação.

As frestas indiscretas dos vossos palácios deixam passar de quando
em quando o som de vossas augustas palavras.

Chegam estas esparsas aos nossos ouvidos, porém, miraculosamente,
por um esforço de inteligência à Champollion, o espírito
público forma com essas palavras um período, descobre-lhes o
sentido e aceita como sentença do destino o que muitas vezes não
passava de uma fugitiva aspiração soberana.

É assim que se soube, por acaso, por inconsistente boato, que Vossa
Majestade queria ir este ano para a Europa.

Tanto bastou para que todo o Brasil afirmasse que essa viagem é indispensável;
que depende dela a salvação do Estado.

Desde logo o partido mais íntimo do paço começou a pleitear
a eleição com entusiasmo e por muito pouco deixou de se constituir
em maioria na Câmara dissolvida.

Entretanto, Vossa Majestade limitou-se a negar ao sr. Dantas a força
que depois prodigalizou ao sr. Cotegipe. Não precisou de empregar outro
meio: tanto conta com o seu povo.

Ao boato da viagem, em junho próximo, reuniu-se o de que Vossa Majestade
pretende abdicar na Sereníssima Princesa Imperial, para assessorar
com o vosso augusto prestígio, auspiciando-o, o começo do terceiro
reinado.

O efeito de tal boato foi pronto.

O país armou a realeza com uma Câmara, que não saberá
dizer não ao Governo; uma Câmara que aceitará a abdicação
e o novo reinado, congratulando-se com a sabedoria de Vossa Majestade.

Entretanto, um lance d’olhos pelo estado das cousas bastaria em outro qualquer
país para converter o povo em tribunal para julgar Vossa Majestade.

Outro qualquer povo citaria o reinado, que pretende liquidar-se para assistir
ao balanço geral do seu domínio.

A esse julgamento compareceriam as finanças, representadas pelo deficit
crescente e incurável; o câmbio com a sua vertigem de baixa,
havendo reduzido a um terço o valor da fortuna pública; os melhoramentos
materiais feitos para servir famílias e empresas escandalosamente protegidas;
o espírito público desorientado por falta da independência
que dá a facilidade de trabalho no comércio, nas indústrias
e nas artes; o caráter nacional pervertido pela miséria; todas
as relações políticas quebradas; todos os vínculos
sociais abalados.

Entre nós dá-se justamente o contrário, em vez de um
julgamento, o reinado obtém uma aclamação.

Até as minudências, para o brilho, decoração e
força do novo reinado já estão sendo objeto de especial
cuidado.

As famílias enriquecidas e prestigiadas pelo favoritismo do reinado,
que se despede, organizam espontaneamente a corte futura, dando-se títulos,
criando imperceptivamente uma nobreza, de que a lei não havia tratado
suficientemente.

No Brasil até bem pouco os títulos só abrasoavam aqueles
que os recebiam. Com os titulares extinguia-se a nobreza oficial da família.
Isto era a lei.

Os protegidos do paço entenderam que a lei procedeu mal não
estendendo à família a nobreza do chefe, pelo que trataram de
corrigir a lei, sem intervenção do parlamento e da maneira a
mais engenhosa.

Os filhos começaram a juntar aos seus nomes o apelido fidalgo dos
progenitores.

Já temos uma grande mata genealógica, dessas árvores
heráldicas recentes.

Uma família que se chamava, por exemplo, Fernandes Boamorte, e cujo
chefe foi nomeado barão de Camboatá, passa por isso mesmo a
assinar-se João Fernandes Boamorte do Camboatá.

E nos documentos oficiais, e em todas as transações da vida
começa a figurar essa nobreza!

Deste modo simplíssimo, porém engenhoso, conseguem os filhos
decretar para as suas pessoas a nobreza de seus progenitores e isto sem que
o poder competente estranhe, nem tome providências para impedir semelhante
abuso.

Pudera: é um preparo para a corte futura.

Não era mesmo justo que estivesse adiantadíssima, como provam
os salesianos, lazaristas, irmãs de caridade e toda a gente da roupeta,
a organização da corte espiritual, e entretanto a mundana nada
fizesse para se constituir.

Permiti, pois, meu senhor, que eu vos faça um pedido, muito simples
e muito natural, e que mais uma vez demonstrará quanto sois bom.

O vosso Partido Conservador tem provado que está à altura de
vosso reinado.

No último pleito ele, em obediência às recomendações
de Vossa Majestade para que se não coarctasse a liberdade de voto,
deu a todo o eleitorado a mais ampla liberdade para votar… no Governo.

Ele está demonstrando diariamente que sabe manter a ordem, com a lei
ou sem ela; e manter a lei dentro ou fora da ordem.

O Partido Conservador está benquisto com o país, de que é
o genuíno representante, na frase eloqüente das urnas.

Acontece, porém, meu senhor, que um pensamento mau atravessou a cabeça
do sr. de Cotegipe, segundo se diz.

S. Ex.ª falou em apresentar ao parlamento um projeto emancipando os
escravos em cinco anos.

Eu sei que o ilustre barão não é homem que se prenda
ao que promete.

Desde 1854 apresentou ele um projeto sobre tráfico interprovincial
e, não obstante em trinta anos, apesar de sua influência real,
não se lembrou de fazer discutir por sua conta o projeto.

O que o sr. barão de Cotegipe promete não quer dizer o que
o sr. barão de Cotegipe fará.

Não obstante, há na lavoura do país uma parte ingênua,
que não conhece os nossos homens, e que pode tomar a sério o
projeto do sr. presidente do Conselho.

Em nome dessa lavoura eu peço a Vossa Majestade que se digne de aconselhar
o sr. de Cotegipe a que mande desmentir esse boato comprometedor.

A escravidão deve ser conservada: não se deve bulir nela. Assim
como está, está muito bem.

Se não houvesse quem quisesse ser escravo, não haveria escravidão.

O sr. Coelho Bastos quando raspa cabeças e encolhe os ombros às
notícias de torturas contra escravos é porque tem certeza de
que nada há a temer.

O próprio sr. de Cotegipe já declarou que a escravidão
estava na massa do sangue nacional… E é verdade; do contrário
Vossa Majestade já teria visto o povo decretar o que Vossa Majestade
não quer decretar: a demissão do sr. Coelho Bastos.

Não, imperial senhor, não! O sr. de Cotegipe vai mal por esse
caminho. É preciso que Vossa Majestade o chame à ordem.

Nada de pressas: o negro para onde vai há de chegar -à cova.

Não libertemos esses demônios senão depois de mortos
e isto mesmo indenizando o senhor.

O projeto vem trazer complicações e perturbar a digestão
de Vossa Majestade Imperial.

Rasgos de filantropia nestas desoras da nossa política!

Senhor, meu senhor, em nome da vossa fortuna, em nome da vossa coroa, é
preciso conter o sr. barão de Cotegipe.

6 fev. 1886

13-II-1886

Senhor.

Diante dos traços de mármore, sagrados pelo cinzel dos artistas,
epitáfios seculares de civilizações mortas, o viajante,
que estuda e pensa, se entristece com a própria grandeza do espetáculo
que se desdobra aos seus olhos.

Nos templos vazios, sem fiéis e sem deuses, como que ele ouve os risos
e soluços dos dias de festa e de luto, das horas de regozijo e das
horas de desesperança.

Tal me acontece quando folheio a história da minha pátria,
outrora templo grandioso formado pelo civismo de gerações fortes,
que o tempo e as revoluções devoraram e de que hoje restam somente
as ossadas, santas ruínas do patriotismo vitimado.

Aprofunda-se-me o desalento tanto mais quanto vejo à flor o desinteresse
dos tempos que lá vão e o entusiasmo civilizador, que nos conquistou
lugar entre os povos independentes.

No meio da noite moral do presente, que se não fende em nenhum raio
de luz anunciando próximo alvorecer; noite em que não sinto
a incubação de uma aurora redentora do pesadelo de humilhação,
com que ela nos tortura e angustia, pergunto a mim mesmo se não seria
melhor, como as aves amigas da escuridão, habituar-me às trevas
e ao óleo da lâmpada do vosso palácio, alimento predileto
dos caracteres da nossa decadência.

Outrora as almas brasileiras nutriam-se da consciência da soberania
popular, fortaleciam-se com ela e não era raro ouvir-se do alto da
forca, como do tamborete do fuzilando, estas frases heróicas: liberdade
ainda que tarde; morrem os liberais, mas não morre a liberdade.

Essas palavras eram adubo sagrado às convicções, repastavam
de seiva e de viço a florescência da fé.

Hoje, porém, não há mais quem pronuncie naturalmente
semelhantes frases; quem as escreva com o alfabeto da crença. O patriotismo,
é certo, ainda cria heróis, mas estes são a reprodução
do intrépido Nzambi dos palmares; desesperados que combatem olhando
para a montanha do martírio, a Tarpéia sinistra de que se precipitarão
para salvar a honra.

Vossa Majestade não tem, pois, motivo para queixar-se de quem subscreve
estas linhas.

Deve-se a verdade ao inquérito da morte.

Talvez vos pareça descabida esta última palavra; mas apresso-me
em demonstrar-vos que ela está aí porque os acontecimentos obrigam-me
a escrevê-la.

Vossa Majestade sabe que um punhado de homens jurou à sua honra defender
a causa dos escravizados, com o sacrifício da sua vida, se tanto for
necessário arriscar na sustentação de um direito, neste
país que se diz civilizado e cristão.

Durante seis longos anos esse punhado de homens tem dado provas repetidas
do espírito de conciliação, que os inspira na propaganda
da redenção dos seus semelhantes.

O Governo de Vossa Majestade mesmo o afirmou solenemente no parlamento, quando
por um momento hasteou no poder a bandeira das nossas aspirações.

Inopinadamente, muda-se a atitude governamental, e ao mesmo tempo que a mentira
oficial manda anunciar ao mundo que está decretada a abolição
da escravidão no Brasil, recomeça a perseguição,
a tortura dos escravizados.

Vossa Majestade deve ter lido as notícias envergonhadoras, publicadas
pela imprensa.

A Secretaria de Polícia converteu-se em uma casa de consignação
de fazendeiros bárbaros, que a autorizam a enviar-lhes, não
já os escravos, mas a cabeça deles, para exemplo dos outros,
lembrando assim o reinado de vossa augusta bisavó -a douda, espetando
a cabeça de Tiradentes para exemplo às impaciências democráticas.

Todos os dias a Casa de Detenção e o xadrez da repartição
central de polícia abrem-se para despachar pelos vagões da estrada
de ferro de d. Pedro II vítimas para os açougues dos carniceiros
rurais.

Em vão temos reclamado do Governo providências contra semelhantes
embarques, que degeneram em atos de barbaria.

As notícias dos espancamentos, dos arrochos com cordas e algemas,
dos suicídios de escravizados mancham diariamente a história
do vosso reinado, mosqueando a vossa púrpura de modo a ser natural
confundi-lo com a pele de um tigre.

Entretanto, Vossa Majestade conserva-se impassível. Longe da corte,
nas alturas de Petrópolis, cercado dos entes a quem adora, podendo
espreguiçar-se como Francisco I e tiranizar como Luís XI, Vossa
Majestade lança pelo desprezo o fermento da revolta nos espíritos
dos raros que ainda entendem que a vida é pouco sem a honra.

Sabem todos que o sr. chefe de polícia da corte não será
demitido, enquanto ecoar o tremendo Aqui d’El-rei da imprensa em nome dos
escravizados.

Pergunta-se quem é este funcionário que vale mais do que a
reputação de um povo e do que a vida de brasileiros?

Os fatos respondem secamente: é um homem que foi ao parlamento dizer
que estava doente para não ir para a província do Pará,
como desembargador; é um homem que não teve escrúpulos
de pedir dinheiro ao Estado para alimentar-se durante o tempo em que se evadiu
dos seus deveres; é um funcionário fugido das suas funções
e acoutado por um Governo, que entende que seus amigos podem viver à
custa do Tesouro sem trabalhar, contanto que finjam moléstia até
que se lhes melhore a dieta.

Apelamos para a honra de Vossa Majestade neste momento: e vos emprazamos
a que nos desmintais.

Vossa Majestade não pode negar que tem como chefe de polícia
um funcionário que faltou a verdade à Câmara dos Deputados,
que fez junto dela a chantagem da moléstia e que se curou com o decreto
que o nomeou para o cargo que exerce.

E é esse homem que faz da sua autoridade a capa dos crimes que nos
horrorizam.

Um dia, na casa do sr. presidente do Conselho, estava o sr. chefe de polícia
e disse alegremente:

-Acabo de mandar mais um vagão deles.

-E não há perigo? -perguntou-lhe o presidente do Conselho.

-Não; vão em carro fechado.

-Com este calor?! pode sobrevir algum acidente.

-Qual calor: esta gente lá sente cousa alguma…

E o sr. chefe de polícia tinha a fisionomia dilatada, quando proferia
estas palavras.

Mais ainda, senhor.

Um empregado da Estrada de Ferro, que tem o vosso nome, coincidência
tristíssima, referiu-nos este suicídio:

Um escravizado, que estava amarrado de pés e mãos, conseguiu
sentar-se, e, depois de espedaçar a vidraça com uma cabeçada,
cortou a carótida num fragmento de vidro, que ficou preso ao caixilho
e morreu esvaído em sangue.

O Paiz, órgão que Vossa Majestade deve conhecer, referiu o
caso de um escravo, em que embarcando na estrada do vosso nome, em Juiz de
Fora, precipitou-se entre os trilhos, deixando-se esmagar pelos vagões.

Consta a Vossa Majestade que se tenha aberto inquérito a respeito?

Quer isto dizer, senhor, que não há esperar do poder público
uma providência, um pouco de piedade para os míseros escravizados.

Levado pelo desespero, o punhado de homens que se comprometem a defender
esses desventurados, não pode querer um dia protestar em pessoa contra
esses abusos?

O que lhes acontecerá? Serão assassinados legalmente, porque
vão resistir a uma ordem da autoridade.

Eis por que escrevi a palavra morte. Vossa Majestade parece haver decidido
a nossa imolação, pois que outra significação
não pode ter a conservação de uma autoridade, que faz
timbre em se mostrar desumana.

De par com estas barbaridades contra vítimas indefesas, a difamação
dos abolicionistas, por todos os meios: o assalto contra os seus corações
e contra os seus meios de vida.

A Caixa Econômica Perseverança Brasileira é uma instituição
que faz honra ao país, honrando ao seu fundador; a polícia a
manda difamar e até a ameaça de pedir ao Governo a sua supressão,
e isto só porque o cidadão João Clapp não quer
alistar-se no batalhão dos capitães-do-mato.

E o mais doloroso, senhor, é que o dinheiro que nós pagamos
para ser despendido com a garantia oficial da nossa honra e da nossa vida
de cidadãos, é esse dinheiro sagrado que a polícia desvia
para empregar criminosamente em difamar-nos. A conseqüência de
tais atos é a recrudescência da perversidade dos senhores contra
os escravizados.

Ainda anteontem, duas menores foram exibidas ao público e à
imprensa e só não o foram a Vossa Majestade, porque estava em
Petrópolis. Eduarda e Joana atestaram pelos seus corpos chagados, pelos
rostos desfigurados, pelos gilvazes do relho infamante, a hediondez da instituição
fatal, que nós combatemos.

Joana está às portas da morte; é uma tuberculosa; o
seu leito de moribunda não bastou para servir de anteparo à
perversidade do algoz.

Quer agora Vossa Majestade saber até onde tem descido este país?
Tem havido dificuldade em fazer o corpo de delito nas supliciadas.

Vossa Majestade pode medir por esta revelação qual o abismo
a que temos descido e qual a sua profundidade.

Senhor, estas linhas, que pretensiosamente aspiram a um olhar vosso, têm
por fim somente uma súplica e entretanto não encerram nem queixa,
nem pedido de piedade.

Sei que na polícia da corte se estão forjando processos contra
todos os abolicionistas.

Sou um deles.

Nesses processos visa-se a nossa dignidade. A lei manda punir o açoutador
de escravos, mas não é a este que os processos se dirigem; é
à honra dos audazes que se afoutaram a perturbar o sono e a tranqüilidade
dos piratas e seus herdeiros, vossos protegidos, comensais e sustentadores.

Vossa Majestade ordene à polícia que no meu processo, ao inquérito
siga-se imediatamente a prisão preventiva, e ordem de execução
clandestinamente na Casa de Detenção.

Vossa Majestade vê que eu não me dirijo mais a ninguém.
É com Vossa Majestade somente que eu me entendo.

Sei que só vivo, porque Vossa Majestade não tem consentido
no meu assassinato.

Correspondo a esse favor fazendo-vos a súplica que aí fica.

Eu não quero viver desonrado e Vossa Majestade sabe que no esterquilínio
da polícia secreta há elementos para fazer pairar a dúvida
sobre a reputação mais firmada.

É só, imperial senhor.

No mais desejo que Vossa Majestade viva feliz e que nunca, nem por si, pelos
seus, sofra as torturas infligidas à raça, de que Vossa Majestade
bebe o sangue e as lágrimas sob a forma de lista civil.

13 fev. 1886

6-III-1886

Temos na pasta da Agricultura um novo Jefferson Davis.

O sr. Antônio Prado entende que a pedra fundamental do Estado deve
ser a escravidão e só a escravidão. Nem um palmo de chão
redimido neste negro território cativo. Nem um lampejo na homogeneidade
da treva. Tudo escuro, noite velha para o sabath das agonias sem fim.

Daí o ilustre ministro fechar todas as frestas por onde possa entrar
uma réstia de claridade para dentro do cárcere sombrio, onde
uma raça desventurada dorme o sono pesado das galés perpétuas
a que foi condenada.

O Amazonas e o Ceará, esses dous regatos afluentes do grande Jordão,
que em 1889 há de batizar o Brasil na religião da igualdade
humana, respingam a consciência esclavagista com gotas frias como o
sangue remorditivo na fronte do rei Canuto.

O sr. ministro da Agricultura entendeu que devia secá-los, aterrá-los
com o lixo humano da escravidão.

S. Ex.ª não quer águas cristalinas; só lhe aprazem
os pântanos, sejam os formados pelo enxurro da instituição
maldita, sejam os do dr. Possidônio.

Mandou restaurar o tráfico em terras emancipadas. Nada de quebrar-se
a integridade da vergonha nacional.

A lei de 28 de setembro de 1871, a Lei Rio Branco, mandou que nenhuma carta
de liberdade pudesse ser cassada, e para isso derrogou a Ordenação.

Já o Direito Romano havia preceituado: que uma vez proferida uma lei
sobre liberdade, nunca pudesse ser revogada: semel pro libertate dictam sententiam
retractari non opportet.

Mas o sr. ministro da Agricultura, que reconhece a escravidão como
contrária à Religião, à Moral e à Filosofia
não é homem que se atenha a semelhantes nugas. Decretou sem
cerimônia que o Ceará e o Amazonas se reenquadrem na escravidão.
A prova é o seu ofício ao presidente do Ceará, nestes
termos:

«Ilm.º, e Exm.º Sr.- Tratando V. Ex.ª de dar execução
à Lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885, ordenou por ofício
de 28 de janeiro à Tesouraria de Fazenda que a nova matrícula
de escravos e o arrolamento dos libertos pela idade sejam abertos tão-somente
no Município de Milagres, onde se verificou a existência de 298
escravos depois do ato comemorativo da extinção do elemento
servil dessa província em 25 de março de 1884.

Não aprovo o ato de V. Ex.ª pelo motivo exposto no aviso que
em data de 23 do corrente expedi à Presidência do Amazonas; e
recomendo-lhe que faça remeter a todos os municípios da província
os livros respectivos e as instruções convenientes para que
o serviço da matrícula e do arrolamento sejam ali iniciados
na forma prescrita pelo Regulamento de 14 de novembro do ano passado.

Fica assim respondido o ofício de V. Ex.ª de 1 do corrente.

Deus guarde a V. Ex.ª.- Antônio da Silva Prado.- Sr. presidente
da província do Ceará.»

Quer isto dizer que o sr. ministro da Agricultura reduz de novo à
escravidão o Ceará e o Amazonas.

Pode-se iniciar naqueles territórios livres a matrícula de
escravos!

No seu opúsculo hoje publicado, Eclipse do Abolicionismo, Joaquim
Nabuco diz esta grande verdade a respeito do imperador:

«… sabe que nunca perguntou aos milhares de pequenos senhores feudais
possuidores do território e do povo da sua monarquia, quando lhe iam
humildemente beijar a mão e ele os fazia barões e viscondes:
Como estão seus escravos? S. M. sempre foi um bom limítrofe:
suserano de cada um deles, vassalo de todos eles juntos, o representante da
Realeza nunca atravessou a linha divisória entre a soberania do Estado
e a soberania da Escravidão.&raquoraquo;

O aviso do sr. ministro da Agricultura e a conservação do atual
ministério é uma prova real desta afirmação.

Se o imperador não fosse, como é, um liberto com condição
de servir à oligarquia dos traficantes de carne humana, revoltar-se-ia
contra um ministério, que abusando da fraqueza de um povo e da velhice
anêmica de um rei, governa-o com as mãos tintas do sangue, derramado
durante as eleições, e se deleita em ostentar a barbaria da
classe de que é representante.

Admitamos por um momento que há regiões do país em que
a escravidão é necessária; admitamos que há províncias
cuja fortuna está chumbada, como uma corrente de sentenciado, aos pés
do escravo.

O Governo seco do interesse pode justificar por esta circunstância
a conservação do elemento escravo nessas regiões.

Não assim, porém, quanto a regiões que, emancipando-se,
declararam prescindir daquele condenado instrumento de trabalho. Nada justifica
a imposição do escravo a províncias, que declararam espontaneamente
dispensá-lo.

O sr. Antônio Prado faz muito bem: o vencedor deve aproveitar-se da
vitória.

Restaurando a escravidão no Ceará, não é aos
abolicionistas plebeus, sem forças para puni-lo, não é
a esses que S. Ex.ª vence: é ao imperador.

O imperador é um dos cúmplices do crime de libertação
do Ceará.

Nas vésperas da primeira libertação do município
desta província, Sua Majestade recebeu este telegrama:

«A Sua Majestade o Imperador.

Acarape liberta-se por subscrição popular; falta o nome de
Vossa Majestade.

José do Patrocínio.»

E Sua Majestade cavalheirosamente respondeu pela Mordomia mandando 1:000$
para a subscrição popular.

Mais tarde, quando a província libertou-se, ainda o imperador aplaudiu
o ato.

O imperador, portanto, reconheceu a libertação do Ceará:
considerou-a regular e legal.

Fez mais: aceitou dos cearenses desta corte uma pena de águia, cravejada
de brilhantes, para assinar com ela o decreto da emancipação
total dos escravos do Brasil. E Sua Majestade mostrou-se contente com a lembrança
de seu nome em hora de tamanho regozijo nacional.

Consentir na abertura de matrículas na província é,
pois, confessar-se vencido.

Certos de que o imperador não é senão o delegado da
escravidão no trono; certos de que Sua Majestade não pode sacrificar
a sua posição e a de sua família por amor de um milhão
de desgraçados; vamos pedir-lhe um favor:

Continue Sua Majestade a receber a sua lista civil arrancada a relhadas das
costas da escravatura; continue a arrebicar-se com os papos de tucano, que
têm a maciez da carne esponjosa das chagas dos escravos surrados.

Nós não queremos indispô-lo com o seu séquito,
nem torturar-lhe o coração fazendo-o ser repreendido como o
foi por ocasião em que entrou o doudo no palácio de Petrópolis,
dia aziago em que Sua Majestade ouviu estas palavras:

-Também para que é que se mete com a abolição.

Queremos um favor muito simples: é que Sua Majestade restitua aos
cearenses a pena que recebeu.

Ela não lhe pertence mais; Sua Majestade não tem mais o direito
de servir-se dela, salvo se a quer empregar em escrever a ordem de destruição
dos últimos abolicionistas.

A não ser para dar-lhe esse emprego, não vemos nenhuma razão
para Sua Majestade guardá-la.

Sua Majestade deve restituir a pena de águia do abolicionismo; nos
seus dedos só fica bem a pena de pato do servilismo nacional.

6 mar. 1886

5-VI-1886

O imperador não cabe em si de contente. Sua Majestade fazia o maior
empenho em ter nos seus domínios a grande atriz que é um dos
orgulhos da França, aquela a que a moderna crítica chama simplesmente
Mlle. Sarah Bernhardt para significar que vê nela representada a eterna
virgindade de arte.

Que noites deliciosas tem tido o nosso augusto amo e senhor! Como Sua Majestade
baba e cochila! Não é só o papel vermelho do seu camarim
que lhe empresta à fisionomia os tons quentes, que a revestem durante
alguns lances; é principalmente o reflexo da labareda de júbilo
que lhe escalda a imaginação. Crepitam-lhe fagulhas nos olhos;
há no seu corpo durante as cenas violentas movimentos de serpentes
de faraó de fogo de salão.

É preciso ser feliz para ter um país nas condições
atuais do Brasil: o sr. Cotegipe para dominá-lo pela gargalhada; Sarah
Bernhardt para embriagá-lo com a ambrosia dos deuses.

Desde que chegou a imortal atriz, o termômetro político baixou
até zero. Ninguém mais se ocupou nem das oscilações
do câmbio, nem da baixa das apólices, da retração
do café, nem das depurações violentas e escandalosas,
nem da atitude desdenhosa do sr. presidente do Conselho. O próprio
espólio Sousa Carvalho, que emalha em si a honra da magistratura, não
tem despertado o interesse que era de esperar, em um país onde cada
um cuidasse mais dos seus direitos sociais e políticos do que dos seus
prazeres.

Entretanto, cada um destes assuntos é ou sintoma da aproximação
de uma época revolucionária, ou da mais completa decadência
popular. O estudo dos fenômenos políticos desdobrados ultimamente
em nossa História leva o espírito imparcial a cogitar em dias
amargos para a pátria.

Onde irá parar este país, onde o Governo só se apresenta
como o fator da ruína moral, econômica e política do povo?

Na decadência a mais completa, dizem os que comparam o estado do país
com a atitude do sr. presidente do Conselho.

S. Ex.ª reduziu o Governo representativo a uma exibição
do Rigoletto tomando para si o papel do velho bufão do nosso velho
duque de Mântua.

Aos protestos que a honra levanta, aos soluços com que a pátria,
a grande família, se desafoga; S. Ex.ª responde com umas jogralices,
acompanhadas pelo coro dos apoiados da maioria.

Mas, S. Ex.ª é um Rigoletto incorrigível, porque voltou
a servir na corte, depois de lhe ter caído em casa uma vez, o capricho
do seu soberano.

Já a sua reputação, filha dileta de longos anos de disciplina
partidária, de serviços aos seus amigos, foi manchada pelo capricho
imperial, que não só quis que se soubesse não ter intervindo
na marcha política durante a fase do incognito, como, também,
condenou pela dissolução a Câmara e o partido que haviam
emprestado a sua co-responsabilidade ao erro da comandita Januário
& Masset.

Entretanto, o Rigoletto imperial presta-se ainda a colocar-se diante dos
que se queixam e cobre o seu soberano com uma pirueta e quatro momices.

Têm, pois, razão, os que inferem do exame do presente a decadência
absoluta do povo.

Era o próprio decoro pessoal que impedia o sr. de Cotegipe de tomar
a atitude que tem tomado.

S. Ex.ª ou não devia aceitar o Governo, ou tomando-o devia fazer
dele um meio de reabilitação do seu nome.

De toda a carreira parlamentar de S. Ex.ª, só há uma página
de que a História tomará conhecimento: é a que foi escrita
pelo sr. Cesário Alvim, durante o ministério em que S. Ex.ª
havia merecido do sr. Ferreira Viana, referindo-se ao abandono da eleição
direta, o célebre primo vivere deinde philosophare (sic).

Era de esperar que S. Ex.ª, uma vez presidente do Conselho, apagasse
com a esponja de grandes medidas essa página tristíssima da
sua vida política.

Deu-se justamente o contrário: S. Ex.ª no Governo não
fez mais do que entrar numa grande comandita eleitoral para passar esses contrabandos
parlamentares, chamados Jaime Rosa, Clarindo Chaves, Mílton, Alfredo
Correia, Paulino Chaves, Seve Navarro, Teodoro Machado e não sabemos
quantos outros, sem falar nos Marcondes Figueira, que tiveram de afrontar
a bacamarte as portas da alfândega eleitoral, por não haver perícia
de conferente que lhes pudesse arranjar sorrateiramente o despacho.

O sr. presidente do Conselho continuou o resto do ministério Caxias.

Na questão da escravidão, S. Ex.ª tinha opinião
expressa em projeto e em discurso, com relação ao tráfico
interprovincial.

No discurso com que sustentou o seu projeto, o deputado Vanderlei deixou
bem claro: primeiro que se faria o tráfico ilegal de africanos; segundo,
que pelo tráfico interprovincial se reduziriam pessoas livres à
escravidão.

Pois bem, chamado à presidência do Conselho, justamente no momento
em que se discutia uma lei sobre escravidão, o sr. barão de
Cotegipe homologa os crimes dos dois tráficos e o que é mais
se responsabiliza pela iniciação do tráfico de vítimas
para a tortura, nomeando chefe de polícia o sr. Coelho Bastos e dando-lhe
carta branca para proceder à captura e entrega de escravizados aos
seus escravizadores!

Para se ter coragem de proceder de tal forma, em uma questão que é
essencial na constituição de uma nacionalidade; para ter desplante
suficiente no afrontar assim face a face a história é preciso
ter certeza de que se está governando um povo decadente, incapaz de
um assomo de dignidade para salvar a sua honra vilipendiada pelo Governo.

Certo do povo, que está governando, o sr. barão de Cotegipe
limita-se a assalariar BRAVI na imprensa e a amaciar os amuos do imperador.

S. Ex.ª sabe que a opinião verdadeira, real, e que tem força
para se fazer respeitar, está em S. Cristóvão, a outra,
a que quer libertar os pretinhos, na frase de S. Ex.ª que deles descende,
não tem valor nenhum.

Daí em vez de subir até onde o podia levar o seu talento, que
só tem sido fatal ao país; S. Ex.ª reduz-se ao papel de
Rigoletto parlamentar, zombando das causas mais respeitáveis e mais
santas.

Por sua vez o imperador está contente com S. Ex.ª.

Dizia-se que o Ministério Cotegipe era uma conspiração
contra a onipotência do sr. d. Pedro II, que S. Ex.ª era o Júpiter
da boa causa que ia enfim destronizar o velho Saturno, que se compraz em devorar
os próprios filhos, o filhotismo e a corrupção.

Mas o sr. d. Pedro II está hoje convencido de que o sr. de Cotegipe
não é homem de que um neto de d. João VI tenha medo.
Quando muito, o sr. de Cotegipe se recolhe à sua asma para protestar
contra as sabatinas.

E entendem-se bem os dous, e ainda melhor o povo. O imperador faz o que quer
para o sr. barão de Cotegipe defender, o sr. de Cotegipe faz o que
quer para o ministério sustentar, o ministério faz o que quer
para o parlamento apoiar: o parlamento faz o que quer para o país aturar,
e o povo atura tudo para glória do imperador, do ministério
e do parlamento.

Neste país não se pode mais falar sério, nem propor
coisa séria. Como são ridículos os srs. Dantas e José
Bonifácio falando em honra nacional, quando estão em discussão
o espólio do visconde de Sousa Carvalho e o contrato Brianthe. Vamos
dar um conselho a S. Ex.ª: este país é um grande espólio
do sr. d. Pedro II. Metam-se nele os srs. Dantas e José Bonifácio.

5 jun. 1886

26-VI-1886

Grande tem sido a desforra tomada pelo sr. barão de Cotegipe contra
o imperador, tamanha, que a triste posição do vencido torna
saliente a falta de generosidade do vencedor.

De volta de sua última viagem à Europa, o imperador entendeu
que estava bastante forte para suprimir o ilustre barão, e todos sabem
que Sua Majestade levou o seu puritanismo ao ponto de negar-se a fala com
o ex-presidente do Conselho Honorário da regência.

O sr. de Cotegipe resignou-se ao exílio a que foi condenado, mas para
conquistar com o trabalho silencioso da madrépora o oceano da opinião,
que turbilhonava por cima do seu nome, até vir à flor e emparcelá-lo
contra aquele que S. Ex.ª apontava como o agitador mais poderoso desse
oceano.

Afinal, S. Ex.ª pôde colocar-se face a face com o imperador; medi-lo
de alto a baixo e oferecer-lhe sorrindo o mais extraordinário combate
que de memória de homens tem sido travado nesta terra entre o supremo
poder e um ministério.

Não queremos negar ao sr. barão de Cotegipe o nosso testemunho
de admiração pela sua habilidade.

A História há de talvez descobrir que S. Ex.ª fez o maior
sacrifício que um homem do seu talento pode fazer: aniquilar-se para
destruir o seu inimigo.

Ninguém também desfechou mais rude golpe no imperador do que
S. Ex.ª.

Há muito tempo que se diz que o imperador finge democracia para consolidar
a tirania; desinteresse para melhor servir ao seu egoísmo dinástico,
magnanimidade para poder facilmente explorar um povo.

Faltava, porém, apanhar o imperador em flagrante delito e o sr. barão
de Cotegipe se encarregou dessa grande diligência histórica.

S. Ex.ª começou por insubordinar-se e dar a senha da insubordinação
aos seus ministros nos despachos imperiais.

Já não é mais um dever de ministério ir aos sábados
conferenciar com o imperador e receber as suas ordens para converter em decretos.

Vão a despacho os ministros que assim o entendem, e os que têm
visita em casa, ou algum motivo de enfado não se incomodam em fazer
a viagem até S. Cristóvão.

O próprio presidente do Conselho recolhe-se à sua asma, quando
o imperador se permite a liberdade de sabatiná-lo.

Estes fatos, que se tornaram mais ou menos públicos, não puderam
entretanto ser tirados a limpo, porque o imperador empregou o maior esforço
para ocultá-los.

O sr. barão de Cotegipe insistiu, porém, em divulgar o pouco
caso que liga a Sua Majestade e escolheu uma ocasião para desconsiderar
coram populo o onipotente da véspera e servidor submisso de hoje.

Toda a gente viu o imperador, abandonado do ministério, andar a carregar
o pálio na procissão de Corpus Christi, desconsolado e trôpego.

De todo o gabinete, só compareceu o sr. barão de Mamoré,
o ministro que todos os companheiros querem privar da pasta, o ministro que,
por isso mesmo, precisa de socorrer-se da proteção do imperador.

É que o sr. barão de Cotegipe tomou a peito demonstrar que
Sua Majestade não é o que parece; suporta de bom humor aqueles
que servem à sua política, isto é, aos seus interesses
dinásticos, por maiores que sejam as humilhações infligidas
à sua pessoa.

O nobre barão quer que se saiba uma única coisa e que entre
ele e o imperador só há um laço comum -a escravidão,
e enquanto S. Ex.ª o apertar na medida das conveniências do trono,
o imperador ficará a seu serviço.

E S. Ex.ª trocou afoitamente os papéis políticos. Outrora
eram os ministérios que serviam ao imperador, agora é o imperador
que é serviçal aos ministérios.

Por muito menos do que tem feito o sr. barão de Cotegipe o imperador
declarou-se incompatível com o sr. Silveira Martins, e moveu-lhe esta
guerra, que principiou pela cisão Osório e que só acabou
com as violências do sr. Lucena.

O sr. presidente do Conselho, porém, tem carta branca para tudo, porque
nele reside a confiança do único poder real neste país:
o esclavagismo.

A vingança do sr. Cotegipe era demonstrar justamente isto e provar
que se ele inconscientemente fez parte de uma casa contrabandista, de que
não auferiu lucros, o imperador é sócio solidário
dessa empresa secular de contrabando -chamada escravidão.

E fê-lo.

O imperador não pode mais, com justiça, gozar dessa reputação
de homem desinteressado, com que se pavoneou até bem pouco tempo. Toda
a gente tem o direito de supor que logo que um negócio qualquer dê
lucro para a sua herança o imperador o consente.

Não queremos com esta afirmação aludir à liquidação
do sr. conde d’Eu com o sr. Jourdan, coisa que o imperador devia já
ter feito ultimar; referimo-nos ao novo regulamento, à ilegalidade
de 13 do corrente.

Sua Majestade consentiu por interesse próprio na incorporação
do município neutro à província do Rio de Janeiro, para
os efeitos do tráfico de carne humana.

Onde a lei não distingue, ninguém pode distinguir e não
obstante, não tendo a lei negra distinguido o município neutro,
o regulamento o fez com a rubrica do imperador.

O legislador não disse: para o caso de transferência de escravos,
o município neutro faz parte da província do Rio de Janeiro.
Não o disse e é preciso que se note que ele tem sempre especificado
este município quando legisla.

Esta observação não podia deixar de acudir ao espírito
ilustrado e sagacíssimo do imperador, e no entanto Sua Majestade prestou-se
a assinar esse regulamento, que não pode ser respeitado, nem obedecido,
por ser abusivo e ilegal.

Também não podia de forma nenhuma passar despercebida à
reflexão do imperador as relações fiscais que o novo
regime da escravidão estabeleceu e no entanto, quando a assembléia
provincial nada tem com o município neutro, nem este com aquela, Sua
Majestade consente que o mesmo escravo fique sob duas legislações
diferentes, com prejuízo dele e de seu próprio senhor.

Ninguém tenha dúvida a respeito da separação
administrativa existente entre o município neutro e a província.

Cândido Mendes, autoridade insuspeita para o Gabinete, como para todos
os que sabem que esse ilustre brasileiro foi uma das glórias da jurisprudência
brasileira, Cândido Mendes diz terminantemente:

«O município neutro é uma criação do ato
adicional no art. 1º. O seu território pertence à circunscrição
da província do Rio de Janeiro, mas enquanto a corte estiver fixada
na cidade do Rio de Janeiro, sua administração continuará
independente do Governo da mesma província e por isso imediatamente
sujeita ao Governo, pela repartição do ministério do
Império.»

O Gabinete, porém, entendeu que devia servir à província
do Rio de Janeiro um grande mercado de escravos e o imperador que aufere daí
o lucro da simpatia dos herdeiros da pirataria e piratas sobreviventes, fechou
os olhos e assinou.

E o mais interessante é que os defensores do ministério desde
o sr. Gusmão Lobo, jornalista oficial do Ministério da Agricultura,
tão dedicado ao sr. Dantas como ao sr. A. Prado, até o mais
latrinário Y. das colunas pagas dos jornais, todos escondem o ministério
por trás do imperador, ponderando:

-Toda gente sabe que o imperador é abolicionista, e não assinaria
o regulamento se ele fosse contrário aos escravos.

Eis onde o sr. barão de Cotegipe queria chegar. S. Ex.ª visava
ao dia, à hora, ao momento em que, nos próprios atos do imperador,
ele pudesse fazer o país ler esta declaração de S. Ex.ª:

«Eis aí o homem que me condenou. Fê-lo, não por
convicção, porque ele não a tem, nem a teve nunca; oscila
à mercê dos seus interesses.

Ontem, para agradar o poviléu que vociferava, ele despediu-me do poder,
como aplaudiu o sr. Dantas, julgando que ali é que estava a força;
que a correnteza dos acontecimentos provinha de um declive real no solo moral
do país.

Hoje ele pensa que a força está com o esclavagismo, como de
fato está, e está pronto a sancionar tudo, quando nós
queremos, a rubricar tudo quando nós lho ordenamos.

Nós especificamos o município neutro não especificado
na lei e ele assinou.

Nós cometemos duas usurpações, ao mesmo tempo: o regulamento
roubou ano e meio à libertação dos escravos, e ele assinou;
um ato do Ministério da Fazenda roubou nove meses do imposto de 5%
e ele ainda assinou.

Aí tem o homem que por um requinte de honestidade condenou-me na questão
das popelines; aí tem a inteireza moral que não se dobra quando
se trata de questões de honra.

As leis são um depósito sagrado de direitos nas mãos
dos soberanos, e o sr. d. Pedro II não trepidou em meter a mão
neste depósito para dar o município neutro em hipoteca ao sr.
Belisário, e ano e meio e mais 5% durante nove meses aos pupilos da
pirataria.

A responsabilidade é toda dele, que pode nomear e demitir livremente
os seus ministros e me conserva, porque eu represento a escravidão.»

Grande desforra a do sr. barão de Cotegipe. Só pelo deleite
de S. Ex.ª na tremenda vingança deve-se ver nele o deus dos nossos
estadistas.

26 jun. 1886

31-VII-1886

Esta semana resumiu um reinado, e, não obstante, desdobrou-se tranqüila,
sem que ninguém desse pela sua fisionomia retrospectiva.

O Segundo Reinado chegou a ser o que é -máquina pneumática
a fazer o vácuo no espírito e no coração de um
povo- por este processo tantas vezes denunciado para nunca ser revogado; fazendo
do parlamento comissão do ministério, do ministério comissão
do imperador, do imperador comissário da escravidão. Em torno
desses poderes, como sombras, o eleitor, o soldado e o escravo, toldando o
pensamento nacional, guardando como as negras nuvens tropicais o raio e a
tempestade improvisa e como essas nuvens, condenando-se ao aniquilamento pela
própria força, que em si contém.

Nestes poucos dias, o observador pôde ver sem esforço toda a
engrenagem desse mecanismo, com que as circunstâncias especiais da gestação
da nossa nacionalidade dotaram o imperador e que Sua Majestade com uma perspicácia
invejável emprega no serviço da sua dinastia.

Em ambas as casas do parlamento firmou-se a convicção de que
é impossível suportar por mais tempo o atual estado de coisas.

Os conservadores desesperam por ver a sorte do partido dependente de um ministério
que só dispõe do prestígio do cargo e serve-se dele,
não para fortalecer o sentimento de solidariedade partidária,
mas exclusivamente para apadrinhar da opinião e do veredicto dos seus
contemporâneos o nome e as pessoas dos que o exercem.

A cada momento surge um conflito moral, quando se tratam pontos vitais de
prestígio governamental.

O gabinete, pela voz do imperador, declara que executou fielmente a Lei Saraiva-Cotegipe;
os srs. Vieira da Silva e Cruz Machado desmentem-no.

O ministro da Justiça pede ao Senado uma prova de confiança
ao zelo com que o ministério despende os dinheiros públicos:
os srs. Correia e Diogo Velho negam-na.

E quando estes fatos se dão, os dous chefes que completam com o sr.
barão de Cotegipe a trindade ortodoxa da igreja conservadora, o sr.
Paulino cala-se e o sr. João Alfredo não desmente a asseveração
de um seu honrado colega, tornada pública pela imprensa -de que S.
Ex.ª votaria na resposta à fala do trono de acordo com os srs.
Vieira da Silva e Cruz Machado.

Em todo o Partido Conservador, nas duas casas do parlamento, só o
temor do desconhecido e o egoísmo de não contribuir para a salientação
de poucos mantêm as aparências de solidariedade. Tomados, cada
um de per si, todos coram do apoio que dão: todos anelam pelo momento
em que tirem de sobre a consciência o peso de uma responsabilidade tão
gravosa, quanto inglória.

Os liberais debatem-se, por sua vez, dentro do leito de Procusto das teorias
de expediente. O Senado não faz política, sem se lembrarem de
que é a política que faz o Senado e uma corporação
de origem essencialmente política não pode deixar de exercer
tal função.

Vítimas dos costumes eleitorais do Império, em vez de se garantirem
com uma força parlamentar estável -o Senado, os liberais, desanimando
de constituir maioria na Câmara vitalícia, quiseram inutilizá-la,
como força política e vêem-se, hoje, vítimas do
próprio esforço, desperdiçado.

Não faz política o Senado e, não obstante, a escolha
do senador é um ato essencialmente político e, tanto assim,
que das listas tríplices o imperador ou escolhe os eleitos da parcialidade
dominante, ou motiva crise, salvo o caso da unanimidade da lista.

Teoria que regula para os senados de nomeação e de herança
e que pode quando muito estender-se aos países de sistema eleitoral,
mais ou menos moralizado, foi aplicada ao nosso país onde os capangas
e joões manuéis têm sido sempre os incumbidos de eleger
a Câmara dos Deputados.

O resultado desta teoria aí está patente. De um lado, uma câmara
temporária que se não dirige, nem é dirigida, nem tampouco
dirige o gabinete; que não tem missão nenhuma, porque não
tem nem opinião, nem caráter; que se limita a empregar o escrutínio
secreto e a fazer orçamentos com a mesma independência que têm
as câmaras municipais; do outro lado, a câmara vitalícia,
órgão de uma aspiração nacional, votando com ela,
discutindo por ela e no entanto impossibilitada de levar ao governo o pensamento
vitorioso, o sentimento iniludível da nação.

Esta situação anormal tirou o Governo do Gabinete, porque este
não tem prestígio, tirou-o da Câmara, porque não
tem opinião; tirou-o do Senado, porque não tem ação.

Tanto se contrariaram todas essas forças, que se neutralizaram e fizeram
visivelmente do imperador o equilíbrio do Governo.

Se a paz se mantém, se a vida do cidadão ainda é garantida,
se o imposto ainda é pago, é somente porque o espírito
do imperador flutua sobre este caos, onde as forças não têm
o poder de organizar e regularizar; onde tudo espera e depende absolutamente
do fiat imperial.

Tudo está agora nas mãos do imperador. A oposição
constrange-se empolgada, porque duas listas tríplices têm de
subir à escolha; numa está o sr. Silveira de Sousa -um liberal,
noutra ou virão três liberais, dous dos quais estão na
Câmara e um é o leader e o outro o mais valente debater da oposição,
ou entrará um conservador, e sendo faculdade exclusiva do imperador
a escolha, os liberais querem lisonjear Sua Majestade para ver se deste modo
a conseguem.

E é preciso dizer que há neste procedimento uma intuição
profundamente patriótica, porque, dependendo do Senado a idéia
capital do verdadeiro Partido Liberal -a abolição da escravidão,
muito bem procede a oposição, empregando esforços para
se organizar em ordem a poder levar a cabo a reforma.

Quanto à maioria, nem é preciso demonstrar que ela está
sob o guante imperial. O seu primeiro ministério constituiu-se com
os piores elementos do partido. Foi um balão de ensaio, dentro do qual,
porém, está uma bomba de metralha, que não explodirá,
enquanto estiver nos ares, porém que, ao tocar em terra, espalhará
a morte, não entre os adversários, porque lá não
vai cair, mas entre os próprios correligionários que é
o ponto natural da queda.

Esse ministério, sem capacidade para fazer o bem do país, procurou
substituir o prestígio, que não lhe viria dos serviços,
pela responsabilidade do partido nos seus atos os mais criminosos e por isso
mesmo converteu as eleições em uma bacanal de sangue e lama.

Dessas eleições nasceu esta Câmara, onde se assentam
o sr. Teodoro Machado e o padre João Manuel e uma tal maioria não
tem força moral para fazer nem desfazer ministérios, criar ou
matar situações.

Se a maioria se quisesse revoltar agora, quando toda a gente sabe que ela
é usufrutuária somente, proprietária nominal da Câmara
dos Deputados, o imperador tinha o direito de fazer calar do mesmo modo que
o sr. Joaquim Nabuco fez calar o padre João Fera, lembrando-lhe que
ele vendeu uma tipografia que lhe foi dada em confiança, e meteu o
dinheiro no bolso, como economias de missas.

O imperador é, portanto, clara, visivelmente poder pessoal. O Governo
é ele, ele só, no isolamento da sua irresponsabilidade legal,
mas da tremenda responsabilidade histórica.

E o que há de ele fazer?

Apelar para o eleitor? Mas o eleitor é o que nós sabemos, um
indivíduo que, no máximo, faz uma estrondosa manifestação
ao deputado roubado pela Câmara, mas não vai além. Sem
consciência da força que lhe deu a Constituição,
que não admite poder nenhum que não seja delegação
sua, o eleitor teme o Governo, porque a sangue-frio é a demissão,
é o processo e a difamação; enraivecido é o espaldeiramento
e a descarga, o emprego da força armada.

A esta organização é o Exército chamado a conservar.

Parece que o Governo lhe devia as maiores deferências e a maior estima;
que ao menos a ele, sua única força, afora a escravidão,
devia fazer justiça e respeitar o mérito e o direito.

Mas nem ao Exército o Governo finge sequer acatar.

É de ontem o exemplo do sr. coronel Cunha Matos. Prisioneiro na guerra,
S. Ex.ª foi o triste estuário, onde desembocaram o ódio
e a sanha de Lopes contra o Brasil. De volta à pátria com essa
eterna condecoração do martírio, o ilustre militar conquistou
pelo talento, pelo estudo e pela honradez um dos primeiros lugares no nosso
Exército. Onde quer que ele passou deixou uma pegada indelével
a brilhar nas trevas da nossa administração, como um corpo fosforescente.

Enviado em comissão ao Piauí depara com um fato que lhe parece
criminoso e coloca-o sob o domínio da lei.

A sua justiça fere um protegido do sr. Simplício de Resende,
que não tem nenhum serviço, cujo nome não passaria à
memória pública, se se não prendesse como parasita, ao
do sr. coronel Cunha Matos, mas que é deputado do sr. barão
de Cotegipe.

Este sr. Simplício, emergindo da maioria anônima, como enorme
rã de um brejo, coaxa umas insolências contra o sr. Cunha Matos,
e, ainda que o brioso coronel tivesse uma comissão do Governo e fosse
por ela acusado, o sr. ministro da Guerra dispensou-se do trabalho de dar
explicações por ele, porque se tratava de um liberal, de um
abolicionista. O delegado do Governo descobre prevaricações
e pede que elas sejam punidas; é por isso injuriado, e, porque vem
rebater a acusação que sofre nesse caráter, o Governo
eleva o sr. Simplício à categoria de superior ao coronel, e
não só inflige ao servidor do Estado a pena de repreensão,
como a de prisão!

Que lei deu aos deputados e ao próprio ministro da Guerra hierarquia
no Exército? Onde ter honras militares foi título de superioridade,
em organização regular e legal?

Mas era preciso castigar o audacioso soldado, que não se curvou diante
da situação, que continuou a ser o que era do mesmo modo que
serão transferidos desta guarnição todos os oficiais
conhecidos como liberais e abolicionistas.

Em nenhuma parte do mundo se admite que o soldado barateie a sua honra. A
lei para o militar, escreveu-a Francisco I: perdeu-se tudo, menos a honra.

E o coronel Cunha Matos, por vir à imprensa defender a sua honra,
que não levou à tribuna o sr. ministro da Guerra, como lhe impunha
o dever do cargo, é repreendido e em seguida preso.

Nem ao menos coerência afetada. Ao passo que o sr. ministro da Guerra
manda humilhar legalmente o coronel brioso, que vem à imprensa salvar
não só a sua honra individual, mas a de uma classe, nada faz,
nem fez, ao capitão que veio à imprensa agredir a esse mesmo
coronel.

E o fato provavelmente ficará impune.

O sr. Simplício mandará dizer para o Piauí que é
forte bastante para proteger quanta patota lá se faça e o Gabinete
continuará a contar com a passividade do Exército, não
só para conter as impaciências dos que se envergonharam pelo
país, como também para esmagar os soldados que entenderam que
acima da honra do militar só há uma coisa: a honra de todo o
Exército.

Quanto ao escravo, ele só serve para pretexto da opressão que
se exerce pelo eleitor e pela força pública.

Serve para falsificar a organização de ministérios como
o do sr. barão de Cotegipe, e câmaras como a dos padres Kelés
do 3º escrutínio.

No mais, o seu destino é morrer, como os desgraçados da Paraíba
do Sul, surrados barbaramente pela justiça pública, num país
cuja Constituição aboliu terminantemente os açoites,
e em seguida vitimados pelo arrocho das cordas que lhes privavam a circulação,
ao passo que a marcha forçada a acelerava.

O escravo serve para engordar na piscina do Império as moréias
da oligarquia, para desentediar com os seus gritos na surra a alma atribulada
dos senhores, e finalmente para dar força governamental aos gabinetes-cadáveres.

E eis aqui a semana -resumo de um reinado!

Mostrando o gabinete e as câmaras, ela justificou o pensamento do imperador:
o Governo sou eu; mostrando a Câmara dos Deputados, o Exército
e a escravidão, e neles o sr. Teodoro Machado, João Manuel,
o sr. coronel Cunha Matos e os escravos da Paraíba do Sul, demonstra
que a missão do Império é corromper, humilhar e matar.

31 jul. 1886

21-VIII-1886

O dia amanheceu sacudido por uma ventania rija. Temos, pois, certeza de
que por nenhum modo chegarão ao trono imperial as nossas palavras.

O imperador está deliberado a não ouvir-nos; nós somos
para Sua Majestade a anarquia audaciosa, que lhe causa até arrependimento
da própria magnanimidade.

A ordem e o patriotismo circunscrevem-se ao ministério e aos seus
sustentadores. Só para estes volta suas vistas e põe-se à
escuta.

O oriente monárquico está lá e os reis não se
importam muito com o saber onde o sol se esconde; querem somente conhecer-lhe
o nascente.

Demais, o horizonte conserva-se invariavelmente vermelho. Primeiro pintou-o
o sangue derramado pelos capoeiras nas ruas desta cidade; depois o sangue
derramado durante o pleito eleitoral; agora torna-o mais rubro ainda o sangue
das vítimas da Paraíba do Sul.

Os reis têm a paixão do vermelho, e, se não a mostram
claramente, é por simples modéstia.

Schiller explica por esta paixão o uso da púrpura: pode-se
embeber do sangue, sem que ninguém dê por isso.

É perder tempo e palavras discutir o que vemos.

Há da parte do imperador propósito feito de arrostar a opinião.

Desgostou profundamente a Sua Majestade a certeza de que se havia criado
neste país uma força, a propaganda abolicionista, paralela à
força do poder pessoal.

Era preciso lutar com ela, até vencê-la; demonstrar que só
há um pensamento e uma vontade, um coração e uma atividade
reais entre nós -o imperador.

E Sua Majestade meteu ombros a esta árdua tarefa.

Em outro qualquer país do mundo os atentados praticados pelo sr. d.
Pedro II, contra a nossa honra de povo civilizado, já teriam chamado
a atenção do mundo inteiro e sublevado a indignação
popular.

Sua Majestade arma de toda a força o ministério da escravidão,
para constituir uma câmara, que é um resíduo de fraude
e um coágulo de sangue.

Entretanto, Sua Majestade regateava a menor parcela de benevolência
ao Gabinete 6 de Junho, que devia presidir as eleições de uma
câmara em favor dos escravos.

Triste paralelo é este.

No tempo do sr. Dantas só o jornal conservador O Brazil fazia reclamações,
e o imperador, ouvindo-as logo, criava milhares de embaraços ao ministério,
às vezes por queixas imaginárias.

Hoje toda a imprensa limpa do país protesta uníssona contra
os abusos, desmandos e crimes do Gabinete e o imperador responde-lhe, dando
cada vez mais força ao sr. barão de Cotegipe, que à semelhança
dos antigos déspotas governa, tendo à cabeceira o médico,
o padre e o carrasco.

O imperador, em vez de revoltar-se contra este sistema de governar, o acoroçoa.

Na posição de Luís XI, quando prisioneiro de Carlos,
o temerário, Sua Majestade subscreve tudo quanto lhe exigem; aceita
como bom tudo quanto fazem ou autorizam os seus ministros.

O plano imperial é fundar sobre a suserania da escravidão o
absolutismo do soberano; e fazer do rei de aclamação, o rei
divino, o rei -sou eu o Estado.

Para chegar a este resultado, Sua Majestade não olha os meios. Ora,
a propaganda abolicionista era uma tremenda ameaça a este plano; mais
natural do que empregar todos os recursos da corrupção e da
pressão para invalidá-la.

Vem daí esta impassibilidade revoltante com que o imperador assiste
à consumação de crimes os mais infamantes, contra os
escravos e contra a civilização de nossa pátria.

O imperador diz que os seus sentimentos são conhecidos, com relação
aos escravos, e nesta frase Sua Majestade faz lembrar os 30 contos que de
vez em quando tira dos 800 contos de réis, que os escravos lhe dão.

Não temos razão nenhuma para não acreditar que seja
sincera essa generosidade do imperador e filha dos seus sentimentos de humanidade.

Mas, admitindo esta premissa, é preciso admitir a conclusão
que acabamos de externar, de que o fim do imperador é suprimir a nação
em proveito da sua dinastia.

Abolicionista, não pode o imperador admitir, como prestigioso para
o seu governo, roubar ano e meio ao prazo da libertação; roubar
o produto do imposto de 5% ao fundo de emancipação durante longos
meses; criar mercados novos de escravos; e foi isto o que fez o monstruoso
e repelente regulamento de 11 de junho.

Abolicionista, não pode o imperador considerar decoroso e legal o
crime do sr. Antônio Prado, mandando aceitar como escravos, à
matrícula, os africanos libertados pela lei de 1831, por isso que Sua
Majestade sabe que a lei de 28 de setembro de 1871 tornou irrevogável
a liberdade concedida.

Abolicionista, não pode ainda o imperador apadrinhar com a sua confiança
o ministro da Justiça, que procura sepultar na sua insensibilidade
os assassinatos da Paraíba do Sul, e amortalhar a justiça pública
com a mesma toga dos magistrados que já fizeram dela mortalha para
os dous infelizes escravos.

Se o imperador tolera tudo isso, e se parece deliciar-se em revolver, como
um verme dentro da podridão desses cadáveres, a sua política,
é porque resulta-lhe daí o proveito eficacíssimo da ameaça
sobre todas as cabeças, a melhor de todas as escolas de cobardia.

O Ministério atual não tem um ato bom em toda a sua administração
e é constituído por homens que, na frase do sr. Vieira da Silva,
demonstram a pobreza do Partido Conservador.

Dizem que ele tranqüilizou o país, porém nunca a propaganda
abolicionista foi tão violenta, nunca os interesses dos proprietários
de escravos estiveram tão ameaçados, por isso que só
resta ao Governo o caminho da violência e este é também
o caminho da revolta, e que revolta! a das classes educadas fora da liberdade.

Por que sustenta o imperador este Ministério?

O sr. barão de Cotegipe dá prestígio ao Governo?

Sustentar Santos, no Estado Oriental, o sr. barão de Mamoré
e os Domicianos da Paraíba do Sul, no interior, é título
para alguém se conservar no Governo?

Qual é o homem superior que o imperador teme desgostar, desgostando
o sr. barão de Cotegipe e quais são os interesses, além
dos da escravidão, efetuados pela demissão desse Gabinete, cujos
ministros não sabem nem ao menos falar corretamente a língua
maternal?

A verdade é esta: o imperador quer manter por longos anos inimigos
em face um do outro, o senhor e o escravo, matar um pelo outro.

Ao escravo, ilude a esperança afetando simpatia pela sua sorte. Custa-lhe
barato isto, menos de 5% dos 800 contos de réis com que a escravidão
o subsidia.

Ao senhor, ele contenta nomeando ministérios que, não tendo
força para reprimir a propaganda da abolição, tem-na,
entretanto, para incitar os proprietários à violência
e ao crime contra seus escravizados, e as populações à
comunhão pacífica da barbaria.

O resultado é fácil de prever: a desorganização
geral do trabalho, a morte absoluta da iniciativa política, o desmantelo
completo da administração, a ruína, finalmente, do país,
e portanto a consolidação da dinastia, como elemento essencial
de reconstrução pacífica, servindo de anteparo às
ondas revolucionárias.

Porque os reis são como as ortigas, só se tornam salientes
e notáveis sobre ruínas.

Tal é o plano do sr. d. Pedro II.

O Ministério de 20 de Agosto ficará, pois, apesar de todos
os protestos da opinião.

Quando crescer a impaciência, ele aumentará a corrupção.

Apoiado no interesse do senhor, na cobardia do povo, na miséria do
escravo; convertendo, pelas transferências, pelas prisões, pelas
disponibilidades, o Exército e a Marinha em um rebanho dócil
para o poder, o Gabinete 20 de Agosto se conservará no poder até
quando o imperador quiser.

Não vale a pena combatê-lo, por isso que ele tem carta branca
para fazer tudo quanto lhe der na cabeça, contanto que daí resulte
sempre um lucro para a dinastia.

O país fique certo que não conseguirá nada com o seu
clamor. O trono é surdo.

Demais, o imperador serve-se do Ministério 20 de Agosto, como de um
gato morto.

Ele quer provar-nos que a abolição, como tudo neste país,
é ele, e por isso emprega os srs. Cotegipe e companheiros, o ministério
mais fraco que temos tido, como simples instrumento.

21 ago. 1886

5-II-1887

Começou a orgia de sangue e de sânie que o sr. barão
de Cotegipe havia prometido aos seus cúmplices do Governo para a pirataria
e pela pirataria.

Já não há mais garantias para quem não se ajoelha
perante o chaveco do tráfico, encalhado sobre o Ararat da corrupção
e convertido pelo Governo do imperador em arca santa dos direitos da escravidão.

A cidade de Campos foi convertida em matadouro de abolicionistas.

A polícia, conivente com os assassinos, esconde-se, até que
estes tenham consumado os seus crimes, e em seguida aparece para denunciar
à magistratura as vítimas como algozes.

A magistratura, por sua vez, denuncia ao Governo esses imaginários
autores de atentados, louvando a solicitude e o zelo com que a polícia
os entrega à sanha do esclavagismo assassino.

O presidente do Conselho havia dito: na guerra, como na guerra e cumpre,
pela primeira vez na sua vida, a palavra dada.

Nesta guerra, porém, as forças são desiguais. De um
lado estão os abolicionistas, que não têm como armas senão
a sua fé na santa causa que defendem e pela qual estão prontos
a dar a vida; uma raça acobardada por longos séculos de sofrimento;
o terror do povo acostumado a ver subir ao cadafalso, ou ser espingardeado
na praça pública, o Direito, ficando o despotismo jubiloso a
tripudiar impune sobre o seu cadáver.

De outro lado está o Governo, armado com a venalidade da maior parte,
com o desespero da cobiça dos senhores de escravizados, com a falta
de escrúpulo de quem se hipotecou ao interesse de uma instituição,
que é a nossa vergonha perante o mundo.

Governo da escravidão, o Ministério é a encarnação
da barbaria; não trepida em assalariar delatores, como não hesita
em proteger assassinos.

As cenas selvagens de Campos não são senão o primeiro
ensaio da tragédia, que vai ser representada em todo o país.

Aos assassinatos de Luís Fernandes e do imortal Adolfo Porto, seguir-se-á
o de Carlos de Lacerda e ao deste o de todos os abolicionistas, cuja palavra
o Governo sabe que não emudecerá senão pela morte.

Um cadáver de mais ou de menos não faz mover a balança
de consciências que se servem de três séculos de crime
como peso para os seus atos.

O Governo já não se julga obrigado sequer a recatar-se. Apraz-lhe
a nudez da saturnal. Põe cabeças a prêmio; aponta os réus
que quer punir.

Não tem mais em atenção as simples formalidades da lei:
suspende os direitos constitucionais e veste a morte com a toga do magistrado.

Na embriaguez do crime, não repara que deixa pegadas indeléveis
na história, apesar da astúcia que emprega para ocultar a sua
mão traiçoeira e ensangüentada.

A polícia de Campos ainda não descobriu quais os assassinos
do dia 30, mas sabe quem foi que esfaqueou um dos capangas de Raimundo Moreira.

Não consta que nenhum desses assassinos haja sido farejado pela perspicácia
do delegado de polícia ou do juiz de direito; mas estas autoridades
já sabem, descobriram de pronto, que são as conferências
abolicionistas o facho incendiário que ateou fogo aos canaviais.

Cada palavra do Governo e dos seus agentes denuncia a premeditação
de sufocar, seja como for, a propaganda que pretende lavar a desonra da pátria,
seja com o próprio sangue dos propagandistas.

O imperador, que é proclamado soberano magnânimo, não
dá sinais de vida.

Outrora, quando O Brazil, órgão do sr. Belisário, atroou
os ares com ameaças, recurso de matreiro para atordoar o povo e não
deixar ouvir o fracasso do sindicato, o imperador alarmou-se ao ponto de converter
o pacto de honra com o sr. Dantas nesta situação criminosa -pântano
onde bóiam cadáveres.

Hoje, que um ministério que não se pode fortalecer senão
pelo terror, que lembra no poder um desses monstros do sertão, que
se fazem temer pelo número dos seus crimes, cobre de vítimas
o país e põe em perigo as instituições, o imperador
cruza indiferentemente os braços.

Pensa acaso o imperador que o meio de consolidar o seu trono é dar-lhe
como alicerce no presente a ossada dos abolicionistas, como lhe deram outrora
a ossada das vítimas do tráfico?

Julga acaso o imperador que não basta que a sua lista civil seja o
preço das lágrimas de um milhão de espoliados, e quer
que se lhe ajunte o sangue dos que têm a coragem precisa para repetir,
diante do César americano, a frase dos gladiadores malferidos -os que
vão morrer te saúdam?

Não vê Sua Majestade que, de par com o vácuo que o assassinato
e o processo foram incumbidos de fazer nas fileiras abolicionistas, o ministério
mandou o desgosto fazer o vácuo em torno do trono imperial?

Quem leu hoje o Jornal do Commercio, que tanto pesa desde o tesouro até
os Conselhos da Coroa, viu com espanto que o ministério está
provocando insensatamente o Exército e incitando-o a que saia da calma
patriótica, em que ele se tem mantido.

O marechal Deodoro, que não ganhou as dragonas de general nas antecâmaras
dos ministros, mas no campo de batalha -a antecâmara da morte é,
por ordem do Governo e a peso de dinheiro usurpado a ele mesmo e a todos os
contribuintes, tratado como se fosse uma ordenança do sr. ministro
da Guerra.

Gente que se ocupa em vender a pena, porque é a última cousa
que lhe resta para vender, salpica de tinta assalariada a farda veneranda,
que a coragem salpicou de bordados e condecorações.

Percebe-se o plano vergonhoso de assanhar a população contra
o brio da classe militar, não porque a autonomia civil corra perigo,
mas unicamente porque o Ministério deseja campear ovante sobre os últimos
destroços da sobranceria de um povo.

O Governo, encarregando aos seus declamadores pagos de repetir alto o recado
que lhes deu no Gabinete e mandou decorar no segredo da verba secreta, grita
que é preciso resistir à indisciplina, capitaneada pelo marechal
Deodoro.

Qual é esta indisciplina? pergunta-se em vão, procurando fatos,
e só se encontram avisos julgados inconstitucionais pelo Poder Moderador
e que, entretanto, o Ministério quer que produzam efeito sobre a fé
de ofício e a carreira militar de oficiais briosos.

Pode a classe militar recuar hoje da atitude nobre e digna que tomou?

O que ela pediu foi simplesmente justiça: não se negou a submeter-se
à lei; mas quer que o Ministério se submeta também.

Entre o Governo na legalidade, e todos entrarão com ele.

Mas o Governo quer ficar fora da lei e, para conseguir os seus fins criminosos,
lança mão de todos os meios.

Ninguém pode presumir que o brioso marechal Deodoro, se receber como
resposta à honrosa comissão que lhe confiaram os seus camaradas,
a demissão do alto cargo que tem no Exército, continue a acreditar
na justiça imperial e na garantia das Instituições.

Manda a lei da honra prover que o ilustre marechal, como todos os seus companheiros,
perderá a esperança de que, no segundo reinado, o direito possa
obter do Governo a segurança que a lei lhe prometeu.

Se o amor da disciplina contiver os assomos da dignidade ofendida, o amor
da pátria aconselhará a classe militar a cruzar os braços,
deixando que o Governo imperial conjure pela corrupção a tempestade
de indignação por ele mesmo desencadeada.

Sua Majestade não mediu ainda, ao que parece, a extensão do
vácuo, que fará em derredor do seu trono o afastamento dos heróis.

Retirados os Deodoros, pensa acaso Sua Majestade que os Cotegipes e seus
asseclas bastarão para defendê-lo dos golpes que a civilização
inteira e com ela a memória das vítimas do esclavagismo desfecharão
contra o seu reinado?

E os reis são em geral cegos e surdos. É a pena que lhes comina
previamente a História, quando os tem de arrastar perante o júri
dos povos para responder pelo crime de lesa-justiça.

Entre os gemidos dos escravizados e o clamor altaneiro do esclavagismo, o
imperador escolheu o apoio do segundo e mandou sacrificar os primeiros.

Sua Majestade vê que o Ministério é escandalosamente
conivente com os violadores da lei, que continuam a empregar a gargalheira,
o tronco, o açoite, o cárcere privado, os maus tratamentos de
todo o gênero contra os escravizados, apesar de determinações
positivas da lei; e Sua Majestade sustenta esse Ministério, que no
seu próprio partido perdeu a confiança de todos os homens de
bem.

Entre a dignidade do Exército e a insensatez do Gabinete 20 de Agosto,
o imperador parece querer preferir a segunda à primeira.

Sua Majestade vê que o Ministério socorre-se de tudo quanto
é meio indigno para difamar os militares, que protestam, e para angariar
simpatias na parte tímida do Exército. Que o Ministério
vai desde os Romões dos interlinhados até o champagne falsificado
do ministro da Guerra. E Sua Majestade sustenta este ministério cuja
tradição é a popeline, o sindicato, o Rio Verde, a empresa
Gary, contra militares cuja tradição é a integridade
da pátria e o brilho da nossa bandeira no campo de batalha.

Dizem que o imperador tem levado toda a sua vida a vingar seu pai.

Tudo quanto foi pelos nossos maiores considerado crime do primeiro imperador,
o segundo tem praticado para justificá-lo.

Tudo quanto foi instituição popular, que concorreu para a ruína
do primeiro imperador, o segundo tem desmantelado.

O abolicionismo foi o primeiro tropeço que o primeiro imperador encontrou
em seu caminho. As instruções a Brant denunciam o amigo de José
Clemente Pereira.

Por isso mesmo, o sr. d. Pedro II, depois de aproveitar-se do abolicionismo
para recomendar-se ao mundo, entrega os abolicionistas ao sr. barão
de Cotegipe, carrasco impassível da sua própria raça.

O Exército forçou a abdicação de d. Pedro I,
abandonando-o ao destino do seu despotismo. O sr. d. Pedro II adiou a vingança
até o momento aprazado e, sem escolher vítimas, não reconhecendo
os que há poucos anos lhe salvaram de novo o trono, condena-os a serem
o joguete de ministros tresloucados, de forateiros políticos irresponsáveis.

Nós nada pedimos ao imperador.

Do seu Império não aspiramos senão aos palmos de terra
que a corrupção do Império é bem capaz de negar
àqueles que não trepidaram atirar-lhe à face a vergonha
e os crimes.

O que podemos garantir a Sua Majestade é que morreremos tranqüilo;
sorrindo à certeza de que cumprimos com o nosso dever de patriotas,
e que, mais tarde ou mais cedo, a nossa morte será vingada.

5 fev. 1887

16-VII-1887

Os fetichistas do parlamentarismo devem de estar maravilhados com os estupendos
resultados que ele tem dado entre nós.

Devemos render esta justiça ao parlamentarismo: só ele, com
os seus inexauríveis recursos de equilíbrio, podia sustentar
esta situação política especial, que ninguém sustenta
e que se impõe a todos; que não se apóia em nenhum elemento
estável da sociedade e que, entretanto, é apoiada por todos
e por tudo.

O parlamento conseguiu ser mais que uma delegação do exercício
da soberania política do povo, ser a abdicação absoluta
do poder, do brio, da honra nacional.

Ninguém tem o direito de ser ouvido neste país senão
dentro do parlamento e por isso mesmo os membros desse poder se julgam no
dever de não se fazerem ouvir.

Tomados individualmente os deputados e senadores, raros são os que
não entendem que o atual Ministério não é a humilhação
de um partido e uma vergonha para o país.

Quando reunidos, porém, quando formam maioria parlamentar, esses mesmos
homens curvam-se servilmente e repetem tantos votos de confiança quantos
lhes sejam exigidos pelo capricho dos ministros.

Reproduz-se diariamente na Câmara e no Senado aquela cena felicíssima
da taberna, no Nero de Pietro Cossa.

Os circunstantes se revoltam diante da devassidão audaciosa do César
lascivo, um deles deita-lhe a mão no pescoço e está disposto
a estrangulá-lo, quando sabem todos que o homem que está por
terra é Nero, o imperador de Roma. Muda-se de súbito a atitude
de todos e os indignados de minutos antes são os escravos que se deitam
de bruços diante do senhor.

Há uma espécie de orgulho em ostentar servilismo parlamentar.
A maioria se julga tanto mais honrada, quanto mais irracional é o sacrifício
por ela feito.

O sr. barão de Cotegipe conhece-a tão bem que procede com ela
como Hamlet com os cortesãos da Dinamarca.

Quando a maioria quer mostrar-se mais servil do que é necessário,
o presidente do Conselho dá-lhe uma lição de altivez,
em termos que vamos pedir emprestados a Shakespeare.

(Entra OSRIC, descobrindo-se.)

OSRIC.- Meu senhor, se Vossa Alteza não está agora ocupado,
permita que lhe dê um recado da parte de Sua Majestade.

HAMLET.- Ouvi-lo-ei com a maior ansiedade, mas olhe… Dê ao seu chapéu
o destino que ele tem: cobrir a cabeça.

OSRIC.- Muito obrigado a Vossa Alteza; mas está fazendo muito calor.

HAMLET.- Calor? Quer dizer muito frio: o vento é do norte.

OSRIC.- E isso, é isso, meu senhor: está sofrivelmente frio.

HAMLET.- Entretanto para mim, em virtude de meu temperamento, está
fazendo calor de sufocar.

OSRIC.- É isso mesmo, meu senhor, está excessivo o calor, sufocante…
um calor inaudito.

Esse calor-frio e frio-calor, excessivo, sufocante, que serve para justificar
o servilismo de Osric, que se descobre quando podia estar coberto, é
a desculpa da maioria que é sempre da opinião do Governo e que
não quer guardar a dignidade do seu cargo nem mesmo quando o senhor
lho permite.

É que o parlamentarismo aniquilou o caráter dos homens políticos
desta terra e os converteu em simples serviçais da escravidão,
representada pelo Ministério e pela Coroa.

O parlamentarismo justificou o poder pessoal e tornou urgente a proclamação
de uma ditadura inteligente e patriótica, a favor da qual, mesmo com
o sacrifício provisório de alguns direitos, todos nós,
homens de coração e de patriotismo, devemos trabalhar.

A nossa responsabilidade de povo na História será tremenda
quando as gerações futuras virem que nos submetemos ao voto
parlamentar de umas dúzias de interessados que se antepunham à
vontade expressa da maioria dos seus compatriotas.

No momento atual, a propaganda abolicionista deixou de ser um choque revolucionário,
para ser o acordo consciencioso dos próprios senhores de escravizados
na reorganização do trabalho agrícola.

Não obstante, a Câmara dos Deputados entende que deve sugerir
aos convertidos à boa causa do trabalho livre a esperança falaz
da durabilidade de escravidão.

Tudo indica que a maldita instituição fez o seu tempo; que
ela entra na fase da decomposição rápida e inconjurável.

Além da própria confissão dos mais interessados na sua
conservação e que dela abrem mão espontaneamente há
o sufrágio geral de todas as classes.

No Senado assina o projeto Dantas o visconde de Pelotas; na reunião
militar o general Deodoro declara-se francamente pela abolição.
E de recente data a manifestação da Armada e do Exército,
quando se deram as festas pela libertação do Ceará. Em
todas as suas reuniões os militares deixam firmada a adesão
coletiva à causa dos escravizados.

Se um movimento, embora pacífico, mas decisivo, com o cunho de uma
imposição do povo e da civilização, for organizado,
o Governo teria de ceder do mesmo modo que cedeu, humilhado e humilhando o
Senado, na Questão Militar.

Os abolicionistas têm demonstrado, como por ocasião dos incêndios
dos canaviais em Santos, e agora mesmo pela fuga coletiva dos escravizados
em S. Paulo; têm demonstrado, repetimos, que podem na hora que lhes
aprouver dispor de elementos os mais poderosos de perturbação.

No entanto, em vez de incitar a rebeldia, eles se colocam do lado da ordem
e dos interesses gerais do país.

Como resposta a essas provas repetidas de patriotismo, o Governo manda trancar
a discussão dos projetos mais anódinos que se apresentem às
câmaras!

E a maioria parlamentar, que devia representar, não o partido, mas
a nação, apóia sem protesto semelhante cegueira.

Pensa a Câmara dos Deputados que realmente bastam para deter a marcha
da propaganda abolicionista a carranca do sr. Andrade Figueira e os arreganhos
clownianos do sr. barão de Cotegipe.

Mas supondo mesmo que o Ministério pudesse empregar contra o abolicionismo
força, de que não dispõe, acredita a maioria que teria
meio de vencer um combate que se dará em todo o país e cujos
soldados estão entricheirados dentro do próprio acampamento
do inimigo?

É simplesmente demasiado exagerada e que, entretanto, pode ter as
mais funestas conseqüências.

Perde-se a paciência, muitas vezes por uma insignificância, apesar
de se haver jurado prudência à própria honra.

Nunca contestamos a força parlamentar da escravidão; o que
lhe negamos é a força popular, que é nossa e de que não
temos querido dispor simplesmente por patriotismo.

Se temos hesitado, é porque vemos de um lado a matrícula e
de outro lado as libertações espontâneas por milhares,
e não devemos condenar os que são vítimas, tanto como
os escravos de um governo, que para salvar os interesses dos ministros enlameia
o bom nome da pátria.

Cumpre-nos, porém, fazer sentir que não cedemos nem um dia,
nem uma hora, nem um minuto do prazo que marcamos à instituição
negra, nem mesmo sendo necessário empregar meios extremos.

O sr. presidente do Conselho declarou que o atual ministério não
proporá nenhuma alteração à lei reescravizadora,
votada há dois anos. A maioria acaba de declarar na Câmara dos
Deputados que não considera urgente a reforma dessa lei.

Nós, por nossa parte, declaramos que queremos a abolição
da escravidão até 1889 e que se não no-la derem, fá-la-emos.

Em 14 de julho de 1889, centenário da revolução que
produziu o homem moderno, há de estar decretada a abolição
total da escravidão.

Empregue o Governo os meios de que puder dispor, e todos, desde a calúnia
assalariada até os patíbulos clandestinos na casa dos abolicionistas;
aconselhe aos seus agentes secretos todos os recursos os mais desumanos, desde
a traição até o assassinato, e não conseguirá
fazer recuar a onda que a propaganda abolicionista sublevou com a força
de séculos de angústias.

Os reptis (sic), na expressão de Bismark, falavam ontem nos entrelinhados
no plenilúnio de 1889.

Foram profetas sem o saber.

De feito: a 14 de julho de 1889 haverá maré cheia para a abolição;
um preia-mar de liberdade, de igualdade e de fraternidade há de inundar
a nossa pátria, afogando o escravismo nos mangues ensangüentados
da pirataria.

16 jul. 1887

30-VII-1887

Se fosse permitido esperar alguma influência do parlamento sobre a
vida do Governo, podíamos repetir hoje, com inteira segurança,
a frase do sr. Miranda Ribeiro: o Ministério está morto.

Não se compõe da soma das opiniões individuais dos ministros,
mas do acordo partidário destes com o presidente do Conselho, a política
ministerial. É esta a teoria do governo parlamentar, expendida pelo
sr. barão de Cotegipe.

Os gabinetes não se modificam pela saída ou entrada de ministros;
o apoio parlamentar ao ministério o dispensa de explicações
sobre o seu programa.

É assim que o Ministério 20 de Agosto, tendo perdido já
a maioria dos seus membros primitivos: o ministro da Guerra, o ministro da
Marinha, o ministro da Agricultura, o ministro do Império, os srs.
Junqueira, Alfredo Chaves, Antônio Prado e barão de Mamoré,
continua a ser o mesmo que era anteriormente.

A sua política não variou absolutamente, porque o depositário
e principal responsável dos seus intuitos e dos seus fins é
o presidente do Conselho.

Sempre que se deu qualquer das quatro modificações ministeriais,
a oposição inquiriu do sr. presidente do Conselho se havia sido
alterada a política do Ministério e S. Ex.ª respondeu sempre:
não.

Os ministros demissionários confirmaram pelo seu subseqüente
apoio ao Gabinete que se retiraram por dificuldades extraministeriais.

O sr. barão de Cotegipe ficou sendo, até agora, o único
presidente do Conselho que nunca teve divergências, capazes de provocar
crises, no seu Ministério.

A retirada do sr. Antônio Prado, por exemplo, foi explicada do seguinte
modo: havendo sido nomeado senador, S. Ex.ª retirou-se para que o Ministério
não ficasse composto por maior número de senadores que de deputados.

Continuaram entre S. Ex.ª e o Ministério as boas relações
de apoio e de confiança recíprocas. Nenhum ato parlamentar,
nem administrativo, fez suspeitar o mais leve estremecimento entre o sr. presidente
do Conselho, o Ministério e o sr. ex-ministro da Agricultura.

Força, portanto, é concluir que houve sempre, senão
concordância absoluta de vistas, tendências e fins entre o Ministério
e o ministro da Agricultura, e ao menos o primeiro foi em tudo solidário
com o segundo nos atos por este praticados.

Entretanto, com surpresa do país inteiro, o sr. Rodrigo Silva expede
um aviso, a respeito de matéria especialmente ministerial -a escravidão,
e esse aviso é a revogação terminante de um outro expedido
pelo sr. Antônio Prado.

O Ministério é apanhado em flagrante delito de contradição
e esta não fere assunto de pouca importância, mas o direito de
mais de 13 mil pessoas.

O parlamento, se ele existisse, ou quisesse existir, não podia deixar
de dar a maior importância ao episódio, que vem desmascarar a
especulação do Governo.

Foi o próprio presidente do Conselho quem declarou que não
houve, nem haverá modificação no pensamento ministerial
com relação à Lei 3.270, e no entanto esse pensamento
se modifica rasgando a lei, censurando um ex-ministro e reescravizando milhares
de pessoas.

O Gabinete 20 de Agosto foi quem decretou a lei, que capitulou de roubo a
hospitalidade ao foragido; foi ele também quem afirmou que a sua lei
não era de reescravização, mas de emancipação
gradual.

Grande parte no acordo sinistro, que adiou por mais treze anos a reabilitação
moral de nossa pátria, foi o ex-ministro da Agricultura; mas, apesar
disso, o sr. Antônio Prado entendeu que ele não podia consentir
na rematrícula dos escravizados, senão nos termos precisos da
Lei 3.270, que neste ponto não alterou o § 1º do art. 3º
do Decreto 4.835, de 1º de dezembro de 1871.

O ministro adventício à pasta da Agricultura carece por isso
mesmo de idoneidade para ser o intérprete da lei. Não foi ele
quem a estudou na gestação, quem lhe acompanhou a gênese
laboriosa, que precisou dos esforços combinados das duas metades negras
do Partido Liberal e Conservador, do sr. Saraiva e do barão de Cotegipe
para poder chegar ao nascedouro.

De duas, uma: ou o sr. barão de Cotegipe cedeu ao sr. Antônio
Prado, quando S. Ex.ª expediu o aviso de 22 de abril deste ano, ou S.
Ex.ª cede agora.

Não se tratava de matéria somenos, nem de ponto de pequeno
alcance, nem houve surpresa por parte do ex-ministro da Agricultura. O encerramento
das matrículas a 30 de março tinha sido feito com a maior superexcitação
escravista. O Ministério estava alerta.

Demais, a lei negra no seu § 8º do art. 1º havia cominado
pena ao procurador omisso e desidioso, o que prova a prevalência de
futuras reclamações.

Parlamento, que se prezasse, não poderia deixar de ter na maior consideração
esses fatos, e deveria levantar-se para protestar.

Felizmente para o Ministério, porém, bastará que ele
converta esta questão de simples probidade do Governo em questão
de confiança política, para escapar à punição
parlamentar.

Salta aos olhos que semelhante questão nada tem de política,
que ela é de natureza inteiramente social, ou melhor, nada tem com
o partido, mas unicamente com a inteireza moral do Ministério, ou seu
presidente do Conselho.

Em 1883, o Partido Conservador aplaudiu o Governo por haver tirado do exclusivo
domínio popular a questão servil.

Os abolicionistas, que não têm por fim revolucionar o país,
mas reconstruí-lo pela liberdade e reabilitá-lo pelo trabalho
moralizado, aplaudiram francamente o Governo por haver dito, pela voz do sr.
Paranaguá, que a questão da escravidão podia ser tratada
pelo Governo.

Todos sabem, e nos condenam por isso, que tudo quanto havia na propaganda
abolicionista de força e de patriotismo agregou-se ao Ministério
Dantas e que os propagandistas abdicaram na honra e na lealdade desse Gabinete
as suas esperanças e iniciativa. Impusemo-nos o mais desinteressado
e patriótico armistício para deixar ao parlamento a independência
e a serenidade necessárias para resolver o problema conforme ao bem
geral.

Depois de havermos libertado províncias, comarcas, municípios;
de havermos levado pelas nossas milícias impávidas o terror
ao âmago do acampamento inimigo; quando, sob a bandeira da libertação
que flutuava no poder, fácil nos fora, por um golpe de mão,
conseguir vitória fácil, o patriotismo nos aconselhou caminho
diverso e, confiados na palavra do Governo e no pode, quer e deve da perfídia
negreira, tivemos a nobreza de entregar aos meios regulares a solução
do problema.

O Ministério Dantas, atraiçoado, caiu, e liberais e conservadores,
fundindo-se num só interesse, fizeram uma lei de reescravização;
regulamentaram-na de um modo iníquo e atroz.

Mas, ainda assim, o espírito do abolicionista sobreviveu ao corpo
de podridão que lhe haviam imposto, e os mesmos que fizeram a lei monstruosa
e seus bárbaros regulamentos, acham agora que eles não bastam
e entregam-se à pirataria contra homens livres, como em plena Costa
d’África.

Não somos, pois, nós quem exige de mais: é o parlamento
que falta com o seu compromisso. Ele queria solver a questão; deixamo-lo
trabalhar sem perturbá-lo, e agora consente que a escravidão
invada até os domínios já conquistados pela liberdade.

Se o parlamento pode quebrar o seu compromisso de imparcialidade, dando à
escravidão o que lhe não pertence mais, estamos no nosso direito
de arrancar à escravidão tudo quanto ela tem roubado à
pátria.

O Governo põe-se fora da lei e o parlamento lho permite; acompanhá-lo-emos.

Os deveres sociais acabam onde acaba a lei. Daí por diante começa
o direito natural, mesmo no que ele tenha de mais selvagem.

Aos infelizes reescravizados de Campos, se o parlamento lhes não restituir
a liberdade, roubada pelo aviso do sr. Rodrigo Silva, aconselharemos que eles
procurem reconquistar a sua liberdade por todos os meios.

Onde cessa a justiça começa a força.

A oligarquia negra avassalou o Império. Esperar por justiça
da sua parte é tão ridículo, na frase de Castelar, como
esperar pelos deputados cubanos, proprietários de escravos, para decretar
a liberdade de Cuba.

Cada um tem o direito de defender a sua vida, e a liberdade é mais
que a vida, mesmo dentro do nosso código.

O parlamento que cumpra com o seu dever para nos apressar a cumprir já
e já com o nosso.

30 jul. 1887

20-VIII-1887

Hoje há festa no palácio Cotegipe. O nobre presidente do Conselho
convida os seus parentes e amigos, bem como aos parentes e amigos da situação
para a prática solene do terceiro mandamento da sua religião
governamental: convida-os a cear.

O que há de mais extraordinário no convite do sr. presidente
do Conselho é a escolha da refeição. S. Ex.ª preferiu
a ceia apesar de ter de meter a mão no prato com mais doze companheiros:
a meia dúzia de ministros, os dous candidatos à senatoria pelo
Rio de Janeiro, os srs. Tomás Coelho e Andrade Figueira; os dous candidatos
por Minas Gerais, os srs. Soares e Veiga; os srs. Paulino e João Alfredo.

Não sabemos em que forças misteriosas e arquidivinais o Messias
conservador confia para assim afrontar a refeição biblicamente
fatídica e com ela o número treze, mas o critério e sabedoria
de S. Ex.ª são tamanhos que esperamos não saia da mesa
para o monte das Oliveiras.

Por isso mesmo, associamo-nos de todo o coração ao rega-bofe
pantagruélico de tinta e papel de impressão dos entrelinhados
e damo-nos os parabéns por mais este auspicioso segundo dos muitos
que a felicidade e a honra deste país hão de contar, graças
à administração do sr. barão de Cotegipe.

Há homens que fazem crer na predestinação histórica.

Quem conhece a história da Monarquia de julho, em França, não
pode deixar de considerar Mr. Guizot um dos fatores predestinados da democracia
universal.

Em política, como em geometria, demonstra-se a verdade pelo absurdo.

Os governos de resistência sugere-os a onisciência da liberdade
humana aos reis fracos e presunçosos para confundi-los no malogro das
suas ambições de autoridade pela força bruta das baionetas
e das maiorias parlamentares servis.

Comentando a queda da Monarquia de julho, a velha árvore da realeza,
oca e carunchosa por dentro, mas reenvernizada por fora, Alphonse Karr diz:

«Ninguém estava preparado para a República; os seus partidários
mais ardentes adiavam-na para depois da morte do rei. O que aconteceu não
teve nenhum concurso expresso, a não ser talvez o de Luís Filipe.»

Nada mais verdadeiro do que esta observação. Pelo estado dos
espíritos, nenhum estadista podia esperar a convergência brusca
dos espíritos, que deu em resultado a queda instantânea da realeza.

Foi resistindo, insensatamente a França e antepondo aos seus reclamos
os caprichos de Guizot; circunscrevendo a nação ao país
oficial que apoiava o Gabinete, que o bonachão do rei do chapéu
de Chile cavou o leito para que se reunisse em torrente a inundação
de resistência democrática, que alagava o espírito francês.

Não é preciso contar aos luminares que nos dirigem, uma vez
que está proibido atualmente falar ao povo, esta história de
ontem.

O que talvez não pareça a propósito, mas que apesar
disto não é demais fazer sentir, é que o sr. barão
de Cotegipe não pode aspirar à comparação do prestígio
do seu com o nome de Guizot, se bem S. Ex.ª tenha de representar na história
do nosso progresso papel em tudo semelhante.

O nobre barão de Cotegipe gaba-se de que há de ser Governo,
enquanto quiser, embora sirva-se parlamentarmente da modesta expressão,
enquanto puder.

A razão é muito simples.

Sua Alteza, a Regente, não quer tocar no que o seu augusto pai deixou.
À sua piedade filial parece pecaminosa irreverência alterar a
ordem de cousas estabelecida, tanto mais quanto espera que brevemente o enfermo
de Baden-Baden volte aos seus domínios.

É muito natural nos reis contarem pelas suas as pulsações
do povo. Acreditam que o povo não pode ter necessidades diferentes
das suas.

Um rei é acometido de diabetes, que lhe vai a pouco e pouco desmemoriando,
roubando-lhe a consciência da sua missão. O rei, os membros da
sua família, os seus ministros, os seus senadores, os seus deputados,
os seus empregados, todo o mundo oficial, finalmente, acredita que o povo
está também doente de diabetes e que perde tudo quanto o rei
perdeu.

Os médicos estão obrigados a exigir do augusto enfermo repouso.
Os governos exigem-no igualmente do povo, ainda que seja necessário
para consegui-lo a camisa-de-força dos quartéis, quando não
bastar o anestésico das subvenções clandestinas.

Quando muito, ao rei doente é tolerada a liberdade de fazer charadas
e sonetos; ao povo é no máximo permitido ouvir os discursos
do seu parlamento e ler a prosa dos escritores mansos e de períodos
enovelados à semelhança de cobras adormecidas.

Sua Alteza, a Regente, não acredita que possa fazer nenhum mal ao
país a conservação do barão de Cotegipe. Deve
parecer mesmo a Sua Alteza desrespeitosa impaciência o reclamo dos que
entendem que um dia de permanência deste gabinete da escravidão,
pela escravidão e para a escravidão é uma vergonha imposta
à nação e de que ela mais tarde ou mais cedo se há
de desafrontar, não sobre o sr. barão de Cotegipe, que é
um licenciado da sepultura, com hora certa de volta, como as almas penadas,
mas sobre aqueles que o sustentam.

A balança que pesa os acontecimentos em palácio não
tem o fiel girando sobre o quadrante do futuro, mas sobre o do presente.

O que Sua Alteza, a Regente, vê é uma subordinação
patriarcal de todo o país.

Duas foram as grandes agitações deste ano: a militar e a do
Senado. O Exército submeteu-se, pelo menos nas suas grandes patentes;
o Senado está trabalhando submissamente sob o mesmo Ministério,
que o exautorou.

O Governo, para responder à propaganda abolicionista, emprega meio
simplíssimo; declara que ele se apóia na população
que tem que perder e que o abolicionismo é o grito dos vadios, sem
eira nem beira.

Prevost Paradol disse: «a timidez política do cidadão
se aumenta com a sua fortuna; e a riqueza, em vez de ser um tônico à
independência cívica e um apelo às nobres ambições
políticas, é mais uma cadeia que o torna dócil a todos
os caprichos do poder.»

Mas semelhantes palavras não podem pesar no espírito daqueles
que vivem justamente dessa influência deletéria da riqueza sobre
o aperfeiçoamento social.

Por agora, pensa Sua Alteza, a Regente, tudo vai bem, e portanto não
é conveniente mudar.

Na estreiteza do horizonte político da Regência, não
há portanto lugar senão para o sr. barão de Cotegipe.

S. Ex.ª tem, pois, inteira razão para garantir que só
há de cair quando quiser.

O melhor sustentáculo do Ministério é a oposição
d’O Paiz dizem os escritores ministeriais, ou por outra; enquanto a opinião
protestar contra a conservação, ele será conservado.

É a política de Luís Filipe completa.

Querem Mr. Thiers? Muito bem: sirvam-se de Mr. Guizot.

Querem a abolição; entendem que sem ela o país não
poderá marchar, que dia a dia o seu caráter como as suas finanças
se arruinarão mais e mais até chegar ao completo aniquilamento?
perfeitamente, diz o imperador, em Baden-Baden: continue o Gabinete da escravidão.

Eis por que aplaudimos a permanência do Gabinete do sr. barão
de Cotegipe.

O sr. conde d’Eu sabe, melhor do que nós, quanto é impopular.
Sua Alteza nem ao menos tem o apoio do imperador, segundo se diz.

É uma infelicidade, mas Sua Alteza sabe que até nos palácios
entra a má estrela.

O momento para dar combate a essa impopularidade, até certo ponto
injusta, era este, em que com o apoio da maioria da nação, Sua
Alteza podia se fazer o herói da libertação de centenas
de milhares de brasileiros.

Mas o constrangimento ilegal, em que se acha a Regência, que não
pode exercer livremente as funções do Poder Moderador, faz também
com que o príncipe consorte não possa sequer continuar no Brasil
a tradição abolicionista da sua família, aconselhando
sua augusta esposa a aproveitar-se da oportunidade que lhe vai fugindo de
converter a mançanilheira da escravidão no loureiro do novo
reinado.

Quando vier o habeas corpus de Baden-Baden será tarde.

O sr. barão de Cotegipe só não ensangüentou agora
a propaganda abolicionista, porque teve medo do Senado.

Já mandou, porém, começar os processos por açoutamento
de escravos, e para servir ao sr. Paulino de Sousa já está na
penitenciária de Niterói um homem de boa sociedade metido numa
enxovia promiscuamente com facínoras condenados.

O sinal de reação está dado e fechadas as câmaras,
a Regência será a época da mais infrene e vergonhosa perseguição
dos abolicionistas.

Se não for a escravidão redimida quem tenha de abençoar
ao reinado, que assim se estréia, quem o abençoará?

Quererá viver da força o futuro reinado?

Talvez, mas é bom refletir nesta observação de Kepler:
«machado com que se quis cortar ferro, serve depois para cortar madeira».

20 ago. 1887

Cidade do Rio

31-X-1887

O Ministério não quer que a propaganda abolicionista continue
sobre uma estrada de flores, ao som das fanfarras e bênçãos
aos convertidos.

Essa propaganda da persuasão foi posta fora da lei e condenada como
revolucionária. Distribuiu-se por todo o mundo oficial a senha: silêncio
ou perseguição. Proibiu-se o coração abolicionista
de bater.

Durante mais de seis anos, sob ministérios como o de Martinho Campos,
foi respeitada a mais ampla liberdade de tribuna popular e de imprensa, e
por esta válvula descarregou-se a pressão de três séculos
de martírio da raça desprotegida e sacrificada.

O Ministério 20 de Agosto quebrou esse molde democrático de
luta por uma idéia grande e generosa. Pelo seu comportamento reacionário
autorizou a violação acintosa de direito de reunião,
da liberdade de manifestação do pensamento pela palavra e pela
escrita, aprovando de um lado a perturbação dos meetings e proibindo-os,
em seguida; por outro lado, aceitando, como serviço relevante, a invasão
e destruição de tipografias.

Onde quer que a propaganda abolicionista é servida por fortes e incorruptíveis
caracteres, os defensores dos escravizados têm a vida em perigo.

O Governo manda atacar moral e fisicamente os propagandistas; abre devassas;
enlameia-lhes a vida privada, as afeições mais caras, ainda
mesmo que sobre elas já esteja colocada uma lápide mortuária;
decreta a excomunhão de todos eles das relações com o
Estado ou qualquer outro poder; em uma palavra, pela difamação,
pela ameaça, ou pelo ataque à mão armada, provoca-os
até o desespero.

Quem reler hoje, fria e refletidamente, o passado da propaganda abolicionista
não terá uma única censura a infligir a esse punhado
de heróis, que exumou do sarcófago legislativo a questão
abolicionista, a reviveu e a restituiu à meditação do
espírito e à sanção da consciência de todos
os brasileiros.

Demonstra, à luz da evidência, qual a orientação
dada pela propaganda abolicionista à alma do escravizado, essa heróica
mas serena atitude dos vencedores de Itu, passando pacificamente por entre
uma cidade aterrorizada, e isto quando lhes sangravam ainda as feridas de
um combate de que saíram triunfantes.

Mais tarde, surpreendidos pela fome em meio ao seu êxodo, fustigados
pela caçada desumana, que os farejava como a bestas feras, esses homens,
em vez de lançarem mão do roubo em nome do direito à
vida, confiam lealmente o seu destino à generalidade social. Não
há uma violência, por mais insignificante, manchando essa página
branca do êxodo de Capivari.

Os heróis dessa tragédia só derramaram sangue com altivez
e lealdade, batendo-se como beligerantes pela própria liberdade. Não
cometem o mais leve crime; defendem-se.

A essa nobreza de procedimento, a situação sanguinária
responde pela destruição do Vinte e Cinco de Março, pelo
espancamento de presos, pelo insulto a senhoras, pelo saqueio, pela ameaça
à vida de um benemérito, pelo processo monstruoso nascido de
uma provocação infame e baseado numa calúnia vil.

Os foragidos de Capivari passam por uma cidade como uma nuvem negra, é
certo, mas que nem trovejou, nem despediu raio; a polícia, os agentes
oficiais, depois de um dia de tropelias, aproveitam-se da noite com a perversidade
dos… (ilegível) jurados de Carlos IX para espalhar terror, ferimentos
e assassinatos… (ilegível) na dolorosa colisão de ser vítima,
ou defender-se, o que há de fazer a propaganda abolicionista? Deixar-se
sacrificar, como um cordeiro, ou reagir?

No caso de optar pelo sacrifício, a quem aproveitaria ele? À
pátria?

O sacrifício aproveitaria à pátria, se, de feito, a
abolição da escravidão fosse para ela um mal, ainda que
de efêmeras conseqüências.

O consenso unânime hoje, de interessados e imparciais, demonstra o
contrário.

Não há, fora do mundo político, um homem de reflexão
que queira resistir à abolição; todos procuram meio de
extinguir a escravidão com a maior brevidade.

Os contratos de serviços criando o statu liber, como medianeiro do
trabalhador reumanizado, patenteiam a predisposição dos fazendeiros
para uma conciliação razoável.

A manifestação patriótica do Exército em prol
dos cativos, aos quais reconhece o direito de haverem a sua liberdade por
meios dignos, como a greve e a retirada ordeira dos estabelecimentos em que
são torturados, dá o pensamento da classe, por excelência
conservadora das instituições.

O Direito, pela voz do Instituto dos Advogados, a religião, pela voz
dos prelados, o comércio não enfeudado a escravidão,
na sua despreocupação pelo conflito servil; todas as classes
e com elas o ramo vitalício do Poder Legislativo, todos, finalmente,
testemunham que a escravidão já não pode ter presente,
quanto mais futuro.

Neste momento decisivo do combate da humanidade contra a barbaria, da honra
nacional contra o roubo ao trabalho e à personalidade, seria, mais
que um erro, um crime, cruzar os braços e oferecer resignadamente a
cabeça ao cutelo do egoísmo negreiro.

O Gabinete pode exigir tudo dos abolicionistas, exceto a vida, ou melhor,
a honra.

A continuação dos atentados monstruosos como o do Vinte e Cinco
de Março, agravado pelo manejo imoral do flagrante de delito lavrado
em prisões, que, uma população inteira atesta, foram
efetuadas estando os pacientes tranqüilamente em suas casas; a continuação
dessa tresloucada reação, que vai enchendo a nossa história
de mártires, não pode deixar de turbar a calma abolicionista.

A violência provoca o desespero, que não reflete, que não
sabe escolher meios para a desafronta.

Não fosse a magnanimidade da propaganda maior que a insensatez do
Governo, a esta hora, ao grito de guerra da pirataria, em Campos, teria respondido
a justa indignação dos abolicionistas em todo o Império
por meios iguais ao empregado oficialmente.

Em todo caso, não é demais recorrer ao próprio interesse
de Sua Alteza, a Regente, pedindo-lhe que faça cessar a reação
desvairada de seu Governo.

O sr. Afonso Celso disse um dia no Senado que era prudente impedir que na
questão servil viessem a falar os interessados.

A imprudência do Gabinete, que julgou ganhar, por uma evasiva -o pedido
de tempo para estudo-, forças para dar batalha campal ao abolicionismo,
deu a palavra a esses interessados, que até bem pouco pareciam completamente
indiferentes ao pleito parlamentar da sua causa.

Suponho mesmo que o Ministério consiga exterminar todos os que defendem,
na imprensa, na tribuna, nos tribunais, na convivência das famílias,
os escravizados, o que poderá ele, o Ministério, contra os escravizados?
O que há de fazer: exterminá-los também?

Sua Alteza, a Regente, tem um conselheiro permanente, o sr. conde d’Eu, e
deve consultá-lo sobre se é ou não possível arrancar
da alma do escravo a esperança da liberdade, desde que ele sabe que
tem em si mesmo, na sua coragem, o meio de tornar realidade essa esperança.

Agora que ninguém discute mais por que é impossível
contestar o direito que tem o escravo de resistir à escravidão,
é um desvario forçar a mão para sufocar os apóstolos
que evangelizavam o dogma da abolição.

A escravidão hoje serve apenas para eleger senadores e deputados,
dar acesso a juízes, empregar bem a parentela das influências
políticas. Fora desse mercado oficial de posições, a
escravidão perdeu toda a sua força. Se ela ainda absolve criminosos
confessos no júri, o que parece provar que ela ainda não perdeu
todas as suas raízes populares, o fato explica-se pela organização
do pessoal dessa instituição. Os jurados são os mesmos
eleitores, que a dependência, a miséria deste país sem
trabalho, ajoujou à canga da oligarquia.

A vida da escravidão atualmente é toda e exclusivamente oficial.

Sua Alteza não achará senão mercenários para
defender a instituição maldita. A petição do Exército
preveniu-a dessa verdade.

O caminho a seguir, portanto, é bem diverso do que está sendo
aconselhado pelo Ministério. Se Sua Alteza, a Regente, não quer
condenar os exploradores de homens à morte pela fome, deve obrigar
seu Ministério a recorrer a instrumento diverso do punhal do sicário.
Já o dissemos uma vez: dentro do pântano da escravidão
não cabe o cadáver de um benemérito da abolição.
Esse corpo deslocará um volume de lama ensangüentada, em que se
afogara, não só a escravidão, mas todos os seus cúmplices.

31 out. 1887

7-XI-1887

Quem há cinqüenta e seis anos, vendo cair malferida no parlamento
brasileiro a escravidão, poderia prever que a instituição
maldita havia de sobreviver mais de meio século à maioria dos
heróis dessa primeira campanha de Direito contra a barbaria, da honestidade
nacional contra o roubo?!

Dizia-se que a lei de 7 de novembro de 1831 bastava para resolver o problema
e que dentro em vinte anos estaria de todo seca a árvore fatal, que
esteriliza o solo e sufoca a alma nacional.

Dizia-se, mas imediatamente depois, como acontece sempre nas revoluções
incompletas, os vencidos da véspera apossaram-se do poder; a reação
a mais sanhuda e antipatriótica se fez sentir, e todas as esperanças
de pátria livre dissiparam-se como sonhos.

Já em 1835 era possível adivinhar o sr. barão de Cotegipe
a fazer tilintar a bolsa da polícia secreta para comprar os mercenários
das milícias da pirataria e assalariar delatores e testemunhas falsas.
Desde então sente-se na terra esse cruor fratricida que empesta a atmosfera
nacional, e ainda agora acaba de ser renovado em S. Paulo e em Campos.

A escravidão foi desde então o único pensamento governamental
do Império.

A resistência ao Bill Aberdeen, dez anos depois, demonstrou-o cabalmente.

Durante quarenta anos, de 1831 a 1871, houve um pedacinho de horizonte iluminado
para os escravizados: aquele em que se destacou a figura de Eusébio
de Queirós deportando os negreiros.

De 1871 até estes últimos anos, ainda a escravidão pode
considerar-se e agir como a primeira força do Império.

Todas as preocupações do país se resumiam na conservação
desse hediondo regime que exauria insensivelmente a riqueza e a alma nacional,
parecendo entretanto civilizar uma e desenvolver a outra.

Hoje, porém, se ainda no poder está acampado o sr. barão
de Cotegipe, se o Governo é ainda um sobejo do tráfico, a opinião
nacional viril e enérgica condenou sem recurso, como último
tribunal, a instituição ominosa.

Já podemos de alguma sorte contemplar de cabeça erguida e com
olhar sereno os heróis de 7 de novembro de 1831 e, se não depositamos
sobre a memória deles a Coroa já entretecida com as bênçãos
de todos os escravizados redimidos, deixamos sobre ela as nossas esperanças
de que em breve eles serão os contemporâneos eternos da pátria
livre que sonharam.

Quem julga superficialmente os acontecimentos pode desanimar, vendo a série
de tropelias praticadas pela situação negra.

Em Campos, com uma perversidade que faria inveja aos patrões dos navios
do tráfico, a polícia assassina prende, processa, espaldeira,
ameaça, insulta senhoras, mente, e parece esgotar o arsenal do despotismo
e da barbaria.

A população acobardada não reage; pelo contrário,
não querendo sacrificar no altar das suas idéias a paz da terra
natal, procura meios de conciliar com os interesses da ordem o direito da
propaganda abolicionista.

Os clamores da imprensa, quer desta capital, quer da cidade oprimida, não
bastaram para fazer cessar essa perseguição, que sem força
para desarraigar uma idéia, serve apenas para flanquear de espectros
de mártires a entrada do terceiro reinado.

Parece, pois, que pelo menos o Governo ainda tem força bastante para
contrapor, a seu capricho, o seu programa de reação à
propaganda abolicionista.

A província de S. Paulo vem, porém, destruir essa falsa idéia
do poder do Governo.

Desde que o sr. Antônio Prado, ligado ao sr. João Alfredo pela
mais estreita solidariedade, se colocou diante da sua província para
impedir lá a invasão negra do Ministério, ficou demonstrado
que este não representa senão as circunstâncias momentâneas
da organização da contra-reação.

Não há muito vimos o Governo capitular diante das declarações
categóricas e radicalmente opostas à sua política; vimo-lo
recuar no caminho do extermínio, porque ele sabia que em São
Paulo teria de encontrar-se com o sr. Antônio Prado e seus amigos, que
dispõem de bastante força moral e material mesmo, não
só para repelir os ataques do Governo, quer no terreno político,
quer em outro qualquer que as circunstâncias os levassem.

Deu-se, entretanto, em S. Paulo um acontecimento gravíssimo: pela
primeira vez, depois da gloriosa República dos Palmares, os escravizados
deram prova cabal de que tinham consciência do seu direito, e deram
batalha na defesa dele.

A força policial agindo, em nome da autoridade e do Governo, foi batida;
a escravatura declarou-se beligerante aceitando dois combates.

Seria empenho de honra do Governo, se ele fosse lealmente um Governo, e não
uma facção para explorar empréstimos, créditos
e rendas de estrada de ferro, punir severamente os abolicionistas, porque
sobre eles recai a responsabilidade dessa gloriosa conversão do rebanho
secular de bestas de carga em exército regular para defesa do Direito.

Vimos, porém, que o Ministério procurou imediatamente fazer
silêncio sobre o acontecimento e limitou-se a enterrar os mortos e curar
os feridos.

Não mandou quebrar nenhuma tipografia em S. Paulo, não mandou
efetuar prisões em massa, não ordenou que se espancassem senhoras.

Em Campos, porém, tratando-se de um brasileiro ilustre, mas pobre,
de um grupo de abolicionistas glorioso, mas desprotegido, o crime, desde o
atentado contra a propriedade até o assassinato, desde as prisões
ilegais até o processo monstruoso, foi empregado como prova da força
moral do Governo e do poder do escravismo.

Estas duas políticas, porém, praticadas no mesmo momento e
sob a pressão de acontecimentos; um dos quais menos grave e mais brutalmente
punido, evidenciou a fraqueza, senão material, a fraqueza moral do
Ministério e da situação da pirataria.

Para que nós outros abolicionistas possamos dentro em pouco celebrar
o dia 7 de novembro, basta que deixemos bem assinalado que a propaganda abolicionista
pode, quer e deve proteger a vida e os bens dos seus adeptos.

Cônscios da grande responsabilidade que temos perante a história
do nosso país, temos querido somente caminhar dentro da legalidade,
quando já devíamos ter empregado os meios de que se servem os
nossos inimigos, e podíamos tê-lo feito, se antes de tudo não
fosse o nosso intuito salvar a honra de nossa pátria sem recorrer a
meios revolucionários.

Para que se saiba bem qual a influência moral da propaganda abolicionista,
mesa de comunhão do patriotismo a que hoje se sentam todos os partidos,
não é preciso que nos demoremos a dizer quanto valemos.

Estão patentes as adesões, que de toda a parte nos chegam,
desde a cadeira mais elevada da religião até ao movimento mais
heróico do escravizado.

Na imprensa servem à causa da redenção os primeiros
talentos; na política as mais fortes organizações de
homens de Estado.

Voltamo-nos para o Partido Liberal e lá está firme junto à
sua bandeira o sr. Dantas. Além disso sente-se que tudo que é
viril nesse partido é pela abolição, como prova a circular
do sr. Otaviano.

No Partido Conservador, encontramos o sr. João Alfredo, que na campanha
de 1871 ganhou o bastão do comando, arrostando pela primeira vez, frente
a frente, peito a peito, as legiões desumanas da pirataria.

O Ministério, portanto, nada pode. É um moribundo de moléstia
infecciosa, que, de propósito, se aproveita do seu mal para ver se
infecciona os seus semelhantes.

Hoje comemoramos ainda a lei de 7 de novembro, tendo sobre o espírito
o luto e a dor pela sorte dos nossos irmãos de Campos.

No próximo aniversário, porém, quer o sr. barão
de Cotegipe queira, quer não, a bandeira da abolição
tremulará no poder, honrando a memória dos heróis que
escreveram na lei o nome, que cabe ao Gabinete presidido por S. Ex.ª
ministério da pirataria.

7 nov. 1887

21-XI-1887

A Sua Alteza, a Regente

Senhora.- Enquanto ontem Vossa Alteza Imperial assistia contente e radiante,
cercada das atenções da corte e do bem-querer dos dilettanti
e dos artistas, à matinée musical do cassino, o povo campista
era violentado no seu direito de reunião e logo após perseguido
a pata de cavalo, a carga de baioneta e de sabre, a bala, nas ruas da cidade,
convertida agora em aquartelamento de assassinos, por ordem do Governo de
Vossa Alteza Imperial.

Quando começou a luta desigual entre os mercenários da pirataria
e o povo campista; aqueles armados e embalados pelo tesouro e pela caixa secreta
do Clube da Lavoura, o povo inerme, e apenas aguerrido pelo seu direito; os
abolicionistas recorreram a Vossa Alteza Imperial pedindo que justiça
fosse feita e que Vossa Alteza Imperial ordenasse ao Governo a vigência
das garantias constitucionais devidas ao cidadão.

Houve quem acreditasse (não quem escreve estas linhas) que Vossa Alteza
Imperial ia de fato providenciar; os acontecimentos se incumbiram de demonstrar
que a razão estava do lado do incrédulo.

O recurso para Vossa Alteza Imperial, em vez de melhorar, agravou a situação
dos abolicionistas de Campos.

Ontem a soldadesca desenfreada, sob o comando de dois assalariados dos senhores
de escravos de Campos, cometeu toda a espécie de crimes, continuando
assim os atentados do dia 25 de outubro. Desde os representantes do povo até
as mulheres, todos foram desacatados.

Cegos pela impunidade dos crimes anteriores, os dois bandidos, encarregados
da polícia de Campos, feriram e atentaram contra a vida dos cidadãos,
sem distinção de sexos.

A noite, todos estes fatos eram já conhecidos nesta capital, e, não
obstante, Vossa Alteza Imperial era vista num teatro, muito tranqüila,
a divertir-se gozando da lista civil amassada com as lágrimas dos escravizados
e salpicada do sangue dos nossos compatriotas.

Facilmente expliquei-me a mim mesmo essa indiferença de Vossa Alteza
Imperial pela sorte dos míseros campistas.

Os telegramas que noticiaram mais crimes ensangüentando a vossa regência,
em nome da escravidão, concluíram noticiando que o povo foi
vencido.

A tropa conseguiu mais uma vitória cobarde e miserável, vitória
ganha depois que ela, apalpando os cidadãos na entrada do teatro, certificou-se
de que eles estavam desarmados.

Vossa Alteza viu que nada havia a recear: enquanto os povos são vencidos,
os reis podem continuar a divertir-se.

O nosso século diz, por fatos, que a cabeça dos príncipes
não valem mais e muitas vezes valem menos que a cabeça dos populares;
mas nenhum príncipe se convenceu ainda desta grande verdade, por isso
que sem dificuldade eles sacrificam os povos e estes dificilmente se vingam.

Daí, esse desdém augusto pelo desrespeito às senhoras
campistas, esse menosprezo pela vida de uma população, vil e
infamemente sacrificada.

Os ministros de Vossa Alteza Imperial nos têm convencido de que é
necessário um Governo violento, para dominar o espírito de revolta
que eles, só eles, descobriram nesse cordeiro submisso, que tem na
história universal o nome de povo brasileiro.

Fizeram crer a Vossa Alteza Imperial que foi a magnanimidade de vosso augusto
pai a fonte dos protestos, que se levantam contra o Império, na tribuna
popular e na imprensa.

Vossa Alteza acreditou na explicação fraudulenta e autorizou,
por isso mesmo, a política de reação que vai ensangüentando
o país e que deixa o cidadão sem garantias para usar dos seus
direitos.

Sempre que alguém protesta, os ministros de Vossa Alteza dizem que
o fim do protesto é abalar a autoridade da regência e solapar
o trono de Bragança.

E Vossa Alteza, para firmar a autoridade regencial e consolidar o trono que
vos deve pertencer, sanciona os crimes que o Governo manda praticar.

Vossa Alteza está convencida de que matando abolicionistas, os revolucionários
oficiais, ganha muito mais em força e prestígio do que favorecendo
a causa dos escravizados, tomando a honrosa responsabilidade de continuadora
da política de 1871.

Na ingênua simplicidade feminina, Vossa Alteza pensa que para reinar
basta dispor de dinheiro, de tropa, de ministros, de câmaras e de magistratura.
Faz do Governo uma questão de forma e não de substância.

Quem são os abolicionistas da rua? pergunta Vossa Alteza. Responde-vos
o sr. barão de Cotegipe: uns anarquistas, sem eira nem beira, e sem
prestígio. E para confirmar a afirmação, o sr. presidente
do Conselho mostra o dr. Davino, acusado de haver assassinado quatro homens,
cercado das atenções da nobreza, e Carlos de Lacerda, roubado
pela força policial, obrigado a viver foragido para não pagar
com a vida o que seus companheiros estão pagando em processo monstruoso.

A evidência dos fatos confrontados convence Vossa Alteza Imperial de
que o sr. presidente do Conselho fala a verdade.

No momento atual, a força está com os que matam, ou mandam
matar escravizados e libertos. Quando eles acabam de praticar o crime, acham
logo quem os vitorie, porque são proclamados heróis do escravismo,
o que pretendem vencer pelo terror.

Devo, porém, ponderar a Vossa Alteza que o estado atento da evolução
abolicionista no país desmente o sr. barão de Cotegipe, o que
não é para admirar.

O escravismo não está fazendo senão uma reprise das
suas antigas tragédias.

Nessa mesma Santa Maria Madalena já se deu o processo Lemgruber. A
diferença única foi estar no Governo o sr. d. Pedro II e não
Vossa Alteza Imperial, pelo que a autoridade, em vez de se ver obrigada a
recuar diante dos assassinos e seus protetores, arrostou-os energicamente.

O abolicionismo, esse abolicionismo da rua, foi combatido desde o primeiro
dia com as mesmas armas de hoje, com a diferença de que o imperador
não aceitava a cumplicidade dos miseráveis.

Não obstante, o abolicionismo, vencendo o sr. Saraiva, o sr. Sinimbu,
o sr. Martinho Campos, o sr. Lafaiete, chegou a libertar províncias,
a revolver a consciência nacional, decantando as fezes da pirataria.

Cada violência contra ele praticada aumentava-lhe a força, duplicava-lhe
o prestígio. Acontecia com ele o mesmo que se dá com a poda
das árvores, em vez de enfraquecê-lo, robustecia-o.

Vossa Alteza esteve quase sempre fora do país, durante a segunda fase
da propaganda abolicionista e por isso não lhe conhece a história.
É esta a razão que vos leva a dar crédito aos vossos
ministros, prepostos desumanos da pirataria triunfante.

Não para suplicar, mas para esclarecer, cumpre aos abolicionistas
dizer a Vossa Alteza Imperial que eles não querem a anarquia.

Para saber qual o autor de um crime desconhecido, é preciso, antes
de tudo, saber a quem ele pode aproveitar.

Não é aos abolicionistas que aproveita a anarquia, nesta última
hora da escravidão.

Quando por toda a parte, no Senado, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias
Provinciais, nas Câmaras Municipais, se trabalha para extinguir a escravidão,
que lucro poderiam ter os abolicionistas em apelar para a anarquia, com risco
de perder os próprios adeptos que fizeram?

Quem é que pode pensar que a cidade de Campos abolicionista respondesse
ao sacrifício do sr. Antônio Prado pela desordem?

Demais, se nós fôssemos anarquistas, se nós quiséssemos,
antes de tudo, abalar as instituições, não nos comprometeríamos
a sustentar ministérios como os dos srs. João Alfredo e Dantas,
ambos monarquistas e muito mais dedicados à Monarquia que os fazendeiros
hipotecados, que se servem do Governo para acomodarem-se com os seus credores.

Os anarquistas, os revolucionários estão nascendo agora da
sementeira de violências e de crimes, feitos pelo Gabinete, em nome
de Vossa Alteza Imperial.

Cada campista, ao lembrar-se de que a sua cidade tem sido o campo do extermínio
de seus concidadãos, se converterá necessariamente numa força
concentrada à espera do momento da desafronta.

O povo brasileiro, ao ver a vida dos seus compatriotas menosprezada pelo
seu Governo, começará a julgar que a vida pouco vale e que não
se deve cogitar dela, quando se trata de questões que entendem com
a honra da pátria.

Quem, finalmente, está ensinando ao povo, aos abolicionistas, principalmente,
a cartilha revolucionária é o Gabinete de Vossa Alteza Imperial,
que pretende governar em nome de uma facciosa minoria, que emprega a corrupção
e a morte como elemento de seu poder.

Senhora.- Os concertos clássicos, os teatros e os ministros sanguinários
podem ser mais gratos a Vossa Alteza do que a vida de um povo; mas o que vos
posso afirmar é que na balança da História pesam muito
mais o sangue e as lágrimas das vítimas, que os bemóis
da música cortesã e a adulação dos favoritos e
válidos.

21 nov. 1887

27-II-1888

Sua Alteza Imperial Regente deve estar assombrada de quanto se tem dado
nas suas relações oficiais com o Ministério.

Para a sua delicadeza e susceptibilidade de senhora, a posição
em que a falta de pundonor do Gabinete a tem colocado, é, com certeza,
das mais aflitivas.

Sabemos que Sua Alteza tem procurado todos os meios de demonstrar ao sr.
barão de Cotegipe que lhe retirou a confiança, de que S. Ex.ª
tanto abusava em prejuízo da dinastia e da pátria.

E, por exemplo, eloqüentíssimo o procedimento regencial com relação
à aposentadoria do magistrado pernambucano.

Ficou estabelecida a praxe de, antes do despacho, o soberano entender-se
com o presidente do Conselho para combinarem as deliberações
que têm de ser tomadas pelo Poder Executivo.

Sua Alteza, porém, no despacho em que a aposentadoria do desembargador
Tertuliano tinha de ser resolvida, nada disse ao sr. presidente do Conselho;
aguardou para apresentar o telegrama desmentindo o ministro da Justiça
a hora em que as pastas são solenemente esvaziadas.

Não pode haver prova mais significativa de que Sua Alteza já
não acredita no que lhe dizem os seus ministros e de que igualmente
evita as discussões com eles, por temor de ver mascarados pelas suas
palavras injustiças e arbítrios.

Está no domínio público que o sr. Mac-Dowell, susceptibilizado
pela prova de desconfiança regencial, pelo desmentido seco de superior
para o subordinado, apresentou ao sr. presidente do Conselho a sua demissão.

O sr. barão de Cotegipe, porém, não a aceitou e constrangeu
em nome do Gabinete e da amizade a permanência do ministro da Justiça.

-Não somos Ministério de confiança, mas de resistência.
Esperemos pela Câmara, que é de fato o soberano que hoje existe.
Não se esqueçam de que somos Ministério da Regência,
em nome do Imperador.

Já outra ocasião, molestado por uma das primeiras provas de
divergência, um ministro quis retirar-se e o sr. presidente do Conselho
disse-lhe:

-É preciso olhar para o futuro, não nos demitamos, esperemos
que nos demitam.

Melhor do que nós, Sua Alteza há de saber que há da
parte do sr. barão de Cotegipe o maior empenho em conservar-se no poder
à custa de tudo.

Asseguramos como cavalheiros que, pelas versões que correm, todos
os pequenos desgostos que têm magoado Sua Alteza partem do sr. barão
de Cotegipe.

É assim que a propósito da batalha das flores, S. Ex.ª
disse que tinha destacado para Petrópolis os seus dois colegas da Fazenda
e da Agricultura -para evitar certas inconveniências.

Vem aqui de molde estudar um fenômeno que se está dando em Petrópolis.
Sua Alteza, a Regente, desembuçando o seu coração de
senhora, colocou-se à frente da meritória obra da redenção
dos cativos naquela cidade.

Era de esperar que ao sacrifício da princesa correspondesse a generosidade
geral.

Pois bem, no Correio Imperial de 21 de fevereiro, lêem-se estes expressivos
períodos, editados pelo príncipe do Grão-Pará:

«Para coroar esta bela obra (a emancipação de Petrópolis)
falta somente que os senhores de escravos, inspirando-se em sentimentos generosos,
facilitem por seu lado a emancipação diminuindo, ao menos, o
valor dos libertandos desta cidade.

Que muito que façam um pequeno sacrifício, quando todos nós
pagamos mais ou menos, diretamente, o tributo imposto pela resolução
do magno problema?

Penso que não apelaremos em vão para a alma generosa dos senhores
de escravos, e que o próprio município não tardará
muito em seguir a trilha luminosa.»

O que se depreende desses períodos é que mesmo Sua Alteza,
a Regente, encontra dificuldade na difusão dos seus sentimentos humanitários,
e isto em uma cidade que, pelo seu adiantamento e pelas suas condições,
pode perpetuamente associar-se à libertação.

A causa desse fenômeno é a notoriedade da resistência
do Gabinete à aspiração abolicionista do país.

Não comentaríamos o fato, se ele não tivesse conseqüências
funestas para Sua Alteza Imperial.

Quem lê os jornaizinhos dos príncipes, tão puros e tão
patrióticos, com uns períodos louros como os cabelos de Suas
Altezas, jornaizinhos mansos como pombas, que não sabem senão
arrulhar, mesmo quando feridas, e compara à política essa expansão
d’almas brancas, perfumosas, almas de arminho guardadas em estufa de violeta,
sente dentro de si um sentimento espontâneo de revolta contra a Regente.

Sua Alteza é mãe, não pode consentir que o espírito
de seus filhos se embeba de doutrinas falsas e sature-se de exemplos maus.

Ou o abolicionismo é a anarquia, é a falta de patriotismo e
a subversão da fortuna pública, e neste caso Sua Alteza faz
mal, consentindo que seus inocentes filhinhos sejam educados sob a influência
de semelhante doutrina; ou o abolicionismo é o primeiro sentimento
patriótico de um coração brasileiro bem formado, e neste
caso é tristíssimo que Sua Alteza, mãe, consentindo educação
abolicionista de seus filhos, dê-lhes o espetáculo de sua fraqueza,
simulando-se vencida pelo país, quando não faz senão
condescender com a falácia dos ministros, que chamam aos seus interesses
privados -opinião nacional.

Duas coisas não podem continuar com o consentimento de Sua Alteza:
o Ministério e os jornaizinhos dos príncipes.

Ou o abolicionismo é um sentimento unânime do país, e
neste caso o Ministério da escravidão não pode continuar
sem ofensa do país; ou o abolicionismo não é um ideal
nacional, e nesse caso Sua Alteza procede irregularmente permitindo a seus
filhinhos, um dos quais é herdeiro da coroa, manifestar-se contra a
vontade popular.

A lógica impõe-se à política, do mesmo modo que
a nobreza de sentimentos ao coração de Sua Alteza.

Que dirá a história da Regente, quando a vir, senhora delicada
e mãe carinhosa, ensinando a fraternidade no paço a seus filhos
e consentindo no Governo os co-réus dos assassinos que matam mulheres
em Campos, espostejam cidadãos no Rio do Peixe, e levam a sanha a esporear
cadáveres e a dar pontapés em crianças?

Como esconder a responsabilidade nestes atos, quando é vítima
deles uma autoridade?

Sua Alteza passará à História como a imagem viva da
hipocrisia, quando aliás é sabido que o seu coração
está limpo dessa culpa.

Quem lhe cria esta situação dúbia? O Ministério,
que obriga a alma da senhora a irromper do sítio posto à liberdade
da soberana.

Nos palácios é raro encontrar quem fale a verdade aos príncipes:
daí o Ministério ter podido condenar Sua Alteza à impopularidade,
que dia a dia cresce, sem que o palácio dela se aperceba talvez.

Sua Alteza não sente em derredor de si a hostilidade pública,
pela razão simples de que o colchão de incenso, em que os familiares
do paço balouçam o seu espírito, amortece-lhe o choque.

Mas a verdade é que ao ver este Ministério, que não
tem sequer prestígio para guardar o lar regencial, aparentando a mais
completa onipotência política, o povo não acredita que
Sua Alteza tenha sequer consciência da responsabilidade de sua posição.

O palácio não mede o efeito que produz a notícia de
que um primo irmão de Sua Alteza, a Regente, foi condenado como gatuno;
mas o Ministério tem o dever de evitar que tais fatos cheguem a impor-se
à publicidade.

Ninguém dirá que não havia meio de evitar esse escândalo
universal.

Outro ministério qualquer teria tomado providências no sentido
de, pelo menos, deixar o espírito público em dúvida.

Os reis, mais do que os outros homens, precisam de reputação
pura; as dinastias, como a mulher de César, não podem ser suspeitadas.

Com relação ao príncipe d. Pedro Augusto ainda é
maior a responsabilidade do Ministério.

Em todo o país sabe-se hoje que há desconfiança da parte
dos herdeiros presuntivos contra o príncipe d. Pedro.

Pode ser isso exato, pode não o ser. Cumpria ao Ministério
vir ao encontro do boato e dissipar a impressão causada, tanto mais
que é notória a existência do Partido Republicano, solidamente
organizado em duas províncias que têm a hegemonia do Sul -o Rio
Grande e São Paulo.

Dando como latente a idéia da formação de um Partido
Constituinte, de que é pródromo o sério movimento das
câmaras municipais, é claro que a notícia da falta de
solidariedade de vistas da família imperial acoroçoará
a indiferença pela sorte das instituições monárquicas.

Entretanto, o Ministério todo voltado para o Val de Palmas, abandona
Sua Alteza à corrente dos acontecimentos e acoberta-se com a liberdade
do Poder Moderador, para não assumir a responsabilidade de sua ominosa
conspiração.

Sua Alteza não tinha ainda visto nada do que lhe deixamos aqui revelado
e entretanto é preciso que veja e medite.

O Ministério está deliberado a cometer todos os desatinos imagináveis
para conservar-se no poder.

Provoca a indignação popular por todos os meios para forçar
Sua Alteza a sustentá-lo por brio diante de uma capitulação.

A respeito do abolicionismo é preciso que nós outros declaremos:
não estamos resolvidos a tolerar mais a impunidade de crimes como os
de Campos, Santa Maria Madalena, Rio do Peixe e os que se projetam em Pindamonhangaba.

Alguém nos há de pagar esse sangue derramado acintosamente,
ou o nosso sangue se irá misturar com o das vítimas.

É preciso, por bem de si mesma, que Sua Alteza apresente ao Ministério
o seu ultimatum.

Por meio de estímulo à dignidade dos ministros, o Gabinete
não se retirará.

Um ministério que, desmentido secamente por uma senhora que lhe exibe
sem exórdio um telegrama, onde se diz que não é exato
o que um decreto diz; um ministério que se atreve a ser negreiro sem
rebuço diante de uma soberana, que educa seus filhos ostensivamente
em opiniões contrárias, e mais: pratica pessoalmente a caridade
abolicionista; um ministério que tem consciência do abandono
de seus correligionários e entretanto vende a dignidade pessoal, o
pundonor das funções, por mais dois meses de poder; não
pode ser tratado fidalgamente.

É preciso que Sua Alteza seja realmente soberana e diga francamente
ao sr. barão de Cotegipe que precisa de chamar um ministério
que possa ocupar-se francamente da questão mais momentosa do país.

O meio é simples; o sr. barão de Cotegipe disse: a lei ou o
sr. Dantas; por outra: escravidão franca, ou abolicionismo sem máscara.

Lembre Sua Alteza a S. Ex.ª as suas próprias palavras, e salve-se
com a honra da pátria.

27 fev. 1888

12-III-1888

Senhora

Vossa Alteza deve estar contentíssima com a brusca mudança
que se operou no espírito público.

A tempestade que se abobadava sobre o vosso futuro, sinistra e ameaçadora,
desfez-se como por encanto. O mar das paixões, que desobedeceu heroicamente
ao quos ego do arbítrio, abonançou-se ao vosso sorriso de estima
pela opinião.

Vistes, Senhora, qual a eficácia do Governo de acordo com a vontade
nacional.

Se os reis soubessem como o povo é bom, sacrificá-lo-iam muito
menos; prefeririam o apoio leal, desinteressado das massas ao sufrágio
interesseiro de certas classes, sufrágio que exige sempre como preço
o holocausto dos direitos populares e que não raras vezes comprometem
as dinastias.

Os empreiteiros de tirania hão de dizer que fizestes mal entregando
ao clamor público os homens que a vergonha nacional acusava de haverem
imolado aos seus interesses a dignidade do Governo e do povo.

Sabemos que não é dos estilos, principalmente entre nós,
atender ao povo, mas nem por isso deixa de ser verdade que num sistema representativo,
em que todos os poderes são simplesmente delegações da
nação, o soberano só é verdadeiramente constitucional,
quando reconhece a existência ativa e real da soberania popular.

Atender ao povo, longe de desmerecer, prestigia o Governo.

Querer antepor à opinião os caprichos pessoais ou de uma facção;
decidir arbitrariamente que não há razão, senão
nos que estão no poder; que só os ministros falam a verdade
e respeitam a lei; que fora do mundo oficial está a anarquia, a conspiração
contra as instituições; é mil vezes mais perigoso do
que respeitar a vontade manifesta da nação, mesmo quando, já
cansada de pedir, ela começa a exigir.

Observai através da História, Senhora, que o povo só
se impacienta depois de sofrer resignadamente longos anos. Nunca se viu formar-se
instantaneamente uma opinião, que ameace instituições.

Demais, há no povo uma força, que por isso mesmo que lhe garante
a vitória, preserva-o da sofreguidão injusta: -é o bom
senso.

Sempre que o povo combate uma instituição, é que ela
é realmente má e deve desaparecer.

O Ministério Cotegipe foi violentamente combatido, porque ele representava
uma instituição degradante: -a escravidão.

A ousadia de propor-se um ministério a resistir a mais acentuada aspiração
de um povo, demonstrava que ele só podia fazer um Governo de facção.

Obcecado pela idéia fixa de vencer o abolicionismo, o Gabinete comprometeu
sua política e a sua administração.

Quanto ele fez devia fatalmente praticar.

Que classe podia respeitar um ministério, organizado expressamente
para desacreditar os sentimentos humanitários de um povo?

Vossa Alteza viu que o Ministério desrespeitou desde o Senado até
ao último cidadão brasileiro.

Disse ao Senado: não faço caso dos teus votos.

Disse à Câmara: é para mim a mais fútil das burlas
o teu direito de interpelação.

Disse ao seu partido: tu para mim representas a vontade do sr. Paulino e
o interesse dos meus parentes e afilhados.

Disse ao Exército: cala-te ou persigo-te.

Disse à Marinha: prefiro a onipotência da minha polícia
ao rubor do teu brio.

Disse à imprensa: eu só quero de ti a circulação
da calúnia, a tiragem da difamação.

Disse ao povo: eu só quero de ti a obediência canina; silêncio
ou espingardeio-te.

Aos que acusarem Vossa Alteza de haver obedecido à intimação
da praça pública, respondei que estáveis numa contingência
dificílima: ou receber a intimação do direito, ou a intimação
do despotismo; e preferistes a primeira.

Se o soberano devesse fechar sistematicamente os ouvidos ao povo, este deveria
considerá-lo sempre um inimigo, e estaria fraudado o princípio
constitucional do Poder Moderador.

A praça pública não é o caminho regular, concordamos,
porém, o voto do parlamento não é o caminho único,
tanto assim que ficou ao Poder Moderador liberdade inteira para nomear e demitir
ministério.

O direito de dissolução é o reconhecimento da opinião
extraparlamentar.

Vossa Alteza inaugurou um sistema que parece dar maior responsabilidade à
Coroa, mas que na realidade a diminui.

O povo, Senhora, não é o insensato, o leviano pintado pelos
exploradores do poder. É o bom senso em grande, é a justiça
em massa.

Os parlamentos podem derrubar Gambetta, o povo o adora e o sustenta, e mesmo
depois da sua morte, deixa-se dirigir pelo seu pensamento.

Lá está na Espanha o exemplo mais vivo do que é a alma
popular.

Essa bela e meiga viúva, que ficou ameaçada pela herança
de Afonso XII, porque ouviu de preferência o povo, consolidou o seu
trono.

O povo quer sentir nos atos do Governo a solidariedade do seu soberano com
os direitos populares.

Se houvésseis, Senhora, adiado a demissão do Ministério
Cotegipe, o povo não agradeceria; ao contrário, guardaria contra
Vossa Alteza ressentimento, por entender que pesa mais nos conselhos da Coroa
uma aposentadoria, ou qualquer outro pretexto, que o sangue e o sacrifício
dos cidadãos.

Depois de saber que Vossa Alteza havia demitido, heróica, digna, patrioticamente
esse Ministério maldito, que emoldurou em dois anos de Governo todas
as violências de três séculos de escravidão, continuei
a ler a Legenda dos Séculos e reli com o espírito e o coração
essas páginas triunfais do Eviradnus.

Estremeci, Senhora, diante daquele descuido de Mahand, adormecida entre os
dois conspiradores; lamentei o terror que a fez permitir que entrassem no
castelo misterioso da sagração do soberano esses intrusos sem
alma, que a bajulavam para imolarem-na, mais comodamente, nos seus interesses
e apoderarem-se da coroa que ela não tinha tido coragem de colocar
sozinha na sua cabeça, mediante algumas horas de sacrifício.

Vossa Alteza conhece o final dessa tragédia.

Os dois conspiradores têm desdobrado os corações e posto
pelo avesso as almas torpes e miseráveis.

Sente-se um rumor: um frêmito das armaduras das estátuas dos
antigos guerreiros.

Os bandidos atemorizam-se, mas volvem a confiança no êxito do
crime. Quem podia ressuscitar aqueles bronzes? Quem poderia chamar à
vida aquela morte dupla dos heróis, representada pela decomposição
do corpo e pela fusão brônzea das formas!

Mas o silêncio, a solidão povoam-se de súbito com o aparecimento
de um homem. É um velho guerreiro, é Eviradnus, que, tendo percebido
a conspiração, veio guardar com a sua lealdade a princesa e
a pátria, igualmente ameaçadas.

Que indescritível, fora dos versos do poeta divino, essa luta de dois
contra um, luta em que dois soberanos jogam a vida por um crime e um herói
resgata a pátria pela vida.

Ao primeiro assalto, cai um dos celerados. Mas o outro, sente-se agora forte,
está armado, vai varar o coração do herói, que
não dispõe já da espada.

Passa pelo espírito de Eviradnus um relâmpago divino. Jaz a
seus pés o cadáver do rei. Agarra-o pelas pernas, maneja-o,
converte-o numa formidável massa e consegue fulminar o adversário
e sepultar na torrente que passa os dois reis justiçados.

No dia seguinte, Mahand, que devia ser recebida pela maldição
eterna da pátria, é aclamada a soberana altiva e heróica,
a esperança nacional.

Ao terminar a leitura do Eviradnus, eu perguntei a mim mesmo, porque, nesse
momento, sentia impressão mais viva do que outrora.

E a reflexão disse-me:

É que há semelhança entre os perigos da marquesa de
Lurácia e da princesa herdeira da coroa do Brasil.

Ela devia entrar só nesse castelo secular onde o povo exige que ela
se coroe rainha -a abolição.

Teve receio e chamou para seus companheiros os srs. Cotegipe e Paulino -os
dois reis do escravismo.

Uma vez senhores de confiança de Vossa Alteza, eles conspiravam para
arrebatar-lhe a coroa, e o teriam feito se o sr. João Alfredo, o Eviradnus
parlamentar, não tivesse a tempo percebido o jogo sinistro e não
se tivesse a tempo armado com o cadáver do sr. barão de Cotegipe
para fulminar o rei sobrevivente do escravismo, o sr. Paulino de Sousa.

Vossa Alteza está salva; pode reinar utilmente sobre este povo, digno
de um governo honesto e patriótico.

Nunca nenhuma rainha teve diante de si mais glorioso trono. O que espera
Vossa Alteza é feito com os corações do que vos construiu
a pátria com o seu suor e com o seu sangue.

12 mar. 1888

19-III-1888

Depois das grandes enchentes, os rios costumam carregar no seu dorso abundante
espumarada.

É o resíduo das inundações, a vaza dos enxurros
das montanhas, condensados nos pântanos e brejais.

Essa espumarada não quer dizer que a enchente continua; que a agitação
tempestuosa perdura.

Igual fenômeno se está dando agora no rio da opinião.
Ainda bóiam á tona da opinião as espumas produzidas pelo
embate das paixões violentas, fustigadas pelos desmandos e arbítrios
do Ministério passado; mas, dentro em pouco, esperamos, veremos correr
límpida e tranqüila, transparente e risonha, a corrente das aspirações
nacionais.

O Ministério 10 de Março é felizmente composto de homens
já experimentados no Governo; saberá dissipar pelos seus atos
as dúvidas e apreensões que sobreviveram à gloriosa satisfação
dada pela Regência à soberania da vontade nacional.

Não há espírito sério que se deixe convencer
de que a boa política seria provocar uma crise política para
chegar por ela à resolução do problema servil.

Os que têm estudado a história parlamentar de nosso país
sabem que nunca nenhum partido tomou à sua conta intransigentemente
a extinção da escravidão.

Nenhum partido fez da abolição o seu programa de ação,
o dogma fundamental da sua igreja política.

A reforma do elemento servil foi sempre um capítulo de programa de
oposição, mas nunca absorveu os espíritos de modo a se
impor como primeira das suas obrigações governamentais.

O Partido Liberal duas vezes, em 1868 e 1869, inscreveu na sua bandeira uma
esperança para os escravizados; mas, subindo ao poder em 1878, considerou
questão resolvida pela lei de 1871 o problema servil e capitulou como
anarquia a propaganda em favor dos escravizados.

Os dois chefes mais eminentes então, os srs. Sinimbu e Saraiva, deixaram
bem claro que o Partido Liberal não tinha nenhum compromisso urgente
e imperioso para com os escravizados, e acentuaram que não passariam
nunca dos meios indiretos para chegar a essa reforma.

Não se entendeu no Partido Liberal que a reforma servil merecesse
sacrifício, e a prova é que, tendo aquela situação
devorado vários ministérios, nunca fez crise para impor o trabalho
em prol daquela reforma.

Pelo contrário: não só demitiu o sr. Dantas, combinando-se
para esse fim com os negreiros conservadores e os partidários pessoalmente
infensos a S. Ex.ª, como sustentaram depois o sr. Saraiva, resignando-se
a guardar o poder e assumindo nele a responsabilidade da realização
de alheias idéias.

No passado, como no presente, o Partido Liberal nunca se serviu do escravo
senão para arma de oposição.

É assim que Nunes Machado, discutindo a lei de repressão do
tráfico, declarava-se coacto, e o sr. Joaquim Nabuco, apesar dos seus
grandes talentos e prestígio, nunca recebeu da situação
passada nenhuma prova de solidariedade partidária. O moço deputado
foi sempre considerado adiantado demais, ainda mesmo quando apresentava, como
o fez na sessão legislativa de 1880, o projeto de abolição
no prazo de dez anos.

O Partido Liberal teve três dissoluções, e, não
obstante, nunca conseguiu maioria abolicionista, nem mesmo quando foi conhecido
o pacto do sr. Dantas.

Arrogar-se um partido o direito à realização de uma
idéia, a favor da qual não trabalhou nunca no Governo e, quando
se viu forçado a convertê-la em projeto, vazou-a sempre nos moldes
os mais acanhados, é pretensão demasiadamente aventurosa.

Se os programas dos partidos se discriminam por atos e não por palavras,
é mais razoável confiar ao Partido Conservador a solução
do problema servil. Foi ele que cortou os dois istmos que prendiam nossa pátria
ao continente da pirataria -o tráfico e a maternidade escrava; é
justo que seja ele que rasgue a franca navegação da nau do Estado
pelo oceano da igualdade civil.

Sua Alteza, a Regente, deu a maior prova de bom senso governamental ouvindo
os clamores populares e confiando ao atual presidente do Conselho a missão
de os fazer ouvir pela lei.

Quem conhece a história da extinção do tráfico
entre nós sabe qual o perigo de consentir que se torne política
a sagrada questão social da extinção da escravidão.

Todas as humilhações com que fomos justiçados durante
o conflito Aberdeen são o resultado desse grave erro político.

As lutas de partido foram a causa de se haver prolongado por tantos anos
a agonia da pirataria, que, morrendo afinal ao ar livre, infeccionou ainda
por mais de trinta anos a nossa existência de povo civilizado.

Se não houvesse uma grande série de considerações
históricas para justificar o ato do Poder Moderador chamando o sr.
João Alfredo, bastaria uma simples consideração de ordem
moral: seria um atentado contra a própria consciência augusta,
convencida de que a escravidão é uma monstruosidade, e mais,
de que a sua permanência estava perturbando o país em todas as
suas relações políticas, econômicas e morais, adiar
por mera questão de fórmula a reparação devida
à vítima e a segurança devida ao povo e às instituições.

O que nós outros sabemos historicamente é que a morte da escravidão
no país se operou como a destruição do feudalismo em
França, como a decretação do sistema representativo em
Inglaterra, e subseqüentemente em todo o mundo, pela aliança do
soberano com o povo.

É uma revolução de cima para baixo.

O povo não teria força por si só para realizar a abolição
da escravidão; encontrava, contrariando as suas aspirações,
a facção essencialmente despótica dos proprietários
de escravizados.

Republicanos, liberais, conservadores são igualmente réus do
crime do roubo de almas, como o Canning chamou à escravidão.

Nenhuma legislatura sentiu-se espontaneamente forte para propor o problema.

Foi extraparlamentar a força de Eusébio de Queirós,
a força de Rio Branco, a força de Dantas, a força de
João Alfredo. O povo pela propaganda, o imperador pela escolha dos
homens; eis os beneméritos da abolição da escravidão.
Só depois que esses dois poderes se manifestam, até abusivamente,
é que o parlamento se move.

O Partido Liberal não pode reclamar o poder em nome da Abolição,
ainda por outra razão: a sua incapacidade absoluta para reformar democraticamente.
Aí está, para não ir muito longe, a sua lei de 1885,
contra a escravidão, e a sua lei eleitoral de 1881, contra o cidadão.

Infelizmente, apesar de todos os seus sacrifícios, o Partido Liberal,
por isso mesmo que é uma excrescência política, só
sabe fazer democracia de oposição. Ele há de ser eternamente
o revolucionário contra a lei de 3 de dezembro, que mais tarde dá
toda a expansão tirânica a essa mesma lei.

Para apreciar bem qual a timidez democrática do Partido Liberal, quando
legisla, basta confrontar os projetos liberais da sessão legislativa
com os conservadores, o ano passado; a atitude dos chefes liberais com a dos
conservadores.

Os conservadores intimam o sr. barão de Cotegipe a dar uma solução
ao problema servil, na sessão deste ano; os liberais negam urgência
ao projeto do sr. Dantas. Mais ainda: na questão dos avisos reescravizadores,
em vez de votar unido, houve liberais eminentes, que, por mera questão
de fórmula, negaram o seu voto, condenando assim milhares de homens
ao cativeiro por um novo tráfico: a pirataria da praxe.

Mas, dir-se-á que também os conservadores, que nós hoje
aplaudimos, cometeram, alguns deles, o mesmo erro.

Não é lógica a alegação. O Partido Conservador
estava no poder e alguns de seus chefes sentiam-se com força para realizar,
mais depressa que os liberais, a reforma. Era, pois, natural que não
abrissem mão da situação em favor dos seus adversários,
tanto mais que era palmar a certeza de que, não se julgando em perigo
de perder na História o primeiro lugar, os liberais ainda se conservaram
desunidos.

Ninguém diria que o sr. Saraiva queria confessar-se apto para resolver
o problema servil instantaneamente, quando declarava que só votaria,
sobre esse assunto, projeto vindo da Câmara dos Deputados, até
então dedicada ao Governo Cotegipe.

É verdade que, à primeira vista, a manobra dos conservadores
abolicionistas não foi compreendida, e nós mesmos os combatemos.
Desde, porém, que entraram as férias parlamentares, todos os
que sabiam do acordo Prado-João Alfredo convenceram-se de que houve
a mais sábia estratégia nas retiradas desses estadistas.

Para nós outros que entendemos que o bastão de marechal ganha-se
no campo da batalha e não escrevendo proclamações e recolhendo-se
a quartéis na hora do combate, o ato de Sua Alteza, a Regente, é
o mais correto.

Sua Alteza deu a única solução positiva, que se compadecia
com a situação do problema servil.

Se tivéssemos direito a aconselhar o Partido Liberal, nós lhe
diríamos que só lhe resta um caminho a seguir -o que lhe foi
apontado pelo sr. Dantas: apoiar francamente o Ministério 10 de Março,
dar-lhe todo o prestígio para resolver o problema servil.

É preciso não fazer questão da pessoa, mesmo porque
todo o país duvida que os liberais encarregassem de resolver o problema
ao único liberal indicado para essa grande obra, o sr. Dantas.

Não é de hoje que a democracia se irrita por ver destacar-se
demais da massa um dos seus concidadãos e na sua susceptibilidade condena
o justo ao ostracismo.

Os liberais sinceramente abolicionistas viram que se deu no seu partido o
mesmo que no Partido Conservador: o sr. Saraiva foi e é para o sr.
Dantas o mesmo que o sr. Paulino de Sousa foi e é para o sr. João
Alfredo.

Quando os partidos se dividem, como se dividiram pela idéia da abolição,
fica provado que a idéia não é propriedade de nenhum
deles.

Com relação à eleição direta, houve divergências
em ambos os partidos; porém não cavaram propriamente dissidências;
ninguém contestou ao Partido Liberal o direito à reforma, que
ele realizou, louvado seja Deus, de modo a limpar a mão à parede.

A idéia da libertação da escravatura é grande
demais para se enquadrar nos estreitos moldes dos partidos atuais do Brasil,
meros ajuntamentos oligárquicos, organizados para explorar o Estado
em substituição da exploração do negro.

É preciso ver mais longe e em horizonte mais largo. A extinção
da escravidão é uma idéia nacional, pertence ao povo
brasileiro, e todo estadista tem competência para realizá-la.

Todos os partidos têm-lhe fornecido grandes propagandistas e mártires.
Em setenta e um no parlamento tinham o mesmo ardor Inhomirim e Sousa Franco;
agora nesta última fase, é impossível esconder, mesmo
com a sombra de Rui Barbosa e Nabuco, a pessoa de Severino Ribeiro e no Senado,
toda a luz do sr. Dantas não foi mais agradável do que essa
luz suave e templária da modéstia do sr. senador Jaguaribe.

É preciso que o povo saiba que o sr. João Alfredo fez o maior
sacrifício calando-se, condenando-se ao segundo plano.

É que S. Ex.ª viu desde 1875 até 1885 triunfando parlamentarmente
a dissidência de 1871, e rebelar-se seria sacrificar a vitória.
E porque não queria servir a sua pessoa, mas a sua pátria, S.
Ex.ª fez como Régulo que, fingindo obedecer aos inimigos, dava
com o seu exemplo coragem aos seus compatriotas.

Temos fé em que o Ministério 10 de Março crescerá
dia a dia na estima e no respeito do povo. Ele o merece, porque se inspira
no mais santo amor da pátria e na mais evangélica piedade: a
piedade pelos cativos.

19 mar. 1888

7-IV-1888

Ângelo

E assim que o tratamos a ele, o bom, o grande.

Alma sem rugas, não se lhe refolham ódios nem pretensões.
Quanto mais cresce mais se democratiza; quanto mais sofre mais ama.

Só lhe conhecemos uma vaidade: a de não ter precisado nascer
nestas paragens do Cruzeiro do Sul para ser um dos primeiros, dos mais beneméritos
brasileiros.

Poeta do lápis, as suas musas são a justiça, a liberdade,
a fraternidade.

Tem nas suas veias o sangue de todas as raças; faz do seu coração
o depósito dos sofrimentos de todas as classes, enxameiam-se no seu
cérebro todos os ideais de progresso e de perfectibilidade.

Não é de ninguém e é de todos. Dá-se espontaneamente
e não se deixa domar nem por ameaças, nem pelas maiores angústias.

Não sabe advogar; evangeliza. Causa que ele abrace, leva-lhe a alma
e coração.

Não conhece geografia para fazer o bem. O seu coração
é pátria para todos os que sofrem.

Não conhece lei nenhuma que possa preterir a da solidariedade humana.

Vive fora de todos os partidos para poder castigar, ou servir a todos.

Pratica o bem pelo bem.

Não quer que lhe reconheçam o sacrifício: tem o pudor
das suas amarguras. A sua mão esquerda nunca soube o que estava fazendo
a mão direita. Por isso mesmo, à proporção que
ele ia construindo os alicerces para o Brasil novo, ia cavando a mina do seu
lar.

Pai, perfilhou os cativos, e dividiu com eles o pão, conquistado pelo
seu trabalho genial, ao ponto de quase deixar com fome os filhos legítimos,
tão pequeno era o quinhão que lhes tocava.

Nunca vi levar mais serenamente aos lábios a taça de fel e
bebê-la com tanta coragem. O estoicismo não teve na propaganda
abolicionista melhor representante.

Quando o escravismo pretendeu levantar a opinião, chamando-o estrangeiro
audaz, hóspede ingrato, o Ângelo sorria-se e limitava-se a dizer:
bom, enquanto não me deportam, eu aproveito o tempo para dizer o que
sinto e o que penso. E é preciso dizer logo de uma vez, em grosso,
o que teria de dizer por meias palavras e por circunlóquios.

Quando lhe guerrearam o jornal no interior, quando pretenderam reduzi-lo
pela fome, alguns amigos tímidos quiseram que ele atenuasse os seus
ataques à escravidão.

Ele nem respondeu.

Quanto mais perseguido, mais intemerato.

Não há meio de o fazer desviar uma linha da sua carreira. Para
ele os princípios são outros tantos dogmas.

Na imprensa, não tem amigos nem inimigos. Conhece apenas ações.
É um magistrado severo quando empunha o lápis.

Debruçado sobre a pedra, que lhe vai receber o espírito, transfigura-se.

Ele que é uma pomba, converte-se num tigre, quando é preciso
acometer.

Só conhece para a imprensa, para o jornalista, uma responsabilidade
que não deve ser arrostada: a de não dizer a verdade.

-Se tu fosses deportado, o que farias?

-A História do Brasil ilustrada, -respondeu tranqüilamente.

Não desanima; não hesita; não gradua o seu fervor. Uma
vez na luta, só conhece dois deveres: vencer ou morrer.

Ângelo não é só um propagandista, é um
apóstolo. Não defende só, ama realmente os negros. Comove-se
diante dos seus sofrimentos, indigna-se como um irmão, como um pai,
quando os vê maltratados.

O Brasil deve-lhe tanto que só poderia remunerá-lo em parte,
se o seu parlamento decretasse a nacionalização de Ângelo,
como o testemunho da gratidão nacional.

O presente já o estima; o futuro há de adorá-lo.

Tenho orgulho em abraçá-lo como ao irmão mais velho.

7 abr. 1888

23-IV-1888

Abolicionistas no seu posto

Está ganha a primeira batalha abolicionista em favor dos escravizados.

O sr. Ferreira Viana saiu das urnas coroado pela mais gloriosa manifestação
de uniformidade de vistas da opinião com o programa do Gabinete 10
de Março.

O eleitorado declarou-se francamente abolicionista. A votação,
recaindo nos nomes do ministro da Justiça e de Quintino Bocaiúva,
deu ao pleito o caráter de uma aclamação à santa
causa dos cativos.

A maioria extraordinária obtida pelo sr. Ferreira Viana quer simplesmente
dizer que o povo quer já ver feita lei a aspiração que
mais o preocupa neste momento.

O Partido Republicano, apresentando a candidatura de Quintino Bocaiúva,
quis somente dizer que ele, atualmente abolicionista também, não
se julgava, entretanto, obrigado à trégua partidária,
que o Partido Liberal e abolicionistas de todos os matizes entenderam necessária.

Travado, porém, o pleito, o Partido Republicano limitou-se a dar mais
uma vez a Quintino Bocaiúva testemunho de sua estima e deixou a eleição
correr serenamente no álveo abolicionista.

Dir-se-ia que todo o eleitorado havia lido o Abolicionismo do sr. Joaquim
Nabuco e cada partido praticava a lição haurida nas páginas
do livro do ilustre doutrinador.

São de S. Ex.ª as seguintes reflexões:

«É com efeito difícil hoje a um liberal ou conservador,
convencido dos princípios cardeais do desenvolvimento social moderno
e do direito inato -no estado de civilização- de cada homem
à sua liberdade pessoal, e deve sê-lo muito mais para um republicano,
fazer parte homogênea de organizações em cujo credo a
mesma natureza humana pode servir para base da democracia e da escravidão,
conferir a um indivíduo, ao mesmo tempo, o direito de tomar parte no
Governo do país e o de manter outros indivíduos, porque os comprou
ou os herdou -em abjecta subserviência forçada durante toda a
vida.»

Segundo o sr. Joaquim Nabuco e a boa razão, nenhum homem político,
de orientação moderna, pode ater-se dentro de tais organizações.

O republicano, porém, ainda tem mais um dever, que o escritor lhe
aponta, quando lhe define o que seja o abolicionismo, nestes termos:

«O Abolicionismo num país de escravos é para o Republicano
de razão a República oportunista, a que pede o que pode conseguir
e o que mais precisa e não se esteriliza a querer antecipar uma ordem
de coisas da qual o país só pode tirar benefícios reais
quando nele não houver mais senhores.»

Em seguida S. Ex.ª acrescenta:

«Todos os três partidos baseiam as suas aspirações
políticas sobre um estado social, cujo nivelamento não os afeta;
o abolicionismo, pelo contrário, começa pelo princípio,
e, antes de discutir qual o melhor modo para um povo livre de governar-se
a si mesmo -é essa a questão que divide os outros- trata de
tornar esse povo -livre, aterrando o imenso abismo, que separa as duas castas
sociais em que ele se extrema.

Nesse sentido o abolicionismo deverá ser a escola primária
de todos os partidos, o alfabeto da nossa política, mas não
o é; por um curioso anacronismo houve um Partido Republicano muito
antes de existir uma opinião abolicionista, e daí a principal
razão por que essa política é uma Babel, na qual ninguém
se entende.»

Esmiuçando bem o que devia ser o abolicionismo entre os partidos existentes,
S. Ex.ª entrou em indagações para saber se seria ou não
provável a organização de um partido abolicionista no
Brasil, como aconteceu nos Estados Unidos, e chegou a esta conclusão:

«É natural que isto aconteça no Brasil; mas é
possível também que -em vez de fundir-se num só partido
por causa de grandes divergências internas entre liberais, conservadores
e republicanos- o abolicionismo venha a trabalhar os três partidos de
forma a cindi-los sempre que seja preciso -como foi em 1871 para a passagem
da Lei Rio Branco- reunir os elementos progressistas de cada um numa cooperação
desinteressada e transitória, numa aliança política limitada
a certo fim; ou que venha mesmo a decompor e reconstituir diversamente os
partidos existentes, sem todavia formar um partido único e homogêneo.»

Durante o pleito eleitoral praticaram religiosamente essas previsões
do sr. Joaquim Nabuco todos aqueles que votaram no sr. Ferreira Viana.

O eleitorado compreendeu que a divisa era abolicionista sem partido e daí
muito naturalmente considerar-se um erro político desviar votos do
candidato que podia como Governo realizar na lei a aspiração
nacional.

Considerou-se, como nós também consideramos, indébita
a intervenção da política abstrata nesta hora em que
o Governo se apresentava às urnas para robustecer-se com a opinião
para decretar o primeiro direito do homem -a sua liberdade pessoal.

Entendeu-se e muito bem que nenhum homem, por maior que ele seja, por mais
títulos que ele tenha à gratidão nacional, tem o direito
de adiar por um minuto a hora da liberdade pessoal de seu semelhante.

O candidato republicano, bem o sabemos, não tinha esse propósito;
mas, concorrendo às urnas para disputar a prioridade da forma de Governo,
se vencesse, teria obrigado o Governo a tratar concomitantemente de acautelar
a liberdade dos cativos dos assaltos dos senhores e o trono, do ataque dos
seus adversários intransigentes.

Ora, se é legítimo que o republicano anteponha a forma de Governo
à libertação de seus concidadãos escravizados,
é também natural que o monarquista o faça, e, por conseqüência,
o esquecimento do abolicionismo da parte do primeiro era igualmente natural
da parte do segundo.

Na organização do pleito eleitoral a cooperação
da Confederação Abolicionista foi, admitidos os princípios
do sr. Joaquim Nabuco, a mais lógica e patriótica.

São imprudentes, insensatas mesmo, todas as reflexões em contrário.

A Confederação Abolicionista entendeu que o momento não
era nem do Partido Conservador, nem do Partido Liberal, nem do Partido Republicano;
era dos escravos; e, cumprindo o seu dever, esforçou-se por afastar
das urnas toda a idéia que pudesse perturbar o triunfo claro, e praticamente
provado, do abolicionismo.

Apresentado em nome da República o sr. Quintino Bocaiúva, a
Confederação não podia sufragar-lhe a candidatura sem
atraiçoar compromissos anteriores com abolicionistas que são
sinceramente monarquistas.

Um destes é o sr. Joaquim Nabuco, o nome mais prestigioso do abolicionismo,
dentro e fora do país, onde S. Ex.ª o tem ido levar para ser coroado
pelos aplausos do mundo civilizado, que vê em S. Ex.ª a encarnação
do abolicionismo no Brasil.

A Confederação Abolicionista, essa mesma corporação
gloriosa que várias vezes se encontrou abandonada, pelos homens políticos,
em risco de vida na praça pública; essa corporação
que, sem imunidades parlamentares e respondendo por si e por todos, os presentes,
como os ausentes; os soldados da linha negra, como os diplomatas que iam buscar
lá fora a aliança moral da civilização e da religião
para a nossa santa causa -viu-se atacada com a mesma ferocidade pelo arbítrio
sanguinário de liberais e conservadores, e nunca hesitou em dizer a
verdade e arrostar os ódios de uns e de outros, lamentou sinceramente
não poder cooperar para a vitória de Quintino Bocaiúva,
que ela conta no número dos seus beneméritos.

Mas antes de tudo, era preciso salvar os princípios e por isso os
abolicionistas sacrificaram o coração.

Não nega a Confederação Abolicionista que o imortal
jornalista republicano foi, desde o dia em que se dedicou à propaganda
em favor dos cativos, um batalhador que nunca descansou, que nunca escolheu
campo de combate, nem posto no exército beligerante. Tanto lhe fazia
pegar da arma para entrar na fileira, como dar plano entre os generais. Era
tão grande no quartel-general, como na linha de atiradores. Não
se lhe conhecia o valor pelas dragonas, mas pela intrepidez.

Entretanto, a Confederação viu-se forçada a não
preferi-lo nas urnas ao ministro da Justiça.

Por esquecimento dos seus grandes serviços? Não; por coerência
com os seus princípios.

O pensamento da Confederação foi homologado pelo eleitorado.
Nas guerras em que entram aliados, é fato vulgar ver revezarem-se nas
funções de generalíssimo generais das diversas nacionalidades
aliadas. Dá-se o mesmo no abolicionismo, que é um exército
formado pela tríplice aliança de republicanos, conservadores
e liberais.

Assim como os exércitos se não desnacionalizam por servirem
debaixo de ordens de generalíssimo estrangeiro, a Confederação
Abolicionista não se descaracteriza por servir a este ou àquele
partido na luta da abolição.

Considerá-la bagagem conservadora ou liberal, por servir ao sr. Dantas
ou ao sr. João Alfredo, é de duas uma: não ter pela dignidade
alheia o respeito que se quer impor pela própria; ou, por egoísmo
condenável, querer Deus para si e o diabo para o próximo.

O pleito provou que a Confederação não quer divisões
odientas na irmandade abolicionista. Ela não admite irmãos que
fiquem com o patrimônio de outro por um prato de lentilha. Divide igualmente
o seu carinho. Tanto para os liberais, tanto para os conservadores, tanto
para os republicanos.

Mãe carinhosa, dessas que dividem o amor como a luz a sua claridade,
ela não faz testamento deixando a terça a um dos filhos com
prejuízo dos outros.

Por isso mesmo ela contribuiu para a eleição do sr. Ferreira
Viana, em nome dos conservadores que com ela trabalharam, como outrora contribuiu
para a eleição do sr. Bezerra de Meneses, em nome dos liberais
que pertenciam ao seu grêmio, sufragando em ambos os candidatos as suas
idéias.

Congratulemo-nos, pois, todos os abolicionistas pela transformação
que o abolicionismo operou no caráter nacional. Os preconceitos de
partidos e de posições extinguiram-se. Não se olha mais
a homens, porém a idéias. A pátria vale mais que os partidos.

Reproduziu-se na corte o mesmo que se deu no 5º distrito de Pernambuco,
há dois anos.

Um candidato liberal, forte no seu distrito, tendo ali prestado serviços
imediatos, serviços de todos os dias e de todas as horas, abriu mão
do seu lugar, adiou o seu direito a uma cadeira no parlamento, porque entendeu
que o sr. Joaquim Nabuco prestaria na Câmara serviços muito mais
relevantes.

Os abolicionistas da corte tiveram abnegação igual a desse
ilustre pernambucano, que elegeu o sr. Joaquim Nabuco. Sacrificaram a candidatura
de Quintino Bocaiúva à do sr. Ferreira Viana, porque parlamentarmente
o ministro da Justiça prestará mais serviços do que o
deputado republicano prestaria, apesar de todo o seu talento e de todo o seu
prestígio.

23 abr. 1888

30-IV-1888

Estamos em plena aurora

Dentro em três dias vai começar a História Moderna do
Brasil e fechar-se a triste história dos tempos bárbaros da
nossa terra.

Não é possível imaginar de um lance de pensamento o
que será todo esse iluminado futuro, não obstante o presente
fornecer-nos o esboço do que ele será nos largos traços
dos acontecimentos, que nos surpreendem.

O que está por trás do dia 3 de maio não cabe na previsão
dos políticos, e não é demasiado otimismo profetizar
que a nossa evolução nacional será feita com a mesma
rapidez da dos Estados Unidos.

As estrelas do Sul dentro em um quarto de século não invejarão
o fulgor da constelação do Norte.

Já podemos acentuar orgulhosamente um contraste.

A maior revolução social de nossa terra está sendo feita
entre bênçãos e flores. Nada mais extraordinário:
bastaram o atrito da imprensa e o calor da palavra para limar e fundir os
grilhões de três séculos de cativeiro.

A alma nacional mostrou-se preparada, em todas as camadas sociais, para praticar
e receber a liberdade.

Em nenhuma história do mundo se encontram páginas como as que
se têm escrito ultimamente em nossa terra. A esses fazendeiros pródigos,
que atiram pela janela fora a carne tarifada de seus cativos, carne que era
a sua fortuna legal, porque era gênero de valor no mercado da desumanidade
antiga e da afronta à moral e à civilização; a
esses fazendeiros, que precedem a lei para afirmar que nunca, em nossa pátria,
o interesse se colocará diante da Justiça, a rebeldia diante
da razão, correspondem os libertos que, tendo parecido acumular ódios
de três séculos, demonstram que nunca souberam senão sofrer
resignados, que não viram, no seu martírio, um crime de opressores,
mas uma tremenda e inexplicável fatalidade; os libertos que devendo
ter aprendido na escravidão a anarquia, provam ao contrário
que lá mesmo conservaram intactos o patriotismo e o amor da ordem,
e saem do cativeiro para cooperar na obra do bem-estar geral, tanto que se
iniciam na vida cedendo em favor da produção uma parte dos direitos
da sua liberdade: -o salário.

Os poucos que, sinceramente, se arreceiam de que os primeiros fenômenos
resultantes da revolução social, que se está operando,
sejam perturbações da ordem, abandono do trabalho, desassombrem
os espíritos.

Há de reproduzir-se em todo o Brasil o que se deu no Ceará.
Em vez de guerra fratricida, paz patriarcal; em vez da estagnação
da produção, aumento de riqueza e progresso.

As epopéias de Itu e de Friburgo aí estão.

Esses negros que atravessam povoações com a cabeça baixa,
depois de um combate em que haviam revelado a coragem dos companheiros de
Leônidas; e apesar de famintos, maltrapilhos e sangrando feridas do
tiroteio e da luta corpo-a-corpo, conduzindo crianças extenuadas, não
atacam a população aterrorizada, não abusam da sua força
nem para satisfazer às mais urgentes necessidades da vida; esses outros
negros que respondem aos senhores no dia da libertação: descansai
quanto à organização da vossa nova existência industrial
-nós não queremos salário nos primeiros tempos: esses
negros falam por uma raça, são os endossantes da letra de amor
à ordem e à probidade, que eles pretendem descontar no regime
da liberdade e da igualdade nacional.

O que há de mais admirável na nova fase de nossa vida de povo
civilizado é a uniformidade de pensamento, desde o Governo até
ao último liberto.

O Ministério restaura a segurança pública em todas as
manifestações.

O presidente do Conselho garante a fortuna do país, esforçando-se
para restituir à moeda, representação do trabalho, o
seu valor exato na cotação universal. Bate-se, como um duelista
tão inimigo de luta, como terrível no combate, e, em menos de
um mês de administração, derrota a horda dos especuladores
do câmbio.

Este glorioso trabalho de valor inestimável é feito sem estrépito,
com a modéstia do dever cumprido.

O empréstimo foi o mais solene desmentido ao escravismo, que nos dava
como o único título de crédito europeu o sermos o último
país, cuja fortuna se baseava no tráfico das almas, no roubo
do trabalho.

O ministro da Fazenda provou que o país podia comparecer perante o
mercado do ouro levando como valores a hipotecar a sabedoria de seu procedimento,
resolvendo sem perturbação da ordem o mais temeroso dos problemas,
e a certeza de que este país foi dotado pela natureza de tesouros que
nem mil séculos de prodigalidade poderão gastar.

O ministro da Justiça garante a liberdade do cidadão com a
letra cega da lei e com a lucidez humanitária do seu espírito.
Quebra-lhe o punhal da vingança, para dar-lhe a balança das
reparações e da correção.

Põe o código à cabeceira de cada cidadão, por
mais humilde que ele seja; todos podem dormir tranqüilos dentro de seus
limites legais.

A autoridade perdeu a carranca de Medusa com que petrificava o Direito.

Ela não pode mais espalhar caprichosamente pânico e lágrimas,
violências e calúnias.

E porque veio da imprensa, e porque veio da desilusão popular, esse
ministro extraordinário, compreendendo que para pregar a boa nova da
regeneração governamental é preciso, como Jesus, freqüentar
as multidões, dar vinho às suas bodas, distribuir com as próprias
mãos pão e peixe aos famintos, parar junto das sepulturas para
ressuscitar os mortos; esse ministro está em todas as festas para que
é convidado, distribuindo o vinho generoso, o cordial de sua palavra,
que é banho de nardo no corpo do mendigo, o agno do Cenáculo
ao espírito das crianças.

O ministro da Guerra faz recolher a quartéis o Exército, que
se viu obrigado a vir à praça pública reclamar como cidadão
o que o seu patriotismo lhe impediu que exigisse como soldado: respeito pelo
seu brio e pelo seu direito.

Certo de que está salvando a pátria e de que ela bem merece
o sacrifício de conveniências efêmeras, o ministro enche
a fé de ofício dos heróis com as repetidas provas de
confiança do Governo; faz-se no poder o órgão da opinião,
que cercou com o seu prestígio os perseguidos da véspera.

O que será este país amanhã, quando o que hoje surpreende
for a norma do procedimento dos Governos e do povo? Quando, extinta a recordação
do cativeiro, cada cidadão entender que ele é tanto maior, quanto
mais respeitar, no direito de outrem, o seu direito e o direito de todos?

Temos o olhar alongado sobre esse amanhã que vem rápido, vertiginosamente,
e que, entretanto, afigura-se, à nossa ansiedade, lento como o desdobrar
de um século.

Bate-nos novamente o coração, perguntando-nos ao pensamento
se é com efeito verdade que, dentro em poucos dias, uma senhora vai
comparecer perante a assembléia de um povo, não para impor,
mas para pedir e conquistar, como a tímida Ester, piedade para os milhares
de desgraçados, os filhos de uma raça que foi degradada por
haver contribuído tanto como qualquer outra para a grandeza de sua
pátria.

Sabemos que a promessa de homens de bem é a antecipação
da realidade e, entretanto, temos ainda essa incredulidade fugitiva que nos
provoca o bem muito maior do que esperávamos.

E por isso mesmo, perdoamos aos que não acreditam de todo, aos que
julgam que amanhã havemos de chorar de despeito.

Não há negá-lo: a corrupção havia minado
tanto o país, que é quase impossível acreditar que se
conservasse intacta uma porção do caráter completamente
refratário ao contágio.

Demais, é melhor não esperar muito, para morrer de alegria
recebendo tudo.

30 abr. 1888

11-VI-1888

Temos, desde muito, opinião externada a respeito do sr. barão
de Cotegipe.

Consideramo-lo um velho demagogo, que se dissimula em conservador, para poder
conspirar à sombra do Senado e com a garantia do subsídio que
lhe facilita os meios de almoçar, jantar e cear.

O seu Ministério confirmou o nosso juízo.

Estão na memória pública as aventuras a que S. Ex.ª
arrastou a Coroa, durante os malsinados dois anos e meio de sua administração.
Depois de haver atirado o Império de encontro às baionetas do
Exército, lançou-o na torrente do êxodo de São
Paulo, que por bem pouco deixou de afogá-lo numa inundação
de sangue. Pela falta de lealdade no cumprimento das leis, pelo desrespeito
acintoso do parlamento, pelo ataque aos mais incontestáveis direitos
políticos dos cidadãos, S. Ex.ª levantou contra as instituições
a indignação geral do povo. Finalmente, S. Ex.ª trouxe
um dia o trono para a praça pública e expô-lo aos golpes
das machadinhas da marinhagem.

Quando o historiador tiver de julgar esse Gabinete de 20 de Agosto, há
de ficar admirado do estado a que chegamos, de decomposição
parlamentar e de abatimento do espírito público, pois só
no último grau podiam tolerar a permanência dessa administração
desastrada, que fomentava por todos os modos a revolução, em
desproveito do povo e da Coroa.

É S. Ex.ª o mais perseverante dos demolidores do trono, porque
serve-se, sempre que pode, da sua alta posição para desprestigiar
o soberano.

Deixando o Ministério Caxias, S. Ex.ª levou ao Senado cartas
que ele havia recebido em confiança daquele glorioso brasileiro e converteu-as
em arma de ridículo contra o imperador.

Demitido agora de presidente do Conselho, procurou converter em libelo contra
a regente o ato de energia e de patriotismo com que ela desinfetou a administração.

Não o fez, porém, de fronte erguida, como adversário
leal; procurou pela manha, pela astúcia, disfarçar em perigo
iminente do sistema representativo o merecido castigo que lhe foi infligido.

A sua declaração de guerra ao atual Ministério foi mais
uma demonstração da fé púnica, essência
de seu espírito.

Depois de haver combinado, como o revelou o sr. João Alfredo, em quais
seriam as explicações e informações a dar ao Gabinete,
o sr. barão de Cotegipe quis fazer crer ao parlamento e ao país
que a regente se acovardara diante da demissão do Gabinete 20 de Agosto
e obrigara o Ministério 10 de Março a iniciar o seu Governo
por uma inverdade, destinada a embair o parlamento.

Recordam-se todos das palavras do velho lobo parlamentar, vestido de pastor,
à última hora, para guardar o rebanho constitucional.

Para alarmar o espírito público, o ex-presidente do Conselho
aludiu a uma famosa carta, pela qual a regente se despedia da Constituição,
desconhecendo a missão dos seus ministros, e tomava como inspiradoras
fontes turvas de informações.

O fim do S. Ex.ª era fazer crer que o Ministério passado caíra
simplesmente por uma conspiração de camarilha de palácio,
quando toda a gente via na aba da farda de S. Ex.ª a pegada do pontapé
dos marujos.

A armadilha de maio não produziu o efeito esperado.

O povo, longe de convencer-se de que a regente havia exorbitado, demitindo
o Ministério, aplaudiu a soberana que, exercendo uma das funções
majestáticas, assumiu a responsabilidade de colocar a vontade da nação
no nível constitucional de que o interesse oligoplutocrático
a havia desviado.

Não tendo conseguido, como pretendia, despir a regência em público,
S. Ex.ª recorre agora à indenização, como meio de
agitar ainda mais o mar de lama do escravismo.

O sr. barão de Cotegipe é um velho cético.

Para ele, só existe no mundo o interesse: primo vivere, deinde philosophare
(sic). Por isso, S. Ex.ª nunca procurou falar à alma dos seus
sequazes; fala-lhes sempre ao estômago e à bolsa. Em vez de apresentar
idéias, ele sacode moedas na mão.

Foi fazendo tilintar a tarifa Saraiva que ele conseguiu ser governo e manter-se
no poder. O seu Ministério foi a porcentagem dada pelo concorrente
à feira de gado humano a preço fixo.

Não há ninguém que tenha procurado tornar mais clara
esta proposição: a Monarquia brasileira, nos moldes do Segundo
Reinado, só foi movida pelos interesses da escravidão.

Para deslustrar o terceiro reinado, que se anuncia tendo por molde o respeito
da opinião, S. Ex.ª quer dar-lhe por base a indenização,
que o privará dessa auréola redentora, sua maior força.

Pouco se importa o sr. barão de Cotegipe com suas contradições.
Ontem, S. Ex.ª dizia no Governo à regente: não ceder ao
abolicionismo porque ele é revolução; hoje, quando o
escravismo se revoluciona, francamente, audaciosamente, apesar da sua impotência,
filha da sua impopularidade, o sr. barão de Cotegipe empunhou a bandeira
revolucionária da indenização e quer plantá-la
no Senado.

S. Ex.ª diz que está convencido de que a propriedade escrava
é tão sagrada como a que mais o seja; S. Ex.ª, o mesmo
chefe de polícia de Gonçalves Martins, um dos maiores sabedores
dos mistérios do tráfico, e por conseqüência da legalidade
da atual propriedade escrava no Brasil. Já o nosso ilustrado colega
da Gazeta de Notícias assoprou o castelo de cartas da indenização
e por isso não nos ocupamos em rebater os fundamentos falsos dessa
exigência revolucionária.

O nosso fim é outro: deixar demonstrado que o sr. barão de
Cotegipe tem apenas em vista, como demagogo, perturbar o início do
terceiro reinado, em nome da escravidão.

Os do conselho negro espalham que têm votos para derrubar o Ministério,
ou melhor, para pôr em prova a confiança da Coroa.

É fácil de compreender o que está no fundo desse plano.
O que o escravismo pretende é apoderar-se de novo do Governo, provocando
uma consulta às urnas neste momento em que os ex-proprietários
de escravos põem a consciência em leilão, oferecendo votos
e apoio a quem mais der.

Para o sr. barão de Cotegipe tudo serve. Se ele consegue arranjar
maioria para a indenização, há de acontecer uma de duas:
ou o Ministério retira-se, e neste caso a indenização
atirará com os abolicionistas para o campo revolucionário; ou
a Coroa dissolve a Câmara, e as novas eleições dão
à nova assembléia a agitação revolucionária,
que o escravagismo por todos os meios provoca para vingar-se da heroicidade
da princesa, que fulminou a pirataria.

O sr. barão de Cotegipe não pensa na pátria; pouco tem
ele com ela. Já o provou quando empregou todas as suas forças
para criar uma ditadura militar, repelida em boa hora pelo bom senso e patriotismo
do nosso Exército.

Chefe dessa oposição encapotada, que não mostra a cara
com medo da gargalhada popular que há de enfarinhar-lhe as jogralices
perversas, como já o fez ao sr. Coelho Rodrigues, quer o sr. barão
de Cotegipe armar-se com o cadáver da escravidão, em falta de
outra arma para a batalha.

É muito difícil, fora do campo da instituição
negra, atacar o Gabinete que se propõe a realizar todas as reformas
urgentes.

O Senado ouviu surpreendido o discurso pronunciado pelo sr. presidente do
Conselho.

O contraste com o Governo da chocarrice, da chalaça de cocheiro, da
truanice do palhaço, foi tamanho, que a própria oposição
liberal emudeceu.

O sr. João Alfredo desdobrou-se em toda a extensão do seu grande
espírito e do seu vasto saber, e com essa serenidade olímpica,
essa altivez aborígine, que são os distintivos da pureza do
seu patriotismo e da inflexibilidade de seu caráter, sem afagar condescendências,
comprometeu-se a inaugurar essa política larga, científica,
única bastante fecunda para alvear a evolução democrática
de nossa pátria.

O país ficou sabendo que tem na direção de seus destinos
um homem do talho de Gambetta, capaz de acelerar uma revolução,
apesar de todos os riscos, e de aproveitar-lhe as conseqüências
com inteira sabedoria.

O presidente do Conselho não acenou com uma vã miragem à
popularidade para subir ao poder. Não, ele só aceitou o Governo
porque em longos anos de trabalho e de meditação formou a consciência
de sua idoneidade para dirigir a política nacional.

No seu discurso, a democracia fica de pé, à vontade, destacada
e iluminada em todos os seus contornos, como o Moisés de Miguel Ângelo
dentro do Vaticano.

Os períodos ressumam a probidade política do orador, a honradez
indígena do seu patriotismo.

O sr. João Alfredo não quer ser ministro dos seus amigos, mas
ministro de um povo, que tem todas as qualidades e todos os dotes para ser
grande e só por falta de um braço forte, que desbarate a oligarquia,
desceu ao ignominioso papel de mercador de escravos e mendigo de empregos
públicos.

O escravismo perdeu a esperança desde que viu no Governo, secundado
por homens de valor extraordinário, o glorioso brasileiro.

Não teve coragem de dar-lhe batalha de frente, por isso mesmo tergiversa.

Os srs. Paulino de Sousa e Cotegipe, sem talentos, sem serviços que
não sejam os da escravidão, vêem ameaçados o prestígio
e o pão da parentela e dos compadres.

A escravidão era a sua única força e a sua única
renda política. Era por ela que S. Ex.as recolhiam nas sinecuras e
pepineiras os rábulas de aldeia, os fazendeiros quebrados.

O sr. João Alfredo tira-lhes a mamadeira da boca improvisadamente
e adeus leite, adeus franga e adeus ovos!

Confessemos que é uma dos diabos.

O que hão de fazer os homens senão ver se arraigam na consciência
dos ex-proprietários a idéia de que se há de dar com
a lei de 13 de maio o mesmo que se deu com a de 7 de novembro de 1831.

Olhem, vocês podem ter uma república ou um governo bem agitado,
que, assoberbado pelas dificuldades, não lance os olhos para o tráfico
de ingênuos, para o regime do calote, máscara do antigo trabalho
sem salário, para os assassinatos e espancamentos de trabalhadores.

Eis o fim dos indenizadores.

Os primeiros que se julgam com direito à indenização
são chefes de grei, porque os pobres diabos não valem dez réis
de mel coado sem o Tesouro.

O negócio das fazendas de saúva e samambaia gorou; o presente
de casas, feito pelo Estado, aos amigos do sr. conselheiro foi também
um dia.

Que diabo! É preciso apanhar uma lambugem e a melhor é a república
de tenentes-coronéis e barões, república que já
nasce confiscada pelos indenizadores; república que é uma nova
fazenda, cujo primeiro título é a dívida antes da fundação.

Ah! tartufos! como a história os há de amaldiçoar.

11 jun. 1888

18-VI-1888

Os manifestos encheram a semana. Os jornais publicaram o manifesto Saldanha,
o manifesto S. Paulo, o manifesto Werneck, o manifesto Paulino.

Nada mais curioso do que o estudo dessas diversas manifestações
patológicas da ambição pessoal e do despeito o mais vulgar.

Todos esses manifestos tomam como ponto de partida a abolição
da escravidão, o que quer dizer que a Monarquia podia dormir tranqüila
a esta hora, se, em vez de haver obedecido ao reclamo nacional e humano, integrando
a nacionalidade brasileira, se houvesse limitado a declarar como outrora os
novos evangelistas da nossa liberdade política que ela aspirava ver
extinta a instituição degradante.

Não é felizmente difícil a qualquer espírito
descobrir a causa da súbita efervescência republicana, que nós
comparamos à que se dá numa solução ácida
quando se lhe lança um pouco de sal básico. A tempestade de
copo d’água dá-se até que a saturação seja
completa.

O esclavismo, o Proteu que toma todas as formas, desde a republicana até
a de assassino vulgar; que maneja tão facilmente Spencer como o punhal
do Rio do Peixe, não contava com o dia 13 de maio. Ele acreditava que,
simulando generosidade para com os escravizados, por um lado evitaria o êxodo
dos deserdados da lei, por outro lado cegaria o Governo ao ponto de fazê-lo
crer que o melhor meio de resolver o problema era entregá-lo a essa
generosidade, em que tanto falavam os srs. Martinho Campos, Paulino e Andrade
Figueira.

O Governo, porém, entendeu e muito bem que o seu primeiro dever era
sistematizar as aspirações nacionais, convertendo-as em leis,
para que a dispersão natural dos interesses de indivíduos ou
de castas não perturbasse a harmonia necessária às transformações
sociais.

Não aqui, nos estreitos limites de uma resenha semanal, mas largamente,
tomando de alto o assunto, discutiremos esses manifestos, cada qual mais digno
de uma desinfecção demorada de lógica e bom senso.

Há no Guarani, de José de Alencar, um quadro que extasia a
quantos o lêem: é a descida de Peri ao fundo de um algar, para
apanhar uma jóia que a preferida de sua alma lá deixou cair.

O selvagem sabe que lá embaixo, sob o trançado da vegetação
bravia, na noite e na umidade daquele bojo sem sol, vivem legiões e
legiões de seres venenosos, agentes fatais da morte. O menor descuido,
e o dente de um urutu ou de uma sucuruinha lhe vazará nas veias a peçonha
mortífera.

Nem por ser terrífico o cometimento, Peri deixa de empreendê-lo
e, empunhando um facho e imitando o canto da açanã, lá
se entranha pelo abismo.

Temos de fazer viagem igual, por amor de nossa pátria, vestindo os
nossos lábios com o cântico íntimo da Justiça e
da fraternidade, e tendo nas mãos o archote da verdade.

Por hoje, porém, basta-nos acender nas bordas do abismo neo-republicano
a carta do sr. Paulino de Sousa.

Dissemo-lo desde o dia em que observamos com mais atenção o
espírito desse homem, que, por seu nome, se tornou o exegeta do Sul:
o sr. Paulino de Sousa não tem nenhuma qualidade de estadista.

Dia a dia, historiando a direção que ele dava ao seu partido,
acumulávamos provas probantes da nossa asseveração.

É sabido que, mesmo depois do êxodo de S. Paulo, quando já
havia a petição patriótica do Exército, que em
nome do seu brio e da sua missão civilizadora reclamava contra os destacamentos
para o desempenho das funções de capitão-do-mato; quando
já pesava sobre o ministério a intimação Prado-João
Alfredo para que em maio deste ano viesse ao parlamento, para ser definitivamente
resolvido, o problema servil; o sr. Paulino de Sousa ainda garantia aos seus
clientes fluminenses a permanência da escravidão por mais três
anos.

O plano de S. Ex.ª foi revelado pelo sr. barão de Cotegipe, quando
não pôde negar que Sua Alteza, a Regente, mais de uma vez, chamara
a sua atenção para a questão negra.

O sr. Paulino de Sousa contava com a dissolução, o mais lógico
dos adiamentos imagináveis, ou pelo sr. barão de Cotegipe mesmo
ou pelo sr. Lafaiete, a quem estava destinada a sucessão. Daí
vinha a certeza com que dava de leve fiança à escravidão
por três anos.

O golpe patriótico de 10 de março, pela qual a regência
emancipou-se do cativeiro, a que havia sido reduzida pela coligação
escravista, desnorteou completamente o sr. Paulino de Sousa, que não
é homem para dar batalhas fora do Governo.

A sua carta é um nariz-de-cera, é a confissão pública
do seu atordoamento. Faz-nos lembrar o Nero de Giacometti, poltrão,
desvairado, protegido apenas por alguns libertos, a sentir o tropel da cavalaria
de Galba, sem saber se há de render-se ou suicidar-se.

Por um lado, o sr. Paulino de Sousa diz à Regência: conte comigo;
só eu posso reorganizar a Monarquia desmantelada pelo Gabinete João
Alfredo; por outro lado, S. Ex.ª diz aos seus eleitores: ameaçai
por mim a Regência, tornai-me necessário, ou para a Monarquia,
ou para a República.

É um conjunto de contradições tão extraordinário
que é difícil saber por onde começar a desfiá-las.

O sr. Paulino de Sousa contentava-se com tudo, depois de haver recusado tudo.

Queria que o Governo respeitasse, como um dogma, a propriedade escrava, e
ao mesmo tempo contentava-se com a decretação de medidas ilusórias.

Por um lado, S. Ex.ª confessa-se monarquista; vê na Monarquia
constitucional a forma para assegurar a integridade do Império; reconhece
no imperador um grande servidor do bem público; por outro lado, S.
Ex.ª quer experimentar a anarquia, proveniente da confusão dos
partidos, saborear os frutos da indisciplina nos domínios do desconhecido.

Não sabe S. Ex.ª o que há de aconselhar: se a resignação
das vítimas do atropelo revolucionário de 13 de maio, se o desforço
contra aqueles que o espoliaram. O que aconselha, em resumo, o sr. Paulino
de Sousa? Nada e tudo.

Acha que a indenização é um ato de probidade pública
e aconselha aos fazendeiros que a reclamem com pertinácia.

Resisti -é a senha do sr. Paulino de Sousa. «Se os lavradores,
em vez de unirem-se, diz S. Ex.ª, com decisão e coragem, fizerem
ainda nas localidades esse jogo estreito e ridículo, em que o látego
fornecido pela autoridade anda de umas para outras mãos, sendo cada
um por seu turno flagelado; se se deixarem levar pelas graças e postos,
com que nos momentos de angústias lhes acena o Governo, continuarão
a ser ludibriados nos seus direitos e não lhes direi senão que
terão merecido a sorte que lhes determinarem. Não há
hoje quem duvide que cada povo é governado como merece.»

S. Ex.ª proclama, pois, o divórcio necessário do seu eleitorado
para com as instituições, que difama, dando-lhes apenas o caráter
de essencialmente corruptoras, visto como só em momentos de angústia
distribuem graças e posta.

E entretanto esse mesmo homem ainda fica no isolamento, ao ver, de um lado,
a província que o fez o que é, roubada na sua propriedade, e
de outro lado, exposta à corrupção do Governo.

É pusilanimidade ou incapacidade? É um homem de Estado este
Mac-Mahon de terreiro, que espia através da República a volta
ao esclavagismo?

Entretanto, confessemos que essa carta, dentro da qual se cria a ratazana
da indenização, tem um merecimento.

Através da sua despreocupação hipócrita, deixa
ver bem qual o fim dos reformadores.

O sr. Paulino de Sousa, como todos os seus apaniguados, guardara até
a última hora a esperança de ver continuado o esclavagismo.

S. Ex.ª pensava que o sr. João Alfredo tinha a alma daquele ministro
de Estrangeiros, que se chamava também Paulino de Sousa, e que, afrontando
a verdade friamente, declarava na Câmara que não entravam mais
negros novos no país, quando defendia ao mesmo tempo a pirataria, como
desafronta da honra nacional contra os vexames do cruzeiro inglês.

O sr. Paulino de Sousa pensava que o sr. João Alfredo se prestaria,
como S. Ex.ª, a manter as tradições do visconde de Uruguai,
o mais desabusado defensor da pirataria.

De feito, a tradição com relação à escravidão.

Aboliu-se o tráfico em 1831, os ministros continuaram a ser os protetores
dos traficantes e muitos deles seus associados, de modo que vários
pobretões se converteram em milionários.

O tráfico se fez ainda durante 25 anos, acabando somente no desembarque
de Serinhaém.

Proibiu-se a escravidão dos nascituros e os ingênuos ainda aí
estão escravizados, sob a forma imoral e infame da tutela, e nesta
exploração miserável entram homens de Estado.

Fez-se mais: apesar de marcado prazo fatal para a matrícula da lei
de 1871, ainda em 1878 houve ministro que mandasse abrir matrícula
na Comarca de Palmeiras, se não nos falha a memória.

O sr. Paulino de Sousa e seus sequazes viram, porém, que o Ministério
não está deliberado a condescender com o esclavagismo, e que
não lhe permitirá continuar sob outra forma qualquer a escravidão.
Daí a ira.

O que a carta do sr. Paulino de Sousa nos diz é que S. Ex.ª está
pronto com os seus amigos a servir ao Governo que lhes prometer sociedade
com os cofres públicos.

Este pedido de indenização, de auxílios à lavoura,
de bancos de emissão, essa lenga-lenga do venha a nós dos cofres
públicos, demonstra o que sempre dizemos: que a escravidão havia
convertido o Governo brasileiro no socialismo o mais baixo e torpe, porque
se resumia no roubo do país inteiro em benefício de uma classe:
a lavoura.

Indenização dos herdeiros dos ladrões que piratearam
a alma humana e a honra da pátria durante 25 anos!

Auxílios à lavoura, a essa lavoura do absenteísmo, a
essa lavoura da jogatina, do luxo, da imprevidência, da oligarquia,
a essa lavoura que produziu como estadista o sr. Paulino; como instituições
livres a escravidão, o parlamento do sim e não, o júri
dos assassinos do Rio do Peixe; como indústria o funcionalismo; como
finanças o deficit; como economia nacional a hipoteca e o exclusivismo
do comércio estrangeiro!

Bancos de emissão, mas com que banqueiros? Com esses agiotas que mal
sabem ler e escrever; como essa classe de judeus, que reduziu o crédito
a uma camarilha, que vive a acobertar falências criminosas e a perseguir
o trabalho honesto; que divide a honra em nacionalidades? Bancos de emissão
nas mãos de quem? Desses que ainda ontem pediam ao Estado garantia
de juros para o crédito real, tendo por base o escravo; para esses
que emprestaram dinheiro à lavoura, a título de beneficiá-la,
levando-lhe os olhos da cara?

Se pudéssemos dar conselhos ao Governo, dir-lhe-íamos simplesmente:

O Ministério que fez a lei de 13 de maio e a princesa que a sancionou
devem à pátria a energia a mais decidida e a decisão
a mais completa.

É necessário não ouvir a grita que parte do lado dos
vencidos.

Os clubes neo-republicanos são os mesmos clubes de lavoura da escravidão.
O tom, a ameaça são os mesmos.

Só há dois meios para acomodá-los: ou fazer como o imperador
em 1885, entregar-lhes de uma vez o Governo; ou então fazer uma larga
política popular e com o punho de Luís XI esmagar esse feudalismo,
que quer mascarar com a federação a coligação
de suseranias ameaçadas pela abolição.

O Governo não deve perder a calma.

O povo, o verdadeiro povo, que não é composto nem de caloteiros
de bancos, nem de comissários despeitados, nem de bacharéis
vadios, que querem suprir a falta de clientes pelo subsídio; o povo
que vê nas mãos da maioria desses republicanos das dúzias
o calo do chiquerador de eito; o povo está pronto a apoiar, a sustentar
o atual estado de coisas.

Que o Governo o faça votar; dê-lhes meios de resistir à
oligarquia que domina as urnas; essa oligarquia com que o sr. Paulino de Sousa
conta para a experiência de indisciplina; essa oligarquia que ontem
era conservadora de fazer inveja e hoje ameaça eleger republicanos.

Que promova desde já a desapropriação das terras à
margem das estradas de ferro e dos rios navegáveis, e sistematize para
aí a imigração; que faça rever os traçados
de nossas estradas de ferro e lhes dê uma orientação econômica;
que abra as portas à laicização completa e absoluta do
país; finalmente entre numa política larga e prática
e deixe vozear para aí a pirataria despeitada, que, não podendo
mais explorar o negro, quer explorar o Tesouro.

18 jun. 1888

30-VII-1888

A oposição chegou à incandescência esta semana.

Abolicionistas e negreiros da Câmara dos Deputados ligaram-se para
desfechar golpe mortal ao Ministério. Aproveitaram o momento em que
o sr. presidente do Conselho comunicava ao parlamento que estava dando a última
demão a um contrato de auxílio à lavoura por intermédio
do Banco do Brasil, ao qual emprestaria, sem juros, seis mil contos de réis.

Os liberais, os mesmos liberais que procediam de tal modo, que o sr. Silveira
Martins temia que eles merecessem o epíteto de câmara dos servis,
entenderam que o procedimento do sr. Alfredo era uma punhalada no sistema
representativo.

Foi o sr. Lourenço de Albuquerque, o mesmo a quem o sr. Martinho Campos
chamava rabadilha ministerial, durante o Ministério Sinimbu, o incumbido
de fazer a catilinária contra a perversão do sistema.

S. Ex.ª entende, como bom chefe do grupo Zé que o auxílio
à lavoura é urgente, que o Ministério devia ter desde
logo invocado o patriotismo da Câmara para que discutisse o projeto
a respeito e, para demonstrar com que açodamento a oposição
se prestaria a discutir o assunto importantíssimo, S. Ex.ª falou
com os olhos no relógio para conseguir pela hora o adiamento da discussão.

Não era, porém, preciso que a oposição liberal
recorresse a esse meio pouco engenhoso para demonstrar a sua sinceridade.
A simples aliança com os mais ferrenhos negreiros da Câmara demonstrava
por si só que a tática partidária afivelava a máscara
do bem público. Esperava-se que o sr. Gomes de Castro arrastasse mais
gente do que trouxe e, portanto, deixaram-se de lado os princípios
para cuidar dos lugares.

Quanto aos soldados negros do sr. Paulino, os zulus parlamentares, é
já sabido que o único fito de S. Ex.ª é guerrear
o Ministério por todos os meios.

Estavam prontos a votar a indenização proposta pelo sr. Coelho
Rodrigues e estão prontos a votar tudo, inclusive a venda da pátria
para indenizarem-se e aos respectivos amigos. Votam, entretanto, contra o
auxílio à lavoura.

O voto da oposição teve, porém, um grande merecimento:
deixou a descoberto a capacidade, a inteireza e o patriotismo da oposição.

No debate do crédito real e agrícola, ela declarou ao Governo
que não votava, porque sabia que o dinheiro do Estado ia ser desbaratado,
visto como o lavrador não tem recursos para fazer face aos encargos
contraídos pela hipoteca.

Presentemente, ela justifica o seu voto contra o acordo com o Banco do Brasil,
dizendo que o auxílio chegou tarde e, portanto, já não
aproveita. A lavoura já efetuou a colheita e está desafrontada.

Como se vê, a contradição é palpável. Se
a lavoura pôde arrostar uma crise aguda e instantânea, como a
de 13 de maio, sem lançar mão de outro recurso além do
saldo de fortuna e crédito de que já dispunha; se os capitais
bancários não se arrecearam de um naufrágio em plena
tempestade, está claro que a lavoura pode honrar, na pior das hipóteses,
os compromissos que contrai. Quer isto dizer que o Governo tem toda a razão
quando diz que a sua garantia aos bancos de crédito real e agrícola
é simplesmente nominal.

Ora, como facilitar o crédito ao devedor solvável não
é senão fomentar a prosperidade social, segue-se que o Governo,
garantindo o juro da letra hipotecária, longe de ameaçar o país
com a bancarrota, por amor de uma classe, não vai senão aproveitar,
em benefício da comunhão, a atividade e a experiência
dessa classe.

Reconhecer, por um lado, que a lavoura tem recursos para bastar-se durante
uma crise violenta e não lhe querer fornecer o crédito necessário
ao seu desenvolvimento é um contra-senso econômico.

Povos da maior experiência na matéria iniciaram, como o projeto
de crédito real e agrícola do Governo, o manejo deste poderoso
instrumento de valorização da terra.

A Alemanha fez mediante ela a libertação do pequeno lavrador,
desfeudalizou com o emprego do sistema a propriedade, que já lá
chegou a adquirir o duplo movimento de desagregação para condensar
a população, de agregação, para lhes conservar
o valor adquirido.

E é preciso notar que o Estado que prestou a sua garantia para libertar
o pequeno proprietário é ainda o agente direto para impedir
a desvalorização pelo fracionamento exagerado.

Propusesse-se o sr. João Alfredo a tentar em nosso país igual
obra e ver-se-ia que os liberais mais extremados eram os mais encarniçados
adversários.

O liberalismo quer proteger o pequeno lavrador; o escravismo, o grande; mas
um e outro estão dispostos a protegê-lo entregando-o aos seus
próprios recursos.

Até ontem, nós, os abolicionistas, dizíamos que a escravidão
havia empobrecido de tal forma o país que ele não comportava
nenhum progresso por falta de economias realizadas pelos particulares. Tornou-se
popular a nossa frase: as ruas dos Beneditinos e Municipal são a cruz
da lavoura.

Se é verdadeira esta proposição, como exigir que a lavoura
marche desoprimida, inicie os aperfeiçoamentos agrícolas, substitua
a rotina pela ciência, o trabalho braçal pouco inteligente pela
máquina, condenando-a eternamente a carregar essa cruz que a exiciou
por tanto tempo?

Onde há de ir a lavoura buscar crédito, senão nos intermediários
ou comissários? Nos bancos? Quais são, excetuado o do Brasil,
os bancos que se prestam a servir à lavoura mediante o juro que ela
comporta? Em bancos especialmente fundados para este fim, responder-me-ão.
Mas, neste caso, voltamos ao princípio. Se a lavoura pode pagar o serviço
do capital, de que carece por si só, sem endosso do Estado, está
claro que este é inteiramente nominal e, desde que a garantia pública
limita os lucros do estabelecimento, ele terá o cuidado de a dispensar.

Deve a lavoura ficar adstrita ao estado atual? Para quê? Para viver
ou para morrer.

Se ela pode viver com os juros atuais, como não poderá pagar
os que decorrem do projeto do Governo? Se é para morrer, o que é
que nos dão os oposicionistas em troca da fonte de produção
de que nos privam?

Não se improvisa a economia de um povo, como se improvisam discursos.

Se fosse possível com um simples surge et ambula constituir a pequena
propriedade; se fosse possível manter nos mercados o preço dos
nossos gêneros de exportação, em tal altura que desse
sempre a remuneração correspondente do trabalho do produtor;
se, semeando no solo as idéias dos teóricos, elas se convertessem
em instrumentos de trabalho, casa, salário, nada era mais simples do
que operar sem nenhum ônus para o Estado a transformação
agrícola.

Infelizmente, porém, não grelavam na terra as palavras dos
barbeiros contra o rei Midas e até hoje não se conseguiu fazer
pegar de galho as teorias dos mais poéticos reformadores.

O dinheiro é uma fatalidade; é impossível prescindir
dele para qualquer obra humana. Para nascer, como para morrer; para amar,
como para odiar; para ser poeta, como para ser milionário, ele é
sempre, sempre necessário.

O estado em que nos achamos é tal que não é só
a lavoura que precisa de crédito do Estado para constituir o próprio.
Se houvesse um governo capaz de fechar os olhos a tudo, de prescindir de teorias
e citações do estado contemporâneo do mundo, esse governo
garantiria até juros aos capitais que se destinassem a favorecer os
brasileiros, que fundassem casas de comércio, fábricas de grandes
e pequenas indústrias.

O socialismo do Estado, largo, franco, sem hesitações, é
o único meio de movimentar esta grande máquina, enferrujada
pela escravidão.

O segredo da força do Governo alemão é este: ele compreendeu
que o Estado deve ser o primeiro mestre econômico do povo, e não
hesita em intervir sempre que essa intervenção é benéfica.
E ali trata-se de um país homogêneo, de um país onde se
acumulam os saldos de trabalho; de um país onde o espírito de
coletividade está profundamente desenvolvido, onde o espírito
de Schubre (sic) fecunda a cooperação e a solidariedade.

O que faria um governo, daquele molde, num país como o nosso, que
além da emigração fatal de saldos pelo fato de sermos
vítimas da imigração nômada, ainda pela compra
de todos os objetos necessários à vida, desde a camisa até
a locomotiva, exportamos todo o capital de que carecemos para fundar a indústria
nacional?

Fala-se nos trezentos mil contos que o Estado vai dar, mas não se
fala no prazo que vai decorrer. A perda é uma hipótese, o tempo
é uma realidade. Contavam os oposicionistas quais os lucros que podem
provir desses trezentos mil contos, em mãos de particulares, ou melhor,
em circulação, durante o longo período de 30 anos?

Mas não é de projetos úteis ou ruinosos ao Estado que
a oposição trata? Estamos vendo que os mesmos que votaram a
lei de 13 de maio opõem-se hoje ao Governo por havê-la decretado.

E não vemos todos os dias os liberais, que reclamaram para seu partido
o direito de fazer a libertação, aplaudir o movimento republicano
que daí proveio e ameaçar o trono com este movimento?

O que se está passando não é sério. A oposição
atual não merece respeito dos homens que estudam e que amam sinceramente
a pátria.

É uma guerrilha de negreiros e de ambiciosos.

O fim do escravagismo é enfraquecer o Governo para obter de qualquer
modo a indenização; isto é, tirar dos cofres públicos
em proveito de alguns o dinheiro que s&ooacute; deve ser dado em benefício
de todos.

Servem-se dos liberais, da vaidade desse partido desmanchado, para chegar
aos seus fins.

O sr. João Alfredo é um obstáculo a essa conspiração
imoral: é preciso destruí-lo. O pirata em alto-mar não
respeita a bandeira do navio honrado; ataca-o indistintamente.

A pirataria da nossa terra não tem lei diversa.

30 jul. 1888

31-VII-1888

À Federação

Quem tem lido os meus artigos com relação ao atual movimento
político sabe que eu nunca procurei magoar os velhos republicanos sinceros,
os que pugnaram sempre pela verdadeira República.

Tenho feito guerra aos especuladores da República, aos egoístas
que procuram especular, com a mais santa das idéias políticas.

Não há uma única palavra minha que não seja dirigida
aos neo-republicanos da indenização e aos seus patronos, que
viram neles o melhor instrumento para os seus despeitos encanecidos.

Basta ler a coluna de O Paiz, sob a epígrafe Partido Republicano,
para ver que esta república baseada na indenização, que
é combatida pela Federação, deve ser combatida por todos
os que entendem que a política não é uma especulação
miserável.

Não obstante, a Federação que, pelas suas tradições,
devia dar neste momento exemplo de moderação, de cortesia e
de bom senso; que devia distinguir entre uns e outros dos que se dizem republicanos
e dos que dizem praticar as doutrinas democráticas; a Federação
entra na guerra da difamação contra a minha pessoa nos seguintes
termos:

«Se o senhor Patrocínio ajoelhou-se, não foi porque a
libertação fosse um benefício que precisasse ser pedido
de joelhos; a libertação não foi uma dádiva, foi
uma conquista, uma imposição; se o senhor Patrocínio
ajoelhou-se, é porque há naturezas que nunca estão tão
bem como quando estão de joelhos.

O grande representante da raça negra não pode ser um renegado,
vão procurá-lo entre os que souberam sentir com altivez.

O grande negro não é Luís Gama para ser o senhor José
do Patrocínio!»

Quando foi que pedi, de joelhos, a libertação?

Seria pedir de joelhos o manter-me durante dez anos em guerra contra tudo
e contra todos os que não eram abolicionistas?

Para que caluniar miseravelmente aquele a quem aplaudiram na véspera?

Onde está o ato meu, durante a propaganda abolicionista, que demonstre
um simples pestanejar diante do perigo?

Enquanto o Partido Republicano, que merece aplausos à Federação,
comia tranqüilamente o suor do negro, e tratava a chicote os seus irmãos;
enquanto o sr. Rafael de Barros e os seus soldados formavam reputação
para as suas coudelarias e tornavam-se notáveis pelo seu apuro no meio
da boa sociedade; o que era que eu fazia senão combater dia e noite
na tribuna e na imprensa?

Que fizeram os republicanos neste tempo? Qual o sacrifício coletivo
por eles feito?

Nem o partido, nem nenhum deles fundou um jornal. Os que escreviam recebiam
dinheiro das empresas ricas que os chamavam. Nenhum se prestou a colaborar
no órgão da abolição.

É uma infâmia da canalha negreira a opinião que a Federação,
infelizmente, endossou com o seu prestígio.

Esses bandidos, em cuja cara eu sempre escarrei, nos tempos da propaganda
abolicionista, acharam que era agora o momento de vingarem-se contra a minha
altivez.

Não tenho agora tempo, mas hei de contar a história de cada
um desses patifes, que entenderam que as costas dos próximos foram
feitas para servir de escada às suas ambições.

Disse-o sempre: o meu único fito em meu país é cooperar,
antes de tudo, para a extinção da escravidão. Nunca iludi
ninguém. Apoiei o sr. Dantas, sendo entretanto republicano, e colocava
Severino Ribeiro muito acima do sr. Saldanha Marinho.

Declarada de direito a extinção da escravidão, entendi
que devia ficar ao lado do Governo para vê-la realizada de fato, o que
ainda se não deu por culpa do republicanismo de relho e indenização,
republicanismo do Rio do Peixe e de Itu.

Disse que hei de honrar a princesa e que lhe agradeço, como ao Governo,
ter decretado a abolição.

Emprestei alguma glória à Sua Alteza e ao Gabinete?

Pois não está aí o movimento republicano atual demonstrando
a glória desses beneméritos?

Se eles nada fizeram, se legalizaram apenas o que todos já haviam
deliberado, por que os odeiam tanto?

A Federação é injusta para comigo. Eu apelo para o futuro,
mas declaro que prefiro morrer, como Tibério Graco, a ser ministro
gordo e abafado do Governo do sr. Saldanha Marinho.

31 jul. 1888

6-VIII-1888

Uma cilada descoberta, uma emboscada sem êxito, eis a semana.

A oposição quis de surpresa apoderar-se da Mesa da Câmara
dos Deputados, mas a imperícia da manobra não deu senão
para uma exibição do sr. Coelho Rodrigues, que se indignou com
uma porção dos seus apelidos.

Quis a oposição reviver na Câmara dos Deputados o tempo
da eleição de gola, o tempo das cédulas recheadas. A
tramóia deu em água de barrela e a Mesa continuou a exprimir
o voto e a vontade da maioria.

Na verdade, é para desanimar e alucinar não poder vencer um
adversário que se julgou matar no primeiro encontro.

O escravismo, depois de parafusar longo tempo, concluiu que o melhor era
deixar decretar a abolição de direito e, em seguida, apoderando-se
do poder, manter a escravidão de fato.

Pensou lá com os seus botões que não havia nada mais
cômodo do que ter uma lei para enganar o mundo, como a de 7 de novembro
de 1831, e os lucros da escravidão no interior. Era tão simples:
tudo se pode fazer, a questão é de jeito. A experiência
lhes dizia que o difícil era conter a onda humanitária, mas
não canalizar os interesses dos que eram solidários na exploração
do mesmo crime.

Derrotado o Gabinete, o novo Ministério veria que não devia
ser tão radical. O sr. Paulino de Sousa andara bem na encenação
da república da indenização e, por este lance teatral,
seqüestrar-se-ia mais uma vez a opinião do Poder Moderador.

Ficava assim o campo livre e com uma dose de recrutamento, bem aplicada,
lançar-se-ia o pânico entre os novos cidadãos, de modo
a obter deles trabalho sem salário. Era, pois, o melhor dos mundos,
um paraíso ainda mais delicioso que este em que viveu a pirataria desde
Marambaia até Serinhaém, durante 25 anos.

Infelizmente, os escravistas puseram e os fatos dispuseram.

Todas as profecias de terror foram desmentidas.

Não haveria colheita, disseram eles; a estatística demonstra
que a diferença das entradas de café entre os anos de 1887 e
1888 é de mais de 245 mil sacas a favor deste ano.

Perdia-se todo o café, não havia meio de colhê-lo e,
entretanto, a diferença para mais, este ano, é espantosa.

Sim, dizem eles, mas seria o dobro se não fosse perturbado o trabalho.
Admitamos, porém não nos esqueçamos de que o argumento
foi outro. Não se falou na perda do excesso, falou-se no aniquilamento
da colheita, o que faz com que tenhamos direito em não acreditar na
alegação posterior.

Diziam os escravistas que a renda diminuiria, que todos os capitais se retrairiam.
A Alfândega rendeu no mês de julho, mais do que em julho de 1887,
a quantia de 1.240:810$400! O algarismo da renda foi o maior conhecido até
hoje, 4.811:886$287. O movimento da Bolsa do Rio de Janeiro tem sido vertiginoso.
É verdade que se tem misturado muita intriga à verdade, mas
o fato é que os capitais se agitam e se expandem.

O câmbio já esteve quase ao par e, apesar de todos os manejos,
de todas as negaças imaginadas pela judiaria esterlina, conserva o
mais alto nível a que nestes últimos tempos era possível
imaginar. Os 24 d. do sr. Belisário, o ministro da conta corrente,
ficaram já a perder de vista.

O testemunho do comércio imparcial é que a cifra de vendas
das mercadorias essenciais à vida do trabalhador é o quádruplo
da que se conhecia até antes de 13 de maio. A roupa feita, os chapéus,
os sapatos e chinelos, os morins e algodões vendem-se vertiginosamente,
o que quer dizer que os novos cidadãos têm feito os enxovais
da liberdade.

O número de casamentos é prodigioso. Os corações,
que se imobilizavam no cativeiro, começam a bater e apinhar-se, como
um pássaro que, longo tempo engaiolado, voa, voa, até ir repousar
bem longe, num ninho desde muito ambicionado.

O desmentido ao escravismo não podia ser mais completo. Onde ele fantasiava
o deserto, surge um oásis; onde ele assentava a desolação,
esplendem a alegria e o movimento vivaz. Que fazer? Cruzar os braços?
Não, porque o impenitente morre vociferando.

Explicam-se pelo desespero os manejos empregados para falsificar as eleições
de mesa parlamentar e a opinião pública.

É assim que se quis fazer crer que, da parte do Governo, havia a maior
fraqueza, que se dera uma submissão indireta no contrato com o Banco
do Brasil.

Entretanto, a singeleza mesma da operação basta para demonstrar
que ainda uma vez o sr. presidente do Conselho manteve os seus créditos
de prudência e de energia, de inflexibilidade e segurança de
vistas.

O Banco do Brasil pagava a multa de oito por cento (8%) por não querer
completar a sua carteira hipotecária.

Não há quem não compreenda logo que se o Banco do Brasil
se negava a emprestar à lavoura era por motivo de interesse do estabelecimento,
isto é, por julgar que o negócio não era bom.

É, pois, uma vitória, quando se anuncia a ruína total
da lavoura, conseguir do estabelecimento que melhor a conhece volver de novo
ao negócio, por ele considerado tão mau, que preferia a fazê-lo
pagar a multa de 8% de amortização da sua emissão de
papel-moeda.

Assim, pois, se o sr. presidente do Conselho obtivesse do Banco do Brasil
somente a volta ao negócio, neste momento, já era um triunfo
extraordinário, visto como, em tempos considerados lisonjeiros, aquele
estabelecimento se negou, apesar da coação da multa.

Mas S. Ex.ª obteve muito mais. O Governo empresta, é certo, ao
Banco do Brasil seis mil contos, mas o banco, por sua vez, entra para a carteira
hipotecária com a quantia de seis mil contos.

Quer isto dizer, primeiro, que o sr. presidente do Conselho conseguiu que
o Banco do Brasil realizasse o capital a que se obrigou emprestar à
lavoura e mais uma responsabilidade de seis mil contos para com o Estado;
segundo, que o sr. presidente do Conselho conseguiu a declaração
pública, o depoimento prestigioso do primeiro estabelecimento de crédito
do país, de que o estado da lavoura não é o que o pessimismo
partidário e alucinado assoalha, com perigo do crédito do Estado.

Ressalta, à simples vista, que obter pelo empréstimo de seis
mil contos o desmentido solene de uma crise, conjurar o mais formidável
abalo de que podíamos ser vítimas, por tão insignificante
soma, é dar prova do mais profundo tino.

Está na memória de todos que o Estado fez muito maior sacrifício
quando teve que dominar a crise bancária na praça do Rio de
Janeiro e, entretanto, não se havia dado uma transformação
radical na sociedade.

Mas o empréstimo foi sem juros; é exato, porém é
muito menos oneroso que se fosse emitido papel-moeda, que deprecia o meio
circulante e perturba todas as relações econômicas do
país e vós outros, em circunstâncias menos graves, lançastes
mão desse recurso desesperado.

O favor é grande para o Banco do Brasil e a prova é a alta
das suas ações.

É preciso distinguir o lucro direto e o lucro proveniente do aumento
de confiança pela sabedoria da operação.

O Banco do Brasil, entrando com seis mil contos de sua carteira comercial
para a hipotecária, priva-se de lucros certos e prontos, e muito maiores.
Quer os tivesse colocado em apólices, com o juro de 5% certo, capitalizado
de seis em seis meses; quer em letras comerciais, já pela segurança
do empréstimo, já pela facilidade de liquidação,
o banco tinha lucros que ele considerava superiores a 8% do valor do capital
retirado das transações hipotecárias. A razão
é óbvia, ninguém evita sob pena de multa um negócio
lucrativo.

Se é verdade que o Tesouro empresta sem juros, é também
verdade que o banco se priva de lucros imediatos e se aventura a transações
em que ele já não confiava, e em que reentra por ter uma base
certa, um cálculo seguro, para cobrir-se no futuro.

O fim do Governo não é ter casa bancária; não
é negociar em dinheiro; é aplicá-lo de modo útil
ao Estado.

Desde que o Tesouro não perde, desde que o estado não se priva
de nenhum serviço necessário, não há que estranhar
que ele aplique uma soma qualquer, que vai conjurar uma crise, com inteira
segurança de reembolso.

Acresce que a quantia emprestada não pode sofrer nenhum desvio do
fim especial a que é destinada, pois que será feita à
proporção que o banco a for distribuindo pela lavoura.

A cotação das ações subiu e era lógico.
Desde que a carteira hipotecária, sobre a qual pairavam as nuvens agoureiras
do pânico teatral do escravismo, teve o horizonte desanuviado, os capitalistas,
renascida a confiança, deviam voltar à procura das ações
do banco.

A bolha de sabão do empréstimo espocou por si mesma no ar e
não há, portanto, que admirar se ela não serviu para
o balão de ensaio.

Qualquer que seja o ponto de vista, sob o qual encaremos a oposição,
vemos que ela não tem nenhuma razão patriótica para combater
o Ministério.

É necessário fazer barulho e a oposição agita-se;
nada mais.

A verdade é que o Ministério da Redenção continua
a bem merecer da pátria e consolidando pela sabedoria administrativa
o nome e a fortuna nacionais no exterior e no interior.

6 ago. 1888

14-IX-1888

Respondo…

Estava o sr. Silva Jardim a pedir que o deixassem rir, e os seus ouvintes
faziam-lhe cócegas à vaidade, quando lhe irromperam dos lábios
estas palavras:

«Deixai que eu me ria desses republicanos abolicionistas que, depois
da abolição, ajoelharam-se aos pés da Monarquia.»

-Uma voz. -José do Patrocínio.

-O orador. -«Eu não sei onde há monturos, e quando os
haja, eu, como bom republicano, não devo revolvê-los».

Estou de acordo com o sr. Silva Jardim.

O monturo de misérias e ambições sobre o qual S. S.ª
assentou a tenda de combate, infecciona ainda mesmo não sendo revolvido.
É que ele se fez com o lixo de todas as consciências, com a podridão
de todas as almas que se decompuseram ao contato da lepra da escravidão.

Representando uma propaganda que tem como arma a difamação
a mais baixa dos seus adversários; fazendo do seu talento a cloaca
máxima onde o ódio dos vagabundos, forçados ao trabalho
pela Lei 13 de Maio, dejetam toda a bile; o sr. Silva Jardim, para sentir
sempre exalações nauseabundas, não precisa de sair fora
das teorias, que anda pregando.

É assim que, caluniando a História, entre outras falsidades
levantadas para adular a lavoura, S. S.ª disse que era obra de lavradores
a Revolução de 1817, a santa revolução a que eu
filiei, como republicano que sou, a causa da abolição, desde
o primeiro dia que falei e escrevi, desde os tempos em que, muito ingênuo
ainda, acreditando que os chefes republicanos eram sérios, ia interromper
o sr. Quintino Bocaiúva numa apresentação de candidaturas,
pedindo-lhe, em nome da tradição de 1817, que ele se externasse
quanto à abolição.

Quando se tem a coragem do sr. Silva Jardim para mentir assim, com a palidez
de um missionário, com a doce feição de um barbadinho
que evangeliza, quando se dá aos assassinos da República de
1817 a glória da sua vida; quando impudentemente se profana a sepultura
do padre Miguelinho para empanzinar crianças e deliciar despeitados,
tem-se com certeza coragem para tudo. Quem não hesita diante do saqueio
da memória dos mortos, como há de recuar diante do assalto à
honra dos vivos?

Os movimentos republicanos do Brasil são obra dos lavradores!

Eu só conheço um: a Inconfidência, devida à capitação
lançada pela metrópole sobre os escravos empregados na mineração.

Mas este, como o de agora, não pode ser invocado como justificativa.

Pedia-se a República para melhor explorar a escravidão.

A apologia dos lavradores dá a medida da sinceridade do sr. Silva
Jardim, na atual propaganda republicana, e não admira, pois, que S.
S.ª se faça o pregoeiro público de todas as calúnias,
com que o esclavagismo procurou macular a propaganda abolicionista.

Eu sou realmente um monturo, porque fui obrigado a arquivar as misérias
da escravidão. O monturo não existe senão porque há
uma sociedade que vai depositar nele tudo quanto ela tem de mais asqueroso.

A ilha da Sapucaia, que saiu pura e imaculada das entranhas da natureza,
não tem culpa de que a escolhessem para depósito de lixo.

Eu fui a ilha em que a fatalidade da História depositou o lixo das
consciências dessa geração miserável, que vivia
de explorar os seus irmãos.

O sr. Silva Jardim não quer ir revolvê-la, porque tem medo de
encontrar aí algum trapo que de alguma forma lhe pertença.

Acha o tribuno da Nova República ridículo o qualificativo Redentora
dado à princesa.

O que hei de eu achar no qualificativo beneméritos dado aos comissários
e fazendeiros, que o aplaudem?

Qual é mais digno, beijar a mão da senhora que levantou uma
raça ao ponto de o sr. Silva Jardim já a considerar capaz de
poder presidir a República, por um dos seus representantes, quando
até o último dia muitos dos seus correligionários só
a julgavam digna do chicote e do tronco e de servir como semovente à
garantia de hipotecas; ou apoiar-se na fortuna e no ódio dos escravistas
para subir às altas posições do Estado?

Há no meu procedimento uma contradição e eu a não
contesto.

Quem é o responsável, porém, eu ou o Partido Republicano?

Eu era republicano revolucionário durante a propaganda abolicionista
e nesse tempo o Partido Republicano negou-se a deixar aferir a sua bandeira
pelos sentimentos abolicionistas.

Aí estão os manifestos de S. Paulo como prova, aí está
o discurso do sr. Quintino Bocaiúva e o seu silêncio durante
a redação do Globo, da tarde, para demonstrá-lo. O sr.
Saldanha Marinho homologou as declarações dos seus correligionários.
Os srs. Campos Sales e Prudente de Morais, ambos senhores de escravos, não
queriam mais que o sr. Dantas.

O Partido Republicano não tinha pejo de declarar que não assumia
a direção da propaganda, porque se indisporia com a lavoura.

Mais ainda: quando já a vitória abolicionista se anunciava
pela resistência desesperada ao sr. Dantas, pela lei de 1885, pelo Ministério
Cotegipe e a monstruosa administração policial do sr. Coelho
Bastos, o Partido Republicano não se organizou, como agora, para acompanhar
o sr. Quintino Bocaiúva, que tinha confraternizado finalmente com a
propaganda abolicionista.

Em vão nas partes policiais, o sr. Coelho Bastos, para indispor os
abolicionistas com a princesa regente, declarava que nós nos retirávamos
das conferências e dos meetings dando vivas à República,
os republicanos esperaram o 14 de maio, o fato consumado da abolição,
para reclamar como obra republicana aquilo para que só haviam contribuído
pela resistência.

O que fez a princesa regente? Ainda, sob o Ministério Cotegipe, ela,
a santa, a meiga Mãe dos Cativos, dava à propaganda abolicionista
tudo quanto podia: as abundâncias de piedade do seu coração.
Seus filhos, os pequenos príncipes, nos seus jornaizinhos glorificavam
a propaganda abolicionista, enquanto ela, a princesa, debaixo de chuva e aos
estampidos do trovão esmolava pelos cativos, e quando voltava a palácio
repartia um pedaço do seu manto de rainha com os escravos foragidos,
que iam implorar-lhe proteção.

Os republicanos não assumiam a responsabilidade da propaganda abolicionista;
a princesa não se arreceava de tornar patentes, públicos os
seus desejos de ver extinta a escravidão.

Qual é mais nobre? O republicano que não arriscou um voto,
ou a princesa que jogou num assomo de fraternidade a coroa da sua dinastia?

Deixo à História a resposta.

Disse o sr. Silva Jardim que há homens que só vivem para o
estômago; eu repito a frase.

Estou convencido de que no dia em que cortarem os víveres à
propaganda republicana atual, ela perderá muito de entusiasmo.

A República da meia dúzia de sujeitos, que arrastam S. S.ª
a pedir cabeças de seus semelhantes para a forca e para a bala do sicário,
como se fossem cabeças de porco para feijoada, é assim. Passeia
à custa de subscrições, chama à vadiação
exílio, e aos bailes no Banlieu, tortura.

Ainda não há seis meses esses mártires de hoje deixavam
morrer à míngua a Gazeta Nacional, filha dos sacrifícios
de um republicano, que tem tanto de exaltado quanto de leal às suas
idéias.

Previna-se o sr. Silva Jardim, enquanto é tempo. Eles tirarão
de si quanto puderem e em seguida hão de difamá-lo com o mesmo
sangue-frio com que hoje caluniam a (sic).

14 set. 1888

29-X-1888

O Senado continua em sua ferrenha campanha protelatória; mas a fatalidade
dos acontecimentos incumbiu-se de infligir o castigo necessário aos
réus de leso-decoro parlamentar.

Nos debates têm vindo à tona da opinião, idéias
e aspirações que os senadores obstrucionistas não queriam
sequer fossem suspeitadas no íntimo deles.

O sr. Lafaiete, por exemplo, apavonara-se para a presidência do Conselho
e foi obrigado a despir a plumagem do veto à lei de 13 de maio e mostrar-se
o que realmente é: a gralha vesga da indenização.

Acostumado a ver os adversários acovardados ao flagício da
sua sátira, o Quasímodo senatorial pensou que o melhor meio
de chegar ao Governo era com o palavreado dos cães, e armazenar no
Senado as diatribes e ambições do escravismo.

E não refletiu nas conseqüências, não mediu o alcance
das suas palavras, nem a responsabilidade do carreto que fazia, tendo ao peito
a chapa numerada pelo sr. Paulino de Sousa.

Com espanto de todos, que não reparavam na proporcionalidade da queda
dos cabelos do Sansão de olho torto, com a decadência da sua
força intelectual; o sr. Lafaiete foi ao Senado pedir a indenização
e em nome dela intimar a retirada do Gabinete.

Não está esquecida ainda a solenidade preparada para esse debate,
que devia mudar o eixo da vida parlamentar, fazendo com que o Senado assuma
desde logo a sua missão de iniciador de situações políticas.

O sr. Lafaiete disse-o, uma, dez vezes: que a permanência do Ministério
ameaça as instituições, que depois do abalo de 13 de
maio, só podiam viver da reparação dos prejuízos
causados.

Por outra, S. Ex.ª pregou francamente, positivamente, a indenização,
fazendo daquela a razão de ser das instituições, pela
razão muito simples de que a abolição sem indenização
equivalia à morte com o confisco dos bens.

Não obstante, dias depois, o Rigoletto zarolho veio fazer uma emenda
a si mesmo e declarar que não tinha dito o que todo o mundo ouviu,
sem ainda desta vez medir as ilações que resultam de tal declaração.

O obstrucionismo do Senado tinha razão, quando empregado para depauperar
o Gabinete e obrigá-lo a retirar-se, para dar ao parlamento ensejo
de forçar o imperador a uma política diferente, isto é,
para coagir o imperador a aceitar a indenização.

Desde o momento em que o sr. Lafaiete declara que a indenização
não é problema para se impor, sem ter em conta o estado do Tesouro,
fica fora de dúvida a inoportunidade, ou, mais precisamente, a impertinência
e a obstrução.

O sr. Lafaiete concorda com o Ministério num ponto: não há
dinheiro para indenizar os ex-proprietários de escravos. Por que motivo,
pois, responsabilizar o Gabinete por não querer iniciar uma política
de esperanças vãs?

Não manda a boa compreensão da responsabilidade do Governo
esperar pelos novos trabalhos ministeriais, para que, na futura sessão,
bem apreciadas as condições do Estado, ver o que é possível
adiantar em benefício da lavoura e sem gravame das demais classes populares?

Como, depois de provado pelo próprio sr. Lafaiete que a oposição
apenas levantou a poeira com a indenização; como, depois de
demonstrado pelo sr. Dantas que a política de Gabinete é a única
de conformidade com o nosso momento social, os senadores oposicionistas ainda
teimam em protelar a votação dos orçamentos?

Não é muito mais patriótico terminar a sessão
e dar tempo a melhor julgamento, preparando-se a oposição, por
meio de acordo, para dar batalha na próxima sessão? Os homens
de boa-fé concordarão conosco, mas não assim, os que
fazendo vida de política, os que têm a legar aos seus descendentes
a tradição de instrumento de partidos tão cegos quanto
imprestáveis.

Para esses, o que nós dizemos não é senão o fruto
do salário que recebemos, confundindo assim a nossa com a consciência
deles.

Além da poeira da indenização, o debate no Senado levantou
da sua sepultura o «Lázaro hediondo, a miserável questão
chinesa».

Felizmente, a palavra do honrado senador Taunay já intimou à
peste amarela a quarentena perpétua que lhe impôs o patriotismo
brasileiro. A opinião pública confraternizou com S. Ex.ª
e deixou mais uma vez patente que não haverá quem tenha for&ccedilccedil;a
para atentar tão barbaramente contra a nossa nacionalidade.

O chinês não entrará em nosso país, quaisquer
que sejam as astúcias empregadas pelos que pretendem explorá-lo.

Aconselhado como sucedâneo da escravidão; apresentado como um
fator arbitrário da baixa do salário, o chinês encontra
diante de si a mais formidável barreira: a consciência nacional,
de que ele é o mais poderoso perturbador do progresso brasileiro.

Dizemo-lo com a tranqüilidade da mais íntima convicção;
não nos receamos da entrada do chinês em nosso país.

Fundem-se, não um, mil bancos; reunam-se para favorecer a mongolização
do Brasil, todos os favoneadores de interesses inconfessáveis; gritem,
estipendiem adesões, reformem os processos e o chinês não
entrará.

Será mais fácil voar pelos ares o Senado vitalício,
dar juízo ao sr. Lafaiete, fazer tudo quanto parece impossível
neste país.

O chinês não entrará no Brasil, nem puxado pelo rabicho
por toda a oligarquia e plutocracia que nos infelicitam.

Mas os oposicionistas no Senado não viram isto; esqueceram-se de que
o Governo Sinimbu teve na questão chinesa um dos maiores afluentes
que lhe formaram o vasto estuário de impopularidade.

Quando a simples tática política, desde o momento em que se
reconheceu a formação indenista no Partido Liberal, aconselhava
que se restringisse o debate às matérias do orçamento,
como um meio de impedir revelações impopulares; a oposição
entendeu que devia dar à língua, e o resultado foi este: sair
do partido que se diz liberal a adesão ao chinês, ou por outra,
a confissão pública de que se premedita um atentado contra todos
aqueles que nasceram e residem no Brasil.

Foi por isso que dissemos que a fatalidade dos acontecimentos se incumbiu
do castigo dos obstrucionistas.

Que confiança podem merecer ao país estadistas que pretendem
defraudar um povo inteiro para servir à sua clientela agrícola?

Com que direito podem querer impor-se à Coroa estadistas que antes
de tudo confessam que a Monarquia só se pode manter empregando como
alicerce do trono interesses inconfessáveis, tais como a indenização
e a peste amarela?

O Partido Liberal tem neste momento mais urgência de calar-se do que
o Ministério de ver votado o orçamento.

Cada dia de debate deixa mais e mais patente a incapacidade do grosso dos
chefes liberais para governar, e cria maior dificuldade à confiança
da Coroa no Partido Liberal, pois que está demonstrado que uma situação
dele reproduziria a de 1878 a 85, pela instabilidade dos presidentes do Conselho.

Se pudéssemos dar um conselho aos obstrucionistas, seria este: calem-se,
quando V. Ex.as abrem a boca desmoralizam o seu partido.

29 out. 1888

4-I-1889

À ponta da pena

O sr. Quintino Bocaiúva, certo de que pela sua decadência intelectual
e pelas falhas de sua vida não pode travar luta jornalística
comigo, escondeu-se por detrás da -A Província de São
Paulo, velha cadela que viveu sempre das sobras do rancho dos piratas do barrete
frígio.

Editando os insultos, que me foram atirados por essa mediocridade empapelada
que se chama Rangel Pestana, magro bode branco, gasto ao cio dos pastos de
fazenda, o sr. Quintino Bocaiúva assumiu a responsabilidade do artigo
que pretende infamar-me.

Antes da resposta, uma explicação:

Acusam-me de traição à República, os Rangel e
os Quintino; entendem que a minha atitude junto ao Ministério 10 de
Março e da princesa imperial é devida à venda dos meus
princípios republicanos. Para dar, como dou, o meu apoio ao Ministério
e à minha Senhora Veneranda, que é alvo de todos os ódios
da atual propaganda republicana entendem esses velhos ganhadores da imprensa
que me fiz numerar, a exemplo deles, pela placa de um dono.

Os salteadores da honra alheia, não tendo por onde me ferir no passado,
injuriam a minha pobreza presente.

Os homens públicos não têm vida privada; devem expô-la
toda em suas íntimas minudências ao público.

Eu sou hoje paupérrimo. Tudo quanto tenho é fruto do meu trabalho
quotidiano, a exploração dolorosa e árdua da minha inteligência.

Entretanto, entrei relativamente afortunado para a imprensa, porque a família
de minha consorte pôs à minha disposição a sua
bolsa, que eu deixei vazia.

Além disso, eu saquei sobre o meu crédito e contraí
dívidas extraordinárias para poder sustentar a campanha da imprensa,
que se estendeu desde 1881 a 1888, por minha conta, nos jornais que dirigi.

Terminada a 13 de maio, na lei, a luta abolicionista, pensei em retirar-me
da imprensa, posto que para mim não tinha sido senão do mais
cruciante sacrifício.

Eu esperava apenas registrar as aclamações triunfais à
abolição, para dar por finda a minha missão jornalística.

Fui, porém, surpreendido pela grita de uma propaganda que ameaçava
destruir pela indenização a obra imortal de 13 de maio.

O meu lema, desde o primeiro dia em que me apresentei ao público,
foi sempre abolição imediata e sem indenização.
Os escravistas reclamavam esta; eu conservei-me na imprensa para resistir-lhes.

Com grande mágoa minha vi que os antigos clubes de lavoura convertiam-se
em republicanos, e que os seus manifestos reclamavam a indenização.

Compreendi, como todos os homens de bem, que a República não
era senão a máscara grosseira de que se servia o escravismo,
para ver se fazia dos propagandistas que o haviam derrotado instrumentos da
sua vingança e dos seus interesses.

Do mesmo modo que antes havia flagiciado os republicanos, que não
queriam medir a sua bandeira pela abolição, fiz da pena um látego
para castigar os mercadores da democracia que inscreviam na sua bandeira a
indenização à pirataria.

Os cobardes recuaram; e, embuçados na mais torpe hipocrisia, disseram
nuns congressos caricatos que não eram indenistas, enquanto os candidatos
nas circulares e os deputados provinciais nas assembléias permitiam
ou votavam a indenização.

Que os meus golpes iam-lhes ao coração, prova o ódio
que me votam. Apesar de tudo, não podem os Rangel e Quintino negar
que eu sou um negro de talento.

Vendo que não podiam bater-me no terreno dos princípios, porque
eu tinha por mim um passado de firmeza e intransigência, ao passo que
eles tinham o mais triste passado de tergiversações e dobrez,
os Rangel e Quintino recorreram à difamação.

Declararam-me traidor à República e como sabem que eu sou pobre
e sou negro venderam-me ao Governo.

Já no dia imediato à abolição da escravidão,
sem que nenhuma palavra minha houvesse dito qual a orientação
política futura do amigo da véspera, eu era já o último
negro que se vendera.

A luta tornou-se pessoal; eu neguei aos Rangel e Quintino a capacidade de
diretriz de que precisa o Partido Republicano; eles que não podiam
negar o seu erro político, abstendo-se da responsabilidade da propaganda
abolicionista, fizeram-me a guerra cobarde e traiçoeira da calúnia
anônima.

Devia eu abandonar a imprensa, quando era combatido desenfreadamente pelos
indenistas?

Podia eu negar o concurso da minha pena ao Ministério, que era combatido,
só por ter assumido a responsabilidade da lei de 13 de maio?

A nova República, além disso, deixava em paz o sr. d. Pedro
II e arremetia furiosamente contra a princesa.

Há algum homem de honra que diga que eu devia cruzar os braços
diante desses ataques?

Explicando a atitude que assumi, eu disse algures:

Imaginem, meus senhores, que eu sabia que em certa estrada havia uma quadrilha
de ladrões, e como não pudesse passar sozinho por ela e oferecer
combate aos bandidos, apelava para os sentimentos de fraternidade de cavalheiros,
de opiniões políticas contrárias às minhas.

Esses cavalheiros resolviam-se auxiliar-me, e, juntos, dávamos batalha,
vencendo os ladrões.

Terminado o combate, desarmados os bandidos, diziam estes:

Ouça, nós somos seus correligionários políticos;
entregue-nos esses senhores que vieram em sua companhia, porque eles só
o acompanharam por especulação.

Devia eu entregar aos bandidos, só porque se diziam meus correligionários,
os leais companheiros que me haviam dado a honra e a glória de garantir
os direitos da civilização?

Não há dúvida que os neo-republicanos se dizem meus
correligionários, mas não há também dúvida
que eles na véspera faziam parte da quadrilha de ladrões de
alma e suor da raça negra.

Cumpria à minha honra política entregar a princesa a esses
miseráveis?

O presente não responderá, mas eu olho serenamente para o futuro.

Pela minha atitude franca, leal, ao lado do Ministério e da redentora
dos cativos, concluiu-se que eu sou um judas e que troquei pelos trinta dinheiros
da verba secreta a minha consciência.

Nos Juízos desta cidade e no Tabelião dos Protestos há
os vestígios do meu bem-estar presente. A verdade é que eu tenho
encontrado mais piedade nos meirinhos do que nos evangelistas da fraternidade.

A Cidade do Rio tem vivido da magnanimidade de grande parte de seus empregados,
e do heroísmo e desinteresse de um núcleo de homens de bem que
aumentam a sua dedicação à medida dos meus sofrimentos.

Se ainda não se fechou essa pequena fortaleza de brio e de coerência
é simplesmente porque alguns dos meus credores, os de soma mais avultada,
confiam na minha honra, ou são generosos bastante para não aumentarem
a aflição ao aflito.

O que o Ministério me tem dado é o mesmo que dá a toda
a imprensa: as suas publicações, que eu não sei se têm
avultado mais na caixa do O Paiz do que na da Cidade do Rio.

Os Rangel e Quintino, porém, propalam que eu recebo mundos e fundos
e mandam espalhar por toda a parte que se prepara emprego de grande renda
para mim.

É assim que me nomearam subdiretor do Correio, diretor do Diário
Oficial, tabelião da corte, distribuidor-geral desta cidade, cônsul
de Montevidéu, quando eu não requeri nenhum desses lugares e
nem fiz concurso para nenhum deles.

Agora a resposta:

Suponhamos que eu me vendi.

Os meus difamadores não coram ao proferir esta miséria?

Pois não é uma vergonha para esses que reclamam, hoje, os louros
da vitória abolicionista, saber-se que um dos soldados da sua fileira
saiu tão pobre que teve necessidade de vender a sua consciência
para poder viver?

Que qualidade de chefes é esta que sai nédia e próspera,
enquanto os soldados que entraram relativamente ricos saem a pedir esmola?
Não fica assim demonstrada a especulação dos supostos
heróis?

A quem me vendi eu? Aos negreiros?

Se a estes, como foi que não enriqueci, quando é sabido que
eles deram aos Rangel e Quintino os meios com que eles engordaram o seu silêncio
até a hora em que desanuviou-se no horizonte a estrela do abolicionismo?

Aos abolicionistas? Estes não precisavam de comprar o que se lhes
oferecia de alma alegre e coração alvoroçado.

A quem me vendi eu, e se me vendi, onde está este dinheiro, que não
serve ao menos para que eu me possa libertar dos vexames judiciais?

O sr. Quintino Bocaiúva fez mal em editar as torpezas d’A Província
de S. Paulo. Veio dar-me ensejo de justificar-me plenamente aos olhos dos
meus concidadãos e de demonstrar que o vendilhão, useiro e vezeiro,
é ele que se estreou na imprensa a defender uma companhia de seguros
de vida de escravos, da qual recebia salário, e que não passava
de uma vergonhosa armadilha à ingenuidade dos senhores.

Eu vou fazer a biografia do sr. Quintino Bocaiúva; com subsídios
republicanos e com outros que a memória pública registrou.

Veremos quem é o Judas, se é o pobre diabo que tem vivido sempre
por si, ou o Catão engomado, que surge sempre de dentro de uma burra
de milionário.

4 jan. 1889

5-I-1889
À ponta de pena

No artigo Rangel-Quintino há um trecho que reservei para largos comentários:
reclama-se para o editor das calúnias d’A Província de S. Paulo
a gratidão dos libertos em nome do seu abolicionismo.

Rangel pergunta:

«Quem mais fez que o insigne jornalista e notável orador, na
imprensa e na tribuna, batendo-se dia e noite contra todos, Governo, partidos
e capangagem a soldo da polícia?

Quando os abolicionistas fluminenses precisaram de um brasileiro com autoridade
e querido do povo para falar nos meetings celebrados nas praças públicas
e dispersados à força, a quem procuraram?»

Estes dous períodos dão a medida exata da justiça republicana
destes tempos.

O sr. Quintino Bocaiúva não se imiscuiu na propaganda abolicionista
senão depois que estava patente o seu próximo triunfo, e quando
o sr. visconde de S. Salvador de Matosinhos assegurou-lhe um salário
para defender no O Paiz a causa dos cativos.

Até assumir a chefia da redação desse jornal, o sr.
Quintino Bocaiúva não passava de um inimigo dissimulado do abolicionismo;
entendia que esta propaganda era um mergulho no abismo.

Quando comprei o jornal que hoje desonra a memória de Ferreira de
Meneses, o sr. Quintino Bocaiúva lá havia escrito dous artigos,
que eram a negação absoluta do programa que o seu fundador havia
traçado. O chefe do jornalismo não trepidou profanar as idéias
do batalhador recentemente morto.

Escolhido candidato pelo Partido Republicano, para representá-lo na
Assembléia-Geral, em vão interpelei o sr. Quintino Bocaiúva
acerca de suas idéias abolicionistas; tergiversou e dissimulou no ruído
de sua claque a resposta, que devia a mim e aos honrados chefes do positivismo
brasileiro.

Redigindo o Globo da tarde, fundado com os capitais do sr. comendador Mayrinck,
o sr. Quintino Bocaiúva limitou-se a não romper com o abolicionismo,
porém nunca o auxiliou. Não podia proceder de outro modo; o
patrão pagava para defender um banco de crédito real, tendo
por base a hipoteca de escravos, e com garantia do Governo.

Além disso, associado a uma empresa que devia comprar a estrada de
ferro de Cantagalo, dando à província o dinheiro para comprá-la
e mais o juro de 8% -e sendo negreira a assembléia e a administração
da província, o sr. Quintino Bocaiúva não podia defender
os cativos.

Primeiro os seus negócios, depois as suas idéias.

O Globo nasceu e morreu sem nunca ter demonstrado que lá dentro estava
um chefe republicano, isto é, um homem que, tendo por dever defender
a liberdade, a igualdade e a fraternidade, tinha a obrigação
de hipotecar-se por inteiro à causa dos enjeitados da lei.

Estes fatos são de ontem; não podem ser contestados.

Para se ver bem qual era o abolicionismo do sr. Quintino Bocaiúva,
é preciso recordar um fato, passado muito tempo depois de suas manifestações
em prol da confederação.

O Ministério Cotegipe vinha fazer votar o projeto Saraiva, que era
a reação contra as idéias do Ministério Dantas.

Não podia haver engano quanto às vistas do Gabinete 20 de Agosto:
os seus principais ministros tinham sido os sustentáculos ostensivos
do Ministério que se retirava.

O sr. Quintino Bocaiúva, porém, não hesitou em receber
o Gabinete Cotegipe de modo tal que eu vi-me obrigado a refrear-lhe o entusiasmo
pela transcrição do artigo: mais um esquife que passa.

Durante todo o combate desesperado do abolicionismo ao sr. Cotegipe, o sr.
Quintino Bocaiúva apenas falou em conferências e meetings umas
seis vezes e para fazê-lo era necessário que os abolicionistas
o importunassem com rogativas.

Quanto aos seus artigos, eram o negócio da folha que ele redigia.
Nos últimos tempos os jornais negreiros não faziam carreira,
e demais disso, o sr. visconde de S. Salvador de Matosinhos era abolicionista
e não se jogam as peras com o amo.

Quando o proprietário do jornal libertava, à sua custa, escravos
para que o número de libertos fosse igual ao dos anos do Imperador,
o que havia de fazer o sr. Quintino?

Acresce que o Ministério 20 de Agosto incumbira-se do reclame d’O
Paiz, como abolicionista, e seria rematada parvoice não aproveitar
o propício concurso da cegueira ministerial.

Não é ingratidão contar as cousas como se deram. Reconheço
que O Paiz foi um dos poderosos fatores para o desenlace de 13 de maio, mas
o trabalho abolicionista, propriamente dito, não era do sr. Quintino
Bocaiúva, e sim de Joaquim Nabuco, que chegou com o prestígio
extraordinário da sua eleição inesperada, e sobretudo
de Joaquim Serra, nos seus Tópicos do Dia.

Não foi o sr. Quintino Bocaiúva quem deu orientação
abolicionista ao O Paiz, mas Rui Barbosa que, por ser demasiado colorido,
só se demorou poucos dias à frente da redação.

Confesso que o sr. Quintino Bocaiúva mostrou-se abolicionista nos
dous últimos anos de propaganda, mas contesto que ele se tivesse preocupado
seriamente com a sorte dos escravizados.

A prova deu-a ele na eleição do sr. Ferreira Viana. Quando
a confederação procurava fazer da reeleição do
ex-ministro da Justiça um plebiscito abolicionista, o sr. Quintino
Bocaiúva prestou-se a ser candidato, para recolher 108 votos, sem se
lembrar que deste modo quebrava a unidade, até então nunca violada,
do abolicionismo.

A propaganda abolicionista não precisava do prestígio do sr.
Quintino Bocaiúva; pelo contrário, repartiu com ele o seu, que
era enorme.

Quando o sr. Quintino Bocaiúva se dignou de baixar o seu republicanismo
até a propaganda da abolição, já esta havia forçado
as portas do parlamento e tinha tornado obrigatório o respeito pelos
seus principais representantes.

As conferências e meetings abolicionistas já haviam sido honrados
com a presidência e a palavra dos senadores, deputados e cidadãos
os mais notáveis.

Não precisava do sr. Quintino Bocaiúva, para se impor à
consideração pública, a tribuna em que já haviam
falado Nicolau Moreira, Joaquim Nabuco, José Mariano, Antônio
Pinto, Severino Ribeiro, Ennes de Sousa, Silveira Martins, Rui Barbosa, Getúlio
das Neves, Frontin, Silveira da Moita, Otaviano e Dantas.

Desde o princípio as conferências foram sempre presididas por
homens de grande merecimento e prestígio, e para não causar
extensa nomenclatura lembrarei que elas foram honradas quase sempre pela presidência
de Nicolau Moreira, de Muniz Barreto, o cego, e do senador Silveira da Mota,
quando ainda o sr. Quintino Bocaiúva não se atrevia a dizer
na sua circular se era negreiro ou abolicionista.

Toda a gente sabia, além disso, que estavam conosco e que nos emprestavam
a força moral da solidariedade André Rebouças, Beaurepaire
Rohan, Jaguaribe, José Maria do Amaral, Álvaro de Oliveira,
Benjamin Constant, Acioli de Brito, Monteiro de Azevedo, Macedo Soares, Muniz
de Aragão, toda a flor do talento, do saber e do caráter nacional.

Para que precisávamos nós de prestígio do sr. Quintino?
Antes que ele houvesse proferido uma palavra sobre o abolicionismo, a confederação
abolicionista havia feito aceitar pelo parlamento o seu manifesto, e tinha
produzido a solenidade comemorativa da libertação do Ceará,
que abalou festivamente toda a população desta cidade.

O sr. Quintino Bocaiúva não nos trouxe nenhuma força,
foi mais um e nada mais.

Resta-me, por hoje, fazer ressaltar a contradição com que os
períodos de Rangel justificam a atitude da raça negra.

Quer o homem que os serviços do sr. Quintino Bocaiúva prendam
para sempre a gratidão dos ex-escravizados e dos que são o sangue
do sangue das vítimas, ainda agora cobiçadas pela pirataria
Sans-coulotte.

Muito bem. Mas, se ao sr. Quintino Bocaiúva, que recebia ordenado
do sr. visconde de S. Salvador de Matosinhos, para ser abolicionista, que
não arriscou senão a queimadura de uma bicha chinesa, devem
os escravizados tamanha gratidão; o que devem eles à Princesa,
que arriscou o trono para libertá-los?

Se o sr. Quintino deve ser sagrado para os negros, e o tem sido, como devem
eles considerar a Senhora que, ao ter a notícia do grande movimento
revolucionário contra a sua inofensiva personalidade, exclamou:

Não faz mal; ao menos deixei a minha pátria livre!

Eu sou um ingrato, porque a Guarda Negra, que supõem dirigida exclusivamente
por mim, é gratuitamente responsabilizada pela agressão ao sr.
Quintino Bocaiúva; eu não seria um ingrato se ensinasse os negros
a odiar a princesa!

Para os meus detratores eu devo ter duas qualidades de moral: uma para adulá-los,
outra para aplicar aos que não pertencem ao credo ensangüentado
da república da calúnia e da forca.

O que são mais: parvos ou perversos?

A abolição deve canonizar o sr. Quintino Bocaiúva e
condenar ao exílio ou à pena última Isabel, a Redentora?

E não se lembram de que o bom senso público vai ler o que eles
escrevem e se esquecem de que tudo quanto está impresso será
depoimento perante a história!

Concluindo: devo declarar que não me entristece ver o primeiro lugar
do abolicionismo dado ao sr. Quintino Bocaiúva.

Dos personagens da fábula do imortal La Fontaine A carruagem atolada,
a mosca tinha o primeiro plano, e se não fazia força para safar
o veículo o seu zumbir era ouvido e o seu peso sentido pelas orelhas
das cavalgaduras.

5 jan. 1889

29-IV-1889

O ódio togado

O sr. Rui Barbosa entende que o imperador vai sacrificar ao sentimentalismo
a segurança pública com o grande ato projetado para comemorar
o dia 13 de maio; o perdão dos escravos condenados por força
da lei de 10 de junho de 1835.

Quer o advogado que, no seu respeito à Justiça, emprestou o
seu talento para o bom êxito do assalto à sagrada herança
da fé de muitas gerações, e encaminhou pelas desonras
judiciárias do nosso foro o saqueio às freiras, cometer aos
tribunais a revisão dos julgados, que condenaram a penas excessivas
os delinqüentes escravos.

De sua argumentação, porém, se depreende que o sr. Rui
Barbosa opina pela justiça das sentenças, porque os senhores
se permitiram a liberdade de aplicar por suas mãos a pena nos casos
que não atingiram o último grau de criminalidade.

O júri que condenou à morte criminosos escravos foi canonizado
pelo ex-líder do Ministério Dantas, e o imperador admoestado
de que procedeu mal comutando sistematicamente a pena de morte, quando lhe
cumpria aprender com o rei Oscar da Suécia a não colocar o seu
coração acima das leis, ainda as mais cruéis.

Inútil seria recordar aqui a história do júri durante
a escravidão e provar que ele foi sempre de uma brandura extrema para
com os linchadores de Itu, Rio Bonito e Resende, para os assassinos do Rio
do Peixe, Madalena e Rio de Janeiro, ao passo que era de um rigor bárbaro
contra os seus escravos que, ora eram condenados às galés, ora
entregues aos senhores, a fim de que estes com a conivência judiciária
pudessem iludir a demência do soberano.

Também seria inútil lembrar que nenhum dos autores citados
pode se adaptar ao caso argüido pelo sr. Rui Barbosa, porque a condição
dos criminosos difere essencialmente como a liberdade da escravidão.
Em discussão serena começaríamos por ponderar que a própria
letra constitucional vem em auxílio da reparação que
o imperador tenciona efetuar.

A Constituição mandou que os cidadãos fossem julgados
em tribunais de seus pares. A escravidão, porém, anulou a disposição
fundamental. O escravo só era par dos seus juízes no ato em
que estes deviam cominar-lhe a sanção penal. Essa ponderação,
que todos os códigos exigem para castigar, essa espécie de pesagem
da consciência do réu na balança da moral praticada no
mesmo meio, não se dava para o escravo. A disparidade entre o tribunal
e o acusado estava patente na desigualdade de condições. Demais,
todas as circunstâncias absolutórias do código foram invertidas
em agravantes, pela exceção odiosa da lei de 1835.

Comparar essa excrescência jurídica -o júri para o escravo-
com os tribunais regulares, que julgam o criminoso dentro do Direito normal
e partem da integridade da sua pessoa moral para confrontá-lo com os
delitos; querer que o julgamento daquele tenha o mesmo cunho social desses
outros é uma aberração que não se explica.

O mais admirável é que o próprio escravismo nunca dissimulou
o estímulo que dava aos crimes de escravos.

Combatendo a magnanimidade do imperador quando comutava a pena de morte imposta
pelo júri aos escravos, disse um deputado que preconizava as excelências
da prisão celular, como um executor emérito da barbárie
humana: condenar os escravos às galés importa não lhes
infligir pena, porque a vida das galés não difere da das fazendas!
Mais tarde, quando o crime da Paraíba do Sul, comovendo o país
inteiro, decretou a abolição da pena de açoites, deputados
em grande número viram neste ato a perturbação do regime
agrícola e a abolição tácita do cativeiro, porque
não se podia admitir a escravidão sem a disciplina desumana
do chicote.

Estes fatos são bastante eloqüentes para deixar ver a origem
dos crimes cometidos por escravos. A generalidade do regime prova a generalidade
da causa, e, por isso mesmo, dota com as circunstâncias absolutórias
do código todos os delinqüentes.

Acha, porém, o sr. Rui Barbosa que é sentimentalismo baixar
a justiça do imperador até os homens, que foram desde do berço
condenados às galés; que foram pública e oficialmente
declarados vítimas de um regime bárbaro, e um dia se revoltaram
contra os seus algozes.

Entretanto, em todos os códigos se distinguem os criminosos forçados
dos voluntários. Não se explicam de outro modo as atenuantes.
É um perigo perdoar réus que foram escravos.

Que moral a do ilustre conselheiro! Que justiça a do laureado jurisconsulto!

Sobretudo que abolicionismo! Para S. Ex.ª o complemento da abolição
devia ser o seqüestro social do ex-escravo. O cativeiro fere de interdição
perpétua a vítima.

Não teria outra linguagem um ladr&atatilde;o fidalgo que não
quisesse restituir a fortuna roubada a uma vítima ignorante e de baixa
condição, sob pretexto de que o espoliado não sabia empregar
bem a sua prosperidade.

E para exibir o engulhamento do seu coração, que o despeito
de candidato infeliz tornou peco e sorna, empanturra-se de erudição,
que lhe fica atravessada aos bicos da pena, como a galhada de um touro em
boca de jibóia farta.

Os seus artigos são lúgubres como um tribunal de inquisidores,
julgando num subterrâneo ao fagulhar de fogueira enxofrada, enquanto
o chumbo derretido chia à gula de vítimas. Tem umas minudências
de metal candente em canto de unha, de um despolpar lento de mão, ou
de um rasgar de veias moroso a fio de lanceta.

Quando um infeliz cai nas garras do seu ódio, sofre a tortura de quem
fosse condenado ao suplício da besuntadela de melado e em seguida à
exposição a nuvens de maribondos. Outras vezes é como
se tivesse de sofrer o estaqueamento e o colete de couro.

Não há meio de o chamar aos sentimentos de humanidade em favor
dos negros. Se estivesse em seu poder, o sr. Rui Barbosa repetiria a cena
do anão de Edgard Poe, que se lhe assemelha em instintos, e se lhe
ajusta como uma luva ao sentimento de vingança.

Vimo-lo outro dia pontificar na bênção dos revólveres
e das garruchas republicanas, com solenidade que lembrava o coro de punhais
de Meyerbeer.

Entretanto, agora está a querer pôr a sua pena como ferrolho
à porta das galés, para impedir o êxodo das vítimas,
que a magnanimidade do imperador quer decretar.

São recrutas para a guarda da rainha! Brada a sua doença mental
que descobriu duas semanas santas no intervalo do ano da redenção.

Entretanto estamos certos de que ele se julgaria muito honrado com uma manifestação
de galés de qualquer espécie, inda que negros, contanto que
o encomiasse como o maior dos abolicionistas, o maior dos jornalistas, o maior
dos oradores, o maior dos jurisconsultos. A publicação do manifesto
do Pati do Alferes é uma prova.

Daqui do íntimo do nosso senso crítico estamos a ver a alma
desse homem, espécie de lagarto invernado, a roer num buraco úmido,
sombrio, abafadiço a própria cauda, para disputar a vida contra
o meio inclemente que lá fora vai preparando o renascimento anual da
natureza.

Devemos confessar ao público: o sr. Rui Barbosa começa a nos
causar dó. Enquanto ele se dava à exposição, como
os capítulos de Fernão Mendes Pinto onde nos encontramos com
bonzos cabeçudos e ídolos de formas horripilantes, torrentes
de onde saem legiões de serpentes e jacarés, a cousa nos deliciava.
Agora, porém, o nosso antigo companheiro de lutas perdeu de todo o
juízo e nos faz o efeito de um camaleão doido, que saísse
a dar rabanadas à esquerda e à direita.

Que o imperador não se detenha. Pelas maldições do escravismo
já Sua Majestade devia esperar. Em troca, porém, conte o soberano
com as bênçãos das gerações futuras.

29 de abril de 1889

3-V-1889

O mercenário

A todas as outras questões se adianta a da moralidade, diz o sr.
Rui Barbosa.

Pois que é pela moralidade que se deve principiar, aceitemos o ponto
de partida.

A moralidade s&oacoacute; se pode constituir em tribunal, quando é clara
e provada em todos os juízos, e bem assim em quem inicia o processo.

O sr. Rui Barbosa nomeou-se órgão da justiça pública
e encarregou-se do libelo. É preciso, pois, examinar-lhe a moralidade.

Salienta-se na biografia dos homens públicos da província da
Bahia o princípio da carreira de S. Ex.ª.

Educado por seu tio, que o acolheu órfão, que o levou à
Academia e à Assembléia Provincial, o sr. Rui Barbosa deu mostras
de seu caráter, abandonando a parcialidade liberal em que militava
aquele ilustre brasileiro, que dotou a imprensa nacional com O Monitor, um
dos órgãos mais brilhantemente redigidos de que há notícia.

O grupo do sr. Dantas era mais forte. A carreira sobre os ombros do grande
chefe popular era mais rápida. O sr. Rui Barbosa não hesitou;
entregou-se de surpresa ao rival do seu benfeitor, e desde então serviu
passivamente a todas as perseguições políticas de que
ele foi vítima.

Não havia em jogo nenhum princípio; não era por uma
idéia que os dous se batiam. Pertenciam ambos ao mesmo partido e haviam
simplesmente divergido quanto ao modo de realizar o programa.

A bandeira liberal tremulava sobre os dous campos, e num estava o pai adotivo
e no outro a esperança política. De um lado estava o coração
e de outro o interesse. O sr. Rui Barbosa preferiu o segundo.

Eleito deputado, S. Ex.ª veio para a Câmara e começou a
sua vida parlamentar.

Acompanha desde logo o Ministério Sinimbu, acarneirado a essa maioria,
que foi qualificada por Silveira Martins câmara dos servis.

Num dia o tribuno rio-grandense rompe em oposição ao Gabinete
de que fizera parte. Queria, dizia ele, a elegibilidade dos acatólicos
e o Ministério negava-a.

O sr. Rui Barbosa se exibira na tribuna popular fluminense, advogando a supressão
da Igreja do Estado, a plena liberdade de cultos. Não obstante, S.
Ex.ª continua na maioria e faz mais; é ele quem se incumbe de
responder a Silveira Martins, motivando à consciência limpa de
José Bonifácio, o tribuno, um belo discurso, que lembra a frase
de Marmontel acerca dos aplausos que castigam.

O Ministério Sinimbu, que era conhecido pela firma John Lins &
C., é arrastado no desastre do Banco Nacional pelo seu presidente do
Conselho.

Os tribunais reclamam ao Ministério de 5 de Janeiro o co-réu
de uma falência culposa; o ministro da Justiça, o sr. Lafaiete,
precisa praticar um atentado constitucional, avocar uma causa pendente para
salvar o chefe do Gabinete; a Câmara não tem meio de fazer calar
a oposição; aconselha a fuga aos ministros e ela por sua vez
fica deserta; a opinião pública revolta-se, o Governo precisa
de cercar de batalhões a Câmara dos Deputados, para que os ministros
não entrem com as faces fustigadas pela indignação popular.

O sr. Rui Barbosa se conserva nessa maioria, é solidário com
ela pela palavra e pelo voto e fica ao lado desse Ministério da seca
do Norte, das transações do café, da estrada de Leopoldina,
do vintém, do Xingu, dos chins, dos pântanos da cidade, Ministério
cuja vida fervilhava escândalos como em vasta apostema miríades
de vermes. Dir-se-ia que S. Ex.ª estava atarracado àquela podridão.

Por esse tempo, Joaquim Nabuco, com a solenidade do arcanjo bíblico,
já havia empunhado a trompa conclamatória do povo para o Josafá
da nossa história, onde devia ser julgado o mundo da escravidão
e ressurgir dos mortos a alma nacional.

A oposição tinha a flor da probidade parlamentar, a escolha
moral da política. Lá estavam José Bonifácio,
Nabuco, Costa Azevedo e Manuel Pedro.

A maioria era capitaneada por Sousa Carvalho; o Ministério era presidido
por um réu de falência culposa. E o sr. Rui Barbosa ficou-se
lá sobre aquela carniça da advocacia administrativa.

Caiu o Ministério Sinimbu, o ministério da constituinte-constituída.

O sr. Rui Barbosa emigrou daquela algidez cadavérica e acarrapatou-se
ao Ministério Saraiva, sustentando aí o sr. Buarque de Macedo,
o mesmo homem que havia posto às claras o negócio do gás,
no qual surpreendeu-se um deputado da maioria, lendo na Câmara uma nota
que a companhia tinha pago para ser publicada nos a pedidos dos jornais.

Sabe todo o mundo que o sr. Rui Barbosa foi o instrumento dócil desse
Ministério, e S. Ex.ª mesmo confessou que foi ele autor da lei
de 9 de janeiro, essa emboscada da escravidão e da oligarquia armada
ao povo para despojá-lo do voto.

Do Ministério Saraiva passou no espólio ao Ministério
Martinho Campos, e apesar da sua cabeça de anão, coube na canoa,
que tinha à popa o presidente do Conselho mais ignorante e mais nulo
que já dirigiu a nossa política.

Em seguida, o sr. Rui Barbosa fez parte dos remanescentes da terça
do sr. Martinho ao sr. Paranaguá, como um anônimo, numerado pela
ambição. Caindo o sr. Paranaguá, o deputado perpétuo
da maioria passou ao sr. Lafaiete, a quem sustentou, com dedicação
igual a que até então havia dado aos seus antecessores.

Apoiar o sr. Dantas era o seu dever e ele o fez sem entretanto arriscar cousa
nenhuma da sua pessoa e do seu futuro.

Isto posto, raciocinemos um momento. É um homem de caráter
o que se acomoda à vontade na canoa de Martinho Campos e nas canastras
do sr. Dantas?

O homem que não explicou, senão pelo hábito da maioria,
a adesão ao programa do chefe baiano e que o fazia, confessando em
particular que não tinha elementos para redigir o parecer de que foi
nomeado relator?

O sr. Rui Barbosa queixou-se ultimamente dos seus insucessos políticos
e lançou-os à conta do abolicionismo.

É mais uma calúnia contra a propaganda que o purificou em parte.

Nunca se contestaram o talento e a capacidade do sr. Rui Barbosa. S. Ex.ª
era benquisto no partido e no paço. Não tinha, pois, nenhuma
dificuldade para ser ministro. O sr. Dantas o empurrava para a frente, metia-o
à cara do parlamento.

A situação liberal tinha tal carência de gente habilitada
que chegou a ter como seus ministros as maiores nulidades. O povo se lembra,
para não falar senão da Bahia, dos Moura, dos Prisco, dos Sodré,
pobres homens, que seriam absolvidos num tribunal justo de qualquer crime
que denunciasse inteligência da parte do réu.

Por preterir o sr. Rui Barbosa? Quem o havia de preterir? O sr. Dantas?

Fica por estas interrogações bem claro que o sr. Rui Barbosa
não foi ministro, porque se contava previamente com a sua derrota.
Explica-se também o segredo da dedicação de S. Ex.ª
a todos os ministérios. Era a premeditação de uma imoralidade,
a sua candidatura oficial, a eleição por intervenção
do Governo.

Não foi o seu abolicionismo que o impediu de entrar, por exemplo,
no ministério dos caixeiros, presidido pelo sr. Lafaiete. Nesse tempo,
o sr. Rui Barbosa podia exibir ao eleitorado os 500 réis (sic) daquele
projeto ridículo e o passaporte da canoa Martinho.

Não há consciência honesta que, à vista destes
fatos, não afirme conosco que o sr. Rui Barbosa dava apoio mercenário
aos gabinetes liberais; que fazia do seu voto na Câmara o saque eleitoral
contra o Governo do seu partido.

Aí está a largos traços a carreira pública do
sr. Rui Barbosa.

S. Ex.ª alega o seu abolicionismo e nós lhe respondemos que este
não era mais poderoso que as suas dispepsias.

Como advogado S. Ex.ª tem o negócio das freiras, que protegeu
como deputado e se fez pagar como advogado.

Não se compadece com a lisura de tão melindroso caráter
servir-se da sua influência política para proteger um esbulho.

Outra advocacia célebre de S. Ex.ª é a da liquidação
da Caixa Depositária de Coruja & C.

Ali havia depósito do minguado pecúlio de escravos. Pois bem,
S. Ex.ª não levou em conta essa circunstância e duvidamos
que nos diga quanto houveram esses credores e qual foi a proteção
que lhe dispensou o advogado abolicionista, que devia antes de tudo ter bem
presente a lei de 28 de setembro de 1871.

Agora está o sr. Rui Barbosa continuando a sua carreira política,
interrompida pelo abolicionismo, de que se diz mártir.

O que faz?

Insulta o liberto e adula o ex-senhor.

Injuria os companheiros da véspera e canoniza os inimigos comuns de
outrora.

Pede galés para o criminoso da escravidão e o Governo do Estado
para os antigos mantenedores da fonte do crime.

E é em nome dessa moralidade que se estabelece a preliminar para as
relações do Ministério com a Câmara.

Será necessário que analisemos os juízes que têm
de julgar o sr. João Alfredo?

Serão eles solidários com o liberalista desabusado? Ou reconhecem,
como nós, que o sr. Rui Barbosa não tem por fim senão
resignar-se ao papel de gato morto, para ver se apanha um distrito na futura
partilha do Estado?

Não sabemos e vamos esperar vinte e quatro horas para julgar a atitude
do Partido Liberal.

Se ele esposar as idéias do sr. Rui Barbosa, prosseguiremos na análise
dos juízes.

Se o Partido Liberal se permitir a insolência de querer manchar parlamentarmente
a honra de um homem que tem o passado mais puro, que no presente deu prova
da maior altivez moral, satisfazendo à interpelação sobre
o empréstimo de Minas; que abriu de par em par a administração
para que se visse que o Governo estava extreme de culpa na preferência
dada ao sr. Loyo, que não recuou nem diante da devassa de todos os
atos do Tesouro e da presidência de Minas; fica-nos o direito de editar
tudo quanto anda na voz pública a respeito de todos os chefes liberais,
que são chamados a constituir-se em tribunal para julgar o grande réu
do maior dos crimes imaginados neste país: -O de não ter adiado
um dia a liberdade dos cativos, e de não ter deixado, para os comparsas
de Martinho Campos, a glória da redenção de nossa pátria.

3 de maio de 1889

13-V-1889

Treze de maio

O vasto templo de progresso e de paz, construído a 13 de maio de
1888, vai crescendo tanto mais quanto mais se afasta da gloriosa data, em
que ele foi inaugurado entre aplausos e bênçãos da humanidade
civilizada.

Dá-se com as grandes reformas este fenômeno consolador: exercem
sobre as gerações uma ação que aumenta na razão
direta do tempo decorrido.

Apesar das apreensões ominosas de uma parte da população,
a lei de 13 de maio foi desde logo aplaudida pela maioria da nação,
com essa expansão bíblica da entrada em Canaã. Percebeu-se-lhe
imediatamente a grandeza pela simplicidade da sua fórmula, despida
de todas as preocupações econômicas e sociais.

Sentia-se que ela tinha exclusivamente o pensamento da restituição
expiatória do homem à humanidade.

Não há, na legislação do mundo, nada mais extraordinário
que essa emancipação de um milhão de homens, seguida
da mais plena confiança do Estado, nos sentimentos deles. Franqueiam-se-lhes
as portas da sociedade, canonizando-se-lhes apenas o passado e dotando-os
com as flores do triunfo.

Era em vésperas da colheita; essa gente saía pobre da riqueza
que havia acumulado em três séculos de trabalho forçado;
vinha com o coração sangrando a saudade secular do Direito.
E não há uma desordem; não há um atentado cometido
contra os senhores da véspera, compatriotas do dia grandioso.

Ao contrário: um quadro tocante de confraternização
se desdobra pelo interior. O novo cidadão sobrestá no alvoroço
íntimo para dissipar cavalheirosamente a nuvem da tristeza, que paira
sobre a fronte dos proprietários, e, enquanto não mistura lágrimas
de solidariedade, enquanto não se compromete a assegurar ao ex-senhor
a fortuna ameaçada, não continua no hosanar a liberdade recém-proclamada.

Que belo quadro! Aquelas almas que deviam estar nuas e lancinantes, como
um espinheiro, como este florescem de improviso e perfumam o lar, que nem
sequer havia pensado na pureza da sua seiva!

Depois dos primeiros dias de festa, como um enxame depois de uma revoada
entre a primavera, volvem ao trabalho, e, há um ano, a sociedade só
se apercebe da existência do liberto pela continuidade da produção,
pela fartura dos mercados.

Por toda a parte trabalho, paz profunda, esquecimento do passado!

Bendito contraste! Enquanto muitos dos que foram feridos pela reparação
necessária de uma injustiça secular se revoltam e procuram vingar-se
tornando-se o pesadelo da evolução nacional; os ex-escravos
consideram-se pagos de toda uma vida de dor e de humilhação
com a simples liberdade.

Sem pedir nada mais à pátria, muito contentes com a posse da
sua alma e do seu coração, entram pela vida sacando sobre os
seus músculos o capital eterno da civilização: o trabalho.

O depoimento em favor deles é dado pelas rendas públicas por
meio das alfândegas, os órgãos de assimilação
da indústria universal; pelo meio circulante, que precisa de fracionar-se,
de maneira a poder ter as pequenas dimensões do salário!

Enquanto os que deviam ter previdentemente economizado em nome das responsabilidades
sociais contraídas, pedem o crédito do Estado, e se julgam com
o direito de dispor desse patrimônio comum, como outrora dispuseram
do trabalho gratuito dos escravizados; os novos cidadãos creditam seu
saldo na bolsa da nação, e comprovam o bem-estar relativo da
vida indo buscar para a comunhão das sobras do seu suor, uma consorte,
que lhes multiplique a responsabilidade na prole desejada.

Todos esses fatos, de profundo valor social, e que não passam despercebidos
ao historiador e ao filósofo, testemunham que o dia 13 de maio não
foi a explosão romântica de um coração de mulher,
mas a sanção da lei natural da mutualidade, que não é
impunemente violada.

Pelo reconhecimento do seu direito, o novo cidadão deu-lhe tudo quanto
o homem civilizado guarda para as sociedades, que lhe garantem o coração
e a atividade, o amor e o trabalho.

Nem ao menos pediu de terra porção maior do que aquela em que
cabe a sua enxada, que em cada sulco abre uma sepultura à tirania e
um canal de águas-vivas para a liberdade.

Enquanto, usurariamente como Harpagon ao seu cofre, alguns ex-senhores agarram-se
tremulamente aos latifúndios; o novo cidadão abre, pelo bem
geral, mão de tudo, que ele podia ambicionar, e está tão
pronto a dar o seu suor, como o seu sangue, pela terra que ele até
agora só ocupava pela enfiteuse da morte.

É para fazer bater tumultuariamente o coração o espetáculo
deste ano de nossa história.

As instituições brasileiras tinham alguma cousa das nossas
florestas tropicais, que, zombando da sucessão das estações,
guardam sempre a mesma folhagem, espreguiçam-se perpetuamente na mesma
tépida umbrosidade, com uns farfalhos lânguidos e amorosos, com
uma eterna orquestra de ninhos. No mais espesso da brenha, uma casa construída
com a despretensão de quem só conta com a visita do sol e dos
crepúsculos, das aves e das lianas floridas, com a serenata dos córregos
e das estrelas.

Há um ano, como que a nossa natureza social foi bruscamente enquadrada
no movimento regular do mundo. Começaram as estações
evolutivas.

As instituições sofrem a ação do inverno, que
as despiu da velha fronde das superstições e dos preconceitos;
que as deixou nuas, tristes, sacudidas pelo vento frio dos lamentos, anoitadas
em penumbra de conspirações.

Muitos já desviaram delas o olhar, imigraram como as andorinhas, para
se não deixarem traspassar do frio do pavor.

Entretanto, este fenômeno é o mais animador.

Como no inverno, a natureza concentra subterraneamente toda sua vitalidade,
e não podendo viver na festa iluminada do ambiente, recolhe-se ao segredo
tépido do húmus, onde elabora a renascença primaveril,
que a princípio é feia como a morféia, na erupção
das gêmulas, para depois se converter em esmeraldas sonoras e em arminho
perfumado; as nossas instituições se concentram na administração
financeira, amoeda ouro nas suas entranhas, faz seiva das suas rendas, e apronta-se
para dar como saldo das suas angústias presentes estradas de ferro,
que cortem, de extremo a extremo, o território; imigrantes que nos
fecundem a alma e o solo com o seu espírito e com o seu suor; terra
que transforme o proletário de hoje no pequeno proprietário,
a válvula da democracia, amanhã.

Tudo quanto estamos vendo é novo. A nação sente-se outra,
desde que foi dignificada pela grande lei.

Ela pensa que se os negros, espécie de Shivas inconscientes, que com
os seus mil braços, tiraram do nada um mundo novo; se os negros que
eram ontem a besta de carga, a cousa que se vendia, puderam instantaneamente
subir de escravos a propulsores do comércio, das indústrias,
das rendas públicas, indiretamente, é certo, mas sensivelmente;
muito mais deve poder o Governo que presidiu essa criação.

É tão honroso o desvario, que é dever perdoá-lo.

Os que se queixam, os que se impacientam, não se lembram de que os
negros receberam, desde o dia da nossa independência, a delegação,
humilhante para nós, da verdadeira soberania humana -o trabalho; que
nós praticamos esse erro, em tudo semelhante ao da Europa, da Ásia
e da África antigas, que enfeudaram o deserto ao camelo, e por isso
mesmo levaram séculos à espera de que o gênio do Gama
dobrasse o misterioso cabo das Tormentas.

O camelo atravessava despreocupadamente o deserto, rindo ao simum e às
areias em brasa sem impaciências de oásis porque ele o trazia
na própria economia orgânica. O homem desfalecia às lufadas
e aos sóis e olhava para a travessia ardente como para um oceano de
labaredas.

O negro, rebaixado à animalidade bruta, fez uma economia especial,
que o aperfeiçoou no trabalho, que o enrijou contra a adversidade,
e ao mesmo tempo preparou-o para passar serenamente das regiões da
barbaria para as da mais adiantada civilização.

Daí, enquanto o filho da escravidão, como os pupilos da miséria,
de que fala Cherbulliez, pode tentar tudo já e já, o Estado
precisa de um braço forte, de um caráter limpo e santo, um desses
seres extraordinários, que a História sugere aos povos, para
compreender a transição de um regime artificial e condenado
para o regime natural das sociedades contemporâneas.

O penhor do nosso futuro, porém; o celeiro com que devemos prover
a nossa esperança é esse mesmo fato, que nos atordoa. Se os
brasileiros, que ocupam as camadas vivas do trabalho, estão em atividade;
se eles se responsabilizam pela continuidade e rejuvenescimento do trabalho
nacional; por que razão havemos de desanimar; se começando,
por sua vez, o trabalho nas outras classes, ele se vai adicionar a tão
fecunda parcela?

Deslumbrados por esse ano que termina por um bem-estar financeiro, como não
temos, há mais de um quarto de século; certos de que este fato
não é passageiro, porque é a progressão crescente,
atestada pela nossa história, depois de abolido o tráfico, e
libertada a maternidade, ousamos pedir aos nossos compatriotas ordem e fé.

Não nos assustam as exigências do melhor; essa insaciabilidade
de progresso e de bem-estar, que desorienta a imprensa e alucina o parlamento,
é natural. O céu não extinguiu as nebulosas por se sentir
recamado de estrelas.

Essa ânsia de chegar instantaneamente está em todo o nosso século,
que já não se contenta com o vapor, e acha vulgares os milagres
da eletricidade.

O que pedimos é que nos aconselhemos com a natureza, que não
destrói o sol milenário, só porque sabe que dispõe
de vias lácteas; que não condena as suas árvores seculares,
porque sabe que tem um viveiro eterno de vegetação; que não
se priva das suas montanhas por ter segurança da extensão e
espessura da crosta da Terra.

O dia 13 de maio nos deve ensinar a preferir as obras da paz e do amor. A
fecundidade dessa reforma é a profecia da nossa grandeza. Daremos um
novo exemplo ao mundo, resolvendo pelo mesmo processo todas as nossas questões
de autonomia nacional.

Olhemos para a natureza e aprendamos a sua eterna lição. O
sereno, quase imperceptível no ambiente, leva a umidade mais longe
que a mais impetuosa torrente.

13 maio 1889

18-V-1889

O isabelismo

A profunda consideração que voto à redação
da A Rua obriga-me a acudir pressurosamente em resposta às argüições,
que ela me dirige, a respeito de uma frase por mim proferida no dia 13 de
maio:

«Enquanto houver sangue e honra abolicionistas, ninguém tocará
no trono de Isabel, a Redentora.»

Lançada em circulação sem considerações,
que a precederam, semelhante frase, concordo, seria a mais terrível
ameaça à democracia; a justificação prévia
de todos os abusos do poder.

Infelizmente o meu discurso não foi estenografado e é impossível,
hoje, reproduzir integralmente quanto disse.

O meu pensamento, porém, foi acentuar, nos termos os mais precisos,
que a data de 13 de maio era a primeira de uma era nova, para a elaboração
da qual todos tínhamos concorrido: o imperador, a princesa e o povo;
que a essa nova era devia corresponder nova política, para a qual contávamos
com a magnanimidade do imperador, que havia feito sacrifício maior
que o de Abraão, trazendo ao altar da liberdade pátria em holocausto
a sua única e adorada filha; a esta mulher heróica que estreou-se
no Governo do país restituindo às mães a dignidade materna
e educando os príncipes seus filhos no amor dos infelizes.

Partiam dessas primícias governamentais a nossa veneração
e a nossa esperança por Isabel, a Redentora; confiávamos que
o seu futuro seria a confirmação de seu passado; que ela seria
a imperatriz-opinião; a rainha-fraternidade; exortávamo-la a
perseverar nesse sistema de governar, porque enquanto houvesse honra e sangue
abolicionistas o seu trono seria sagrado.

Inferir-se daí que eu tentei fechar todas as válvulas da democracia
brasileira, que dei o futuro da pátria em hipoteca ao 13 de maio, sem
levar em linha de conta o complemento necessário da nova era nacional,
é forçar a lógica para tirar uma conclusão arbitrária.

O abolicionismo teve sempre um programa. Não discutiu coletivamente
a forma de Governo; ameaçou o trono, ontem, como o condenará
amanhã, se ele for um obstáculo à ultimação
da reforma social, iniciada em 13 de maio.

Não terá a Coroa aliado mais leal, nem mais dedicado, enquanto
se comportar, como até agora, que, ainda malferida pelo combate à
escravidão, se atira à campanha da terra e da autonomia local.

Para que A Rua possa compreender a coerência da nossa atitude, é
preciso fazer entrar como um dos seus fatores a oposição já
levantada pelo liberalismo e pelo republicanismo ao tópico da fala
do trono relativo à reorganização territorial.

Quem pela fatalidade dos acontecimentos assumiu perante a historia da democracia
da sua terra uma grande responsabilidade não pode ficar à mercê
de rótulos, que escondem a falsificação das idéias
e a depravação dos caracteres.

O que eu não quero é escravizar o meu país a uma palavra,
que é a glória na Suíça, mas que é a vergonha
no Peru, só para não parecer contraditório, quando, na
realidade, sou coerente perante a Ciência Política sustentando,
em nome do meu amor à liberdade, a Monarquia que nos promete a integridade
e o progresso pela democracia rural, e opondo-me a essa república,
também combatida pela A Rua e de que nos resultará a landocracia
a mais audaciosa, e a oligarquia a mais bestial.

Descanse A Rua; não fui vender-me a Isabel, a Redentora, no dia 13
de maio; fui apenas reiterar o protesto abolicionista de fidelidade e solidariedade
com a política atual da Coroa, que, disse eu, está hoje colocada
sobre um ideal tão grande, que far-se-ia em estilhaços se o
quisesse comprimir.

18 de maio de 1889

Anexos

Gabinetes ministeriais do Império (1878-1889)2
1. Presidente: João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu

Partido Liberal, Bahia.

5 de janeiro de 1878 a 28 de março de 1880.

2. Presidente: José Antônio Saraiva

Partido Liberal, Bahia.

28 de março de 1880 a 21 de janeiro de 1882.

3. Presidente: Martinho Álvares da Silva Campos

Partido Liberal, Minas Gerais.

21 de janeiro a 3 de julho de 1882.

4. Presidente: João Lustosa da Cunha Paranaguá

Partido Liberal, Piauí.

3 de julho de 1882 a 24 de maio de 1883.

5. Presidente: Lafaiete Rodrigues Pereira

Partido Liberal, Minas Gerais.

24 de maio de 1883 a 6 de junho de 1884.

6. Presidente: Manuel Pinto de Sousa Dantas

Partido Liberal, Bahia.

6 de junho de 1884 a 6 de maio de 1885.

7. Presidente: José Antônio Saraiva

Partido Liberal, Bahia.

6 de maio a 20 de agosto de 1885.

8. Presidente: João Maurício Wanderlei (barão de Cotegipe)

Partido Conservador, Bahia.

20 de agosto de 1885 a 10 de março de 1888.

9. Presidente: João Alfredo Correia de Oliveira

Partido Conservador, Pernambuco.

10 de março de 1888 a 7 de junho de 1889.

10. Presidente: Afonso Celso de Assis Figueiredo (visconde de Ouro Preto)

Partido Liberal, Minas Gerais.

7 de junho a 15 de novembro de 1889.

Leis e convenções mais importantes sobre a escravidão
e o abolicionismo no Brasil, no século XIX
Tratado de Aliança e Amizade, 1810

Assinado entre o Governo de Portugal e a Inglaterra, uma de suas cláusulas
previa a abolição gradual do trabalho escravo na Colônia
e a limitação do tráfico às colônias portuguesas
na África.

Alvará de 24 de novembro de 1813

Regulou a capacidade interna dos navios empregados no tráfico de escravos.

Convenção de 22 de janeiro de 1815

Determinou o cessamento do tráfico de escravos ao norte da linha do
equador, retirando do alcance de Portugal fontes de abastecimento de negros
como a Costa da Mina. Portugal consente em delinear com a Inglaterra um futuro
tratado para a abolição total do tráfico.

Tratado entre os governos da Inglaterra e Portugal, 28 de julho de 1817

Em reunião complementar à convenção de Viena,
foi reforçada a proibição parcial do tráfico de
escravos. Este ficava limitado a navios portugueses bona fide e restrito aos
territórios portugueses ao sul do equador. O governo português
comprometia-se a fiscalizar a área de tráfico considerada ilegal
e concedia também à Inglaterra o direito de visita e busca em
navios suspeitos de tráfico ilícito.

Lei de 20 de outubro de 1823

Criou os Conselhos Provinciais e o cargo de presidente de Província,
atribuindo a ambos (art. 24) promover o bom tratamento dos escravos e propor
arbítrios para facilitar a sua lenta emancipação.

Carta de lei de 23 de novembro de 1826

Estabeleceu o prazo de três anos para o encerramento do tráfico
de escravos, a contar da data da ratificação. A ratificiação
ocorreu em 1827.

Lei de 7 de novembro de 1831

Proibiu o tráfico de escravos para o Brasil, considerando livres todos
os negros trazidos para o Brasil a partir daquela data. As pessoas acusadas
de tráfico e importação de escravos recebiam penalidades,
de acordo com o Código Criminal, pelo crime de reduzir pessoas livres
à escravidão.

Lei nº 4, de 10 de junho de 1835

Punia, inclusive com pena de morte, os escravos que matassem, ferissem ou
cometessem qualquer ofensa física contra os seus senhores.

Bill Aberdeen, 8 de agosto de 1845

Lei inglesa que considerou o tráfico pirataria e autorizou a Marinha
britânica a capturar os navios transgressores, mesmo em águas
territoriais brasileiras.

Lei de 4 de setembro de 1850 (Lei Eusébio de Queirós)

Determinou a extinção do tráfico de escravos para o
Brasil, prevendo punição apenas para os introdutores julgados
pelos auditores da Marinha. Os fazendeiros envolvidos deveriam ser julgados
pela justiça local.

Decreto nº 731, de 5 de junho de 1854

Ampliava a competência para julgamento dos auditores da Marinha e determinava
a punição, processo e julgamento do cidadão brasileiro
ou estrangeiro envolvido em tráfico de escravos.

Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871 (Lei Rio Branco ou Lei do Ventre-Livre)

Declarou livres os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Denominados
ingênuos, deveriam permanecer oito anos em poder do proprietário
de sua mãe. Findo este prazo, o proprietário poderia libertá-lo,
recebendo indenização de 600 mil réis, ou utilizar os
seus serviços até completarem 21 anos de idade. A lei criou
também o Fundo de Emancipação, cujos recursos seriam
utilizados para libertar anualmente um certo número de escravos. E
ordenou a matrícula de todos os escravos, cujos dados (origem, sexo,
idade, etc.) serviriam para o cálculo da indenização
aos proprietários.

Lei provincial, de 25 de março de 1884

O presidente do Ceará, Sátiro Dias, declara extinta a escravidão
na província (primeira a fazê-lo) atribuindo o fato essencialmente
ao esforço das sociedades libertadoras locais.

Lei 3.270, de 28 de setembro de 1885 (Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários)

Regulava a extinção gradual do elemento servil, libertando
os escravos de mais de 60 anos. Estes ficavam sujeitos, no entanto, a prestar
serviços aos seus senhores por três anos (ou até completar
65 anos), a título de indenização pela alforria.

Lei 3.310, de 15 de outubro de 1886

Aboliu a pena de açoites de escravos, ao revogar o art. 60 do Código
Criminal e a Lei nº 4, de 10 de junho de 1835, na parte referente ao
assunto. O escravo ficaria sujeito às mesmas penas estabelecidas pelo
Código Criminal e à legislação em vigor.

Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 (Lei Áurea)

Declarou extinta a escravidão em todo o país.