Discurso de Posse – Afonso Arinos

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O REGIONAL

FONTES DE INSPIRAÇÃO

 

Chego ao vosso honroso convívio, senhores acadêmicos, a uma
altura da existência em que, do cimo consagrador desta tribuna, o olhar
atinge um trecho de caminho percorrido que já é bem maior do
que a parte incerta que resta a percorrer.

Se me não apressei em solicitar o prêmio do vosso acolhimento
foi porque, apesar dos estímulos generosos de tantos de vós,
que conto, para ventura minha, entre os mais caros amigos que possuo, hesitava
em competir com outros escritores que considerava mais dignos da investidura.

Duas razões me impeliam a essa certeza: a segurança da obscuridade
da minha consciência de que as contingências da vida me haviam
arrastado, nos últimos anos, a um campo de atividades muito mais próximo
da esplanada dos comícios do que dos jardins de Academo.

Cogitava que o momento de pedir a vossa hospitalidade seria aquele em que
os frutos da minha pobre colheita pudessem compensar a fragrância com
a abundância, demonstrando-vos, e, sobretudo a mim mesmo, a autenticidade
de uma vocação humilde, que resiste tenazmente aos impulsos
dispersivos das lutas e cuidados que enchem o meu viver.

De velhos sangues provinciais herdei, com efeito, o duplo destino da política
e das letras. Não o escolhi, senão que o encontrei aberto diante
de mim. Irmão, filho, neto e descendente ainda mais longínquo
de homens que passaram das tribunas e, às vezes, das prisões
políticas para as reuniões literárias, bebi, desde onde
alcança a minha memória, o leite da literatura e da política.
Não consigo rememorar conversas caseiras que não versassem livros
e autores, eleições e revoltas. Espantei-me profundamente, nos
meus dez anos, quando em São Paulo, hospedado na chácara do
Conselheiro Antônio Prado, ouvi ali homens sisudos e instruídos
falando de coisas frívolas: dinheiro, companhias, fábricas,
plantações.

As casas-grandes de Belo Horizonte e de Copacabana, onde nasci e me criei,
reproduziam, em pequeno, o agitado ambiente das Câmaras legislativas
e das associações literárias. Nas salas do avô
ou do pai discutia-se política, sob o olhar experiente dos velhos retratos
de família. Nos quartos dos irmãos era literatura que se debatia,
entre efígies de Verlaine, Voltaire, Beethoven e Eça de Queirós.
Menino de calças curtas, fui levado por meu pai, mais de uma vez, à
Cadeia Velha, de cujo ambiente ainda relembro os corredores, os tapetes, os
reposteiros, os homens graves de fraque, cochichando refestelados nas poltronas,
entre a fumaça dos charutos. Mas menino, também, e bem pequeno,
levou-me meu pai, em Paris, a ver o seu amigo Raimundo Correia, que se acabava
num leito de hotel ou de hospital. Fez-me sentar à beira da cama do
poeta, e eu olhava transido o homem que meu pai me dizia grande, mas que eu
só via barbado, esquálido, queixando-se ao amigo de suores e
coceiras por todo o corpo.

Não forcei, assim, o meu destino, nem o conquistei: cumpri-o; mediocremente,
é certo, mas com naturalidade. É, portanto, sem surpresa, embora
com profundo reconhecimento, que, de agora em diante, passarei a repartir
a vida entre a minha casa e as outras casas que são hoje também
um pouco minhas, aquela a que me levou o povo de Minas Gerais, a outra, onde
entro em contacto com colegas e alunos, e esta, onde neste momento falo, senhores
acadêmicos, trazido pela mão encorajadora da vossa generosidade.

Desejo, assim, ao transpor o pórtico, saudar-vos como o mais obscuro
dos confrades e o mais atento dos companheiros. Nosso convívio será,
espero em Deus, longo, e tudo farei para imitar-vos, a fim de que, por falta
minha, ele não seja menos fecundo. Tanto aos que sufragaram o meu nome
como aos que preferiram o do meu ilustre competidor endereço a minha
gratidão; aos primeiros especialmente, é claro, pela honra insigne
que me conferiram, aos segundos pela homenagem que prestaram a uma grande
figura das letras nacionais.

Agradecido me confesso, também, aos amigos que, dentro e fora da Academia,
me ajudaram a ser, nas letras, o pouco que sou. Os vivos não mencionarei
por discrição. Ou melhor, reunirei todos os nomes em um único,
o de Ribeiro Couto, que, pela longa convivência literária e pela
bondade com que me induziu a candidatar-me, é grandemente responsável
pela minha presença entre vós. Falarei agora dos mortos: de
meu pai, que foi para mim, cedo privado dos carinhos matemos, ao mesmo tempo
pai e mãe; do primeiro Afonso Arinos, dos meus irmãos e Virgílio,
aos quais evoco nesta hora, não cedendo ao apelo das afeições
íntimas, mas no imperativo reconhecimento de influências determinantes
da minha vida. Arduíno Bolivar, João Ribeiro, Mário de
Alencar, Azevedo Amaral, Graça Aranha, Paulo Prado, Ronald de Carvalho,
Tristão da Cunha, Raul de Leoni, Mário de Andrade, Rodolfo Garcia,
Luís Camilo, João Alphonsus, Francesco Bianco, Georges Bernanos,
Afonso Taunay, eis alguns mortos a quem fiquei devendo, também, pelo
convívio, muito da minha formação intelectual.

Permiti que termine esta parte levantando o véu do recato doméstico.
Aos meus caros irmãos e irmãs, aos meus filhos queridos, agradeço
tudo o que por mim fazem e tudo o que são para mim. E é a Deus
que humildemente agradeço ter-me permitido encontrar a companheira
da minha vida.

OS ANTECESSORES

Senhores acadêmicos, sucedendo a José Lins do Rego, cabe-me
seguir uma linhagem inaugurada por Franklin Dória sob os auspícios
de Junqueira Freire.

No poeta baiano a biografia é bem mais importante do que a obra, se
bem que esta deva ser considerada no primeiro plano da nossa escola romântica.
Tive sob os olhos os manuscritos de Junqueira Freire, legados ao arquivo desta
casa pelo Barão de Loreto. Pude, assim, ler na letra nervosa do autor,
ainda cálidos pelo contacto da mão doentia que os traçou,
os versos do estranho monge, angélico e sacrílego. Grande parte
da obra de Junqueira Freire se acha inédita, como consigna, aliás,
Homero Pires, em livro escrito há trinta anos e que é, ainda,
o melhor trabalho existente sobre o poeta.

“Musa torva e extravagante”, chamou Raimundo Correia à de
Junqueira Freire. Nem sempre… Às vezes, das sombras do claustro,
surge-nos a sua poesia nobre e bela, vestida na túnica da simplicidade
solene com que os estatuários antigos cobriam as formas quase voluptuosas
da morte.

Penso que a Academia deve organizar uma edição crítica
completa dos escritos publicáveis de Junqueira Freire, incluindo os
estudos filosóficos e os ensaios teatrais inacabados, e excluída,
ou constituindo tiragem fora do comércio, a erótica. Assim,
além de um juízo seguro sobre o valor literário de uma
poesia tão louvada pelos contemporâneos quão ignorada
pelos pósteros, teríamos a imagem exata daquela alma atormentada,
daquele monge sensual, místico e doentio, voltairiano e devoto, cujas
ascensões espirituais e decaídas morais eram o resultado do
desajustamento de uma cultura literária moderna e livre, em choque
com a religiosidade atrasada e os preconceitos sociais de um meio ainda preso
ao obscurantismo da Colônia.

De Franklin Dória, Barão de Loreto, a imagem mais próxima
que me acode é a da esposa, a Baronesa, que encontrei umas duas vezes
em casa de um velho amigo enfermo. Viva e dada, era a Baronesa o tipo da dama
antiga brasileira, ao mesmo tempo familiar e senhoril.

O Barão de Loreto, fundador dia Academia, escolheu o seu amigo Junqueira
Freire, pouco mais velho do que ele, para patrono da cadeira que hoje passo
a ocupar. E um dos primeiros escritos sobre o autor das Inspirações
do Claustro foi o que Franklin Dória lhe dedicou alguns anos depois
da morte do poeta. É um estudo mais biográfico, embora contenha
apreciações críticas ao jeito da época.

Quanto aos versos de Franklin Dória, reunidos no espesso volume dos
Enlevos, publicado em 1959, sendo o autor estudante no Recife, estão
longe da forte delicadeza de Casimiro, da riqueza e perfeição
de Gonçalves Dias ou do estro soberano de Castro Alves. Hoje lemos
mais como documentários da época os poemas sobre o 2 de Julho,
ou em louvor de Junqueira Freire e de João Caetano, recitado este no
Teatro Santa Isabel, do Recife, em cena aberta, na presença do ator
homenageado. Talvez as melhores peças do volume sejam as evocações
bucólicas da ilha dos Frades, no recôncavo baiano, onde o poeta
nasceu e passou a infância. São páginas meio arcádicas
e meio românticas, não destituídas de graça e frescura,
principalmente a poesia dedicada a relembrar a capelinha familiar, erigida
sob a invocação de N.S. do Loreto, nome que o poeta adotou para
seu título nobiliárquico.

Um ano antes de Franklin Dória publicar, no Recife, os Enlevos, nascia,
na capital pernambucana, Artur OrIando, que veio sucedê-lo na Academia.
Artur Orlando aqui chegou beirando o meio século de vida, quando sua
obra de pensador e homem público já se impusera aos meios cultos
do país.

Pertenceu ele à geração de Sílvio Romero e, de
certa maneira, à escola nordestina que o ilustre sergipano chefiava,
como uma espécie de herdeiro do seu patrício Tobias Barreto.
Escrevendo sobre a obra do malogrado Tito Lívio de Castro, que era
alguns anos mais moço do que Artur OrIando, Sílvio Romero alude
à preferência dessa geração para os estudos sociais
sérios. Realmente, em Sílvio, como em Artur OrIando ou Tito
Lívio, que escreveram em fins do Império e começos da
República, é marcante a preocupação pelas ciências
sociais, com abandono da ficção, da poesia e do teatro. Na literatura,
apenas a crítica os atraiu realmente, e isto é bastante sintomático
como disposição do espírito.

No livro Propedêutica Político-Jurídica (1904), que não
é uma introdução à ciência do Direito, como
o título parece insinuar, Artur OrIando reúne ensaios eruditos
e, naquela época, modernos, sobre Filosofia do Direito, Sociologia
e História. Seu fim declarado era a reforma do ensino jurídico,
hoje talvez ainda mais necessária do que então. Outros estudos
do mesmo gênero, versando matéria filosófica, etnológica,
jurídica e de ciência natural, mais do que literatura –
embora haja capítulos de crítica literária –, foram
colecionados nos Ensaios de Crítica (1904) e nos Novos Ensaios (1905).
O Direito e a política internacionais são as teses do Pan-americanismo,
publicado em 1906. Como se vê, a linha da Escola do Recife, marcada
por Tobias e continuada por Sílvio Romero, chegava, com os naturais
desvios devidos às preferências de gosto, época e formação,
até Artur OrIando, que pode ser considerado o seu epígono.

Em 1916, sucede ao pernambucano o fluminense Ataulfo de Paiva.

Aqueles que, como nós, viveram quase toda a vida no Rio, guardam simpática
visão do homem que foi das figuras queridas da sociedade carioca durante
mais de meio século. Ataulfo era, sem dúvida uma personagem
literária e não um autor. Austregésilo de Athayde, nesse
aspecto, definiu-o em frase mais sutil do que bondosa. Desde menino me habituei
a vê-lo e a ouvir falar a seu respeito. Como diz Bandeira da casa do
avô, nunca pensei que Ataulfo acabasse. Contou-me certa vez que, em
moço, vinha a cavalo para a cidade e amarrava o animal, se não
estou enganado, pelas cercanias do desaparecido Teatro Lírico. Depois,
era no chamado “bonde de ceroulas” que se transportava para as noites
da Ópera. Eu já o conheci mais tarde, nos serões de dona
Laurinda, no ambiente ao mesmo tempo diplomático-internacional e brasileiro-patriarcal
de Santa Teresa, ao qual meu pai me arrastou algumas vezes, adolescente constrangido.
Era de ver-se como se emoldurava bem Ataulfo naquele cenário de fim
de época, cenário que conservava tanto da reverência e
das boas maneiras dos salões imperiais.

A moeda de troca intelectual era ainda o francês – e não
o inglês cinematográfico e comercial de hoje. Os potins floriam
nas conversas como as catléias nos vasos, conversas delicadas, de encoberta
malícia, de infatigável polidez, tão distante do canhestro
“disse-me disse” que hoje se exibe, sem máscara, nas letras
ralas do noticiário mundano.

Não se interprete estas palavras como as de um saudosista, que não
sou. Amo o meu tempo, que é o da ascensão das novas classes
e, conseqüentemente, da criação de novas élites.

Isto não me impede de acentuar a finura ou a graça de certos
hábitos estimados e praticados pelas élites desaparecidas. Ao
fazê-lo estou, apenas, recordando aspectos do tempo carioca que coincidiu
com o fastígio social de Ataulfo de Paiva, tempo que ainda entrevi
nos seus derradeiros bruxuleios, semelhantes à chama inquieta da lareira
que esplende súbito no momento de se extinguir.

Na memória de Ataulfo, devemos homenagear algumas das melhores virtudes
da defunta sociedade da primeira República: as virtudes de honradez
pessoal e funcional, de intensa e diligente solidariedade humana, do apego
às boas tradições brasileiras, e, finalmente, do tacto
e da cortesia que davam encanto à vida.

JOSÉ LINS DO RÊGO, O HOMEM E O ESCRITOR

Por um desses contrastes comuns no funcionamento das associações
como a nossa, um, expoente social como Ataulfo de Paiva foi sucedido, por
alguém que era, de certa forma, a sua contradição viva;
por um poderoso escritor, para quem a sociedade nunca foi outra coisa senão
a massa dócil em que as suas mãos robustas iriam modelar vastos
e sofridos relevos humanos.

Na nossa geração, ninguém foi mais totalmente escritor
do que José Lins do Rego. Quem o visse, sedento de vida, interessado
até à paixão pelas manifestações fugazes
e às vezes miúdas do quotidiano, poder-se-ia iludir sobre a
íntima natureza do seu espírito e considerá-lo um simples
transeunte da existência, amoroso das formas, degustador de emoções
e sensações. A verdade era, porém, muito outra. O impulso
profundo que o tornava participante de tantas manifestações
de vida. traduzia, apenas, a necessidade de uma acumulação contínua
de experiências. E essas experiências vitais serviam para enriquecer-lhe
o conhecimento da realidade que, transubstanciada pelo mistério da
criação artística, se fixava nas situações,
paisagens e tipos dos seus romances.

Havia qualquer coisa de rabelaisiano na maneira pela qual a criação
literária em José Lins do Rego se abeberava diretamente nas
fontes mais genuínas da vida. E o fazia da única maneira possível,
dentro do quadro indicado, que era o da experiência pessoal. Este processo
de criação literária era nele tão profundo e natural
que se desenvolvia sem vir à tona da consciência. Era convicto
que José Lins do Rego afirmava ser um homem mais da vida do que dos
livros, quando a verdade é que ele só vivia intensamente para
transformar, para fixar a vida nos livros. Esta era a sua força, e
este o destino que Deus lhe reservou. Seus sentimentos, paixões, gostos,
ambições e súbitos terrores eram os de um homem, mas,
também, nunca deixavam de ser os de um escritor, e como escritor os
vivia e sofria.

Esta verdade, que é geral, mais clara se torna quando a particularizamos
no terreno das ambições. Posição, prestígio,
dinheiro não interessavam a José Lins do Rego senão na
medida em que servissem ao seu destino de escritor. Em matéria de poder,
de honrarias e de bens ele não era um desprendido, mas um distraído.
Sem recusar as vantagens sociais por que tantos se matam, não era ele
capaz de se aperceber dos aspectos mais agradáveis da vida que não
fossem suscetíveis de conduzir à criação literária.
Não se confunda, aliás, este traço psicológico
com a simples rusticidade sertaneja, de que José Lins nunca se desprendeu.
O que havia nele era a entrega de todo o ser a uma vocação dominadora,
a vocação do escritor. De resto, o que estou aqui dizendo roça
pela banalidade, pois se aplica a todos os tipos de vocação
absorvente, espiritual, intelectual ou profissional. Mas há banalidades
que devem ser ditas e repetidas no estudo das personalidades humanas, pois
elas são indispensáveis à interpretação
dos caracteres.

Colocada a questão nestes termos, poderemos integrar harmoniosamente
o homem e o escritor José Lins do Rego penetrando a contradição
que havia entre o otimismo sadio e desbordante da vida de um e o pessimismo
sombrio e tantas vezes trágico da obra do outro.

Aliás, a contradição estava nele mesmo, no homem, e
se revelava a quem o observasse atentamente. O seu otimismo, sem ser fingido,
era falso. Mantinha-se graças ao esforço da tensão nervosa,
necessário à captação das impressões ambientes,
material de que se nutria a imaginação do romancista. Mas, de
repente, o falso otimismo esboroava-se em crises de melancolia e depressão.

A sua saúde tremenda de glutão agitado sombreava-se, de vez
em quando, com temores inopinados: – o medo de doença, o medo
da morte. E o seu prematuro e absurdo fim demonstrou com que acerto a fina
sensibilidade lhe denunciava as frinchas daquela aparente fortaleza.

Rústico nos hábitos e no convívio, chocava-se externamente
com os requintes da civilização brasileira e européia,
em cujo meio viveu durante tantos anos. Mas o choque era só externo,
porque, internamente, ele era não propriamente sutil, mas extremamente
sensível; sensível pelo gosto e pela inteligência, capaz,
portanto, de receber e assimilar, no espírito, as riquezas da História,
da Literatura e das Artes plásticas, que tão distantes poderiam
parecer da sua rude formação infantil e adolescente. Este enriquecimento
constante da experiência cultural, captada por uma sensibilidade sempre
alerta e emotiva, vinha se transformar na criação literária,
que exprimia, contudo, outros ambientes e paixões; outra realidade.
O homem adulto, instruído e viajado, utilizava os materiais da cultura
para aplicá-los na reconstrução de um mundo perdido e,
no entanto, real: o seu mundo terno e bárbaro de menino de engenho.

Ele próprio identifica, com sagacidade, este fenômeno, em página
de um dos livros que publicou com impressões de viagens. Escreve, dizendo
adeus à França: “Vi terras do sul, o mar Mediterrâneo,
o mar da História, o mar dos gregos, dos egípcios, dos fenícios,
dos romanos. Mas o nordestino tinha que voltar à sua realidade… Desde
logo tudo o que vi e senti se refugia no fundo da sensibilidade, para que
a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as
águas novas enchem, outra vez, de correntezas… Adeus, doce França.
Agora os espinhos me arranham o corpo e as tristezas me cortam a alma”.

Eis por que as contradições do homem se fundiam na riqueza
complexa do escritor. Assim como os requintes da cultura eram substância
que ele transformava no mundo quase primitivo que fez ressurgir da memória,
e que durará tanto quanto durar a literatura brasileira, assim também
era na ânsia de viver que ele colhia a inspiração para
exprimir, para marcar, na sua obra, a inanidade e a falta de sentido da vida
a marcha incessante e fatal de toda espécie de vida para a negação,
a gratuidade e o nada.

Além desta impressão geral de negativismo e amargura, a sua
obra possui, é claro, em aspectos mais particulares, outra significação
que precisa ser reavaliada pela crítica.

AUTONOMIA E SUBORDINAÇÃO DA CRÍTICA

Muito se escreveu sobre os romances de José Lins do Rego. É
provável, mesmo, que nenhum outro escritor contemporâneo tenha
sido mais estudado e discutido. Isso não impede que, periodicamente,
se proceda a uma revisão dos julgamentos sobre o conjunto dos seus
escritos, já agora, infelizmente, fixado para sempre pela morte.

Quando relemos os estudos críticos – mesmo os mais felizes e
brilhantes – publicados sobre os livros de José Lins do Rego,
à medida que estes apareciam, observamos que quase todos eles se desatualizaram.
Este fato, aliás, ocorre habitualmente com a crítica jornalística,
que é, salvo raras exceções, obra de circunstância.
A critica só permanece viva e fresca quando é, ela própria,
uma criação literária autônoma, independente da
obra que se propôs analisar. Nestes casos a obra criticada serve de
motivo à critica, mas não a domina nem a esgota. Serve de motivo
como a paisagem à descrição, como a paixão ou
a emoção à análise psicológica, como a
situação dramática à cena teatral, como o tema
ao romance. A autonomia do gênero literário consiste, precisamente,
na capacidade de insuflar vida própria à composição,
fazendo com que ela exista literariamente por si, tornando-se independente
do seu motivo determinante. Sem esta autonomia a crítica não
é gênero literário, não vive, e a sua condenação
à morte fica patenteada pelo envelhecimento progressivo que a põe
em contraste com a perene juventude da obra sobre que versou. Quando viva,
a cr&iaciacute;tica chega a conhecer, às vezes, um destino maior do que
o da obra criticada, e, então vemos como ela permanece atual, colorida
e poderosa, enquanto a outra se esfuma num relativo esquecimento. O exemplo
clássico desta situação pode ser encontrado nas páginas
de crítica que Boswell dedicou, na trama cerrada do seu livro, à
obra do dr. Johnson.

A crítica existente sobre a obra de José Lins do Rego, quase
sempre feita na forma de revista jornalística e de apreciação
impressionista, hoje nos parece, como já disse, na sua maior parte,
inatual, exatamente porque não adquiriu quase nunca a autonomia literária
indispensável, ficando, via de regra, presa ao valor e ao significado
imediatos que os livros apresentavam, ou pareciam apresentar, no momento em
que vinham a público.

Se acompanharmos as datas das primeiras edições dos romances
de José Lins do Rego, penetramos melhor o sentido dos principais artigos
que sobre eles escreviam os nossos mais reputados críticos. E, hoje,
nos parece que o tratamento crítico dos romances estava, talvez, mais
subordinado aos valores gerais extraliterários vigentes na data dos
livros do que, propriamente, ao conteúdo literário destes. Por
isto a crítica quase toda se desatualizou, enquanto o que havia de
substancial na obra literária permaneceu vivo e raramente coincide
com o que era posto em relevo pelos críticos.

PRESENÇA DO SOCIAL

Uma das idéias dominantes na fase em que iam sendo publicados os romances
de José Lins do Rego, chamados do ciclo da cana-de-açúcar,
era a de que eles se destinavam a descrever e a interpretar a desagregação
e decadência de uma certa estrutura social. O próprio romancista,
em dado momento, pareceu convencer-se desse papel, ou, antes, dessa missão
que a crítica dominante lhe atribuía: a missão de escrever,
senão um roman-fleuve de tese, pelo menos uma série de livros
que apresentasse uma realidade sociológica.

Na nota introdutória ao romance Usina, datada de 1936, observa ele:

“A história desses livros é bem simples – comecei
querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos
criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço
de vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é
multas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas
no seu interior”.

Já este trecho mostra como José Lins do Rego, na época
da publicação de Usina, parecia consciente da função
que incumbia à sua obra desempenhar. Os livros deviam deixar de ser
“pedaços de vida” para obedecer a outras forças, as
quais não estavam, porém, como supunha o romancista, “escondidas
no seu interior”, mas, ao contrário, pressionavam-no vindas do
exterior, vindas da interpretação temporal que a crítica,
desde havia algum tempo, discernia no conjunto da sua obra. Isto se torna
ainda mais claro com as seguintes linhas, extraídas à mesma
nota introdutória: “Depois do Moleque Ricardo veio Usina, a história
do Santa Rosa arrancado às suas bases, espatifado, com máquinas
de fábrica, com ferramentas enormes, como moendas gigantes devorando
a cana madura que as suas terras fizeram acamar pelas várzeas”.
Antes de Moleque Ricardo e de Usina, já em Bangüê, que é
de 1934, a preocupação social aflora em certos pontos. A propósito
da situação dos cabras de bagaceira escreve, por exemplo, o
narrador: “Concordava, vendo em tudo uma espoliação, como
se não fosse a minha gente que viesse há anos vivendo daquele
regime monstruoso, como se eu não tivesse sido criado com o suor daqueles
pobres diabos, e os nove engenhos do meu avô, a sua riqueza, não
proviessem daqueles braços e da fome de todos eles”.

Não se pode dizer até que ponto esta e outras tiradas correspondiam
aos acenos da crítica do tempo. Mas José Lins, memorialista
lírico e evocador poderoso, não seria nunca um romancista de
tese. Para felicidade nossa, ele não quis, ou não pôde,
desviar do curso natural a torrente impetuosa de sua inspiração.
É inegável que os romances de José Lins do Rego, de Menino
de Engenho a Usina, constituem um grande painel da transformação
social e econômica imposta pelo progresso técnico da indústria
açucareira. Mas esses livros exprimem, também, qualquer coisa
de diferente. Exprimem uma realidade emotiva e poética muito mais ampla,
nas quais as paixões eternas que sacodem o ser humano se apresentam
poderosas e deixam em indiscutível segundo plano o complexo social
que serve de pretexto à sua eclosão. Por outro lado, certos
tipos de personalidade, como o de Vitorino Carneiro da Cunha, só muito
relativamente se prendem ao meio social em que vivem, porque são figuras
principalmente humanas.

Admito que um sociólogo ou um político possam considerar como
documento social o conjunto de romances do ciclo da cana. Mas este é
um aspecto parcial da obra, que não deve monopolizar a visão
totalizadora do crítico literário. Diz-se que Lênin considerava
o romance de Balzac Les Paysans como uma espécie de panfleto da revolução
camponesa, e talvez o seja. No entanto, para o escritor Balzac, socialmente
um reacionário confesso, o seu livro era o estudo da cobiça
e do ódio que corroíam o coração e envenenavam
a inteligência de um grupo de seres humanos. O Cousin Pons, aliás,
representa o mesmo estudo, transportado para um bairro pobre da cidade de
Paris.

Portanto, a crítica que visse no livro apenas o significado que lhe
emprestou Lênin estaria atrasada, hoje, quando as condições
de economia agrária são tão diferentes, na França,
do que eram ao tempo da Restauração ou da Monarquia de Julho.

José Lins poderia também dizer que a piedade estava no cerne
dos seus romances, e não a revolução. Ele não
era, nunca foi um revolucionário, embora fosse freqüentemente
um revoltado.

Em Doidinho o narrador desvenda cruamente o fundo conservador do seu espírito,
conservadorismo orgânico de neto de senhor de engenho, de menino de
casa-grande. Refiro-me à passagem em que o professor Maciel, logo depois
de surrar impiedosamente um aluno, atraca-se em luta com outro, o forte Elias,
que não aceitava a pedagogia da palmatória. Observa o memorialista,
no caso José Lins do Rego: “E eu, que era um dos mais seviciados
pelo mestre – para que dizer o contrário? – odiava Elias.
Não disse a ninguém. Mas, no íntimo, julgava-o um selvagem,
incapaz de submissão, de satisfazer-se nos limites marcados pela autoridade…
Pode ser que me julguem mal, mas a verdade merece este depoimento”.

Esta confissão é corroborada por toda a composição
de Moleque Ricardo, o livro em que mais agudamente se revela o panorama revolucionário
da luta de classes no Nordeste. O herói, Ricardo, tipo admirável
de mestiço brasileiro, nunca se interessou propriamente pela revolução,
embora se sacrificasse por causa dela, mas por amizade aos companheiros. Sua
paixão era o amor das mulheres, seu grupo social não era o sindicato
obreiro, foco de agitação, porém o clube carnavalesco
que trazia o nome simbólico de “Paz e Amor”. E o próprio
líder da revolta não era um revolucionário, senão
um ambicioso demagogo. Retrato, aliás, voluntariamente contrafeito
e infiel, porque o modelo do personagem, de todos conhecido, é dos
mais puros e desprendidos espíritos de sábio que o Brasil já
produziu.

O REGIONAL

Passando do social para o regional, poderemos acentuar, em outro campo, a
amplidão da mensagem literária que nos legou José Lins
do Rego.

O regional funciona na obra do romancista da mesma maneira que o social,
isto é, como pretexto para a fixação do humano e do universal.
De resto, a obra verdadeiramente literária não pode ser, nunca,
regionalista, precisamente porque ela é, antes de tudo, humana. Regionais
são os materiais de que se nutrem certas grandes obras, desde Homero
e Cervantes até Proust. O exíguo território de Micenas
é tão região como o das andanças do esquálido
Cavaleiro, ou o quarteirão dos Guermantes. Região é o
território material ou social onde o escritor vai buscar, em certo
tipo de obras, o infinito horizonte humano. O texto que é intrinsecamente
regional deixa de ser literatura para se tornar folklore. José Lins
do Rego não é mais regionalista, no sentido literário,
do que foram, são e serão, antes e depois dele, outros autênticos
ficcionistas brasileiros, incluídos pela crítica na classificação
formal de escritores regionalistas. Porque a obra dele é, antes de
tudo, literária.

Parece-me certo que a consciência do sentido regional que, durante
algum tempo, marcou a concepção que José Lins do Rego
teve da sua própria obra resultou da sua amizade para com o mais ilustre
intérprete e historiador da cultura e da civilização
patriarcais no Brasil, Gilberto Freyre.

Na verdade, a obra de Gilberto e a de José Lins se aparentam mais
do que se aproximam. Pelos próprios objetivos do seu trabalho de crítico,
historiador e sociólogo, Gilberto Freyre valoriza literariamente manifestações
culturais que ficariam deslocadas nos livros de um romancista. Foi, por isso,
benéfico ao romancista não haver abandonado o seu próprio
caminho pelos do ensaio ou outro tipo de literatura que não é
de ficção.

De resto, o significado regional dos romances de José Lins do Rego
aparece, igualmente, como elemento ilustrativo e secundário nas obras
dos maiores escritores nordestinos de sua geração, as quais,
é claro, não me compete analisar nem mesmo referir pormenorizadamente
neste discurso.

A prova de que o regionalismo nordestino era apenas um palco sobre o qual
o escritor armava o drama da sua literatura, temo-la em Água Mãe,
cuja ação se desenrola em Cabo Frio. Os tipos e situações
dos romances nordestinos se transpõem em grande número para
este livro meio frustrado, mas intenso e dramático, que retrata ambiente
social e geográfico tão diferente do nordestino. Há uma
repetição quase monótona de planos. A preocupação
da negra Felipa, de Água Mãe, com o neto, Joca, é a mesma
da negra Aninha com o neto Nô, de Riacho Doce. As histórias contadas
pelas velhas amas aos meninos se repetem no Norte e no Sul. De passagem, quero
observar que estas histórias contadas na Paraíba e em Cabo Frio
são aquelas que, em menino, me repetia a querida e saudosa Cândida,
como já deixei relatado no meu livro Um Estadista da República.
Continuando a comparação, veremos que a decadência das
lavouras de café da província fluminense corresponde a idêntico
fenômeno ocorrido com os engenhos de cana no massapé do Nordeste.
Em latitudes geográficas e ambientes sociais tão diferentes,
à beira dos canaviais que se estendiam como águas imensas ou
à margem da lagoa de Araruama verde como um infinito canavial, o que
dá força e qualidade à realização artística
é o dom de penetrar as paixões e o gosto amargo diante da tristeza
irreparável da vida. O tio Juca, na usina paraibana, vai se arruinar
da mesma forma que o milionário Mafra nas especulações
do Rio de Janeiro. A frustração do intelectual Paulo é
parente da indecisão do estudante Carlos de MeIo. Tanto na região
nordestina quanto na fluminense vemos a destruição das famílias,
o desaparecimento das fortunas, o horror da morte ou da loucura, a fúria
das paixões carnais, o trânsito das crendices e superstições
do nosso confuso psiquismo brasileiro. Porque os fatos são aparências
para o escritor, simples exemplos do real. A realidade é outra e paira
sobre essas aparências, acima das regiões e das criaturas. A
realidade, para José Lins do Rego, era o sentido absurdo, a fatalidade,
o vazio, o escoamento perene, o nada permanente da vida. Esvoaça nos
seus livros, sobre tudo e sobre todos, uma ameaça constante de destruição
e de morte. Secundários são os aspectos regionais ou mesmo nacionais
do grande afresco. O que fica, o que subsiste, é a criação
literária, é a presença de José Lins do Rego e
a sua visão dolorosa da vida.

FONTES DE INSPIRAÇÃO

José Lins do Rego pertence ao gênero dos romancistas que fundem
a criação com a memória. Colocando-se no centro da própria
obra, o escritor não apenas preside ao seu desenvolvimento, mas participa
de todo ele. O romancista brasileiro procura, como Proust, o tempo perdido,
para eternizá-lo na obra de arte, mas, como em Proust, esse tempo perdido
é vivido em toda a intensidade literária. Quero dizer com isso
que, no tempo literário, a matéria do passado se mistura com
os sentimentos e a maneira de ver do presente, formando uma trama uniforme
e inseparável. A memória evoca o fato, mas o espírito
criador o transforma, o conforma com esta nova realidade, muito mais forte
e significativa do que a histórica: a realidade criada pela ficção.
A passagem do tempo perdido para o tempo vivido ou literário, no qual
o escritor insufla o fogo do seu gênio, faz com que o fato particular,
colhido na memória, se transfigure na situação exemplar
ou na reação emocional, que nos varrem a alma como rajadas.

Assim, os romances de José Lins do Rego têm a feição
de memórias, enquanto as suas memórias poderiam ser consideradas
como um romance.

José Lins do Rego, na sua prodigiosa vocação de narrador,
se apercebia bem que a fusão do tempo histórico com o literário
dava em resultado uma realidade incorruptível, mais duradoura do que
a da vida. O fato de ser seu poder criador dos mais espontâneos de toda
a literatura brasileira não impedia que ele obedecesse, desde o início,
aos imperativos de uma técnica consciente. No segundo livro que publicou,
Doidinho, o romancista faz, de passagem, uma afirmação que mostra
como ele procedia deliberadamente ao pequeno milagre que era a transformação
da água do tempo perdido no vinho do tempo literário. Doidinho,
o colegial desajustado, ouviu certo dia uma explicação simbólica
da universalidade de Deus que o impressionou profundamente. E o romancista
observa a respeito, numa frase que desvenda todas as fontes da sua inspiração:
“Pela primeira vez, naquelas preparações para o conhecimento
de Deus, uma coisa me ficava clara, numa evidência de dia sem nuvens.
Valia, por esta forma, o poder intenso da imagem”.

Este poder intenso da imagem, esta ficção criada pela memória,
este mundo vivo e diferente saído das entranhas de um mundo morto e
conhecido são todo o tesouro que nos legou José Lins do Rego.
O processo de reconstrução criadora atinge ao esplendor no livro
que, sendo o menos fielmente memória, é, no entanto, o mais
vivamente realidade, o maior livro do romancista, um dos mais importantes
da nossa literatura, Fogo Morto.

Com a publicação de Usina, parecia – e alguns críticos
o declararam – que José Lins do Rego atingira aos limites das
suas possibilidades no gênero. Terminara, harmoniosamente, o ciclo da
cana. Do engenho do menino Carlos de MeIo, o fluxo caudaloso da narrativa
chegara ao ponto terminal da evolução: à usina faminta
que devorava os restos do engenho, que triturava gentes e almas antes de se
devorar a si mesma, numa autofagia final e implacável. Supunha-se que
persistir na mesma linha seria, para o romancista, repetir-se, isto é,
diminuir-se. Mas foi o inverso que sucedeu, e isto pelas razões que
acima procurei identificar ao sugerir a fórmula da evolução
do tempo histórico para o literário. De Menino de Engenho até
Usina como que o elemento memória prendia um pouco o elemento criação,
e, por isso, a composição literária mostra-se, às
vezes, um pouco constrangida e indecisa. Não se percebia a indecisão
nem o constrangimento até que, em Fogo Morto, o escritor, sem abandonar
a contribuição da memória, passou a subordiná-la,
inteiramente, à liberdade criadora. Fez como o pintor que, usando os
dados da realidade visível, os utiliza submetendo-os a uma disciplina
estética e racional que está nele e não nas formas objetivas
nem na lógica visual. Eis por que Fogo Morto, sendo menos fiel à
realidade histórica, é, ao mesmo tempo, o mais real dos romances
da zona da cana, a obra-prima, chave de cúpula de todo o conjunto arquitetônico.
Nesse livro memorável (do qual alguns trechos ainda hoje não
posso ler sem me virem lágrimas aos olhos), temos uma verdadeira fonte
de ensinamentos para desvendar a inspiração do escritor. José
Lins do Rego, a partir do segundo romance, publicado em 1933, sem praticar
propriamente, como já deixei acentuado, a literatura de tese, o que
seria chocante com o seu temperamento, adotou, contudo, o que se poderia chamar
uma atitude de escola em face da tese social. Isto, sem dúvida nenhuma,
limitou a sua liberdade no desenvolvimento dos romances que ele mesmo chamou
do ciclo da cana, levando-o, até certo ponto, a exprimir, na sua narrativa,
algo que se encontrava fora do que veio a se revelar, com Fogo Morto, ser
a mais fiel representação literária da realidade, porque
a mais artística. No ciclo da cana os aspectos sociais do grande drama
humano são fixados conscientemente, ou deliberadamente, o que dá
ao conjunto, como disse há pouco, se não o feitio de romance
de tese, pelo menos o de romance de escola. Já em Fogo Morto José
Lins do Rego se liberta completamente da escola social. Confiante, pelos êxitos
sucessivos, na própria força criadora, produziu um livro que,
vindo depois de tantos outros do mesmo gênero, é precisamente
o mais original. E é o mais original porque é o mais livre.
Sucedeu ao escritor brasileiro algo do que ocorrera com o seu confrade português,
Eça de Queirós, que foi, como José Lins, o mais expressivo
romancista de sua geração. Eça de Queirós filiou-se
– mais disciplinadamente do que José Lins – a uma escola
literária, o realismo. No fim da vida, porém, com A Ilustre
Casa de Ramires, libertou-se dela, e construiu, embora inacabado, o seu mais
típico e original romance, o mais saborosamente português.

É que o Eça da Ilustre Casa e o José Lins de Fogo Morto
foram, então, autenticamente eles mesmos, escreveram o que lhes vinha
brotando limpidamente do mais íntimo do ser, despreocupados das interpretações
alheias.

TÉCNICA DE COMPOSIÇÃO

Para terminarmos com esta apreciação crítica da obra
de José Lins do Rego, devemos salientar os aspectos mais marcantes
da sua técnica de composição.

Em primeiro lugar, o estilo. Muito se falou – e esta observação
foi diminuindo com o tempo – da imperfeição gramatical
do estilo de José Lins do Rego. Lembro-me até de um articulista
português que aludia à sua “tocante incorreção”.
Creio que, hoje, tais restrições encontrariam pouco eco. O problema
do estilo do romancista me parece, no Brasil, país onde tudo se acha
em formação, inclusive o idioma nacional, ser sobretudo o da
adequação do mesmo estilo à substância da obra.

O estilo de Machado de Assis era o instrumento ajustado ao tipo de obra literária
que ele praticou: instrumento preciso, despojado e rigorosamente fiel aos
cânones. Já Nabuco, em Minha Formação, mas principalmente
em Um Estadista do Império, carecia de outro tipo de linguagem, freqüentemente
incorreto e trabalhado pela influência francesa, porém colorido,
plástico, às vezes solene.

José Lins do Rego tinha o estilo apropriado para exprimir o mundo
do seu romance: limitado, mas não pobre; terno, florido, ocasionalmente
turvo, mais sugestivo do que lógico. As grosserias que às vezes
irrompem só chocam quando desnecessárias, isto é, quando
não reproduzem a fala do povo, e hoje até chocam menos, porque
nos habituamos todos à personalidade opulenta e natural do escritor.
Na linguagem do povo há diferenças sutis. Não é
a mesma coisa, por exemplo, dizer-se “ele é alto” e “ele
tem altura”. Poderíamos empregar a mesma sutileza tratando de
José Lins do Rego: ele não é estilista, ele tem estilo.

Um dos defeitos salientados na sua maneira de escrever é a repetição.
Alguns veêm nesta técnica pobreza e monotonia. Eu não.
A mim me parece que a repetição, em José Lins do Rego,
é natural e coerente com o gênero da sua narração.

Talvez nem se trate, propriamente, de repetição, mas de qualquer
outra coisa como sucessão ou ressurreição. As flores
não se repetem, nem as manhãs. O estilo natural é como
a natureza: ressurge, renasce, continua.

Aliás, esta continuidade não é somente do estilo, mas
da arquitetura mesma da obra.

A narrativa toda ela se encadeia na maior parte dos romances de José
Lins do Rego. O enredo do ciclo da cana é contínuo. Pedra Bonita
se desdobra em Cangaceiros e, dentro desta técnica, é natural
que os personagens figurantes em um livro reapareçam naqueles que servem
de continuação. Alguns dos personagens do ciclo da cana, depois
de atravessar toda a série de romances, encontram a materialização
final em Verdes Anos, o livro de memórias da meninice. Aliás,
esta materialização nos decepciona um pouco no caso de Vitorino
Carneiro da Cunha, muito maior personagem do que figura real. A própria
expressão “verdes anos”, que serve de título ao livro
de memórias, já aparece, de relance, em uma passagem de Doidinho,
para designar a idade infantil.

Não apenas o enredo é seguido, não apenas os personagens
acompanham o seguimento do enredo. Há motivos que também voltam,
como na música. Por exemplo, o motivo da loucura. José Lins
do Rego tinha uma espécie de obsessão da loucura; assaltava-o,
às vezes, o medo inteiramente infundado da insanidade. Lembro-me bem
de uma vez em que ele me disse isto quando subíamos a pé a Avenida
Rio Branco, saídos da Livraria José Olympio. Cabeça forte,
juízo perfeito, vinha-lhe de chofre aquele horror da loucura. Esse
medo aparece, aliás, em Carlos de MeIo freqüentemente. O pai do
“menino de engenho” cometeu crime por loucura. A louca d. Olívia,
irmã da mulher de Lula de Holanda, é uma figura trágica,
que acompanha todo o ciclo da cana. O romance Doidinho, já pelo título,
mostra a preocupação obsessiva. Neste livro o pai do menino
Heitor era doido, foi para Recife, contava o filho, amarrado na corda. Em
Pedra Bonita o chamado santo era um louco, como Antônio Conselheiro,
e o drama se desenrola em torno de uma espécie de loucura coletiva.

Em Riacho Doce a velha Aninha era uma feiticeira meio doida, e o seu neto,
Nô, herói do livro, atravessa um acesso de loucura. Em Fogo Morto,
a cena da captura e transporte da doida filha de José Amaro é
das mais terríveis e provoca profunda impressão em Mário
de Andrade. Finalmente, em Cangaceiros temos o temível fantasma de
Siá Josefina, a mãe suicida e louca dos cruéis bandidos.

Outro motivo que poderíamos acompanhar em toda a trama dos romances
é o medo da morte. José Lins do Rego não tinha a curiosidade
filosófica de Montaigne em face do nosso fim inevitável. Reagia
contra a idéia com uma força espontânea e invencível.
Por isto mesmo a sombra da morte surgia amiúde nas suas páginas.
Enterros, agonias, exposições de defuntos merecem-lhe descrições
admiráveis. Uma das mais fortes de toda a sua obra é a do enterro
do avô, José Paulino. Faz-me lembrar outra página, que
guardei na memória e cujo autor não sei mais quem seja, descritiva
da procissão sepulcral de Carlos V, com o transporte do corpo, à
noite, pelas estradas. O trecho de José Lins é um quadro assim
espanhol. Lembra Goya.

No Menino de Engenho, escreve: “Tinha um medo doentio da morte. Aquilo
da gente apodrecer debaixo da terra e ser comido pelos tapurus me parecia
incompreensível… Esta horrível preocupação da
morte tomava conta da minha imaginação”. Já no colégio,
o Doidinho remoía os seus pavores: “O medo da morte envolvia-me
nas suas sombras pesadas. Sempre tivera medo da morte. Este nada, esta destruição
irremediável de tudo, o corpo podre, os olhos comidos pela terra –
e tudo isto para um dia certo, para uma hora marcada – me faziam triste
no mais alegre dos meus momentos”.

E a morte prossegue o trânsito pelos livros de José Lins do
Rego, como um dos personagens principais. Em Bangüê, é o
fim do velho José Paulino, como disse, uma das páginas mais
pungentes do escritor. Em Moleque Ricardo é o triste fim dos pobres,
do amigo Florêncio, acabando num catre da rua do Cisco; de Odete, escarrando
os pulmões junto aos passarinhos do pai. Em Usina, a morte horrível
do negro feiticeiro Feliciano determina uma reação dos trabalhadores
do eito, que é uma espécie de pequena jacquerie. Pureza é
a narrativa de certa fase da vida de um rapaz com medo de morrer; Pedra Bonita,
a tragédia da crença primitiva levando ao genocídio.
Em Riacho Doce, a presença da morte e de um Deus obscuro e vingativo
alimenta as paixões humanas do poder e do amor. Em Água Mãe,
a morte é a ameaça contínua e o desfecho final. Eurídice
é a história de um criminoso de morte. Cangaceiros está
sujo de sangue dos mortos.

Poucos são os momentos de consolo e remissão que o romancista
nos oferece. Um destes refrigérios da alma, na áspera e absorvente
caminhada da sua leitura, são, sem dúvida, alguns caracteres
femininos.

D. Dondon, de Usina, d. Mocinha, de Água Mãe, d. Adriana, de
Fogo Morto, que doces, que genuínas, que grandes mulheres brasileiras.
Sente-se nelas a força delicada, o instinto de retidão, a presença
oportuna, a resistência inquebrantável das figuras femininas
que cercaram a nossa infância ou mocidade e que, na idade adulta, nos
fazem tantas vezes encarar a vida com menos desilusão e maior coragem.
Da preta velha contadora de histórias à avó, à
mãe de sobressaltados enlevos, à esposa que cicatriza com o
bálsamo da compreensão as feridas da sorte, algumas mulheres
brasileiras de José Lins do Rego redimem a humanidade trágica
dos seus romances e são o único raio de luz que entra no ambiente
sombrio da sua alma.

E, por mais estranho que pareça, a impressão de conjunto recolhida
pelo leitor da obra de José Lins do Rego não é, afinal,
de amargura e nojo da vida. Não sei bem explicar por que, mas se desprende
do seu grande legado literário uma ternura humana, uma robusta e ingênua
pureza, uma força vital tão caudalosa que arrasta, em redenção
triunfante, os males retratados sem ódio, abrindo no horizonte uma
clareira de fé. Talvez a razão seja esta, que acabo de enunciar
sem querer: a ausência de ódio no espelho do mal.

A obra de José Lins do Rego, tão brasileira no conteúdo,
é, também, brasileira nos fins. Embora puramente literária,
ela nos convida não a descrer do Brasil, mas a nos desvelarmos para
minorar os sofrimentos do nosso povo.

A glória do escritor está, hoje, perene. Os seus livros vão
durar tanto quanto possa durar a nossa língua mestiça e saborosa.

Mas não é o romancista mais glorioso da nossa geração
que desejo evocar nesta saudação final. É o homem puro,
solidário e bom, o amigo forte, o menino de engenho encanecido, mas
não envelhecido; o menino de engenho tocado pelas sombras e luzes da
vida, que terá entrado, no seu jeito simples, sem cerimônia,
como a preta Irene do poema de Manuel Bandeira, pelas portas do céu.

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