Cantos e Fantasias

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Cântico
do Calvário

Queixas do Poeta

Resignação

Fagundes Varela

Juvenília

I

Lembras-te, Iná, dessas noites
Cheias de doce harmonia,
Quando a floresta gemia
Do vento aos brandos açoites?

Quando as estrelas sorriam,
Quando as campinas tremiam
Nas dobras de úmido véu?
E nossas almas unidas
Estreitavam-se, sentidas
Ao langor daquele céu?

Lembras-te, Iná? Belo e mago,
Da névoa por entre o manto,
Erguia-se ao longe o canto
Dos pescadores do lago.

Os regatos soluçavam,
Os pinheiros murmuravam
No viso das cordilheiras,
E a brisa lenta e tardia
O chão revolto cobria
De flores das trepadeiras.

Lembras-te, Iná? Eras bela,
Ainda no albor da vida,
Tinhas a fronte cingida
De uma inocente capela.

Teu seio era como a lira
Que chora, canta e suspira
Ao roçar de leve aragem;
Teus sonhos eram suaves,
Como o gorjeio das aves
Por entre a escura folhagem.

Do mundo os negros horrores
Nem pressentias sequer;
Teus almos dias, mulher,
Passavam num chão de flores.

Oh! primavera sem termos!
Brancos luares dos ermos!
Auroras de amor sem fim!
Fugistes, deixando apenas
Por terra esparsas as penas
Das asas de um serafim!

Ah! Iná! Quanta esperança
Eu não vi brilhar nos céus
Ao luzir dos olhos teus,
A teu sorrir de criança!

Quanto te amei! Que futuros!
Que sonhos gratos e puros!
Que crenças na eternidade!
Quando a furto me falavas,
E meu ser embriagavas
Na febre da mocidade!

Como nas noites de estio,
Ao sopro do vento brando,
Rola o selvagem cantando
Na correnteza do rio;

Assim passava eu no mundo,
Nesse descuido profundo
Que etérea dita produz!
Tu eras, Iná, minh’alma,
De meu estro a glória e a palma,
De meus caminhos a luz!

Que é feito agora de tudo?
De tanta ilusão querida?
A selva não tem mais vida,
O lar é deserto e mudo!

Onde foste, oh! pomba errante?
Bela estrela cintilante
Que apontavas o porvir?
Dormes acaso no fundo
Do abismo tredo e profundo,
Minha pérola de Ofir?

Ah! Iná! por toda parte
Que teu espírito esteja,
Minh’alma que te deseja
Não cessará de buscar-te!

Irei às nuvens serenas,
Vestindo as ligeiras penas
Do mais ligeiro condor;
Irei ao pego espumante,
Como da Ásia o possante,
Soberto mergulhador!

Irei à pátria das fadas
E dos silfos errabundos,
Irei aos antros profundos
Das montanhas encantadas;

Se depois de imensas dores,
No seio ardente de amores
Eu não puder apertar-te,
Quebrando a dura barreira
Deste mundo de poeira,
Talvez, Iná, hei de achar-te!

II

Era à tardinha. Cismando,
Por uma senda arenosa
Eu caminhava. Tão brando,
Como a voz melodiosa
Da menina enamorada,
Sobre a grama aveludada,
Corria o vento a chorar.
Gemia a pomba… no ar
Passava grato e sentido
O aroma das maravilhas
Que cresciam junto às trilhas
Do deserto umedecido.

Mais bela que ao meio-dia,
Mais carinhosa batia
A luz nos canaviais;
E o manso mover das matas,
O barulho das cascatas
Tinham notas divinais.
Tudo era tão calmo e lindo,
Tão fresco e plácido ali,
Que minh’alma se expandindo
Voou, foi junto de ti,

Nas asas do pensamento,
Gozar do contentamento
Que noutro tempo fruí.
Oh! Como através dos mantos
Das saudades e dos prantos
Tão meigamente sorrias!
Tinhas o olhar tão profundo
Que de minh’alma no fundo
Fizeste brotar um mundo
De sagradas alegrias.

Uma grinalda de rosas
Brancas, virgens, odorosas,
Te cingia a fronte triste…
Cismavas queda, silente,
Mas, ao chegar-me, tremente
Te ergueste, e alegre, contente,
Sobre meus braços caíste.
Pouco a pouco, entre os palmares
Da longínqua serrania,
Sumia-se a luz do dia
Que aclarava esses lugares;
As campânulas pendidas
Sobre as fontes adormidas
De sereno gotejavam,
E no fundo azul dos céus,
Dos vapores entre os véus,
As estrelas despontavam.
Éramos sós, mais ninguém
Nossas palavras ouvia;
Como tremias, meu bem!
Como teu peito batia!…
Pelas janelas abertas
Entravam moles, incertas,
Daquelas plagas desertas
As virações suspirosas,
E cheias de mil desvelos,
Cheias de amor e de anelos,
Lançavam por teus cabelos
O eflúvio das tuberosas!…
Ai! tu não sabes que dores,
Que tremendos dissabores
Longe de ti eu padeço!

Em teu retiro sozinha,
Pobre criança mesquinha,
Cuidas talvez que te esqueço!
A turba dos insensatos
Entre fúteis aparatos
Canta e folga pelas ruas,
Mas triste, sem um amigo,
Em meu solitário abrigo
Pranteio saudades tuas!

Nem um minuto se passa,
Nem um inseto esvoaça,
Nem uma brisa perpassa
Sem uma lembrança aqui;
O céu da aurora risonho,
A luz de um astro tristonho,
Os sonhos que à noite sonho,
Tudo me fala de ti.

III

Tu és a aragem perdida
Na espessura do pomar,
Eu sou a folha caída
Que levas sobre as asas ao passar.
Ah! voa, voa, a sina cumprirei:
Te seguirei.

Tu és a lenda brilhante
Junto do berço cantada;
Eu sou o pávido infante
Que o sono esquece ouvindo-te a toada.
Ah! canta, canta, a sina cumprirei:
Te escutarei.

Tu és a onda de prata
Do regato transparente;
Eu a flor que se retrata
No cristal encantado da corrente.
Ah! chora, chora, o fado cumprirei:
Te beijarei.

Tu és o laço enganoso
Entre rosas estendido;
Eu o pássaro descuidoso
Por funesto prestígio seduzido.
Ah! não temas, a sina cumprirei:
Me entregarei.

Tu és o barquinho errante
No espelho azul da lagoa;
Eu sou a espuma alvejante
Que agita nágua a cortadora proa.
Ah! voga, voga, o fado cumprirei:
Me desfarei.
Tu és a luz da alvorada
Que rebenta na amplidão;
Eu a gota pendurada
Na trepadeira curva do sertão.
Ah! brilha, brilha, a sorte cumprirei:
Cintilarei.

Tu és o íris eterno
Sobre os desertos pendido;
Eu o ribeiro do inverno
Entre broncos fraguedos escondido.
Ah! fulge, fulge, a sorte cumprirei:
Deslizarei.

Tu és a esplêndida imagem
De um romântico sonhar;
Eu cisne de alva plumagem
Que falece de amor a te mirar.
Ah! surge, surge, o fado cumprirei:
Desmaiarei.

Tu és a luz crepitante
Que em noite trevosa ondeia;
Eu mariposa ofegante
Que em torno à chama trêmula volteia.
Ah! basta, basta, a sina cumprirei:
Me abrasarei.

IV

Teus olhos são negros, negros
Como a noite nas florestas…
Infeliz do viajante
Se de sombras tão funestas
Tanta luz não rebentasse!
A aurora desponta e nasce
Da noite escura e tardia:
Também da noite sombria
De teus olhos amorosos
Partem raios mais formosos
Que os raios da luz do dia.

Teu cabelo mais cheiroso
Que o perfume dos vergéis,
Na brancura imaculada
Da cútis acetinada
Rola em profusos anéis:
Eu quisera ter mil almas,
Todas ardentes de anelos,
Para prendê-la, meu anjo,
À luz de teus olhos belos,
Nos grilhões de teus olhares,
Nos anéis de teus cabelos!

V

Não vês quantos passarinhos
Se cruzam no azul do céu?
Pois olha, pomba querida,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.

Não vês quantas rosas belas
O sereno umedeceu?
Pois olha, flor de minh’alma,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.

Não vês quantos grãos de areia
Na praia o rio estendeu?
Pois olha, cândida pérola,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.

Ave, flor, perfume, canto,
Rainha do gênio meu,
Além da glória e dos anjos,
Mil vezes,
Mil vezes te adoro eu.

VI

És a sultana das brasílias terras,
A rosa mais balsâmica das serras,
A mais bela palmeira dos desertos;
Tens nos olhares do infinito as festas
E a mocidade eterna das florestas
Na frescura dos lábios entreabertos.

Por que Deus fez-te assim? Que brilho é esse
Que ora incendeia-se, ora desfalece
Nessas pupilas doidas de paixão?…
Quando as enxergo julgo nos silvados
Ver palpitar nos lírios debruçados
As borboletas negras do sertão.

O rochedo luzido, onde a torrente
Bate alta noite rápida e fremente,
De teu preto cabelo inveja a cor…
E que aroma, meu Deus! o estio inteiro
Parece que levanta-se fagueiro,
Cheio de sombra e cânticos de amor!
Quando tu falas lembro-me da infância,
Dos vergéis de dulcíssima fragrância
Onde cantava à tarde o sabiá!…
Ai! deixa-me chorar e fala ainda,
Não, não dissipes a saudade infinda
Que nesta fronte bafejando está!

Eu tenho nalma um pensamento escuro,
Tão tredo e fundo que o farol mais puro
Que Deus há feito espancará jamais
Debalde alívio hei procurado aflito,
Mas quando falas, teu falar bendito
Abranda-lhe os martírios infernais!

Dizem que a essência dos mortais há vindo
De um outro mundo mais formoso e lindo
Que um santo amor as bases alimenta;
Talvez nesse outro mundo um laço estreito
A teu peito prendesse o triste peito
Que hoje sem ti nas trevas se lamenta!

És a princesa das brasílias terras,
A rosa mais balsâmica das serras,
Do céu azul a estrela mais dileta…
Vem, não te afastes, teu sorrir divino
É belo como a aurora, e a voz um hino
Que o gênio inspira do infeliz poeta.

VII

Ah! quando face a face te contemplo,
E me queimo na luz de teu olhar,
E no mar de tu’alma afogo a minha,
E escuto-te falar;
Quando bebo teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas.
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras,

Tenho medo de ti!… Sim, tenho medo
Porque pressinto as garras da loucura,
E me arrefeço aos gelos do ateísmo,
Soberba criatura!

Oh! Eu te adoro como adoro a noite
Por alto-mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refregas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

Como adoro as florestas primitivas
Que aos céus levantam perenais folhagens,
Onde se embalam nos coqueiros presas
As redes dos selvagens!

Como adoro os desertos e as tormentas,
O mistério do abismo e a paz dos ermos,
E a poeira de mundos que prateia
A abóbada sem termos!…

Como tudo o que é vasto, eterno e belo,
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito!

VIII

Saudades! tenho saudades
Daqueles serros azuis,
Que à tarde o sol inundava
De louros toques de luz!
Tenho saudades dos prados,
Dos coqueiros debruçados
À margem do ribeirão,
E o dobre de Ave-Maria
Que o sino da freguesia
Lançava pela amplidão!
Oh! minha infância querida!
Oh! doce quartel da vida!
Como passaste depressa!
Se tinhas de abandonar-me,
Por que, falsária, enganar-me
Com tanta meiga promessa?
Ingrata, por que te foste?
Por que te foste, infiel?
E a taça de etéreas ditas,
As ilusões tão bonitas
Cobriste de lama e fel?

Eu era vivo e travesso,
Tinha seis anos então,
Amava os contos de fadas
Contados junto ao fogão;
E as cantigas compassadas,
E as legendas encantadas
Das eras que lá se vão.
De minha mãe era o mimo,
De meu pai era a esperança;
Um tinha o céu, outro a glória
Em meu sorrir de criança,
Ambos das luzes viviam
Que de meus olhos partiam.

Junto do alpendre sentado
Brincava com minha irmã,
Chamando o grupo de anjinhos
Que tiritavam sozinhos
Na cerração da manhã;
Depois, por ínvios caminhos,
Por campinas orvalhadas,
Ao som de ledas risadas
Nos lançávamos correndo…
O viandante parava
Tão descuidosos nos vendo,
O camponês nos saudava,
A serrana nos beijava
Ternas palavras dizendo.

À tarde eram brincos, festas,
Carreiras entre as giestas,
Folguedos sobre a verdura;
Nossos pais nos contemplavam,
E seus seios palpitavam
De uma indizível ventura.
Mas ai! os anos passaram,
E com eles se apagaram
Tão lindos sonhos sonhados!
E a primavera tardia,
Que tanta flor prometia,
Só trouxe acerbos cuidados!

Inda revejo esse dia,
Cheio de dores e prantos,
Em que tão puros encantos
Oh! sem saber os perdia!
Lembra-me ainda: era à tarde.
Morria o sol entre os montes,
Casava-se a voz das rolas
Ao burburinho das fontes;
O espaço era todo aromas,
Da mata-virgem nas comas
Pairava um grato frescor;
As criancinhas brincavam,
E as violas ressoavam
Na cabana do pastor.

Parti, parti, mas minh’alma
Partida ficou também,
Metade ali, outra em penas
Que mais consolo não tem!
Oh! como é diverso o mundo
Daquelas serras azuis,
Daqueles vales que riem
Do sol à dourada luz!
Como diferem os homens
Daqueles rudes pastores
Que o rebanho apascentavam,
Cantando idílios de amores!
Subi aos paços dos nobres,
Fui aos casebres dos pobres,

Riqueza e miséria vi;
Mas tudo é morno e cansado,
Tem um gesto refalsado,
Nestes lugares daqui!
Oh! Então chorei por ti,
Minha adorada mansão;
Chamei-te de meu desterro,
Os braços alcei-te em vão!
Não mais! Os anos passaram,
E com eles desbotaram!
Tantas rosas de esperança!
Do tempo nas cinzas frias
Repousam pra sempre os dias
De meu sonhar de criança!

IX

Um dia o sol poente dourava a serrania,
As ondas suspiravam na praia mansamente,
E além nas solidões morria o som plangente
Dos sinos da cidade dobrando Ave-Maria.

Estávamos sozinhos sentados no terraço
Que a trepadeira em flor cobria de perfumes:
Tu escutavas muda das auras os queixumes,
Eu tinha os olhos fitos na vastidão do espaço.

Então me perguntaste com essa voz divina
Que a teu suave mando trazia-me cativo:
– Por que todo o poeta é triste e pensativo?
Por que dos outros homens não segue a mesma sina?

Era tão lindo o céu, a tarde era tão calma…
E teu olhar brilhava tão cheio de candura,
Criança! que não viste a tempestade escura
Que estas palavras tuas me despertaram nalma!

Pois bem, hoje que o tempo partiu de um golpe só
Sonhos da mocidade e crenças do futuro,
Na fronte do poeta não vês o selo escuro
Que faz amar as tumbas e afeiçoar-se ao pó?

X

À luz da aurora, nos jardins da Itália
Floresce a dália de sentida cor,
Conta-lhe o vento divinais desejos
E geme aos beijos da mimosa flor.

O céu é lindo, a fulgurante estrela
Ergue-se bela na amplidão do sul,
Pálidas nuvens do arrebol se coram,
As auras choram na lagoa azul.

Tu és a dália dos jardins da vida,
A estrela erguida no cerúleo véu,
Tens nalma um mundo de virtudes santas,
E a terra encantas num sonhar do céu.

Basta um bafejo na inspirada fibra
Que o seio vibra divinais encantos,
Como no templo do senhor vendado
O órgão sagrado se desfaz em cantos.

Pomba inocente, nem sequer o indício
Do escuro vício pressentiste apenas!
Nunca manchaste na charneca impura
A doce alvura das formosas penas.

Cismas à Noite

Doce brisa da noite, aura mais frouxa
Que o débil sopro de adormido infante,
Tu és, quem sabe? a perfumada aragem
Das asas de ouro algum gênio errante.

Tu és, quem sabe? a gemedora endecha
De um ente amigo que afastado chora,
E ao som das fibras do saltério ebúrneo
Conta-me as dores que padece agora!
Ai! não te arredes, viração tardia,
Zéfiro pleno da estival fragrância!
Sinto a teus beijos ressurgir-me nalma
O drama inteiro da rosada infância!

Bem com a aurora faz brotar as clícias,
Chama das selvas os festivais cantores,
Assim dos tempos na penumbra elevas
Todos os quadros da estação das flores.

Sim, vejo ao longe os matagais extensos,
O lago azul, os palmeirais airosos,
A grei sem conta de ovelhinhas brancas
Balindo alegre nos sarçais viçosos;

Diviso a choça paternal no outeiro,
Alva, gentil, dos laranjais no seio,
Como a gaivota descuidosa e calma
Das verdes ondas a boiar no meio;

Sinto o perfume das roçadas frescas,
Ouço a canção do lenhador sombrio,
Sigo o barqueiro que tranqüilo fende
A lisa face do profundo rio…

Oh! minhas noites de ilusões celestes!
Visões brilhantes da primeira idade!
Como de novo reviveis tão lindas
Por entre as balsas da nativa herdade!

Como no espaço derramais, suaves,
Tão langue aroma, vibração tão grata!
Como das sombras do passado, mesmo,
Tantas promessas o porvir desata!

Exalte embora o insensato as trevas,
Chame o descrido a solidão e a morte,
Não quero ainda fenecer, é cedo!
Creio na sina, tenho fé na sorte!

Creio que as dores que suporto alcancem
Um prêmio ainda da justiça eterna!
Oh! Basta um sonho!… o respirar de um silfo,
O amor duma alma compassiva e terna!

Basta uma noite de luar nos campos,
O brando eflúvio dos vergéis do sul,
Dois olhos belos, como a crença belos,
Fitos do espaço no fulgente azul!

Ah! não te afastes, viração amiga!
Além não passes com teu mole adejo!
Tens nas delícias que as torrentes vertes
Toda a doçura de um materno beijo!

Fala-me ainda desses tempos idos,
Rasga-me a tela da sazão que vem,
Foge depois, e mais sutil, mais tênue,
Vai meus suspiros repetir além.

Sextilhas

Amo o cantor solitário
Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,
E a trepadeira espinhosa
Que se abraça caprichosa
À forca do condenado.
Amo os noturnos lampírios
Que giram, errantes círios,
Sobre o chão dos cemitérios,
E ao clarão de tredas luzes
Fazem destacar as cruzes
De seu fundo de mistérios.

Amo as tímidas aranhas
Que, lacerando as entranhas,
Fabricam dourados fios,
E com seus leves tecidos
Dos tugúrios esquecidos
Cobrem os muros sombrios.

Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras,
E as rãs que os pauis habitam,
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras!

Amo-os, porque todo o mundo
Lhes vota um ódio profundo,
Despreza-os sem compaixão!
Porque todos desconhecem
As dores que eles padecem
No meio da criação!

Cântico do Calvário

Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança!… eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro!…
Eras a messe de um dourado estio!…
Eras o idílio de um amor sublime!…
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! – Ah! no entanto,
Pomba – varou-te a flecha do destino!
Astro – engoliu-te o temporal do norte!
Teto, caíste! Crença, já não vives!
Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!
Correi! Um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golconda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! sede benditas!
Oh! filho de minh’alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente,
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!
Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo.
Pouco tenho de andar! Um passo ainda,
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno! e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! o lago escuro
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!…

Oh! Quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa nágua o lenho do barqueiro!
Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte!

Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel?… E tudo embalde!
A vida parecia ardente e doida
Agarrar-se a meu ser!… E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda na alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave;
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor… ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra…
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!
Oh! Quantos reis que a humanidade aviltam
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
De exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonia! O gozo
Ao pranto sucedeu, as férreas horas
Em desejos alados se mudaram…
Noites fulgiam, madrugadas vinham,
Mas sepultados num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!

Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais! nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas,
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
E eu dizia comigo: – teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!… Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!
Ai! doido sonho!… Uma estação passou-se,
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seus dedos reais selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!…

Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!
Escuto em meio de confusas vozes,
Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, sinto o aroma
Do incenso das igrejas, ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!… E choro embalde!…
Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe?
No vulto solitário de uma estrela…
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto!
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria,
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde azinha subirá minh’alma.

Queixas do Poeta

Ao cedro majestoso que o firmamento espana
Ligou a mão de Deus a úmida liana,
Às amplas soledades arroios amorosos,
Às selvas passarinhos de cantos sonorosos,
Neblinas às montanhas, aos mares virações,
Ao céu mundos e mundos de fúlgidos clarões,
Mas presa de uma dor tantálica e secreta
Sozinho fez brotar o gênio do poeta!…

A aurora tem cantigas e a mocidade rosas,
O sono do opulento visões deliciosas,
Nas ondas cristalinas espelham-se as estrelas,
E as noites desta terra têm seduções tão belas,
Que as plantas, os rochedos e os homens eletrizam,
E os mais dourados sonhos na vida realizam.
Mas triste, do martírio ferido pela seta,
Soluça no silêncio o mísero poeta!…

As auras do verão, nas regiões formosas
Do mundo americano, as virações cheirosas
Parecem confundidas rolar por sobre as flores
Que exalam da corola balsâmicos odores;
As leves borboletas em bandos esvoaçam,
Os reptis na sombra às árvores se enlaçam;
Mas só, sem o consolo de uma alma predileta,
Descora no desterro a fronte do poeta!…

O viajor que à tarde sobre os outeiros passa
Divisa junto às selvas um fio de fumaça
Erguer-se preguiçoso da choça hospitaleira
Pousada alegremente de um ribeirão à beira;
Ali junto dos seus descansa o lavrador,
Dos homens afastado e longe do rumor;
Mas no recinto escuro que o desalento infecta
Sucumbe lentamente o gênio do poeta!…

No rio caudaloso que a solidão retalha,
Da funda correnteza na límpida toalha,
Deslizam mansamente as garças alvejantes;
Nos trêmulos cipós de orvalho gotejantes
Embalam-se avezinhas de penas multicores
Pejando a mata virgem de cânticos de amores;
Mas presa de uma dor tantálica e secreta
De dia em dia murcha o louro do poeta!…

Resignação

Sozinho no descampado,
Sozinho sem companheiro,
Sou como o cedro altaneiro
Pela tormenta açoitado.

Rugi, tufão desabrido!
Passai, temporais de pó!
Deixai o cedro esquecido,
Deixai o cedro estar só!

Em meu orgulho embuçado,
Do tempo zombo da lei…
Oh! venha o raio abrasado,
– Sem me vergar… tombarei!

Gigante da soledade,
Tenho na vida um consolo:
Se enterro as plantas no solo,
Chego a fronte à imensidade!

Nada a meu fado se prende,
Nada enxergo junto a mim;
Só o deserto se estende
A meus pés, fiel mastim.

À dor o orgulho sagrado
Deus ligou num grande nó…
Quero viver isolado,
Quero viver sempre só!

E quando o raio incendido
Roçar-me, então cairei
Em meu orgulho envolvido,
Como em um manto de rei.

Protestos

Esquecer-me de ti? Pobre insensata!
Posso acaso o fazer quando em minh’alma
A cada instante a tua se retrata?
Quando és de minha vida o louro e a palma,
O faro amigo que anuncia o porto,
A luz bendita que a tormenta acalma?

Quando na angústia fúnebre do horto
És a sócia fiel que azinha instila
Na taça da amargura algum conforto?

Esquecer-me de ti, pomba tranqüila,
Em cujo peito, erário de esperança,
Entre promessa meu porvir se asila!

Esquecer-me de ti, frágil criança,
Ave medrosa que esvoaça e chora
Temendo o raio em dias de bonança!

Bane o pesar que a fronte te descora,
Seca as inúteis lágrimas no rosto…
Que, pois, receias se inda brilha a aurora?

Ermo arvoredo aos temporais exposto,
Tudo pode aluir, tudo apagar
Em minha vida a sombra do desgosto;

Ah! mas nunca teu nome há de riscar
De um coração que te idolatra, enquanto
Uma gota de sangue lhe restar!

É teu, e sempre teu, meu triste canto,
De ti rebenta a inspiração que tenho,
Sem ti me afogo num contínuo pranto;

Teu riso alenta meu cansado engenho,
E ao meigo auxílio de teus doces braços
Carrego aos ombros o funesto lenho.
De mais a mais se apertam nossos laços,
A ausência… oh! Que me importa! estás presente
Em toda a parte onde dirijo os passos.

Na brisa da manhã que molemente
Junca de flores do deserto as trilhas
Ouço-te a fala trêmula e plangente.

Do céu carmíneo nas douradas ilhas
Vejo-te, ao pôr-do-sol, a grata imagem,
Cercada de esplendor e maravilhas.

Da luz, do mar, da névoa e da folhagem
Uma outra tu mesma eu hei formado,
Outra que és tu, não pálida miragem.

E coloquei-te num altar sagrado
Do templo imenso que elevou talvez
Meu gênio pelos anjos inspirado!

Não posso te esquecer, tu bem o vês!
Abre-me d’alma o livro tão vendado,
Vê se te adoro ou não: por que descrês?

Desengano

Oh! não me fales da glória,
Não me fales da esperança!
Eu bem sei que são mentiras
Que se dissipam, criança!
Assim como a luz profliga
As sombras da imensidade,
O tempo desfaz em cinzas
Os sonhos da mocidade.
Tudo descora e se apaga:
É esta do mundo a lei,
Desde a choça do mendigo
Até aos paços do rei!
A poesia é um sopro,
A ciência uma ilusão,
Ambas tateiam nas trevas
A luz procurando em vão.
Caminham doidas, sem rumo,
Na senda que à dor conduz,
E vão cair soluçando
Aos pés de sangrenta cruz.
Oh! Não me fales da glória,
Não me fales da esperança!
Eu bem sei que são mentiras
Que se dissipam, criança!
Que me importa um nome impresso
No templo da humanidade,
E as coroas de poeta,
E o selo da eternidade,
Se para escrever os cantos
Que a multidão admira
É mister quebrar as penas
De minh’alma que suspira?
Se nos desertos da vida,
Romeiro da maldição,
Tenho de andar sem descanso
Como o Hebreu da tradição?…
Buscar das selvas o abrigo,
A sombra que a paz aninha,
E ouvir a selva bradar-me:
Ergue-te, doido, e caminha!
Caminha! dizer-me o mante!
Caminha! dizer-me o prado.
Oh! Mais não posso! – Caminha!
Responder-me o descampado?…
Ah! não me fales da glória,
Não me fales da esperança!
Eu bem sei que são mentiras
Que se dissipam, criança!

Em Toda a Parte

Quando alta noite as florestas,
Ao soprar das ventanias,
Tenebrosas agonias
Traem nas vozes funestas,
Quando as torrentes bravejam,
Quando os coriscos rastejam
Na espuma dos escarcéus…
Então a passos incertos
Procuro os amplos desertos
Para escutar-te, meu Deus!
Quando na face dos mares
Espelha-se o rei dos astros,
Cobrindo de ardentes rastros
Os cerúleos alcaçares;
E a luz domina os espaços
Partindo da névoa os laços,
Rasgando da sombra os véus…

Então resoluto, ufano,
Corro às praias do oceano
Para mirar-te, meu Deus!
Quando às bafagens do estio
Tremem os pomos dourados,
Sobre os galhos pendurados
Do pomar fresco e sombrio;
Quando à flor d’água os peixinhos
Saltitam, e os passarinhos
Se cruzam no azul dos céus,
Então procuro as savanas,
Me atiro entre as verdes canas
Para sentir-te, meu Deus!
Quando a tristeza desdobra
Seu manto escuro em minh’alma,
E vejo que nem a calma
Desfruto que aos outros sobra,
E do passado no templo
Letra por letra contemplo
A nênia dos sonhos meus…
Então me afundo na essência
De minha própria existência
Para entender-te, meu Deus!

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