Flor de Sangue

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

Valentim Magalhães

Il y a une justice à rendre à l’amour – c’est que plus les
motifi qui le combattent sont forts, clairs, simples, irrécusables,
en un mot, moins il a le sens commun, plus la passion s’irrite et plus on
aime. C’est une belie chose sous le ciel que cette déraison du coeur;
sans elle nous ne vandrions pas grand’chose.

Alfred de Musset..

Il n’y a jamais rien que de três simple dans les événements
les plus extraordinaires, comme il ný jamais rien que de três
logique dans les hasards les plus inattendus. Un peu de réflexion nous
aurait suffi le plus souvent pour empécher les uns et pour prévoir
les autres. Mais le propre de la passion est de s’absorber dans son object
tout entière.

Paul Bourget.

PREFÁCIO

Julguei conveniente, a bem da retidão do julgamento desta obra, precedê-la
de algumas sinceras e curtas explicações.

Há 20 anos que escrevo para o público e mesmo, a rigor; há
mais tempo ainda, pois na idade de 15 anos já eu publicava em jornais
de província linhas de prosa e de verso, que só a meninice do
autor tornava suportáveis à paciência benévola
dos leitores. Nesses quatro lustros de atividade mental tenho feito um pouco
de tudo – versos, folhetins, contos, panfletos, critica, biografia, artigos
de todo gênero, teatro, que sei eu? E tenho construído com parte
desses materiais para mais de uma dúzia de livros.

A critica tem-me reconhecido, com munificência que me há penhorado,
um espírito vivaz, variável, curioso; uma atividade indefesa;
um certo amor à língua vernácula, e daí pronunciado
carinho no escrevê-la e um estilo correto e agradável; porém
não tem ocultado o seu pesar por me não ver abalançar-me
a isso que chamam os críticos "obra de fôlego" ou "trabalho
sério" – um poema, um romance, um livro de crítica profunda.
Ora, eu devo confessar que essa censura me calou sempre no espírito
por havê-la formulado muitas vezes a mim próprio. Mas a necessidades
inadiáveis da vida material, tão pesadas para um pai de família
pobre nesta terra em que das letras ainda se não pode viver exclusivamente,
impediram-me sempre de levar por diante esse projeto, cem vezes formulado
e não poucas começado a executar. O tempo que me deixavam livre
as ocupações de que provinha o pão cotidiano e o meu
estado de saúde, precário, sempre, chegava apenas para escrever
o conto, a notícia critica, a crônica faceta, o artiguinho diário
a que me comprometera em um ou vários jornais; não havia possibilidade
de realizar o meu sonho, satisfazendo a exigência dos críticos
– escrever uma obra de fôlego.

Entretanto, desde as primeiras manifestações da minha vocação
para as letras senti-me atraído para o romance, e entre os meus primeiros
ensaios, abandonados e perdidos, figuravam alguns capítulos de um romance
O Equilibrista, apenas encetado. Mais de uma vez comuniquei aos meus amigos
esboços, planos de romance, e de alguns passaram notícias às
folhas.

Ora, aconteceu que nos últimos dias do ano de 1895, conversando com
um editor, propus-lhe escrever para ele o meu primeiro romance. Aceitou a
idéia e ofereceu-me direitos autorais que me pareceram satisfatórios,
razoáveis. Como deles tinha alguma urgência, atirei-me ao trabalho:
no dia 19 de janeiro do corrente ano escrevi o primeiro capítulo; no
dia 2 o segundo, no dia 5 o terceiro, no dia 6 o quarto; enfim, em dois meses,
tinha escrito mais de metade do livro, apesar das muitas interrupções
que outros misteres impunham. Mas o editor deu parte de fraco; pediu-me que
o dispensasse do compromisso, provando-me que o não poderia cumprir.
Esfriou-se-me o ardor; parei. Meses depois, tendo feito contrato com os meus
editores habituais, os srs. Laemmert & C. (On revient toujours…) reatei
o trabalho interrompido, dando imediatamente à composição
tipográfica os capítulos escritos. Os originais não foram
recopiados por mim, quer dizer, não fiz rascunho ou borrão.
Escrevi sempre de uma assentada, capítulo a capítulo, e, acabado,
relia-o, corrigia-o, mandava copiá-lo por um secretário, conferia
a cópia e remetia-a aos tipógrafos.

Se conto estes pormenores é para explicar as muitas imperfeições
de forma que sou o primeiro a reconhecer, tais como a vulgaridade de algumas
frases, a fraqueza de certas expressões, o banal de vários títulos
de capítulos (e dei-lhes títulos por uma conveniência
pessoal; para orientar-me em cada capítulo do estado, do ponto em que
ficara o enredo, a composição), um ou outro galicismo, como
"golpe de vista", e outros defeitos mais.

O capítulo que primeiro escrevi, com a intenção de fazê-lo
o primeiro do livro, foi o quinto da segunda parte – um dos últimos:
eu havia principiado pelo fim.

A circunstância de escrever de um jato, sem o polido e o repolido que
Boileau tanto aconselhava aos ferreiros da idéia, só é
prejudicial às obras mal concebidas e mal nascidas, que não
trazem dentro alguma coisa de humano, de luminoso; bem sei, Manon, Le Neveu,
Candide, Adolphe, são obras-primas e, no entanto, foram escritas sem
rasuras, lembra P. Bourget em um de seus livros.

O fato, pois, da correntia espontaneidade, não retificada no cadinho
apurador da revisão paciente, com que compus este romance, não
é justificativa das imperfeições que o deslustram mas
é um fato, e como tal, o denuncio à critica para que o registre,
se lhe aprouver.

Resta-me dizer algumas palavras, e justamente as mais importantes, acerca
da escola e da moralidade de Flor de Sangue. Não me preocupei com aquela
nem com esta, entendida esta no sentido que se lhe dá vulgarmente.

Não resolvi fazer um romance naturalista, nem de aventuras, nem de
psicologia, nem simbolista, nem idealista; resolvi simplesmente fazer um romance.
E ele foi-me saindo dos bicos da pena com um certo feitio, uma certa fisionomia,
um certo caráter, que não tentarei definir e ainda menos explicar.

Se todavia me interpelasse alguém sobre tal ponto, diria que para
o seu autor é o meu romance filiado à escola da verdade, a única,
que como os Goncourt, acredito real e fecunda em arte. Todos os tipos que
nele fiz mover-se, e não sei se viver, encontrei-os na vida social,
não só fluminense, não só brasileira, mas de todos
os países.

Não cogitei tampouco de discutir, provar e impor uma tese. Faço
Paulino suicidar-se, não para pregar o suicídio como solução
única e necessária em situações morais idênticas;
porém pela simples razão de haver dado a Paulino um caráter
reto, inteiriço, não contaminado da gangrena moral da época.
Isso não importa negar ao meu livro moralidade, porque lhe reconheço
pelo menos uma, e não somenos, que é a seguinte – quando um
homem de caráter é dotado de um temperamento que o contradiz
e estorva, pode a vitória caber ao temperamento, na colisão
deste com o caráter; mas o caráter reage com igual vigor e não
aceita a situação moral criada pelo resultado do combate.

O Paulino que eu esbocei no segundo capítulo e fui tracejando nos
subseqüentes poderia tirar a sua amada ao marido para viver com ela,
confessando a sua culpa e arrostando-lhe todas as conseqüências,
com uma bela impudência, bela por valerosa, se se sentisse amado, porque
a felicidade é cruel e injusta na hipertrofia do seu egoísmo;
mas não poderia nunca aceitar a posição aviltante de
terceiro no lar do seu amigo, protetor, quase pai, partilhando-lhe da mesa
às claras e da cama às escondidas. Não vendo nenhum meio
de conciliar a sua honra com o seu amor e não podendo vencê-lo,
alvitra por sacrificar o amor à honra e mata-se.

Esta moral, toda circunstancial e relativa, bem sei, não é
a moral que os mercadores dela em livros e discursos expõem ao consumo
público; mas é a única que a razão admite e que
a ciência explica. E cabe aqui perfeitamente repetir o que escreveu
o fino psicólogo da "Fisiologia do amor moderno" no prefácio
deste livro. Diz ele:

"Ser moralista (linhas acima dissera ele que a primeira e última
lei para um escritor digno de empunhar uma pena é ser um moralista),
ser moralista não é pregar – o hipócrita pode fazê-lo;
nem indignar-se – Molière esqueceu esse traço no seu Alceste.
Em dez misantropos profissionais contam-se nove farsistas, que fazem honorabilidade
da sua indignação a frio. Não é concluir – o sofista
conclui. Não é evitar os termos crus e as pinturas livres –
nos piores livros libertinos, os do século 18, não se encontra
uma frase brutal ou pinturesca. Não é tampouco evitar as situações
escabrosas – não há uma nos primeiros romances de Mme Sand,
e para mim eles são entre os livros belos os que mais justamente se
chamariam imorais – conquanto, neste caso, a beleza da forma seja até
certo ponto uma moralidade. Não, o moralista é o escritor que
mostra a vida tal como ela é, com as lições profundas
de expiação secreta que nela se encontram por toda parte impressas.
Tornar visíveis, como palpáveis, as dores da falta, a infinita
amargura do mal, o rancor do vicio é fazer obra de moralista, e é
por isso que a melancolia das Flores do Mal e a do Adolfo, a crueza do desenlace
de Liaisons e a sinistra atmosfera de Cousine Bette fazem destes livros obras
de alta moralidade".

É impossível dizer melhor.

Marcel Prévost, num artigo do Journal, intitulado Littérature
et Morale, observa com grande verdade "que a literatura de uma época
é sempre mais moral que seus costumes e que nenhum livro é tão
libertino como as conversações correntes, na baixa como na alta
sociedade".

Sou avesso a prefácios e entendo que o livro que se não explica
a si próprio e por si próprio é um livro inexplicável.
Mas conheço o meio em que vivo e prefiro ir ao encontro das principais
objeções que ao meu romance prevejo serão feitas, e sobretudo
a relativa à moralidade. Hão de acusar-me de haver feito um
livro que não pode ser lido por donzelas e meninos. Não me defendo;
ao contrário, confesso que não daria este romance a ler à
minha filha, como o não dou à minha irmã nem a meus filhos;
mas romances sinceros e verdadeiros, isto é: honestos e morais não
se escrevem para serem lidos por donzelas e donzêis. E aqui me socorro
ainda do excelente prefácio de Bourget, de que acima fiz alguns extratos:

"Imaginemos para a nossa obra um leitor de 25 anos e sincero: que pensará
ele do nosso livro ao terminar a leitura? Se ele, depois de lida a derradeira
página, é levado a refletir nas questões da vida moral
com seriedade maior, o livro é moral. Aos pais, às mães
e aos maridos compete proibir a sua leitura aos rapazes e às raparigas,
para quem um livro de medicina também podia ser perigoso. Tal perigo
não nos respeita. Só o que nos incumbe é pensar o mais
justo que pudermos e dizer o que pensamos".

E justamente o que dizia há mais de 20 anos Guerra Junqueiro no prefácio
da Morte de D. João, e num estilo mais colorido e imprevisto. Lembram-se?

"Não aconselho a ninguém que dê a ler a uma rapariga
de nove anos nem a Morte de D. João, nem romances, nem dramas, nem
comédias, nem o novo e, sobretudo, nem o Velho Testamento.

E linhas mais longe:

"Não se dá um poema a uma criança pelo mesmo motivo
por que se lhe não dá uma garrafa de vinho ao jantar".

Mas a razão mais poderosa para que o romancista desdenhe preocupações
de moralista banal, de convenção, é a que dá Edmundo
de Goncourt nas seguintes linhas:

"Hoje que o romance se alarga e cresce, que vai sendo a grande forma
séria, apaixonada, viva, do estudo literário e do inquérito
social, que se vai tornando, pela análise e pela pesquisa psicológica,
a história moral contemporânea, hoje que o romance se impôs
aos estudos e aos deveres da ciência, ele pode também reivindicar
suas liberdades e privilégios".

Estou bem apadrinhado, como vêem.

Por último, uma confissão.

Tive tanto gosto em escrever o meu primeiro romance, o gênero agradou-me
tanto, deu-me tão belas horas de gozo intelectual, que o meu desejo
era e é não escrever de ora avante outra coisa.

O romancista vive com as suas criaturas – ri, chora, goza, sofre com elas.
É uma segunda vida, uma outra sociedade que trazemos palpitante dentro
de nós – na rua, em casa, por toda parte. Como eu compreendo o velho
grande Dumas dizendo ao filho, que o fora encontrar chorando e lhe perguntara
qual a causa daquelas lágrimas:

"Um grande desgosto! Portos morreu! Acabo de matá-lo! E não
posso deixar de chorar-lhe a morte! Pobre Portos!"

O poema e o romance são as duas formas literárias diferenciais,
extremas, positivas. Tudo o mais – contos, odes, sonetos, peças teatrais
são matizes, variações, gradações; motivos
musicais, apenas, porque as óperas são eles. Ora, o poema não
pode respirar e medrar neste nosso meio de hoje, excessivamente despoetizado
pela indústria, pela ciência e pelo epicurismo. Resta o romance.
O romance é o grande instrumento de reconstrução social.
A princípio foi camartelo: destruiu; no século vindouro será
escopro e trolha: construirá. O romance era fábula: hoje é
história e critica; será filosofia amanhã.

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO I

Fernando e Corina

Vamos, Sinhá, vão se fazendo horas – disse Fernando Gomes,
tomando o chapéu e a bengala.

– Já vou; estou quase pronta – respondeu, do gabinete de toalete,
uma voz moça e clara.

Fernando consultou mais uma vez o relógio: eram sete e meia. A entrada
do Orénoque estava anunciada para as dez, mais ou menos: não
havia tempo a perder. E foi se dirigindo para a porta.

– Já encomendaste o carro, Fernando?

– Já, na cocheira da rua do Haddock Lobo, onde devemos tomá-lo.
Mas, vem daí; senão perdemos este bonde. Eu vou para o portão
esperá-lo.

E, descendo a escada da sala de jantar, veio para o jardim.

Era uma esplêndida manhã de julho, fresca, vibrante de claridade
e de gorjeios de passarinhos. Os cabeços da serra da Tijuca iam-se
destoucando dos véus brancos da névoa, em que se envolveram
para dormir, e o sol, acima de um deles, com o seu disco indistinto e refulgente,
parecia um grande brilhante engastado na porcelana azul da abóbada.
Os seus raios, finos e nítidos, apenas tépidos, acendiam delicadamente
todas as cores do íris nos cristais do orvalho que aljofravam as folhas
das roseiras, dos jasmineiros, das begônias, dos crótons; e os
verdes tapetes de grama, talhados à inglesa, com uma elegância
severa e simples, pareciam cobertos de pó de prata.

Dois jardineiros solícitos faziam a primeira rega com o auxílio
de longos tubos de borracha, de um lado e de outro; e sob o chuvisqueiro fino,
irizado de sol, as plantas verdes e tenras sacudiam-se, agitando os braços,
erguendo as cabeças flóreas, tomando no seu banho matinal forças
novas para resistir ao calor fecundo do dia.

Era um jardim magnífico pela vastidão e pelo bom gosto no corte
e disposição dos canteiros – uns formando corbelhas variegadas,
outros elipses, losangos e meias-luas; e de dentro do qual o chalé
surgia garridamente, cor-de-rosa e branco, com a sua construção
simples de um só pavimento, mas alto bastante, inteiramente circundado
por uma varanda larga sob a coberta leve, recortada em lambrequins de madeira.

Para trás ficava a chácara imensa, plantada de velhas e copadas
mangueiras e muitas outras árvores de fruto, e nela, a uns cem passos
do chalé, um outro, pequeno, muito alto, espécie de mirante,
que olhava para longe, Tijuca abaixo, por sobre o telhado daquele. Fernando
chamara-lhe o belvedere, e era nele que ia instalar o seu querido viajante,
para o que o fizera mobiliar a capricho.

Era uma das melhores vivendas da Tijuca, sobre um outeiro, junto à
raiz da serra, tendo sobre tantas outras ainda a vantagem da facilidade da
condução, pois dispensava diligência, carro ou cavalo,
bastando o bonde e um pequeno trajeto de cinco minutos a pé.

Fernando dava uma ordem a um dos jardineiros quando Corina, descendo rapidamente,
muito risonha, as escadas de pedra, num farfalhar de sedas novas, espalhando
em torno uma onda de perfumes discretos, veio juntar-se ao marido:

– Ah! Cá estou. Nem sei como estou vestida! Se isto são horas
de obrigar uma dama a sair, senhor doutor Paulino! – exclamou ela, erguendo
com faceirice um dedo ameaçador na direção do mar. E,
voltando-se para o marido com um recuo ligeiro, abrindo os braços:

– Achas-me bem?

– Estás divina. Mas vamos.

– Sem café? Esquecia-nos o café. Aí vem ele.

Um mulato claro e alto, muito magro, com um avental branco, que lhe descia
dos ombros aos pés, aproximava-se com uma salva de xarão, em
que se via um delicado meio serviço de prata para petit déjeuner.
Corina trincou um biscoito e sorveu alguns goles de leite, enquanto o marido
ingurgitava o cheiroso e negro café da sua canequinha branca.

– Pronto; desçamos.

Saíram o gradil de ferro e desceram a colina, entre os dois renques
de soberbas palmeiras. O bonde tilintou perto, embaixo. Apressaram o passo
e tomaram-no.

– Quase oito horas, Sinhá. Tenho receio que não cheguemos a
tempo.

– Que idéia! Nem tão grande é a distância!

E Corina calçava as luvas cor de pérola, olhando, com desembaraço,
um pouco para toda parte.

É uma encantadora morena de 21 anos. Alta, bem lançada, cintura
fina e cadeiras largas, peito farto, sem exagero, sentindo-se-lhe a opulência
firme dos seios no ofego brando do colo, adivinhando através da seda;
braços longos, mãos pequenas, de dedos afusados; uma fragilidade
e esbelteza de fausse maigre. A cabeça, de brasileira pura, aliando
a garridice e a espiritualidade francesas ao encanto forte e quente das espanholas
nos olhos grandes, negros, admiráveis; no nariz, a um tempo delicado
e forte, de asas largas e palpitantes; na boca, rasgada em sorriso, de lábios
carnudos e róseos; no moreno aveludado da tez, de uma palidez sensual,
que parece arder de um fogo incessante do sangue, refluente ao coração.

E em toda ela, nos olhos, nos risos, nos gestos, nas falas – uma alegria,
uma ingenuidade, um capricho de criança.

Onde quer que aparecesse atraía todas as atenções, acendia
invejas nas damas, inflamava em desejos cúpidos os homens. Quando entrava
em um bonde, enchendo-o com a sua mocidade e a sua formosura de Diana, vestida
pelo último figurino de Paris, todos se volviam para vê-la e
corriam sussurros.

Os homens que conheciam o marido apressavam-se em saudá-lo para terem
pretexto de olhar para a mulher com mais liberdade, e se ia no carro algum
elegante, algum leão da rua do Ouvidor, uma espécie de fluido
elétrico se estabelecia entre ela e ele: sentiam-se, adivinhavam-se
mutuamente, farejavam-se, por assim dizer, como no bosque espesso a corça
e o tigre se pressentem e se aproximam – uma com a certeza do seu fim desgraçado,
o outro com a segurança da sua força.

E se o acaso os juntava no mesmo banco, era um telegrafar imperceptível
de contatos sutilíssimos: ora a manga do fraque dele roçando
a manga do corpete dela, o joelho dele, que num movimento natural, toca ligeiramente
nos estofos que resguardam a perna da dama; não se olham e, no entanto,
observam-se; não se falam, mas compreendem-se.

É uma espécie de duelo mudo, que se trava entre toda mulher
formosa e coquete e os homens da moda e do mundo; duelo terrível, em
que ela tem de defender-se heroicamente contra muitos adversários,
mais fortes e mais experimentados, e no qual se joga sempre a honra do marido,
que não raro recebe um golpe mortal.

O de Corina, entretanto, não era dos mais animadores. Era um homem
fisicamente digno daquela esplêndida mulher – alto, robusto, espáduas
largas, cabeça enérgica, sangüínea, respirando força
e coragem pelos olhos francos, pela boca forte, pelo nariz grande e adunco.
Usava bigode e suíças curtas e sedosas, de um louro escuro,
e que ele anediava quase constantemente. Representava ter 36 anos. Sócio
de uma casa bancária e interessado em várias empresas industriais,
distribuía sem cessar a sua prodigiosa atividade por muitos negócios
de especulação mercantil e transações de bolsa,
em que fizera sólida e próspera fortuna. Era conhecidíssimo
no Rio de Janeiro, cuja melhor sociedade freqüentava, figurando infalivelmente
um todas as comissões de festejos públicos e obras de caridade.

Havia três anos apenas que desposara Corina, a sobrinha e afilhada
do conselheiro Prestes, o abastado homem político, um dos mais prestigiosos
chefes do partido então no poder. O conselheiro, não tendo filhos,
concentrara naquela menina todas as suas afeições e esperanças,
adotando-a com sua esposa, a célebre Chiquita Prestes, de quem se contavam
aventuras escandalosas, em que figuravam até personagens de sangue
azul.

Bonita, elegante, herdeira da fortuna considerável dos tios, educada
com excessiva liberdade e mimos demasiados, freqüentando todos os bailes
e festas, vivia a jovem Corina assediada constantemente de adoradores, que
se disputavam com encarniçamento uns aos outros aquela presa apetecível.

Mas a própria liberdade em que a deixavam os padrinhos teve para ela
uma vantagem – foi fazê-la conhecer ao justo o valor de cada um dos
seus inúmeros pretendentes. Ganhou fama de namoradeira; mas também
adquiriu a de conquista difícil, tantas foram as tábuas que
distribuiu, brincando e rindo, a muitos deles.

Gastou três anos, dos 15 aos 18, nesses perigosos brincos de salão,
estafando pretendentes nessa steeple-chase ao seu dote e à posse do
seu corpo adorável.

Mas aos 18 anos, deixou-se prender e cativar. Encontrara Fernando em um baile
do cassino – valsando como um silfo, conversando com espírito e fazendo-lhe
uma corte delicada e séria, sem pieguices. Sentiu nele uma virilidade
sadia e uma afeição firme e profunda: correspondeu-lhe.

Fernando, que de há muito a seguia timidamente, através de
todos os bailes, espetáculos e festas com uma simpatia crescente, sentiu-se,
por fim, tomado de um amor grave, fundo, irresistível, por aquela perturbadora
criança. E, com a sua vontade educada, que não conhecia impossíveis,
resolveu que a desposaria.

Mui raro é que um amor sincero e grande, um amor verdadeiro – o amor,
enfim – não desperte, não atraia, não gere senão
amor igual, ao menos uma afeição forte, uma simpatia acentuada,
como o abismo atrai o abismo; mui raro é que o amor não vença
e não triunfe.

Dona Sinhá – a frívola Corina -, a coquete borboleta do flerte,
sentiu-se atraída de um modo estranho e poderoso para aquela viva e
grande chama que ardia tranqüilamente a seu lado e deixou-se arrebatar
para o cárcere dourado do casamento pelos braços do seu valsista
lépido e varonil.

Após três meses de noivado – meses deliciosos, em que a festa
nupcial foi preparada entre carinhos e devaneios, com mil pequenos cuidados
e requintes, acabando cada uma dessas noites de oratório com um beijo
casto e tímido, e em que os primeiros ardores do delírio da
posse foram pouco a pouco entrando – após esses três meses de
sonho, realizou-se o casamento de Fernando Gomes com Corina Prestes na casa
dos padrinhos, partindo os noivos na mesma tarde para Petrópolis. Ali
passaram a lua-de-mel, escondendo-a avaramente em um delicioso cottage no
alto da Serra, no qual só receberam a visita do conselheiro e da esposa
e a de Paulino, o seu maior amigo, a quem estimava como a um filho, e que
dentro de duas horas ia estreitar nos braços, depois de uma ausência
de três anos, em que fora viajar e aperfeiçoar os seus estudos
médicos na Europa.

Paulino embarcou para Bordeaux dois meses depois do casamento do seu amigo
e protetor.

Para Fernando Gomes esses três anos pareciam três dias. No firmamento
da sua felicidade somente uma nuvem passou, toldando-o, mas passou ligeira,
para não mais voltar – esperava-o.

Mas era bastante negra essa nuvem; foi grande esse primeiro desgosto.

Corina fizera-se abortar duas vezes; da primeira Fernando ignorou-o completamente;
mas da segunda foi advertido pelo médico, que, ainda incerto quanto
ao primeiro aborto, tivera certeza do segundo pelos profundos e iniludíveis
efeitos por ele deixados na natureza delicada da moça, e julgara de
seu dever informar o marido, em particular e com cautela.

Fernando teve uma cena violenta com a esposa – a primeira, mas que lhe deixou
um vago pavor. A princípio ela negou o fato, mas teve de confessar
a verdade quando o marido lhe disse que fora o próprio médico
que lho revelara. Interpelada sobre o sentimento que a levara à prática
daquele crime, de que ela não tinha, aliás, consciência,
considerando-o um ato lícito, sem maior importância: se era o
horror ou o medo de ser mãe, respondeu isto – que desejaria ter um
filho porém mais tarde, quando já houvesse gozado mais da existência,
que se sentia moça e forte, que gostava de se divertir e que os filhos
estragam as mulheres, acabam-lhes com a vida, condenando-as a toda sorte de
trabalhos, desgostos e sofrimentos. E nos seus olhos imensos, marejados de
lágrimas, lia-se o terror animal da dor, e nos seus gestos de desespero
o aferro egoístico aos gozos fáceis e brilhantes da vida mundana
– a todos os regalos do luxo, da moda, da convivência.

Fernando, que esse golpe inopinado abatera, escreveu a Paulino longamente,
expondo-lhe sem reservas o que se passara e pedindo-lhe o seu juízo
a respeito. A resposta veio pela volta do paquete e restituiu ao pobre homem
a calma e a alegria que aquele incidente lhe roubara.

Pensava o médico que fora um ato de leviandade, uma criancice, apenas;
produto talvez de maus conselhos; mas dizia estar convencido de que ela não
compreendia absolutamente a gravidade, nem medira as conseqüências
do que fizera e que devia ficar muito espantada quando lhe dissessem que fora
um crime esse ato.

Paulino lembrava ainda ao amigo a deficiência da educação
moral que haviam dado à esposa, a qual, saída do colégio
das irmãs de caridade, de um meio de hipocrisia e disfarce, tivera
como mãe, durante os três anos que mediaram entre a saída
do colégio e o casamento, a quem? À famosa Chiquita Prestes!
E concluía aconselhando ao amigo que se lembrasse de tudo isso para
não esquecer que devia pôr no seu amor conjugal um pouco do desvelo
e da severidade de um pai.

Essa carta foi para Fernando, além de um suave conforto, uma revelação
preciosa. Absorvido pelos seus negócios, depositando na esposa confiança
completa, tendo um gênio descuidoso, franco, pouco refletido, incapaz
de prever o mal, nunca ponderara os precedentes da esposa, o seu gênio,
a sua educação, os seus gostos, nem os perigos e os males que
podiam vir da excessiva liberdade, sem nenhuma vigilância, em que ele
deixava aquela criança fogosa, travessa e mal educada.

Era tempo. A sua honra já era pasto da maledicência pública
em Petrópolis, onde passavam os verões. Apontava-se como amante
da formosa dona Sinhá o jovem e louro secretário da legação
francesa, sr. de La Motte, seu par quase constante de valsa, seu companheiro
habitual de passeios a cavalo. e de canto nos duetos ao piano. Fernando, sem
alterar os hábitos do casal de modo alarmante, foi restringindo habilmente
o circulo das festas e modificou os seus próprios hábitos de
modo a ser muito mais assíduo junto à mulher – nos bailes e
nos passeios. E como valsava e montava ainda primorosamente, recomeçou
a valsar com a mulher e a fazer com ela longas excursões a cavalo.

Esse manejo, que não podia passar despercebido à sociedade
dos veranistas de Petrópolis, criou para Fernando uma reputação
muito lisonjeira de homem de espírito e finura e fez achar bastante
cômica a atitude enfiada e esquerda do louro sr. de La Motte.

Assim, pois, apesar dos elementos sobreexistentes de perigo – dos quais o
mais temível era a amizade de Santinha, a famigerada mulher de Viriato
de Andrade – as precauções despertadas por Paulino na sua carta
providencial, inteligentemente postas em prática por Fernando, garantiram-lhe
a integridade da honra matrimonial e o respeito público à sua
bela cabeça loura, em que a luzidia cartola ou o leve chile continuaram
de assentar perfeitamente, até esta luminosa e fresca manhã
de julho de 1889, em que o belo e invejável casal partia do seu esplêndido
chalé da Tijuca para ir a bordo do Orénoque receber o seu querido
e saudoso amigo dr. Paulino José de Castro.

CAPÍTULO II

PAULINO

Graças à amabilidade do ajudante de guarda-mor da Alfândega,
o prestativo e florescente Lírio, conseguira Fernando a excelente lancha
daquela repartição para ir a bordo do Orénoque buscar
o seu amigo.

Iam nela também, e para o mesmo fim, a irmã e o cunhado do
médico, com um filho, e o seu amigo o farmacêutico Honorato Campos.

Àquela hora o sol, alto e largo, já bastante quente, punha
uma palheta de platina fluida em cada onda, e como que estendia por sobre
o mar, de tão alto, a sua cauda imensa de luz ofuscante.

Junto ao cais apertavam-se aos encontrões inúmeras embarcações
miúdas com os catraeiros em pé, gesticulando para as pessoas
que estavam no cais e fazendo um alarido infernal.

– É pro francês, patrão? Pronto.

– Pro alamáo, patrãozinho? É comigo.

– Ó senhor! Eu faço mais barato! Levo-o e mais a senhora a
bordo do nacional por cinco mal-réis. É a Fama de Netuno!

Passageiros desembarcavam de lanchas a vapor e de botes, carregados de malas
e chapeleiras, numa confusão de tipos das raças as mais diversas,
com um ar atordoado, olhando e ouvindo sem falar.

A lancha, impulsionada pela máquina vigorosa, cortava como uma flecha
a face do mar ofegante, verde-escuro, e em breve, aproando ao Poço,
deixava para trás, num afastamento rápido, o cais do Mineiros,
a Alfândega, o arsenal, as docas.

Dona Sinhá agarrara-se fortemente ao braço do marido, muito
medrosa, queixando-se das guinadas da lancha, arrependida de ter vindo.

– A senhora enjoa, dona Sinhá? – perguntou a irmã de Paulino.

– Muito, dona Benga; é uma desgraça.

– Não pode olhar para um navio, mesmo pintado, sem deitar carga ao
mar! – disse, rindo, Fernando.

Todos riram, principalmente a irmã de Paulino, que não perdia
ensejo de mostrar os seus lindos dentes. Era uma mulher baixinha, muito gorda,
mas com uma certa elegância, apesar disso, por ser uma gordura proporcional;
belas cores, olhos pequenos, mas negros e inquietos; um ar de franqueza, atividade
e bondade, que logo cativava.

O marido, Domingos Castrioto, chefe de seção na Secretaria
de Agricultura, era um desses tipos incolores, apagados, metódicos,
que o hábito longo e constante da burocracia acalcanha e descaracteriza
– uma espécie de oficio em branco, no qual a esposa escrevia à
vontade. Tinham uma escadinha de filhos, a quem ela dedicava toda a sua existência,
com um afeto e uma abnegação comoventes.

O Dano, que os acompanhava, era o terceiro – um bonito petiz de oito anos,
inquieto, espigado, tagarela, afilhado do tio e que, por isso, ia também
a bordo recebê-lo. Desde que a embarcação largara, arremangou
ele o braço direito, meteu-o na água e deliciava-se com a frescura
e o movimento dela.

Dali a momentos Corina tinha vômitos. O farmacêutico Honorato,
muito gentil por sistema com as senhoras, para obter a freguesia das famílias,
e prevenido sempre para estes casos, sacou do bolso um vidrinho, contendo
um líquido branco, que deu a cheirar à doente, a qual melhorou
de pronto, o que o fez explicar:

– Também é um preparado meu – o elixir milagroso.

– Milagroso, em verdade; hei de comprar-lhe alguns vidrinhos – disse Fernando,
como agradecimento.

– Que navio é aquele, papai? – gritou o Dano, tirando de repente o
braço da água e respingando o vestido de Corina; o que fez a
mãe exclamar:

– Que modos são esses, Dadá? Estás molhando a senhora.

– Hein, papai? – insistiu o menino, sem atender à reprimenda.

– É um encouraçado, o Aquidabã, meu filho – fez a voz
fanhosa e arrastada do pai.

– Lá está o Orénoque! – gritou Fernando. – Belo paquete!

Mais algumas braças e já se podiam distinguir as pessoas que
estavam no tombadilho. Fernando pôs-se em pé, fazendo viseira
com a mão para ver melhor.

– Já o distingues? – perguntou Corina.

– Ainda não, espera; agora. Lá está ele, encostado à
amurada; olha, acolá, junto do último escaler suspenso, de roupa
cinzenta e chapéu preto mole. Vês?

E entrou a acenar vivamente com o lenço. O vulto, cada vez mais distinto,
reconhecendo-os também, correspondia às saudações.
Dona Benga, que, ao distinguir o irmão, pusera-se a rir, a rir, chorava
agora em silêncio, sem cessar de sorrir, sem forças para agitar
o lenço.

Dez minutos depois, subiam todos a escada do portaló e entravam no
paquete, em meio de uma confusão indescritível.

Passou-se então uma cena tocante. Fernando e dona Benga atiraram-se
ao viajante e sem lhe darem tempo para articular uma palavra, o apertaram
nos braços, cobrindo-lhe o rosto de beijos e lágrimas.

Castrioto olhava para aquilo com o seu ar apático, com o sorriso e
a destra de prontidão, à espera da sua vez: Dano encarapitara-se
na amurada e entretinha-se a observar o movimento dos botes e lanchas embaixo,
junto à escada do portaló.

Corina tinha uma umidade brilhante nos olhos e a sombrinha tremia-lhe na
mão enluvada.

Por fim desabraçaram-se os três e Paulino enxugou vivamente
os olhos.

Só então pôde ver Corina. Tirou imediatamente o chapéu
e estendeu-lhe as mãos:

– Oh! Dona Sinhá!

Esta, sem responder, estendeu-lhe as suas.

– Ora façam-me o favor de abraçar-se! Pois você vem de
Paris e perde a ocasião de beijar uma mulher bonita? – exclamou Fernando.

Paulino obedeceu, apertando levemente ao peito o busto elegantíssimo
da moça e beijando-a nos cabelos.

Depois o médico e o farmacêutico, antigos companheiros de estudo,
abraçaram-se afetuosamente.

– Olha o Castrioto, meu irmão, e o teu afilhado, o Dadá. Mas
onde está ele? Dadá! Que diabinho de criança!

– Oh! Não o tinha visto ainda. Desculpe-me, Castrioto.

E o médico abraçou o cunhado, que tirara o chapéu, num
acanhamento, muito atrapalhado com a comoção.

– Como está crescido o Dadá! Você lembra-se de seu padrinho?
Qual! Não se lembra. Há três anos! Trago para você
um boneco ainda mais travesso que você.

– Bem, agora toca a safar. Onde estão as tuas malas de cabina?

– Aqui.

– Bem. Vamos a isto. O plano é o seguinte: almoçamos todos
no Globo, depois as senhoras vão para casa e nós vamos à
Alfândega tirar a bagagem.

Meia hora depois almoçavam todos no salão do Globo, onde Fernando
havia de véspera encomendado o almoço. A mesa estava muito chique,
toda coberta de flores; num grande gateau ornamental, ao centro, havia um
anjinho de açúcar erguendo uma bandeirola em que se lia – Boas-vindas!
O recém-chegado sentou-se entre dona Benga e Corina; do outro lado
Fernando, Castrioto, Honorato e o menino.

O primeiro prato servido foi uma feijoada, preparada a capricho, que foi
saudada com grandes aclamações e que Fernando obrigou a rebater
com um golezinho de legitima crioula – para dar à cena toda a cor local.

– Faço questão que você se reabitue desde já aos
costumes pátrios. Três anos de estranja quase que desnacionalizam
um homem. Mas, caramba! Você volta-nos um rapagão, seu Paulino!
Olhem-me para aquilo! Que belas cores! Que bigode petulante e que elegância!
Você vai ser o pesadelo dos maridos e o sonho dos pais que têm
filhas casadeiras.

Paulino transformara-se de fato naqueles três anos de ausência.
Partira um pouco debilitado e pálido, em conseqüência dos
estudos e trabalhos da formatura, e sem aquela carrure, aquele ar sadio, robusto,
desempenado. Muito moreno, ao partir, a cor abrira-se-lhe lá fora,
tomando um tom rosado, e em todo ele – no corte do cabelo, no jeito dos bigodes,
no vestuário, nas maneiras, no modo de dirigir-se às pessoas,
no de servir-se à mesa, nos menores gestos havia um ar novo e fino
de distinção, essa espécie de verniz que o simples contato
e a observação inteligente das civilizações européias,
em constantes viagens, fazem insensivelmente adquirir.

Era um belo exemplar da raça esse homem. Mas o que o tornava encantador
era a rara, a perfeita delicadeza de sentimentos e a direitura de caráter,
que se sentiam, que se viam quase sob aquela varonilidade culta e na seriedade,
na quase austeridade que respirava a sua fisionomia enérgica e serena.

Fora sempre um rapaz sério, isto é, criterioso, ponderado,
pacato, durante todo o tirocínio acadêmico. Por isso adquirira
a afeição dos mestres e dos colegas, tendo recebido destes a
honra de ser o seu representante na cerimônia da colação
de grau.

Nascera no Rio Grande do Sul, de um magistrado paupérrimo e probo,
a quem a mulher deixava cinco filhos, dos quais só existiam três
– Paulino, d. Benga e Adolfo. Este fizera companhia, em Porto Alegre, ao pai,
velho e quase cego, desembargador aposentado, até seu falecimento em
1888, havia 13 meses. Com grandes sacrifícios conseguira Paulino formar-se,
tendo sido obrigado a lecionar de dia e a rever provas à noite, na
redação de um jornal, para poder prosseguir nos estudos.

Foi no terceiro ano do curso médico que Fernando o conheceu, apresentado
por um amigo comum. Quis o acaso que eles se encontrassem várias vezes,
e uma tal afeição os ligou, que Fernando, solteiro e já
abastado, obrigou o estudante a morar com ele e a aceitar-lhe a proteção,
que ele, aliás, sabia dispensar sem vexame nem humilhação.

Foi ainda Fernando quem editou o seu primeiro livro – um estudo da influência
e do papel da mulher na sociedade, livro que levantou grande celeuma entre
os críticos, pelo pessimismo que todos eles julgaram descobrir na obra.

E, finalmente, foi graças à influência e aos esforços
de Fernando que o dr. Paulino foi nomeado pelo governo em comissão
para estudar em Paris, Viena e Berlim bacteriologia e higiene.

A diferença de idade entre os dois amigos era de dez anos, mais ou
menos. Fernando tinha 33 anos e 23 para 24 Paulino quando este recebeu o grau
de doutor em medicina; e esses dez anos de diferença, juntos à
proteção do mais velho pelo mais moço, davam ao afeto
de Fernando por Paulino um quê de paternal, que muito agradava àquele.

Esse tom paternal não impedia, contudo, que os dois amigos tivessem
a máxima familiaridade e franqueza um com o outro e várias vezes
entrassem nessas alegres partidas de prazer, próprias de rapazes sem
família e das quais os amores fáceis constituem quase todo o
programa.

Paulino era o que os franceses chamam un homme à femmes. Temperamento
cálido e nervoso, constituição forte, adorava a mulher,
isto é, todas as mulheres capazes de dizer-lhe aos sentidos alguma
coisa nova.

Inimigo irreconciliável do casamento – que ele considerava uma instituição
absurda por antinatural e hipócrita, sendo o homem polígamo,
como é, por natureza e hábitos e pela dissolução
dos costumes contemporâneos -, achava a mulher indispensável
à vida física e intelectual do homem, só lhe admitindo
a influência moral quando mãe, não como companheira, e
menos ainda como esposa.

Coerente com as suas doutrinas, tendo horror ao matrimônio como à
colagem, mudava de amante como de gravatas, escolhendo sempre aquelas como
escolhia estas – entre as mais novas e mais bonitas. Não admitia nem
perdoava o homem que conspurca um leito matrimonial: perdoava à mulher,
"ente irresponsável, que o nosso egoísmo estragou completamente,
reduzindo-a à eterna servidão física e moral" (palavras
suas), mas ao amante, não. Este tem centenares de mulheres livres diante
de si para saciar os apetites da besta; não tem o direito de desejar
aquelas que, por força da convenção e do preconceito
embora, têm um senhor, um dono. "A mulher é coisa do marido;
há tanto o direito, para um terceiro, de se servir dela como de um
objeto dele – do guarda-chuva, da carteira, das lunetas… ", dizia ele.

Estas idéias extravagantes tinha-as Paulino exposto e desenvolvido,
em grande parte, no seu livro A Mulher, que tantos ataques lhe trouxe, e divertiam
muito o seu amigo. Mas o que é verdade é que frei Tomás
fazia o que pregava. No demi-monde as mulheres tinham, por fim, medo dele,
porque sabiam que daquele belo e robusto rapaz nada havia a esperar senão
algum dinheiro e algumas noites de gozo; afeição, rabicho –
como elas dizem -, isso nunca. É que elas também têm o
seu orgulho e o seu amor – próprio e não podem, sem se sentirem
ofendidas nesses pontos melindrosos da alma, admitir essa invulnerabilidade
desdenhosa, essa couraça protetora do coração masculino.

Tanto queria como temia as mulheres, e se por todos os modos e a todo custo
evitava apaixonar-se, se procurava conservar o coração alheio
aos seus caprichos sensuais, era porque tinha a intuitiva certeza de que se
tivesse um amor, entregar-se-ia a esse amor inteiro, cego, com delírio,
com loucura, pronto a sacrificar-lhe tudo, a começar pela vida.

Ora, justamente, no correr do almoço, quando os vinhos, vários
e bons, já tinham posto nas línguas e nos espíritos essa
alegria comunicativa e indiscreta, própria desses momentos e que constitui
um estado bastante agradável e inocente com a condição
de não subir nem mais um ponto, Fernando Gomes perguntou, de repente,
ao seu amigo, com um pisco de olho malicioso:

– E no capítulo mulheres, que tal? Você, com essa cor morena
e esses olhos e cabelos negros, devia fazer furor! Muitas aventuras? Talvez
alguma paixonite, hem?

Paulino riu-se sem acanhamento e respondeu com perfeita naturalidade:

– Você esquece-se de que sou invulnerável. O coração
conservou-se mudo e calmo, como até então e como até
agora.

– Mas um capricho, uma simpatia passageira… nem isso ao menos?

– Ora, meu caro Fernando, isto é uma confissão em regra! Não
me recuso à confissão, nem rejeito o confessor; mas exijo, apenas,
o sigilo do confessionário.

– Percebo: as senhoras acanham-te. Mas repara que ambas são casadas;
depois uma é tua irmã e a outra…

– Perdão, ambas são minhas irmãs; não é
verdade, Corina? – disse Paulino, voltando-se todo para a sua vizinha e procurando-lhe
os olhos.

Dona Sinhá desviou-os com um certo embaraço, mas respondeu
com voz clara e um sorriso breve:

– De certo; pois que havíamos de ser?

– Ora muito bem, se assim é, não há nenhuma razão
para você se fazer de santo; vá, faça confissão,
à puridade, dos seus pecados de amor na Europa – tornou Fernando, enchendo
a taça do amigo e a sua de vinho espumante.

– Foram tão veniais que nem vale a pena confessá-los.

– Pois sim, mas vá confessando sempre – exclamou dona Benga, em cujos
olhos, de ordinário risonhos, ridentíssimos agora, brilhava
uma curiosidade viva, picante de malícia.

Dona Sinhá nada dizia e o seu sorriso parecia contrafeito; as suas
faces, que a excitação do almoço havia rosado, estavam
agora ligeiramente pálidas. Dir-se-ia que o assunto lhe dava um constrangimento
sem razão, que ela própria não poderia explicar.

– Pecadilhos sem importância, repito. Uma dançarina aqui, uma
grisette acolá…

– E parece-lhe que foi pouco? – perguntou Corina com a voz um pouco trêmula.

Tão estranho pareceu a Paulino o tom dessas palavras, que olhou para
ela, admirando-se muito vê-la com um ar sério, muito esquisito
em meio do ar alegre de todos, e um véu de umidade nos olhos. "Fui
inconveniente, não há dúvida, e feri-lhe o pudor com
as minhas revelações. Fui desastrado!" E alto, com muita
solicitude: – Peço-lhe mil perdões de havê-la melindrado
com as minhas inconveniências. Mas a culpa é de seu marido, que
me obriga a cometê-las.

E para o amigo:

– Você, decididamente, põe a minha alma no inferno.

Mas Fernando, rindo-se muito:

– Isso é cisma tua, Sinhá não se ofendeu, nem tinha
de que. Se você até foi discreto demais! Mas vamos, dize cá:
de toda a tua coleção de mulheres, qual foi a que mais te agradou,
a que mais viva impressão te deixou no espírito? A espanhola?
A francesa? A italiana?

– Ah! Mais non, ça c’est trop fort! Assez de bavardage, voyons! –
exclamou Paulino; e pela espontaneidade com que a frase francesa lhe saltou
da boca via-se que não dissera propositalmente, por pose ou pedantismo.

Dona Sinhá, ou sinceramente ou para afastar uma suspeita que lhe não
agradava, interveio, tardiamente mas já senhora de si, com um sorriso
encantador enflorando-lhe aos lábios:

– Que idéia! Eu, ofendida! E por quê? Se o doutor nada disse
de inconveniente, que uma senhora nas minhas condições não
pudesse ouvir!

– Mas, afinal, para um homem com aquela cor e aqueles olhos dez conquistas
por dia não seria muita coisa! – exclamou Fernando, rindo gostosamente.

Todos riram com ele, exceto Corina, que enrubesceu até a menina dos
olhos, e o médico, que disfarçou como pôde a confusão
que lhe causaram aquelas palavras. Honorato cessou de rir para murmurar ao
ouvido do impassível e taciturno Castrioto:

– O Fernando apanhou uns chuviscos. Se continua a beber, temos uma pancada
de água de alagar tudo. – E, dizendo isso, tinham os seus olhos um
quebranto de sonolência muito característico.

CAPÍTULO III

NOVAS FIGURAS

A festa com que Fernando Gomes celebrou na sua vivenda principesca o regresso
feliz do seu amigo foi digna de ambos.

Homem de gosto educado, pronto a gastar largamente sempre que o julgava necessário,
eram notáveis as festas por ele oferecidas ou organizadas, por serem
brilhantes e completas: tudo o que tinham era superior e nada lhes faltava.
A dessa noite, na opinião dos convidados, não desmerecia as
anteriores.

O aspecto exterior da casa deixava nos passageiros dos bondes a visão
rápida de um castelo fantástico em noite de festim. Por toda
a alameda de palmeiras que da rua levava ao chalé subiam dois renques
de grandes, variegados e brilhantes lampiões venezianos, e o prédio,
no alto da colina, iluminando esplendidamente a giorno, desaparecia sob as
lanternas, globos e folhagens, num amontoado de cores e fulgurações,
destacando no seio tenebroso da noite como um coágulo multicor de luz.

No cimo do belvedere queimavam-se de quando em quando magníficos fogos
de bengala: verdes, vermelhos, roxos, brancos, que banhavam de repente e durante
um ou dois minutos na mesma tinta fulgurante os matagais que cobrem os montes
circunjacentes e os telhados e paredes das casas semeadas na encosta e no
vale.

Em um dos pavilhões chineses do jardim tocava uma banda de música
alemã, e as estrepitosas peças do seu rico repertório
não eram desaproveitadas – um enxame de crianças, numa variedade
encantadora de tamanhos e de vestuários, dançava-as sobre a
areia branca, em meio de uma algazarra de risos, gritos e cantos capaz de
desensurdecer um surdo.

Desde as nove horas começara a entrada dos convidados a maioria dos
quais transportada em carros particulares ou de cocheira. O salão principal,
vasto e quadrangular, forrado de um rico papel vermelho e ouro, fartamente
iluminado pelo grande lustre central, apresentava às 11 horas um aspecto
deslumbrante. Mais cortinas e reposteiros, um pouco mais de pose nos homens
e de decote e pintura nas mulheres, um criado hirto anunciando os convidados
– e dir-se-ia um baile no faubourg Saint-Germain.

As senhoras, umas sentadas nas cadeiras apostas às paredes, outras
passeando pelo braço dos seus cavalheiros, algumas decotadas e com
longas caudas, abanando-se languidamente com vastos leques de penas ou com
pequeninos leques de madrepérola, ofereciam com as suas toaletes de
todas as nuanças o aspecto de uma exposição de flores,
de que uma brisa suave fizesse mover-se algumas.

Fernando e a esposa recebiam com uma graça e uma distinção
perfeitas.

Ela vestia um maravilhoso vestido de faile cor de creme, bordado a matiz
de botões e folhas de rosas soltas, com tufos de fitilhos grenás
nos ombros, na cinta, nos apanhados da saia. O decote estreito e fundo deixava
a descoberto as espáduas olímpicas e o começo do ângulo
convexo dos seios; os braços longos e nus, admiravelmente torneados,
tinham a aparência de pescoços alvíssimos de cisnes. Multiplicava-se
graciosamente para atender a todos com um cuidado ou um cumprimento.

Fernando estava no seu correto e fino terno de casaca do Raunier com uma
elegância e naturalidade de grande mundano que o envergasse todas as
noites, e secundava a esposa ativamente nas honras da casa, não se
cansando de apresentar o seu amigo, objeto da festa, a quantos o não
conheciam ainda.

Uma das primeiras apresentações foi a do casal Viriato de Andrade.
Ele – 40 anos, baixo, forte, cabeça grande, grossos bigodes pendentes,
olhos suínos, ar massudo, gestos pesados, poucas falas, risadas raras,
mas destemperadas, descorteses. Ela – 35 anos que parecem 30, alta, quase
gorda, seios e quadris opulentos, cara apenas bonita, mas de traços
grosseiros, olhos castanhos, úmidos e brilhantes, boca espessa e sensual.

As relações entre esses dois casais foram feitas num baile
do Clube do Engenho Velho, há cerca de um ano, e estreitaram-se rapidamente,
sobretudo do lado das mulheres, que se tornaram amigas íntimas, devido
ao poder extraordinário de insinuação e de agrado de
Santinha – que tal era o apelido da esposa de Viriato – e a haverem os respectivos
maridos tido transações comerciais freqüentes e vantajosas
a ambos.

Essa amizade causou estranheza na roda de Fernando, porque o casal Andrade
quase não tinha relações, tão mal reputado era,
correndo a seu respeito os mais desonrosos boatos.

Dizia-se geralmente que Santinha, pertencente a uma abastada família
de Pernambuco, havia sido deflorada aos 16 anos por um cunhado, o qual falecera,
meses depois, das conseqüências de uma queda. A família
procurou um sujeito acomodatício que encampasse a avaria da menina
com o casamento, e encontrou-o em Viriato, homem pobre, sem ofício
nem benefício, mediante um dote de 30 contos de réis. Sete meses
depois do consórcio, dava Santinha à luz um menino; mas queriam
ainda os boateiros que, se fizesse bem a conta, dia por dia, se chegaria a
verificar que o pimpolho tivera a gestação extraordinária
de seis meses. Essa criança morreu com três anos.

Com o dote da mulher entrara ele de sócio em uma boa casa de couros
curtidos do Rio de Janeiro, de que era hoje o sócio comanditário,
possuindo vários prédios de boa renda e jogando na bolsa forte
e bem.

Mas os boatos não paravam ali; asseguravam eles ainda que Santinha
enramava o marido com entusiasmo e sem fadiga, com amantes sucessivos e, algumas
vezes simultâneos.

Fernando, ao princípio, de nada sabia, e quando alguns dos boatos
lhe chegaram ao conhecimento, já as relações eram tão
estreitas e ele achava o amigo um homem tão sisudo, de costumes tio
austeros, que julgou tudo calúnias de invejosos e despeitados. Não
era homem que facilmente acreditasse no mal, repugnando-lhe a desonestidade
instintivamente. E a amizade continuou, radicando-se mais.

Santinha fez ao jovem médico um acolhimento excessivamente caloroso
e cordial:

– Conhecia-o imenso de nome, e do modo mais lisonjeiro. Dona Sinhá
não se cansava de fazer-me o seu elogio – que era assim, que era assado…
maravilhas! Vou agora verificar até que ponto eram justos os seus gabos.
– E tomou-lhe familiarmente o braço, estreitando-o um pouco de encontro
ao seio e levando assim docemente o seu cavalheiro a dar um giro com ela pelo
salão.

– Oh! Minha senhora, receio muito que V. Exa. tenha um desengano completo.
Dona Sinhá deixa-se cegar pela amizade de irmã com que me honra
e daí pintar-me a seus olhos com cores e traços que infelizmente
não possuo. O prejudicado sou eu e sem poder queixar-me!

– É o que veremos.

Paulino julgou ter sentido um movimento de mais estreito aconchego no braço
da sua dama, o que o levou a encará-la. Ela tinha justamente os olhos
erguidos para ele com uma expressão singular, que ele não ousou
traduzir logo: naquela umidade luminosa de quebranto e meiguice boiavam promessas
vagas de gozo imenso.

"Homem, esta! Dar-se-á caso que esta mulher…? Era o que me
faltava!…", monologava entrecortadamente o pensamento dele. E alto,
para fazer derivar a conversa:

– Uma bela reunião, esta. Creia, minha senhora, que não as
vi mais brilhantes nas grandes capitais européias.

– Ardia por ouvi-lo a respeito das suas impressões de viagem. Diga-me:
qual dessas capitais lhe agradou mais?

– A resposta não é fácil, minha senhora. Cada uma delas
é inigualável em alguma coisa, tem as suas belezas ou qualidades
especiais e peculiares; cada uma delas é única a um certo respeito:
Roma pelos monumentos, Madri pelos passeios e jardins, Lisboa pela posição
topográfica, Londres pela grandeza, Haia pelo asseio e frescura, Viena
pela beleza e harmonia das construções, Paris…

– Ah! Fale-me de Paris. Eu adoro Paris e desespera-me a idéia de morrer
sem lá ir. Fale-me de Paris!

– Paris tem um pouco de cada uma das coisas que celebrizam as outras grandes
cidades e tem muitas coisas que nenhuma delas tem, como por exemplo: a alegria
da população, o chique das mulheres, a facilidade de tudo se
obter prontamente com dinheiro, a Comédia Francesa, a avenida dos Campos
Elísios, a Vênus de Milo… Muito longe iria eu se tivesse de
enumerar todas as coisas que só Paris tem e que só ela oferece
ao estrangeiro. Só se admira essa cidade com inteira justiça,
como ela merece, quando dela a gente se ausenta, e só se mede o quanto
nos cativou, o quanto lhe queremos, quando a ela voltamos. E a cidade ideal
para todos: para o sábio como para o boêmio, para o milionário
como para o miserável. O trabalho e o prazer andam pelas ruas e pelos
bulevares esplêndidos de braço dado, amigos inseparáveis
que são, dando aos mais indolentes o desejo imperioso de trabalhar
muito para gozar.

Estas coisas está as dizendo agora o médico à sua dama,
parado com ela junto ao bufete, em que lhe fora oferecer um refresco. Insensivelmente
uma roda de ouvintes, homens e mulheres, fora-se formando em torno dele, atraídos
pela curiosidade, entre os quais Castrioto com a mulher, que sorria embevecida
e orgulhosa de ouvir o irmão, e o próprio dono da casa; mas,
não tendo reparado naquele auditório fortuito, Paulino continuava
com ar natural e um calor de expressão comunicativo:

– E, depois, que intuição artística prodigiosa a desse
povo! As mulheres pobres vestem-se com um trapo; mas um piparote dos seus
dedos mágicos dá a esse trapo uma elegância e um chique
encantadores, e as ricas tiram os veludos e às sedas parte da brutalidade
insolente do luxo desses estofos caros imprimindo-lhes uma simplicidade e
uma graça deliciosas. Paris concede aos milhões o direito de
deslumbrá-la com a condição, porém, de terem espirito,
não admitindo o dinheiro estúpido, a riqueza sem inteligência.

– Mas é um povo frívolo, todo de superfície – objetou
a um lado uma voz de homem.

Era o farmacêutico Honorato, que dera aquele aparte para chamar a atenção
de Santinha, a quem andava fazendo uma corte platônica, de longe, havia
algumas semanas, e queria aproveitar aquela ocasião, a primeira em
que se encontravam juntos.

– Frívolo! Frívolo porque é alegre, superficial porque
é artístico, inconstante porque é entusiasta, ignorante
porque é simples. Ora, ai está! Um povo que dá à
ciência, às letras e às artes tantos e tão grandes
vultos, esse povo é tão sério, tão fecundo, tão
grande, tão forte, tão nobre como o alemão, o inglês
ou o russo. Frívola e ignorante a França! Entretanto é
na França que todas as grandes quando não nascem, são
batizadas; é pela França que têm de passar forçosamente
todas as grandes descobertas científicas, todas as novas idéias
morais, todas as reformas políticas, todas as escolas literárias,
para que possam conquistar o mundo. Querem a imagem da França? É
a torre Eiffel. Vista de longe é um joujou. uma filigrana, uma tetéia
recortada em papel Bristol: aproximem-se e encontrarão uma formidável
mole de ferro, que desafia as tempestades do céu e os ultrajes dos
séculos!

– Bravos! Bravos!

– Muito bem!

– Muito bem! – exclamaram várias vozes em torno.

Estes aplausos chamaram o médico à realidade da sua situação
que ele, recém-vindo de meios sociais em que ela seria completamente
risível, achou ridícula, tão ridícula que se calou,
enrubescendo fortemente, e procurou um meio de safar-se dali o mais depressa
possível.

Veio trazer-lho, sem o saber, dona Sinhá, que chegava em procura dele.

– Venho buscá-lo dr. Paulino. Papai e mamãe chegaram há
pouco e desejam vê-lo.

Paulino ofereceu-lhe o braço com açodamento e afastou-se com
ela, ainda enfiado da cena, esquecendo completamente Santinha, que, despeitada,
mordia os lábios. Mas Honorato veio-lhe em socorro, oferecendo-lhe
o braço para reconduzi-la ao salão e dizendo-lhe logo, à
queima-roupa, como quem sabia com quem tinha de haver-se:

– Ah! Minha senhora, com que ansiedade eu esperava este momento de ventura!

E como a orquestra atacasse uma valsa de Strauss:

– Tem par para esta valsa, dona Santinha?

Paulino saiu, com Corina pelo braço, da sala do bufete, cheia de rumor
e confusão, e entrou na sala contígua ao salão de baile,
pelo corredor largo e extenso por onde iam e viam os convidados, sem trocar
uma palavra com a mulher do seu amigo.

Sentia-se levemente perturbado por uma espécie de indefinido mal-estar,
que ele não poderia dizer se era físico ou moral, um estado
confuso e complexo, em que havia inquietação, desejo e relutância.

Mas acabava de avistar o conselheiro Prestes e a mulher, sentados em um canapé,
conversando com outro casal – um velhinho, muito branquinho e muito pequenino,
e uma matrona enorme, pomposa.

– Oh! Como está mudado o seu padrinho!

– Não é? – acudiu Corina. – Muito acabado! Tem envelhecido
rapidamente, é uma diferença espantosa de dia para dia; entretanto
não se queixa, nem parece estar doente. Vai definhando aos poucos.

Nesse momento chegavam em frente aos dois casais, entretidos a conversar,
e então Corina, erguendo a voz:

– Cá está o nosso viajante, papai.

O conselheiro volveu para ele o seu rosto magro e lívido, que as barbas
grisalhas mais alongavam, e em que os olhos morriam lentamente, como lâmpadas
cujo azeite vai secando; ergueu-se com alguma dificuldade e estendeu-lhe as
mãos com um arremedo de sorriso amável.

– Oh Dr. Castro, folgo imenso de vê-lo entre nós novamente,
e forte, bem disposto.

– Agradecido a V. Exa. e creio que o meu prazer em tornar a vê-lo é
igualmente grande. – E, voltando-se para d. Chiquita:

– E quanto a V. Exa. permita-lhe que lhe beije a mão, grato sempre
à sua inestimável bondade para comigo; e, curvando-se, beijou-lhe
galantemente a mãozinha gorducha, apertada na luva branca, cortada
no punho por um cintilante bracelete de brilhantes e esmeraldas.

– Como nos volta bonito e galanteador o nosso Paulino! Se eu tivesse 20 anos
menos apaixonava-me pelo senhor, sabe?

– E a sua benevolência que me empresta dons que não possuo.

– Que saudades nos fez! Falávamos sempre na sua pessoa; o Fernando
dava-nos freqüentemente notícias suas e transmitia-nos os cumprimentos
que tinha a bondade de nos mandar.

– A bondade não, minha senhora; o dever.

– Quando vai jantar conosco? Olhe, quero que me destine uma tarde e uma noite
inteirinhas para me contar miudamente as suas impressões de viagem.

– Com todo o gosto, minha senhora.

O conselheiro Prestes interrompeu-os nesse momento para apresentar Paulino
ao desembargador Vidoeira – o velhinho muito branco. D. Chiquita Prestes puxou
para si a afilhada, fazendo-a sentar de leve na ponta do canapé, enquanto
o médico, do outro lado, tomava uma cadeira e entretinha-se com os
dois velhos.

– Ele não teria deixado alguma paixão lá pela Europa?

– Sei lá, mamãe! Que pergunta! – volveu a moça, rindo-se.

– É impossível que não tenha inflamado algum coração
de italiana. São tão ardentes as italianas! Hei de perguntar-lho,
deixa estar.

Era uma mulher de 42 anos, que empregava todos os recursos da arte e do artifício
para os reduzir a 30. Uma perfeita boneca de armazém de confecções
– espartilhada a estalar, penteada a primor, alva, corada, lábios carmíneos,
dentes deslumbrantes e falsos, olhos vivazes, cuja grandeza e brilho um lápis
especial todas as manhãs aumentava, orelhas que pareciam conchas de
nácar.

Era ainda um pouco apetecível a famigerada Chiquita Prestes, de tão
escandalosa tradição: naqueles destroços da passada formosura
havia ainda com que atrair sedutores fatigados da inexperiência e da
ingenuidade das muito novas, blasés que no amor já não
buscam mais do que um certo "saber, de experiências feito",
convictos de que isso vale mais que verduras por educar. E, a dar crédito
aos boatos das salas, aquela majestade decadente continuava tendo súditos
fiéis que lhe rendessem o devido preito.

O marido – veneranda relíquia de um glorioso passado político,
cujo mais belo florão era a confiança ilimitada e a estima particular
do imperador – o marido ia envelhecendo e morrendo suavemente, sem nada ver,
sem nada ouvir, sem sentir sobre a cabeça, outrora altiva e firme,
hoje trêmula e pensa, o peso das aventuras da esposa.

Após cerca de meia hora de conversa banal, Corina, levemente entediada,
como a orquestra começasse uma valsa de Metra, perguntou a Paulino:

– Não valsa? Dantes não dançava. E agora?

– Ah! Minha senhora! A Europa perverteu-me, ensinou-me todos os vícios!
Agora danço; danço tudo: desde o solo inglês até
a giga e a jota!

– Há de dançar isso um dia para eu ver, lá em casa –
acudiu Chiquita. – Mas não perca a valsa: quero ver esse chique.

E levantou-se para acompanhá-los ao salão.

Paulino calçou as suas luvas cor de pérola, enlaçou
levemente a dama, e ei-los que partem girando. Valsou tão bem, com
tanta correção, elegância e donaire que atraiu as atenções
gerais: nas portas apinhavam-se os curiosos e alguns pares deixavam de dançar
para admirá-los também. Mas em um grupo de rapazes não
era a admiração o sentimento dominante.

– Olhem que pedante! – comentava um deles. – O Miranda Júnior, um
magricela com ar de cegonha, que se tinha na conta de leão das salas.
– Calçou as luvas para dançar! E se aquilo algum dia foi valsa,
afastado meia légua da dama; e é cada passada!

– E para mostrar que chegou da Europa, o tolo! – confirmou outro elegante,
o Fangote, baixinho, de grande cabeleira romântica e um ar fatal de
Manfredo nas maneiras, no olhar, nas melenas.

– Vocês o que estão é com inveja, confessem! – exclamou
Honorato, acudindo em defesa do amigo. – Aprendam com ele, andem, aprendam.
Vejam que elegância, que distinção, que correção!

CAPÍTULO IV

PRIMEIROS SINTOMAS

Paulino ficou encantado com a instalação que no belvedere
lhe preparara o amigo.

Mas não só este, que bem se adivinhava a mão leve e
inteligente de uma mulher de gosto e educação na escolha de
alguns móveis, e sobretudo na desses pequenos objetos íntimos
indispensáveis a um homem de tratamento: escovas, pequenos espelhos,
estojo de unhas, porta-jornais, vide-poches, porta-relógio, cinzeiros
etc.; tudo isso disposto com aparente descuido, mas com requintado instinto
artístico.

Da cama — de um gosto antigo, de colunas altas e torsas, sustentando
um laquear do tamanho do próprio leito, e acolchoado de cetim azul
— podia o hóspede, ao acordar, estender e passear os olhos, cansados
de sono, pelo paradisíaco panorama que daquela elevação
se desfrutava.

Uma campainha elétrica ligava o belvedere ao chalé, para chamar
os criados; precaução inteligente, mas que pouco serviria, por
haver o médico trazido o seu valet de chambre, o Alfred — um
rapaz de 30 anos, de bigodes louros e olhos azuis, ar felino, cheio de astúcia
e a quem foi dado o outro quartinho contíguo ao do amo.

Esses dois quartos, uma sala-gabinete e um vão, no teto, para malas
e caixas, eram todos os cômodos do belvedere.

Na sala-gabinete nada faltava — havia uma mesa central, redonda, uma
excelente secretária americana, meia mobília do mesmo tipo,
e estantes envidraçadas, esperando os seus futuros moradores.

— Então você tinha decretado a minha residência
aqui, sem mesmo consultar-me? — perguntava o médico a Fernando
no dia seguinte.

— Sim, tinha-o decretado e sem te dar a honra de consultar-te; Só
o que faltava é que não viesses morar conosco!

— Principalmente havendo este chalezinho independente, onde podia estar
em toda a liberdade acrescentou Corina, acentuando com um sorriso intencional
as últimas palavras.

— Ah Em liberdade completíssima: podes entrar e sair quando
quiseres. E a propósito: aqui tens as chaves.

— Obrigado — disse Paulino, recebendo-as, e acrescentou: —
só lhes peço uma coisa, mas que é indispensável
— é não se incomodarem comigo, não me esperarem
nunca para almoçar ou jantar.

— Fica entendido. O almoço é às dez, o jantar
às cinco ou cinco e meia. Teu talher lá estará sempre
na mesa, quer eu esteja em casa quer não. Quando não estiveres
à hora das refeições, fica entendido que não vens.
Dessa forma nem tu nem nós nos incomodaremos.

— Perfeitamente. Vocês são um casal de anjos — respondeu
Paulino. E a vida dos três ficou assim regulada.

O médico abriu consultório na Rua dos Ourives e arranjou-o
com um certo luxo, que contrastava com a generalidade dos consultórios
médicos: escuros, sujos, tristíssimos, cheirando a mofo e a
baratas. Aconselhado pelo amigo, e mesmo um pouco constrangido por ele fez
anúncios um tanto espetaculosos, em que se declarava "ex-chefe
de clínica do doutor X, de Viena, com prática nos hospitais
de Paris, Londres, Viena e Berlim, especialista em moléstias do sistema
nervoso e do aparelho circulatório" etc. Não foi mau o
conselho.

Dentro de algumas semanas já tinha uma clientela de cinco e seis
consultantes por dia; o que o enchia de esperanças. O seu plano, o
seu sonho era clinicar, trabalhar incessantemente durante oito ou dez anos
e com o dinheiro ganho, que devia constituir uma pequena fortuna, ir residir
na Europa, em Paris provavelmente.

A sua prática de hospitais e os sérios estudos que fizera
no estrangeiro haviam-no aparelhado para tornar-se dentro em pouco tempo um
dos médicos mais procurados e mais reputados da corte. O seu programa
apresentava-se, pois, em condições de fácil execução.

Seguindo os conselhos de colegas mais velhos, alguns seus ex-professores,
limitou muito a sua clínica domiciliária, para evitar os ossos
e não se fatigar depressa.

Descia geralmente muito cedo, logo após a ducha e o café, de
modo que quase só nos domingos almoçava no chalé: mas
jantava lá regularmente, quase sempre.

As vezes Fernando não vinha, o que acontecia todas as quintas-feiras,
em que tinha a sua partida de voltarete em casa do corretor Paranhos. Nesses
dias o médico e dona Sinhá jantavam sós. Depois do café
davam um longo passeio pela chácara, conversando sobre mil coisas banais,
descansando sob a copa das mangueiras: voltando a casa, Corina fazia um pouco
de música, ele recitava versos de Coppée, Musset, Victor Hugo,
ou jogavam as damas, e às dez horas, depois do chá, ele despedia-se
e subia para o belvedere.

Nessas noites a luz do seu gabinete continuava acesa até muito tarde,
acontecendo algumas vezes que Fernando, ao recolher-se lhe viesse dar as boasnoites
e conversar um momento sobre as novidades do dia, antes de ir deitar-se.

Assim decorreram três meses.

Uma noite, Paulino voltando do Lírico onde fora com Fernando e a
mulher ouvir a velha Força do Destino, e tendo-se despedido deles junto
da escada que levava à sala de jantar, subiu para o belvedere e fez
a sua toalete de dormir; mas, como não tivesse absolutamente sono,
acendeu um charuto e veio debruçar-se a uma das janelas.

Noite encantada. O plenilúnio opalino, de uma transparência
e suavidade dulcíssimas, banhava tudo, inundava o céu e a terra;
envolvia as copas unidas das árvores, montes abaixo, num véu
tenuíssimo de bruma luminosa e fazia-as projetar sombras fantásticas
no chão.

O golpe de vista era imponente; abrangia todo o vale da Tijuca e Andaraí.
Longe, muito longe, num formigueiro de pontos tremeluzentes, a cidade adormecida;
umas filas deles destacavam retas, muito longas, algumas paralelas, outras
cortando-se — eram os lampiões das ruas.

Um tilintar de campainha ouviu-se; era o bonde que os trouxera, que voltava
para a cidade: lá passou ele, muito embaixo, ao fundo, rua Conde de
Bonfim afora, como uma rubra lagarta fosforescente. Era uma noite cariciosa
de outubro — nem quente nem fria, apenas tépida, cheia de mistérios,
em que se ouviam no silêncio augusto do luar os leves rumores da natureza
no seu trabalho incessante, e um amavio lânguido e poderoso avassalava
as almas, romantizando-as docemente.

Paulino, só, no alto do seu mirante, em face da profunda noite luminosa,
sentiu-se, subjetivando-se a pesar seu, penetrado de uma melancolia inquieta
e grave, como um pressentimento. Era o mesmo estado de alma em que se
surpreendera na noite da festa da sua chegada, mas muito agravado; o que era
então lineamento era agora traço, o que então era névoa
fizera-se nuvem.

Até aquele momento fora protelando covardemente o exame, a análise
severa do seu estado psicológico, que ele sentia agravar-se progressivamente,
Mas a intuição súbita e clara da sua gravidade decidiu-o
a fazê-la naquela noite perturbadora. "Que tenho eu? Que se passa
em mim? Amo eu porventura Corina? E quando nasceu em mim este sentimento desgraçado?
Mas será mesmo amor?"

Estas interrogações formaram-se-lhe atropeladamente no cérebro.
Não sabendo a qual responder primeiro, socorreu-se à memória
e procurou recordar as primeiras impressões que lhe causara Corina.

Lembrava-se bem. Morava com Fernando, seu amigo, seu protetor dedicado e
delicado. Absorvido e ocupado inteiramente pela confecção da
sua tese inaugural e depois com a revisão das provas e preparo dos
exames finais, não acompanhava senão mui raramente o amigo nos
seus passeios e divertimentos.

Um dia, voltando aquele de um baile, alta madrugada, e encontrando-o ainda
curvado sobre os livros, confessou-lhe Fernando que estava apaixonado, mas
apaixonado como Romeu por Julieta ou Paulo por Francesca di Rimini, e declaroulhe
que decididamente ia casar.

Era Corina, a afilhada do conselheiro Prestes, a mulher que ele amava e queria
desposar. Não lhe pediu conselho; fez confidências. Em breve
estabeleceu-se correspondência entre ela e ele, trocaram-se os retratos.
Fernando mostrou-lhe o dela: era formosíssima.

Fez um esforço violento da memória para recordar a impressão
que lhe deixara o retrato de Corina, e lembrou-se: fora muito forte, mas rápida,
logo apagada.

Cerca de um mês depois Fernando pedia e obtinha a mão da moça
e convidava-o a acompanhá-lo a sua casa para apresentar-lha.

Foi com ele uma tarde quente de verão, 15 dias antes da formatura,
à casa do conselheiro, nas Laranjeiras. Lembrava-se perfeitamente do
seu vestuário, do seu penteado, das jóias que ela trazia naquela
tarde. Vestia uma toalete de cassa branca com pintinhas vermelhas e fitas
cor-de-rosa e tinha o cabelo suspenso das fontes e da nuca, deixando livre
o pescoço, tendo nos lóbulos das orelhas, nos pulsos e no peito
as peças de um adereço de coral rosa e branco.

Ficara perturbado ao vê-la e muito enleado ao falar-lhe. Por quê?
Atribuíra-o na ocasião a ser Corina a futura mulher do seu melhor
amigo, tomando aquela impressão por um reflexo da amizade que a este
o ligava tão estreitamente. Mas aquela impressão repetiu-se
da segunda vez que lá foi, e, se a perturbação passou
por fim, não passou a timidez que sua presença lhe infundia
sempre.

Formou-se; o banquete de sua formatura efetuou-se no Hotel do Globo, mas
no dia imediato a família Prestes, em atenção a Fernando,
ofereceu ao médico um sarau comemorativo da sua investidura cientifica.
Lembrava-se nitidamente de quanto o fez sofrer a presença olímpica
daquela mulher, que ia ser, que já era de outro homem, do seu amigo,
do seu protetor. Mas, senhor de uma vontade firme e disciplinada, conseguiu
dominar-se, abafar aquele sentimento absurdo e considerar sagrada, mesmo para
o seu pensamento, aquela criatura adorável.

Assistiu ao casamento sem comoção, apenas triste, como invadido
de um desânimo; mas, depois, quando ia, espaçadamente, visitar
os noivos a Petrópolis, o espetáculo da felicidade do seu amigo,
que parecia completa, enchia-o de alegria e de serenidade. Recordava-se ainda
e muito bem que, ao contemplar demoradamente o retrato de Corina, tivera o
pressentimento subitâneo, violento, claro como um fato, de que aquela
mulher havia de exercer na sua vida uma influência, não só
decisiva como funesta.

Todas essas idéias e todos esses sentimentos estavam sem dúvida
profundamente adormecidos, se não estavam mortos, quando ele, dois
meses depois do casamento de Fernando, embarcou para a Europa; mas, agora,
perguntava a si próprio se não teriam influído na sua
resolução de partir e no fato de ter-se demorado tanto lá
fora.

Acreditava que não foram estranhos a essa dupla resolução
porque se lembrava de tê-la formado no dia mesmo em que impôs
à sua vontade o não pensar mais naquela criança.

Três anos de ausência não havia, então, bastado
para matar o embrião daquela paixão criminosa? Entretanto, na
Europa não pensara mais nela de modo especial, com idéias afetivas,
mas, naturalmente, com a atenção comum que
dispensava a tudo que o interessava mais ou menos.

Na viagem de regresso foi ainda dessa forma que pensou nela, como pensava
na irmã, em Fernando, nos outros amigos: com uma alegria calma, sem
ansiedade nem receio. Mas, ao chegar, quando, a bordo, ela, por ordem do marido,
juntou seu busto ao dele, passando-lhe os braços em torno, pondo a
cabeça ao alcance de seus lábios e ele a abraçou e lhe
beijou os cabelos cheirosos… oh!

Nesse instante sentiu uma comoção profunda, imensa, igual à
que havia experimentado três anos e meio antes, naquele inolvidável
sarau da casa do conselheiro. Naquela ocasião não ligara a essa
comoção a importância que tinha
realmente: julgava-a produzida pela solenidade daquele grande momento, em
que revia quase todos os entes que lhe eram caros e a querida terra do seu
berço.

Mas nesse dia mesmo, à mesa do almoço, e à noite, no
baile, o seu mal-estar indefinido a sua inquietação sem causa,
que foi crescendo dia a dia, terrivelmente, como uma planta venenosa, e que
agora o subjugava, clara, enorme, inocultável, como um sol, esse estado
enfermo da sua alma, tudo isso… Ah! Não podia mais fugir à
evidência, como não se foge à dor: era preciso suportar-lhe
a presença, admiti-la, reconhecê-la, confessá-la! Amava
Corina, amava a mulher do seu amigo, amava-a como um louco, como um perdido,
como um réprobo, como um miserável! E, em face da noite profunda,
augusta, serena, à luz melodiosa do plenilúnio argênteo,
o desgraçado soluçou longamente, angustiadamente, a infinita
miséria do seu criminoso amor!

Depois que as primeiras lágrimas correram, abundantes e ardentes,
num desafogo largo, uma tranqüilidade desceu sobre o espírito
do médico. Dir-se-ia que elas o haviam deixado quite com a sua consciência;
já podia suportar a idéia do seu crime: comprara com uma grande
dor e com amargo pranto o direito de ser infame! E a sua consciência
repetia-lhe: "Amas a mulher do teu melhor amigo, do teu protetor",
sem que ele se defendesse mais, com o silencioso assentimento de um réu
confesso.

Mas o espantoso foi que nessa alma direita e limpa, logo após essa
tremenda certeza, em vez de um movimento de revolta indignada, esta interrogação
apontasse:

"E ela? Amar-me-á também?"

Quando ele ouviu em si mesmo, de si para si, a voz dessa curiosidade terrível,
teve um gesto de pavor, saiu da janela, abriu um livro qualquer sobre a secretária
e, apertando a cabeça nas mãos, mergulhou os olhos na página…
E leu,
leu, leu… Leu maquinalmente, sem entender o que lia…A pergunta maldita
subia sempre, do seu coração, mais alta, mais ansiosa, mais
aflitiva. Era inútil tentar afogá-la. Acolheu-a, como ainda
há pouco havia acolhido a certeza do seu amor culpado: o primeiro degrau
é que custa.

Meditou longamente, estudando o caráter, o temperamento, a educação
de Corina. Primeiro que tudo tinha a certeza de que ela não amava o
marido. E que o não amava provava-o o seu flerte em Petrópolis
com o secretário da legação francesa, flerte que, estava
informado, tinha ido até onde ir um flerte de mulher casada que não
adulterou, e aquela não havia adulterado só porque Fernando,
graças à sua carta de Paris, abria-lhe os olhos a tempo: provou-o
depois o namoro escandaloso com o barão de Santa Lúcia, segundo
soubera também, namoro que foi interrompido pelo seu regresso… se
de fato o foi!

E a ele, Paulino, amava-o ela? Recapitulou todas as fases, todos os incidentes
ocorridos depois da sua chegada. Havia indícios veementes de afirmação
— olhares, alusões, apertos de mão, sorrisos, suspiros.
Além disso havia algum
tempo que ele notava em seu quarto, quando voltava da cidade, um vestígio
qualquer da estada ali de Corina — flores frescas num vaso, uma arrumação
elegante dos frascos e utensílios do toucador ou dos livros da estante
e um vago perfume, esse odor di efemina, que se não confunde, que paira,
atraiçoa e grita…

Mas que importância tinha isso, partindo de uma mulher coquete? Não,
Corina não o amava, provocava-lhe a corte, por mero coquetismo; aceitaria
o dele, levado talvez até ao ato físico, mas não o amava.
Era uma leviana.
Oh! Ainda bem, porque então estava salvo! Fugiria! Mas de que modo?
A primeira coisa a fazer era mudar-se para a cidade, deixar aquela proximidade,
aquela convivência perigosíssima. Ser-lhe-ia fácil achar
um pretexto: a
sua clínica, cada dia mais extensa. Uma vez mudado, espaçaria
as visitas, procuraria distrações, e que melhor que a própria
clínica, que o exercício escrupuloso da sua profissão?

Estava encontrada a porta de salvamento. Uma grande alegria o invadiu então,
como um bálsamo. Continuaria sendo um homem honrado, digno da amizade
de Fernando. E essa satisfação moral acalmou-o tão completamente
que se deitou e adormeceu, momentos depois, de um sono profundo, pesado e
sem sonhos, como o sono dos justos e das crianças.

CAPÍTULO V

TRATADO DE ALIANÇA

No dia seguinte a essa noite, inolvidável para Paulino, Santinha veio
visitar dona Sinhá.

Era pouco mais de meio-dia quando chegou. Corina estava a uma das janelas
do seu toucador, que dava sobre o fundo da chácara, e esperava que
Alfred, o valet de chambre, saísse do belvedere, para ir cuidar dos
livros, pequenos objetos e bibelôs de Paulino, quando Maurícia
— a velha mucama mestiça, que a criara de leite em casa do conselheiro
e entrara no seu dote — penetrou no quarto e disse:

— Dona Sinhá, nhá Santinha está aí.

Corina voltou-se com um sobressalto, como se houvesse sido apanhada em ato
ilícito; a mucama repetiu o recado. Surpreendia-a a visita da amiga.
Esteve um momento para negar-se a recebê-la.

— Você disse a ela que eu estava em casa, Maurícia?

— Disse, sim senhora.

— Bem; manda-a entrar.

— Para aqui mesmo?

— Sim, para aqui.

E preparou-se para receber a amiga; deu um jeito rápido de desalinho
aos cabelos, estirou-se na cadeira grande, tomou do livro mais à mão
e simulou estar lendo atentamente.

Enquanto esperava a visitante, com os olhos no livro, perguntava a si própria
a que viria ela e, depois, como recebê-la: friamente? Com calor? Havia
quase dois meses que estavam interrompidas as visitas que se faziam
uma à outra, duas e três vezes na semana, e as saídas
a compras, a passeio, a visita de amigas comuns. A causa desse esfriamento
de relações tão intimas — causa inconfessada, antes
dissimulada cuidadosamente – era o doutor Paulino.

Santinha, insaciável loureira, que julgava de seu dever fazer-se cortejar
por todos os homens novos, belos ou célebres, havia jurado aos seus
deuses — ou ao seu deus, que era o filho de Vênus — que
havia de disputar o recém-chegado à sua amiga intima, obrigando-o
a fazer-lhe a corte, se a amá-la não pudesse.

Corina que percebera logo o plano, entrou de pronto a manobrar para combatê-lo
e inutilizá-lo. Levara-a a isso, no princípio, apenas o amor
próprio: se Paulino a alguma delas devia fazer a corte, era decerto,
a ela, a quem conhecia há mais tempo, em cuja casa morava, e que era
mais moça, mais bonita e mais elegante. Preferir-lhe a amiga seria
injuriá-la, feri-la de morte no ponto mais delicado de sua alma. E
começou a desenvolver a sua tática militar para afastá-lo
da amiga, sem reparar, a louquinha! que afastando-o de Santinha, aproximava-o
de si própria — resultado tanto mais seguro que se viam e falavam
diariamente, quase morando juntos.

Havia cerca de dois meses que as duas amigas só se visitavam nos dias
de recepção de cada uma: o dia l° — Corina, o dia
15 — Santinha. E que a intimidade antiga estava estragada por um secreto
fermento de
malquerença, que não era senão ciúme, amor-próprio
assanhado; já não tinham que se dizer entre si, constrangidas
ambas. Assim, limitaram as suas visitas aos dias oficiais, em que facilmente
podiam simular a cordialidade extinta.
Paulino, tendo compreendido logo o que se passava, e querendo evitar os perigos
e mesmo o pouco de ridículo de sua situação, resolvera
não aparecer mais nos dias de recepção — quer em
casa de uma quer na casa da outra.

Assim, pretextando um doente grave e uma enxaqueca tenaz, falhara à
última partida de Santinha e à última de Corina —
recurso de defesa que bastante desconcertou a ambas, principalmente a Santinha,
que poucas ocasiões tinha de vê-lo.

Nessas condições, a visita da amiga, só, aquela hora,
causava a Corina uma surpresa justificável. Que seria? A que viria?
E como acolhê-la? Friamente? Cordialmente? Mas a entrada da amiga tirou-a
dessa dificuldade. Santinha ali estava, ruidosa, expansiva, risonha como dantes.

— Vinha ver se tinhas morrido, ou, caso estivesses viva, perguntar-te
se me julgavas morta!

Corina desculpou-se mal, mas como pôde. Então a outra, sem
transição:

— E o dr. Paulino, como tem passado? Não o vejo há um
mês, pelo menos.

— Não sei, julgo que passa bem. Raramente o vejo apesar de quase
morarmos juntos — respondeu Corina, com um ar despreocupado, demasiado
frio e solto para ser sincero.

— Mentirosa! — exclamou a outra, rindo.

— Seriamente — afirmou dona Sinhá. Mas o rugor que subitamente
lhe subiu às faces desmentiu-a sem permitir defesa.

— Olha, meu bem, franqueza! Queres saber de uma coisa? Venho oferecerte
pazes e…

— Como pazes? Não estávamos em guerra, creio eu…

— Venho oferecer-te pazes e… aliança — apoiava nesta
palavra. — Não deves mais ter ciúmes de mim.

— Ciúmes, eu? De quem? Por quê?

— Ciúmes do dr. Paulino. Eu sou da escola do "pão,
pão: queijo, queijo". E não deves tê-lo mais, porque
eu não o amo, nem o quero, nem aspiro a que venha a amar-me.

— Mas…

— Não me interrompas, Corina. Ouve-me. Vou dizer-te, confessar-te
tudo, abrir-te a minha alma, como este livro; — e tomando o livro que
estava no colo da amiga — era a Mulher de Gelo, de Bellot — abriu-o
com as mãos ambas.

— Quando o dr. Paulino chegou da Europa e o vi assim, bonito, elegante,
distinto, cuidei que ia amá-lo; dias depois acreditei que já
o amava, porque a tua convivência com ele exasperava-me; a idéia
de que o vias todos os dias e lhe falavas e que jantavam e passeavam juntos
punha-me louca de…

— De inveja… — interrompeu com maldade a outra.

— Seja de inveja. Mas, depois de alguns dias, tive a prova de que o
não amava.

— Ah! E pode-se saber qual foi essa prova? — perguntou a voz
irônica de Corina.

— Posso eu, por ventura, ter segredos para ti, minha querida? A prova
que tive de que não amava o Paulino foi simplesmente esta: conheci
que amava a outro.

— O boticário? — perguntou Corina. Mas desta vez, com
uma ironia tão mordente, tão agressiva, que a mulher de Viriato
lhe respondeu, muito séria, com voz trêmula:

— Para que me falas com essa ironia, com essa maldade? Se continuas
nesse tom, vou-me embora. E eu que vim tão contente, tão arrependida,
tão disposta a tudo te dizer, com a maior sinceridade!

Levou o lenço aos olhos. Chorava como uma criança. Corina
comoveu-se; aquele pranto desarmou-a, fê-la acreditar na sinceridade
da amiga.

— Perdoa-me, Santinha, perdoa-me! — e abraçava-a e beijava-a.

— Mas é tão estranho tudo isto: a tua visita inesperada,
as coisas extraordinárias que me tens dito, que eu, involuntariamente,
desconfiei e preveni-me contra ti. Mas agora creio que és sincera.
Perdoa-me e continua.

— Não, não se trata de Honorato — volveu Santinha
enxugando os olhos e com a voz úmida ainda. Esse moço fez-me
a corte de um modo tão rápido e cerrado que eu, no primeiro
momento, meio aturdida, não pude repeli-lo. Mas, pouco depois, refleti
e consegui conservá-lo a distância conveniente, o que me foi
fácil, porque era Paulino que eu queria, que eu julgava amar. E de
outro que se trata, que há apenas um mês conheço e a quem
amo perdidamente. Oh! Não sorrias, não duvides! Desta vez te
juro que é sério, não é como das outras —
um mero capricho; é o amor, o verdadeiro amor!

— Ora, Santinha, tenho-te ouvido dizer isso, e quase pelas mesmíssimas
palavras, a respeito de todos os teus amantes. Ainda não há
um ano o dizias em relação aos Barros, o "boneco de louça";
já te não lembras?

— É possível, mas não o dizia deste modo, com
este calor, este entusiasmo sincero. Desta vez estou apaixonada loucamente.

— E quem é esse príncipe encantado, que conseguiu abrasar
de puro amor o coraçãozinho da fada borboleta?

— E, é… — Santinha hesitava. — Mas não
te rias. E o João Ferry.

— O Ferryzinho? Mas é uma criança!

— Ah! Tu o conheces?

— O Fernando mostrou-mo na rua, e depois ouvi-o recitar uns versos,
no festival da Gemma Cunibertti, creio eu. Podia ser teu filho, Santinha.
A mulher de Viriato corou até a raiz dos cabelos; mas, depois de um
momento de silêncio, tornou, com um tom contrafeito:

— Que queres tu? Caprichos da sorte! Eu tinha-o lido. Decorei mesmo
algumas das poesias dos Rondós e Baladas. Seus versos encantaram-me,
tão sentidos, tão apaixonados! Já o admirava; da admiração
à estima a distância é curta e a da estima ao amor ainda
mais curta.

— E onde o conheceste?

— Na Exposição da Academia de Belas-Artes. Foi o Barinelli
que me apresentou ele.

— Qual dos Barinelli — o pintor ou o escultor?

— O escultor. São muito amigos. Fez-me tal impressão
o rapaz, que me perturbei toda; quase perdi a fala.

— É assim tão formoso?

— É formoso, sim, como uma pintura antiga. Jesus Cristo aos
20 anos devia ser assim. E, depois, que voz agradável! Conversamos
muito tempo. Ofereceu-se para mostrar-me a exposição; levou-me
diante dos principais quadros. Recitou-me versos que fizera sobre o grupo
Jesus e a Pecadora do Barinelli. Que bonitos! Por fim separamo-nos. E não
o pude ver mais. Foi isso há 15 dias. Debalde tenho ido à Rua
do Ouvidor e voltado à exposição. Mas ontem lembrei-me
de que ele me havia dito que freqüentava muito o atelier dos Barinelli;
ora, como o escultor me convidou para visitar o atelier deles, veio-me a idéia
de lá ir, na esperança de encontrá-lo lá.

— É uma boa idéia.

— É; mas como seria esquisito ir sozinha à casa de dois
rapazes solteiros, embora artistas, venho pedir-te que me acompanhes.

— Eu? Que idéia!

— Nada mais natural. Somos ambas casadas: vamos a um atelier ver obras
de arte. Que tem isso de reparável?

— Sim, pensando bem… — concordou Corina.

— E é um grande favor que me fazes. Sei que não é
o primeiro. Mas estou pronta a prestar-te idênticos serviços
quando precisares deles. Corina refletiu um momento e acedeu por fim:

— Pois sim, acompanhar-te-ei. Quando querer ir lá?

— Hoje, agora mesmo.

— Que pressa!

— Se soubesses como têm sido longos os dias que tenho passado
sem vê-lo!

E, mudando de tom e agarrando a amiga pela cinta:

— Já vês que eram as pazes e a aliança que eu te
vinha propor. Aceitas?

— Como não hei de aceitar, minha querida? E as duas amigas beijaram-se
comovida e longamente. Quando se desabraçaram, Santinha disse baixinho,
com um sorriso de mistério grato:

— Ama à vontade, livremente, o teu Paulino, e dispõe
de mim como entenderes.

— Eu, amá-lo? Estás louca? — fez dona Sinhá,
e as faces purpurejaram-selhe vivamente, como se o clarão de uma lanterna
vermelha lhe batesse de chapa no rosto.

CAPÍTULO VI

O PRIMEIRO BEIJO

Eram cerca de três horas da tarde quando as duas senhoras chegaram
em face da pequena porta do atelier.

Era um grande barracão, construído ao centro de um vasto terreno
ajardinado, separado da rua por um alto tapamento de tábuas, em meio
do qual havia uma portazinha, igualmente de madeira, onde se viam uma placa
de metal amarelo com a palavra Barinelli gravada, e uma maçaneta de
campainha. Da rua nada se via do que estava para lá do tabuado.

– Que imprudência, Santinha! – murmurou Corina, receosa.

– Imprudência, por quê? São dois moços muitos sérios,
e depois há muitas senhoras que vêm aqui. Vou tocar – e Santinha,
pegando da maçaneta, puxou-a com força.

Um trilintintim prolongado ouviu-se dentro, ao fundo.

Um minuto após, a porta abria-se, e aparecia um homenzinho de grandes
bigodes brancos, que perguntou em português italianado o que desejavam
aquelas senhoras.

– O sr. Adolfo Barinelli está?

– Sim, senhora; queiram fazer il piacere de entrar.

Abriu de todo a porta e afastou-se para dentro, para que as damas entrassem;
depois tornou a fechar a porta e passou à frente, a conduzi-las.

O barracão de madeira, apesar de baixo, era construído com
certa elegância, todo cercado de altas janelas de venezianas, arranjadas
de modo a graduarem a luz e o ar. O italiano apressou o passo para avisar
seu amo; logo após voltou, e, afastando para um lado o reposteiro japonês
de bambus, disse-lhes que fizessem o favor de entrar. Santinha passou primeiro.
O escultor veio ao encontro das duas moças, enxugando as mãos
numa toalha, que atirou para cima de um busto de gesso. A meia obscuridade
da peça turvou-lhes a vista no primeiro momento, de modo a somente
distinguirem a figura do artista, que estava fronteiro à porta. A acolhida
foi gentilíssima. Santinha apresentou a amiga.

– Conheço muito seu marido, minha senhora, e ele faz-me a honra de
considerar-me seu amigo; convidou-me até para uma festa que deu em
casa por ocasião da chegada do dr. Paulino de Castro, de quem também
sou amigo.

– Ah! E por que não foi?

– Eu, minha senhora, sou um verdadeiro urso; não visito ninguém;
não vou a festas. Daqui apenas saio para a academia e para o hotel.
Às vezes, quando o calor aperta muito, dou um pulo a Petrópolis,
e é tudo. E, depois, que faria eu em uma sala? Não danço,
não recito, não canto, não jogo… Fora dos meus bonecos,
não sirvo para nada. Mas façam o favor de entrar.

Era um homem de 30 e poucos anos, estatura um pouco abaixo da média,
magro, mas forte, com uma formosa cabeça nazarena, cabelo castanho
anelado, barba loura, aberta ao meio em duas pontas, encaracoladas pelo constante
anediar; a fronte, alta e vasta, era cortada horizontalmente por uma funda
ruga direita, que lhe dava uma expressão singular aos olhos. Vestia
calças e blusa de brim branco, muito folgadas, e tinha à cabeça
um gorro leve de seda azul. Uma figura extremamente simpática e insinuante.
Falava devagar, sem dificuldade, mas como quem pondera o que diz.

As duas senhoras deram alguns passos para a frente e só então
lobrigaram dois homens de pé, mais para o fundo. Entre eles e as senhoras
trocaram-se leves saudações de cabeça. Mas um deles,
após um momento de hesitação, adiantou-se, exclamando:

– Oh! E V. Exa, minha senhora? Como tem passado? Queira perdoar-me, não
podia ver-lhe a princípio as feições por estar em frente
à luz da porta.

Era o poeta dos Rondós e Baladas.

Santinha fê-lo saber à amiga por um ligeiro toque do cotovelo
e em seguida apresentou-lho.

– Vieram, decerto, visitar o atelier dos nossos artistas.

– Exatamente; o sr. Adolfo tem-me convidado tantas vezes e com tanta amabilidade!

– Não é porque valha a pena, minha senhora; mas somente por
saber que V. Exa. é uma entendedora, e, depois, são tão
raras as pessoas que se interessam pela arte no Rio de Janeiro!… Vou-lhes
mostrar os meus calungas.

As paredes da sala enorme estavam cobertas de mãos, pés, cabeças,
torsos, dedos, flores, folhas, frutos, modelados em gesso ou em barro, pendurados,
ou sobre prateleiras, e alguns cobertos de pó, numa confusão
e desordem. Uma carinha gorda de criança ria-se entre uma carranca
de fauno e uma cabeça dolorosa de mártir, de barba intensa.
Junto às paredes, sobre bancos altos, maquetas, em gesso ou greda,
de estátuas ou monumentos; um busto esplêndido do imperador,
em mármore; uma figurinha de criança, corpo inteiro, em camisa;
uma figura colossal de mulher nua, em gesso, sentada graciosamente; era uma
estátua destinada a uma fonte pública.

Mas o que desde logo atraía a atenção era uma estátua
eqüestre de general, homem e cavalo de tamanho maior que o natural, trabalho
já bastante adiantado.

Tinha um movimento e uma vida extraordinários essa estátua;
parecia a todo momento que o ginete ia arrombar a parede de tábuas
do atelier e saltar à rua com seu cavaleiro heróico cingido
aos rins.

O escultor ia mostrando às suas gentis visitantes todos os seus trabalhos,
um a um; mas, ao fim de alguns minutos, só tinha ao lado a esposa de
Fernando. Santinha havia-se deixado ficar para trás e acompanhava-o
ao lado do poeta, que, a propósito de um busto ou fragmento qualquer,
emitia um madrigal, ora em prosa do gasto diário, ora em versos pretensiosos.

Tendo feito assim a volta do atelier, passaram pelos aposentos particulares
do escultor, à direita, dos quais só se via pela porta aberta
e reposteiro apanhado do gabinete ou escritório, que era também
sala de receber; e chegaram, por fim, à esquerda, ao fundo, em frente
de outra porta, mascarada por um vasto reposteiro de chita grossa de ramagens,
completamente solto. Justamente nessa ocasião Santinha perguntava ao
artista, elevando a voz:

– E onde trabalha seu irmão?

– É aqui o seu atelier. Está trabalhando com o modelo.

– Oh! Não podemos ver? – tornou ela com açodamento. – Tenho
tanta curiosidade de ver pintar a figura do natural! – Mas acrescentou, como
em resultado de uma reflexão, com um tom grave:

– Sendo o modelo mulher, bem entendido.

Corina detivera-se, interdita, meio vexada. O escultor deixou-a então
para adiantar-se até à porta; apanhou o reposteiro de um lado
e, puxando-o um pouco para si, inclinou para dentro o busto e disse:

– Heitor, estão aqui duas senhoras que desejam visitar o teu atelier.
Podem entrar?

O afastamento da cortina fazia uma aberta suficiente para deixar ver grande
parte da peça às quatro pessoas grupadas em frente.

De costas, sentado num banco de lona, estava o pintor em face da tela, com
a paleta e o tento na mão esquerda e manejando o pincel com a outra.
Um pouco ao fundo, estendida sobre um canapé, forrado de um estofo
oriental de cores vivas, caído em dobras sinuosas sobre o chão,
via-se uma mulher nua.

Estava deitada com o dorso para a porta, o busto mais alto, apoiado sobre
duas almofadas moles de seda, a cabeça quase ereta, encostada a face
esquerda sobre o braço inflexo, a perna direita estendida sobre a esquerda,
dobrada de modo a ficar o pé esquerdo de palma, tocando pelos dedos
no calcanhar do direito. Do rosto via-se apenas um terço do lado direito.

Uma cabeça loura admirável; os cabelos, muito finos e sedosos
mas pouco bastos, estavam suspensos à grega, juntando-se ao alto numa
rodilha leve, e deixando soltos, quase vaporosos, sobre a nuca muito branca,
os fios novos, crespos, que um raio de sol atingia de ouro fluido. A orelha,
transparente à luz, era uma mimosa concha de nácar. Um corpo
ainda moço, de formas esbeltas e carnes firmes, com umas pernas longas
e finas mas de contornos perfeitos, como as de Diana, a caçadora; e
naquela pose abandonada havia, apesar da plena nudez, algo de casto, algo
de sagrado, como em todas as belas criações do bom Deus.

O pintor virou-se para falar ao irmão; com o ruído, o modelo
voltou igualmente o rosto, sem mexer com o corpo; sorriu-se para o escultor,
mas, quando lobrigou a cabeça de Santinha, que a adiantara, curiosa,
teve um movimento instintivo para cobrir-se, tateou em torno à procura
de um pano e não o encontrando à mão virou-se inteiramente
de costas, ocultando a cara nos braços.

O pintor ergueu-se, atirou sobre o modelo uma colcha vermelha, que estava
no chão e que lhe ocultou as pernas, só deixando o busto a descoberto;
e foi receber as visitas. Entraram todos.

– É curioso – observou em voz baixa o escultor ao poeta, retendo-o
um momento. – Esta mulher, que se conserva nua à vista dos homens que
aqui entram, reparou como lhe veio o pudor e procurou cobrir-se quando viu
as senhoras?

– É verdade; é realmente muito curioso.

A figura estava toda esboçada sobre a tela, em alguns pontos mais
acentuadamente que em outros, e completamente pintada nos membros inferiores,
cuja carnação cintilava, rosada, com leves tons ambarinos.

Santinha fez grandes gabos ao trabalho, visivelmente excitada.

Ocuparam-se ainda uns minutos examinando os numerosos quadros, esboços,
estudos e desenhos, apostos às paredes-cabeças, paisagens, natureza
morta. Corina não pronunciava uma palavra; tinha as faces vermelhas
e um brilho febril nos olhos, que não se despegavam do dorso nu do
modelo. A visita foi muito curta em atenção ao trabalho do artista,
que os visitantes não queriam interromper.

– Este modelo é a Ada? – perguntou o poeta ao escultor.

– É Não temos outro. Fora nosso modelo em Roma; veio ao Brasil
como corista da Companhia Ferrari e, tendo aqui ficado, presta-se a vir posar
para nós algumas vezes, quando os seus afazeres lho permitem.

– Que mulher sem-vergonha! – segredava Corina à amiga.

– Por quê? Se é a sua profissão! – respondeu esta muito
naturalmente.

Concluída a visita, convidou-as o escultor a descansarem um pouco
na sua "toca", que assim chamava ao gabinete. Entraram, mas foi
uma exclamação geral de surpresa quando lá depararam
o dr. Paulino folheando o Monde Illustré. A surpresa deste ao ver entrar
as duas mulheres não foi menor que a delas ao encontrá-lo.

Um quarto de hora depois, saía o médico com elas.

Na porta, no rumor confuso das vozes trocando cumprimentos e despedidas,
ouviu ele distintamente Santinha segredar ao João Ferry: "Amanhã,
às duas, Passeio Público", e o poeta responder-lhe: "Sem
falta: obrigado".

Era uma quinta-feira, o dia da partida de voltarete de Fernando em casa do
corretor Paranhos. Paulino, em execução do plano em que assentara
na véspera, resolvera jantar na cidade, para evitar o tête-á-tête
com a esposa do amigo. Mas… o homem propõe… e a mulher dispõe.

Santinha, convidada por dona Sinhá a subir com ela à Tijuca,
recusou, alegando esperar visita naquela noite; mas segredou-lhe ao ouvido:
"Não quero perturbar vocês: hoje é quinta-feira",
e separou-se deles nó largo de S. Francisco.

Paulino conduziu Corina até ao bonde, e despediu-se, pretextando estar
comprometido para a noite; mas Corina lhe disse: "Que mau! Tem coragem
para deixar-me sozinha naquele ermo!" com expressão tão
doce, tão enfeitiçante, que ele cedeu, pensando: "Mas recolho-me
cedo".

Pois recolheu-se mais tarde que de costume. Passearam na chácara,
fizeram música, recitaram versos, folhearam álbuns de fotografias,
lado a lado; conversaram artes, letras, modas.

As 11 horas Paulino, que o tinir argentino do relógio batendo as pancadas,
parecia haver despertado, ergueu-se, numa surpresa mesclada de desgosto, e
pediu licença para recolher-se. A casa, apesar de arder ainda o gás
em muitos aposentos, estava silenciosa, adormecida já.

– Vou acompanhá-lo à sua casa, para lhe pagar a gentileza de
haver-me acompanhado à minha – disse Corina, erguendo-se da cadeirinha
de laca.

– Não consinto, pelo amor de Deus! – acudiu Paulino, num temor vago,
como diante da iminência de um grave perigo.

– Por quê? – inquiriu ela, naturalmente.

– Porque… a noite está fresca… pode resfriar-se… é tão
tarde… tem de voltar sozinha…

– Lá por isso não, porque eu levo a Maurícia.

Tocou o tímpano; a velha mucama apareceu logo; pediu-lhe uma mantilha,
deu-lhe ordem de acompanhá-la até ao Mirante (era o nome por
que os criados conheciam o belvedere) e saíram pouco depois.

A noite estava tão clara, tão perfumada, tão calma como
a da véspera. Era o mesmo amavio irresistível, a mesma irresistível
poesia, escorrendo no luar, suspirando nos murmúrios vagos das folhas,
exalando-se em aromas fortes das "flores de baile", dos jasmineiros,
dos rosais, das madressilvas…

Corina apoiou-se languidamente ao braço do médico e foram subindo
lentamente o aclive, em silêncio. A moça sentia no braço
a repercussão surda e precipite das pancadas do coração
do seu companheiro e tremer-lhe o braço de vez em quando.

Chegaram por fim. O médico abriu a porta, acendeu o bico de gás
que havia logo à entrada e estendeu a mão para despedir-se.

– Espere, vou levá-lo até acima; quero ver se lhe arrumaram
bem o gabinete e o quarto…

Maurícia estava do lado de fora, encostada a um dos batentes.

– Está louca? E Maurícia? E Alfred?

– Alfred ainda não voltou da rua. A rapariga subirá também.
Sobe, Maurícia.

E galgou trefegamente as escadas em espiral, de degraus altos e estreitos.
Paulino seguiu-a, apoiando-se ao corrimão, cambaleando como um ébrio.

Ao entrar na saleta, às escuras, sentiu a respiração
ofegante da moça, fatigada da ascensão; tirou a caixa de fósforos
para acender o gás, mas estava tão trêmulo das mãos
que a caixinha caiu ao chão. Caminhando e procurando-a com o pé,
esbarrou com a moça no centro da saleta. Deu um pequeno grito e, como
lhe sentisse o corpo vacilar, amparou-a nos braços.

– Paulino – murmurou a voz de Corina, trêmula, entrecortada de emoção,
bafejando um hálito de fogo.

Tolheram-lhe a voz sobre os lábios outros lábios, igualmente
secos e ardentes.

Durou tudo isso alguns segundos.

Quando a chama do gás rebentou na arandela, viu Corina sentada numa
cadeira, com a cabeça nas mãos e os cotovelos sobre a mesa,
e a mucama em pé, junto à porta. O médico disfarçou
a comoção indo depor o chapéu e a bengala a um canto
e graduando a luz.

Corina tirou logo a face das mãos, ergueu-se, passou uma vista de
olhos em torno e exclamou, afetando calma e indiferença:

– Está tudo em ordem. Agora que o deixo em casa, vou-me embora. Muito
boa noite – e estendeu-lhe a mão, de frente, sorrindo. Paulino apertou-lha
frouxamente e sentiu-a escaldar a dele. Mas não teve coragem de encará-la
nos olhos ardentes, abertos, fincados sobre os dele: fechou-os como se fosse
desmaiar.

Depois um frufrulhar de saias, um afastar de passos leves para baixo, o bater
de uma porta… e mais nada. A noite continuava majestosamente, banhada de
luar, no seu curso misterioso, guardando no seio agonias de delíquios,
soluços de desespero e gritos de paixão.

CAPÍTULO VII

UM DIA INFELIZ

Eram sete horas da manhã. Fernando, de volta da sua ducha matinal,
em pijama de flanela branca, de riscas vermelhas, e chinelas de palha, vendo
abertas as janelas do belvedere disse consigo: "Paulino madrugou hoje"
e foi vê-lo. Encontrou Alfred em mangas de camisa, arrumando.

– Bonjour, Alfred. Le docteur s’est levé aujourd’hui de bonne heure,
n ‘est-ce pas? Où est-il?

– Monsieur le docteur est parti au petit jour, monsieur.

– Comment! Il est parti? Mais pour où?

– Sais pas, monsieur. Il m’a remis cette lettre pour vous.

E entregou-lhe um pequeno envelope azul.

Fernando leu o seguinte bilhete:

"Meu caro Fernando, o calor começa a incomodar-me. Fujo para
Nova Friburgo, onde vou passar alguns dias. Não tive ocasião
de ver-te ontem e por isso deixei de avisar-te.

Comprimentos a dona Sinhá. Teu, Paulino".

– C’est bien, merci.

E Fernando desceu, contrariado com a ausência inesperada do amigo,
porque precisava conversar com ele a respeito de uma grande empresa que projetava
lançar em breve, sob a forma de sociedade anônima, com o título
"Melhoramentos da Tijuca", e cuja presidência tencionava oferecer-lhe.
Tomou o café na varanda, acendeu um cigarro e pôs-se a ler os
jornais.

Estava em seu auge a febre de especulações da bolsa, que ficou
conhecida sob a designação pitoresca e singular de Encilhamento,
que domina o período decorrido da proclamação da República
até meados de 1891

Todas as folhas vinham cheias de inúmeros e vistosos anúncios
de companhias, lançadas com capitais formidáveis, que pompeavam
em grossos caracteres tentadores. Cada dia pululavam novas empresas, de arrojados
intuitos, de planos admiráveis e de resultados não só
maravilhosos como infalíveis, no dizer dos incorporadores. Na parte
comercial figuravam as ações de bancos e companhias com cotações
extraordinárias, que acusavam ágios espantosos.

Fernando estava ganhando rios de dinheiro. Já havia incorporado dois
bancos e três companhias, e era fiscal de meia dúzia delas. Inteligente
e profundamente prático, não se deixava alucinar porém,
em meio daquele delírio; jogava, sim, mas com uma calma relativa e
aplicando logo em imóveis ou títulos de real valor boa parte
dos lucros auferidos. Naquele momento verificava ele com visível contentamento
o êxito completo de uma operação importante que há
dias preparava e que lhe metia no bolso algumas dezenas de contos de réis.
Foi quando ouviu a voz da mulher exclamar a seu lado:

– Muito bom dia, sr. Rothschild! – e sentiu os seus lábios frescos
pousar-lhes na testa.

– Bom dia, queridinha – e enlaçou-lhe a cinta com o braço esquerdo,
segurando na outra mão as largas folhas abertas do Jornal do Comércio.
– Comecei bem o dia; acabo de verificar que o meu jogo nas Sorocabanas deu
o resultado previsto: ganho uns 60 contos. Mas estou contrariado porque o
Paulino… A propósito: ele jantou cá ontem?

– Jantou; encontramo-nos na rua do Ouvidor e viemos juntos da cidade.

Isto era mentira; mas Corina, com a prodigiosa perspicácia do seu
sexo, antevira logo os inconvenientes de dizer que o havia encontrado no atelier
dos irmãos Barinelli, porque podia parecer que era um rendez-vous combinado.

– E disse-te que partia hoje?

O ar feliz que enchia de riso os olhos e a boca da moça desapareceu
subitamente, e os supercílios franziram-se-lhe numa forte contrariedade.

– Não; mas ele partiu?

– Sim, esta madrugada, para Friburgo. É esquisito que, tendo jantado
contigo, não te haja dito coisa alguma.

– Nem a você.

– Deixou-me este bilhete; lê.

Se Fernando fosse observador ou se tivesse motivos para o ser, teria notado
o tremor das mãos da mulher sustendo a pequena folha de papel, e, ao
almoço, que ela apenas tomara um ovo quente e uma chávena de
chá. Mas nada disso notou, nem mesmo a frieza com que ela recebeu a
notícia de haverem chegado da Europa o cupê e o landau mandados
vir pelo marido e que ela esperava ansiosamente, pedindo notícias todos
os dias.

Quando se viu finalmente sozinha, respirou de alivio.

Fechou-se no quarto.

Não havia dúvida de que a partida súbita de Paulino
fora resolvida depois do incidente daquela noite e provavelmente por causa
dele. Era evidente, nesse caso, que aquele primeiro beijo, preparado pelo
capricho ou pela maldade do acaso, o perturbara profundamente e de modo tal
que o obrigara a fugir, atordoado, receoso das suas conseqüências.

Mas era, então, claríssimo que a amava! E esta idéia
expeliu do seu rosto conturbado a última sombra de desgosto. E se ele
não voltasse? Voltaria por força. Tinha ali tudo o que lhe pertencia.
E que ficaria fazendo em Friburgo? Havia de voltar… Mas se se mudasse? Era
o mais provável; porém ela havia de encontrar algum meio de
impedi-lo.

Lembrou-lhe consultar Santinha; era precioso o seu conselho para esses casos.
Não havia dificuldades para aquela mulher: achava saída para
tudo; a sua imaginação sugeria-lhe expedientes seguros para
todas as situações, mesmo as mais difíceis ou melindrosas.

É verdade que lhe tinha medo e não só medo, também
uma espécie de repugnância vaga, instintiva. Achava-a pervertida
em demasia. Não podia compreender aquela sede insaciável de
gozo em que ela ardia e que a atirava aos braços de todos os homens
com quem podia tratar de perto, sem amá-los, contanto que fossem moços.
E lembrava-se com certo terror que se houvesse obedecido a todos os seus conselhos
já teria tido três ou quatro amantes. Felizmente o acaso ou a
sua boa estrela a havia protegido sempre da sua influência nefasta,
muitas vezes no momento mesmo da queda, como acontecera com o caso do barão
de Santa Lúcia.

Mas agora a coisa era outra. Ela amava Paulino e acreditava que ele também
a amava ou viria a amá-la com igual ardor; mas sentia-o fugir-lhe,
como que defendendo-se, e era preciso retê-lo. Ora, só a experiência
e o tato da amiga poderiam fornecer-lhe o plano estratégico de que
precisava.

Resolveu ir vê-la, e já começava a vestir-se quando se
lembrou de que tinha todo o dia tomado: esperava a costureira e o professor
de canto. Ficou muito aborrecida. Com que severidade julgou o delicado trabalho
da sra. Durandot, a modista do high-life feminino de todo o Catete e Botafogo!
Tudo lhe parecia inferior ou mal feito: os estofos, o corte, os enfeites…
Nunca errara tantas notas e compassos como naquele dia, a ponto de não
acabar a lição, pretextando estar com enxaqueca – essa providência
das mulheres feridas do mal de amor.

Estava impaciente, nervosa, quase febril. Felizmente o marido telefonou que
não viria jantar, retido na cidade por negócio urgente.

Quando ele entrou, as dez horas, já ela dormia profundamente, calma
e risonha como um anjo.

CAPÍTULO VIII

"SANTINHA"

Eram apenas 11 horas da manhã quando Corina se apeou do bonde à
porta da casa de Santinha, na rua do Catete: uma bonita casinha assobradada,
com duas janelas de frente sobre um minúsculo jardim bem tratado. Foi
encontrar a amiga no seu gabinete de toalete, a arranjar-se para sair.

– Estou quase nua, filha. Mas entra, para não teres de esperar-me
– gritou-lhe a mulher de Viriato.

Corina entrou, fechando sobre si a porta de vidros foscos, e quase a sufocou
o cheiro forte e complexo de água de Lubin e sabão de amêndoas
– esse cheiro úmido e capitoso do banho de uma mulher chique.

Santinha estava em camisa, que pouco abaixo lhe descia dos joelhos, mostrando
as pernas nuas, grossas e muito brancas.

Sobre a pele fina dos seios fartos, protuberantes na cambraia da camisa pintalgada
de florinhas, brilhavam ainda algumas gotas trêmulas de água.
Como estivesse com as mãos brancas de espuma de sabonete, de pé
em frente do toucador, estendeu apenas as faces, frescas do banho, aos lábios
da amiga e retribuiu-lhe sonoramente os beijos.

Mas não estava só; tinha consigo a Matilde, uma mulatinha clara,
trêfega, de olhos sonsos, que era sua criada de quarto.

– Vais sair?

– Vou, mas enquanto me visto podemos conversar.

– Sim; mas não tem pressa o que tenho a dizer-te – respondeu Corina
com olhar oblíquo para o lado da Matilde, que ia arrumando sobre a
cama as roupas que a ama devia vestir.

Tendo passado uma saia, Santinha envolveu as espáduas em uma toalha
e sentou-se em frente do espelho, que lhe devolveu a imagem fielmente.

Matilde penteou-a com admirável presteza e habilidade; calçou-lhe
as meias pretas de seda e os sapatinhos de pelica, e quando acabou de atacar-lhe
o colete, Santinha despediu-a dizendo-lhe que acabaria a toalete sozinha.

Matilde saiu com um "sim, senhora" humilde, mas não sem
um olhar de soslaio para as duas, cheio de malícia e curiosidade.

– Que apuro! – exclamou Corina. – Isto cheira-me a entrevista.

– Acertaste. Vou encontrar-me com o meu poeta. Não podes calcular
como estou impaciente!

– Está se vendo. Se eu pudesse, dava-lhe os parabéns: estás
realmente apetitosa.

– Lisonjeira! Estou mas é envelhecendo; por isso é que vou
aproveitando o que posso. Mas, diz-me: o que há de novo? Tu por aqui,
a esta hora, de sopetão, hum! é novidade… Conta lá.

Corina narrou-lhe a cena da véspera e a partida imprevista de Paulino
e, por fim, pediu-lhe conselho sobre o que devia fazer.

– É evidente que te ama. Eu já o sabia desde a noite da chegada
dele; – e, enquanto falava, ia perfumando com o pulverizador os selos, o pescoço,
as axilas. – Não te deixava com os olhos; perturbava-se todo quando
lhe falavas… Aquela timidez é um indício infalível
de amor. Agora esta verdadeira fuga não deixa dúvida possível.
Eu, no teu caso, adotaria o seguinte plano de campanha: quando ele voltasse,
retraía-me, evitava-o, mostrava não me lembrar da cena do belvedere;
faria enfim tudo para não assustá-lo, para que ele se fosse
deixando ficar perto do fogo sem lhe sentir o calor. Mas, ao mesmo tempo,
aumentaria o meu poder de sedução, disfarçadamente: hoje
um vestido leve e justo, amanhã um decote mais fundo e os braços
nus, depois um descuido que mostrasse o começo da perna, ou uma atitude
mais lânguida. Desse modo, nada vendo de positivamente ameaçador
e preso, por outro lado, quase sem o saber, por todas essas seduções,
ele se deixaria ir ficando. E assim até que chegasse, finalmente, o
dia da batalha campal decisiva; nesse dia, o grande golpe.

– E qual seria esse grande golpe?

– Ele é médico. Uma noite em que estivesses sozinha, em perfeita
segurança, sentirias um incômodo, tonturas, falta de ar… A
criada te afrouxaria as roupas e correria a chamá-lo… O resto…
ao acaso, e não falha; asseguro-te. O acaso é um bom amigo dos
amantes.

Corina tinha as faces afogueadas e os olhos ardentes. Levantou-se para disfarçar
a comoção. A amiga estava pronta. No momento em que iam sair
do quarto, Santinha deteve-a por um braço, como tocada por um idéia
súbita:

– Uma idéia! Queres tu vir comigo, para conhecer o meu buen-retiro?

– Estás doida? E o teu poeta?

– Ele chega somente à hora e meia. Temos tempo.

– Mas para que hei de eu conhecer o teu buen-retiro?

– Oh! Filha, não desdenhes! Quero apresentar-te a dona Miquelina.
É uma mulher seguríssima, de uma discrição de
poço entupido. Pode ser-te útil um dia.

Corina corou levemente e recusou: a amiga não insistiu.

Saíram e tomaram juntas o bonde. Desceram no largo da Carioca e, na
ocasião de se separarem, Santinha insinuou com muito jeito:

– É aqui pertinho. É um momento; vem…

Corina acompanhou-a sem dizer nada. Era na rua de Santo Antônio, próximo
da da Ajuda.

Casa de rótula e janela verdes, aspecto pobre. Santinha bateu com
o cabo da sombrinha devagar. A porta abriu-se mansamente, engolindo-as logo.

Uma mulher de 40 anos, magra, cara de sofrimento, apesar do sorriso forçado
com que procurava alegrá-la constantemente, as recebia correndo o ferrolho
à rótula:

– Sentem-se minhas senhoras. Esta choupana é sua; – e para Santinha:
– Como tem passado, dona Carlotinha?

Corina olhou com espanto para a amiga, que lhe fez um sinal significativo,
respondendo logo à velhota:

– Muito bem, dona Miquelina, sem novidade. E a senhora?

– Eu, como pobre… rolando, enchendo os meus tristes dias. É muito
bonita esta sua amiga, benza-a Deus! Como se chama?

– Emília Passos – acudiu logo Santinha, lançando a Corina um
olhar de inteligência. – Trouxe-a para lha apresentar, entendeu?

– Pois não, minha senhora; tenho muito gosto em conhecê-la.
Esta casa é sua – e acentuou as últimas palavras.

Corina respondeu apenas com um gesto de cabeça. Cinco minutos depois
saía apressada, com ar ligeiro e receoso de quem sai de um lugar escuro,
onde foi pecar.

Meia hora depois batiam discretamente à porta da casinha. Santinha,
que estava só, tendo a dona da casa ido dar umas voltas, foi quem abriu.
Era o poeta.

Entrou com o chapéu numa das mãos e a bengala e as luvas na
outra, muito tímido, e ficou tão atrapalhado quando deu de face
com aquela mulher tentadora que o esperava, que deixou cair a cartola. Tinha-se
vestido a capricho e rescendia a new mown hay.

– Entre, meu senhor, no tugúrio humilde onde a sua escrava o espera
impaciente – exclamou Santinha, com proposital afetação cômica,
para pô-lo à vontade; e tomou-lhe os objetos que tanto o embaraçavam.

– Demorei-me? – perguntou ele, para dizer alguma coisa.

– Não, foi pontual como um inglês.

– O poeta enxugava a fronte com fervor, enquanto pensava: "Sou uma besta.
Já devia ter-lhe dado um beijo, ao entrar. Mas agora é ridículo.
Daqui a pouco".

Aquele acanhamento encantava a experimentada senhora: gostava de iniciar
neófitos nos mistérios venusinos.

– Então, não me dá um beijo? É preciso que eu
lhe peça?

O pobre rapaz, que se sentara, decidiu-se então. Tomou-a sobre os
joelhos e beijou-a longamente, demoradamente, nos olhos, nos cabelos, na boca,
na parte nua do colo. Santinha fechava os olhos, quebrada, rendida, murmurando:

– Como eu te amo! Tu me matas, Ferry, tu me matas! Não imaginas, não
podes imaginar como te quero, como te amo! És o meu primeiro amor,
juro-te. Oh! Eu sou uma desgraçada! Fiz um casamento desastrado. Meu
marido é um burguês grosseiro, materialão, que não
compreende, que nunca suspeitou sequer as riquezas ocultas em meu coração.
Tanto pior para ele! E a ti, meu adorado poeta, a ti somente que eu as desvendarei…
Sou tua amante, tua escrava, uma coisa tua! Mas dize-me: amas-me também
um pouco? Dize!

– Adoro-te, Santinha. És a minha luz, o meu sol, o fanal que me ilumina
a vida. Queres uma prova? Ouve estes versos.

E sacou do bolso uma folha de papel cor-de-rosa com um friso dourado, dobrada
ao meio. Desdobrou-a e começou a ler, com as pernas um pouco dormentes
do peso do corpo amado:

Flor que te abriste, perfumosa e bela,
No areal adusto do meu peito enfermo,
Do meu céu negro radiosa estrela,
Que vens lenir o meu sofrer sem termo…

Cada estrofe era pontuada de beijos, a cada verso correspondia uma exclamativa
de admira&cccedil;ão de Santinha.

Fazia um calor de forno na salinha de dona Miquelina. E o trovador sem decidir-se…
Por fim, Santinha observou-lhe:

– Como transpiras! Por que não tiras o paletó? Estamos completamente
sós. Temos duas horas para estarmos juntos – as primeiras, meu amor!

Foi então que o poeta deu com a alcova aberta sobre a sala, mostrando
uma velha marquesa, comum, sem dossel, com a sua colcha de chita verde e vermelha
e as grandes almofadas brancas. Ergueu-se, erguendo a amante, e a foi levando
docemente, trêmulo, com as pernas quase esquecidas, suando em bagas.

CAPÍTULO IX

ESTRATÉGIA AMOROSA

A Estada de Paulino em Nova Friburgo foi curta. Desceu no FIM dc cinco dias,
chamado por telegrama do pai de uma de suas clientes, cujo estado se agravara.

Chegou à cidade ao anoitecer, mas só tarde subiu para a Tijuca,
de modo a não ser pressentida a sua entrada em casa.

Passara pessimamente aqueles dias de ausência, apesar da amenidade
da temperatura e da escolhida roda em que conviveu, toda de veranistas da
nossa primeira sociedade. O moral trabalhava-o continuamente, como uma broca
a perfurar um tronco, e a ponto de fazê-lo perder o apetite e o sono.

O incidente daquela aziaga noite de quinta-feira não lhe desertava
o pensamento um instante e produzia-lhe uma impressão de terror contínua
e progressiva, que se ia tornando obsessão.

Estava consumado o seu crime: revelara a dona Sinhá o seu amor inconfessável;
e revelara-o melhor que com palavras – com um beijo, um beijo ardente, em
plena boca!

Como pudera cometer essa baixeza, esse crime? Cometera-o somente porque,
num instante rápido de excitação nervosa, os seus sentidos
o dominaram completamente, obcecando-lhe a razão.

Este desastrado incidente foi para ele um poderoso raio de luzintrospectiva?
revelou-o a si próprio, mostrando-lhe os perigosos meandros do seu
temperamento, o que nele havia de impulsivo, de arrebatado, de imperioso.
Possuidor de uma razão clara e robusta e de um senso moral perfeito
– tanto, pelo menos, quanto o permite a vida social hodierna -, viu-se repentinamente
capaz de praticar atos condenados pela sua razão como erros e pelo
seu senso moral como faltas, desde que o seu temperamento encontrasse ensejo
de exercer a sua ação livremente, a toda a força. Era,
pois, um impulsivo, por uma fatalidade orgânica, constitucional, atávica
sem dúvida, e, por isso, um homem perigoso, capaz dos excessos mais
condenáveis.

Havendo reconhecido e confessado a si próprio a sua paixão
extraordinária pela esposa do seu amigo e protetor, horrorizado ante
essa enfermidade da sua alma, resolvera, antes que se tornasse incurável,
fugir daquela casa e daquela mulher, resistir heroicamente ao seu mal, e conservar-se
digno da própria estima; e resolvera-o firmemente, com toda a energia
de sua forte vontade educada. Pois bem, horas apenas decorridas, um acaso
estúpido reúne-os na obscuridade, atira os dois corpos um para
o outro; ela suspira-lhe o nome com expressão amorosa e ele agarra-a
e beija-a com arrebatamento, partindo os lábios ardentes sobre os seus
lábios finos, perfumosos, não menos ardentes! Razão,
senso moral, resolução clara, ponderada, firme – tudo desaparecera
e tudo o – abandonara aos seus instintos, à sua paixão maldita
num momento propício, que se diria preparado por uma divindade infernal!

Havia, porventura, absurdo mais revoltante, fraqueza mais deplorável
e mais vergonhosa? E esta certeza indignava-o, enfurecia-o intimamente, surdamente.

Aqueles cinco dias em que não a viu, passou-os Paulino a debater-se
nesse inferno de sentimentos e idéias, à procura de uma resolução
que fosse uma solução para o seu caso, um golpe único
e seguro naquele nó moral da sua existência. Deixar a casa de
Fernando não bastava: teria de freqüentá-la, e o escarninho
acaso prepararia novos encontros, alguma armadilha inevitável…

Era preciso deixar o Rio de Janeiro. Era uma pena, um verdadeiro desastre,
nas ótimas condições em que já estava a sua clínica
de consultório, prometedora de tão largo e brilhante futuro.

E o seu sonho de residir na Europa, após alguns anos de trabalho?
E a sua independência pecuniária, que ele almejava com impaciência,
sonhando-se em condições de poder dividir a sua existência
entre a ciência e o prazer, sem preocupações nem temores?

Tudo perdido! Mas que importava isso – refletia com tristeza – se cumpria
o seu dever, se se conservava um homem de bem! Sim, partiria, deixaria o Rio
de Janeiro, iria clinicar em qualquer Estado, no de São Paulo, por
exemplo. E nesta decisão se firmou.

Reconheceu, todavia, que para executá-la precisava de algum tempo,
o necessário para preparar Fernando e a mulher.

Como poderia justificar, sem levantar suspeitas e desconfianças veementes,
essa partida brusca, abandonando uma clínica dia a dia mais próspera?
Era-lhe necessário pelo menos um mês para esse efeito. Nesse
mês raras vezes jantaria em casa, e nenhuma delas em quinta-feira; trataria
Corina com a mais fechada reserva, e, para afastá-la e desiludi-la
sobre os seus sentimentos para com ela, lembrou-se de um recurso, que lhe
pareceu excelente – tomar uma amante, escolhida no demi-monde fluminense,
e não ocultar essas relações nem os vestígios
dela – cartas, flores, fotografias…

Talvez até que esse expediente pudesse justificar a mudança
para São Paulo.

Sim, era isso; fá-la-ia partir para lá e, depois, partiria
também ele, aparentemente atraído e enfeitiçado pelos
seus encantos viciosos…

Quando chegou a este resultado das angustiosas reflexões sentiu-se
aliviado e contente e voltou para capital, ruminando lentamente o seu plano
de salvação.

Nem mesmo a hetaira, necessária para a sua execução,
lhe faltava: lembrara-se de Madelon, a parisiense encantadora com quem fizera
relações em Paris num cabaré artístico, amasiada
nessa ocasião com um barão russo, e que viera para o Brasil
tentar fortuna, déplumer des richards – como dizia ela – entusiasmada
pelas informações do seu petit brésilien. Uma mignonnette
de 21 anos de idade e 39 quilos de peso, com uma cintura inverossímil
e uma dentadura ideal.

Madelon estava a calhar – parecia até feita de encomenda! Prestar-se-ia
sem nenhuma dificuldade ao seu plano, tanto mais que tinha por ela certa estima,
quase uma amourette. Iria vê-la no dia seguinte e desde logo começaria
o escândalo.

A volta de Paulino foi uma grande alegria para Fernando, embora tão
curta houvesse sido a ausência; é que já se havia habituado
à sua companhia, às partidas de bilhar depois do jantar, ao
solo à noite com a mulher, que era forte nesse jogo, e às longas
palestras pela manhã, depois da ducha, no belvedere, fumando cigarros,
ouvindo casos e anedotas da haute-noce de Paris.

– Decididamente, não posso mais passar sem o Paulino – dissera ele
à mulher no dia anterior, e acrescentara:

– Se não chegar amanhã, vou buscá-lo.

Mas Paulino chegou nessa noite.

– Monsieur le docteur est arrivé ce soir – disse-lhe Alfred na manhã
seguinte, indo à cozinha buscar o café.

Fernando galgou presto as escadas e foi encontrá-lo em robe de chambre,
já de volta do banheiro. Abraçou-o com uma efusão tal
como se a ausência houvera sido de cinco meses e não de cinco
dias. E comunicou-lhe que havia organizado uma grande companhia sob a forma
de sociedade anônima, cuja presidência lhe destinava.

Paulino recusou com energia, alegando não querer ocupar-se senão
de sua clínica.

– É tarde, meu caro. Já foste eleito na assembléia de
instalação. E possuis 3 mil ações, que já
podes vender com um ágio de 25 mil-réis em cada uma, o que significa
que podes meter no bolso daqui a algumas horas 75 contos de reis.

Paulino ficou enfiado, estupefato, sem saber o que dizer nem fazer.

À mesa, no almoço, foi que viu Corina – fresca, risonha, com
uma toalete de primavera, que lhe dava um ar de menina de colégio.
Cumprimentou-a sem expansão, com reserva bem dosada, esperando encontrar
no seu acolhimento algo que lembrasse a famosa cena do belvedere; mas ficou
surpreendido com o contrário: Corina apertou-lhe a mão simplesmente,
com um sorriso desintencional e palavras banais e conservou, durante toda
a refeição, esse ar despreocupado, sem um olhar ou uma frase
de significação especial. "Naturalmente dissimula por causa
do marido", pensou Paulino. E, havendo o banqueiro notado que Paulino
estava um pouco abatido, o que ele explicou, dizendo haver-se resfriado em
Friburgo, Corina não concordou: "achava-o até mais bem
disposto". Ora, a verdade é que ele estava visivelmente mais pálido,
com um aspecto de fadiga.

E a luta de dissimulação travou-se entre os dois, renhida,
constante, sem tréguas. Na primeira quinta-feira, como Paulino se preparasse
ao almoço para avisá-los de que não poderia vir jantar,
antes que o fizesse, ouviu, com grande surpresa, dona Sinhá dizer-lhe:

– Sabe que hoje tem de jantar sozinho? Prometi ir passar a tarde com mamãe,
e o Fernando irá buscar-me à noite.

– Oh! Filha, isso não o é possível. Saio muito tarde
da casa do Paranhos. Mas o Paulino podia fazer-nos o favor de….

– Não, deixa – acudiu Corina. – Eu durmo lá. E mesmo melhor,
porque farei mamãe dar um bom passeio amanhã, pela manhã,
no landau.

Paulino pediu licença para não vir jantar tampouco:

– E que tenho também a minha tarde presa e provavelmente também
a noite – e lançou um olhar expressivo a Fernando.

– Vais fazer a tua noce, bem, maroto? – exclamou este rindo, com o ar de
quem havia entendido.

Corina nada desse jogo parecia ter percebido: despolpava atentamente uma
pêra.

O plano estratégico aconselhado por Santinha ia produzindo resultados
maravilhosos. Paulino de dia em dia mais se apaixonava, mais se prendia insensivelmente,
acreditando, entretanto, que a reserva de Corina e a sua aparente tranqüilidade
e despreocupação eram resultado do plano dele, todo de afastamento
lento e bem calculado. Mas a sua inquietação e o seu mal-estar
aumentavam sempre inexplicavelmente.

Agora, quando estavam sós, o que era bem raro, riam, conversavam,
entretinham-se como antes, mas sem o mais ligeiro contato, sem uma alusão,
sem um sinal qualquer de inteligência amorosa. Era, entretanto, nessas
ocasiões que a inquietação e o mal-estar do médico
mais acentuavam. Proposital ou casualmente, nesses dias a toalete de dona
Sinhá era menos cuidada, mais sumária, mais simples: um ligeiro
vestido claro, de mangas curtas, deixando ver os formosos braços e
o começo do colo, que um esquecimento libertara do fichu; e havia mais
languidez, mais nonchalance nas suas atitudes.

Longe de tranqüilizar-se e satisfazer-se com a despreocupada indiferença
de Corina – tão completa que a levou ao ponto de lhe dizer, sem um
tremor na voz, com a maior calma, que havia visto Madelon, a amante affichée
do médico, e que a achara encantadora -, Paulino inquietava-se e sofria
com essa indiferença.

Estava a findar o mês do prazo que se havia marcado para mudar-se para
São Paulo, e ainda não tinha participado tal resolução
aos seus amados. Ia protelando… Para que comunicar-lha, se não havia
perigo, se nada ocorria que tornasse urgente a execução do seu
plano?

Corina nenhum sinal manifestava de amá-lo, ou desejá-lo, ao
menos. Afeição ou capricho, o que fora, passara; era evidente.
Por que, pois, abandonar tudo: a sua clínica, a sua posição
de presidente da Companhia Melhoramentos da Tijuca, em que Fernando já
o fizera ganhar cerca de 80 contos de réis, e a própria casa
e convivência deste…? Não seria uma feia ingratidão?
Decerto que sim.

É verdade que, ficando, sofria horrivelmente, porque o seu amor desgraçado
aumentava sempre, com uma intensidade assustadora. Mas que lhe importava sofrer?
Ninguém lhe ouviria um gemido; a causadora daquele tormento oculto
nunca o adivinharia sequer; na sua face, cada dia mais pálida, nenhum
reflexo se estampava das dores que lhe devoravam o íntimo.

Era em vão que se esforçava por apaixonar-se por Madelon, que
com ela passava a maior parte do tempo que o trabalho lhe deixava ocioso.
Ultimamente, dormia freqüentes vezes em casa dela; as suas relações
eram conhecidas de toda a cidade; e mais de uma vez Fernando jantou com ela
e ele em partie fine no Restaurante Campesino do Jardim Botânico, ou
no Hotel das Paineiras. Nem os encantos da gentil parisiense, sabedora insigne
dos mais delicados requintes da sua arte, nem a fadiga daquela vida de trabalho
e de vício o distraíam do seu amor pecaminoso e secreto. E Corina
sabia-o e via-o claramente, com uma dissimulação perfeita, e
pressentia próximo, bem próximo, o desenlace almejado.

As tranqüilas noitadas familiares tinham acabado.

Raramente se encontravam agora os três, à noite principalmente.
Paulino vivia mais em casa de Madelon; Fernando, alucinado no turbilhão
dos negócios e dos prazeres, recolhia-se sempre tarde e Corina saía
constantemente, de cupê, com Santinha, com a madrinha ou com alguma
de suas novas amigas, que tinha muitas.

Até que um dia o inferno moral em que vivia Paulino acresceu de uma
nova tortura – o ciúme.

Corina empregara o grande recurso, a arma de golpe infalível. Paulino
surpreendera-a em colóquio íntimo com o barão de Santa
Lúcia em um sarau na casa do conselheiro Prestes. Depois, a pesar seu,
não os perdeu mais de vista, descendo à baixeza de espiá-la,
de acompanhá-la, de seguir-lhe todos os passos, movimentos estes que
Corina conhecia perfeitamente, por intermédio de Maurícia e
de Alfred, bastante rusé para se deixar vender, conhecendo toda aquela
intriga em seus mínimos detalhes.

A existência de Paulino tornou-se então insuportável.
O ciúme enlouquecia-o de dor e de raiva nas longas noites de vigília
no seu leito do belvedere ou no de Madelon, cuja nudez olímpica de
dríade infante não lhe excitava já os sentidos.

Até que, sentindo a necessidade inadiável de desabafar o seu
incomportável sofrimento, disse a Santinha que prevenisse a amiga de
que os seus amores com o barão estavam-se tornando escandalosos e que
Fernando acabaria por ver também. Santinha teve um sorriso diabólico
e limitou-se a dizer-lhe:

– Olhe, doutor Paulino, se eu devesse prevenir a minha amiga a respeito de
alguém, não seria do barão, mas sim do senhor mesmo.

– De mim? – perguntou Paulino, com um espanto enorme na palidez da face.

– Sim, do senhor, que ama Corina como louco!

Paulino deixou-a aterrado, sem mais uma palavra; e, horas mais tarde, estava
no boudoir da francesa, cujos amores viciosos foi procurar, como, em busca
do esquecimento, procura um ébrio a taverna, e um jogador a batota.

Enquanto a franzina flor do bulevar, nua, com a alvura leitosa e velutínea
do seu corpo moço e mimoso, apenas cortado pelo negrume das meias,
e os seios, pequeninos e rijos, de Cloé, parecendo gotejar sangue dos
bicos altos, acabava o seu toucado noturno, diante do cristal do psiqué,
Paulino inerte, apático, estendido, de olhos cerrados, na chaise-longue,
ruminava em silêncio o seu atroz sofrer, e, no momento em que a amante
lhe dizia, risonha, tentadoramente lúbrica, tendo vestido uma camisa
de seda preta, ornada de valenciennes: "Alions nous coucher, mon petit",
ele ouvia-se dizer a si próprio, no mais fundo do seu pensamento, como
se o ouvisse de outrem: "Ou fujo ou mato-me".

CAPÍTULO X

A OBRA DO CIÚMES

Partir, fugir ao inferno em que padecia como um celerado punido atrozmente,
era a solução mais simples e mais racional que tinha o médico
diante de si.

Matar-se, por quê?

Era moço, forte, quase rico, ambicioso de fortuna, sedento de gozos,
sem dependências nem compromissos. Tinha o mundo e o futuro largamente
abertos, propiciamente francos à sua inteligência, à sua
atividade e aos seus apetites. Matar-se, porque amava a única mulher
que lhe era vedado desejar no mundo, fora insânia imperdoável
em cérebro tão lúcido.

Estava certo de que a ausência prolongada, longe, o havia de curar
radicalmente. Era mister partir. Iria primeiro para São Paulo, para
experimentar, e também porque lhe pareciam escassos ainda os seus recursos
pecuniários para efetuar uma viagem e estada longa na Europa.

Assim raciocinava e resolvia Paulino, e, no entanto, ia ficando, ia transferindo
indefinidamente o dia da partida. Não tinha coragem para sacudir dos
ombros o peso férreo do seu martírio.

Como o procedimento de Corina, todo de reserva e indiferente afabilidade,
nada tinha de alarmante, não denunciava um perigo próximo, não
via o médico necessidade de precipitar a execução de
seu plano, o qual, se o salvava moralmente, podia trazer-lhe imensos prejuízos
materiais.

E, depois, ele achava nobre aquela luta, dignificante aquele sofrer. Fugir
fora covardia. Ficar, resistir ao seu temperamento e vencê-lo, era dever.
Cumpri-lo-ia até ao fim, serenamente, embora com o coração
despedaçado pelo seu amor maldito, como o infante espartano fizera
com a raposa furtada: sem um gemido, sem uma contração da face.
O temperamento deve ser um escravo do homem e não o seu senhor; do
contrário seria a civilização uma palavra vã,
e a sociedade um parque de feras hipócritas.

E com tal filosofar iludia-se Paulino, mascarando a própria alma,
cobrindo de areia fria e branca as úlceras do coração.
A verdade era que a tática de Corina, habilmente dirigida por Santinha,
dia a dia o punha mais apaixonado e perdido de amor e lhe tirava a força
de fugir-lhe.

Se ela tivesse um brusco movimento de paixão para ele, em vez da esquivança
e indiferença que afetava, tê-lo-ia assustado, abrir-lhe-ia os
olhos sobre o abismo que o esperava, e ele fugiria espavorido, para salvar-se
e salvá-la. Mas, assim, ele podia iludir-se, tomar sua situação
pelo lado que lhe agradava e convinha – como um crisol, penoso embora, da
têmpera do seu caráter, como uma luta heróica e nobilitante.

Mais de uma vez teve ocasião, não buscada, de surpreendê-la
em deshabillé matutino, jardinando, voltando do banho frio, com os
cabelos desnastrados e úmidos, ou à noite, já em roupão
de dormir, espumante de rendilhas e fitas, como forçosamente acontece
na vida comum dos que coabitam o mesmo teto ou mantêm relações
de convivência estreita e constante.

Nesses dias Paulino sofria como um réprobo. O seu sangue impetuoso
rugia-lhe nas veias, cachoava-lhe no estuário do coração,
afogueava-lhe a cabeça, enfebrecia-o como se um veneno ardente se houvesse
insinuado nele.

Tinha ímpetos doidos de apossar-se daquele corpo capitoso e excitante,
e de gozá-lo longamente, alucinadamente, até morrer estreitando-o
no derradeiro abraço, expirando a alma e a vida no derradeiro beijo.

Esse combate intimo e tremendo minava-lhe a saúde. Andava pálido
e emagrecia evidentemente – o que Fernando explicava pela vida de noceur do
amigo e dona Benga pelo excesso de trabalho do irmão. Corina, essa,
não perdendo o mínimo indício dos resultados daquela
luta, parecia, no entanto, nada perceber, e dava-se toda em aparência,
à vida de luxo, ostentação e prazeres em que vivia desde
algum tempo.

Para Paulino, essa indiferença e despreocupação da moça
pela pessoa dele explicavam-se do modo mais simples. Corina estava apaixonada,
ou, pelo menos, entretida por outro, e esse outro devia ser o barão
de Santa Lúcia – esse nulo, correto e grave possuidor do prestígio
comum do dinheiro, da toalete e de um título barato. Adquiriu essa
certeza, já preparada pela descoberta que havia feito no sarau da Chiquita
Prestes, quando Alfred lhe revelou que dona Sinhá freqüentava
uma casinha suspeita na rua de Santo Antônio, ou melhor, quando verificou
pelos seus próprios olhos que essa revelação exprimia
a verdade.

Montou ronda nas vizinhanças. Uma tarde, viu sair da casa de dona
Miquelina um homem, que não pôde reconhecer por ter ele saído
dando as costas para a esquina da rua da Ajuda, em que estava Paulino, e ter
caminhado rapidamente para o lado do largo da Carioca; oito ou dez minutos
depois de ele haver desaparecido, viu vir, pelo mesmo lado, um vulto esbelto
de mulher com um véu preto no rosto: era ela; chegou à porta
da casinha, bateu; abriram-na entrou.

Mas como explicar que ela chegasse após ter saído o homem?
Naturalmente ela demorou e ele, cansado de esperar, foi-se embora; era isso.
Paulino veio até a frente da rótula verde e, parando, teve um
desejo furioso de bater e entrar. Chegou a dobrar os dedos e estender o braço…

Mas suspendeu o gesto e caminhou, trêmulo e trôpego como um atáxico.

Chegado ao canto, parou, e pôs-se de observação. Esperou
um quarto de hora, 20 minutos, 25. Corina saiu, então, e à rótula
apareceu a cabeça de d. Miquelina, com o seu sorriso mecânico,
e nos gestos trocados por um momento entre as duas mulheres julgou ver Paulino
sinais de conserto de um plano ou projeto. Quando a moça se afastou
alguns passos da casa, ele passou-se para a mesma calçada e veio-lhe
ao encontro, com o passo natural, como trazido pelo acaso.

Fervia dentro dele uma onda de indignação e revolta contra
aquela infâmia. Corina enganava vilmente, miseravelmente o marido, que
a estremecia, que lhe satisfazia todos os caprichos, todas as veleidades e
a todo preço! Enganava-o. sim; tinha a certeza disso.

O seu dever qual era, nesse caso: amigo de Fernando, seu mais antigo e dedicado
amigo? Preveni-lo.

Mas isso fora matá-lo, ou, pelo menos, à sua felicidade! Não,
o seu dever era prevenir Corina, fazê-la ver para que abismo caminhava.

E o melhor era aproveitar aquele ensejo; não havia tempo a perder.
Isso pensava Paulino no tempo que gastou até encontrar-se com a moça.
Esta vira-o momentos antes e ficou profundamente perturbada, por não
esperar aquele encontro.

Havia ido à casa de dona Miquelina, não para encontrar-se com
o barão ou com outro amante, mas com Santinha, que devia lá
ir naquele dia e não foi, faltando ao encontro marcado ao poeta, e
como era extraordinário isso, esperou pela amiga alguns minutos. Agora,
voltava a tomar o cupê, que havia mandado esperá-la em frente
ao Teatro Lírico.

Estavam ambos tão emocionados que pararam um em face do outro, sem
uma palavra, sem um gesto: Por fim, Paulino disse, com um estranho tom de
voz, que Corina lhe não conhecia:

– A senhora, aqui? A esta hora e nesta rua?

– Que tem isso de admirável? Vim procurar uma criada, que anunciou
hoje no jornal. Mas também lhe pergunto por que acaso o encontro aqui.
Ah! Já sei o que me vai responder… Uma visita médica.

Mas, apesar do seu tom degagé, a voz tremia-lhe, comovida. Paulino,
após um esforço que se traduziu numa contração
dos supercílios, respondeu com voz firme:

– Não, dona Sinhá, não vim visitar nenhum doente nesta
rua. Vim ver a senhora.

– Veio espiar-me, diga antes. E, por conta de quem desempenha esse bonito
papel? Por conta própria ou alheia?

Paulino, que não esperava semelhante réplica nem semelhante
tom, empalideceu e tartamudeou, o que permitiu à mulher de Fernando
assenhorear-se da situação, tomando um partido.

– Ouça-me, dona Sinhá. Não pode duvidar do meu afeto…
fraternal e sabe quanto sou dedicado a seu marido. Permita-me, pois, em nome
desse afeto e dessa dedicação, dar-lhe um conselho.

– Pois não, fale; reservou-me apenas o direito de dispensar o conselho,
agradecendo-o ao conselheiro, se aquele me desagradar…

– Fará o que entender, Corina. Eu cumpro o meu dever.

– Mas venha o conselho – volveu Corina, impaciente.

– É simples: olhe para o abismo que se lhe abre aos pés. Salve
a sua honra e a de seu marido, se ainda é tempo.

Corina, cujas faces ficaram cor de lacre, fixou sobre ele um olhar de fogo,
em que ardia toda a indignação de um amor-próprio brutalmente
ofendido, e respondeu seca e pausadamente:

– Não lhe reconheço autoridade para semelhante recomendação,
que é um insulto. A ação que acaba de praticar só
um sentimento a poderia justificar – o ciúme; mas eu ainda o não
autorizei a mostrar ciúmes de mim. Adeus.

E caminhou, firme, ligeira, altiva, deixando o médico na calçada,
enfiado, corrido, imóvel.

Só passados alguns momentos, foi que ele compreendeu a grande asneira
que havia feito.

"Sou um idiota. Um cretino não teria agido mais desastradamente.
Como foi que não vi o ridículo a que ia expor-me, mostrando
a Corina que a espionava e, sobretudo, dando-lhe um conselho daquela ordem,
sem nenhum título que me autorizasse a tanto? Mas o que acabo de fazer
é positivamente uma declaração de amor! Só o ciúme
justificaria semelhante brutalidade, como ela bem disse."

Assim pensava Paulino.

Assim pensava também Corina, tomando o cupê e mandando tocar
para a casa de Santinha. Aquilo fora uma declaração de amor
e a mais eloqüente que ele podia fazer-lhe. E, passado o sentimento espontâneo
e natural de indignação que lhe produziram as palavras desastradas
de Paulino, Corina sorria, contente, satisfeitíssima. Ia triunfar,
ia finalmente vencer aquela resistência tenaz e satisfazer o seu ardente
capricho, que ela chamava "amor", acreditando-se profundamente apaixonada
por ele.

Com que açodamento feliz foi contar à sua preciosa amiga o
incidente! Foi encontrá-la de cama. prostrada por uma enxaqueca furiosa,
felizmente acalmada um pouco quando chegou Corina, e contrariadíssima
por ter feito esperar em vão por ela o seu Zanetto querido – chamava-lhe
Zanetto romanticamente: era uma reminiscência da leitura de Le Passant,
dê Coppée.

– Atenção! A hora do grande golpe aproxima-se. Preparar armas!
exclamou a experimentada mulher do Viriato, com um lampejo de orgulho nos
olhos, como o de um grande cabo de guerra ante a vitória próxima.

Entretanto, Paulino caminhava ao acaso, apatetado, ainda corrido de vergonha
do papel que fizera. Ao cabo de meia hora, regressando ao consultório
cheio de enfermos que o esperavam impacientes, tinha a sua resolução
tomada, inabalavelmente, segundo pensava: partir. Não lhe restava outro
recurso, depois daquela cena; ela eqüivalera a uma confissão amorosa,
e, depois disso, ficar valeria tanto como trair o amigo. Mas resolveu partir
sem preveni-lo, de repente. Para isso iria preparando tudo em segredo e rapidamente.
O que lhe valia e o tranqüilizava um pouco era que, com a vida esparsa
de diversões que levavam marido e mulher, ele pouquíssimo parava
na Tijuca e assim poucos encontros poderia ter com ela.

Dentro de 15 dias, o mais tardar, tudo estaria acabado. Oh! Com que alegria
se veria liberto do seu inferno de amor!

CAPÍTULO XI

INCIDENTES

Passados os 15 dias improrrogáveis que Paulino havia marcado a si
mesmo para cortar cerce e de uma vez com aquela situação intolerável,
ansioso por terminar aquela dolorosa luta do seu caráter com o seu
temperamento, residia ele ainda na mesma casa: não tinha podido partir.

Motivo imprevisto e imperioso lho impedira. Fora esse motivo o estado de
saúde de Fernando.

Havia cerca de um ano que ele vivia extraordinariamente pelos nervos, fazendo
um dispêndio excessivo de atividade mental e física.

A sua vida tornara-se uma agitação constante, um continuo agir,
devido à multiplicidade e à complexidade de negócios
em que se envolvera, alucinado, como quase todos naquela época, pela
febre do jogo da bolsa, pela sede de enriquecer rápido e muito, mal
tremendo que, manifestado nos últimos meses de vida da Monarquia, se
desenvolvera espantosamente nos primeiros da República, sob o Governo
Provisório.

Não descansava quase, quase não dormia. Vivia agora mui pouco
em casa, raramente voltando para jantar e entrando muitas vezes de madrugada.

Não eram decerto só os negócios que o prendiam até
tão tarde na cidade, como procurava fazer crer à esposa – aliás
inutilmente -, mas sim a existência dissipada e deleitosa que contraíra
e em que tinha por habitual companheiro o seu amigo Viriato, agora seu íntimo.

Eram jantares caros nos melhores restaurantes, ceias ruidosas, regadas fartamente
de champanha em gabinetes particulares, em Botafogo, no Jardim Botânico,
no Daury, com Vanderbilts feitos à la minute e Coras Pearl de arribação,
vindas do rio da Prata e algumas dos bordéis de Marselha e Bordeaux
com rótulos de Paris, atraídas pelo cheiro da carniça
fresca e abundante.

Nesses jantares e nessas ceias, babujadas de beijos e de vinhos caros, tratavam-se,
é verdade, grossos negócios, esboçavam-se planos de empresas
maravilhosas ou fechavam-se transações comerciais avultadas;
mas, em compensação, malbaratava-se também o dinheiro
ganho a golpes de audácia e de sorte, espalhando-o em presentes pomposos
às cocotes – carros, parelhas de belos urcos, adereços do Rezende,
do Farani ou do Augusto Reis, palacetes, toaletes de um luxo insolente -,
em aquisições ruinosas e mesmo em novos negócios absolutamente
insensatos.

Era uma vida atordoadora e falsa. Sem saber de que modo, deixara-se apanhar
Fernando na sua entrosagem terrível e afizera-se ao jogo, à
dissipação, à desordem. Jogava a roleta, o dado, o bacará,
em que perdia sem pestanejar gordas quantias, e tinha amantes que lhe custavam
alguns contos de réis por mês, sem que possuíssem outros
encantos além dos próprios da sua corrupção e
dos seus vícios refinados.

Corina não se queixava muito dessa vida nova do marido porque ela
lhe deixava uma liberdade quase que completa de ação, da qual
se aproveitava o mais e o melhor que podia. Também ela tinha o seu
turbilhão: passeios, convescotes, chás, bailes, concertos, flertes
sem conseqüência, nos quais tinha por inseparável companheira
a sua amiga Santinha.

Eram os maridos por um lado e as esposas pelo outro – numa festa incessante.

Paulino, algumas vezes, não muitas, foi companheiro ora dos dois maridos,
ora das duas mulheres: era inevitável.

Uma noite, ao recolher, a desoras, sentiu-se Fernando muito indisposto: faltava-lhe
o ar e uma pontada violenta o alanceava na região precordial. Julgou
que era chegada a sua hora e um terror imenso apoderou-se dele, inundando-o
de suores frios. Foi um alvoroto na casa. Os criados corriam em todas as direções.
Um deles foi logo chamar o dr. Paulino ao belvedere…

Não se imagina a angústia indizível do enfermo e o susto
de Corina quando o fâmulo, de volta, informou que o médico não
dormira em casa naquela noite.

Acudiu logo a idéia de chamar outro, o mais próximo, e despachou-se
um próprio para esse fim. Mas um carro leve sobe a colina… Correm
a ver…

– É o dr. Paulino! – gritam.

Foi como se um anjo descesse do céu à alcova do casal, trazendo-lhe
a felicidade nas mãos diáfanas… Momentos depois, entrava o
médico, com um ar espantado por encontrar a casa àquela hora
em tal alvoroto.

– Venha, dr. Paulino, venha depressa! – exclamava aflitíssima a mulher
de Fernando, despenteada, em toalete de dormir, com os braços nus nas
largas mangas abertos do roupão de cambraia, com o colo mal velado
por uma mantilha de rendas, apanhada às pressas.

Paulino examinou logo o amigo, rapidamente, e preparou uma forte poção
calmante, que o fez beber, acompanhando-lhe o pulso com atenção.
Quinze minutos depois, o doente respira melhor e a dor abrandara.

Quando chegou o outro médico, um velho clinico pachorrento, mal desperto
ainda do profundo sono a que o foram arrancar, Fernando estava completamente
calmo e começava a toscanejar, vencido por uma sonolência pesada
e lenta.

O velho médico aprovou a medicação do colega, despediu-se
foi reatar o seu belo sono, voltando para casa no tílburi de Paulino,
que gentilmente lho oferecera, dando afinal por bem empregado o incômodo,
pensando em que havia de fazer pagá-lo bom preço.

Pouco depois, Fernando dormia tranqüilamente e Paulino recolhia-se ao
seu aposento, assegurando a Corina que nenhum incidente havia de sobrevir.
Somente de madrugada pôde o médico conciliar o sono: na escuridão,
viam seus olhos ardentes a visão branca e rósea da sua amada
entremostrando as formas peregrinas na transparência das roupagens de
fino linho: e nas narinas palpitantes sentia, estonteador, o cheiro da sua
carne moça e bem tratada…

No dia seguinte, exigiu Fernando que o amigo o examinasse atentamente. Paulino
fê-lo e viu confirmadas pelo exame as suas peitas da véspera.
Fernando sofria de uma insuficiência aórtica. Não lho
revelou, mas recomendou algum repouso e vida regular além de um regime
brando e do uso moderado de uma poção calmante que receitou.

O acesso não se repetiu nos dias subseqüentes; mas o temor do
enfermo era tanto e tal a confiança que ganhara no médico que
o salvara, que exigira dele não dormir mais na cidade; queria-o ali
à noite, perto de si, e quase lhe suplicava que não o abandonasse.

– Olha, Paulino, o que me está dando saúde é a certeza
de que estás perto de mim… Tenho a convicção de que
morreria nas mãos de outro médico. Não me abandones!

Paulino teve, pois, de adiar mais uma vez, e desta sem prazo marcado, a execução
de seu plano de salvação. A vida calma outrora recomeçou,
com as noites monótonas, preenchidas pelos três com partidas
de solo e pôquer, o novo jogo americano que estava fazendo furor. E
o banqueiro foi melhorando, a dispnéia desapareceu, e as pancadas do
coração foram-se tornando menos tumultuárias, mais rítmicas,
e foi-lhe voltando também a despreocupação, a alegria.

Um mês depois, reentrava na vida agitada de negócios e prazeres,
porém mais moderadamente, com uma certa cautela devida às incessantes
recomendações do médico. Fernando só o que exigia
era encontrá-lo em casa quando voltasse às 11 horas ou meia-noite,
no receio obsedante da repetição do acesso e encontrar-se novamente
ao desamparo, naquela solidão. Essa quase mania de ter o amigo à
mão, todas as noites, era decerto, um resultado do seu estado mórbido,
da depressão do seu sistema nervoso e, portanto, um sintoma de enfermidade
latente.

Para satisfazer-lhe o pedido jantava o médico mais freqüentemente
em casa e dentro em pouco estava restabelecida, e mais intimamente ainda,
a sua convivência com dona Sinhá. As noites eram longas; Fernando,
tendo a certeza de que o amigo o esperava em casa e fazia companhia à
mulher, demorava-se na cidade, "nos seus malditos negócios";
não tinha pressa de voltar.

Era de uma alegria comunicativa à mesa do chá, de volta da
agitação rumorosa da noce, reentrando na honesta e reconfortante
tranqüilidade do lar, vendo-se esperado pela esposa e pelo amigo, que
considerava um filho adotivo, entretidos quase infantilmente, a jogar damas
e xadrez ou a ler romances.

Uma manhã em que os dois amigos desceram cedo, sem almoço,
para a cidade, o que da parte de Fernando era raro, disse este ao médico,
no cupê, tomando um ar grave:

– Sabes, Paulino, tenho que falar-te de um assunto delicado e que considero
de uma certa gravidade.

O moço sentiu um ligeiro choque nervoso em todo o corpo, mas nada
disse, receando que lhe tremesse a voz, e esperou. Fernando continuou:

– Teu amigo como sou e sabes, considerei que era um dever da minha parte
contar-te o que vais ouvir. Trata-se da Madelon…

Paulino encarou-o surpreendidíssimo, e foi com dificuldade que reteve
uma risada, tão imprevista e tão cômica lhe pareceu a
revelação de que o tal assunto delicado e grave era a petite
Madelon.

Mas limitou-se a responder:

– Ah! Trata-se da Madelonette? Então que é?

– Essa mulher engana-te, Paulino; não te é nada fiel.

– Porém… – E Paulino ia dizer que estava farto de sabê-lo
e pouco se importava com isso, não se considerando seu amante único,
não tendo ménage com ela; mas o amigo, supondo talvez que ele
ia repelir aquela idéia e defender a amante, apressou-se em pingar
os ii.

– Sim, engana-te. Tenho provas. Tenho visto entrar-lhe em casa mais de um
sujeito bem conhecido e a mim mesmo escreveu-me ela uma carta…

– Pedindo dinheiro?

– Como sabes?

– Isso adivinha-se logo. Essas mulheres só escrevem para pedir dinheiro
e sempre com uma fome na razão inversa da ortografia.

– Na verdade, ela não pede dinheiro claramente. Mas pede-me que vá
visitá-la para conversar sobre um negócio…

– E você, que fez? – perguntou Paulino – Caiu com o cobre?

– Nada respondi. Ela é tua amante…

– Minha e do senhor. Todo Mundo…

– Não; é tua amante, pouco importa que infiel. Sei que gostas
dela. E eu seria incapaz de semelhante deslealdade. Essa mulher para mim não
existe.

Paulino, que ao ouvir estas palavras, ditas em tom quase solene, tornara-se
extremamente sério, perguntou-lhe:

– Mas você gosta dela?

– Confesso-te que lhe acho uma certa graça, um certo cachet. Tem um
chique, um ar vicioso de bulevar que me tenta. Ah! Se ela não estivesse
contigo, eu já teria mordido nesse fruto do pecado, isso confesso-o.
Adoro essa espécie de beleza – la beauté du diable. Mas eu respeito
muito essas coisas. Não enganaria nunca um amigo, mesmo com sua amante,
embora tendo a certeza de que ela o enganava com meio mundo. Não faltam
mulheres por ai, que diabo! Não achas?

– Sim, são escrúpulos nobres, que eu talvez não tivesse
nas condições que você figurou, mas que sou o primeiro
a respeitar. Entretanto, no caso da Madelon, devo dizer-lhe que os seus escrúpulos
são perfeitamente descabidos. Madelon não é mais minha
amante. Passam-se agora de seis a oito dias que a não vejo nem sei
notícias dela. As nossas relações constam quase exclusivamente
destes dois atos: ela a pedir-me dinheiro e eu a mandar-lho, por uma condescendência
perfeitamente estúpida em relação a essa espécie
de gente. Por isso, meu caro Fernando, não faça você cerimônia.
Se a Madelon lhe agrada, atire-se, que nós, monsieur Tout le Monde
et moi, lhe concedemos ampla licença.

– Surpreende-me o que acabas de me dizer: surpreende-me sem que deixe de
agradar-me. Supunha eu que o colíage continuasse…

– Nunca houve colíage. Era um conhecimento de Paris, feito num cabaré
artístico, sem compromissos nem promessas: mera distração,
simples passatempo. E como tal continuou aqui. Enfim, se alguma cousa houve,
acabou-se. Entrée libre – repito.

– Ah! Muito bem; nesse caso irei saber de que negócio se trata. Desde
que não tens mais nada com ela…

– Está claro, fora tolice ter ainda escrúpulos.

Aquela conversa estragou completamente o dia de Paulino; passou-o tristonho,
apreensivo, aborrecido; não subiu para jantar e recolheu-se à
hora em que todos dormiam.

Meia hora depois, estavam os dois homens deitados, mas nenhum dormia. Fernando
pensava em Madelon, cujo conhecimento íntimo fizera naquele dia mesmo
e que o enfeitiçara com as suas cajoleries e as suas graças
felinas de viciosa parisiense, sabedora de todo esoterismo fin de siécle
do amor carnal; e Paulino, ressupino, com as mãos enlaçadas
sob a nuca, pensava dolorosamente na mulher do seu amigo, com um sentimento
misto e inexplicável, em que entravam: desgosto de si próprio,
raiva surda e indefinida, sem objeto determinado, e uma covardia mole, inerte,
consternada, como a que sentem os fatalistas diante de uma catástrofe
que pressentem próxima. E por mais que procurasse desviar para alhures
o pensamento, revia com clareza a figura séria e aberta de Fernando,
avisando-o gravemente de que Madelon o enganava e, desejoso dela, fugindo-lhe
em respeito ao amigo.

Não pôde mais. Voltou-se de borco, abraçou-se à
almofada, em cuja fronha bordara Corina o seu monograma, e, mordendo-a, chorou
raivosamente, fraco, pusilânime, infeliz, como uma criança contrariada
num capricho.

CAPÍTULO XII

A MORTE E O AMOR

O passamento do conselheiro Prestes sobreveio algumas semanas depois, podendo-se
afirmar que agonizou 15 dias.

Aquela debilidade crescente e aquele definhar sem causa, a que se referia
Corina na noite de chegada de Paulino, cerca de ano antes, explicaram-se subitamente
com a explosão, por assim dizer, de todos os sintomas de uma nefrite,
complicada com lesão cardíaca muito antiga.

A revolução de 15 de novembro entrara por muito para a agravação
desse estado mórbido. O velho ex-valido imperial, sinceramente afeiçoado
ao seu monarca, sentindo-se sem forças e sem valor moral para defendê-lo
no momento da sua queda inopinada, vendo-o partir com a família para
um exílio irrevogável, e intimamente magoado e revoltado pelo
adesismo impudente de quase todos os amigos do ex-imperante às novas
instituições, caiu numa apatia moral e física absoluta;
o estado anêmico acentuou-se, as forças foram decrescendo até
que as lesões fatais que lhe minavam o organismo revelaram-se todo
o cortejo de seus temíveis sintomas.

Foi Paulino o médico assistente. Dedicou-se ao enfermo como se dedicaria
ao próprio pai, e tais foram os seus esforços e cuidados e o
acerto de seu tratamento, que conseguiu prolongar-lhe a vida por alguns meses.
Mas o desenlace era fatal e próximo. Bem o sabia o médico e
teve de confessá-lo a Corina, a quem a doença do padrinho sinceramente
consternava.

Ultimamente já ela dormia em casa dele para constantemente velá-lo
e auxiliar a madrinha no seu penoso tratamento. Paulino fazia-lhe duas visitas
por dia. Nas duas últimas semanas, além da visita da manhã,
demorada, passava uma parte da noite à cabeceira do enfermo, desvelando-se
carinhosamente, sem fadiga, para descansar um pouco as duas mulheres, comovidas
por aquela dedicação.

Mas o pobre homem piorava sempre; a infiltração zombava dos
mais enérgicos medicamentos, que lhe agravavam ainda a fraqueza; o
edema subira das pernas às mãos; a dispnéia aumentava;
nenhum apetite. As poucas vezes em que deixava o leito para andar um pouco
e vir respirar na varanda, estendido no chaiselongue, era com imensa dificuldade,
apoiado a duas pessoas.

A casa foi tomando esse aspecto e esse cheiro terríveis de casa onde
uma vida vasqueja, próxima a extinguir-se. em uma decomposição
orgânica progressiva; em todos os rostos, a palidez e a fadiga; em todos
os olhos e em todos os gestos, a desesperança, a resignação
dolorosa e um inexprimível desejo físico de que aquilo acabe,
para descanso e alívio dos que ficam.

Já era preciso fazer quarto. Havia sempre, a qualquer hora da noite,
alguém acordado, imóvel numa poltrona, junto da cama, ou caminhando
a passadas surdas, em pontas de pés, ministrando os remédios
à luz mortuária do gás em lamparina, ao monótono
tique-taque do pêndulo.

Paulino passou algumas noites nesse piedoso encargo. Corina, quando dormia
algumas horas, era sempre vestida, no próprio quarto do doente, estendida
num canapé ou recostada numa poltrona; e o médico contemplava-a
a dormir tranqüilamente, respirando leve, com os braços frouxos,
rendidos de fadiga, e, para que melhor dormisse, aconchegava-lhe a almofada,
velava a claridade com algum objeto, abafava todos os rumores.

Uma vez, estando ele a arranjar-lhe a almofada, prestes a deslizar-lhe de
sob a cabeça, ela despertou num sobressalto nervoso, com os olhos dilatados;
e, vendo em sua frente Paulino, que não tivera tempo de escapar-se,
sorriu-lhe ternamente e, apertando-lhe as mãos com força, exclamou
com voz abafada e uma expressão inefável.

– Obrigada!

Conversavam longamente, em voz baixa, interrompendo-se com freqüência
para acudir ao enfermo, que respirava com dificuldade, o busto alto, amparado
por uma pilha de travesseiros.

Sentavam-se no canapé, muito aconchegados os corpos, para se poderem
ouvir naquele segredar cauteloso, e os seus hálitos confundiam-se,
e as mãos tocavam-se. Nenhuma referência direta aos sentimentos
que os ocupavam, um a respeito do outro; mas no muito que se diziam acerca
de terceiros, algo havia sempre, indireto e velado, de alusivo esses sentimentos.
A paixão, como planta doentia e funesta, medrava naquele ambiente de
morte, sinistro e mudo.

Quando Corina dormia, Paulino com os olhos espalhados amorosamente sobre
o seu rosto pálido e bonito, sobre o corpo sadio e esbelto, perdia-se
em cismas absurdas, em devaneios loucos… Inquiria do acaso ou da Providência
por que motivo devia haver entre ele e aquela mulher – justamente a única
que amara e amava – um muro de ferro insuperável; por que lhe era vedado
ser feliz no mundo – ignorante do crime que podia ter produzido aquela condenação…
E, na imobilidade em que se conservava, sentia impulsos violentos na vontade
para arrebatar nos braços aquela bela criatura dormente e ir gozá-la
muito longe, num recanto obscuro e não sabido, saciando assim a sua
fome instante de felicidade. Mas… Fernando? Que louco, e que miserável
era!

Desejar a mulher do seu melhor amigo, de que lhe fora como pai! Não;
não devia cobiçá-la… mas que importava cobiçá-la,
uma vez que lho não dissesse, que resistisse sempre, estoicamente,
com o coração estraçalhado, a esse desejo inconfessável?

Que martírio o seu! Quantas vezes resolvera e tentara inutilmente
fugir-lhe! Como que havia um secreto espírito maligno, dir-se-ia um
demônio escarninho e implacável, a frustrar todos os seus planos
de salvação, a destruir-lhe todas as armas de defesa, a preparar-lhe
lentamente a queda inevitável!

E enquanto o amor lhe trabalhava o espírito, a morte trabalhava o
corpo do conselheiro, entorpecido de coma, com a triste cabeça hirsuta
e pálida de asceta, apagando-se nas sombras do quarto.

Uma noite, Paulino e Corina velavam no canapé, um ao lado do outro,
conversando baixo. Mas o cansaço foi vencendo a moça; o corpo
decaiu-lhe para o lado do médico, a cabeça apoiou-se-lhe ao
ombro, as mãos tombaram no regaço; adormeceu. Paulino sentiu
um frêmito profundo de volúpia correr-lhe todo o corpo, nervo
a nervo; mas o busto de Corina, mal apoiado, inclinou-se, deslizou para os
seus joelhos; cingiu-o nos braços, acomodou no colo, com uma almofadinha,
a cabeça adorada e, trêmulo, ardente, a boca seca, alucinado
de desejos lúbricos, ficou imóvel, contemplado-lhe o sono, devorando-lhe
com os olhos ansiosos a boca entreaberta e a curva de um dos seios brancos
e redondos, que o roupão, desabotoado em uma casa, deixava entrever.

Se alguém os visse, se alguém os surpreendesse?… Mas não…

A mulher do conselheiro dormia ruidosamente no gabinete de toalete, ao lado,
prostrada de fadiga. Um momento houve em que Paulino não se pôde
conter; levou delicadamente a mão trêmula ao roupão branco,
soltou outro botão, e afastou o estofo. O seio, entrevisto antes, apareceu
todo nu e uma parte do outro… dois globos claros, pequenos, firmes… quase
virginais! E deles subia, como um incenso, um cheiro suavíssimo de
carne amorosa.

Paulino tinha a cabeça baixa e as mãos abertas no ar, num desejo
febril de beijar, de apalpar, de sentir nos lábios e nas mãos
o calor e a maciez daqueles seios lindos, daquela pele moça, cheirosa
e branca… Por fim, não pôde conter-se, afastou as mãos
com esforço, como se lhe custasse a dominá-las, e, abaixando
a cabeça sobre o rosto da moça, beijou-a na boca.

Ela estremeceu, despertou sobressaltada e, vendo fitos sobre seus olhos e
entreabertos sobre seus lábios os olhos e os lábios de Paulino,
cingiu-lhe o pescoço com os braços, atraiu-lhe a cabeça
e, estreitando-se toda ao busto dele, colou-lhe a boca à boca num beijo
quente, fundo, demorado, num beijo de perdição.

Mas o conselheiro gemeu e remexeu-se na cama; parecia pedir alguma coisa.
Paulino e Corina ergueram-se imediatamente e correram a acudir-lhe.

Dia a dia os sofrimentos do infeliz tornaram-se mais atrozes. A agonia foi
interminável, consternadora; a circulação foi se embaraçando
e entorpecendo hora a hora, lentamente o sangue ia se coagulando nas veias
à proporção que a força valvular do coração
ia diminuindo, e a dispnéia e a sufocação cresciam horrivelmente.

Era um morrer gradual. O quarto, apesar de todos os cuidados de asseio, exalava
um fétido estranho e forte, vindo da cama em que aquele organismo se
decompunha progressivamente, em vida, deixando nas roupas do leito e passando
ao ar secreções e exalações acres. Por fim, o
período do estertor começou; mas foi longo, pungentíssimo.
Aquele som cavo, áspero, entrecortado como o de um maquinismo ferrugento,
funcionando à força de pulso, e que interrompiam gorgolejos
e engulhos, enchia o quarto, os corredores, as salas, toda a casa, ouvia-se
de qualquer ponto dela. Era um rumor sinistro, impertinente, horrível!

Nos últimos dias, e sobretudo no derradeiro, as portas e janelas estavam
abertas de par em par; as visitas entravam e saiam francamente, sem serem
mais recebidas ou acompanhadas por alguém da casa. Muitas chegavam,
viam o moribundo e saíam sem que fossem percebidas. Esperava-se o desenlace
a todo momento; e esse momento não chegava.

O dr. Paulino, interrogado, não pôde determinar com precisão
a hora do passamento. Julgava que seria à meia-noite, e amanhecia mais
um dia sem que o desgraçado se houvesse libertado daquele resto miserável
de vida.

Tratou-se do enterro, do funeral e dos convites com tempo, demoradamente.
Chiquita, que a princípio chorava bastante, parecia agora resignada
ao seu infortúnio e tratava, com tristeza mas sem confusão,
dos aprestos fúnebres.

As pessoas ocupadas a encher os convites interrompiam o trabalho, noite adentro,
para tomar café, e, mais de uma vez, para correr ao quarto, supondo
que o conselheiro já houvesse expirado.

Quando ele, finalmente, extinguiu-se, às cinco e meia da madrugada,
sem uma contração de face, na qual duas grossas e longas lágrimas
escorriam dos olhos vidrados, murchos no fundo das órbitas ósseas,
tudo está pronto – enterro encomendado, convites sobrescritados, anúncios
redigidos.

Um portador foi logo levar a not&iaiacute;cia aos jornais, para ser afixada
em boletins à porta; outro foi enviado à Santa Casa para pedir
o enterro para as quatro horas da tarde, levando o atestado de óbito,
passado pelo dr. Paulino José de Castro; um terceiro, ainda, para avisar
Fernando, que se havia retirado às 11 horas da noite, receoso de deixar
a casa entregue só aos criados.

Chiquita Prestes teve um violento ataque de nervos, conquanto preparada de
há muito para aquele transe medonho. Mas passada a crise, volveu à
anterior serenidade; e era com um sorriso contrafeito e doloroso que respondia
às condolências banais das amigas e às consolações
estúpidas que lhe dirigiam.

– É o caminho de nós todos – suspirava uma velha. – Que se
lhe há de fazer? Todos nós temos de passar por isto, mais dia
menos dia. O senhor conselheiro era um santo homem e vai fazer muita falta,
decerto; mas não podemos ressuscitá-lo com as nossas lágrimas.
Não se adianta nada em chorar, minha senhora. Resigne-se com a vontade
de Deus.

Um dos amigos fumava no quarto mortuário, para evitar qualquer infecção.
Outro aspergia tudo de água fenicada, depois de bem molhadas com essa
solução anti-séptica as roupas do cadáver e as
da cama. Paulino fechou-lhe os olhos e a boca, unindo os maxilares com uma
fita preta e larga, que atou sobre o alto da cabeça. Corina, de joelhos,
com a cabeça encostada ao leito sobre um braço dobrado, chorava
ininterrompidamente, apertando uma das mãos do morto. As flamas altas
dos círios amarelejavam na claridade branca e radiante do dia recém-nascido.

Fora, na rua, ouvia-se a atividade da população mourejante:
sonidos de campainhas de bondes, pregões de quitandeiros, rolar de
carros, gritos indistintos. Num piano da vizinhança rompeu, estrepitosamente,
a polca da moda.

Na sala de jantar, tomavam café com biscoitos. A viúva já
vestida de preto, com os peitos copiosos colhidos no espartilho, sem mais
vestígios do desalinho descurado de há pouco, pronta para receber
com decência e gravidade os pêsames de pessoas de importância,
mostrando na palidez das faces moles e nas olheiras pisadas a fadiga e o pesar,
tomava melancolicamente uma chávena de leite, ouvindo com um ar distraído
as mesmas banalidades de uma das tais amigas velhas. Era uma parda esquelética,
de cabelos ralos e grisalhos, de mãos nodosas e longas, com poucos
mas vorazes dentes. Enquanto abeberava no café com leite um pedaço
de pão e acabava de mastigar o bocado anterior, dizia com voz plangente,
arrastada, insuportável de falsidade:

– Coitado do conselheiro! Tão bom homem!… Sinto tanto a morte dele
como se fosse sua irmã… Mas a gente que é que adianta em se
desesperar? A vida é assim mesmo. E a gente se resignar com a vontade
de Deus!

E atafulhava o pedaço de pão inchado e escorrente de café
com leite nas profundezas negras da grande boca, escancarada com avidez.

CAPÍTULO XIII

O CRIME

Havia três dias que Fernando partira para o Rio da Prata com o fim
de fazer contratos com os principais criadores para os fornecimentos necessários
à sua grande empresa de introdução e corte de gado platino
no Rio de Janeiro e de colocar nas praças de Montevidéu e Buenos
Aires a parte a elas reservada do capital da companhia. Era um negócio
gigantesco, no qual esperava o arrojado industrial ganhar rios de ouro.

Dona Sinhá – a quem aliás aquela viagem tentava, segundo dizia
– não acompanhou o marido aterrorizada com a passagem do mar, certa
de que enjoaria atrozmente. Fernando não insistiu no convite. Ia a
negócios e não a passeio, e por isso talvez não pudesse
proporcionar à esposa todas as diversões e recreios das duas
capitais sul-americanas, explicava. A verdade é que desejava viajar
escoteiro, sem os grandes embaraços que traz a companhia de uma senhora;
dessa forma, estaria mais livre para o trabalho como para o prazer.

Partia tranqüilo, porque Paulino prometera olhar-lhe pela casa e pela
família durante a ausência, que não devia passar de 30
dias.

O médico, quando o amigo, à mesa do jantar, lhe comunicou a
notícia da viagem e lhe fez aquele pedido, recebeu um choque tão
forte que o garfo lhe caiu dos dedos sobre a borda do prato. E pensou logo,
frio de medo, no tal demônio escarninho que às ocultas se divertia
em preparar e conduzir tranqüilamente a obra da sua perdição.

Esteve para escusar-se, para alegar impossibilidade, para inventar uma viagem
súbita, qualquer coisa… Mas compreendeu logo que seria inútil,
porque Fernando havia de insistir até conseguir resolvê-lo a
ficar em casa até o seu regresso. Calou-se, portanto, resignado, invadido
de um terror indizível, acabrunhante.

Corina, em cujos olhos passara um fugaz lampejo de júbilo, disse apenas
ao marido, com um sorriso:

– Estava eu bem servida se contasse com a companhia dele, bem sabes que pouco
para em casa: a sua clínica não lhe dá tempo para isso,
sobretudo a do belo sexo. Mas conto com a companhia de mamãe, que não
me deixará enquanto durar a tua viagem.

E voltando-se para a viúva:

– Não é verdade, mamãe?

– Talvez… – respondeu a viúva, limpando com cuidado os lábios
vermelhos, no guardanapo – se essa viagem não for muito longa, porque
eu, afinal, preciso voltar para minha casa.

Desde a missa de sétimo dia que a viúva do conselheiro Prestes
estava em casa da afilhada para fugir à fúnebre solidão
da sua, povoada pelas lembranças dolorosas do marido; ia isso já
em dez dias. No seu rosto gorducho nenhum vestígio mais da grande dor
recente, e o preto ia-lhe bem.

A idéia de que Corina não ficava sozinha tranqüilizou
bastante a Paulino, sem deixar, todavia, e sem que ele soubesse por que, de
contrariá-lo um pouco.

Encantadores aqueles três primeiros dias da ausência de Fernando.
Chiquita era uma prosa admirável; tinha uma grande verve, estava constantemente
alegre e sabia infinitas histórias, casos, anedotas de pessoas conhecidas
e da corte da ex-imperatriz, de quem tivera a alta honra de ser dama de honor.
Conversava como um rapaz, sem pruderies, abordando sem temor e com rara habilidade
os assuntos mais escabrosos. Lera todos os livros eróticos famosos
e mesmo alguns mais que de simples amor: de pornografia galante.

Na situação de Paulino e de Corina não podia haver companhia
mais perigosa e terrível que a da Chiquita Prestes: era uma espécie
de afrodisíaco moral, insinuante, perfidamente suave, mesmo porque
ela não conversava de outra coisa senão de amor e de amores.
Devia ser de uma sensaboria mortal nas conversas e reuniões do Paço,
onde não podia conversar do assunto único de que entendia e
gostava, a não ser que houvesse verdade nos antigos e tenazes boatos
de relações da camarista com alguém, porque, nesse caso,
encontraria ela no próprio Paço ensejo de exercer a sua eloqüência
especial.

"Nesta vida só há uma coisa boa e real, meus filhos: é
o amor", repetia freqüentemente aos seus dois interlocutores, que
a não contradiziam.

Mas as noites eram ainda mais agradáveis quando também estava
Santinha. Pode-se imaginar facilmente a frescura e o picante dessas confabulações.
Eram continuamente pontuadas de gritinhos e exclamações de espanto
e cortadas de risos demorados, principalmente quando o médico se afastava
para qualquer coisa, porque então contavam-se episódios ou faziam-se
comentários que na sua presença o pudor obrigava a calar.

Com a sua grande prática e a sua perspicácia em tal matéria,
percebera a viúva de há muito que havia qualquer coisa entre
a afilhada e o médico, e logo no primeiro dia que ali passou pôde
avaliar o grau de adiantamento dessa mútua inclinação.
Nada deixou perceber da sua descoberta, mas resolveu não atrapalhá-los.
Eram moços, fortes, bonitos e amavam-se: que se arranjassem! Não
seria ela quem o impediria. Ora! Não há coisa melhor na vida!
O marido? Que tinha lá isso? O que se não sabe não existe
e quem não goza é tolo. Ela gozara o quanto pudera e não
se considerava ainda nenhum peixe podre. Por que havia então de impedir
que os outros fizessem o mesmo? Ao contrário, havia de favorecer aquele
casal de pombos no que lhe fosse possível.

Tal era a moral dessa matrona e tal fora a resolução por ela
tomada em relação ao romance amoroso que a seus olhos se desenrolava.

Assim, pois, a sua presença, longe de ser um estorvo, era um estimulo
– mais um meio inventado pelo famoso diabrete invisível para perdê-lo,
pensaria Paulino, se já pensasse em alguma coisa que não fosse
morrer de amor por aquela mulher deliciosa. Mas, como era instintivamente
honesto e leal, não procurava encontrar ocasiões nem aproveitar
as que a ação combinada e misteriosa do acaso e da viúva
lhe proporcionava.

A sua situação era comparável à de um homem de
sociedade que se excede a beber num dia de grande júbilo: sabe-se ébrio,
não reage contra o seu estado, porém na inconsciência
dos atos que pratica não lhe escapa uma palavra incoveniente, nem um
gesto obsceno. Inteiramente embriagado de amor, excitado pelas conversas da
viúva, guardava Paulino, entretanto, a sua correção de
cavalheiro e não pensava em aproveitar-se da situação
propícia em que se encontrava: o demoninho que o perseguia ainda tinha
que suar um pouco mais os chavelhos para cantar vitória.

Quanto a Corina, o seu trabalho estava concluído: Santinha e Chiquita
haviam tudo preparado; aquela, de longa data, com instigações
diretas e conselhos provectos; esta com a educação que dera
à filha adotiva e agora com a sua condescendente cumplicidade indireta.

Da última vez que a mulher do Viriato lá estivera, tinha-lhe
dito:

– É agora, menina. Atira-lhe o grande golpe: é infalível,
hás de ver.

Uma tarde, ao sentar-se à mesa para jantar, notou o médico
a ausência da viúva, e como visse Corina servir a sopa perguntou
por ela.

Fora a casa para arejá-la e reunir uns papéis do marido.

– E demora-se?

– Três ou quatro dias apenas – respondeu Corina, com um sorriso e um
olhar em que louquejava uma alegria irreprimível.

O jantar correu frio; pouco falaram, constrangidos.

– Que falta nos faz mamãe, não é?

– Realmente, se ela é tão alegre, tão comunicativa!

– Uma verdadeira criança. Sempre a conheci assim.

Depois do jantar entretiveram-se, como de costume, em passear longamente
na chácara, mas não de braço, desta vez, por conservar-se
Paulino sempre um pouco afastado. à noite fizeram música; cantaram
um dueto do Fausto, conversaram banalidades…

Paulino estava visivelmente agitado, trabalhado pelos seus nervos. Sentia-se
febril, tinha arrepios estranhos e uma espécie de languidez invencível
nos braços, uma vontade de espreguiçar-se, como em geral sucede
quando a gente sente aproximar-se um grande acontecimento desejado, mas que
se ignora como há de vir, que forma há de ter. Sentia-se mal.

Às nove horas Corina, que na volta da chácara se havia queixado
de um começo de enxaqueca, disse-lhe que se sentia indisposta, com
dor de cabeça. Paulino aconselhou-lhe que tomasse um pouco de chá
de folhas de laranjeira com umas gotas de água de melissa e se recolhesse,
e despediu-se, indo para o belvedere. Mas não se despiu nem pensou
em deitar-se, dispensando Os serviços do Alfred.

Passeou pela sala, fumou, folheou revistas, livros, álbuns. Pensou
em descer para a cidade, à toa. Mas lembrou-se de que Corina estava
adoentada: era imprudente deixá-la só. E se fosse saber se estava
melhor? Que idéia! Mas não sossegava.

Veio para a janela, buscando ver se havia luz no quarto da moça; mas
o arvoredo encobria aquela parte da casa. Deixou-se estar debruçado,
respirando o ar fresco da noite, muito sombria. O pequeno relógio despertador
bateu 11 pancadas no quarto de dormir.

– Tão cedo ainda! – exclamou o médico, com desgosto.

Mas pareceu-lhe que uma luz vinha subindo do chalé para o belvedere;
e não se enganava. Um vulto, com uma lanterna, chegava à porta.

– Quem é? – perguntou de cima, debruçando-se todo.

– Sou eu, seu doutor – respondeu a voz de Maurícia. – Vim chamar vosmecê,
porque sinhazinha está muito incomodada.

– Já vou.

E Paulino desceu logo, apanhando um boné e esquecendo-se de fechar
o bico ardente do gás. Maurícia precedia-o, alumiando. "Meu
Deus, que será?", perguntava-se Paulino, muito angustiado, temendo
alguma coisa grave. Entraram pela cozinha, sem ruído. A porta do quarto
estava entreaberta, vendo-se dentro uma luz branda e dormente. Paulino parou
à porta… hesitante; mas Maurícia dizia:

– Está aí seu doutor, Sinhá; – e ele entrou.

Corina estava deitada sobre a cama intacta, mas já em toalete de dormir
– um roupão de cambraia branca, guarnecido de rendas, meio decote,
mangas soltas e abertas, descobrindo os braços. Tinha sobre as pernas
uma colcha de lã, desdobrada a meio. Estava com o tronco apoiado às
almofadas, e o rosto voltado para numa atitude de espera. Junto da mesa de
cabeceira havia cadelinha baixa e dourada. Paulino deixou-se cair sentado
ela, com um quebranto nas pernas.

– Então, que sente? Que tem?

– É a minha enxaqueca, penso eu. Estala-me a cabeça. Vomitei
o jantar. Não posso dormir, estou nervosa…

Aos dedos enfebrecidos do médico o braço da moça pareceu
gélido e o pulso quase apagado, a testa igualmente fria. Acreditou
que era de fato uma nevralgia violenta do cérebro, com depressão
da temperatura.

– Vai melhorar já; não é nada. Tem ai antipirina inglesa?
Se não tem, vou buscar lá acima.

– Tenho sim, mas espere um pouco. Talvez eu melhore sem isso. Não
me faria bem uma xícara de café bem forte e bem quente9

– Sim, talvez.

Corina mandou a criada fazer o café. Maurícia saiu encostando
a porta.

Estavam sós; ele, sentado na cadeira baixa, com a cabeça próxima
da da moça, que o olhava, sorrindo, com seus grandes olhos úmidos;
tinha entre as suas mãos uma das dela e não dizia uma palavra,
receoso de que a primeira que lhe saísse dos lábios fosse a
única que não devia nem queria dizer.

– Não se tinha deitado ainda quando a rapariga foi chamá-lo,
decerto, visto que veio tão depressa – murmurou ela.

– Não; estava à janela, tal como daqui saíra.

– E em que pensava?

– Eu? Em nada.

– Mentiroso! Pensava em mim, não negue: pensava em mim.

– Pois bem… pensava… em ti! – murmurou ele com voz sumida.

Corina com o braço livre tomou-lhe a cabeça, achegou-a ao seio
ofegante e beijou-a nos cabelos, sem dizer nada, conservando-a assim alguns
momentos. Todo o cheiro delicioso daquele seio mal velado, estuante de desejo,
subiu à cabeça do médico, enchendo-a de uma luz suave,
gradualmente mais clara, mais alucinante de alegria, como a alvorada de um
dia primaveril invadindo um moital espesso e acordando a passarada gárrula.
Era a loucura da felicidade… Quantos beijos se deram, ardentes, soltos,
nos olhos, nos lábios, nas faces, nas mãos, nos cabelos!

– Espera! – disse de repente Corina. – É a rapariga.

Maurícia entrava com uma chávena de café fumegante numa
bandeja.

– Olha, Maurícia, podes deixar isso aí e vai descansar. Chamar-te-ei
quando seu doutor tiver de sair.

A criada retirou-se, dizendo que se Sinhá precisasse era só
chamar, porque ela ia cochilar um bocado na sala de jantar, numa cadeira.

Quando a viu sair, Corina sentou-se na otomana de damasco que estava à
direita do leito, atirando para as costas com um gesto da cabeça os
cabelos soltos, apenas presos por uma fita, ao meio. Paulino ajoelhara-se,
como impelido por uma força estranha, e, passando os braços
na cintura da moça, com o peito unido aos seus joelhos, ergueu para
ela a cabeça e entrou a murmurar, como em uma oração,
três, dez, vinte, cem vezes:

– Amo-te! Amo-te! Amo-te! Amo-te!

A porta bateu de leve, impelida pela aragem, vinda de fora. Corina correu
a fechá-la pisando com os pés nus o tapete persa do soalho,
alto e macio como um tabuleiro de relva.

Quando voltava da porta viu sobre o mármore da mesinha da cabeceira
a pequena bandeja de charão com a xícara de café.

– Olha o meu remédio! – exclamou, rindo. Vamos tomá-lo de sociedade?

E os dois tomaram o café, ora aos goles, um, ora outro; e ela, quando
bebeu o último trago, limpou os lábios úmidos ao lenço
do amante, tirando-lho do bolso externo do paletó.

Corina estava de pé, com os cabelos meio soltos, corada, risonha,
resplandecente nas suas vestes brancas, banhadas em cheio pela luz do gás,
na nitidez dos seus dentes, no viço triunfal da sua mocidade… Paulino,
fremente, a garganta e a boca ressequidas, os olhos dilatados, ardentes de
um fogo sombrio, abraçou-a a plenos braços, perdidamente, num
ímpeto de molas de aço, e, tendo-a unida ao peito, quase suspensa
do chão, tentava levá-la para a otomana; mas a moça,
pressentindo-lhe a intenção, e, temendo àquela idéia,
de uma repugnância instintiva, de um como terror subitâneo, enteiriçou-se
num violento esforço de todos os músculos e, partindo a cadeia
formada pelos braços do médico, soltou-se, fugiu-lhe, foi refugiar-se
num canto do aposento, caindo sobre um pufe de seda. E murmurava, cobrindo
o rosto com as mãos:

– Não, não, isso não, Paulino… Não posso, não
quero…

Mas Paulino estava de tal modo excitado, louco de paixão e desejos,
que naquela ocasião não recuaria nem mesmo diante da sua própria
consciência corporificada num anjo vingador, empunhando uma espada de
chamas.

Ele foi ajoelhar-se-lhe aos pés, cobriu-os de beijos, prostrado como
um maometano que oscula o limiar da mesquita. Depois, debruçou-se-lhe
ao regaço, com a cabeça erguida para o seu rosto, que empalidecia,
prendendo-lhe as mãos, falando-lhe baixinho, longamente, ardentemente.

Corina, que havia preparado com calma a ocasião e o cenário
da própria queda, sem uma revolta de pudor, numa absorção
de toda a sua inteligência e de toda a sua vontade no desejo apaixonado
de entregar-se àquele homem, de cujo amor sentia o calor e o perfume
capitoso… chegando o momento desejado, previsto, sonhado… sentia acordar
violentamente em todo o seu ser, no fundo de si mesma, uma força não
sabida, que a requeimava intimamente, e lhe dava o desejo imperioso de fugir
ao contato daquele homem, como se fora um monstro. Era o pudor, era o respeito
de si própria, que despertava imperioso, forte, intato, numa revolta
soberba. Todas as ousadias e petulâncias da coquete desapareciam ao
primeiro contato brutal do homem que não era o companheiro que a lei
lhe dera e a cujo corpo a convivência longa a habituara; e uma vergonha
imensa, amargurada, enchia-a de pejo, de raiva, de lástima…

Mas Paulino sentara-se na otomana, ao seu lado; tomou-lhe a formosa cabeça,
pousou-a sobre a sua larga espádua e pegou de beijar-lhe levemente,
docemente, os olhos cerrados, as faces pálidas, os lábios frios
e trêmulos. Não sei que frase feliz, de fino espírito,
murmurou Paulino, que a moça sorriu-se e volveu para ele os olhos,
exclamando um oh! meio de censura, meio de aprovação.

Paulino, então, aproveitando o ensejo, ergueu-lhe o corpo macio, docemente
cálido, sob as cambraias finas, e sentou-a sobre os joelhos; estreitou-lhe
o busto, em que fremiam os últimos gestos de resistência, e colou-lhe
a boca à boca.

Depois as mãos de Paulino, impacientes, férvidas, encontraram
os seios tépidos e túrgidos da moça e enlouqueceram.
Ela fez um movimento brusco para fugir-lhe…

Com esse movimento, o corpo de Corina deslizou dos joelhos de Paulino; este,
para ampará-lo, teve de acompanhá-lo, enlaçando-o fortemente,
e rolaram para o tapete, abraçados, unidos, fundindo almas e corpos
num só beijo, num só gemido, num só delíquio.

CAPÍTULO XIV

O DESPERTAR

No dia seguinte, às nove horas, Paulino, tendo-se recolhido às
quatro da madrugada, foi saber, como era natural em um médico solicito,
como a doente passara a noite.

Estava deitada, com os olhos cerrados; mas o cheiro de águas de toucador
que enchia o quarto, já bastante claro, indicava que Corina já
havia feito a sua primeira toalete, o que também se reconhecia no alinho
dos cabelos e na frescura da pele: preparara-se para recebê-lo.

Maurícia, que introduzira o médico, ainda se conservava no
aposento. Com a onda mais forte de luz que saltou de uma janela descerrada
pela criada, Corina abriu os olhos e mostrou uma ligeira surpresa: vendo o
médico; mas o que neles havia realmente não era surpresa: era
alegria, alegria! Uma alegria infinita, inefável, completa capaz de
todas as loucuras.

– Como passou a noite a minha gentil doente? – e estendeu-lhe a mão.

– Melhor, doutor, muito melhor – respondeu ela com uma voz propositalmente
enfraquecida, mas que lhe saía de um sorriso delicioso, todo pérolas
e rosas; e, dissimuladamente, para que Maurícia não visse, estreitou
e cobriu de beijos a mão do médico. Dai a momentos a criada
saía para ir buscar o primeiro almoço.

Paulino sentou-se no leito e houve, logo, para abrir o dia, um renhido tiroteio
de beijos.

– Sabes? Eu tenho um plano soberbo para hoje – disse Corina. – Ouve. Continuo
doente e por isso não saio do quarto; e tu ficas para tratar-me. Almoçaremos
e jantaremos aqui, em tète-a-tète… Sim? Sim? – E, segurando-o
pelas espáduas, beijava-lhe em cheio, a plenos lábios, os olhos
e a boca, inebriando-o, seduzindo-o.

– Mas, meu amor, todo o dia não posso… E os meus clientes? E o consultório?

– E se tu estivesses doente? Hem? Não os deixavas do mesmo modo?

– Mas não estou; e o meu dever é…

– O teu dever é amar-me; entendeste? – e beijava-o sempre, sofregamente.

Mas Paulino defendia-se; apesar da sua profunda e irremediável ebriez,
não podia conformar-se à idéia de faltar aos seus deveres.

– Olha, meu amor, não vês que daria muito na vista passar o
dia inteiro no teu quarto?

Corina refletiu um momento, e volveu:

– Tens razão; precisamos ter toda a cautela. Modifico o meu plano.
Almoçamos juntos; depois desces, corres os teus doentes e voltas. Jantamos;
às nove horas sai para o belvedere e voltas às 11, sem que te
vejam, para os meus braços. Desta forma ficarão salvas as aparências.

Paulino aceitou, sem nada objetar. Era singular a facilidade com que começava
a sua nova existência de embustes e dissimulações, sem
experimentar repugnância pelo papel que lhe cabia desempenhar, por seu
turno, na velha comédia do adultério.

Estava alegre, expansivo, leve; sentia-se um homem novo, forte, são,
ávido de vida. Tinha a sensação geral de uma estréia.

Como que nascia moralmente, quase que fisicamente também. Dir-se-ia
que com a posse da mulher amada o seu corpo adquirira a parte que lhe faltava
para completar-se, e a sua alma a faculdade única que ainda não
tinha. Aquele amor era uma integração. Começava a sentir
a sua razão de ser na existência do universo; a sua presença
sobre a Terra e a sua função na humanidade explicavam-se. Amava
e era amado! Esse fato definia o indefinível, positivava o incognoscível;
explicava tudo – ele, o mundo, a vida…

As emoções morais e o dispêndio nervoso da noite anterior,
longe de fatigá-lo, haviam-no tonificado, comunicando-lhe ao sangue
uma frescura, aos músculos um vigor e aos nervos uma paz que não
conhecera nunca. Sentia-se viver e sentia-o com um prazer inefável.

O almoço em tète-á-tète, servido sobre uma pequena
mesa, ali mesmo, no aposento, foi uma delícia.

As poucas horas que passou na cidade pareceram-lhe intermináveis.
Voltou ansioso, trazendo à sua amada as mais belas violetas que pôde
encontrar. Para não despertar suspeitas, jantaram na sala, mas ainda
assim em perfeita intimidade. Tocavam-se com os pés, sob a mesa, quando
havia algum criado, e beijavam-se mutuamente nas mãos, quando estavam
sós. Tinham necessidade de tocar-se, de sentir-se unidos fisicamente,
a todo instante.

Paulino não tinha outro pensamento senão aquela mulher; mas
tinha-o exclusivo e absorvente, não lhe deixando tempo para nenhuma
outra idéia. Era uma perfeita obsessão. Quando a não
via, desejava-a com impaciência iniludível, em uma ânsia
insuportável; e quando lhe estava junto precisava dizer-lhe, a todos
os instantes e por todos os modos, que a amava que a amava desde o primeiro
dia em que a vira. E repetia-lhe a miúdo, seriamente, com voz grave:

– Olha, Corina, cedendo a este amor culpado, a primeira coisa que fiz foi
renunciar à vida. Ela pertence-te; dei-ta com o meu primeiro beijo.
No dia em que o teu amor e a minha vida tiverem de separar-se – mato-me porque
o teu amor e a minha vida formam um ser único… Ouviste bem?

Corina, porém, acolhia essas palavras sérias, quase tristes,
com o seu ar inquieto de borboleta, sem lhes ponderar o sentido, toda entregue
à sua felicidade física, sentindo o seu temperamento cálido
e sensual satisfeito amplamente.

Com o fim de afastar suspeitas, encontravam-se fora de casa, para se possuírem
em liberdade. A boa dona Miquelina foi aproveitada. Era na sua alcova pobre,
na sua velha cama poluída por amores de ocasião e pelo dinheiro
do aluguel, que se amavam mais vezes. Mas, por fim, à alma caprichosa
e à fantasia trêfega de Corina aquela pobreza torpe repugnou;
pediu ao amante coisa melhor, mais digna deles. Paulino, que só queria
a ela, ao seu corpo olímpico, pouco lhe importando a moldura, e a quem
aquele retiro calmo e seguro encantava, não cedeu sem pesar á
vontade de Corina. Propôs-lhe passarem uma noite no Jardim Botânico,
num dos pavilhões do Campesino, o famoso restaurante dos encontros
galantes.

Ela diria em casa que ia dormir com a madrinha; ele avisaria o Alfred que
passaria a noite chez Madelon e, assim, teriam toda a tarde e noite para se
amarem livremente, em sossego, em pleno campo. Corina aceitou a idéia
com palmas e gritinhos de alegria e pagou-lha com beijos sem conta.

Às cinco horas da tarde Paulino entrava no largo do Machado em um
cupê de estores baixados, no qual o esperava Corina; entrou rapidamente,
batendo com a portinhola, com cuidado. E o cupê misterioso rodou velozmente
para o Jardim. à porta deste apearam-se; e Paulino despediu o carro,
dizendo ao cocheiro que voltasse a buscá-los no dia seguinte às
oito horas da manhã, devendo esperá-los no mesmo ponto.

Entraram; passearam longamente, ela apoiada com languidez ao braço
dele, amolentados ambos pela tristeza da hora; e os seus vultos unidos perdiam-se
longe, pequeninos e nítidos, no fim da rua admirável de palmeiras,
inteiramente deserta. Mas anoitecia e o apetite apertava. Retrocederam, entraram
no jardinete do Campesino e, tendo Paulino mandado servir o jantar, foram
esperá-lo no pequeno pavilhão alugado para aquele dia.

Corina, com os seus hábitos de coquetismo e de asseio, havia arrumado
e levado numa malinha de couro da Rússia e fechos de níquel
um necessário de toalete e alguns arranjos para a noite. Entrando no
quarto, cujas quatro janelas estavam abertas, depôs a maleta, o leque
e a sombrinha sobre a cômoda, em frente à cama larga, feita de
fresco, com o seu cortinado de filó, muito encardido das dejeções
das moscas, enfeitado com uns laços de fita desbotados.

A mesa para o jantar estava pronta; sobre a toalha branca dois talheres,
duas baterias de copos de várias cores, e os hors d’oeuvre – azeitonas
brancas enormes, manteiga fresca, anchois, rabanetes.

– Ah! Como se está bem aqui! Como é chique! Isto sim; não
é como aquela pocilga da Miquelina.

Daí a pouco entrava um garçom corretamente encasacado. Foi
uma lembrança feliz de Paulino a casaca e a gravata branca do garçom,
porque Corina ficou encantada com esse detalhe chique, pensando logo em Paris.

O jantar, cujo menu Paulino escolhera com arte, foi um encanto. Corina estava
radiante, e nos seus lábios róseos sumia-se facilmente, entre
risos, o âmbar líquido do champanha, que os lábios de
Paulino vinham às vezes disputar-lhe, sorvendo-o avidamente.

Findo o jantar e para que o criado retirasse o serviço de mesa e arrumasse
o quarto, foram dar um passeio pela rua deserta ele com o charuto aceso, ela,
meio aturdida pelos vinhos, com um quebranto lânguido no corpo e uma
alegria excessiva na alma, rindo a propósito de tudo e obrigando Paulino
a parar, para beijá-lo ali, ao fresco da noite silenciosa, à
luz amortecida dos astros. Ao fim de meia hora voltaram.

O quarto estava em ordem, apresentando um aspecto de limpeza na banalidade
dos seus velhos trastes de mogno. No chão, ao lado do jarro e do balde
de folha, que completavam o serviço de porcelana do toucador, havia
um bidê de folha pintada: muitas toalhas, num cabide, já puídas
do uso, cheirando a sabão ordinário. Sobre o tapete esfarripado
uma escarradeira de louça partida. Um bafio de mofo; o gás ardia
com uma chama amarelada e piscante nos dois globos poentos das arandelas.

– Que luz forte! – dissera Corina, ao entrar.

Paulino fechou um dos bicos, deu volta à chave da porta, encostou
as venezianas e, voltando-se para Corina, que se havia sentado, fatigada,
numa cadeira, exclamou:

– Pronto. Podemos deitar-nos.

– Tão cedo! – exclamou Corina relanceando o olhar pelo quarto, e acrescentou:

– Tenho vergonha de me despir à tua vista… Tenho os meus arranjos
a fazer antes de deitar-me e falta-me tanta coisa! Felizmente eu trouxe algumas.

Tirou da maleta o necessário de toalete e deste – escovas, sabonete,
um espelho, pó de arroz, um vidro de sais, alfinetes, grampos; tirou
depois uma camisa de seda cor-de-rosa, de cabeção e ombreiras
de renda, um par de meias pretas e outros objetos miúdos.

Paulino ofereceu-se para femme de chambre; ela aceitou, com a condição
de que ele sairia por alguns minutos quando a tivesse despido. E ele, com
carinho e sem jeito, foi despojando-a aos poucos das roupas, desacolchetando,
desabotoando, desamarrando; depois ajoelhou-se para tirar-lhe as meias e cobrir-lhe
de beijos os pés. Mas a última saia caíra e Corina fê-lo
sair à força.

Quando ele pôde voltar, ao fim de dez minutos, encontrou-a saltando
para cima da cama, com a camisa rósea de seda apenas sobre o corpo,
dando um gritinho de pudor faceiro. O ar estava impregnado de cheiros finos
e capitosos, o chão molhado, uma toalha caída.

Paulino atirou-se para a moça, e, tomando-a nos braços, fê-la
descer da cama. Estava louco de paixão; as mãos ardiam-lhe em
febre; os lábios estavam entreabertos, secos; os olhos, úmidos
de desejo, pareciam maiores… Passou as mãos rapidamente nas ombreiras
de renda da camisa e, puxando-a para baixo, desnudou as formas admiráveis
da amante. Corina deu um grito, e, interdita, ia a saltar novamente para a
cama, para ocultar a nudez nos lençóis, quando viu Paulino ajoelhar-se
diante dela, suplicando-lhe piedade com as mãos postas. Ficou, sorriu-se,
desvanecida por aquela adoração, e, endireitando o corpo, empinando
os seios pequenos e firmes, vitoriosa na sua nudez de ninfa em meio de um
bosque nemoroso, exclamou para o amante, cerrando os olhos languidamente:

– Sou tua, tua! Aqui me tens!

E esses dias de ébriez e essas noites de loucura sucediam-se com uma
rapidez extraordinária, como simples minutos, assinalados de episódios
novos, de incidentes encantadores.

Uma noite Corina exigiu de Paulino recebê-la no belvedere. O médico
mandou o criado fazer uma comissão qualquer fora da cidade. às
11 horas, Corina chegava, envolvida numa mantilha preta e subia as escadas,
encantada com aquele cenário romanesco. Foi uma das noites mais agradáveis
dos seus amores ocultos.

Passaram-se nesse embevecimento uma semana, duas, três… Fernando
não escrevia; telegrafava, apenas, de vez em quando, anunciando à
esposa estar de saúde. Corina, por uma intuição sutil,
aliás comum nas mulheres, não falava desses telegramas ao amante
e respondia logo ao marido para tranqüilizá-lo assegurando-lhe
não haver novidade em casa.

Nenhuma referência direta faziam a Fernando nas suas conversas, como
se a sua ausência fosse definitiva. Uma vez, apenas, em que o seu nome
escapou aos lábios dela, Paulino disse com voz um pouco trêmula:

– Não deve estar longe o dia da volta…

Corina disse que não, que ele se demoraria ainda. Mas o médico
recebeu dele também um telegrama anunciando o vapor em que embarcaria
e soube, assim, do dia em que o amigo devia chegar.

Um frenesi apoderou-se dele, então. Aproveitou avidamente os últimos
dias, procurando não perder uma hora da companhia da amante devorando-a
de carícias delirantes, quase brutais, como esses infelizes que, sabendo-se
destinados a um fim próximo, aproveitam os últimos dias de vida
para gozar sofregamente.

Na penúltima noite – Fernando devia chegar dali a dois dias -, Paulino,
tendo a amante seminua sobre os joelhos, disse-lhe, com voz firme porém
melancólica e uma sombra pesando-lhe sobre a fronte:

– Fernando chega depois de amanhã. Precisamos assentar uma decisão
sobre o que tenhamos de fazer. Que resolves-te?

– A respeito de que? – inquiriu Corina com ar admirado.

– A respeito da nossa situação.

– Nada; espero que ele chegue.

– Ah! – fez Paulino; e um ligeiro sorriso amargo acompanhou essa exclamativa
seca. – Pois, minha querida, é preciso tomar um partido qualquer. Eu
não posso apertar nunca mais a mão desse homem; creio que nem
mesmo poderia encará-lo. Ele é senhor da minha vida e receio
muito dizer-lho e entregar-lha, logo que ele chegue. Parece que só
há uma coisa a fazer antes desse dia.

– Qual? – perguntou Corina, com um receio palpitante nos olhos.

– Partirmos para muito longe, para a Europa, deixando-lhe numa carta a confissão
do nosso crime.

– Isso não! acudiu Corina.

– Por quê?

– Porque eu ficaria desonrada; porque seria um escândalo medonho! Porque
as nossas relações ficariam públicas e meu nome coberto
de lama. E fugir para que? Se tivermos cautela bastante, Fernando, com a confiança
absoluta que deposita em ti, não suspeitará nunca dos nossos
amores. E, mais tarde, faremos todos três uma viagem à Europa.
Ah! Como seria bom! Como nos divertiríamos!

Paulino ouvia-a pensativo e em silêncio. Por fim, perguntou-lhe ainda:

– E então essa a tua resposta? Não queres fugir comigo amanhã?

– Oh! Filho, para que? Estás louco? – respondeu ela com um sincero
espanto na voz e no rosto. E acrescentou:

– Esse golpe mataria Fernando. Tu mesmo me disseste que qualquer emoção
forte pode acabar com ele. Seria mais um crime, e inútil.

Paulino, que empalidecera ouvindo essas palavras, fechou a conversa a tal
respeito com estas poucas frases, ditas num tom de quem acaba de tomar uma
decisão inabalável, que não confessa:

– Tens razão. O que eu te propus era insensato: perdoa-me.

Toda a manhã e parte da tarde do dia seguinte passou-as Paulino arrumando
as malas, auxiliado por Alfred, a quem comunicou, obrigando-o a jurar segredo,
que iam partir para a Europa, por Santos, mas depois de alguns dias de estada
em São Paulo.

Alfred recebeu a notícia com uma satisfação vivíssima:
ia pisar de novo o asfalto do seu querido bulevar! Ia rever o Sena, o arco
de triunfo da Estrela, a coluna Vendôme, o Pont Neufi Ia beijar de novo
a sua querida Ninette, que deixara femme de chambre de uma atriz do Vaudeville!

– Saperlipopette! Que je suis content! – exclamava ele, arrumando com arte
e cuidado extremo as roupas do amo.

Paulino, ponderando as dificuldades de ocultar a Corina e aos fâmulos
a sua partida por causa da saída das malas, avisou àquela que
ia passar uns dias em São Paulo, para ir se afazendo aos poucos à
idéia de ver Fernando e de continuar a morar ali. Depois de 15 ou 20
dias voltaria, e o seus amores continuariam, ocultos e felizes, como desejava
e propunha a amante – prometeu-lhe. Ela acreditou-o.

Para que Fernando não estranhasse aquela partida súbita, exatamente
no dia da sua chegada, deixou Paulino a Corina a seguinte carta: "Dona
Sinhá. Um chamado urgente e a que não posso esquivar-me obriga-me
a partir amanhã para São Paulo, onde pouco me demorarei. Peço
desculpar-me junto de Fernando, a quem abraço cordialmente em espírito.
Faço-lhe esta comunicação por este meio e não
verbalmente visto o adiantado da hora em que recebi o chamado e não
querer incomodá-la tão tarde. Paulino."

A última noite passou-a o médico com a amante no quarto desta;
às três horas da madrugada voltou para o belvedere, onde, com
grande surpresa, encontrou já desperto o criado, que não pôde
reprimir um sorriso malicioso vendo o amo recolher-se àquela hora.

Três horas depois, enquanto Corina dormia profundamente, prostrada
de fadiga, sonhando sonhos cor-de-rosa, Paulino, encolhido a um canto de vagão,
com os braços cruzados e sombrio o aspecto, seguia para a capital paulista.

CAPÍTULO XV

PARA A MORTE

Paulino tinha resolvido matar-se.

Quando o resolveu? Em que momento se lhe formou no cérebro essa idéia?
Quando se transformou ela em volição, e esta em intenção
deliberada? Não poderia dizê-lo, não o sabia. A idéia
do suicídio surgiu-lhe no pensamento e dele assenhoreou-se, como um
hóspede esperado, com o qual se conta, que entra e ocupa o aposento
que se lhe havia preparado. Ele vira-a quando Corina recusou fugir com ele
para a Europa, antes que Fernando chegasse.

A fuga era uma infâmia que decorria naturalmente, logicamente da primeira,
do próprio adultério, e que encontraria atenuantes na presunção
do muito amor, da paixão veemente que os unia no crime, de modo irresistível,
e na estrepitosa publicidade, na escandalosa audácia com que, fugindo
juntos, a confessavam e assumiam a responsabilidade do ato ilícito
e das suas conseqüências.

Aquela recusa foi um jato súbito e copioso de luz no cérebro
do médico e que o fez ver claramente coisas tremendas, ocultas na sombra
até então. Dessas coisas, destacadas fortemente em arestas e
contornos duros, na luz crua daquela revelação, as capitais
eram – que Corina não o amava, que se lhe entregara como se entregaria
a outro qualquer nas suas condições, como se havia de entregar,
depois dele, a outros mais, por volubilidade de caráter e perversão
moral, por um coquetismo pernicioso, produto da educação e do
meio, a que o seu temperamento se adaptara perfeitamente; que ele, Paulino,
era um homem desonrado, um infame vulgar, que, por lascívia grosseira,
seduz e goza a mulher do amigo, aproveitando bem a sua ausência; e,
por último, que devia matar-se.

E de todas essas coisas e outras que então descobriu foi essa última
a que ficou, a que permaneceu, nítida, simples, assente. Não
precisou discuti-la. Era evidente, irrecusável, boa, necessária
como o sol.

Se Corina o amasse e o seguisse com cega obediência, ele a arrebataria
ao marido à vista de toda a sociedade, francamente, audazmente, arrostando
todas as conseqüências do seu ato, cuja infâmia o amor explicaria,
se não justificasse.

Mas havia-se enganado: aquela mulher não o amava, não o preferia
ao marido, não queria o amante senão na comodidade vil do adultério,
na tepidez do ménage à trois. E esse erro dele era irreparável.

No abismo a que se havia precipitado, cego de paixão carnal, esperara
sempre, embora vagamente, encontrar um arbusto resistente, uma ossatura de
raiz descoberta, uma saliência de solo a que pudesse agarrar-se, em
que pudesse salvar a honra e, portanto, a vida. Mas nada encontrara. Corina
era uma adúltera vulgar, que, sensual e medrosa, preferindo tudo ao
escândalo e aos incômodos da fuga, convidava-o covardemente às
baixezas vilíssimas da traição cotidiana, de todos os
instantes, sob o teto conjugal, medrando tranqüila à sombra da
confiança do marido enganado. Que surpresa e que nojo! Só lhe
restava um partido – matar-se.

Isso ele sentiu, isso viu repentinamente, de golpe, sem raciocinar, por uma
espécie de instinto moral. Dir-se-ia que aquela resolução
tremenda já a havia ele de há muito tomado e que ela apenas
aguardava, completa e pronta, o momento de passar ao estado de fato.

Agora, encostado a um recanto do vagão, braços cruzados, olhos
cerrados, aspecto calmo de viajante despreocupado, que a trepidação
do trem adormece: agora, que segue rapidamente para a morte, como para uma
estação terminal a que um dever urgente e iniludível
o impelisse, é que ele reconhece, com espanto, que não amava
aquela mulher encantadora senão com a carne, sensualmente, fisicamente
apenas. E a prova mais convincente é que, depois de desenganado acerca
dos sentimentos dela por ele, depois mesmo de haver resolvido matar-se, ainda
a beijou, ainda lhe pediu e passou com ela uma noite de amor, a derradeira,
que não foi das menos ardentes.

Não, se a amasse com a alma, com o coração, espiritualmente,
não teria forças nem desejos de gozar-lhe o corpo, de cevar
os seus sentidos insaciáveis nas suas carnes deliciosas de calor, de
perfume e de maciez; porque não se vê partir-se um ideal, não
se pode vê-lo desfazer-se em pó sem um arrancamento doloroso
de toda a alma, sem se sentir que esta se partiu igualmente, que abriu água
e vai afundar-se em breve no pélago sombrio do desespero, no silêncio
do desamparo.

Amor deve ser algo de mais sublime, de mais casto e de mais doloroso.

O que fora então aquilo? Paixão, embriaguez dos sentidos, loucura
erótica, amor carnal… tudo menos esse sentimento misto espiritual
e corporal, a um tempo ideal e sensual, voluptuoso e casto, todo de alma e
de beijos, em que dois seres de sexos diferentes se encontram, se fundem,
se completam e se unificam; esse sentimento que ele não experimentara
ainda, mas que compreendia perfeitamente e sabia existir tão real e
verdadeiro como nas ficções e nas tradições clássicas
e românticas de Romeu e Julieta, de Leandro e Hero, de Heloisa e Abelíardo,
de Paulo e Virgínia, de Werther e Carlota, de Laura e Petrarca, de
Paolo e Francesca…

A imaginação alindava, embrincava, de certo, essas ligações,
tocando-as delicadamente de sonho; mas não lhes alterava a natureza,
não lhes aumentava a intensidade afetiva. Ele sentia-se capaz de iguais
extremos, de emparelhar com esses amantes célebres na pujança
e na dedicação do amor, de amar com sublimidade igual.

Mas o acaso fê-lo perder-se por um desvio, afastou-o da estrada real
da felicidade para levá-lo a colher num moital de atalho uma bela flor
venenosa, a cujo perfume anestesiante adormeceu embriagado, crendo-se feliz.

E então uma idéia amarga lhe veio, que lhe debuchou nos lábios
a sombra de um sorriso dolorido: Ia matar-se por uma mulher que não
amava? Mas logo refletiu melhor e retificou o pensamento molesto: não
era por ela que se matava; mas por ele próprio, porque se havia desonrado
fazendo a desonra do seu melhor amigo, do seu protetor, do homem que tinha
por ele o amor e a confiança de um pai, e porque não queria
sobreviver a essas duas desonras.

E quão melhor não era isso não o amando Corina que se
ela o amasse? Ah! Se ela o amasse, e se ele a amasse, como lhe seria penoso,
difícil, torturante ter de matar-se! Que idéia medonha, sobre-humana
de horridez, e da morte em pleno e perfeito amor! Mas, felizmente, não
se amavam; desejaram-se, desejavam-se talvez ainda, na atração
mútua dos seus temperamentos tropicais, e era tudo…

Ele podia morrer sem mágoa, sem pena, sem desespero; triste, de certo,
da tristeza insondável e lúgubre dos grandes desiludidos, mas
sereno e até, relativamente, satisfeito – satisfeito por cumprir o
dever e não prejudicar a ninguém, cumprindo-o.

Caminhava para o suicídio serenamente, com a resignação
corajosa do soldado que, prisioneiro do inimigo implacável, vai ser
passado pelas armas e se adianta para o lugar da execução sem
um gesto de súplica, sem um olhar de pavor.

No fim de algum tempo as idéias baralharam-se, o cérebro conturbou-se
suavemente, as pálpebras, fechadas mas leves até então,
colaram-se pesadas de sono… Adormeceu.

Como lhe pareceu longa e fastidiosa essa viagem! A longura natural do trajeto
era aumentada pelas demoras, interrupções e desarranjos causados
pelo péssimo serviço da estrada.

Paulino, acostumado a viajar com todo o conforto e todas as comodidades,
sofreu horrivelmente nas 13 horas intermináveis que durou a viagem.
Tudo o irritava, tudo lhe bulia com os nervos. Se deixava as janelas abertas,
sufocavam-no a fumaça e a poeira de carvão da máquina;
se as fechava, abafava de calor. A trepidação era insuportável;
às vezes o carro solavancava como uma caleça nas nossas esburacadas
ruas; o trem ia atopetado, não havia um lugar em nenhum dos carros.

No banco em que se sentara Paulino e no que lhe era fronteiro aboletara-se
parte de uma família paulista, de regresso para Pindamonhangaba o marido,
a mulher e uma filha, mocinha; o resto da ninhada e os criados iam em bancos
próximos.

Que companheiros! Não estavam quietos um instante. O chefe da família
era um velhote vermelhaço e grisalho, de maus dentes, sempre exibidos
por largos risos apalermados, chapéu do Chile, roupa de brim pardo,
guarda-pó, fumando constantemente cigarros de palha e cuspinhando a
miúdo para todos os lados.

A mulher uma boa senhora, copiosa de carnes, amolentada e aluída numa
flacidez bamba de tecidos e enxúndias, falando muito arrastado e repreendendo
de quando em quando algum dos filhos: "Tá quieto, Zidoro! Sussega,
Minervina! Que modos são esses, Zezê?

A mocinha, que devia ter seus 18 anos, e não era feia, tinha uns ares
muito afetados; gestos, olhares, sorrisos, tudo era estudado e intencional,
e, reparando-se um pouco, verificava-se que, além do pó-de-arroz,
também empregava o carmim para realce dos seus encantos. Ia lendo as
Sinfonias de Raimundo Correia – o que a Paulino foi fácil reconhecer,
porque ela abria e fechava o livro de modo a mostra-lhe o que era. E que olhadelas
lânguidas lhe atirava!

O pai puxou logo conversa com ele e, por mais que o médico se mostrasse
rebarbativo à palestra, obrigou-o a responder a perguntas e fazer observações
em complemento ou réplica às dele. Era um tipo de homem simplório,
ignorante mas sensato, bonacheirão, inculto, mas fino e manhoso sob
todas as aparências de palerma. Perguntou ao médico quem era,
para onde ia, que ia fazer; e isso era natural, porque antes lhe disse como
se chamava, onde tinha fazenda, quantos filhos tinha etc.

Pouco depois discursava sobre política. Confessava que fora a Abolição
que o fizera republicano; mas que o era sincero e de coração,
que pegaria em armas para combater a restauração etc.

Paulino, a princípio, teve vontade de fugir daquele carro e procurar
em outro um cantinho mais sossegado; mas depois foi se interessando por aquele
sujeito e aquela família e distraiu-se observando-os.

Não pôde descer para almoçar no hotel da Barra do Pirai
porque o coronel Firmino Vereza tal era o nome fazendeiro – não o deixou,
obrigando-o a partilhar da matalotagem que levava e continha um almoço
lauto – mortadela, fiambre, galinha assada, croquetes ovos duros, queijo,
frutas, doces e ótimo vinho. No fim de um quarto de hora os bancos
e o chão estavam que era um lástima: tudo sujo.

Mas a verdade é que Paulino, enfraquecido pela sua última noite
de amor, comeu com apetite e distraiu-se insensivelmente das idéias
sombrias que lhe pesavam no cérebro. A viagem para lá de Cachoeira,
conquanto ainda mais incômoda, pareceu-lhe mais divertida, mais interessante,
pelo menos, por causa das várias cidades em que o trem vai fazendo
escalas e cujo aspecto e costumes procurava observar nos poucos minutos de
parada.

Chegou à capital paulista já noite fechada e foi com um grande
suspiro de alívio que, meia hora depois, desceu do carro á porta
do Grande Hotel, às sete horas e meia saía para a rua, lavado,
corretamente vestido, sentindo apenas algum peso na cabeça.

Estava perfeitamente calmo. Foi a uma botica próxima ao hotel, mandou
preparar uma poção calmante, que deviam enviar-lhe para o hotel,
quarto n9 35 e saiu em procura de uma papelaria. Encontrou uma na rua Quinze
de Novembro, entrou, comprou papel almaço, alguns cadernos de papel
de carta, envelopes, um botezinho de tinta, uma caneta, algumas penas, um
pau de lacre e, tendo enviado isso para o hotel pelo Alfred, que o acompanhara
e a quem dispensou nessa ocasião os serviços até o dia
seguinte tomou um bonde da Ponte Grande e foi até ao fim da linha,
gozando o esplêndido passeio, pensando, cismando, suavemente melancolizado,
com um vago desejo mórbido de chorar muito, muito, até desafogar
todos os pesadumes, até lavar a alma num batismo lustral de lágrimas.
E fumava, fumava…

Na Ponte Grande um grupo de estudantes e raparigas patuscava ruidosamente;
trocavam-se abraços, estalavam beijos, diziam-se obscenidades. Paulino
voltou no mesmo bonde, mais entristecido ainda por aquele espetáculo.

Eram dez horas da noite quando entrou no quarto. Sobre a mesa estavam o vidro
da poção e os objetos que comprara. O aposento, que era no segundo
andar, estava regularmente mobiliado e oferecia razoável conforto.
Paulino abriu a janela, contemplou por alguns minutos o panorama noturno da
cidade; depois fez a sua toalete para dormir e sentou-se à mesa.

Preparou tudo para escrever; mas ergueu-se e entrou a passear no quarto,
acabando o quinto charuto, coordenando idéias, preparando um plano.
Queria deixar tudo previsto, disposto, ordenado. Tinha que fazer testamento,
que deixar instruções para a distribuição de seus
bens como também para seu enterro e funeral.

E Fernando? Não lhe devia escrever? Mas para dizer-lhe o que? a verdadeira
causa do suicídio? De repente, apenas repelira tal idéia, por
insensata, viu claramente que ela era, ao contrário, mais que razoável
– necessária, indispensável.

"Devo dizer-lhe, sim, a razão por que me mato, porque sem isso
a minha morte seria um sacrifício inútil. Por que me mato eu?
Por tédio e cansaço da vida? Não; por desgostos pessoais?
não. Mato-me somente porque, tendo cometido um crime irreparável,
que só é punível e resgatável com a morte, e,
sendo um homem de honra e verdade, devo punir o criminoso e resgatar o delito;
Mas ambos esses. atos perderiam completamente o seu valor moral, ficariam
incompletos, seriam quase inúteis se Fernando os ignorasse, porque
ficaria acreditando na minha estima, na minha lealdade, na minha honradez;
e, por isso, dedicaria à minha memória um culto de veneração
e saudade que ela não merece. Para que a minha morte seja o que eu
quero e é necessário que seja, Fernando deve conhecer-lhe as
causas. Eu seria um desleal ocultando-lhas, porque lhe usurparia postumamente
sentimentos de que me tornei indigno. Formoso é pois, que lhe deixei
eu uma carta revelando tudo. E esta a primeira coisa que tenho a fazer. Não
percamos tempo. Mãos à obra!"

Sentou-se à mesa, preparou tudo e quando pegou da pena exclamou, como
que insensivelmente: "Pobre Fernando!" Ouvindo estas palavras, como
se viesse de outro, encolheu o braço que se estendia para mergulhar
a pena no tinteiro, e fixou absortamente os olhos na parede. Aquelas palavras
"Pobre Fernando!" lembravam-lhe de súbito que a sua carta
terrível ia matar a felicidade do amigo, afogar-lhe a vida calma e
contente na vergonha, na dor e no desengano mortal.

Fernando, que amava a mulher a seu modo, mas que a amava deveras, que acreditava
cegamente na sua fidelidade, como todos os maridos simples e confiantes que
amam as mulheres, sabendo-se enganado, sabendo-a adúltera, pérfida,
poluída, sofreria a maior dor humana e, com o seu gênio violento
e o seu temperamento impulsivo, mataria a mulher ou suicidar-se-ia, ou talvez
ambas as coisas. "Não; se o meu dever é matar-me, também
é meu dever respeitar a felicidade de Fernando e poupar-lhe a vida.
Como então confessar-lhe que…"

Ergueu-se, passeou agitadamente pelo quarto, volvendo e resolvendo aquele
tremendo caso moral por todos os seus lados, examinando-o em todos os aspectos.
Finalmente, após longas e dolorosas meditações, achou
a solução que conciliava ambos os deveres.

Em vários sinos soavam espaçada e melancolicamente as 12 badaladas
da meia-noite. Sentou-se de novo à mesa, mas desta vez com resolução,
obedecendo com firmeza a um plano bem determinado. Escreveu febrilmente, sem
outras interrupções que as necessárias para reacender
o cigarro ou o charuto, insensível à brisa fresca da madrugada
que invadia o quarto, agitando brandamente a chama da vela; às quatro
e meia extinguia-se esta lentamente, em vascas bruscas, de lampejos tristes.

Paulino tomou uma colher da poção, soprou o último alento
luminoso da vela, e enfiou-se nas roupas da cama. O efeito do narcótico
foi pronto.

CAPÍTULO XVI

O IMPREVISTO

Paulino despertou, enfim, passando gradativamente do sono à vigília,
de modo que o acordar era para o seu espirito adormentado uma conseqüência
natural de atos ideados em sonho. Sonhara muito, mas coisas incoerentes e
confusas. Com algum esforço lembrou-se que sonhara o seguinte:

Os seus amores com dona Sinhá haviam sido descobertos por denúncia
de uma noticia da Gazeta da Tarde, fato que o indignou tanto que ele passou
a chamar aquela folha de Corsário da Tarde; e o contentamento de haver
engenhado esta frase era tão vivo que o compensava de todos os desgostos
produzidos pela noticia terrível. Fernando, tendo-a lido, longe de
enfurecer-se, veio logo agradecer-lhe os cuidados e os carinhos dispensados
a sua mulher durante sua ausência, e Paulino, vendo-o sair dessa visita
de cortesia, de casaca e gravata branca, notou que ele levava o chapéu
suspenso, como num cabide, em uma das pontas de um par de galhos, que lhe
subiam, retorcidos, da fronte; e o chapéu dançava, lá
em cima, com os movimentos do corpo. Depois foi levado ao júri, que
era presidido pelo Alfred, de toga, com cabeleira branca de cachos. Lembrava-lhe
desse episódio apenas isto: que, como Hiperides a Frinéia no
Aerópago, havia arrancado as vestes à amante, dizendo aos jurados:
"Vejam que perfeição! Examinem. Apalpem. E digam se eu
podia resistir!" Mas nesse momento reparava que a mulher não era
Corina, mas Madelon, que fazia um pied de nez aos juizes, gritando: "Tas
d’ imbéciles! Tas d’ imbéciles!" Então o Alfred
levantou-se e bradou: "O réu foi condenado à morte".
Nesse momento tudo desapareceu; ele ficou sozinho em meio de uma solidão
imensa e muito negra e ouvia mil vozes ciciar com um sopro gélido,
que o transia: "Vais morrer! Vais morrer! Vais morrer!" Nesse momento
um vulto surgiu a seu lado, que lhe murmurou ao ouvido: "Não acredites.
Isto é sonho; tu estás dormindo e sonhando. Não vais
morrer nada. Então morre-se assim com duas razões, só
porque se aproveitam e se gozam as mulheres que se oferecem à gente?"

Mas então apareceu no ar um corvo de asas imensas, com a cabeça
de Fernando que gritava com uma voz tão cavernosa e tão extensa
que enchia todo o espaço, repercutindo muito longe: "Vais morrer,
sim, traidor, infame, ingrato!"

Não se lembrava da continuação desse sonho terrível.
Mas de todo ele uma idéia lhe ficara, nítida e forte, acudindo-lhe,
apenas desperto: – morrer.

Lembrou-se então que, de fato, ele tinha de morrer, que viera aquele
lugar para isso. Mas, no cérebro, atordoado pelo narcótico e
enfumado ainda pelos nimbos revoltos dos sonhos, não surgiu logo, inteira,
a realidade da sua situação; não sabia como ia morrer,
se o iam matar…

Fez um esforço de memória, esfregou os olhos, olhou com fixidez
para os móveis do quarto e foi só vendo as folhas de papel escritas
sobre a mesa que se recordou que devia morrer nas suas próprias mãos.
Seu cérebro não se havia ainda habituado àquela idéia,
que, por isso, lhe fugia à retentiva.

Um relógio, afastado, tiniu horas. Contou-as: nove. Nove horas! Dormira
bastante! Fora a poção. E então lembrou-se que a morte
não devia ser outra coisa mais que um grande, um invencível
narcótico.

Morrer! Extinguir-se, deixar de ser, não ser, o nada… E um pavor
estranho invadiu-lhe o cérebro, como uma lufada fria de vento hibernal.

Teve medo, teve horror… Era tão bom viver! Havia tantas terras curiosas
que viajar, tantas mulheres moças, bonitas e fáceis pedindo
amor, pedindo homem! E ele tinha de morrer, assim: forte, bom, cheio de vida,
moço, sedento de gozo! Era estúpido! E se não se matasse?
Para satisfazer os ditames da sua consciência bastaria ir ter com Fernando
e dizer-lhe: "Dormi com tua mulher, gozei-a em tua ausência. Faze
agora o que entenderes." – Talvez mesmo nem isso. Foi ela, afinal, que
o seduziu, que lhe preparou habilmente a ocasião, que o excitou de
modo irresistível. Ele não era de mármore. E, afinal,
aquilo era coisa que se via todos os dias. Se todos os homens no caso deles
se suicidassem, fora uma hecatombe!…

Mas a figura simpática e leal de Fernando surgiu-lhe à mente
e, nesse instante, toda a extensão do crime que cometera enganando-o,
abusando miseravelmente da confiança paternal que depositara nele,
desenrolou-se-lhe aos olhos. Então, com um frêmito de horror,
sem mais raciocinar, sem recordar mais nada, compreendeu que o suicídio
era inevitável.

Entretanto, para prevenir-se contra o medo e o horror dessa idéia,
resolveu agitar-se, entreter o pensamento nos preparativos e disposições
finais até que, tudo concluído, chegasse o momento fatal. Tinha
de ser; acabou-se.

Saltou da cama, premiu o botão da campainha elétrica; pediu
ao criado que o levasse ao banheiro.

Voltando do banho frio, tomou uma xícara de café, e estava
acendendo um cigarro, em robe de chambre, quando bateram a porta.

– Entre quem é.

– Dás licença?

"Eu conheço esta voz", pensava Paulino; mas não teve
tempo de lembrar-se da pessoa que tinha aquela voz, porque ela acabava de
entrar.

– Oh! Julião! Que surpresa ver-te! Juro-te que não pensava
em ti.

– Naturalmente… pensa-se lá nos amigos insignificantes como eu!

– Não é isso.

– Ora se é isso! E a prova é que não me respondeste
ainda a carta que, há uns bons três meses, te escrevi, abraçando-te
e pedindo-te umas informações acerca do instrumental cirúrgico
que eu desejava mandar vir de Paris…

– Perdoa-me, meu bom, meu excelente Julião. Tens razão de sobra.
Se soubesses como tenho vivido ultimamente, o que me tem sucedido… quantas
contrariedades… Não te zangues comigo.

– Não, de certo; e a prova é que te vim ver e abraçar.

– Mas, a propósito, como pudeste saber que eu estava em São
Paulo?

– Muito simplesmente: pelos jornais.

– Pelos jornais? Mas se eu cheguei ontem à noite e não falei
com ninguém…

– Vou explicar-te. Pouco depois da chegada do comboio, os repórteres
percorrem os hotéis e recolhem a lista dos hóspedes de cada
um, lista que publicam no dia seguinte.

– Compreendo; – e Paulino lembrou-se que havia assinado o nome no livro dos
hóspedes e dado mesmo um cartão ao criado que o trouxera ao
quarto.

Julião sentou-se em uma cadeira junto à mesa. Era um rapaz
de pequena estatura, compleição franzina, cabeça proporcional,
membros delicados, expressão extremamente vivaz, muito insinuante.
Paulino, vendo o amigo com as folhas de papel ao alcance da vista, acudiu
logo, juntou-as e recolheu-as disfarçadamente.

– Como não tive sono esta noite, pus-me a rabiscar baboseiras. Almoças
comigo, não é assim?

– Só se for já, porque tenho ainda uns três doentes a
visitar.

– Em cinco minutos isto estará acabado – disse Paulino, referindo-se
à toalete. – Mas dize-me: como te corre a clínica?

– Otimamente. A principio custou a vir. Mas, graças a uns amigos influentes,
chegou, e vai num progresso constante. Tenho uma clientela restrita, mas que
paga sem olhar a dinheiro. É o que convém. E a prova de que
não me posso queixar da sorte é que vou casar-me dentro de poucos
meses.

– Ah! E com quem?

– Com a filha do desembargador Rodrigues Lopes.

– Rica?

– Não, pobre como Eva, ou melhor: quase tão pobre, porque Eva
nem camisa tinha; é encantadora. Queres vê-la? Tenho aqui o retrato.

Tirou da carteira uma fotografia pequena e mostrou-a ao amigo, que tendo-a
examinado alguns momentos, lha restituiu dizendo:

– Sim, senhor. Uma linda cabeça. E tem um ar muito inteligente. Meus
parabéns.

Nessa ocasião entrou o Alfred com as botinas do amo e ajudou-o a vestir-se.

– Estou pronto. Vamos almoçar.

– Não trazes o chapéu?

– Para quê?

– Não tencionas sair depois do almoço?

– Não tinha pensado nisso.

– Mas tu não conheces São Paulo. Ou já tinhas vindo
cá?

– Não, é a primeira vez.

– Pois então, hás de permitir-me que te faça as honras
da cidade.

Paulino, que não encontrava pretexto para escusar-se, teve de ceder
ao convite do colega e amigo.

A doçura do tempo, a ordem, limpeza e boa aparência da grande
sala das refeições em que comiam, espalhados, em pequenas mesas,
muitos hóspedes, conversando discretamente, e a jovialidade do companheiro
dispunham favoravelmente o ânimo de Paulino e quando, ao fim do almoço,
de que comera com apetite, saía com o amigo, havano fumegante nos lábios,
respondendo a uma pilhéria dele com outra, que os fez rir muito a ambos,
a idéia da morte não lhe povoava o pensamento e ninguém
poderia adivinhar, por mais perspicaz e conhecedor do coração
humano, que aquele belo e forte mancebo, tão calmo e risonho, tinha
lavrado a sua própria sentença capital e a executaria dentro
de algumas horas. Como poderia alguém pensá-lo, se ele próprio,
naquele momento não o pensava? Ele fazia naturalmente, sem cálculo,
o mesmo que fazem muitos dos condenados à morte – que dormem tranqüilamente
a sua última noite e comem com apetite a refeição derradeira.

Dir-se-ia que o corpo, prevendo o seu aniquilamento próprio, procura,
instintivamente exercer pela última vez as suas funções
orgânicas em toda a sua plenitude, com fina volúpia, afirmando
assim em ordem, vigor e equilíbrio o triunfo glorioso da vida, mutável
mais imortal.

A porta do hotel tomaram o carro particular de Julião, devendo Paulino
acompanhá-lo nas visitas aos doentes que lhe faltava ver; e depois
iriam passear, a fim de Paulino conhecer os pontos mais pitorescos ou mais
interessantes da cidade.

Julião levou o amigo ao bairro da Luz, onde lhe mostrou o jardim público,
o seminário, o quartel, a estação da estrada de ferro,
os principais prédio e palacetes indicando os proprietários,
dando-lhe detalhes; na volta fê-lo admirar a várzea do Carmo,
o curso do Tamanduateí, o Brás; levou-o ao museu Sertório,
à academia, ao palácio da Presidência e aos principais
cafés. Convidou-o a jantar numa excelente rotisserie da rua São
Bento e fê-lo prometer-lhe que o acompanharia à noite ao teatro
São José, onde trabalhava uma boa companhia de zarzuela.

Findo o jantar, passearam, ainda um pouco, num carro de praça, tendo
Julião mandado embora o seu, por estarem os cavalos fatigados.

Depois, Paulino voltou ao hotel para mudar de roupa e esperar ali Julião,
que fora fazer as suas visitas clínicas da tarde.

Ao entrar, entregou-lhe o porteiro dois ou três cartões e um
telegrama.

Na sobrecarta este endereço:

"Grande Hotel ou Hotel de França"

Abri-o, trêmulo, subindo as escadas. De quem seria? De Corina? Talvez,
chamando-o, dizendo-lhe que o esperava para fugir com ele, ou que chegaria
para se lhe reunir. E se fosse isso? Que faria?

O coração batia-lhe precipite; o papel tremia-lhe nas mãos.
Desdobrou-o finalmente. Foi à assinatura: "Fernando". E leu:

"Cheguei bem, estou furioso tua ausência, volta breve. Saudades.
Abraços nossos".

Sentiu um abalo tão forte que teve que apoiar-se ao corrimão.

Voltou, ele? Abraçar novamente aquele amigo generoso, boníssimo,
que ele enganara torpemente, estar novamente entre ele e aquela com quem o
atraiçoara – não! Era impossível! Urgia que se matasse.
Se demorasse a execução da sua sentença, Fernando podia
vir a São Paulo e talvez com a mulher, como surpresa. Convinha responder
logo ao telegrama para impedir que tal acontecesse. Respondeu nestes termos:

"Parabéns. Regresso em três dias. Saudades".

Deu o telegrama ao criado do hotel para que o passasse, e, enquanto mudava
a roupa, ajudado por Alfred, que se declarava encantado com a Paulicéia,
determinava o dia e a hora em que devia matar-se:

"A carta para Fernando está pronta, apenas precisando de alguns
retoques. Na volta do teatro passo-a a limpo. Amanhã faço o
testamento e entrego-o a um tabelião para o aprovar e guardar; compro
o revólver e a noite acabo com isto. O encontro com Julião foi
que me atrapalhou. Queira Deus que não voltem amanhã os outros
amigos que vieram hoje visitar-me" – pensava.

Restava-lhe, pois apenas um dia de vida. Mas, como o condenado à morte,
que até o momento de ser executado, espera vagamente a salvação
e com essa esperança se reconforta e ganha valor para o transe supremo,
Paulino deixava embalar-se intimamente por uma voz acalentadora, que lhe murmurava
um "talvez" suavíssimo… Que podia ser esse "talvez"?
Quem saberia dizê-lo? A morte de Fernando… a fuga de Corina dos braços
do marido para os do amante…

Oh! O acaso tem às vezes soluções tão imprevistas
e tão boas! Graças a essa abençoada e poderosa força
– a esperança, que só abandona o homem no derradeiro instante
de sua vida, quando ele exala o último alento, estava tranqüilo
o desgraçado e passou a noite divertidamente, muito mais do que esperava.

No teatro, onde fora com Julião, segundo haviam combinado, encontrou
o seu antigo companheiro de colégio e de academia, Carlos Oliva, o
famoso e impagável boêmio, que estava no terceiro ano do curso
jurídico, depois de haver estudado dois anos engenharia e três
anos medicina.

Filho de família abastada e único varão, faziam-lhe
os pais todas as vontades e perdoavam todos os desregramentos. Era "um
pândego", na opinião de todos. Moreno, magro, olhos fulgentes
através dos discos cristalinos dos óculos de ouro, cabelos magníficos
de ébano luzente, em ondas, dentes soberbos, voz clara e de sonoridade
metálica, gestos exuberantes, excessivos, pronto sempre na réplica
mordaz, no comentário malicioso, na piada imprevista.

Cultivava com amor todos os vícios elegantes: as mulheres, o jogo
e a mesa. Era geralmente estimado pela fidalguia suprema com que despedia
as amantes decaídas da sua real graça e com que perdia somas
consideráveis ao lansquenet e à roleta; pelo seu inalterável
bom humor, e, enfim, pela perfeita cortesia de gentleman com que a todos tratava.

Carlos Oliva fez uma festa espantosa a Paulino, a quem fora sempre muito
afeiçoado. Foi um espoucar de Ohs! E um chover de abraços que
atordoaram o médico. No fim do espetáculo saíram os três:
Paulino, Julião e Carlos Oliva. Este convidou os amigos para cear;
Julião escusou-se: tinha um doente gravíssimo e que precisava
visitar ainda, apesar do adiantado da hora: e retirou-se de carro, combinando
um encontro para o dia seguinte.

Então o boêmio perguntou ao amigo:

– E você homem para acompanhar-me?

– Isso depende de saber aonde.

– A um antro, à "gruta dos vícios".

– Isso deve ser ignóbil – ponderou Paulino.

– Ignóbil? É feérico, walkiriano, uma espécie
de gruta azul do rei Luiz da Baviera.

– Imagino; mas recuso: vou deitar-me, descansar.

– Burguês infecto! – exclamou Oliva com grotesco desdém.

– Deitar-se na cama antes de erguer-se a aurora no horizonte! Antes dessa
hora eu só admito que um homem se deite no colo nu de uma mulher boa.
Vem daí, filisteu!

Paulino hesitava. Precisava acabar a carta para Fernando; só tinha
24 horas de vida: não podia perder tempo. Mas a idéia de voltar
ao hotel e, no silêncio sinistro da noite, recomeçar a escrever
a história do seu erro, do seu crime, da sua desgraça, repugnava-lhe
invencivelmente. E, depois, talvez que o meio torpe, ao qual queria arrastá-lo
aquele doido, lhe facilitasse o desapego da vida pelo nojo dela.

Acedeu; e, de braço dado ao amigo, foi, através das ruas escuras
e silenciosas da Paulicéia, em demanda da "gruta dos vícios”

Era um sobrado grande e velho no beco do Inferno, hoje travessa do Comércio,
mesmo na esquina. Oliva bateu com os nós dos dedos de um modo especial:
quatro pancadas, intervaladas da segunda à terceira. A porta abriu-se
sem ruído; os dois homens deslizaram para dentro do corredor, iluminado
por um bico de gás sem arandela, aceso ao alto da escada. Ouviam-se
ruídos confusos de vozes de homens, risadas femininas e embates de
copos e pratos.

Subiram, acompanhados pelo sujeito, zambro por sinal, que lhes viera abrir.
Em uma sala quadrangular, de teto baixo, forrada a papel barato, ornada de
cromos e gravuras reles, mal alumiada por alguns bicos de gás, homens
e mulheres, abancados a mesas de pau, bebiam, comiam e conversavam. Várias
dessas damas fumavam cigarros de papel em atitudes relaxadas, entremostrando
os seios e as pernas. Algumas eram muito moças, e bonitas duas ou três.
A primeira impressão era desagradável.

– Bem dizia eu: isto é ignóbil; parece uma taverna de marinheiros
em Londres. Vamo-nos embora – disse Paulino, contrariado.

– Alto lá, cher maitre! – exclamou o companheiro. – E sempre arriscado
julgar pelas primeiras impressões. Acompanha-me.

Foi direto a um balcão pequeno, onde tronejava uma mulher gorda, ainda
frescalhona, de aspecto muito risonho, e que acolheu com um agitar de mão
festivo a entrada do boêmio.

– Boa noite, minha boa senhora dona Felisberta Mercurina do Bom Conselho!
– e o rapaz erguendo alto o feltro com a sinistra, apertava-lhe, todo curvo,
com a destra os dedos grossos e úmidos. – Eu e este meu precioso amigo,
mais viajado que o cólera-morbus, queremos passar agradavelmente este
resto da noite no seu hospitaleiro tugúrio.

– Às ordens dos meus doutores, inteiramente às suas ordens.
Que hão de querer? – perguntou a hoteleira com pronunciado acento piemontês.

– Ceia fina e mulheres frescas, o mais virgens que for possível.

– Vão ser imediatamente servidos.

– Olhe lá, tia Felisberta, que as damas sejam de fora…sabe?…

– Sossegue, doutor Oliva; o senhor é o freguês a quem sirvo
com mais cuidado e boa vontade. Não é? – E deitou-lhe um olhar
carregado de volúpia.

– Tem um rabicho-onça por mim esta sapaentanha – segredou Oliva ao
ouvido do amigo.

– Acompanhe-me – disse a mulher, tomando de um prego um molho de chaves.

Levou-os por um corredor sombrio, cheirando a mofo e urina, até uma
porta que abriu, e onde introduziu os dois moços.

Aceso o gás, viu-se um quarto espaçoso com uma cama larga,
feita, e uma mesa redonda ao centro.

– Este é um dos quartos; o outro é aqui ao lado e comunica
com este por aquela portinha.

– Eu conheço a topografia, tia Mercurina; – disse Oliva. – Mas diga-me:
que donzelas nos vai servir?

– Olhe, seu doutor, como eu, além de ter todo o gosto em servir ao
senhor, desejo obter a proteção do seu companheiro, vou buscar,
eu mesma, as duas jóias melhores do meu cofre: para o senhor a sua
predileta, a chinoca, e para o seu amigo uma rapariga que saiu ontem mesmo
da companhia do marido, que a espancava: tem 17 anos e só esteve com
o marido 11 meses É uma tetéia. Eu estava guardando-a para o
comendador, sabe? Mas não importa; tenho muito gosto em cedê-la
ao seu amigo.

– Muito bem, protetora dos famintos de toda espécie, vá lá
buscar-nos essas houris… que se ingurgite, o que tiver de melhor. Olhe,
diga-me cá, a lambe-me tudo está trabalhando? e esboçou
sobre a mesa, com o dedo indicador, um gesto de rotação.

– Sim, senhor; e é o Teixeirão que está dando à
bola.

– Vamos nós até lá? – Perguntou Oliva a Paulino.

Este respondeu-lhe encolhendo os ombros.

– Enquanto não chegam as deidades, vamos nos entretendo em largar
a pele na roleta. É uma idéia genial. Vamos lá. Mas que
isso não impeça, mamãe Vênus, que vossa mercê
mande trazer-nos frios e champanha e vá buscar as nossas amadas.

– Sicuro, sicuro! – retorquiu, rindo, a mulheraça, saindo com açodamento.

Os dois amigos entravam pouco depois na sala da roleta, no segundo andar.

CAPÍTULO XVII

FLOR DO LODO

Eram nove horas da manhã quando Paulino se recolheu ao hotel. Dormira
apenas três horas, de um sono de esgotamento, pesado como chumbo, de
que foi despertado, entretanto, em sobressalto, como se alguém o houvesse
sacudido com rudeza.

Ao seu lado dormia tranqüilamente a infeliz criatura que a dona do hotel
lhe havia mandado para o quarto, e que ele já encontrara adormecida,
quando desceu da sala da roleta, e que adormecida deixou, sem lhe tocar. Contemplou-a
alguns minutos com um olhar de compaixão profunda e um sorriso de amarga
ironia.

Era uma mulher franzina, morena, de 17 a 18 anos; um tipo de anêmica-nervosa,
membros delicados, cabelos negros, rosto miúdo, de traços finos
e graciosos: nos seios descobertos não havia ainda vestígio
de cansaço: conservavam, só eles, um resto da virgindade poluída
e morta não havia muito.

Era, evidentemente, uma estreante, uma novata da escola do vício.
Estaria totalmente perdida? E Paulino, que apenas despira o paletó,
revestia-o lentamente, contemplando sempre a infeliz e cismando, comovido,
na sua sorte. De repente sentiu incomodá-lo no lado esquerdo do peito
um volume grosso, que estava no bolso interno do fraque. Levou a mão
ao bolso e subitamente – por uma singular associação instantânea
de uma recordação e de uma idéia – lembrou-se do dinheiro
que ganhara, horas antes, à roleta e pensou em salvar com ele aquela
rapariga.

Estivera de uma "sorte única, de uma chance brutal", como
dizia, maravilhado, o Oliva, que perdeu até a última nota de
cinco tostões. Era a primeira vez que jogava a roleta, e, como soe
geralmente acontecer, por um capricho estranho e perverso da sorte, fora de
uma felicidade assombrosa. Jogava sem cálculo, sem plano, com vontade
e intenção de perder… Para que diabo precisava de dinheiro,
ele, um condenado à morte? E repugnava-lhe o ganho ao jogo. Mas, apesar
de tudo, ganhava sempre. Era uma perseguição da fortuna, cruelmente
irônica, e que, por lhe parecer tal, irritava-o sobremaneira. Às
cinco horas da manhã terminava a banca, rebentada, levada à
glória pelo jogador bisonho e calouro, com espanto e inveja dos parceiros
e com sombrio e calado despeito do banqueiro, o qual, entretanto, desfez-se
em amabilidades com ele, convidando-o a voltar naquela noite:

– Não falte logo, seu doutor. Está de sorte; deve aproveitá-la.
A parceirada é boa e o botequim está às ordens. É
pedir o que quiser, até champanha. – E nos olhos piscos do Teixeirão
ardia a febre sórdida da cobiça, lia-se a ânsia de apanhar
novamente nas garras o jogador móvel, para arrancar-lhe todo o lucro
e mais o dinheiro que levasse.

Paulino nada respondeu, nauseado de tanta miséria. Mas pensava no
destino que daria àquele dinheiro vil. Eram dez contos e quinhentos
mil-réis. A primeira idéia foi dá-los ao Oliva; mas repeliu-a
logo: voltariam para a roleta, para o banqueiro, sem benefício de ninguém.
Dou-o aos pobres; pensou. E com essa idéia meteu-o no bolso num grande
rolo.

Agora, diante daquela pobre coitada, encontrava o destino melhor que podia
dar aquele dinheiro imundo para poder purificá-lo, fazendo o bem: arrancar
com ele aquela mulher do vício, da ignominia, da miséria.

Puxou uma cadeira para junto do leito, sentou-se nela e acordou brandamente
a moça, tocando-lhe repetidas vezes no ombro nu. Ela abriu os olhos,
que fechou logo, encadeados pela luz forte do sol, para, reabrindo-os, fitá-los
no médico. Deu um gritinho de espanto e puxou a colcha para cima, tapando
a cabeça.

Paulino abaixou a colcha brandamente, descobrindo-lhe o rosto e disse-lhe:

– Então que é isso? Não se assuste; e conversemos.

Ela sorriu, reparando nas feições daquele desconhecido que
lhe falava tão docemente, bem impressionada por elas. E disse, com
uma voz um tanto pastosa:

– Foi vancê que dormiu comigo?

– Fui eu, sim.

– Ué! Como é que eu não senti nada?

Paulino sorriu, mas, em vez de explicar-lhe o fato, disse-lhe, tomando-lhe
uma das mãos, que pendia da cama:

– Diga-me: pode acreditar que um homem desconhecido, que a vê pela
primeira vez, possa desejar sinceramente, sem interesse, fazer-lhe um grande
beneficio? – Ela arregalou os belos olhos, grandes e negros, num espanto;
mas acudiu logo:

– Acredito, sim; por que não? Ainda há gente boa no mundo…

– Tanto melhor – volveu Paulino. – Agora, conversemos. Desejo salvá-la
do lameiro em que vai afogar-se. Mas conte-me antes a sua história,
sem omitir nada, sem mentir, como se eu a confessasse.

– Conto, sim se seu doutor quer saber ela, eu conto. E olhe que eu não
sei mentir. Mentira é uma coisa tão feia! O pior é que
eu não sei falar direito.

– Fale como puder; que eu a ajudarei. Bastará que me responda o que
eu lhe perguntar. É casada?

– Sim senhor. Me casei vai fazer um ano, com um home muito mau, de quem eu
não gostava. Eu queria casar era com primo Juca, isso sim. Mas papai
não quis; perferio seu Zidóro, que tinha negócio de criação
no mercado. Que havera eu de fazer? Casei mesmo. Papai morreu alguns meses
depois. Seu Zidóro me maltratava, me obrigava a fazer serviços
supriores às minhas forças. Depois pegou a beber e quando estava
nelas me espancava. Até que uma noite fugi pra casa de mamãe.

– E ele não foi lá buscá-la?

– Quais o que! O que ele queria era ver-se livre de mim. Pois se já
tinha amigação tratada com a Maricota Cocada, uma mulata gorda,
doceira, também do mercado! Eu fiquei morando com mamãe e ajudando
ela. Mas, coitadinha, está quase entrevada do reumatismo; tem dias
que nem pode se mexer. Eu quis trabalhar, mas meu trabalho não chegava
para tanta coisa, para cozinhar e lavar para nós e ainda coser para
fora. Eu, só com minhas tristes mãos não podia, não
é? – perguntou ela, com um tom ingênuo e sincero, como buscando
justificar-se previamente.

– Decerto – fez Paulino. – E, depois que sucedeu?

– Depois… esta mulher daqui, dona Felisberta, que me conhecia do mercado,
por ser freguesa de meu marido, tendo sabido que eu fugira, começou
a freqüentar nossa casa, a nos fazer presentes, a nos dar gêneros,
muito obsequiadeira. Até que se explicou. Me convidou para ir um dia
à casa dela: que ia lá um moço que me conhecia de vista
e me estimava muito e que ele queria se amigar comigo. Eu contei a mamãe.
Esta, no princípio, me aconselhou que não, que não…
Depois, como dona Felisberta já não dava mais nada pra nós
e a fome ia chegando, mamãe, um dia, me disse que não era mau
eu vir até cá ver o moço. Se servisse… E eu disse,
então, a dona Felisberta isso mesmo. Ela ficou muito contente e deu-nos
de tudo: farinha, carne-seca, feijão… E disse pra mim que uma noite
iria me buscar. E eu fiquei esperando ela.

Paulino lembrou-se então que a alcaiota lhe dissera que estava reservando
aquela rapariga para o "Comendador".

– E depois? – perguntou.

– Onte, já muito tarde, dona Felisberta foi me buscar. Eu não
queria vir, tinha medo àquela hora… Mas a mulher explicava que o
moço tinha chegado de uma viagem e queria por força me conhecer,
que era só para ele me conhecer e eu conhecer ele; que era só
para conversar… Se me agradasse, entonces… E mamãe, que tem muita
confiança em dona Felisberta, me mandou vir com ela, certa de que não
havia de assuceder nada. E eu vim. Ela me trouxe para este quarto, me despiu,
botou cheiro na minha camisa, me disse que esperasse um bocado, que ela ia
buscar o moço. Eu chorei, tive medo… Um home que eu não conhecia!
Mas… depois… não sei mais nada. Dormi, parece. O moço era
vance?

– Era eu, sim, e dormi um pouco a seu lado, sobre as roupas da cama, mas
sem tocar no seu corpo.

– Como vancé é bom! E é tão bonito! – exclamou,
com uma expansão de admiração infantil. – Havemos de
viver muito bem, muito felizes, se vancê se agradar de mim. Eu sou uma
pobre caipirinha… não sei nada… Mas sou muito quieta, muito mansa,
verá… Olhe, conheço vancê há meia hora, e já
gosto muito de vancê, acradita? Mas… por que tem esse ar tão
triste? Não é feliz? Não lhe agrado? Diga! – e, meigamente,
tomava-lhe as mãos.

Ele teve um sorriso de tristíssima ironia; mas, em vez de responder-lhe,
perguntou-lhe: – Então nunca teve relações com outro
homem senão seu marido?

– Lhe juro por este breve bento que não! – Exclamou ela, puxando do
seio um cordão de ouro fino, de que pendiam bentinhos, figas, corais
torcidos, e beijando um dos escapulários.

– Muito bem, agora responda-me: quer viver honestamente com sua mãe,
garantida de privações?

– Uê, gentes, pois isso é coisa que se pergunte?

– Então, ouça… Mas antes diga-me ainda: você não
tem algum parente sério, capaz de dar-lhe bons conselhos em relação
a negócios, a dinheiro?

– Tenho, sim, meu padrinho, seu Manuel Vicente, que é tipógrafo
de um jornal. O defeito dele, coitado, é ser pobre; mas tem muito juízo
e todos lhe querem bem.

– Tanto melhor; escute. Aqui neste embrulho estão dez contos e quinhentos
mil-réis. Os dez contos são para você; os quinhentos mil-réis
para você distribuir com os pobres, em minha intenção.
Você irá procurar seu padrinho e lhe entregará este dinheiro
com um cartão meu, em que vou escrever que fui eu que lho dei.

E Paulino pôs o dinheiro sobre a beira da cama, e tirando um cartão,
escreveu-lhe a lápis, no dorso! "Entrego nesta data a…

– Como se chama? – perguntou ele, levantando os olhos para a rapariga.

Ela não pôde responder-lhe logo: chorava, com o lençol
comprimido aos olhos; mas, pouco depois, tartamudeou:

– Corina… Corina Amélia de Sousa.

Se a pobre rapariga não tivesse os olhos ocultos nas dobras do lençol
e fitasse o seu estranho protetor, teria soltado um grito de espanto e receio.
Paulino estava lívido, com os lábios trêmulos e brancos;
os olhos arregalados… A coincidência era tão grande e tão
imprevista que justificava aquele estado de confusão e assombro.

Ergueu-se, passeou um pouco pelo quarto. Já então Corina o
fitava, acompanhando-lhe os movimentos com os olhos úmidos e um sorriso
delicioso de felicidade. Ao fim de cinco minutos, mais senhor de si, concluiu
o bilhete: "…a Corina Amélia de Sousa a quantia de dez contos
de réis, de que lhe faço presente, com o fim de concorrer para
a sua felicidade. Este dinheiro é meu e ganhei-o ao jogo na noite de
ontem…" Datou e assinou. E veio entregá-lo à rapariga,
sentando-se de novo. Esta, num movimento rápido, saltou da cama para
os joelhos dele e, enlaçando-o nos braços nus, exclamava, ora
rindo, ora chorando:

– Como vancê é bom! Como vancê é bom!

De repente, fitando-o com os olhos banhados de felicidade, perguntou-lhe
, com um encantador acento de ingenuidade, recuperando, num momento de sublime
transfiguração moral, a voz, o encanto e a graça da virgindade
perdida:

– Vancê me dá um beijo?

Paulino segurou-lhe a cabeça, com ambas as mãos, e beijou-a
na testa. Nesse momento sentiu a caipirinha rolarem-lhe no seio moreno, por
dentro do cabeção de crivo da camisa, duas lágrimas quentes,
grossas, vagarosas – e que não caíram dos olhos dela.

CAPÍTULO XVIII

A EXECUÇÃO

Aquela cena imprevista com a pobre caipirinha, encontrada num bordel e que
a sua boa fortuna lhe permitiu arrancar ao vício e à miséria,
fizera ao seu espírito, profundamente agitado pelos terríveis
pensamentos gerados da sua resolução suprema, um benefício
inefável: produzira nele o mesmo efeito do azeite sobre as ondas enfurecidas
do mar: acalmara-o subitamente.

Assim se explicava a serenidade, apenas melancólica, do seu rosto
ao penetrar no quarto do grande Hotel. Num incidente fortuito, triste episódio
da vida noturna dos viciosos, encontrara e bebera e energia e a calma de que
precisava para cumprir o seu fadário negro, para executar a sentença
que, como juiz, contra si próprio pronunciara…

Apenas fechava a porta à chave, uma pressa o tomou de "acabar
com aquilo".

Urgia matar-se: Fernando podia chegar naquela noite mesmo, podia sobrevir
qualquer fato que o obrigasse a adiar o suicídio, quem sabe a voltar
ao Rio… Mas sentia-se fraco, fatigado, e também um pouco febril:
era o cansaço da noitada.

Tomou uma ducha fria, que lhe ergueu as forças e fustigou os nervos;
almoçou rapidamente e depois de haver vedado a sua porta sem exceção
de visitante, fechou-se no quarto a trabalhar.

Em duas horas estava copiada a carta para Fernando. Sobrescritou-a e lacrou-a
com cuidado. Escreveu outra depois e meteu-as ambas em uma só sobrecarta.

Depois do almoço, passou a fazer o seu testamento.

Constituiu herdeiros de todos os seus bens a seu irmão Adolfo e a
sua única irmã, esposa de Castrioto; deixou contos de réis
para o seu afilhado Dano, filho destes; legou todos os seus móveis,
quadros e livros a Fernando Gomes, as jóias e o relógio ao seu
cunhado, e todas as roupas ao seu criado Alfred.

Uma vez concluído o testamento, foi levá-lo à aprovação
de um tabelião; terminado esse ato, dirigiu-se ao correio, onde registrou
uma volumosa carta, com este endereço: "Dr. João Itaparica
– Bahia".

Eram cinco horas da tarde.

Que mais lhe restava fazer?

Mas, quando recapitulava o que havia feito e inquiria de si mesmo se nada
mais lhe faltava senão matar-se… lembrou-lhe de repente o meio de
morte. Como se esquecera de uma circunstância tão importante,
mesmo capital, até quase à última hora? Matar-se parecia-lhe
nada; o modo de matar-se, o instrumento de morte, é que o preocupava,
afigurando-se-lhe o principal daquela fúnebre empresa. E então
esta idéia lembrava de que ia morrer; ou antes: a idéia da morte
não o incomodava, nenhuma sensação lhe fazia, porque
o seu espírito estava inteiramente ocupado e absorvido na escolha da
arma, da forma de suicídio.

Tinha a escolher entre o veneno, o revólver o punhal.

O veneno era bom. Uma dose violenta de arsênico, ou estricnina, ou
algumas gotas de ácido prússico, ou de láudano… o láudano
proporciona um passamento calmo, um sono fácil e doce, provocador de
sonhos paradisíacos. Um banho morno e uma dose de láudano…
era delicioso! A idéia do banho morno trouxe-lhe uma recordação
histórica: podia, como Sêneca, cortar as veias com uma tesoura
ou bisturi, e deixar-se esvair, esgotar-se, despejar a vida em jorros de sangue,
que tingiriam de púrpura a água tépida e o mármore
branco da banheira… Também seria bom… Mas o veneno tinha inconvenientes:
não encontraria provavelmente boticário que lhe vendesse o tóxico
desejado e, se encontrasse, iria sujeitar o pobre-diabo a alguma penalidade;
além disso a morte não era segura: podiam administrar-lhe algum
antídoto a tempo de salvá-lo…

Arredou logo o veneno…

Escolheria o revólver… oh! um bom Smith-Wessen, disparado sobre
o coração, dá morte pronta, certa, infalível…

Mas o revólver lhe era antipático – uma arma brutal, deselegante,
indiscreta… A detonação seria medonha, alarmaria toda a gente
do hotel e a vizinhança; invadiriam o quarto, antes mesmo que ele expirasse…

E se a bala lhe não atravessasse o coração? Teria uma
agonia longa e horrível… Condenou também a arma de fogo, o
punhal, a navalha, ah… o bisturi! Deceparia a carótida esquerda,
ou as duas, num golpe semicircular, profundo, seguro… O bisturi, sim; delicado,
discreto, silencioso e, no entanto, implacável, levando a morte, branca
e fria, na lâmina… Era ao seu bisturi, com o qual tantas dores adormecera
com uma só, tantos padecimentos mitigara, tantas vidas salvara; era
ao seu bisturi que pediria dentro em horas o resgate dos seus erros, a libertação
de seu inferno, a suprema dádiva do eterno sono.

Escolhida a arma definitivamente, só lhe restava voltar ao hotel e
executar-se. Mas a tarde caía: as ruas esvaziavam-se; nas portas das
lojas sombrias os empregados passeavam palitando os dentes, ou fumavam, encostados
aos umbrais, algumas carruagens corriam em demanda de palacetes nos arredores;
um ventozinho fresco picava a pele; a temperatura arrefecia e uma cinza fina
chovia sutilmente, do alto céu silencioso, de momento a momento mais
fundo e mais sombrio, cobrindo as coisas de melancolia, enchendo as almas
de uma saudade vaga, nostálgica, aflitiva como um adeus sem esperança.

E Paulino sentiu de repente um aperto no coração, um nó
na garganta… Uma consternação entrou com ele, devastada, solitária,
desesperante como um deserto desconhecido e intérmino… Teve vontade
de chorar, ali, em soluços, em gritos, correndo pelas ruas, com as
mãos espalmadas para o alto, clamando a sua desgraça, a sua
miséria, o fim e o nada do seu eu. E essa vontade foi tão imperiosa
que, para não sucumbir-lhe, voltou logo para o hotel.

Julião e Oliva haviam-no procurado e prometido voltar. Avisou ao porteiro
que os não receberia, como a ninguém mais.

Encerrou-se no quarto, fechou a janela, embora ainda houvesse um resto de
dia, e acendeu o gás. Aquele crepúsculo fazia-lhe um mal terrível…
aquele ocaso, que era o de sua vida também, tornava-lhe penosíssima
a idéia da morte.

Mas não pôde mais… Atirou-se sobre a cama de bruços
e, mergulhando a cabeça nas almofadas, chorou copiosamente, com raiva,
com dó, com desespero, convulsionado por um sentimento estranho, complexo,
desconhecido, de incomportável crueza. De repente ouviu bater à
porta…

Ergueu-se, enxugou os olhos, compôs o semblante, e abriu. Era Alfred,
que vinha às ordens. Perplexo, mal reposto do abalo nervoso daquela
crise, não sabia o médico que lhe dissesse. Disse-lhe, por fim,
que se achava indisposto, que lhe fosse buscar uma garrafa de vinho do Porto
e um cálice; e, cumprida aquela ordem, deu-lhe mais esta: que só
lhe aparecesse na manhã seguinte às sete horas.

Estava novamente só. Ainda bem! Bebeu de um trago um cálice
de vinho; acendeu um charuto e entrou a passear em toda a extensão
do quarto, esforçando-se por assenhorear-se novamente de si próprio.

Então, que covardia era aquela? Fora a sugestão do crepúsculo…
Mas passara. Que horas eram? Sete horas. Matar-se-ia à meia-noite,
à hora legendária dos mistérios, dos crimes e…. dos
amores. Dos amores! Como foram curtos e desgraçados os seus!

Tirou do bolso uma fotografia de Corina; mas, como viessem com ela alguns
papéis, lembrou-se que devia fazer uma limpeza em toda a sua papelada.
Meteu logo mãos à obra: rasgou rapidamente documentos extintos
e cartas sem importâncias; apartou as de valor e destruiu em pequenos
fragmentos as que lhe pareceram comprometedoras.

Só restava o retrato de Corina; pôs-lhe as mãos para
rasgá-lo, mas deteve-se: queria contemplá-lo até os derradeiros
instantes de sua vida. Que linda era! Como o fizera feliz aquele corpo maravilhoso
de ninfa!… Mas só o corpo, que a alma era a das borboletas. Não
o amara aquela mulher; não o amara. Nunca havia amado nem amaria nunca.
Era uma leviana, uma frívola, uma coquete. Afinal, não era dela
a culpa. Fora o seu temperamento e fora a sua educação que a
fizeram assim.

Ah! Se ela o houvesse amado, tê-lo-ia acompanhado, arrostando, com
ele e como ele, bravamente, a justa cólera do esposo, os ridículos
e as grosserias do escândalo, as exprobrações hipócritas
da sociedade e as maldições enfáticas da moral pública…
Se o amasse, não pensaria no marido, na sociedade, na moral, no escândalo,
no que diria fulano e sicrano: só pensaria nele, entregar-se-ia nas
suas mãos, dando-lhe o seu coração e a sua vida.

E então ele não seria obrigado pelo respeito de sua própria
honra a matar-se, porque poderia bradar a Fernando : "É a mim
que ela ama, e por isso te deixa para acompanhar-me. E eu adoro-a! Fere-me,
mata-me, se te apraz; mas fica sabendo que não conseguirás,
arrancando-me a vida, arrancar a minha imagem do seu coração!"
E se ele o ferisse, como lhe seria doce e gloriosa a morte! Oh! Sonho irrealizado!

De repente, como se aquela idéia o alucinasse, sacou do bolso o estojo
cirúrgico, escolheu dentre os ferros um bisturi de cabo de tartaruga,
abriu-lhe a lâmina espelhenta, fixou-a, puxando um pequenino botão,
e examinou-a atentamente, experimentando-a na palma da mão: depois
descansou-o ao lado da fotografia. Meteu o estojo novamente no bolso; depôs
o relógio e a corrente sobre a mesa, despiu e pendurou o colete e o
paletó, tirou o colarinho e os punhos, e destes os botões de
ouro, reuniu todo o dinheiro num maço, que embrulhou em uma folha de
papel, sobre a qual escreveu a quantia e, tudo isso feito, consultou o relógio:
eram 11h20. A sua calma enchia-o de espanto, assustava-o.

No quarto contíguo acabava de entrar o respectivo hóspede,
cantarolando alegremente a ária famosa da Carmen:

L’ amour est enfant de bohème.
Il n’a jamais connu de loi;
Si tu me m’aimes pas, je t’aime,
Et si je t ‘aime, prends garde à toi!

– Como é feliz este bruto! Não ama, de certo; ou ama e é
amado – murmurou raivosamente Paulino – Estará tudo pronto? – pensou,
em seguida.

Lembrou-se de deixar uma declaração escrita para arredar suspeitas
e evitar acusações injustas. Tomou de uma folha de papel e escreveu
em caracteres graúdos e firmes:

"Mato-me por tédio e nojo da vida, mas considerando-me perfeitamente
íntegro do cérebro. Deixo sobre esta mesa dinheiro e jóias
e neste quarto malas e objetos de meu uso. A tudo isso determino destino claro
e preciso no testamento que fiz hoje aprovar pelo tabelião Silva Júnior
e está ao lado deste papel. Meu último pensamento e para minha
irmã, meu irmão e meu amigo Fernando Gomes".

Em seguida datou e assinou.

Il n’a jamais connu de loi…

garganteava a meia voz o vizinho, atirando os botins ao chão. Um sino
bateu os três quartos de hora. "Tenho 15 minutos de vida!"
exclamou Paulino, com os olhos muito abertos para o relógio. Sentou-se
à mesa, fincou sobre ela os cotovelos e entrou a contemplar o retrato
de Corina. "Amo-te, amo-te, amo-te! Lembraste, ingrata, de que foram
estas as únicas palavras que pude pronunciar naquela noite terrível
do teu triunfo de coquete e da minha desgraça de homem honrado? E era
a verdade! Amava-te como um louco! E é como louco que te amo ainda;
sabes? Como és linda! Que olhos os teus, Corina! Oh! Não me
sorrias assim, neste momento supremo, que me fazes perder a coragem, que me
tornas um miserável! Não me tentes, Corina, com esses olhos,
com esses lábios, com esse seio de deusa… porque fugirei do dever
para o amor e irei viver indignamente, na traição e na hipocrisia,
arrastando-me a teus pés. Minha Corina! Meu amor! Meu amor! Meu amor!"
e beijava a efígie adorada sofregamente, com beijos de fogo, que não
cessavam.

Mas, fora, no silêncio vasto da noite, uma pancada metálica
de sino ressoou sinistramente; era a primeira badalada da meia-noite. Paulino
ergueu-se como impelido por uma mola elétrica. Meia-noite!

A morte! Deu um último beijo no retrato, rasgou-o em pedacinhos que
atirou à rua, entreabrindo uma janela, e empunhou o bisturi.

Nesse momento o seu cérebro iluminou-se completamente e nessa imensa
luz súbita, todo o passado do infeliz foi-se desdobrando e discorrendo
rapidamente. Reviu-se pequenino, na província, no campo, brincando
com os poldros e os novilhos, e no colégio depois, e mais tarde na
academia. Duas… A voz do pai, os sorrisos da mãe, as feições
dos irmãos, um aspecto material, uma árvore, uma casa, um animal,
que representaram papel importante na sua meninice, os mais remotos fatos,
os episódios mais insignificantes, vinham-lhe à memória,
nítidos, perfeitos, flagrantes; tudo ressurgiu, reviveu, passou…
Três…

Enquanto o cérebro trabalhava desse modo, devorando-se no incêndio
das próprias células, o suicida procurava com os olhos o ponto
do quarto em que devia matar-se; achou o espelho do toucador; foi a ele; mas
a luz do gás mal o aluminava; acendeu a vela, depô-la sobre o
mármore, abriu a camisa: o colo não ficava bem descoberto, depôs
a arma, despiu rapidamente a camisa, que atirou para o meio do aposento. Quatro…
Cinco… Empunhou de novo o bisturi, aproximou-se do espelho, fez menção
de dar o golpe para verificar se a reflexão inversa da imagem não
o levaria a errá-lo. E, em meio do trabalho estupendo de revivescência
do cérebro, e dos atos materiais que ia praticando, o infeliz ia contando
também as badaladas do sino: Seis, Sete, Oito… e ouvia o vizinho
trautear ainda a canção da Carmen:

Si tu ne m’aimes pas je t’ aime…

e o ruído que ele fazia vertendo água no vaso.

As artérias batiam-lhe violentamente, produzindo-lhe uma dor surda
nas têmporas: o coração martelava-lhe na garganta… Nove,
Dez…. Fitou os olhos arregalados sobre o vidro do espelho, achou-se horrível,
desconheceu-se. Ergueu o braço direito com o bisturi pronto, com a
mão esquerda apalpou e marcou a carótida para o golpe… Onze,
o braço fez o movimento, a lâmina assentou no ponto que o polegar
esquerdo marcava… Doze! Um jorro de sangue, em repuxo impetuoso e alto,
esguichou, cobriu o espelho, salpicou tudo em volta do lavatório; os
braços do suicida ergueram-se no ar, num gesto vago de quem se afoga,
o bisturi tombou sobre o mármore. O corpo, um momento vacilante, descreveu
um movimento rotatório para a esquerda, com a cabeça tombada
sobre a espádua direita, meio desprendida do tronco; depois, caiu pesadamente
no chão, abafando o ruído da queda sobre o tapete que o forrava,
e ficou estendido a fio comprido.

Nesse movimento o jorro de sangue, que apenas não era já tão
alto, tingia em torno o papel da parede, as roupas do cabide, os móveis,
tudo, e, depois de caído o corpo, foi escorrendo pelo soalho, num fio
coleante, passou para o corredor por baixo da porta, como um regato rubro,
quente, fumegante.

L’amour est enfant de bohème…

trauteava ainda o hóspede alegre do quarto contíguo; mas já
muito indistintamente, entre bocejos. E, meio minuto depois, a cama rangeu
e estalou com o peso do seu corpo acomodando-se para dormir.

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

O BARÃO DE SANTA LÚCIA

São decorridos quatro anos e meio. Nesse curto período, instante
imperceptível na vastidão infinita do tempo, quantos acontecimentos,
quantas mudanças, quantas alterações nos homens!

Mas para que se possam perceber e julgar não deve olhar a coletividade,
observar a multidão, porque esta não muda: apresenta sempre
o mesmo aspecto de movimento e variedade; sua vida é uniforme e, se
alguma alteração se pode notar, é que a massa é
ainda mais numerosa e mais ativa que dantes. Os que desapareceram – desapareceram
definitivamente: nenhum vestígio, nenhum leve sinal os faz lembrados.

O homem morre; a sociedade fica e vai por diante – compacta, agitada pelas
paixões, tangida pelo interesse, precipitada por uma forte vontade
ignota para um destino obscuro e atraente como uma formidável montanha
de ímã encoberta num véu de névoas. Mas se tomamos
à parte uma família, então, verificamos como influíram
sobre ela, modificando-a, transformando-a, esses quatro ou cinco anos.

Uns morreram, nasceram outros; os rapazes fizeram-se homens; as meninas cresceram,
casaram. Tornaram-se mães; a uns afastou para mais longe a necessidade
de ganhar o pão; a outros abasteceu o acaso ou a prevaricação;
a estes a enfermidade inutilizou na anquilose ou na imbecilidade; àqueles
perdeu a ambição, a cólera ou a sensualidade, levando-os
ao roubo, ao adultério, ao assassinato, ao suicídio.

Quanto vão movimento! Que agitação estéril! Nesta
colossal partida de xadrez do homem com a morte, é esta sempre quem
ganha a negra e sem dar a desforra.

Na conta monstruosa da vida, em que os algarismos são escritos com
lágrimas, e por isso desaparecem, ou com a tinta rubra do sangue ou
com a tinta negra do luto, o algarismo vencedor, que a todos devora, é
o zero… Que importa isso, porém? Enquanto se vive, forçoso
é… viver; e viver é essa agitação, esse tumultuar,
esse sofrer, esse iludir-se, esse aspirar, esse morrer de todos os minutos.

Nos quatro anos e meio que passaram desde o suicídio de Paulino, profundamente
mudou a existência dos personagens desta singela história – singela
como a verdade e a desgraça.

A viúva Prestes morreu dois anos e tanto depois, em seguida a uma
terrível operação. Apurado o seu espólio, Corina,
na qualidade de sua herdeira universal, apenas recebeu as jóias, que
eram valiosas, e a casa em que morava a madrinha. Tudo o mais foi absorvido
pelos credores. Só os três médicos que operaram a infeliz
apresentaram uma conta de 12 contos de réis, que foi paga.

O inofensivo Castrioto deperece de dia para dia, minado por uma afecção
gastrintestinal, que os médicos não podem vencer e em cujo diagnóstico
dois, ao menos, não conseguem combinar.

Fernando Gomes, a que o desgosto de perder o seu amigo daquele modo trágico,
encanecera quase completamente, não parece mais o mesmo homem feliz
que o leitor conheceu; além dos cabelos brancos e das rugas precoces,
tem um ar sombrio e dolorido, que lhe é impresso à fisionomia
pela tristeza do olhar e por uma prega irônica dos lábios, raramente
abertos em riso franco.

Um mal nunca vem só; afirma a experiente sabedoria do povo, e com
razão.

A morte de Paulino fora, por assim dizer, o sinal da chegada do infortúnio
para o seu amigo. Desde esse dia a roda da sua fortuna começou a desandar
rapidamente: nunca mais fez um bom negócio; as melhores combinações
falhavam-lhe: teve complicações graves com alguns comitentes,
nas quais a sua boa-fé e a facilidade geral de então em tratar
negócios o comprometeram bastante; realizou, por conta própria,
operações desastradas, e, por fim, tendo jogado a última
cartada, embarcado os últimos capitais num grande report da Companhia
Geral de Estradas de Ferro – a famosa Geral sem mais nada – foi, como milhares
de outros, vitimados pelo crack formidando; passou de quase milionário
a quase pobre, apenas lhe restando, de sólido, algumas ações
do Banco dos Estados Unidos do Brasil e a sua bela chácara da Tijuca.

Começou a débáclé. O que primeiro passou foram
os carros e os cavalos; depois despediu-se a criadagem e empenharam-se jóias;
seguiu-se a hipoteca da chácara e uma segunda sobre os remanescentes
da primeira. Depois mudou-se Fernando para um chalé modesto, na rua
do Bispo, para aproveitar-se do aluguel da chácara. Esta passou, por
fim, para outras mãos, vendida em praça para pagamento dos credores
hipotecários. E Fernando, lentamente acanalhado pelos revezes e pelas
más companhias que estes geralmente trazem, pois ele não ousava
mais freqüentar em condições tão inferiores as de
outrora, a antiga roda de magnatas da política e das finanças,
não sabendo de que modo satisfazer às exigências de conforto
e de luxo de sua mulher, não podendo mais simular, como fizera por
tanto tempo, uma certa abastança, pois estava crivado de dividas e
o crédito esgotara-se completamente. Fernando vivia agora principalmente
do jogo. O que conseguia ganhar na praça em corretagens, arriscava-o
à noite sobre o tapete verde da roleta e do dado ou à mesa do
pôquer. Perdia o mais das vezes. Mas como se tornara freqüentador
assíduo das casas e clubes de jogo, adquirira crédito entre
os jogadores, e já não sentia grandes apertos de dinheiro.

Vamos encontrá-lo agora associado, com o seu inseparável amigo
Viriato de Andrade, em um desses clubes, na rua visconde do Rio Branco.

Nesse estabelecimento, perfeitamente montado para o seu mister, e habilmente
disfar&ccediccedil;ado em clube recreativo, entra o marido de Corina às
três ou quatro horas da tarde para somente sair na madrugada seguinte.

As poucas horas que passa em casa, passa-as quase todas dormindo. Levanta-se
geralmente às dez da manhã e sai à uma da tarde. Só
tem para conversar com a esposa a duração do almoço,
ou pouco mais. E é a essa migalha de tempo que está há
dois anos reduzidas a convivência desse casal.

Corina, que podia ter-se salvado se não perdesse o filhinho, que dera
à luz alguns meses depois da morte de Paulino – o que foi novo e duríssimo
golpe para Fernando -, Corina habituara-se àquela nova existência
e com ela se acomodara sem pesar nem constrangimento.

Aquilo era a liberdade quase completa. O marido, ausente toda a noite e metade
do dia, tornara-se para ela quase um estranho, com quem apenas contava para
a manutenção da casa e satisfação dos seus caprichos.
Essa liberdade era-lhe garantida pelo fato de só ter como criados a
velha e fidelíssima Maurícia, que não trairia sua filha
de criação nem sobre uma fogueira, e um chacareiro velho e bronco,
que dormia numa casinhola ao fundo do quintal.

Após o suicídio do primeiro amante tivera mais dois, o primeiro
dos quais fora o elegante e pertinaz barão de Santa Lúcia –
esse homem excepcional que tinha e praticava a rara e preciosa virtude de
"saber esperar", e que mais uma vez vira confirmada a sabedoria
da sua máxima e divisa: "Acontece sempre o que se quer com firmeza
e se espera com paciência".

A impressão causada em Corina pela morte sinistra e consternadora
do seu amante fora profunda, extraordinária, de modo a parecer que
seria igualmente duradoura; e foi tão forte que se o marido amasse
menos Paulino e pudesse distrair a sua dor observando a alheia, teria provavelmente
estranhado fosse tão violento o efeito dessa desgraça sobre
Corina. Mas, passadas duas ou três semanas, uma singular transformação
se operou nas idéias e nos sentimentos desta a respeito do seu primeiro
e infortunado amante. Entrou a convencer-se de que se ele a amasse realmente
não se teria matado; que não foi ela a causadora daquele infortúnio
mas sim a esquisitice do gênio de Paulino, que sempre tivera idéias
extravagantes, fora do comum, absurdas mesmo. Se ele a amasse deveras, como
lhe dissera e jurara tantas vezes, em vez de deixá-la e estourar os
miolos, teria ficado junto dela, para vê-la, ouvi-la, beijá-la,
tê-la sempre perto de seu coração.

Proviera lhe essa ordem de pensamentos da observação que fez,
alguns dias depois do fato, que Paulino não deixara nenhuma prova de
que houvesse pensado nela nas últimas horas de sua vida – nem uma lembrança.
nem uma palavra!

Não tinha ele escrito na sua declaração derradeira,
momentos antes de matar-se: "Meu último pensamento é para
minha irmã, meu irmão e meu amigo Fernando Gomes?" Por
que não para ela também? Que tinha que o dissesse? Excluiu-a,
esquecera-a…

É tão complexo e tão sutil o amor-próprio feminino!
A mulher por quem um homem se mata sentirá sua morte tanto mais profundamente
quanto mais convencida estiver de que foi realmente por amá-la que
o infeliz se matou: não porque sinta remorsos ou sinceramente lamente
a perda de um coração que lhe era tão dedicado: mas porque
aquele suicídio era a homenagem mais elevada, mais preciosa, a última
que ele poderia prestar a sua beleza, à sua graça, aos seus
encantos. E a dor que ela sente não é mais que a gratidão
da sua vaidade. E essa mulher chora, consterna-se, desfalece de mágoa…
convencida de que amava aquele homem mais do que o julgava ou não sabendo
que o amava. Passem os dias, e com eles as lágrimas e o dó…
e essa mulher não se lembrará sem um íntimo gozo finíssimo
que houve um homem que se suicidou por amá-la, por não poder
possuí-la, por julgar-se desprezado por ela. A uma – é verdade
que atriz – já ouvi gabar-se – oh, sim: gabar-se! – de ter sido a causa
de três suicídios!

Corina, despeitada com o morto por haver partido de junto dela, primeiro,
e do mundo, em seguida, sem lhe deixar uma palavra escrita, uma lembrança,
um adeus, uma prova de que ela ocupava o seu pensamento nos últimos
momentos de sua vida, começou descrer que houvesse sido ela a causa
do suicídio até convencer-se de que a verdadeira causa fora
desarranjo mental de Paulino, que sempre fora tido na conta de esquisitão,
de tipo singular. Essa opinião também era a do marido, que lha
sugestionara em parte: o qual não podia ter outra, não encontrando
para um ato tão imprevisto e desarrazoado outra explicação
senão a loucura.

Acresce que Santinha também dizia pensar desse modo. embora a principio
mostrasse acreditar que fora o amor do médico pela amiga a causa do
suicídio. A verdade é que ela o acreditou sempre: mas desejosa
de distrai-la, de vê-la novamente alegre, gozando a vida amplamente,
plenamente, fez sua a opinião de Fernando.

Três meses depois do triste acontecimento, nenhum vestígio dele
se encontrava na fisionomia, nos gestos ou no vestuário de Corina:
restituíra-se à ruidosa vida dos concertos, espetáculos
e bailes – aos quais nunca mais a acompanhou o esposo, completamente sucumbido
à sua irremediável dor.

Nos salões reencontrou Corina o seu fiel e paciente adorador barão
de Santa Lúcia, que teve a prudência e a discrição
de não se referir aos fatos que se passaram no largo intervalo havido
nas suas relações mundanas, senão de um modo tão
leve e tão hábil, que bastasse a significar à moça
que ela melhor houvera feito em aceitar a corte constante e tímida
e o amor resignado que lhe ele oferecia de tão longa data, que em preferir-lhe
Paulino.

Santinha, o seu anjo mau, impelia-a para os braços do barão
com a mesma risonha e calma inconsciência com que a impelira aos braços
do médico. Depois Fernando, apanhado em cheio na vida infernal dos
ricos que se debatem para salvar-se na corrente do crack, cada vez se desapegava
mais dela, quase não acarinhava, mal lhe falava e raro lhe sorria…
E o fato consumou-se: Corina entregou-se ao barão.

Fidalgo de maneiras como de sentimentos, dourou-lhe e enfeitou-lhe tanto
quanto pôde as vilezas do adultério, evitando a frequentação
da casa de Corina e as relações com o marido e dando encanto
e distinção ao ninho em que ocultavam os seus amores e que ele
preparara em uma casinha de sua propriedade, oculta nos folhetos e ramagens
de um jardim, numa rua nova de arrabalde calmo. Somente neste retiro perfumoso
e elegante consentia, o barão em estar com a amante. Recusou sempre
ir vê-la em casa, à noite, embora ela lhe garantisse não
correria nenhum risco por o marido só recolher sobre a madrugada todos
os dias. Evitava mesmo encontrá-la na sociedade.

Era um homem extremamente cauteloso e prudente, medroso mesmo, arreceando-se
de tudo, tudo prevenindo, nada confiando ao acaso. O fundo de seu caráter
era formado de calma e ponderação. Metódico por índole
e hábito, tinha a vida pautada como uma página de música.
Registrava os mínimos atos da existência e as mais insignificantes
despesas. Era um espírito de septuagenário num corpo de 30 anos.
Muito alto, muito magro, o olhar sereno, meio velado de melancolia, bigode
escasso e negro, acentuando a palidez do rosto sem barba, de maçãs
salientes, fronte escampa, coroada de cabelos pretos, lisos e longos, de que
vinham alguns cair sobre ela com um ar triste de ramos de salgueiro. Falava
pouco, em murmúrio, com uma voz melodiosa, e uma precisão notável
de locução; cada palavra tinha um papel distinto na frase e
era insubstituível. Só dizia o que queria, quando queria e como
queria.

Órfão, rico, independente, desambicioso, partindo em largas
viagens à Europa, à Ásia, à América, quando
o tédio o empolgava, fora sempre levado pelo seu egoísmo, delicado
na forma e feroz no fundo, a repugnar o casamento – esse "egoísmo
a dois" sem a felicidade de nenhum – e, por isso, resistindo a verdadeiros
assédios de famílias que sonhavam atraí-lo a seu seio
e a senhoritas das mais lindas e das mais prendadas do nosso high-life conservara-se
o barão obstinadamente solteiro.

Desde a primeira vez que viu Corina sentiu-se vivamente impressionado; da
terceira desejava-a, ardentemente. Acompanhou-a desde então através
de todas as festas, públicas e particulares, fazendo-lhe uma corte
assídua, mas tão respeitosa que Fernando, tendo-a percebido
e vigiado de perto, nada pôde fazer para acabar com ela, receoso de
parecer ridículo. Desde o baile de recepção de Paulino,
pressentiu e anteviu o barão o que ia acontecer entre este e a sua
amada e recolheu-se à sombra, não desejando estabelecer uma
competência e uma luta que lhe repugnavam ao caráter; pôs-se
de lado, arredado mas vigilante. Acompanhou assim aquele idílio que
tão tragicamente devia findar. Quando viu a formosa estouvada voltar
à frequentação do mundo elegante sem vestígios
visíveis de comoção ou tristeza e desacompanhada do marido,
julgou chegado o momento de dar a batalha decisiva e recomeçou a sua
interrompida corte com dobrado ardor, quase certo da vitória. Não
se iludia nos seus desejos e nos seus planos.

Durou ano e meio esse amor culpado, embora parecesse dever eternizar-se.
Esses amores acabam sempre por não terem por base a amizade e o respeito,
e acabam dissolvendo-se em ódio e rancor. Os amores, filhos do consórcio
do desejo com a ilusão, vivem, como as falenas, a vida efêmera
dos pais. O que primeiro morre é o desejo; a ilusão pouco lhe
sobrevive, e ante os dois cadáveres brancos e frios, amortalhados em
rosas murchas e em lírios fanados, os pobres amores arrastam-se ainda
algum tempo e expiram, por fim, para ressuscitar e reviver na saudade.

Mas o que precipitou o desfecho dessa ligação, já de
si tão frágil, foi o gênio de Lúcio – era este
o nome de batismo do barão, cuja mãe era Lúcia – gênio
que ninguém poderia suspeitar sob aquela aparência imperturbável
de serenidade e doçura.

Lúcio, como todos os egoístas do seu quilate, era excessivamente
zeloso.

O ciúme assumia naquela alma solitária e cética o estado
intolerável de uma dor fulgurante mas não intermitente; e o
que o desgraçado sofria era horrível. A princípio contivera-se,
reprimira, ocultara o seu mal, o demônio que lhe rola o coração;
mas pouco a pouco ele foi surgindo aos olhos de Corina em toda a sua hediondez.

Ao fim de alguns meses era um inferno a vida dos dois. Lúcio ofendia-a
e conspurcava-a com as suspeitas mais torpes e mais inverossímeis.
Obrigava-a a dar-lhe conta de todos os seus atos; e ela nenhum podia ocultar-lhe,
porque sabia que ele a seguia de longe espiando-lhos e informando-se habilmente
de todos os seus passos por meios indiretos, com os amigos dele e as amigas
dela; e no mais inocente encontrava motivo para fazer-lhe uma cena dolorosa
ou violenta, em que se martirizava martirizando-a, cenas que estragavam todos
os seus transportes de desejo, toda a sua convivência de amantes.

As vezes nem se beijavam. As duas ou três horas da entrevista eram
gastas em recriminações, em disputas, acusações
injuriosas de um lado, defesa desesperada do outro, soluços, suspiros,
risos de ironia, gritos de revolta… às vezes ele reagia contra si
mesmo, contra aquela anomalia fatal do seu espírito, e, por um esforço
violento, recalcava as suspeitas, as queixas, as recriminações
e humilhava-se, rojava-se suplicante aos pés de Corina, beijava-os,
lambia-os quase, como um rafeiro batido. Nesses dias eram deliciosas aquelas
horas de pecado e mistério. Ele recuperava a sua doçura, ela
a sua alegria. Mas era contar certo com um recrudescimento de ciúme
na próxima entrevista.

Uma vida intolerável para ambos. Quem primeiro cansou e começou
a rebelar-se contra ela foi Corina, que não podia compreender com que
direito aquele homem, que era apenas seu amante, a magoava e ofendia com seus
ciúmes injustos e brutais, quando seu marido, que era seu marido e
não um simples amante, depositava nela a maior confiança, não
suspeitando dela em caso nenhum. Era demais! Quis romper com o amante, brusca
e definitivamente, mas teve medo. Sabia-o um cavalheiro, incapaz de uma vilania,
de uma traição. Mas a paixão cega enlouquece os mais
sensatos, torna grosseiros e maus os mais delicados e bondosos. Resolveu,
ainda por conselhos de Santinha, ir acabando com aquilo devagar, insensivelmente,
espaçando as entrevistas, faltando a algumas, deixando de defender-se
das acusações e das suspeitas renascentes do barão. Este,
para o fim, já se ia tornando insuportável; já não
podia vê-lo sem sentir-se irritadiça, nervosa, agressiva. Os
seus afagos deixavam-na fria, as suas habituais ciumadas enervavam-na como
picadas de alfinete continuadas, impertinentes, em vários pontos do
corpo.

Depois, um novo capricho lhe nascera no espírito ocioso e doente,
um novo desejo lhe perturbara o coração despudorado.

Corina conhecera, por ter-lhe sido apresentado em um sarau, um belo e guapo
sujeito, português de nascimento, mas há alguns anos residente
no Brasil, e que se dizia guarda-livros de uma casa comercial importante.
Chamava-se Hugo da Silva Rosa. Robusto, espadaúdo, peitorais amplos,
cabeça forte, cara larga, tez morena, faces gordas e coradas, bigodes
cheios, de fios pretos e crespos; um soberbo exemplar de meridional. E depois
que lábias, que maneiras, que tagatés e delicadezas para com
as damas! Tinha fumaças literárias e não se fazia rogar
para recitar ao piano, anediando a cabeleira trovadoresca, uns horrores rimados
e meluriosos, que dava por de lavra própria e que produziam um efeito
seguro sobre o auditório feminino. A voz redonda, cheia, veludosa,
tinha modulações de infinita doçura, que o olhar quebrado,
de ovelha morta, acentuava de modo irresistível.

Era a coqueluche das salas o guarda-livros poeta, o belo Hugo da Rosa – como
ele assinava -, abreviando. A fama das suas aventuras amorosas tornava-o muito
interessante e curioso para as senhoras de todas as idades, mas principalmente
para as solteiras jovens, as viúvas sensuais e as casadas românticas;
as primeiras viam nele um marido bonito, muito apresentável; as segundas,
senão um substituto valente ao seu defunto esposo, um homem capaz de
consolá-las da sua perda; e as terceiras um amante ideal, formoso como
Romeu, cismarento como Hamlet, heróico como Orlando.

Vestia-se a rigor, mas com um gosto comum, rastáquouère. gravatas
flamejantes, colarinhos inverossímeis no talho e nas dimensões,
vestons pretensiosos, bengalas formidáveis, ramalhetes grandes como
repolhos, na botoeira. Há mulheres que morrem de amores por essa espécie
de homens, que para elas reúnem as qualidades mais preciosas – força,
audácia e brilhantismo.

Hugo da Rosa era o tipo comum e desprezível do bellátre, do
Adônis pelintra, todo roupas e jóias, mas vazio de cérebro
e de coração. Geralmente a mulher pouco se importa com os dotes
relativos a esses dois principais órgãos da vida – sobretudo
ao primeiro.

Corina sentiu-se influenciada também por ele, e, dominada pelo seu
prestigio poderoso, não teve forças para resistir à corte
que ele apressou-se em fazer-lhe, desejoso de juntá-la à sua
já bem fornida coleção de amantes, classe "burguesas
finas". E o miserável tão habilmente lhe preparou a queda,
que Corina não pôde evitá-la antes de romper com o barão,
de modo que teve dois amantes simultâneos, enganando um com o outro
e o marido com ambos.

Mas Lúcio soube sem demora dessa inconcebível baixeza da amante
e devia ter sofrido horrivelmente desse golpe no que ele tinha de mais delicado
que o seu próprio amor – no seu amor-próprio, a julgar pela
vingança que contra ela tomou, ele tão delicado e tão
tímido…

No primeiro encontro com o barão a que foi Corina depois de ser amante
do guarda-livros, e a que não quis faltar para evitar suspeitas da
parte de Lúcio, não foi este quem a recebeu, à porta,
como costumava, mas a velha criada francesa que tomava conta do chalezinho.
Perguntou por Lúcio; a criada informou que o senhor barão estava
no boudoir e lhe pedia o favor de lá ir. Corina entrou, abrindo as
cortinas de guipura que o separavam da sala e estacou, apenas transpôs
a porta, perplexa, imóvel, reduzida a estátua.

No elegante boudoir, formado no quarto de dormir por um lindo biombo chinês,
que ocultava a cama, dividindo-o em dois, estava o barão sentado numa
cadeira, a cavaleiro, com os braços cruzados sobre o espaldar, sério,
pálido, vestido de preto, conversando ou fingindo-o, com uma mulher
deitada, em frente dele, sobre uma chaise-longue, estofada de damasco. Era
Madelon. Vestia apenas uma camiseta de seda cor de ouro velho, de cuja fímbria
saiam as pernas, modeladas em meias pretas, e fumava uma cigarrilha negligentemente.

A surpresa das duas mulheres, encontrando-se, foi enorme. Corina empalideceu
mortalmente e cerrou as pálpebras; a francesinha ergueu-se confusa,
interrogando o barão com os olhos espantados. Mas o barão, sem
se perturbar nem levantar-se, disse com um tom de irônica cerimônia,
apresentando-as:

– Madeleine ou Madelon, como é mais conhecida, estrela do nosso demimonde,
minha amante; madame Hugo da Rosa, estrela do nosso grand-monde, minha ex-amante.

Corina sentiu vergarem-se-lhe as pernas ante a afronta inesperada e crudelíssima;
uma nuvem cobriu-lhe de sombras a vista; agarrou-se ao portal. Mas a necessidade
de fugir daquele recinto era tão imperiosa que conseguiu, dominando
a sua comoção, sair do boudoir, buscando, vacilante, atordoada,
a porta da rua, através da sala. Mas o barão estava a seu lado,
acompanhando-a, e dizia-lhe com um tom de voz estranho, cavernoso, assustador:

– O doutor Paulino, o seu primeiro amante, substituiu aquela cocote pela
senhora; eu faço o contrário: substituo-a por aquela cocote.
Passe bem.

E abriu a porta envidraçada que comunicava a sala com o jardim. Corina
saiu sem uma palavra, sem um gesto, lenta, hirta, como uma sonâmbula.

Três dias depois partia o barão de Santa Lúcia para a
Europa, sem deixar um cartão de despedida a ninguém.

CAPÍTULO II

UM MISERÁVEL

Fernando era decididamente um homem perdido para a família e para
a sociedade. Fizera do jogo profissão: dele, por ele e para ele vivia.
Deixara inteiramente de freqüentar os amigos: não fazia uma visita;
não acompanhava a esposa a um divertimento; não lia um livro;
não sabia dos acontecimentos políticos que agitavam a opinião
senão pelos boatos ou comentários que lia ao acaso num jornal
ou ouvia à mesa do jantar, no clube.

Só passava em casa os domingos e dias feriados, e bem aborridamente,
valha a verdade. Faltava-lhe o seu meio cotidiano, vário, agitado,
picante de vício. A própria companhia da mulher, sempre formosa,
e que ele amava como dantes, entediava-o também. Enchia essas tardes
mornas e longas, dando com ela estirados passeios pelo seu arrabalde, em roupas
leves, boné e bengalinha, ou charutando entre bocejos mal contidos,
estendido numa espreguiçadeira de vime das Ilhas, no jardim, enquanto
a mulher dedilhava melancolicamente no seu Pleyel.

Quando o casal Viriato vinha jantar, o que era freqüente, passavam mais
agradavelmente esses dias de inútil descanso. Os dois casais jogavam
o pôquer renhidamente antes do jantar e à noite até 11
ou 12 horas.

Foi num desses dias que Hugo da Rosa, que já era amante de Corina
desde três meses, visitando-a quase todas as noites, se introduziu oficialmente
no mènage. Fernando já o conhecia do clube, que ele freqüentava
ultimamente com bastante assiduidade. O Lovelace era cauteloso: antes de ir
ocupar o lugar de Fernando no leito conjugal ia verificar se ele passaria
a noite fora de casa. Fizera-se seu íntimo a ponto de atuarem-se; levava-o
a patuscadas, apresentava-o a cocotes.

Tivera Hugo a engenhosa idéia de fazê-lo embeiçar-se
– para falar a gíria desses senhores – por uma atriz de opereta, pequenina
e nariguda, mas petulante, viva, bem feitinha: a Bianchini. Está claro
que havia sido amante de Hugo, que o era ainda um pouco, porque esses homens
não rompem nunca com as suas amantes; gozam-nas, exploram-nas, maltratam-nas,
abandonam-nas: mas, se novamente se encontram, é como se nada houvesse
ocorrido: elas recebem-nos de novo a sua alcova, a sua mesa, senão
com alegria, muitas vezes sem desagrado. Àquele sucedia isso freqüentemente.
Estava na rua do Ouvidor, no seu grupozinho bem conhecido, porta do Cailtau
ou do Braço de Ouro, quando passava uma das suas antigas vítimas…

– Olhem a Rita Mineira! Bravos! Mas está ainda bem boa!

E ia logo abordá-la; e era certo passar com ela a noite. E que elas
sabem o que eles valem; que quando estão a tinir eles têm sempre
um amigo apatacado para apresentar-lhes, ou um expediente seguro a aconselhar.

A atrizita, italiana de origem, apesar do muito que dele sofrera, durante
o seu curto colíage, não conseguira odiá-lo e, quando
o capricho, mordendo-o, o levava de novo para ela não lhe vedava a
porta de casa, se o amante fixo não estava, é claro, porque
o Lopes, o cômico mais desengraçado dos dois hemisférios,
não era para graças e tinha a mão pesada.

Hugo levou uma noite Fernando aos bastidores do Lucinda e apresentou-o a
Bianchini, a quem Fernando enviava há uns dez dias, em todos os espetáculos,
como preparativo, um belo ramo de violetas, acompanhado do seu cartão
de visita, o que já havia rendido à pobre rapariga meia dúzia
de bofetadas do seu Lopes terrível. Bianchini, já preparada
também por Hugo, acolheu-o animadoramente; mas foi-lhe logo dizendo
– antes que o seu homem viesse da cena, onde fazia rir a estalar a rapaziada
das torrinhas, – que não a procurasse ali, mas em casa, depois do espetáculo:
a noite, sim; de dia, nunca! É que o Lopes tinha mulher e filhos e,
em meio da sua vida de desregramentos, cultivava a singular virtude de não
dormir nunca fora de casa, o que o fazia adorar da esposa e admirar dos colegas,
que o proclamavam um pai de família irrepreensível.

Hugo ia, pois, todas as noites ao clube verificar se Fernando lá estava
e se passaria o resto da noite com a Bianchini; e depois tomava o bonde e
vinha dormir com a mulher do amigo, calmo e despreocupado como se fosse ele
o marido. Maurícia, a confidente incorruptível, a serva fidelíssima,
era quem o introduzia a desoras e fazia sair, pela madrugada, com mil cautelas,
que a própria ama não conhecia. Mas o experimentado Hugo sentiu
a necessidade, imposta pela prudência, de freqüentar ostensivamente
a casa; o diabo era que Fernando, desabituado completamente de receber e fazer
visitas, não se lembrava de convidá-lo. Mas soldado velho não
se aperta", diz o ditado. Hugo, por uma sábia combinação
de ingenuidade e desfaçatez, que lhe dava um ar encantador, disse um
dia a Fernando:

– Homem, você ainda não me apresentou a sua senhora! Nem mesmo
outro dia no camarote do Lucinda, no benefício da Bianchini, o que
me encalistrou deveras….

Fernando ficou vexado, confessou o descuido, pediu muitas desculpas e acabou
por convidá-lo a jantar no próximo domingo. Foi um encanto;
o rapagão encheu a tarde e a noite contando anedotas, recitando poesias,
cantando fados ao piano, fazendo sortes e passes de cartas, dizendo galanteios
as senhoras, principalmente a Santinha, para desorientar Fernando. Ficou desde
então comensal certo aos domingos.

A fonte em que hauria recursos para manter-se e ao seu luxo de mau tom era
um mistério, mesmo para os que o conheciam de perto, porque Hugo da
Rosa, confirmando-o velho prolóquio, era de uma infelicidade inclemente
ao jogo, qualquer que ele fosse: roleta, trintaquarenta, dados, lasca, pôquer…
perdia sempre. Desempregado de há muito, inteiramente no vago, sem
fortuna pessoal e sem sorte ao jogo, tratava-se, entretanto, como um grand
seigneur, gastando a larga, passando a tripa forra, não olhando a dinheiro.

Tais mistérios dificilmente se descobrem ou se explicam limpidamente.
O que se pode afirmar é que a chave deles é a infâmia.
Esses homens, aparentemente frívolos e inofensivos, são impenetráveis
por mal dos outros: debaixo dessa camada leve e brilhante de mundanismo perfumado,
de ociosidade egoísta, de vícios elegantes, há uma outra
– dura, séria, pétrea,, formada da textura compacta de mil complicados
expedientes de mentira, de canalhice, de calote, de furto.

É uma vida trabalhosa e arriscada a desses cavalheiros… de indústria.
Virem, como aranhas douradas e peçonhentas, envolvidos em uma teia
delicada e complicadíssima, que tecem continuamente, em que caçam
os papalvos e os confiantes, obrigados a refazer sem demora as malhas que
se partem, ameaçados de afogar-se nos próprios fios. Prometem
daqui, pedem dali, enganam dacolá; a uns ameaçam, a outros suplicam;
Ora arrotam contos de réis, e projetam empresas de fabulosos proventos,
ora confessam uma quebradeira absoluta, segundo tencionam apanhar capitais
grossos ou apenas morder alguém em uma de X. Mas essa entrosagem, complexa
como o maquinismo de um relógio, só pode funcionar oculta, secretamente.
E nisso consiste o maior trabalho e a mais séria dificuldade. É
preciso impossibilitar as vítimas de gritar e denunciar; não
deixar vestígios; não ter cúmplices; não cair,
em suma, nas garras da polícia, sob a alçada da junta correcional.
E, para consegui-lo, esses desgraçados – sim, que o crime é
o maior dos infortúnios! – trabalham tanto como um cavador ou como
um banqueiro; e que trabalho! O da mentira, da intriga, da dissimulação,
do dolo; o único trabalho que não alegra nem rubora, o único
que não dá orgulho nem consolo.

Assombra ver como esses meliantes conseguem equilibrar-se por tão
longo tempo no alto dessa pirâmide fragílima e tão perigosa
de tratantadas de toda espécie; mas o que mais assombra é ver
um dia desmanchar-se, ruir, estender-se em pedaços no solo a pirâmide,
o ginasta da velhacada cair com ela, diante do público e… levantar-se
novamente, lépido, risonho, incólume, construir outra coluna
de contos do vigário e sobre ela novamente manter-se regalado, estimado
dos homens, querido das mulheres, beijado da sorte, festejado de todos. Ah!
Compreendo e justifico esses coitados que, começando honestos e bons
a labuta da vida, desprotegidos da sorte, esquecidos de Deus, estafam-se na
luta acérrima e, contemplando os outros, os tais a que me estou referindo,
descrêem da virtude, cansam da honestidade, desesperam-se da Providência
e acabam imitando-os e perdendo-se.

Salvo os casos que constituem as exceções necessárias
à confirmação da regra, para vencer, para triunfar na
vida, nesta aspérrima vida contemporânea, é preciso, mesmo
aos honestos, uma boa dose, bem combinada, de audácia, de hipocrisia
e de crueldade; nada temer, não dizer senão verdades úteis
e nunca toda a verdade e não ter pena de ninguém sem proveito
próprio. Se essas qualidades são bem dosadas e bem combinadas
e se têm ao seu serviço uma inteligência clara e polida
por alguma cultura, o êxito é seguro. O que a sociedade chama
de pior a esses homens é "egoístas"; mas admira-os,
inveja-os e respeita-os.

Hugo da Rosa não era, porém dessa classe, mas da outra, dos
ingenitamente imorais, inteiramente falhos do precioso senso do bem abstrato,
capazes de todas as ações necessárias à consecução
do seu ideal no mundo – a fruição de todos os gozos. A alma
desses homens, se fosse material, parece-me que devera revestir a forma desses
estranhos zoófítos chamados medusas, conhecidos vulgarmente
por "geleias do mar" ou "águas-vivas" – massas
gelatinosas, brancas, visguentas, frias mas cáusticas, sem forma definida.

Poucos meses durava a ligação repugnante desse homem com a
mulher de Fernando e já a pobre moça amargava e expiava, em
sofrimentos jamais suspeitados sequer, essa falta e as que a precederam, todas
as suas culpas de adúltera.

Os seus primeiros amantes eram dois perfeitos cavalheiros; e duas almas nobres
– incapazes de uma vilania. É verdade que o barão de Santa Lúcia
se vingara dela cruelmente, quase brutalmente; mas, em sua consciência,
ela reconhecia que um homem daquele temperamento e amando-a de tal modo, ao
saber-se traído com um biltre do jaez do Rosa, era natural procedesse
como procedeu. Quando a desgraça viu de perto, nua, escancarada, a
alma de Hugo, ficou, transida de horror, como a mãe que, ao acordar,
encontra enroscada junto ao seio, entorpecida no sono haurido no seu leite,
uma cobra ascorosa, em vez da cabecinha do filho amado. E teve imediatamente
este pressentimento: "Estou perdida!" E ela somente conheceu a alma
do miserável depois de dois ou três meses de ligação.

A principio os seus vícios requintados de alcova, a sua experiência
consumada de gozador espantou-a, repugnando-lhe; mas a semente perniciosa
encontrava terreno propicio, bem preparado a recebê-la, e plantificou
virente. Ao fim de algumas sessões a discípula quase igualava
ao mestre. Corina podia ser recebida entre as 1400 sacerdotisas de Afrodite
Astarté, no recinto sagrado do Didascalion, na cidade santa do amor
físico, tão artisticamente descrita por Pierre Louys no seu
famoso romance. A obra do impudor, da prostituição estava completa;
Corina era uma cortesã, tornara-se a digna amiga de Santinha, a quem
os seus progressos enchiam de pasmo como os seus dotes físicos de inveja.

Se Fernando vivesse ainda um pouco para ela, se não fosse quase um
hóspede em sua própria casa, cem claros indícios o teriam
advertido do acanalhamento da mulher: toaletes; na escolha dos perfumes; nos
penteadores e nas camisolas de levantar e deitar; nos livros eróticos,
ornados de estampas grosseiramente obscenas, que andavam sobre os móveis
do quarto e do boudoir; nos gestos; nas palavras.

Mas ele próprio era outro, inteiramente diverso do que fora, nos bons
e rápidos dias em que viveu com o seu idolatrado amigo morto. Tornara-se
um vicioso, um viveur sem distinção, um epicurista vulgar, com
o senso moral quase embotado; nada via, nada compreendia, nada encontrava
de terrivelmente denunciador em todos aqueles hábitos novos, nas mudanças
operadas na mulher a partir de algum tempo.

Corina só viu, e sem véus, em todo o seu horrível cinismo
a alma do amante, quando se convenceu que este procurava explorá-la
na bolsa, extorquir-lhe dinheiro, viver à sua custa, como os souteneurs
descritos nos livros imundos da Paris impura, da Paris-Cythèra, que
havia lido com asco. Sim; aquele conquistador era um souteneur; se ela se
não acautelasse, seria capaz de fazer dela a sua marmite.

Começou ele pedindo-lhe, com simulado acanhamento, que lhe arranjasse
cem mil-réis, de que precisava com a maior urgência, para um
"aperto danado".

Corina, surpreendida, mas sem desconfiança do que aquilo realmente
significava, pediu no dia seguinte o dinheiro ao marido, "para comprar
umas coisas", ele prontamente lho deu, tendo por costume satisfazer todos
os pedidos e caprichos da mulher.

Hugo recebeu o dinheiro, murmurou um "obrigado" entre dois beijos
grossos e não falou mais em tal. No espírito de Corina ficou
um amarujo de desgosto, um ressaibo, a um tempo nauseante e amargo, como o
que deixa a poaia na boca.

Poucas semanas depois, Hugo pediu-lhe mais duzentos mil- réis. Ela
teve um calafrio. Calou-se, a princípio; como ele, porém, a
inquirisse em silêncio, com o cenho carregado, o olhar sombrio, deitado
de bruços sobre o colchão, ao seu lado, balbuciou alguns monossílabos
confusos… Ele carregou ainda mais a catadura e limitou-se a perguntar-lhe,
com impassível desfaçatez:

– Pensarás tu, por acaso, que eu não tenciono pagar esse dinheiro?
Julgas-me capaz de viver à custa das minhas amantes? Responde.

E fuzilavam-lhe malvadamente os olhos.

Ela desculpou-se, negando com calor; e prometeu-lhe o dinheiro. Desta vez
o marido perguntou-lhe para que precisava de duzentos mil-réis, se
ainda na véspera havia ele pago contas de chapéus e vestidos
que somavam em quase um conto de réis. Ela sentiu-se enleada; abaixou
a cabeça para ocultar o rubor das faces e disse, por fim, que era para
uma jóia, um bracelete que vira, muito bonito, na vitrina do Luís
de Rezende. E Fernando deu-lhe o dinheiro.

No seguinte domingo, falando-se em jóias, em meio de conversação
geral, Fernando, voltando-se para a mulher:

– E a propósitos – perguntou-lhe: – compraste o bracelete para que
me pediste aqueles duzentos mil-réis?

Corina, apanhada de improviso, corou tartamudeou:

– Ainda não, porque… o Luís de Rezendejá o tinha vendido
e não achei outro que me agradasse tanto.

– Ah! – limitou-se a responder Fernando, imediatamente distraído por
uma exclamação jovial do seu amigo Hugo da Rosa a propósito
de qualquer coisa. As faces de dona Sinhá chamejavam; a cara sadia
e risonha do amante respirava uma tranqüilidade absoluta de consciência.

Era o inferno que principiava para a pobre moça. As exigências
do infame foram sempre crescendo. Por último… batia-lhe! Sim, quando
ela não podia arranjar o dinheiro que lhe exigia, brutalizava-a, magoava-lhe
os pulsos delicados nos seus dedos grossos, ou fustigava-lhe com eles as faces,
guardando ainda a bofetada, em cheio, de palma aberta, para mais tarde, como
argumento supremo.

Corina emagrecia; empalidecera, tinha olheiras violáceas, respirava
sofrimento e opressão. Fernando alarmou-se com o estado da mulher;
fê-la examinar por um médico dos mais notáveis, o dr.
Castro, que receitou tônicos, banhos de mar, distrações.
Corina não melhorava, porém. Se a sua enfermidade era a alma!
Tentou reagir; como, porém, reagir contra aquele sujeito, capaz de
tudo? Teve medo. Ele tinha cartas dela, além de mimos e lembranças,
conhecidas do marido. Ele podia perdê-la e fugir, ou provar a sua culpa,
dela, sem se comprometer, pois as cartas não tinham o nome dele nem
o dela; mas a letra era autêntica, nem mesmo estava disfarçada…

Negou-se a recebê-lo como a ir encontrar-se com ele em outra parte.
Ele respondeu friamente que, se dentro de três dias o não recebesse
à noite, como costumava, ele escreveria uma carta anônima ao
marido "contando-lhe as passadas façanhas da sua virtuosa esposa
com certo doutor falecido e certo barão ausente". E a existência
torpíssima dos dois recontinuava, ainda mais torpe e mais torturante.

Nos domingos, entre risos e frases alegres, a infeliz, com a palidez mal
disfarçada pelo pó de arroz cor-de-rosa, tossindo de quando
em quando, acompanhava ao piano as cançonetas picarescas do belo e
triunfante Hugo da Rosa, ostentando a indefectível flor do seu apelido
na botoeira, e a face bem escanhoada, radiante de bem-estar, sobre a alvura
luzente do colarinho e a fulguração multicor da gravata.

Quem poderia suspeitar o drama pungentíssimo que se ocultava naquele
quadro burguês de felicidade? Quem suspeitaria as torturas indizíveis
que alanceavam o coração daquela mulher calma, séria,
simples, sentada ao lado do esposo, no remanso domingueiro do lar? Quem adivinharia
que aquele simpático e bonito moço, que era a alegria dos seres
daquela casa aos domingos, era apenas um bandido, que vivia do dinheiro que
obrigava a amante a pedir ou a tirar do marido? Oh! Ninguém suspeita,
nem pode sequer, dispor-se a aceitar a existência de tão grandes
infâmias!

Santinha, somente ela, conhecia o inferno em que se debatia dona Sinhá;
e, sua amiga sincera e dotada de uma alma boa e sensível, fez quanto
pôde para defendê-la, ampará-la, consolá-la, chegando
mesmo a vender parte de suas jóias para arranjar dinheiro com que lhe
valesse. Tentou intimidar o bandido: ele ameaçou-a de contar a Viriato
a história de "uma certa Messalina, casada com o melhor amigo
do marido dela"; procurou comovê-lo: ele riu-lhe na cara. Tudo
foi baldado.

Desesperada, Corina pensou um momento em prostrar-se aos pés do marido
e contar-lhe tudo; mas durou só um rápido instante essa idéia:
Fernando esmagá-la-ia e com o desprezo com que se esmaga um verme sob
a sola da bota. Pensou depois em fugir… Mas para onde? Não tinha
um parente, nem uma relação fora da capital, nem meios pecuniários
para ir para muito longe…

E se se matasse? Era a solução única, a única
tábua de salvamento. Oh! A morte ser-lhe-ia doce! Se era libertação!
Mas não tinha ainda coragem para matar-se. Era preciso sofrer mais…
muito ou pouco? Não o sabia. Sabia só que o sofrimento atroz
em que se debatia havia meses não lhe havia dado ainda à alma
débil e covarde a validez, o ânimo, ou o desespero necessário
para abandonar voluntariamente, pela violência, o miserável invólucro
terreno.

– Que desgraçada, que miserável criatura sou eu! Já
não tenho pudor, nem dignidade, nem sequer o brio necessário
para deixar de sofrer, para libertar-me dos meus grilhões de lama!
– exclamava soluçante, mordendo os punhos numa convulsão de
raiva, miserável de impotência.

CAPÍTULO III

A DENÚNCIA

Naquela noite era grande a concorrência nas salas do Clube Brasileiro,
de que eram associados Viriato e Fernando, e corria o jogo animadíssimo
em ambos os tapetes da roleta.

O conselheiro Gomes Lobato é um dos homens mais conhecidos, mais célebres
mesmo, do antigo regime, pela sua notável inteligência, não
vulgar ilustração e inquebrantável firmeza política.
Militou com fulgor na imprensa conservadora, distinguiu-se na campanha abolicionista,
prestou longos e bons serviços ao funcionalismo. Com a queda do regime
monárquico retirou-se, porém, completamente da vida política.
Nunca mais disse nem escreveu uma palavra em público. Tivera sempre
duas paixões – a astronomia e o jogo. A segunda venceu a primeira,
como venceu nele todas as curiosidades científicas e literárias.
Atolou-se no jogo até ao pescoço.

Dentro em pouco encheu a cidade a fama das suas incríveis audácias
à roleta e ao dado, arriscando dezenas de contos, perdendo hoje uma
fortuna, para readquiri-la amanhã e tornar a perdê-la no dia
seguinte, sem trepidações nem queixumes. Era digna de ver-se
a sua figura majestosa de primeiro-ministro, a barba cerrada e grisalha, a
fronte escampa e vincada, os olhos calmos e graves, os gestos pausados, a
frase comedida, manejando os cartões dos cheques de 50 e cem mil-réis,
perseguindo uma martingalle, empilhando e desempilhando os cartões,
espalhando-os sobre os números: em pleno, no esguicho, na rua, a cavalo,
e no manque ou no passe, sem açodamento, com precisão, tendo
ainda tempo de acender e sugar o cigarro, dar balanço à conta
de lucros e perdas, trocar frases com os parceiros, fazer alguma observação
seca mas cortês ao crupiè.

Parecia o próprio gênio do jogo e o deus Hermes em pessoa.

Tinha teorias muito originais, muito suas, acerca do jogo. Como não
jogava para perder, arriscava dez contos para recuperar dez tostões
perdidos: e uma vez recuperados, parava, não jogava mais nessa noite.
Jogava com o cálculo das probabilidades, variando de números
e de processo, graduando matematicamente as mises, limitando com prudência
os prejuízos, como o próprio ganho. Não aceitava nem
permitia conselhos de ninguém e só os dava a quem lhos pedia
ou provocava e emitia-os com voz grave, sonora, empregando as expressões
mais atenciosas, numa dicção cuidadosamente correta.

Era um mestre da língua, e mal disfarçava a consciência
e o garbo que disso tinha. A clientela da casa, composta na maioria de ignorantaços
e frívolos, ouvia-o com religiosa atenção e profundo
respeito, como a um oráculo, embora entendendo bem pouco o que ele
dizia, com ares pontifícios. Todos lhe davam excelência, desde
os sócios do estabelecimento, dos quais o principal era um conde russo,
até aos últimos ficheiros. A mesa do jantar, numa das cabeceiras,
enquanto serviam e passavam os saborosos acepipes, regados por vinhos excelentes,
senão na qualidade, ao menos no gosto e no buquê, o conselheiro
discreteava com ironia, mordaz porém cortês, acerca dos últimos
acontecimentos políticos, revivendo casos e anedotas dos passados tempos.
Era um encanto impagável vê-lo contar a um decavé de ar
espesso e olhos sumos, incapaz de compreendê-lo, um desses episódios
politico-históricos, com uma vèrve encantadora e uma correção
puritana de linguagem, raríssimas de encontrar juntas:

– Vou contar-lhe, senhor Burlamaqui, um dos mais curiosos episódios
do segundo reinado. O imperador, que, como o senhor bem sabe, aliava à
virtude de Marco Aurélio a sagacidade de Luís XI, tinha por
inveterado costume mostrar-se não sabedor daquilo que melhor sabia,
para sondar os conhecimentos e as intenções dos seus ministros
e conselheiros. Prática excelente, meu caro senhor Burlamaqui; prática
excelente! Ora, aconteceu de uma feita que, sendo presidente do Conselho o
visconde do Rio Branco, esse vulto venerando da política do império,
primaz entre os primazes, maior entre os maiores, se avisasse o imperador
de consultá-lo sobre…

E nesse tom magistral continuava, disserto, conceituoso, grave e gracioso
a um tempo… Raros, entanto, lhe aproveitavam as pérolas.

Nunca houve entre ele e qualquer ponteiro, mesmo dos que a sorte maltratava
ou dos que se exaltavam com algum excesso de álcool, o mínimo
desaguisado, a mais leve altercação. Todos o respeitavam, todos
lhe reconheciam a incontestável seriedade. Punha os incidentes mais
ingratos do jogo – a retificação de uma soma de fichas ganhas
numa parada, a contagem do dinheiro, a reclamação de um pagamento
esquecido – um ar tão austero, uma tal gravidade, que aquilo nem parecia
jogo, parecia missa! Dava à bola como se consagrasse a hóstia
e o vinho; cantava o número como se regougasse o Dominus vobiscum.
Jamais convidava alguém a jogar e aos novatos pintava o jogo com suas
verdadeiras cores.

Em meio daquela sisudez e amabilidade inalteráveis, desenvolvia uma
prodigiosa perspicácia e um maravilhoso poder de observação.
Os seus olhinhos escuros e luzidios tinham uma penetração de
verrumas de aço e furavam um crânio à procura do pensamento
que lá se escondia em dois lampejos rápidos.

Um homem superior inegavelmente; e que o era provava-o o conseguir dominar
com destaque o meio em que vivia. A verdade ê que ele se distinguia
daquela gente, como o azeite da água – por cima.

Não se confundia com eles, e percebia-se no apuro de polidez com que
os tratava a preocupação de conservá-los a distância
e no tom com que se lhes dirigia um leve matiz de altivo desdém.

Em volta dos dois tapetes, à direita e à esquerda do banqueiro,
sentados uns, outros de pé, jogavam indivíduos de todas as classes
– um senador, dois deputados, um dos quais o Gama, de bigode branco, que falava
pouco e desabridamente; um coronel do Exército, magro, muito vermelho,
praguejando como um… militar, berrando a cada bola perdida: "Ora p…!
Ora m…!" com voz de comando; três ou quatro funcionários
da policia em exercício; um velhote de suíças, macambúzio,
a quem uns chamavam almirante e outros "chefe"; um advogado famoso;
um leiloeiro; um jornalista muito estimado, pontuando de excelentes pilhérias
cada bola falha; dois ou três corretores; um famoso banqueiro boêmio,
já velho, parando ás duas ou três fichinhas de quinhentos
réis num só tio Oró; e um ex-ministro da República
a que chamavam o porta-pastas por ter ocupado três a um tempo; um padre,
a secular, fazendo um jogo diabólico; um barão assinalado…
por bons serviços à pátria e a quem o demônio do
jogo jurou limpar eternamente os bolsos.

O resto – uns suspeitos e uns desgraçados, lívidos, despenteados,
suarentos, vesgos de ambição, ofegantes de impaciência,
reincidentes do vicio, arriscando sem cálculo e sem calma os últimos
mil-réis; alguns limpos já, olhando melancolicamente e jogando
de cabeça para verificar se ganhariam se acaso jogassem deveras; outros
que vão ao clube só para jantar e limitam-se a sapejar durante
meia hora pela razão de que "Quem não bebe na taberna folga
nela".

De vez em quando soava uma campainha elétrica e ouviam-se vozes pedindo
em diversos tons: "Um copo com água". "Um conhaque."
"Um copo de cerveja." "Um charuto." "Fósforos."
"Um chartreuse." Criados apressavam-se, servindo. E ouvia-se o ruído
dos ancinhos de madeira arrecadando as fichas de várias cores, aos
montões, e que os ficheiros iam rapidamente separando pelas cores e
acumulando em colunas de 20.

– Trinta e cinco. Quatorze – ia dizendo a voz sonora e grave do conselheiro.

– Com mil bombas! Quatorze, o dobro de sete, e eu, que joguei no sete, não
joguei no quatorze! Ora m…! – estourava o coronel.

– Duplo zero. Trinta e seis.

– Jogo do inferno! Dá o Alfa e logo depois o Omega. O diabo que o
entenda! – comentava o jornalista.

– Eu tenho duas em pleno e uma na rua – reclamava o banqueiro.

– Oitenta e uma amarelas – acudia o crupiè, passando-lhe as fichas.
O banqueiro recolheu-as, juntou-as as que tinha diante de si, contou-as e
depois disse ao banqueiro:

– Fichas a troco.

– Quantas?

– Duzentas e quinze.

– Cento e sete mil e quinhentos réis volveu o banqueiro, passando-lhe
108 mil-réis, por ser praxe generosa da casa arredondar toda fração
de mil-réis. O tio Orô meteu o dinheiro no bolso e ia saindo
quando um magricela o segurou pelo paletó:

– Ó tio Orô, empresta-me dez mil-réis.

– Você pensa que eu ganhei? Perdi 50 mil-réis. Não posso
ser mordido. Adeus.

Fernando estava na pontaria, provavelmente feito com a banca para animar
a parceirada ou para diminuir os prejuízos da banca, que na segunda
hora estava perdendo. Acabava de ser cantado o número 13, em que ele
havia parado justamente 13 fichas, quando o porteiro veio entregar-lhe uma
carta.

– Foi um moleque que já se foi embora, dizendo não ter resposta.

– Está bem.

– Quatrocentos e cinqüenta e cinco pérolas! – gritou o crupiè,
passando a Fernando quatro cartões e três pilhas de discos de
madrepérola.

Ele examinou a letra do sobrescrito: não a conhecia, tendo-lhe parecido
feminina pelo caráter do talho. Meteu-a no bolso externo do paletó,
para não interromper o jogo a lê-la, e fez nova parada.

De todos os ponteiros apenas dois ou três estavam ganhando e desses
o de mais sorte era o Paes, um homem baixo, gorducho, de bigode preto, ar
simpático, major da Guarda Nacional, roleteiro por gosto, hábito
e profissão, que estava perdendo havia sete ou oito semanas somas consideráveis,
que não se sabia onde achava para poder perdê-las. Naquela noite
parecia querer voltar-lhe a chance; parava nos números da primeira
dúzia, cercando-os e carregando-os de todos os modos e em cada três
golpes um era de número inferior a 13, o que fazia irem se avolumando
os maços de cheques de 50 mil-réis diante dele. O seu lucro
era calculado já em cinco contos e tanto.

O barão assinalado, tendo perdido a última nota, saiu do seu
lugar e veio falar baixo ao ouvido do major Paes. Este, sem interromper o
trabalho de distribuir fichas e cartões, respondeu-lhe, em voz alta,
sem voltar-se para ele:

– Ora, seu barão! Pelo amor de Deus! Sempre o supus menos caradura!
Pois o senhor tem mesmo o topete de vir pedir-me cem mil-réis emprestados,
o senhor que, não há ainda um mês, negou-me 50 mil-réis
em noite em que estava de sorte, esquecido de que me devia, como me deve ainda,
mais de trezentos, há dois anos! Já é coragem!

O barão curvou o busto ereto e elegante para falar de novo ao ouvido
do major. Poucas pessoas mostravam-se impressionadas por aquela cena trivial,
ao que parecia.

– O senhor pensava que eu tinha esquecido… ou que, por ser o senhor barão
e alta patente militar e não sei mais o que, eu me calava, fingia ter-me
esquecido da sua ingratidão e do seu desaforo? Pois enganou-se. Não
preciso nem tenho medo do senhor, como de ninguém; fique sabendo.

– Onze! – gritou a voz pausada e grossa do conselheiro.

O major Paes ganhava, só nesse golpe, 1170 fichas. O barão,
imperturbado, falava-lhe novamente ao ouvido, com animação.
De repente, o Paes tirou dois cartões de 50 mil-réis de um dos
maços e deu-os ao barão, dizendo-lhe, com um tom duro e desdenhoso:

– Tome lá; leve. E para que fique sabendo que sou mais generoso e
mais delicado que o senhor. Não faço caso de dinheiro; o que
não admito é que me maltrate quem me deve favores…

O barão voltou logo ao seu lugar, sem agradecer mais aquele que o
major Paes acabava de fazer-lhe.

Mas Fernando, como começasse a perder forte, parou e deu as fichas
a troco.

Tendo-se levantado, indo tirar o lenço de seda do bolso, encontrou
a carta.

– Ah! A tal carta. Já me esquecia… Mas de quem será? – monologou
a meia voz e, rasgando o invólucro, foi entrando para o salão
luxuoso, fartamente iluminado, mas deserto. Desdobrou a folha de papel branco,
de que se evaporou um cheiro forte de opopônax.

– Hum! É de mulher: conhece-se pelo cheiro e pela letra. Mas é
anônima. Que será? – E pôs a lê-la com viva curiosidade.

Mal começada a leitura, as mãos, que sustinham o papel, entraram
a tremer; empalideceu, cambaleou, caiu sobre uma cadeira. A carta, que, com
esforço enorme e violento, leu até o fim, dizia o seguinte,
em boa caligrafia e sem muitos erros ortográficos:

&quoquot;Senhor Fernando Gomes. Enquanto o senhor passa a noite jogando e amando
a insignificante Bianchini, sua mulher consola-se da sua ausência e
da sua infidelidade com o seu amigo íntimo Hugo da Rosa, esse bandido,
essa pústula. Todas as noites vai ele a esse clube verificar se o senhor
aí está, depois do que vai ocupar-lhe a cama tranqüilamente.
Corra a casa, apenas receber esta, entre sem rumor e há de ver um belo
espetáculo, digno de figurar nos contos de Rabelais. Quem isto lhe
escreve, sem mesmo ter a precaução de disfarçar a letra,
é uma das muitas vítimas daquele miserável, que dele
tem sofrido torturas. Depois de despojar-me de um resto de pudor e de ilusão,
que eram a minha felicidade, despojou-me das minhas economias e das minhas
jóias e agora esbordôa-me quando não lhe arranjo dinheiro.
Eu era uma viúva honesta antes de conhecê-lo. Hoje sou uma desgraçada,
que terá de acabar… sabe Deus onde. Resolvi denunciá-lo para
libertar-me dele e vingar-me também, acreditando que o senhor terá
coragem e brio bastantes para matar esse infame sedutor como se mata um cão
danado. Será um serviço â humanidade. Se o senhor nada
fizer, por ser anônima esta carta, irei procurá-lo em pessoa
e há de então, diante das provas irrecusáveis que lhe
darei, reconhecer toda a triste e imunda verdade. Pulso firme e… adeus".

Acabada a leitura, Fernando ergueu-se, esfregou os olhos, mediu a sala a
passadas largas, agitadíssimo. Releu a carta, com dobrada atenção,
como se não a houvera compreendido. Depois foi ao gabinete, abriu um
cofre, tirou dele um revólver, que verificou estar carregado; meteu-o
no bolso respectivo; apalpou a faca de cabo de prata, que trazia sempre na
cava esquerda do colete; fechou a burra; tomou do chapéu e desgalgou
rápido as escadas.

Uma vez na rua, atirou-se para dentro de um dos tílburis estacionados
à porta do clube, deu o endereço ao cocheiro e disse-lhe com
voz cavernosa:

– A galope, a todo o galope!

CAPÍTULO IV

O CASTIGO

O tilbureiro fustigou com vivacidade, a golpes estalados do pingalim, a magra
e sonolenta pileca, que disparou no seu melhor galope. Mas, por mais rápido
que o veículo corresse, a Fernando se afigurava que ele mal se movia.
A sua impaciência era atroz… doía-lhe como uma queimadura.

Nos 20 minutos que durou o trajeto não conseguiu formular um pensamento
claro e completo, apesar de ter o seu pobre cérebro trabalhado incessantemente.
Sentia-se arder em febre; a cabeça escaldava-lhe, ao passo que as mãos
suavam frio. Era horrível. Teve a intuição de que, se
se demorasse mais uma hora a chegar a casa, perderia a razão, ou morreria
sufocado. Felizmente o tílburi entrava na rua do Bispo. Fê-lo
parar duas casas antes da sua.

Ia pagar ao cocheiro, mas, de repente, mudou de aviso e mandou-lhe que esperasse.

Caminhou para o portãozinho de ferro. Ergueu o trinco e entrou. Deu
volta ao jardim, em demanda da porta da sala de jantar, única de que
tinha a chave. Espiando pelo buraco da fechadura, viu que um bico de gás
estava aceso em lamparina. Naquele momento o relógio da sala batia
meia-noite, vagarosamente.

Deu volta à chave, empurrou a porta, entrou; mas o seu primeiro passo
encontrou um corpo estendido, o qual, com o contato, mexeu-se, levantou-se
rápido.

Era Maurícia, que dormia ali sempre que o amante de sua ama estava
no sobrado, no quarto dela, para poder avisá-la, no caso de acontecer,
como aconteceu afinal naquela noite, que o amo chegasse de improviso, antes
da hora habitual.

Estremunhada, apenas o reconheceu, espavoriram-se-lhe os olhos, abriu o boca
para gritar, atadas as pernas pelo terror. Mas a mão de Fernando tapava-lhe
a boca… A negra arrancou essa mão com as suas e emitiu o primeiro
som de um grito:

– Si…- mas não acabou: uma coleira de ferro estrangulava-a.

– Cala-te, negra maldita!- regougava Fernando, apertando-lhe a garganta com
furor.

Os olhos da preta saltaram, enormes, das órbitas; a língua
estirou-se-lhe da garganta, de onde saía um estertor. Fernando abriu
as mãos; mas teve de amparar o corpo da desgraçada, para impedir
o estrondo da queda: estava morta. Sacrificara-se pela sua filha de criação,
heroicamente, com sublime simplicidade.

– Diabo! Esta agora! – e depôs brandamente o cadáver sobre a
esteira em que dormia Maurícia um minuto antes.

Descalçou-se, tirou o fraque para ter os movimentos mais livres, empunhou
o revólver engatilhado e subiu sutilmente as escadas, frouxamente alumiadas
por um bico mortiço de gás. A preta deixava um pouco de luz
em todas as partes, para proteger e facilitar a fuga de Hugo num caso de surpresa.
E como Corina contava absolutamente com a sua dedicação, não
esperava que fosse chegado o dia terrível dessa surpresa fatal.

O quarto de dormir era precedido do escritório de Fernando e seguido
do gabinete de toalete. O escritório estava às escuras; mas
no dormitório havia luz abundante. Atravessou aquele cautelosamente,
evitando encontrões nos móveis, e chegou à porta envidraçada.
Infelizmente as cortinas de cassa branca, do lado interno, dobradas em pregas
verticais, impediam a vista. Pelo buraco da fechadura nada distinguiu: tapava-o
a chave.

Quedou-se a escutar, colando o ouvido à fechadura, mas foi-lhe difícil
ouvir, porque eles falavam baixo, em frases curtas, rápidas. Pareceu-lhe
ouvir beijos e que Corina dizia não, repetidas vezes. Mas uma frase
chegou-lhe nítida, perfeita, dita por ela; foi esta: "Amo-te,
sim, mas não posso dar-te as bichas de brilhantes: Fernando daria por
falta!"…

– Ah! Miserável! – rouquejou o marido, apertando a coronha da arma.

E ouviu então, de novo, o som de beijos e uma voz que suplicava, e
suspiros, gemidos curtos, risos abafados. Procurou, com desespero, na cassa
das cortinas num orifício por onde pudesse devassar o aposento. Achou
afinal um rasgão em forma de pequeno triângulo: ajustou o olho
direito ao vidro no lugar correspondente ao rasgão, e o que viu fê-lo
tremer todo da cabeça aos pés, como num acesso de malária.

– Oh! O imundo animal! O infame! O infame!

E pensou logo em entrar e exterminá-lo. Mas experimentou levemente
a porta: estava fechada. Que fazer? Arrombá-la? Daria tempo ao bandido
para sair pelo gabinete de toalete e, tomando o corredor lateral, escapar-se,
talvez.

Que fazer? Teve então uma idéia: bater devagarinho, como bateria
Maurícia. Foi o que fez. Bateu levemente sobre o vidro, uma pancada,
duas, três. Não responderam logo, de dentro. Mas ao soar a última
pancadinha das três dadas juntas, a voz de Corina disse:

– Espera, espera… Estão batendo… não ouves? Ouço,
sim; quem será?

– Deve ser a Maurícia; é com certeza. Podes abrir.

Ouviu-se um ruído surdo de passos de homem descalço e uma das
meias portas abriu para dentro.

A figura de Fernando, em colete, descoberto, sem botinas, com o revólver
estendido na mão direita apareceu no vão da porta.

Tudo o que então se passou foi de uma rapidez prodigiosa, indescritível.
Hugo, em menores, recuou espavorido, estendendo os braços, fitando
aterrorizado, a arma. Corina, nua, sentada sobre a cama revolta, os olhos
escancarados, soltou um grito estridente; mas ao mesmo tempo ouviu-se a detonação
de um tiro e logo segunda e terceira…

Hugo da Rosa, ferido no peito, foi cair aos recuos sobre a cama, comprimindo
o ponto ferido com as mãos; e o seu corpo, amparado num dos braços,
enquanto o outro se agitava na direção de Fernando, atravessou-se
sobre as pernas brancas da amante desacordada.

Fernando aproximou-se lívido, hirto, com o revólver apontado,
pronto a disparar ainda. O ferido arquejava; seus lábios brancos murmuravam:
"Perdão!" Mas Fernando estava alucinado; via tudo vermelho:
só via sangue e queria mais sangue.

Meteu a arma no bolso e sacou da cava do colete a faca, cujo cabo, de prata
lavrada, cintilava ao gás. E o que se seguiu foi medonho. Avançou
para o moribundo, trepou-lhe sobre o corpo e crivou-o de golpes profundos,
certeiros, repetidos, demorados, em toda parte,- no pescoço, no peito,
no ventre, nos olhos, na boca. O sangue, ao primeiro golpe no pescoço,
esguichou farto sobre os lençóis, sobre o corpo inerte de Corina;
depois, parou de correr, quando os golpes se multiplicaram. As mangas e o
peito da camisa do homicida estavam tintos de rubro e as mãos pareciam
calçadas de luvas da mesma cor.

Enquanto feria incansavelmente, Fernando monologava com os dentes cerrados
e a voz áspera, como se saísse triturada nos dentes: "Infame!
Bandido! Toma! Toma! Roubavas-me tudo, então? A mulher e o dinheiro!
Eu trabalhava pra ti, ladrão! E todas as noites, enquanto eu estava
fora, tu vinhas tranqüilamente, tomavas conta da casa. Ceavas provavelmente.
Depois entravas para o meu quarto com ela. Fazia-a despir-se como uma fêmea
reles, e, à luz do gás, de charuto à boca à frescata,
gozavas do espetáculo da sua nudez! E ensinavas-lhe bandalheiras, mistérios
de bordel! Toma! Toma! E quando a vias desfalecida de gozo sob as tuas carícias
ignóbeis, pedias-lhe as jóias, extorquias-lhe dinheiro. Ah!
Compreendo agora por que ela me pedia tantas vezes dinheiro, cujo emprego
tão mal justificava! Era para o seu amante, era pra ti, safado, que
o ias gastar provavelmente com outras. Era disso que vivias! Era com a honra
dos maridos que fabricavas o teu luxo grosseiro. Fazias das esposas prostitutas
e ladras! E eu a abraçar-te, a receber-te à minha mesa, a encher-te
o bandulho, a chamar-te amigo! Toma! Toma! Ah! Só teres uma vida! Como
a morte é castigo leve para tantos crimes!…"

Mas o corpo de Corina mexeu-se: despertava do delíquio. Sentou-se
na cama e, como louca, com a alvura da sua carne moça salpicada, enlaivada
de sangue purpúreo, esteve um momento imóvel, assistindo àquela
cena pavorosa. Fernando, sentindo-a acordada, lembrou-se, e só então,
também dela. Suspendeu o braço, que golpeava sempre, voltou
para ela os olhos aloucados.

Foi um segundo de indizível horror. Ela juntou as mãos em súplica
muda. Ele, com o punhal, tinto de rubro, erguido na destra, descavalgou o
corpo miserável do morto, desceu ao chão, e com o próprio
punhal chamou a mulher, sem uma palavra, Ela, despenteada, sujas de sangue
as pernas e as mamas, trêmula, um terror sobre-humano decompondo-lhe
as feições, obedeceu… Veio para ele como uma sonâmbula
e ajoelhou-se-lhe aos pés, abraçando-os, de rastros. E soluçava,
soluçava. Ele curvou o corpo sobre o dorso nu, encolhido, da infeliz
e ia cravar-lhe a arma; porém a voz de Corina subiu-lhe dos pés,
flébil, gemente, misérrima… "Fernando! Meu Fernando!
Meu marido!"

Vinha tão cheia de fraqueza, de miserabilidade aquela voz!

Estava tão baixo, cosida com o pó, numa posição
de cadela batida! E depois, ele que ia matá-la sem defesa, covardemente,
não teria concorrido para o crime que estava ali castigando? Não
passava ele quase todas as noites fora de casa, no jogo, na orgia? Não
a abandonava, assim, a todas as tentações perigosas e torpes?
Não tinha ele amantes? Fora sempre um bom marido? Dera-lhe sempre os
carinhos, as honras, a proteção que lhe devia?

E o braço não golpeava e a voz da desgraçada, soluçando
sem parar, como um fio d’água que sai aos gorgolejos de um tubo:

"Perdão! Sei que mereço a morte! Mas tenho-lhe tanto medo!
Tanto medo! E se soubesse como tenho expiado o meu crime! Aquele homem fez-me
sofrer torturas! Perdoa-me! Fernando, meu Fernando! Meu marido!"

Ele não respondia… Uma piedade imensa, invencível, invadia-lhe
a alma amolecendo-a num fluxo de lágrimas, que rebentou, por fim. Atirou
o punhal e, sentado sobre uma cadeira, com a face fechada nas mãos,
chorou longamente, miseravelmente, em soluços hartos, convulsos. Corina,
que vestira um penteador, chorava também de bruços, beijando-lhe
os pés.

Quando a onda impetuosa do pranto passou, desarmando-lhe a cólera,
desafogando-lhe a alma, lavando-lhe os olhos do sangue que os cegava, ergueu-se,
empurrou silenciosamente de si com o pé o corpo da mulher, fechou a
porta que dava para o gabinete de toalete, guardou a chave e saiu do quarto,
deixando nele Corina com o morto. Depois fechou a porta por fora, desceu a
escada, passou sobre o cadáver de Maurícia, e saiu para a rua.

O tílburi esperava-o. "Leve-me à estação
policial mais próxima", disse ao cocheiro. Este, que dormia, acordou
estremunhado, e não pôde reter uma exclamação de
espanto quando viu o freguês naquele estado: sem paletó, nem
chapéu, nem botinas, lívido, desgrenhado, manchado de sangue.
Quis negar-se a conduzi-lo, assustadíssimo. Mas viu brilhar o cano
de um revólver e achou prudente obedecer.

O cavalo partiu a galope.

CAPÍTULO V

"O COMENDADOR"

A morte inopinada de Fernando Gomes, o Comendador, como lhe chamavam todos
na Casa de Detenção, guardas e presos, causou grande sensação
no estabelecimento, e foi para os detentos uma diversão excelente,
que lhes ocupou as atenções ociosas por todo aquele dia tórrido
de janeiro, 22 – se bem me lembro – de 189…

Fora o Barbas de Arame quem descobrira, às oito horas da manhã,
que o Comendador era cadáver.

Dia estival, o sol começara cedo o seu giro de distribuição
de luz e calor, e às seis horas já o cubículo 25 estava
cheio de claridade, que entrava pela janela quadrada e alta, gradeada de ferro.

Era uma cela de quatro metros de comprimento sobre dois e meio de largura,
apenas suficiente para um homem, e na qual entretanto, viviam cinco – favor,
ainda assim, muito especial, conseguido da administração pelos
amigos de Fernando; pois que em muitos outros cubículos, iguais àquele
em tamanho, havia oito, dez e mais pessoas.

Nenhum móvel – nem tarimba, nem mesa, nem banco -, o assoalho nu,
imundo, maculado de toda sorte de sujidades, luzidio de gordura e do atrito
dos pés.

Fora, por sobre a porta baixa, de varões de ferro em xadrez, pintados
de verde, havia um cartaz em que se lia: Abastados. Isso explicava que os
detentos tivessem colchões, lençóis, cobertas e travesseiros
– o que só se encontrava nos cubículos em que havia cartaz idêntico.
Essa classe de presos tinha ainda, graças ao seu dinheiro, outras regalias,
como não vestir a roupa da casa – camisa de algodão e calça
de zuarte, e poder mandar vir a comida de fora.

Naquela manhã quem primeiro acordou foi o Macaroni; eram cinco e meia.
Sentou-se na cama, coçou com as unhas sujas a cabeladura crespa do
largo peito nu, esticou os braços, bocejou ruidosamente, acendeu um
cigarro e quedou-se a fumar, com os joelhos unidos ao peito e os braços
cingindo os joelhos; e assim, fumando e cuspinhando, olhava com atenção
para os companheiros.

Barbas de Arame, embrulhado num lençol, que lhe acusava a ossatura
angulosa e descarnada, todo esticado, com a sua cabeça admirável
de caráter – a calva enorme, as barbas ralas e grisalhas de fios ásperos
e longos, as faces lívidas e encovadas -, parecia um asceta, morto
de jejuns e penitências.

Depois dele, sobre as tábuas, tendo durante o sono escapado da enxerga,
estatelava-se o Maricas, todo nu, mas de meias pretas – não podia dormir
sem elas -, com os braços abertos, o peito ofegante de calor, e uma
serenidade risonha espalhada nos traços delicados do rosto quase imberbe.

Macaroni, ao observá-lo naquela postura cômica, sorriu-se e
exclamou, como dirigindo-se ao dormente:

– Fà caldo, non é vero, carino?

E, depois, como para si mesmo:

– Bravo ragazzo! Tanto buono!

Haviam-lhe posto a alcunha de Maricas pela sua delicadeza corpórea
e de maneiras, pelo tom efeminado de toda a sua pessoa e os cuidados escrupulosos
com que a tratava. Tomava banho frio todas as manhãs, ensaboando-se
com furor, como se quisesse arrancar da pele branca o cheiro nauseabundo e
a poeira fina e negra do cubículo, e todas as semanas mandava-lhe a
família uma pilha de roupa lavada e brunida.

Era abastada e conhecida a sua família, que nele tinha o primeiro
criminoso – segundo ela própria afirmava, consternada.

Seu crime fora ter matado uma prostituta de alto bordo, em cuja casa pernoitara,
com uma punhalada no coração, quando ela dormia; punhalada que
fez seguir de mais 12 em vários pontos do corpo da desgraçada:
no baixo ventre, nos seios, nas coxas.

Interrogado, quando preso, ao fim de alguns meses de pesquisas baldadas,
confessou o delito, dando como explicação dele o ciúme.
Que amava aquela mulher; que lhe propusera mancebia, primeiro, casamento,
depois; como tudo ela recusasse, alegando querer conservar a liberdade de
sua vontade e de seu corpo, resolvera matá-la para impedir que pertencesse
a outros homens. E tinha confessado tudo isso com a tranqüilidade de
um justo.

Na Detenção todos o estimavam muito pelo seu trato afável
e pelo seu gênio serviçal, pronto sempre a obsequiar os companheiros
– ou lendo, ou escrevendo para eles, ou dando-lhes conselhos e animação.

Fora o chaveiro, o gordo Meireles, quem lhe pusera a alcunha de Maricas.

Era uma das vaidades do Meireles – ter um talento especial para "botar
alcunhas." Com exceção dos hóspedes já célebres,
que traziam crisma de fora, era ele quem os crismava a todos. No cubículo
25 só o Barbas de Arame lhe escapara, pela aludida razão: era
um nome de guerra, antigo e glorioso, que não podia ser mudado.

Ao Fernando Gomes, não ousando, pela sua posição e respeitabilidade,
botar uma alcunha humorística, e não se resignando a deixar
de rotulá-lo, passou a chamar-lhe Comendador, com muito respeito, no
que a vítima nada viu de extraordinário.

O assassino da hetaira não gostou a princípio do cognome com
que o distinguira o Meireles, a quem, em represália, denominou Sancho
Pança, e não sem alguma sorte, porque o nome ia pegando de cubículo
em cubículo, aos poucos, mas em segredo, pelo receio que havia das
iras do poderoso funcionário.

Perto da porta dormia vestido o Pulso de Ferro, um português alto e
forte como uma torre, que, numa rixa com um patrício, o estendera morto
com um formidável murro em uma das têmporas. Esperava-se que
seria absolvido, por parecer bem provada a justificativa da legítima
defesa, visto que se encontrara um revólver na mão do morto.

Por último, no ângulo direito do cubículo, encostado
à parede e voltado para ela, estava Fernando Gomes, imóvel.
No chão, ao lado da cama asseada, via-se um tinteiro, cigarros, uma
caneta com pena, vários papéis esparsos e duas ou três
brochuras.

Macaroni, tendo acabado o cigarro, atirou com a ponta para o meio do quarto,
acompanhando-a com uma cusparada, que foi apagá-la. Depois ergueu-se,
sungou as ceroulas imundas e foi urinar na bacia do esgoto que estava ao canto
esquerdo, descoberta, e da qual os presos se serviam uns à vista dos
outros, num impudor ignóbil e numa imundícia sórdida.
Na volta abaixou-se junto da cama de Fernando, apanhou rapidamente alguns
cigarros e voltou para a sua, onde se deitou novamente.

Neste momento ouviu-se fora um toque de clarim, um brado rouco, perdido na
distância, e os passos e trincolejos do chaveiro, no corredor de pedra
que separava as duas filas de cubículos, de 20 cada uma. Uma voz elevou-se
e entrou a berrar obscenidades. Imediatamente troou o vozeirão do Meireles
ameaçando o desordeiro com a escura e uma dose de madeira.

Nesse momento apagou-se o gás do corredor. Ouviam-se, bocejos, suspiros,
ventosidades, risadas cínicas, palavrões mastigados, sonidos
de ferros.

O ar, quase irrespirável, era um misto de exalações
nauseantes de fumo, de fezes, de suor, de mofo… Macaroni recomeçara
a roncar, quando Maricas e Pulso de Ferro, que haviam despertado ao mesmo
tempo, trocavam as saudações matinais.

– Bom dia, seu Jerônimo – disse aquele.

– Muito bons dias, sr. Pinheirinho – respondeu o português. Então
como passou a noite?

– Pessimamente. O calor era tanto que me pus nu e o resultado foi rolar da
cama e vir acabar de dormir no chão, com o corpo sobre estas tábuas
imundas. Vou ensaboar-me hoje com dobrada força. Esta vida dá
cabo de mim. Nunca imaginei que se sofresse tanto em uma prisão.

– E ainda nós estemos no cuvículo dos avastados. Imagine o
que irá por aí além, pelos que o não são!
Nossa Senhora! Com licença.

E foi urinar na bacia.

Maricas havia vestido um chambre e fora esperar na porta a passagem do chaveiro,
a fim de lhe pedir licença para ir ao banho.

Ouviu-se então uma gritaria cortada de risos agudos, casquinados,
que parecia virem do andar superior.

– Lá está o doido a gritar. Começa cedo hoje – disse
o Barbas de Arame, que acordara com o alarido. Pepinos! É uma patifaria
admitirem malucos nestas casas. Isto aqui não é hospício
de alienados! acrescentou, impetuoso, com voz cavernosa, e entreou logo a
tossir aflitamente, como se o peito lhe estalasse ao esforço; oito
horas só havia no cubículo Macaroni, Barbas de Arame e Fernando.
Maricas fora para o banho, em chinelas, munido de pente, esponja e sabão,
e Pulso de Ferro, que graças à simpatia que despertara a sua
defesa corajosa e ao respeito que impunha a sua força hercúlea,
gozava de certas regalias excepcionais, fora dar o seu passeio habitual no
magro e triste jardim da prisão, já inundado de sol.

Barbas de Arame, que estava nu sob o lençol encardido, passeava pelo
cubículo, arrastando-o, meio curvo, tossindo, com um ar de fantasma
tísico.

Macaroni, que acordara definitivamente, rezava, de joelhos sobre a enxerga,
com remexidos de lábios, a sua prece matinal à Madona da sua
devoção, sem se preocupar com a indecorosidade de sua toalete,
que só se compunha de umas ceroulas mal abotoadas.

De repente, Barbas de Arame parou junto de Fernando e disse em voz alta:

– Comendador, oh! comendador! – e para si mesmo:

– Não responde. É esquisito que durma até tão
tarde, ele que geralmente dorme tão pouco!

E alteando a voz:

– Comendador, oh! comendador!

E empurrou o corpo com o pé; o corpo continuou imóvel, após
o curto movimento que lhe imprimira aquela impulsão.

– Estará morto? – perguntou o italiano aproximando-se.

– Parece – respondeu o outro.

E, agachando-se, virou rapidamente o corpo do companheiro. Estava gelado
e rígido. O rosto largo, de suíças loiras, estava cor
de cera, as faces cavadas; a boca aberta, com os lábios roxos, arregaçados,
exalava um cheiro acre, estonteante, e os olhos, que eram garços, vidrados
agora, enormes, olhavam para cima, para o vácuo, para o nada, com uma
fixidez de demência.

– Per la Madona! É morto! Poverino!

– É verdade esticou o molambo; – rouquejou tranqüilamente o Barbas
de Arame; e acrescentou:

– Pepinos! Isso é que é macaca: dar a casca quase na véspera
de sair deste chiqueiro! Chamemos o Sancho Pança.

– Sim, mà avanti, fiquemos com o que ele tem. Olhe lá, amico;
– e apontava a porta.

Enquanto o velhote espiava se vinha alguém, o italiano despojou o
morto: cigarros, fósforos, 15 mil-réis em notas, uns níqueis.
O resto não prestava. Depois do que foi chamado o Meireles.

Horas depois era o cadáver removido para o necrotério.

CAPÍTULO VI

UMA MISSÃO DELICADA

Fernando Gomes falecera durante a noite, mas seguramente depois das nove
horas. As oito, ao toque de silêncio, a que se apagam todas as luzes
e todos os rumores se extinguem nos cubículos, ele passeava e fumava,
taciturno, agitado, silencioso, respondendo apenas por monossílabos
ao que lhe perguntavam, e até às nove horas ouviram-no alguns
companheiros mexer-se na cama, tossir, suspirar.

O Maricas pretendia ter-lhe ouvido o estertor da morte: um ruído de
respiração difícil, aflitíssima, terminando em
um suspiro profundo e longo; mas todos atribuam isso à prosa do rapaz.

A esse respeito quem mais importantes revelações fornecia era
o Meireles, chaveiro. Eis o que ele contava:

Naquele dia, às três e meia horas da tarde apresentara-se na
Casa um senhor ainda moço, bem trajado o qual pediu ao administrador
licença para visitar o preso abastado de nome Fernando Gomes. Trazendo-lhe
um guarda a ordem do administrador, Meireles entregara-lhe o preso requisitado.

Essa visita durou seguramente uma hora. Quando dela voltou trazia o Comendador
na mão uma carta bastante volumosa e, tendo recusado o jantar que habitualmente
recebia de uma casa de pasto da vizinhança, pediu-lhe licença
para ir tomar ar no jardim. Uma vez ali, abriu com impaciência o invólucro
da carta e entrou a ler as numerosas folhas de papel que a formavam.

Quando Meireles, dali a uma hora, veio chamá-lo para recolher-se à
prisão, encontrou-o sentado com a cabeça escondida nas mãos
e soluçando convulsivamente. Interrogado pelo chaveiro sobre o que
tinha, se se sentia doente, respondeu que não, que fora uma notícia
má que recebeu que o incomodara, mas que estava acabado, nada mais
tinha, sentia-se aliviado. Porém, apesar dessa afirmação,
a sua fisionomia estava completamente alterada, coberta de uma lividez cadavérica
e levava de quando em quando as mãos ao peito, como se sentisse ali
uma grande opressão:

"Aquela visita, aquela carta… dali é que veio todo o mal. Foi
aquilo que o matou. Não sei para que diabo é que se mandam más
noticias aos outros. As boas ninguém tem pressa de dar;" concluía
filosoficamente o claviculário, com uma expressão de profunda
mágoa pela miséria humana.

E acertava sem o saber. Fora aquela visita, fora aquela carta que matara
Fernando.

Quando ele entrou na triste e mal arranjada sala que serve de locutório
da Detenção, no pátio interior, à direita da porta
de entrada, para o fim de falar com a pessoa que por ele procurava, encontrou
um cavalheiro vestido de preto, barba escura, mesclada de fios brancos, calva
incipiente, óculos de ouro, tendo no dedo anular da mão esquerda
um anel de médico. Vendo entrar Fernando acompanhado por um guarda,
o desconhecido ergueu-se e, dirigindo-se cortesmente para ele, perguntou-lhe:

– O sr. Fernando Gomes?

– Um seu criado. Queira sentar-se e dizer-me a que devo a honra da sua visita.

O desconhecido sentou-se em uma das extremidades do velho sofá de
mogno de palhinha encardida e rota em alguns pontos. Na outra extremidade
um advogado, muito conhecido pela sua especialidade de defensor de gatunos
e desordeiros, interrogava em segredo um deles sentado em uma cadeira próxima,
alisando nas mãos com fingida humildade o boné muito sovado.

– Chamo-me João Itaparica, sou médico e clinico na cidade da
Bahia, da qual cheguei ontem com o fim expresso e único de desempenhar-me
junto de V.Sa. de uma missão reservada e delicadíssima – e,
dizendo isto, tirou do bolso uma sobrecarta quadrada e volumosa, que conservou
nas mãos, como se quisesse adiar o momento de entregá-la.

Fernando fitou sobre o médico com algum espanto os seus grandes olhos,
em cujas pupilas claras parecia ver-se-lhe a lealdade da alma. E à
interrogação muda mas instante desse olhar, o seu interlocutor
respondeu:

– Sim, uma missão que considero sagrada e da qual somente hoje me
posso desempenhar. Esta carta, que lhe vou entregar dentro de alguns instantes,
foi-me remetida para este fim, há quase cinco anos pelo… – e a sua
voz tremia um pouco – pelo meu saudoso colega e amigo dr. Paulino de Castro.

A fisionomia do preso demudou-se subitamente; as faces tornaram-se lívidas,
os lábios tiveram um rápido tremor e um véu de lágrimas
cobriu-lhe os olhos. A comoção era tal que não podia
articular uma palavra.

– Sente-se mal?

– Não, obrigado. Isto passa já. Compreende… O dr. Paulino
foi o meu maior, o meu melhor amigo. Considerava-o como meu filho. Nunca tive
outro senão ele…

– Bem o sei. Mas julguei que o tempo houvesse cicatrizado completamente essa
terrível ferida.

– Feridas há que nem o próprio tempo consegue cicatrizar. A
que me abriu no coração a perda daquele amigo é desse
número. E depois, daquela forma, suicidando-se, cortando a carótida
com um golpe de bisturi! Moço, belo, ilustrado, com um futuro extra
ordinário, estimado por quantos o conheciam! Oh! Foi para mim uma catástrofe.
Se ele vivesse, a minha desgraça atual não me pesaria tanto.
Que me importava ter matado um homem, perdido a mulher, o lar, a felicidade
doméstica, se o tinha a ele, o meu Paulino, o meu amigo, o meu filho
querido? Se fosse absolvido, partiria com ele para a Europa, viajaríamos
o mundo inteiro e eu esqueceria, finalmente, o meu infortúnio. Mas
sem ele que será de mim? Que farei da vida? É provável
que o júri me absolva; matei o amante de minha mulher, tendo-os surpreendido
em flagrante. Lavei com sangue a minha honra. Mas que encantos tem agora a
vida para mim? Viver aqui para encontrá-la a cada passo, risonha, frívola,
formosa, triunfante? Amei-a, amo-a, amo-a ainda, senhor doutor, amo-a ainda
muito para poder vê-la outra vez. Viajar? Mas sozinho, sem um amigo
intimo que me distraia, que compreenda o estado do meu espírito e procure
curá-lo… fora inútil. A vida pesa-me. Não me suicidarei,
porém. Devia tê-lo feito naquele dia fatal; não o fiz:
agora é tarde. Procurarei longe daqui alguma coisa a que dedique este
resto curto de vida miserável sendo útil aos meus semelhantes.

E, tendo por alguns momentos fechado o rosto nas mãos trêmulas,
volveu com voz firme:

– Agora estou calmo. Pode falar.

– O que tenho a dizer é bem pouco. Há cinco anos, pouco mais
ou menos, recebi na Bahia uma carta escrita pelo dr. Paulino de Castro na
véspera do dia em que se suicidou em São Paulo, carta que acompanhava
esta, fechada e lacrada como agora está. Pedia-me o meu amigo, o nosso
amigo, que guardasse esta carta em meu poder para só entregá-la
ao seu destinatário se se desse uma circunstância especial, realmente
estranha…

– E qual?

– Essa circunstância era… – O médico hesitava; por fim, com
um esforço visível – era ter V. Sa. algum dia provas inconcussas
de que sua esposa o traía.

Fernando empalideceu tanto e seu corpo teve um sobressalto tão forte
que o médico ergueu-se para ampará-lo.

Ele afastou-o brandamente, murmurando muito baixo, com a voz velada e sombria
de um hipnotizado:

– É singular, é singular…

E de repente:

– Dê-me essa carta… Dê-ma!

O médico, sem se apressar a entregar-lha, observou-lhe muito calmo:

– Ignoro o conteúdo desta carta, nem o dr. Paulino me revelou qual
fosse. Apenas me ordenou que só a entregasse naquela determinada circunstância
e que o fizesse em pessoa, recomendando-me mais que tomasse as providências
necessárias para o caso de eu falecer antes de tal circunstância
realizar-se, de modo que a sua última vontade fosse cumprida. Obedeci
com religioso escrúpulo às ordens do meu pobre amigo e…

– Mas por que não me fez entrega mais cedo desse documento? Há
três meses que se realizou a condição tão singularmente
prevista por ele e, entretanto, só hoje é que V. Sa. me honra
com a sua visita.

– Estive doente, absolutamente impossibilitado de fazer esta viagem. Ora,
como era indispensável que eu fizesse pessoalmente a entrega, tive
de esperar o meu restabelecimento. Aqui tem a carta. Faço votos para
que a sua leitura lhe traga um bálsamo às dores morais que o
afligem e que o resultado do seu próximo julgamento seja, como é
de justiça, a restituição à nossa sociedade de
um dos seus mais belos ornamentos – concluiu o dr. Itaparica, com um ar prudhommesco,
erguendo-se.

Apertou gravemente a mão de Fernando – estava fria e viscosa como
a de um desmaiado.

O preso guardou a carta no bolso interno do paletó e, acompanhado
novamente pelo guarda, pediu e obteve licença para ir passear no jardim
da prisão.

A vegetação mesquinha e raquítica tinha um ar de cansaço
e tristeza; as copas dos arvoredos estavam cobertas de poeira; o terreno estava
seco, em torrões negros. Nenhuma viração agitava as folhas;
nenhuma flor alegrava a vista. A atmosfera pesava e cheirava mal.

Mas o pobre detento não tinha a impressão consciente daquele
meio desagradável e opressor, que, entretanto, devia acabrunhar-lhe
o espírito, mau grado seu. Três ou quatro homens passeavam, fumando
e conversando. Umas crianças riam e corriam descuidosamente, tentando
empinar um papagaio, empresa que a falta de vento tornava impossível.

Fernando procurou um recanto isolado; aí sentou-se e abriu com as
mãos trêmulas o sobrescrito misterioso, tirou de dentro algumas
folhas de papel, e leu sofregamente o que nelas escrevera cinco anos antes
o dr. Paulino de Castro.

CAPÍTULO VII

A CARTA

São Paulo,…de…de 189… Meia-noite.

Fernando.

Como e por onde principiar esta carta? Ah! Se eu pudesse deixar de escrevê-la!
Mas não, ela é indispensável, custe-me este sacrifício
embora muito mais que o da própria vida, que dentro de algumas horas
vou fazer também.

Sim, é um moribundo quem te escreve, meu Fernando. Dentro de algumas
horas terei deixado de existir; vou suicidar-me, e unicamente para isto foi
que vim para São Paulo.

A verdadeira causa deste ato que a imprensa e o público hão
de qualificar, como habitualmente, de ato de desespero ou de loucura, vou
dizê-la nesta carta somente a ti. Ninguém mais no mundo a conhece
nem conhecerá. Talvez tu mesmo fiques ignorando-a, porque esta carta
pode ser que te não chegue às mãos. E oxalá que
assim seja! Desejo-o ardentemente! Se eu acreditasse em Deus, suplicar-lhe-ia
com fervor que arredasse de ti este cálice de fel, não menos
terrível que o que apareceu a Jesus no Horto das Oliveiras.

Oh! Meu Fernando, o que tenho a dizer-te é por tal modo horrível
que quase desfaleço; a coragem abandona-me, e é preciso um supremo
esforço, é preciso evocar a imagem severa do dever para não
despegar da pena e interromper estas linhas. O que me alenta, o que me dá
forças para consumar este sacrifício tremendo é a esperança,
a doce, a sempre verde, a eterna consoladora. Bendita sejas, boa amiga dos
infelizes! E a esperança de que esta carta não seja lida nunca
pelo seu destinatário e que, portanto, ele fique Ignorando sempre a
pavorosa verdade sobre o meu suicídio; é a esperança
de que se não realize a circunstância, o fato de que depende
receberes esta carta. Claro é que, se a leres, será por ter-se
realizado aquela condição e portanto parecerá quase calinada
tudo o que tenho estado escrevendo até aqui; bem o sei; quero, porém,
que conheças os meus sentimentos, o desejo e os votos ardentes que
faço para que tal fato não suceda, para que não leias
nunca esta missiva assassina… digo assassina porque temo e quase pressinto
que te matará.

Que situação atroz a minha! O dever ordena-me tudo dizer-te,
sacrificar a própria honra do meu nome, em expiação do
meu crime, ser leal e verdadeiro contigo à beira do túmulo,
para te não usurpar um respeito, uma gratidão, uma saudade que
não mereço, de que não sou digno… Mas a minha amizade
por ti faz-me tremer pelo sofrimento que te vou causar, pelo golpe, talvez
mortal, que te vou desfechar, certeiro ao coração… Ele, porém,
não será o primeiro: teu coração já estará
mortalmente ferido quando o segundo golpe o retalhar. Sem aquela primeira
punhalada não receberás esta.

Oh! Deus, se existes, faze que seja assim! Afasta de meu pobre pai este cálice
de morte! Sim, porque és meu pai, e eu o sei, e já o não
esqueço… Devo-te tudo o que sou, ou antes tudo o que fui, porque
é um extinto quem te fala. Educaste-me, fizeste-me alguém; deste-me
com uma das mãos a bolsa e o coração com a outra. Deste-me
a tua confiança, a tua amizade, a tua esperança, a tua alegria,
tua alma inteira. Fizeste de mim um prolongamento do teu eu. Foste para comigo
leal sempre, além de boníssimo. Merecias que te eu amasse como
um filho de sangue e servisse como um escravo ilibertável.

Pois bem, eu… Oh! como dizer-lho, minha alma? Dá-me forças,
meu Deus! (Como Ele é necessário nestes momentos supre-mos da
vida! Nestas crises para as quais não tem o mundo solução
nem remédio!) Eu… traí-te, Fernando, traí-te como o
mais vil dos vis, o mais miserável dos miseráveis… Apaixonei-me
por tua mulher… Mas nisso não houve culpa minha… Somos nós
porventura senhores do nosso coração? Que vale dizer-lhe: "Não
ames"? Ele não recebe ordens; não é escravo: é
senhor e déspota. Mas o meu dever era afogá-lo no peito. Aquele
amor era um crime: eu devia estrangulá-lo no nascedouro. Manda a verdade
dizer que fiz esforços para isso; mas insuficientes, fracos… Eu devia
ter abandonado a tua companhia, saído de tua casa, e dizer-te mesmo
por que o fazia, lealmente: "Amo tua mulher como um louco e como sou
teu amigo e homem de bem – deixo-te, fujo". Não o fiz. Fui…
amante… de tua mulher; mas somente quando te ausentaste para o rio da Prata.
Não permaneci um só instante sob o teu teto, contigo, depois
de haver-te atraiçoado; dou-te a minha palavra de honra!… De honra?
Tenho-a eu ainda, porventura? Pode um desonrado invocar a honra? Dolorosa
irrisão!

A minha confissão está feita. Todo o tempo que passaste fora,
fui amante de Corina, gozei-a com ardor, com delírio, alucinadamente…
Há apenas algumas horas, no trem de ferro, recapitulando todas as peripécias,
todos os incidentes da nossa ligação culposa, numa análise
rigorosa de autopsicose, concluí por convencer-me de que não
a amava de verdadeiro amor, mas somente de paixão carnal…

Oh! Eu tinha necessidade de crê-lo para ter as forças necessárias
ao cumprimento do meu dever; para não retroceder covardemente e ir
viver com ela e contigo, em ménage à trois, como fazem tantos…
Horrorizou-me a idéia de vivermos juntos, os três, sob o mesmo
teto, como dantes, e por isso propus-lhe abandonar a casa e o marido à
luz meridiana, para acompanhar-me.

Sim, propus-lhe essa infâmia… tanto a amava! Mas atende que ela é
infinitamente menos vil que continuar teu hóspede, teu protegido, partilhando-te
tudo – mesa e cama. Juro-te que a minha intenção era não
me defender se me atacasses, era deixar matar-me indefeso: era aquele o teu
direito e era este o meu dever. Ela, porém, não quis: não
me amava. Quando se ama sorri-se ao perigo, arrosta-se a morte. Não
me amava, acredita-o.

A idéia de ver-te novamente, de abraçar-te, de estreitar-te
a mão leal era-me insuportável… Senti-me incapaz dessa baixeza
e isso elevou-me moralmente um pouco aos meus próprios olhos. Resolvi
matar-me, porém antes que novamente nos víssemos; não
queria que teus olhos pousassem sobre os meus depois que a luz deles se maculara
no lodo da traição: não mereciam aquela honra. Parti
esta manhã na véspera da tua chegada.

Talvez, no entanto, hajas desembarcado hoje mesmo e a esta hora tenhas nos
braços… tua mulher… e nos seus beijos não sintas ressábios
dos meus… Ah! Fernando, este pensamento queima-me o cérebro como
uma brasa viva… Tenho ciúmes, sim! Para que mentir-te… a dois passos
da morte? Se já sabes tudo! E, entretanto, falas talvez em mim; estranhas
e comentas a minha partida e ausência e isso turva-te a felicidade do
regresso ao lar… enquanto eu, aqui, neste quarto de hospedaria, escrevo
neste papel que… tenho ciúmes de ti! Monstruoso! Que imundícia
– a vida!

Sabes que tua mulher te é infiel. Descobriste-o… (Falo transportando-me
ao futuro.) Conhecendo-te como te conheço, tenho a pré-segurança
de que mataste o homem com quem ela repartia suas carícias… Mataste-o;
bem. Mas tua mulher? Que lhe fizeste? Tê-la-ias matado também?
Receio-o muito e este receio inquieta-me. Espero, entretanto, que te hajas
comiserado dela, que lhe tenhas perdoado.

A mulher é um ente moralmente inferior, irresponsável pelo
mal que faz, pelos infortúnios que espalha em torno de si. Conheces
as minhas teorias a este respeito, porque leste o meu livro, além de
que inúmeras vezes conversamos de tais assuntos. Se mataste o amante
de tua mulher, fizeste bem; mas se também a esta, erraste e foste injusto,
além de cruel. Se o homem fosse bom, seria a mulher má porventura?
É o nosso egoísmo que as estraga e perverte. Só tendo
em vista o gozo presente, sem atender aos males futuros, mentimos, fingimos,
atraiçoamos; depois de saciados, abandonamos a vítima e vamos
além, em busca de outra novidade, fazer outra vítima. Abusamos
da fraqueza da mulher, que é toda credulidade, confiança, vaidade,
amor-próprio e volubilidade. Quantas vezes atraiçoaste tua mulher?
Muitas, não é verdade? Como há de, pois, o réu
ser juiz?

Não: espero que te hajas lembrado do que de mim leste e ouviste a
este respeito e lhe hajas poupado a vida. A vida te vingará contra
ela como vai vingar-te contra mim pelas minhas próprias mãos,
dentro de algumas horas apenas.

Vou terminar o nosso suplício: meu de escrever-te, teu de me leres.
Não peço nem espero que me perdoes. Esta carta é, ao
contrário, escrita para que me não guardes estima nem gratidão,
para que me escarres na memória, para que me espezinhes a sepultura.

Mas peço-te e espero que perdoes a Corina. Fomos nós, tu, eu
e o mundo que a fizemos má. Ela é uma alma encantadora, que
foi angélica. Não soubeste cultivá-la… Lembras-te da
minha carta de Paris a propósito dos abortos? Foi pessimamente educada.
Tu, que a amavas, não soubeste corrigir os males dessa educação.
E, por fim, eu, o filósofo, o psicologista, o forte, acabo a obra da
sua perdição sucumbindo ridiculamente à paixão
criminosa que me acenderam os seus encantos. Bem vês: castigá-la,
fazê-la pagar culpas alheias, tuas e minhas, é mais que injustiça:
é crueldade, é um novo crime. Não o hás de ter
cometido, não hás de cometê-lo decerto.

Agora, adeus: adeus para sempre. Beijo-te as mãos, beijo-te os pés.
Não te peço perdão: porque o não mereço,
porque não deves dar-mo. Peço-te apenas permissão para
chamar-te mais uma vez, a derradeira – "meu amigo, meu irmão,
meu pai". Adeus, Fernando.

Aceita, recebe a alma inteira do teu desgraçado

Paulino.

CAPÍTULO VIII

FLOR DE SANGUE

Era a primeira de uma revista, feita por um dos mais aplaudidos escritores
do gênero. O Recreio Dramático apanhara uma dessas enchentes
colossais que não deixam vazio um lugar e transvasam gente até
ao fundo do jardim. Jardim sem flores, de cimento, com três ou quatro
arbustos tísicos, mal iluminado, borborinhante, tristonho, apesar de
tanta animação. Sem flores e sem claridade não há
alegria.

Nos intervalos a onda grossa e variegada dos espectadores invadia-o, espalhando-se
em todas as direções, dificultando o trânsito, desenvolvendo
um calor enorme sob o céu caliginoso, ameaçador de borrasca.
Todas as mesinhas de zinco, tanto do jardinete como do botequim, estavam ocupadas
por homens e mulheres, bebendo e rindo com estrépito. Os criados corriam
azafamados, servindo às pressas.

Era enorme a quantidade de cocotes, em grande gala muitas, algumas vestidas
mui ligeiramente. Passeavam a duas e a três, braços engatados,
insinuando-se às cotoveladas entre os homens, com ditos, gestos e risos
descarados. Alguns beliscavam-nas ou apalpavam-nas, o que provocava uma palavrada
ou uma pancada de leque, em meio de gritos e gargalhadas. Garrafas de gasosas
e champanha estouravam; tiniam copos. As brasas dos cigarros e charutos vermelhejavam,
lembrando pirilampos no sombrio de uma alfombra de relva.

Em uma das mesas estavam três rapazes bebendo cerveja. Eram dos mais
conhecidos na rua do Ouvidor e nos teatros pela sua fama literária.
Andavam quase sempre juntos; amigos inseparáveis. Um cronista, poeta
o outro, romancista o terceiro. Discreteavam com ar de tédio, arrasando
a peça e o autor, a quem chamavam de cretino para baixo, quando de
repente o cronista, que conhecia todo o demi-monde, exclamou:

– Lá vai a Corina, a heroína da famosa tragédia do ano
passado, na rua do Bispo.

– Onde? Qual? – perguntou curiosamente o romancista.

– Vês aquelas duas mulheres que pararam ali ao pé do lampião
para falar com o Viana e o Paranhos? É a de vestido claro e chapéu
de plumas; está de costas; voltou-se agora.

– Oh! Mas é formosa! Conheço toda a sua história. Daria
de certo matéria para um romance de primeira ordem. Talvez que eu o
escreva ainda.

Corina passou por eles nesse instante. Estava radiosa de frescura e graça.
Engordara um pouco com a vida dissoluta que levava desde alguns meses. Adquirira
esse quid especial, indefinível, da mulher que faz do amor profissão;
mas, apesar disso, tinha ainda nos gestos, nas palavras, na fisionomia um
resto de ar caseiro, do ar honesto da mulher que não ama para viver,
por negócio.

– E sabes como eu intitularia esse romance? – perguntou o romancista. E acrescentou
logo: – Chamar-lhe-ia Flor de Sangue. Sim, que é essa mulher senão
uma flor brotada e desabrochada no sangue de dois homens? O seu batismo para
o amor livre foi o sangue do terceiro amante na noite da tragédia.
Lembras-te? Toda nua, desmaiada, borrifada por todo o corpo do sangue tépido,
rubro, espumante que o marido fazia jorrar das veias do outro?

– Tens razão – observou o poeta. – Ficará sendo conhecida por
Flor de Sangue. É um belo nome de guerra.

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.