Uma Tragédia no Amazonas

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Raul Pompéia

Capítulo I: Uma habitação

Algumas léguas ao sul do Monte Puracê, emanam do solo as águas
do Iapurá, que, de campina em campina, de bosque em bosque, passam
o Equador e entram no grande Império americano, para aí, espumando,
confundir-se com as ondas do soberano dos rios, o Amazonas.

O viajor que subir a sua margem esquerda encontrará a modesta povoação
de S. João do Príncipe, e se continuar a subir, ver-se-á
logo em uma espaçosa várzea matizada de transparente verdura,
que, de um lado, se estende a perder de vista, de outro, metamorfoseia-se
em floresta, correndo por entre o Iapurá e montanhas tapetadas de um
esverdeado sombrio, que corcoveando qual monstruosos golfinhos vão
ao longe desmaiar em azul o seu colorido suave.

O povoado e essa extensa planície comunicam-se por uma estreita picada.

É um desses caminhos de poesia selvática que se insinuam sob
as abóbadas do arvoredo, parecendo destinados somente ao encanto do
olhar.

A sua direita ostenta-se com toda a opulência, a mata virgem do Brasil,
enredada de cipós que descrevem as mais caprichosas curvas, entre os
idosos troncos guirlandados de parasitas, onde mil macaquinhos ligeiros soltam
inquietos gritos, suspensos pela cauda, ou voando de ramo em ramo.

Do meio das moitas de arbustos, saem, às vezes, cobrinhas, que atravessam
a picada avançando prudentemente para o outro lado.

À esquerda desliza o afluente do Amazonas, murmurando ao entrar nas
criptas formadas pelas rochas alcantiladas, que se empinam sobre as águas,
ora calvas, ora cobertas de vegetação.

No lugar em que esta estrada desemboca da floresta, erguia-se, há
alguns anos, uma habitação de aparência alegre, caiada
de branco e edificada de maneira que causaria pasmo a quem não esperasse
encontrar o civilizado em lugares onde a natureza é a rainha.

Quase mergulhada em um magnífico roseiral, tinha essa morada por única
trincheira uma cerca de varas retorcidas, que ia terminar junto à palissada
do redil do gado.

Aí residia Eustáquio de…, subdelegado de polícia,
na freguesia que abrange S. João do Príncipe, entre outras povoações,
em companhia de sua esposa, Branca e uma linda orfãzinha de nome Rosalina,
servidos por dois escravos, Ruperto e Silvano.

Natural de Pernambuco era Eustáquio um homem enérgico, inteligente
e talvez ilustrado; quanto ao físico era, como se usa dizer, nem alto
nem baixo, musculoso e forte possuindo uma constituição moldada
aos mais ardentes climas.

O seu rosto moreno velava, em parte, uma barba negra e cerrada como os supercílios
que sombreavam dois olhos brilhantes.

Tinha alguma fortuna, o que era por todos ignorado.

Branca, sua consorte, havia pouco mais de dois anos, nascera em Manaus e
tendo ido completar a educação em Pernambuco de lá voltara
com Eustáquio, que a desposara, levado pelos seus dotes físicos
e morais.

Desembarcando na cidade do seu nascimento soubera Branca que daí partira
o seu pai para S. João do Príncipe, o que motivou a viagem que
fez ela para essa povoação.

Achava-se o velho sogro de Eustáquio habitando uma casinhola, que
foi a moradia deste, até findar-se a construção dessa
casa mais confortável de que acima falamos.

Poucos meses sobreviveu o velho à sua nova instalação,
lançando o seu falecimento o luto no domicílio de Eustáquio.

Havia o limiar de Branca sido franqueado a um entezinho nascido na penúria
e para quem muito cruel se mostrara a Providência. Era Rosalina, que
assim viera adicionar um membro á pequena família do subdelegado.

Formosa como a flor, essa criança mostrou-se grata aos seus protetores,
revelando em todos os movimentos uma alegria que fazia esquecer quanto a sua
almazinha fora malhada pelo sofrimento e dilacerada pelo destino.

Ruperto e Silvano eram simplesmente dois negros, mas devemos acrescentar,
dois crioulos briosos e amigos devotados do seu senhor.

Na época a que nos referimos no começo desta narração,
o luto pelo pai de Branca já desaparecera, sufocado pelo prazer que
reassumia o seu lugar no lar de Eustáquio.

Quase todos os dias, apenas os alvores matutinos principiavam a branquear
no oriente, Branca e a menina saíam de casa e, com as vestes em desalinho,
iam, à beira do rio, ver surgir o astro da luz.

Com divertimentos semelhantes, levavam uma existência feliz, inda que
monótona, quando começaram a dar-se incidentes que trouxeram
a inquietação ao ânimo de todos.

Desapareciam animais, outros amanheciam degolados e agonizantes, plantações
devastadas e porteiras lançadas por terra.

Estes danos, partos da perversidade, não eram, talvez, mais que o
prelúdio de alguma catástrofe remota.

Eustáquio, sobressaltado, velou muitas noites e, percorrendo com Ruperto
o campo e a floresta, prestava ouvidos mesmo ao sussurro do vento que curvava
os altos galhos das castanheiras, ligeiramente prateadas pelo luar.

Tudo foi embalde.

Entretanto a importância das perversidades subia gradualmente.

O subdelegado, receoso de uma dessas correrias medonhas de selvagens, que
levam a devastação às mais magnificas paragens, deixando
impressos os seus passos em uma trilha de cadáveres e de cinzas e fazendo
fugir diante de si centenas de famílias expostas às suas crueldades,
determinou guarnecer a sua morada, assim como o povoado de uma força
militar, porém não encontrou soldados em S. João do Príncipe
nem nas povoações vizinhas.

Só lhe restava, pois, pedir socorros a Manaus, onde se achavam as
autoridades superiores da polícia, mas este proceder avultaria acontecimentos
que podiam também ser simplesmente vinganças sem valor dos muitos
inimigos que possuía, como os possui, quem conscienciosamente administra
a justiça, o que incutiria imotivado terror no espírito dos
habitantes da vila.

Para isso evitar, Eustáquio contentou-se com aguardar as circunstâncias
do futuro.

Foram-lhe elas favoráveis, chegando ao povoado dois guardas vindos
de Uarivan, que foram postos a seu serviço.

Quotidianamente, ao anoitecer, avistava-se os dois soldados subindo silenciosos
a picada, a fim de se postarem à porta do subdelegado cujas providências
suspenderam, ao menos aparentemente, a série de malvadezas contra ele
praticadas.

A vista da sua superfluidade, não duvidou Eustáquio em dispensar
os serviços dos policiais, que se retiraram definitivamente para S.
João do Príncipe.

Capítulo II: Dois viajantes

A peça principal da casa de Eustáquio era uma sala, de boas
dimensões, entre paredes de imaculada alvura, que era clareada por
três janelas de caixilhos brancos.

Uma tarde, achando-se o subdelegado ausente por exigências do seu cargo,
estavam Branca e Rosalina assentadas junto de uma dessas janelas, entretidas
na leitura de um livro, iluminado pelo brando clarão roxeado que algumas
vezes tinge as paisagens, ao crepúsculo, quando ouviram duas leves
pancadas na porta.

— Eustáquio! exclamou a jovem filha de Manaus regozijando-se
com a chegada do esposo.

Deixando cair o livro sobre uma pequena mesa, correu à porta. Quando,
porém, começava a suspender uma tranca de ferro que a reforçava,
recuou e disse vivamente, em voz baixa:

— Não, é impossível, não é ele,
pois que quando partiu assegurou-me que só amanhã estaria de
volta.

Rosalina olhou Branca e viu-a tornar-se lívida e tremer levemente.

— Tem medo, mamãe? perguntou ela concedendo à esposa
de Eustáquio esse doce epíteto.

— Na verdade, Rosalina, sinto-me, não sei porque, atemorizada…
aqueles acontecimentos… a ausência de meu marido… tenho apreensões
horríveis…

Nesta ocasião, apresentou-se Silvano em uma das portas interiores,
que dava entrada para um corredor, algum tanto enfumaçado pelos vapores
da cozinha que ficava na sua extremidade.

Branca acenou-lhe para que fosse saber quem batera. O preto abriu mui cautelosamente
a porta, depois de alguns instantes fechou-a e, rindo-se da sua extrema prudência,
anunciou dois viajantes.

A senhora, tranqüilizada, disse:

— Convide-os a entrarem.

Abriu-se de novo a porta, e dois indivíduos se mostraram sobre a soleira.

Um deles era um homem alto, cheio de corpo, de porte sereno mas intrépido,
cuja boca desaparecia, encoberta por dois bigodes louros que formavam a base
de respeitável nariz, verdadeira pirâmide do Egito. Trajava de
viajante trazendo a tiracolo uma espingarda.

O outro era um rapazinho de dez ou doze anos. Tinha o rosto, de beleza pouco
vulgar aos do seu sexo, aureolado de cabelos de ouro, tendo seus olhos um
tom de atrevimento superior a sua idade.

Estava vestido como o companheiro, possuindo como ele uma boa espingarda.

Os recém-chegados e a dona da casa trocaram os cumprimentos. Em seguida
Branca dirigindo-se ao mais velho deles perguntou:

— Em que poderei ser-lhe útil, meu senhor?

— Já vos direi, minha cara senhora, começou o viajante
que pela entonação da voz parecia francês, porém
depois que souberdes quem sou.

"Chamo-me Henrique Dugarbon, minha pátria é a França.
Por amor de aventuras estou no Brasil, e há já dois anos que
eu o percorro em todos os sentidos.

"Este menino é meu filho Otávio, que me tem seguido por
toda a parte.

"Os perigos das minhas viagens têm crescido desde que sai de Manaus.

"Três semanas já se passaram, depois que deixei as margens
do Rio Negro, durante elas andei errando pelas florestas, rompendo os matagais
e transpondo, com dificuldade e perigo, os largos pântanos e as regiões
dominadas pelos selvagens. vindo suspender a minha jornada diante das águas
do Iapurá, que banha os alicerces de S. João do Príncipe,
onde há de ficar esta criança.

"Os motivos que me forçam a isso são as provações
que, bem o sei, me esperam nas excursões que tenciono fazer através
da imensa porção do Brasil que está ao norte do Amazonas
e a elas não quero sujeitar uma natureza débil como a de Otávio…
Neste ponto o menino quis falar, mas, vendo o pai continuar, conteve-se, deixando
rolar uma lágrima pela face rosada… O que espero da vossa bondade,
devo agora dizer-vos, é unicamente o favor de indicar-me o caminho
a tomar para a povoação."

— Sr. Dugarbon, muito mais tenho feito por outros peregrinos; o que
o senhor me pede não é um favor, pois que tenho obrigação
de o fazer.

"Eu mesma levá-lo-ei, depois que houver ceado, até a embocadura
do caminho, que poucos passos separam daqui."

A graciosa Branca falava com a naturalidade franca de uma provinciana brasileira.

— Minha excelente senhora, no meu coração agradecido
se perpetuará a lembrança do acolhimento que me dais.

— Ora, não lhe admire isto, senhor, o que faço qualquer
outro o faria, venha portanto provar, como o seu Otávio, do que para
vós mandei preparar.

Enquanto Branca, a orfãzinha e os dois franceses tomavam assento em
volta da mesa de jantar, coberta com uma toalha de linho e alumiada por um
lampião de querosene, pois já era noite, cujo abat-jour fazia
cair a claridade sobre um assado de carneiro, Silvano, contente, celebrava
a recepção de quatro camaradas, companheiros de viagem do francês.

Todos eles deviam se ir munir do necessário em S. João do Príncipe,
para continuar a jornada.

Correu a refeição perfeitamente, versando a conversação
sobre as maravilhas vistas pelos viajantes.

Otávio e Rosalina tinham travado inocente amizade e, sem que o pai
visse, aquele presenteara a esta com um pedacinho de ouro grosseiro, recebendo
da menina uma mãozinha de coral que ela costumava trazer ao pescoço.

Já se erguiam da mesa, quando um assobio demorado e forte feriu os
ouvidos de todos.

Fez-se absoluto silêncio e cada um se interrogava mudamente.

Branca estava grandemente assustada e o francês aproximou-se, cheio
de calma, da janela.

A noite era escura, mas a luz das constelações bastou-lhe para
perceber três ou quatro vultos que se chegavam para o cercado.

— Há novidade por aqui, disse, mas nada têm que temer.

— Camaradas! gritou com voz máscula mas serena, fogo naquela
direção!

Quatro balas partiram, porém nada lhes respondeu.

Fechou-se a janela.

— Minha senhora, disse gravemente Dugarbon, ainda não tive a
indiscrição de perguntar-vos se tendes pai ou marido que more
convosco mas este incidente me obriga a fazê-lo.

— Correis perigo, esta gente não me parece bem intencionada.

— Aqueles homens que lobriguei são sem dúvida, continuou
o francês, bandidos que vos espreitam.

— A mim não, interrompeu a esposa do subdelegado, mas a meu
marido.

— Assim pois, sois casada, não?

— Sim senhor, com Eustáquio, subdelegado desta freguesia.

— Podeis dizer-me onde se acha ele, agora?

— Acha-se fora ocupado em investigações sobre um roubo
de pouca valia, deve voltar amanhã, se o permitir o céu.

— Tenho, assim, minha senhora, o prazer de comunicar-vos que, antes
da chegada do Sr. subdelegado, não deixarei esta casa, para vossa segurança.

Branca, que não encarava sem terror a idéia de uma agressão,
aceitou contente.

— Obrigada, disse, do seu caráter não esperava outra
cousa, todavia creio que a minha segurança não exige que não
repousem o senhor e o seu filho das suas fadigas.

— Aquela alcova é dos viajantes e portanto do senhor. Falando
assim apontava para uma porta de vidraças, cobertas com pequenas cortinas
de cassa, que, meio-aberta, deixava entrever duas camas, comodamente paramentadas.

O oferecimento foi bem recebido e, desejando a Branca e Rosalina boa noite,
os dois peregrinos entraram para o aposento indicado.

Silvano e os camaradas assentaram-se perto da entrada e aí adormeceram.

Com Rosalina recolheu-se a mulher de Eustáquio, não antes de
amortecer a chama do lampião, que começou a espalhar pela sala
essa luz escura que tanto agrada a Morfeu

Capítulo III: Primeiras desgraças

No dia seguinte, mal principiava a aurora a derramar suas torrentes de ouro
sobre o dorso sinuoso dos cirrus do nascente, já longe da cama estavam
todos.

O café fora servido por Silvano, que foi, depois, abrir a porteira.

Quando voltava dois homens saíam da picada, dirigindo-se para a morada
de Branca.

Era um Eustáquio, que volvia aos seus penates, e o outro Ruperto,
seu escravo.

Depois da explosão de alegria que fez Branca pela volta do esposo
foi o francês apresentado a este que não pôde deixar de
o abraçar ao saber do interesse que por sua consorte havia mostrado.

Henrique Dugarbon olhou, então, para o oriente.

O sol vinha nascendo, de um aspecto imponente, e os seus raios purpurinos,
de horizontalidade quase perfeita, iam desenhar, na parede da casa, a sombra
do grupo formado pelos seus donos e hóspedes.

— Minha senhora, disse em tom solene, Sr. Eustáquio, a Providência,
que me trouxe a vossa casa, onde fui acolhido como nunca o esperei, ela mesma
me manda hoje deixar-vos

"Vou prosseguir na minha tarefa. Talvez tenha de oferecer a minha vida
em holocausto à ciência, mas se assim não for, eu vos
juro, pelo criador daquele astro, que vos hei de pagar o que por mim tendes
feito.

"Recebei os meus sinceros, ainda que insuficientes agradecimentos, que
vos transmito por este adeus."

Eustáquio se declarou sentido pela rápida partida do francês,
porém este, obstinado, afastou-se para o rio, depois de ardentes abraços
e apertos de mão.

O subdelegado, a mulher e Rosalina acompanharam com a vista o francês
e seus companheiros, até vê-los desaparecendo atrás dos
cacaueiros da picada.

Em seguida o marido de Branca falou à família.

— A tentativa de ataque de que foi vítima a nossa casa, esta
noite, me parece um aviso.

"Terão de recomeçar as minhas perseguições?
Julgo que sim.

"Devo portanto, sem demora, garantir a minha segurança."

— Silvano, disse ele, dirigindo-se ao escravo, tens que ir hoje à
povoação, para engajar os soldados que se te apresentarem.

"São dois somente, mas bastam."

Algumas horas depois seguia o negro em direção ao povoado,
de onde, pouco antes, partira Dugarbon para o norte.

À tarde chegaram os policiais, mas, fato estranho, Silvano não
voltou.

Isso excitou a curiosidade e o receio em Eustáquio que saiu logo,
com os dois guardas, para S. João do Príncipe.

No caminho encontraram grandes manchas de sangue escuro, que não tinham
sido apercebidas pelos soldados, quando eles por aí passaram.

Disso concluíram o assassinato do infeliz Silvano, pois que os policiais
asseguravam que ele deixara o povoado apenas cumprida a sua missão.

Verdadeira dor sentiu o subdelegado pela perda do seu dedicado servo, mas
entrou em casa com ar satisfeito, dizendo que enviara o negro a Belém.

Esta asseveração não pôde desvanecer as suspeitas
de Branca nem de Rosalina, principalmente depois da desgraça que sobreveio.

Muitos dias fizeram os policiais o seu serviço, com toda a regularidade,
até que, em uma ocasião, vindo eles ao por do sol pela estrada,
um ao lado do outro, o estalo de um tiro despertou os pássaros que
se acomodavam nos ninhos.

Um dos soldados fora ferido na perna esquerda e jazia caído.

O outro correu direto ao tiro, cuja fumaça dissolvendo-se pela viração
se elevava vagarosamente acima das ervas que vegetam nas ribas do Iapurá,
mas nada viu. Desceu a encosta da ribanceira, com uma pistola engatilhada,
e chegando à flor d’água começou, com os olhos investigadores
a percorrer o rio.

No fim de alguns momentos, observou que a água, enegrecida pela noite,
já próxima, se agitava ao longe.

— Estás lá, bandido, pensou ele, estás aviado,
ou morres afogado, ou provas uma bala desta pistola.

O soldado, tinha suspendido a arma e a ia descarregar, mas um grito veemente
de socorro fê-lo parar.

A voz partira do lugar da estrada que lhe ficava por cima da cabeça.
Era indubitavelmente o guarda ferido, que fora atacado por inimigos covardes.

O seu companheiro, um moço valente, voltou-se e começou a galgar
a ribanceira.

Não dera dois passos quando uma sombra surgiu ao seu lado.

— Pára! gritou ela, desaparecendo um momento oculta pelo clarão
forte de um tiro.

O projétil resvalou pelo ombro do policial, que maquinalmente disparou
sobre o seu agressor. De súbito, sumiu-se este.

O estampido deste novo tiro abafara segundo grito, mais afastado porém,
que implorava:

— Acuda-me! Acuda-me!

De um salto o guarda chegou à picada. Era já tarde e por mais
que buscasse pôde apenas certificar-se do desaparecimento do seu estimado
companheiro.

Encontrou um lago de sangue e alguns farrapos de vestuário, no lugar
onde devera ter havido uma luta entre os assassinos, ou o assassino, e a vítima.

Já era esta a segunda e como a primeira fora oculta.

No meio da escuridão de uma noite sem lua, mais sombreada ainda pelos
rolos tempestuosos de grossas nuvens que se estendiam pelo firmamento, prorrompeu
o soldado em imprecações contra Eustáquio, causador da
morte do seu amigo e em blasfêmias contra Deus, que não o fizera
chegar a tempo de a evitar.

O desespero do pobre guarda já tinha aparências de loucura.
Andava desvairado, pisando o solo com força, e sem ânimo de arredar-se
do terreno inda úmido pelo sangue do amigo.

Repentinamente, o desgraçado sentiu uma viva dor em um dos tornozelos.
Tinha sido mordido por uma serpente, ele a vira, mas sem refletir deitou a
correr precipitadamente e sem rumo. Enlouquecera.

Principiava uma chuva abundante, e o trovão que desde muitas horas
se fazia ouvir crescia em estrondo.

Capítulo IV: Os tiros

Enquanto tinham lugar na picada tão infandos acontecimentos, eis o
que se passava em casa de Eustáquio.

O relógio redondo, que pendia da parede da sala de jantar, apresentando
suas formas empoeiradas, apontava três horas da tarde.

A mulher do subdelegado e sua amada protegida, saindo da mesa, acompanharam
o subdelegado, assentando-se em cadeiras perto da porteira do roseiral.

Se há espetáculo grandioso no interior do Brasil é a
formação de uma tormenta. Ela é lenta mas transporta
a alma, que parece deixar momentaneamente a terra.

Era uma dessas cenas que contemplavam.

O céu estava límpido, mas, de um instante para outro, começaram
a aparecer grandes moles esféricas de nuvens, deslumbrantes de brancura,
que nasciam detrás da montanha, tornando-lhe nítido o perfil
verde escuro da crista, e subiam majestosamente ao encontro do sol que, declinando
para o ocaso, as bordava de fulgente prata.

Já algumas chegavam ao zênite encobrindo o sol, já as
mais baixas tomavam a cor de chumbo.

A aragem que soprava deixou de balouçar as folhas da mata e, na ocasião
em que a natureza emudecia, rolou ao longe um trovão. Prenúncio
da tempestade. Ela aí vinha.

Meia hora depois, uma tira de fogo zig-zagueou no espaço, seguiu-se
um trovão, menos remoto que o primeiro, que percorreu o céu
já todo negro.

— Vamos ter uma grande trovoada, observou Rosalina.

— Entremos, disse Eustáquio levantando-se.

Quando subiam os degraus da porta, grossas gotas d’água choveram e
a emanação da terra se fez sentir.

A família acercou-se de uma janela e, até anoitecer acompanhou
as peripécias da tormenta, que serenara um pouco.

Ainda todos estavam na janela no momento em que uma detonação
na picada chegou-lhes aos ouvidos.

Era a hora em que deviam chegar os soldados.

— Um tiro! exclamou Branca, benzendo-se.

A orfãatilde;zinha a imitou e o subdelegado lhes disse:

— Ouviram? Um tiro! São os miseráveis que atacam os guardas.
Vou socorrê-los!

E quis correr, mas a mulher o conteve, não sem custo, conseguindo
persuadi-lo da sua imprudência. Logo depois ouviram fracos gritos de
apelo.

— Pobres homens, disse surdamente Eustáquio.

Foi então que Rosalina que ficara na janela gritou:

— Vejam! olhem aqueles que correm em direção ao tiro!

— Meu Deus! murmurou a esposa dó subdelegado.

Realmente, por entre o mato distinguia-se alguns homens correndo para a picada.

Duas detonações seguiram-se, recaindo a noite no silêncio
possível em uma tormenta.

A trovoada recrudescia e, minutos depois, chovia a jorros.

Entretanto, em uma estiada, como que perceberam todos um rumor longínquo,
que vinha do lado do rio.

Sentiram o coração, termômetro dos terrores, latejar
com força.

Realmente, nada é tão terrível a quem, na solidão,
espera um perigo como escutar um ruído inexplicável.

Eustáquio e Ruperto tomaram duas espingardas e esperaram.

O rumor crescia e logo se pôde conhecer que provinha da carreira de
alguém.

Tamanha era a escuridão que tornava impossível avistar-se cousa
alguma a mais de quatro passos.

Eustáquio, como qualquer outro em iguais circunstâncias, perdeu-se
em medonhas conjecturas.

Quando mais próximo pareceu-lhe o corredor, gritou:

— Onde vais, homem?

Por única resposta ouviu:

— Malditos! malditos!

E uma pistola veio cair-lhe aos pés.

— É um dos guardas, disse Ruperto que, a um relâmpago,
conseguiu ver quem passava.

Era, na verdade, o soldado que o leitor viu louco e que, por acaso, seguira
na sua furiosa carreira a direção da morada de Eustáquio.

O policial se perdera na negrura da noite quando Ruperto saiu para agarrá-lo,
porque o subdelegado reconhecera a sua loucura.

Antes de o atingir, o escravo viu-o cair e estorcer-se, a luz rápida
do fuzil, de um modo horrível, e quando chegou à eminência
do terreno onde ele estava deitado, achou-o sem vida.

Fora a morte o resultado do veneno da cobra.

Tomando aos ombros o cadáver, Ruperto o levou para a casa onde foi
depositado na sala.

Branca e Rosalina, não o querendo ver retiraram-se para o interior.

Gradualmente extinguiu-se a tempestade e as brisas da madrugada tocaram para
leste as últimas brumas

Capítulo V: Novos engajados

S. João do Príncipe tem uma espécie de largo no lugar
onde atracam as embarcações do Iapurá.

Para ele convergem as mal alinhadas vielas do povoado, fazendo nesse ponto
o seu centro de atividade; apesar disso, a não ser em domingo, só
se vêem aí uns sete ou oito ociosos que passam as horas de interminável
palestra. Todavia, em uma quinta-feira, o que era extraordinário, achavam-se
numerosas pessoas reunidas em grupos que discutiam com alento.

De vez em quando cessavam as altercações para refrescarem-se
com os chapéus de abas largas, porque o calor se tornava insuportável.

Depois, continuavam a aventurar hipóteses, para a explicação
de uns tiros ouvidos durante a noite.

Já se decidiam até a ir à casa do subdelegado.

De repente, escutaram um galopar de cavalo e um cavaleiro apontou, à
rédea solta, em uma rua.

Era um negro, que sem prestar atenção aos conversadores atirou-se
da sela à porta de uma casinha do largo.

Todos os olhos estavam sobre ele.

Viram-no bater e entrar.

Siga-o leitor.

Apenas introduzido o preto, um padre veio-lhe ao encontro.

— Oh Ruperto! Você por aqui! O que há de novo?

— Muita cousa, senhor padre, respondeu o recém-vindo,

— Pois fale, disse o sacerdote, que não era menos que um amigo
de Eustáquio.

— Não é necessário, senhor padre Jorge, aí
tem esta carta que dirá tudo e mais ainda.

O padre Jorge recebeu a carta que lhe apresentava Ruperto, e leu-a toda.

O seu amigo depois de referir o que sabia sobre os soldados agredidos, pedia-lhe
que enviasse, incontinenti, homens corajosos para sua guarda.

— Vou já satisfazer ao subdelegado, disse o padre, caminhando
para a porta, onde se fizera ajuntamento de gente.

Com a familiaridade de que usava para com esses homens, contou-lhes o que
sucedera aos policiais e perguntou quem deles se queria pôr a serviço
de Eustáquio, mediante boa paga.

Muitos se ofereceram porém o padre só escolheu os quatro mais
conhecidos pela sua valentia e dedicação.

Eram todos uns paraenses morenos e corpulentos, cuja bondade de coração
se pintava num sorriso quase constante em seus lábios.

Levando uma carta em que o padre fazia a apresentação dos paraenses,
partiram estes e Ruperto para a morada do subdelegado.

Em caminho foram alvo de alguns tiros sem resultado e revistadas as balsas
que bordam a picada cousa alguma distinguiram além de vestígios
de recentes passos.

Logo que o subdelegado os recebeu deu ordem a Ruperto de velar pela casa
e, armando os improvisados guardas, fez enterrar o soldado, indo depois explorar
os lugares que julgava terem sido o teatro do assassínio.

A chuva da noite lavara o sangue, mas pelas plantinhas quebradas e pelos
fragmentos de pano esparzidos, muito devera ter sofrido a vítima atrozmente
arrastada.

Eustáquio não sabia a quem atribuir tais crimes.

Quem seriam os seus autores? Qual seria o seu móvel? A primeira pergunta
o seu íntimo como que respondia, mas era-lhe incrível.

Ia nestas meditações, quando os exploradores que examinavam
a ribanceira exclamaram:

— Um cadáver!

Via-se, com efeito, meio mergulhado no rio, um corpo

Pertencia a um negro de repelente fisionomia, e segurava com os rígidos
dedos um bacamarte.

Era este o vulto sobre quem o jovem policial descarregara a pistola.

O espírito do subdelegado foi intrigado pelo aparecimento deste cadáver.

Com certeza, era de um indivíduo que atacara os guardas e devia ter
sido morto por eles, mas esse negro Eustáquio julgava reconhecê-lo,
e suas reminiscências se avivando, suas idéias se iluminaram.

Julgava ter descoberto a verdade e uma nuvem de raiva sombria pousou-lhe
na fronte.

Não consentiu que o corpo fosse transferido para sua casa, enviando-o
para S. João do Príncipe, e teve o cuidado de ocultar à
família suas crenças e suspeitas. Podiam ser falsas.

Estabeleceu-se a vigilância dos arredores do sítio pelos quatro
engajados, embora provisoriamente, porque Eustáquio escrevera para
Manaus exigindo pronto reforço não só de policiais como
de munições.

As notícias, levadas por uma dessas embarcações que
sulcam vagorosamente o Amazonas, causaram grande sensação na
capital da província, indo ainda repercutir em Belém, todavia
no Rio de Janeiro talvez nem divulgadas fossem.

Seis praças comandadas por um cabo seguiram de Manaus, a fim de acalmar
os ânimos aterrorizados dos moradores de S. João do Príncipe.

Capítulo VI: Tranquilidade

Em todo este procedimento gastaram-se algumas semanas, durante as quais,
apesar de não inquietados, estiveram os moradores da povoação
ansiosos pela chegada de novos guardas.

Em um belo dia houve desusado movimento nela. Todos os seus habitantes corriam
a assistir ao desembarque de sete soldados.

Espíritos singelos! O que em centros de civilização
passa desapercebido, em lugares como S. João do Príncipe é
um fato digno de ser visto e apreciado!

Não se ria o leitor, pois que não se ri quando uma criança
diz admirável o que mais não é que muito natural.

Esses rústicos são as crianças da civilização,
os neófitos do progresso!

Em lugares como esse, onde o clarão vivificante do adiantamento não
chegou ainda, tudo quase que é selvagem.

Se há virtude, ela se eleva fulgurante de corações limpos
de afetação, se crime, chamejante ele se ergue, rodeado dos
vícios em toda a sua hedionda naturalidade.

Prossigamos.

Desembarcadas as praças, apresentaram-se ao subdelegado que tomando
cinco para sua casa, como ponto mais ameaçado, deixou duas no povoado.

Foram dispensados, então, os paraenses, e os policiais entraram a
render-se em quartos de ronda diurna e noturna, na residência de Eustáquio.
Escusado é dizer que os atentados cessaram.

Meses passados, recebeu o marido de Branca a demissão de seu cargo.
Não trataremos dela, notaremos unicamente que o novo subdelegado, de
incapacidade reconhecida, sabendo do que se passara em S. João do Príncipe,
afastou-se, indo algures buscar morada.

Continuavam contudo os soldados em casa de Eustáquio, por quem já
sentiam profunda amizade.

Corria o tempo. Um ano, dois anos abismaram-se nos escuros do passado e aurora
feliz despontava para a família de Branca.

Os perseguidores não davam provas de existência.

Voltara o sossego.

Nenhum fato mencionável se dera nesses dois anos, se não considerarmos
a partida de cinco soldados para Manaus e a entrada em S. João do Príncipe
de seis espanhóis, que haviam transposto a fronteira da república
do Equador.

No fim de poucos dias estes se ausentaram, sendo totalmente esquecidos.

Onze anos contava Rosalina, ostentando já incomparável beleza.

A beleza da orfãzinha, moldurada de uma graça inefável,
que só dá a inocência, realizava o ideal do "anjo".

Sorrindo a todo instante cercava-se o rosto da menina de uma atmosfera de
prazer que arredava para longe a tristeza.

Suas risadas e seus ditos infantis ecoavam pela casa e pelo roseiral, transpirando
regozijo eterno.

É essa beleza angélica que certas mulheres afetadas pretendem
possuir.

Símplices! levianas! Só conseguem conquistar do vulgo o título
de "delambidas".

É também a que todo o poeta empresta ao seu objeto idolatrado.

Mas os poetas!… Cantam a lua antes de vê-la através das lentes
telescópicas.

Como o astrônomo deixa escapar um riso de mofa, ao ler uma poesia à
lua de algum enlevado cantor, o conhecedor profundo desse bando, denominado
pelos homens das nuvens, "belo sexo", e mais prosaicamente mulher,
não pode reter o escárnio, contemplando um hino em que um amante
em delírio exalta os grandes dotes da sua bela.

Não devemos enfastiar o leitor com digressões desta ordem.

Reentremos na narração.

Tudo florescia nas margens do afluente do Amazonas. As plantações
do ex-subdelegado renasciam virentes, coroavam-se as roseiras de purpúreas
flores e do curral partiam balidos de ovelhas, intercalando o mugir majestoso
e cheio das luzidas vacas, que olvidavam as míseras companheiras desumanamente
esfaqueadas dois anos atrás.

Para melhor e em menos palavras traduzir a prosperidade que reinava, basta
dizer que Eustáquio, o qual já nutrira fortes desejos de deixar
a província do Amazonas, se resolvera a permanecer em sua residência.

Resolução funesta.

As belas noites sucediam-se aos dias deliciosos, embora a temperatura, elevada
exigisse freqüentes banhos no líquido refrigerante do Iapurá.

………………………………………………………….

Pusera-se a lua, escondendo segredos além das colinas, depois de oferecer
ao olhos do mundo um arco delgado de luz.

Densas trevas envolveram os bosques em que se aninha S. João do Príncipe,
realçando as estrelas que rutilavam no céu.

Flutuando na massa aquosa do Iapurá, poderia ver um objeto pouco alongado
quem então passasse pela picada.

O objeto vogava mansamente.

Era uma canoa.

Seguiu até os terrenos do protetor de Rosalina e movendo-se parecia
querer se ocultar sob as muralhas de rocha da margem.

Logo que parou, uma sombra de baixa estatura, saltou em terra, deu alguns
passos, entrou no roseiral de Eustáquio, prestou ouvidos à porta
e debaixo das janelas e assentada sobre a cerca levou tranqüilamente
escutando uma hora inteira.

— Nada há de novo, disse enfim.

Levantou-se, e entrando na canoa voltou para o povoado.

Quem era essa sombra em breve saberá o leitor.

Capítulo VII: Sob o véu do mistério talvez haja um
defensor

O sossego voltando fizera o novo subdelegado murmurar, contra, dizia ele,
o abuso que cometia Eustáquio conservando inutilmente dois guardas,
em detrimento do interesse público.

Menos que isso era suficiente para dirigir o comportamento do esposo de Branca,
que apenas ouviu o que se tornara já voz geral deu ordem aos policiais
para se retirarem.

A necessidade de vigilância não se fez sentir imediatamente
e quinze dias se foram sem a menor quebra de tranqüilidade.

Branca e sua pequena companheira, confiadas no desaparecimento absoluto dos
temíveis celerados, começaram a dar, sozinhas, demorados passeios
pela estrada e pela campina, sobre cujas ondas de verde-claro adejavam lindas
borboletas.

Pela manhã e à tardinha tinham sempre lugar estes passeios,
que foram enfim bruscamente interrompidos por um gravíssimo risco e
que milagrosamente escaparam as passeantes.

Um dia ao romper d’alva a moça e a menina, depois de deliciosos tragos
de café, seguiram vagarosamente e distraídas para S. João
do Príncipe.

Aspiravam com prazer as fragrâncias matinais exaladas das moutas de
baunilha e da relva delicada, ao passo que caminhavam.

Finalmente, meio fatigadas assentaram-se sobre um tronco carcomido e tombado
junto à estrada.

Os primeiros raios do dia rompiam indiscretamente a folhagem, projetando
no chão avermelhado inextrincáveis claros e escuros que faziam
os ramos.

Esqueciam-se elas das horas e sorriam internamente ouvindo as melodias tremuladas
pelas aves.

Tinham-se levantado e por entre os troncos das seringueiras acompanharam
os movimentos de um enorme jacaré, vendo-o mergulhar ao longe, no meio
do rio.

Nesse instante perceberam, atrás de si, um barulho nos espessos matagais
que encobrem as possantes raízes dos gigantes da floresta.

O seu primeiro sentimento foi de curiosidade, mas logo tremeram de terror.

Acabava de saltar para a picada uma figura… Mas que figura!

Um negro horrendo, cujas feições angulosas e agudas emprestaria
ao demônio a mais tenebrosa imaginação de pintor.

Empunhava medonho facão áspero de ferrugem e nu da cintura
para cima, vestia umas sórdidas calças que, rasgadas pelo uso,
entremostravam nervudos joelhos.

— Olé! rugiu prolongadamente a fera, tão cedo por aqui!

Seguiu as palavras de um riso satânico capaz de estremecer de pavor
o mais corajoso sertanejo.

Rosalina sentiu o medo invadir-lhe a alma, Branca tremia de terror. Quiseram
gritar, pedir socorro mas o susto o impediu.

As pobres só esperavam a morte, encarando o algoz que lhes sorria
cruel.

Nos olhares das vítimas lia-se uma súplica, nos do algoz um
escárnio.

O negro como o tigre não quis sacrificar imediatamente a presa quis
gozar das suas antecipadas torturas.

A crueldade encontra, não sabemos que hediondo prazer nas angústias
do paciente.

O bruto, com o alfange já erguido, dirigiu-se vagaroso para Branca,
e sua pequena companheira. Parou um pouco, contemplou-as com ar de mofa e
avançou definitivamente.

O arvoredo copado estremeceu no alto, de indignação talvez,
no momento em que o agressor suspendia a arma assassina.

O facão desceu, mas antes de tocar o alvo novo tremor abalou os ramos
e uma lâmina, cintilando aos raios matutinos do sol, desprendeu-se das
folhas, vindo se encravar no crânio do perverso negro e estirou-o de
bruços.

Branca e Rosalina estavam salvas!

Apenas viram cair o negro a moça e a menina, sem pensar na procura
do seu salvador, fugiram para casa voando que não correndo.

Já alto estava o sol e um dia esplêndido iluminava as matas
do Amazonas.

— Que houve?! exclamou Eustáquio, avistando sua mulher e Rosalina,
que corriam para ele, pálidas e exprimindo terror nos semblantes alterados.

— Que tem você, Branca?

— E tu Rosalina?

A jovem profundamente impressionada, não pôde responder e caiu
em uma cadeira, meio desmaiada, mas a orfãzinha, ao mesmo tempo que
acudia as necessidades da sua protetora, abatida pelo susto, narrou circunstanciadamente
a Eustáquio o seu perigo e a imprevista salvação.

— Realmente é ameaçador o aspecto que tomam de novo as
cousas, disse ele.

"Vejo agora que a tranqüilidade dos nossos últimos tempos
foi uma aparência enganadora e um laço que nos armaram que se
desvela hoje.

"Venham os miseráveis que não nos encontrarão de
braços cruzados!

"Somos perseguidos porém o que é notável é
que possuímos um defensor."

— Quem, tão a propósito, estaria colocado nos ramos para
vos salvar, a ti e a Branca? E…

— Rosalina, não percebeste cousa alguma nos galhos?

— Não, senhor, nada vi senão reluzir a faca que prostou
o malvado, cujo cadáver deve jazer na estrada.

— Houve um salvador intencionado, é certo, acrescentou o ex-subdelegado,
mas não consigo adivinhar quem seja o amigo que vela sobre nós.

Ditas estas palavras, Eustáquio calou-se, fixou a vista sobre um ponto
do soalho e levou um momento como que inquirindo a memória.

— Que homem, dizia ele, terá interesse em defender-me com sacrifício
próprio? Será o padre Jorge? Isto é tolice… um pobre
velho.

"É verdade que não deixo de ser estimado na povoação
porém não vejo quem, a não ser o meu excelente padre,
leve essa estima até a dedicação…"

Na cozinha trabalhava Ruperto, esfregando umas facas, e de sobre o fogão
subiam filetes de odorífero fumo deixado escapar pelas janelas mal
fechadas, onde fervia ruidosamente o almoço.

O escravo, ao chegar o senhor, levantou a cabeça, continuando diligentemente
o trabalho.

— Vem daí, disse-lhe Eustáquio, e segue para S. João
do Príncipe. Lá dirás ao padre Jorge que me envie os
paraenses que já aqui estiveram, há talvez dois anos. Convém
que tomes o cavalo para maior segurança e presteza.

Logo em seguida um robusto animal relinchou no roseiral e, montado pelo escravo,
internou-se pela picada em trote rápido.

Depois de sepultado o cadáver do que sucumbira ao golpe de um anjo
tutelar, os engajados reentraram em casa do protetor de Rosalina, e este,
observando que os atentados iam tendo já lugar em pleno dia deu começo
à construção de uma sólida muralha de madeira
que devia limitar as suas terras, não só do lado do campo e
da montanha como do da mata e do Iapurá.

Dentro de três dias os valentes filhos do Pará, de machado em
punho, abateram troncos, fincaram-nos circularmente, levantando em volta da
casa uma trincheira de seis pés de altura erriçada de pontas
agudas, previamente aparadas nos postes, que podia desafiar um bando de malfeitores.

— Creio, disse o seu esposo a Branca, que, metidos neste baluarte,
estamos perfeitamente a salvo.

— Não o creio eu, replicou com ar incrédulo a moça,
e só me acharei segura quando longe daqui. Tanto, que sinto muito não
estar neste momento em Manaus ou em Belém.

— Se é do seu desejo, Branca, falou tristemente Eustáquio,
como quem está contrariado na sua vontade, podemos desde hoje nos preparar
para a retirada, mas ou me engano inteiramente, ou não corremos mais
risco algum.

— Enfim…, disse Branca, cortando o diálogo. Esse "enfim"
exprimia muita cousa. Era a resignação passiva da jovem à
persistência do marido e ao mesmo tempo a passagem da responsabilidade
de qualquer desgraça para cima de Eustáquio.

Capítulo VIII: pomba e serpente

Estava-se a 14 de setembro de 186…

Reinava imensa alegria em casa de Eustáquio.

Branca dera à luz oito dias antes, isto é na véspera
da maior festa nacional do Brasil, o aniversário da sua independência
do jugo português, uma criancinha bela como um cupido que, passando
de mão em mão, recebia afagos de toda a sorte da família
inteira, sem excetuar uma mocinha de S. João do Príncipe, dedicada
e constante veladora da esposa do ex-subdelegado, durante os incômodos
que precederam o parto.

Por todos esses dias a família se entregara exclusivamente ao prazer
e também no povoado todos estavam contentes.

Durante a noite, melodias campestres se elevavam das habitações
da vila, cujas cúpulas de palha, servindo de pedestal a um mocho sombrio,
brilhavam docemente aos ósculos luminosos do luar.

Lá dentro, entre suas pobres paredes de barro, mãos de rústico,
lassas do ferro agrícola, tiravam das cordas de uma viola acordes cadenciados,
de um encanto que só pode avaliar quem já os ouviu, os quais
mergulhando na floresta iam suavizar o sono das avezinhas.

Estava-se, já o dissemos, a 14 de setembro.

A julgar pela força com que os raios de sol enchiam a atmosfera, sob
o azul puro e claro do céu americano deviam ser nove horas, quando
menos.

O leitor colocado no meio dessa planície que se desdobrava ao poente
da habitação havia de presenciar o seguinte:

Rosalina, alegre como sempre, chegou risonha à janela, cantarolando
a delicada poesia de Dirceu:

Como alegre vem nascendo

A serena madrugada!

Já d’aurora a luz dourada

Duvidosa vem raiando.

E tu descansando

Marilia formosa,

Escutar, etc.

Toda a sua atenção estava pregada em uma rosa pendente dos
últimos ramos de uma esguia roseira que chegava a altura da janela.
Estendeu o bracinho mimoso, coberto apenas por uma manga que nem lhe chegava
ao cotovelo, tomando cuidadosamente entre dois dedos a flor, menos linda que
ela e, depois de saborear os seus perfumes, entrou a contemplá-la conversando
talvez em muda linguagem. As flores e as crianças se compreendem. Na
mesma ocasião uma pessoa descendo sorrateiramente da colina escalou
ousadamente a alta cerca de traves novamente construída, penetrando
no roseiral. Esgueirou-se pela parede até pouca distância da
janela ocupada pela menina, apontando-lhe uma pistola, depois de olhar várias
vezes para trás e para um lugar onde poderia distinguir alguns olhos
à espreita por entre as tábuas do cercado.

Que quadro! A candura e a inocência de um lado, de outro a perversidade
e o crime.

Ia ressoar o tiro e Rosalina estava morta, mas a Providência velava.

Antes de cair o cão da pistola do assassino, uma fumaça tênue
alvejou a folhagem de uma magnífica árvore da margem do rio;
e soltando um gemido o bandido rolou, afogado em ondas de sangue.

Um tiro, providencial e certeiro como a faca que, dias antes, ferira um dos
perseguidores de Eustáquio na picada, acabava de defender Rosalina
contra a mão infame de outro celerado.

A orfãzinha estremeceu ao tiro, e soltando a rosa por um movimento
instintivo gritou vivamente:

— Papai!

O esposo de Branca acudiu logo, porém dando com a vista de um corpo
ensangüentado que jazia sob a janela conheceu que o tiro partira de braço
amigo e não se assustou com ele. Correu ao lugar onde se via o corpo
e pôs-se a examinar o seu estado. Era já cadáver, mas
o que ele estranhou foi verificar que longe de ser um negro era um homem de
cor branca (o que não obstava que fosse de meter medo) com a tez morena,
cabelos ligeiramente cacheados e imundos a cair sobre a testa onde rugas profundas
estampavam a ferocidade, parecendo um espanhol.

E o ex-subdelegado que supunha ter somente negros por inimigos não
sabia o que pensar.

— Então enganei-me, dizia ele consigo. Bem pode ser.

— Como são atrevidos os tratantes, já querem entrar-me
em casa. Ah! e não poder eu acabar com eles!

Cumpre notar que os paraenses estavam no povoado nessa ocasião, e
disso deviam ter ciência os bandidos que se aventuravam a aproximar-se
do roseiral, cousa que nunca tinham praticado em pleno dia. Contudo um sentimento
de covardia fez com que, entrando, apenas um, ficassem outros espiando da
parte de fora para prevenir as eventualidades.

Estes, cujos olhos o leitor percebeu entre as traves do cercado, correram
para a montanha logo depois do tiro, arreceando-se da volta dos caboclos paraenses.

O ex-subdelegado não podia fazer mais que esperar pelos engajados.
Deixou pois Ruperto de espingarda ao ombro passeando pelo roseiral e entrou
em casa pela porta da cozinha, conversando com Branca enquanto não
voltavam os seus soldados.

— Ainda, você não se convenceu dizia a mulher, de que
não nos achamos em segurança? Não viu já que o
novo cercado não suspende o braço dos nossos inimigos?

Eustáquio não tinha resposta e emudecia diante de Branca sem
ter ânimo de encontrar com os seus os olhos da esposa, que aliás
falava com a maior brandura. Parecia mais uma mãe repreendendo o filho,
do que uma mulher que desejava arredar o esposo de um capricho o qual talvez
acarretasse conseqüências funestas, máxime para ela.

Eustáquio rompeu o silêncio que conservava, falando:

— Dou-lhe, Branca, o conselho de fazer os arranjos necessários
porque vamos definitivamente partir.

— Os preparativos já estão feitos há muito tempo,
replicou a moça.

Eustáquio perturbou-se, todavia continuou decidido:

— Se assim é…

Antes de terminada a frase entraram os paraenses, e o protetor de Rosalina
que não tinha vontade de continuar a conversar foi ter com eles guiando-os
até o cadáver, que estava ainda perto das janelas de uma saleta
próxima à cozinha, no lugar onde caíra.

— Quem matou este homem? perguntou um deles.

— A mesma pessoa que matou, noutro dia, o negro da estrada, respondeu
Ruperto que apresentou-se então.

— Você a viu? interrogou de novo o caboclo.

— Não, porque o tiro partiu dali, disse o escravo indicando
com o dedo o cimo da árvore que, à margem do Iapurá,
oferecia sua folhagem ao sopro das brisas.

— Que bom atirador! exclamaram todos.

— É verdade, disse Eustáquio, porém o que eu admiro
é o modo porque ele se oculta, e a constância com que permanece
pronto a defender a minha causa em qualquer momento.

Depois deste colóquio o marido de Branca tirou da cinta que cingia
o cadáver um saco repleto de cartuchos e guardou também uma
pistola de dois canos com que o malvado tentara assassinar a menina.

Relativamente ao morto procedeu-se como se devia e voltou-se a atenção
para os preparativos da partida para Manaus.

O batismo do recém-nascido, que se devia realizar então, foi
adiado para uma época mais conveniente ao mesmo tempo que o esposo
de Branca tomava outras disposições necessárias a uma
mudança.

Capítulo IX: A excursão

O episódio da tentativa de morte que acabamos de referir não
teve por conseqüências senão provar que nada levantava um
dique aos atentados dos criminosos, tão horrivelmente obstinados, e
que também por seu lado o incansável defensor trabalhava na
sua invejável missão, não apresentando-se, mas manifestando-se
nos mais oportunos momentos por uma intervenção muito heróica,
embora muito natural, sem contudo deixar se perceber através das sombras
do incógnito, para talvez poupar-se aos agradecimentos de que era digno.

Estava inteiramente decidida a viagem para Manaus, todavia Eustáquio
sentia, conquanto não o declarasse, profunda repugnância por
esse passo.

E essa repugnância, aliás contrária ao seu modo de pensar
de outrora, não era sem fundamentos.

Com grandes despesas conseguira ele edificar nos sertões do Amazonas
uma morada perfeitamente confortável; nela se estabelecera depois de
casado; e a ela vira chegar, em primeiro lugar Rosalina, entregue pela miséria
e depois o seu primogênito, entregue pelo céu. Essa picada que
agora se ostentava negra ao seu espírito exaltado fora o teatro da
morte do seu querido servo e em época mais remota também vira
passar o corpo inerte do seu sogro. Estas lembranças doces e lúgubres,
aquele sacrifício parcial da sua fortuna na construção
da casa, a amizade do padre Jorge e um desejo de vingança que vegetava
no âmago do seu coração eram algemas que o ligavam àquele
solo, e que doloroso não seria para ele rompê-las!

Se ao condenado das galés se oferecesse arrancar os grilhões
levando com eles seus pés, por certo que não aceitaria embora
a liberdade se lhe antolhasse risonha.

Outras não eram as condições de Eustáquio. Eis
o que explicava a sua repugnância.

Esquecia-se talvez da prudência, da segurança dos seus, mas
na sua vontade predominava o desejo de permanecer no seu posto, contentando-se
provisoriamente com a defesa, deu-se porém um fato que fê-lo,
se não tomar a posição ofensiva, ao menos dar mui enérgicas
providências, impossibilitando a partida para fora de S. João
do Príncipe.

Certa noite (a seguinte ao dia da tentativa de morte) dirigiu-se ele pensativo
e triste ao seu quarto cuja porta abria-se para o corredor central da habitação.

No seu crânio se acumulavam atropeladamente legiões indisciplinadas
de pensamentos e enquanto tentava organizá-las uma pequena cabeçada
na porta lembrou-lhe a realidade.

Viu-se então no seu gabinete.

Apesar de simples possuía a câmara tudo o que se podia desejar
por sua utilidade.

Duas janelas, das quais só uma estava aberta, delineavam-se na parede
fronteira à porta.

Dessa mesma parede e de outra que a encontrava caía como um crescente
uma rede, cujas franjas tremulavam ao frescor da noite, e aos pés da
rede havia uma pequena mesa coberta de livros empilhados em cima da qual brilhava
uma luz.

Colada a outra parede via-se uma cama coberta por uma colcha de florões
coloridos mas desmaiados, leito habitual de Eustáquio, que, diferente
dos outros habitantes do norte, gostava pouco de rede.

O marido de Branca assentou-se na rede do quarto a qual depois de duas oscilações
ficou imóvel, ao menos tanto quanto Eustáquio, pois mergulhara-se
este em uma dessas meditações insondáveis que paralisam
o físico.

Sentia encher-se-lhe a boca de brados de ódio contra os seus cruéis
perseguidores. Tinha lembrança de chamar em seu auxílio a polícia
de Manaus, mas carecia de meios para isso. Acreditava na sua superexcitação
que podia pela sua influência mandar exterminar os bandidos por todos
os moradores de S. João do Príncipe, porém logo abandonava
essa crença; e, encontrando alívio quando lhe vinha à
memória o seu defensor desinteressado, dizia:

— Oh, homem querido, aparece! Quero te abraçar! agradecer!

Logo depois pensava na partida que o bem estar da família exigia.
Rompiam-lhe dos lábios palavras que eram os coriscos da eletricidade
do seu cérebro.

— Os infames, dizia, querem forçar-me a fugir… E donde! Da
minha casa! Eu! Deixar o que me pertence, meus amigos, o meu teto, minhas
recordações! Nunca! Mas, ah! Branca deseja partir… E tem razão…
tem medo. Eu também já quis sair desta casa, pois estava aterrado.
Acabei por mudar de resolução, porém Branca não
mudou…

"Talvez me submeta a sua vontade, mas antes disso vou tentar uma cousa…
Tenho um plano… Não conto, infelizmente com o inepto subdelegado;
irei pois, só com os paraenses. Hei-de ir! Hei-de ir, e hei-de saber
ao certo quem me persegue. Ah malvados!"

Ia-se tornando tarde, porém, Eustáquio não estava em
si, não via as horas.

A sua meditação intercortada de frases já durara algum
tempo. Ele ergueu-se e foi para a cama com a intenção de dormir.
Conseguiu apenas deitar-se, levantando-se logo a retomar na rede o seu primitivo
lugar.

Aí, com as mãos cruzadas sustentando a testa e com os cotovelos
enterrados nos joelhos, permaneceu ainda.

Deu-se então uma circunstância mui importante, que o marido
de Branca teria notado se a sua atenção não se achasse
tão longe do seu quarto.

Acima do parapeito de janela aberta, que se alargava no fundo como uma tela
negra, apareceu a extremidade de uma vara e quase imediatamente desceu.

Mais ou menos às cinco horas da madrugada principiou o dia a despontar.
Eustáquio, sem mesmo saber como passara a noite, chegou-se à
janela.

A vidraça estava suspensa, ele inclinou-se para respirar as exalações
do prado.

Viu a estrela d’alva cintilando um pouco por sobre a montanha, cuja base
jazia ainda nas trevas, e aos últimos clarões da vela que já
desaparecia, vacilando no orifício do castiçal, reunidos à
luz lívida e fraca que começava a se espalhar pela planície,
distinguiu um pedacinho de papel sobre a janela.

Estava umedecido pelo orvalho e Eustáquio querendo retirá-lo
rasgou-o em dous.

O ex-subdelegado, que não dera ao papel grande atenção,
viu logo algumas letras e ligando as duas porções leu este aviso,
laconicamente amedrontador:

Sentido! Ides ser atacado seriamente.

Um amigo.

— Ainda o meu defensor! exclamou Eustáquio, é ele quem
me dá uma notícia. Porém o que ele diz é incrível!

Releu cuidadosamente o aviso e voltando-se para a janela gritou:

— Por quem és, ente das sombras, apresenta-te, que te quero
entregar a minha vida em recompensa da tua dedicação!

Mas quem depositara o papel sobre a janela já ia longe. Branca que
ouvira as vozes do marido já estava no quarto e perguntava:

— Que papel é esse?

Eustáquio escondendo o papel olhou espantado para a mulher e só
depois de alguns momentos disse:

— Não é nenhum escrito importante.

— Não creio, quero ver, tornou Branca, aproximando-se do marido.

— Eu não lhe queria revelar, mas se o exige, leia, terminou
Eustáquio entregando a Branca os dous pedaços de papel.

A moça, naturalmente medrosa empalideceu à vista do aviso e
não pôde deixar de perguntar quem o entregara.

— Que homem benfazejo! disse, quando obteve resposta.

Pouco depois ouviu Eustáquio dizer-lhe:

— Branca, é impossível partirmos já, porque nem
há embarcações agora, no povoado, mas hoje à noute
eu irei examinar essas matas a fim de tirar as onças do esconderijo…

— Não, eu não consinto! gritou ela, não deixarei
você arriscar a vida inutilmente.

— Inutilmente! Então você acaba de ler o aviso e não
vê que estamos em perigo! Quer que morramos todos? Eu irei e hei de
ser prudente.

— Ah! Vá, mas eu ficarei tremendo.

— Tenha paciência, minha Branca, é a única cousa
que posso fazer. Ir atacar antes de ser atacado.

Retirou-se Branca deixando Eustáquio a ruminar o plano da exploração.

Pelas três horas da tarde o tempo mudou. Uma poeirinha líquida
começou a cair.

— O tempo é o mais propício possível para a minha
expedição, observou Eustáquio.

— Ou para nos virem atacar, acrescentou Branca.

Rosalina já soubera das intenções do seu protetor assim
como do aviso que lhe chegara às mãos, porém não
sentira por si, a menor emoção.

Tinha a alma familiarizada com a desventura, nada temia. A desgraça
é como tudo neste mundo, tantas vezes a vemos que finalmente já
não nos impressiona. Rosalina a vira em toda a sua fealdade.

A jovem que viera do povoado acabava de voltar para lá, porque o ex-subdelegado,
julgando-se em vésperas de partir a despedira.

E o filhinho de Branca agitava-se contente no fundo do berço.

Apenas findou-se o dia, o subdelegado dispôs-se para a excursão.

Escolhera a noite para o proteger com suas sombras visto que a lua em minguante
só mui tarde devia nascer.

Depois de armar convenientemente os seus homens e de se agasalhar contra
a umidade da noite, abraçou a Branca, fez estalar um beijo na testa
de sua protegida, beijou ainda o menino seu filho e saiu.

Quatro lágrimas brilharam-lhe nas extremidades dos olhos.

Entregou a Ruperto a guarda da casa, partindo logo que viu fechar-se atrás
de si a sólida porteira do cercado exterior.

Caminharam os exploradores dois minutos por cima de ervas e arbustos que
lhes molharam as calças, penetrando em seguida em um bosque difícil
de trilhar, graças ao emaranhado de trepadeiras e cipós, juntamente
com as moutas densas que as facas cortavam desapiedadamente.

O caminho difícil cessou quando os primeiros declives da montanha
se fizeram sentir. Estavam os homens bastante arredados do Iapurá,
sem ainda ter encontrado o menor vestígio dos malfeitores.

Viram-se, não é o termo, sentiram-se em uma espécie
de caminho que não parecia aberto pela natureza.

— Estamos em uma picada, notou o paraense que seguia, na frente.

— Que talvez nos leve ao nosso destino, disse outro.

Estas palavras trocadas em voz baixa foram as primeiras. Reinava a mais completa
escuridão na mata que Eustáquio percorria.

Os seus companheiros, como cegos, apalpavam o caminho com a coronha das espingardas
e andavam devagar. A expedição era ousada e seria impossível
se a floresta não fosse mais ou menos conhecida pelos paraenses.

Eles caminhavam. Para onde? Não sabiam. O que esperavam? Tudo. Estavam
preparados para fazer frente aos inimigos. Que inimigos?

Eles não conheciam.

Debaixo dos seus passos fugiam reptis, bruscamente despertados, e uma vez
puderam ouvir a pouca distância o grito rouco de uma onça, que
acelerou-lhes as palpitações do coração fazendo
que armassem as espingardas.

A intenção de Eustáquio era reconhecer o abrigo dos
seus perseguidores e dar-lhes combate se fosse possível, não
queria porém que fosse conhecida a sua presença na floresta,
por essa razão temia alguma luta com feras.

Deram mais alguns passos, mas pararam logo, prestando atenção
a um murmúrio indeciso, que não vinha do alto da montanha, porém,
ao contrário, da planície, e não podia ser portanto o
ruído de um acampamento de índios, que só existiam do
outro lado das colinas.

— Serão eles? murmurou Eustáquio.

— Quem sabe? respondeu-lhe um homem.

O marido de Branca e seus homens já se tinham voltado e examinavam
as matas que se estendiam um pouco abaixo deles.

Nada viram.

Retomaram o caminho que tinham já atravessado e principiaram a descer
a ladeira que levava ao cimo da pequena montanha.

Examinaram de novo a floresta. Do lado direito cousa alguma distinguiram
senão as trevas da noite, na frente ainda nada, mas à sua esquerda
avistaram ao longe, nas profundezas do bosque, um clarão vermelho.

Eustáquio apontou para esse lugar e exclamou:

— Lá estão os assassinos!

Tinha na voz uma entonação de ódio.

Abandonando a picada, os exploradores seguiram em linha reta para o clarão.
A lama do chão molhado atolava-os até acima dos joelhos, os
espinhos abriam rasgões nas calças e nos capotes chegando mesmo
a feri-los, contudo eles avançavam com indomável frenesi. Encontraram
nova vereda e continuaram. Percebiam melhor o clarão. Era uma fogueira
que brilhava sob a folhagem e o ruído que se ouvia proveniente de seu
crepitar.

Já próximos da fogueira, eles pararam. Estavam vacilantes,
não por medo, porque o seu ânimo não conhecia medo, porém
por essa emoção que sente o soldado antes do combate e que invade
o espírito mesmo do herói, a qual se transforma logo em ardor
e lhe dá a coragem que não vê perigos.

O marido de Branca, aproveitando-se da luz vermelha e fraca que vinha da
fogueira, viu no relógio que eram quase dez horas. A conselho de um
dos paraenses, deixaram todos o caminho para adiantarem-se de rastos pelo
mato. Esta manobra, habilmente executada, levou-os até o fogacho que
via-se cintilar através das folhas… Espessa massa de arbustos veio
ocultar-lhes inteiramente o fogo. Nada podiam mais ver, embora ouvissem perfeitamente
o estalo das madeiras que ardiam.

Aí mesmo elevava-se, retorcendo-se em amplas rugas o tronco enorme
de uma gigantesca castanheira, que se esgaIhava no alto. Essa árvore
lembrou a Eustáquio a idéia de subir a ela, para, de cima, observar
melhor o que se passava embaixo.

Assim, sendo posta em execução a idéia, subiram todos
auxiliando-se uns aos outros.

Um galho, que se inclinava horizontalmente por sobre a fogueira. levou-os
a um ponto de observação. Outro melhor não podiam achar.

Ramos frondosos os encobriam por todos os lados e através desses ramos
podiam facilmente ver tudo, não obstante o calor que aí chegava
e as lufadas de denso fumo, que por vezes se enovelavam nas folhas.

Abaixo deles formava-se uma espaçosa clareira, no meio da qual uma
grande fogueira carbonizava estrepitosamente alguns troncos. As chamas intensas
inundavam-na de rubros eflúvios, que transformavam os troncos vizinhos
em barras de ferro em brasa e, do meio delas, subiam fagulhas luminosas que
se apagavam no alto ao tocar nas folhas.

O zimbório de folhas úmidas, refletindo os infernais clarões
do fogo, coroava dignamente um painel sinistro. Ao lado da fogueira viam-se
dous negros, cujas faces lustrosas recebiam em cheio a sua luz, que as cobria
das mais horríveis cores.

Um deles permanecia em pé, com os braços cruzados sobre o cano
de uma espingarda, e olhava inalteravelmente para o outro que, assentado,
revelava pelo balancear da cabeça os sinais de uma luta entre a vigília
e o sono. Mais longe, como os mortos no campo de batalha, estavam estendidos
outros homens nas mais variadas posições. Tinham todos o corpo
envolto em capas e pareciam dormir profundamente.

O que estava de pé curvou-se e bateu brutalmente no ombro do companheiro,
exclamando:

— Dormes! Se dormes, encarregado da vigília, o que farás,
encarregado da vingança?

Desperta e vem fazer-me companhia.

O negro que fora tão estouvadamente despertado levantou a cabeça,
perguntando, com os olhos meio fechados:

— O que é que quer?

O mais moço vendo que o companheiro não estava disposto a se
levantar, largou no chão a espingarda e segurando-lhe os ombros, sacudiu-o
com toda a força. As sacudidelas tiveram bom efeito, pois o mais velho
pôs-se de pé e, estendendo os braços acima da cabeça,
curvou-se para traz como que se desentorpecendo. Em breve viu-se tão
acordado como o mais moço e ambos fizeram uma volta pela clareira,
atirando lascas de pau sobre as brasas.

As labaredas cresceram de tal modo que Eustáquio quase foi forçado
a deixar o seu posto de observação. O calor já era intolerável,
os exploradores suavam por todos os poros, mas, algumas palavras que então
ouviram os decidiram a não abandonar o lugar nem que as chamas os atingissem.
O assunto da conversação dos negros justificou-lhes a curiosidade.

— Então, José, disse o mais velho, você me falou
ainda agora na vingança de amanhã, mas não disse a que
horas devemos atacar a casa.

— Oh não sabes? Isto é demais!

— Por que?

— Porque não há aqui quem ignore, devias saber.

— Mas não sei. Diga-me, se quer.

— É de manhã bem cedo. Sabes agora?

— Muito cedo mesmo?… assim não terei tempo de dormir.

— Cala a boca, rei das preguiças! Só cuidas em dormir.
Pois hás de estar pronto a qualquer hora, senão… Olhe.

O negro acabou a frase batendo com os dedos no cabo de uma faca que trazia
à cinta.

— Ah! Pois você meu filho!…

— Aqui não há filho nem pai, há vingadores!

— Meu José, você fala em vingadores como se lhes houvessem
feito mal.

— Como! Não me fizeram mal! Então aquela prisão?…
os maus tratos?…

— Ora! Ora! No tempo em que o açoute lhe rasgava a pele, você
só pedia perdão, e agora está aí com delicadezas.

— Eh! Não te lembras de eu ter dito que pedia perdão
só para ganhar a ocasião de dar no senhor a foiçada com
que o mandei para o inferno noutro dia?

— Lembro-me, lembro-me!… Como era você fingido! Apre!…

— Pai!

— Meu filho, eu, que te vi de joelhos diante do senhor, que te vi depois
de fouce erguida, não te julgarei hipócrita, fraco diante do
forte e forte diante do fraco?!

— Cala-te! gritou o miserável negro desembainhando a faca e
brandindo-a sobre a cabeça do pai.

— Perdão, José! Perdoe-me! exclamou o velho segurando
o pulso do assassino.

— Perdôo-te, mas deixa-te de censuras! Não quiseste matar
o senhor, mas te aproveitaste do que os outros fizeram.

— Ah! o cativeiro! o cativeiro!…

— Pois, se temes o cativeiro, hás de fazer o que quisermos.
Hás de acordar-te ao romper do dia, hás de matar gente, hás
de ajudar-nos a agarrar a tal pequerrucha… Isto é amanhã,
depois… veremos.

Eustáquio e os seus companheiros, possuídos de indignação
contra o perverso, mal se continham.

— Qual será a gente que eles pretendem matar? Quem será
a tal pequerrucha? perguntou o esposo de Branca, de si para si.

Meditou um pouco e, com as pálpebras úmidas, interrogou o céu,
que as folhas deixavam entrever-se.

Os paraenses mordiam os lábios e fechavam os punhos apertando as armas.

Um deles, até em um desses movimentos convulsivos, calcou o gatilho
e desarmou a espingarda.

Teria soado uma detonação, se a espoleta não houvesse
felizmente caído. Todavia ouviu-se um forte estalido.

— Quem anda lá por cima? gritou o negro mais moço. Os
exploradores sentiram calafrios.

Estavam descobertos, e talvez perdidos, porque, logo que o negro gritou,
um homem branco que dormia se agitou, atirou a capa para um lado e ergueu-se,
perguntando:

— O que temos? Hein, José!

O escravo, poucos segundos antes tão altivo e insolente, tornou-se
humilde e, com os olhos baixos, respondeu a meia voz:

— Ouvi um ruído ali por cima.

— Hás de verificar o que foi, continuou o que se despertara,
num tom imperioso. Mas, antes disso… Já me ia esquecendo… Tu és
o encarregado de arrebatar a minha pequenita.

— Sim senhor, sim senhor, respondeu apressadamente José.

— A velhaquinha, prosseguiu o homem branco, corno que falando consigo,
escapou na picada e livrou-se do tratante que me quis pregar uma peça,
mas não me escapará desta vez.

Os exploradores tiveram ímpetos de se precipitarem da árvore
a estrangular o malvado.

O marido de Branca conheceu a excitação dos seus homens, e
além disso, viu que os dois negros saíam da clareira para revistar
as árvores, viu que era urgente tocar a retirada.

A retirada não era fácil. Os dous negros mostravam disposições
de galgar a castanheira. Felizmente, a um sopro do vento, as chamas se ativaram,
crepitando estrondosamente, e uma nuvem de grossa fumaça os envolveu
protegendo os exploradores da vista dos bandidos.

Assim ocultos, puderam da castanheira passar a outra árvore e, descendo
corajosamente alcançaram o chão.

Capítulo X: A volta

Achando-se em terra, os exploradores tomaram apressadamente o caminho de
S. João do Príncipe.

Esta povoação estava mais próxima que a casa de Eustáquio
e portanto era mais fácil de alcançar.

Conquanto já fossem três horas, a escuridão na mata ainda
era absoluta, o que forçava os engajados de Eustáquio a seguirem
tropeçando e ganhando terreno com dificuldade.

Doze passos não eram dados quando ouviram um barulho. Julgando ser
ilusão, pararam e escutaram… Alguém os seguia. Não
havia dúvida… Subitamente luziram archotes. Os malfeitores os perseguiam.

— Depressa! depressa! disse Eustáquio.

Foi inútil a incitação. Os caboclos continuavam ligeiros
através do mato.

O negrume da noute retardava-lhes um pouco a marcha todavia os escondia dos
perseguidores, que alumiados pelos archotes se aproximavam rapidamente.

Pequena distância separava um grupo do outro. A cada instante Eustáquio
esperava uma luta. Em uma ocasião chegou a parar com os caboclos, e
mandou aprontar armas, mas também nesse momento os malfeitores pararam
e os exploradores ouviram a voz arrogante do mesmo homem branco da clareira:

— O patife, disse ele, vai entrar no povoado… e está livre.
Vai nos fugir como tem fugido sempre.

"Voltemos!"

O marido de Branca não compreendeu de quem falavam os seus inimigos,
e somente conheceu que tomavam os exploradores por uma só pessoa e
renunciavam a persegui-la.

— Isto é melhor, falou ele consigo mesmo, ao ver os malfeitores
se afastando pouco a pouco.

Instantes depois saíam, Eustáquio e os seus companheiros, da
floresta. Sentiram o rumor vago e sereno que durante a noite parece pairar
na superfície sossegada dos grandes rios. Estavam à margem do
Iapurá. O lado oposto do rio aparecia como uma sombra horizontal e
se confundia com as águas. A esquerda os exploradores tinham o povoado.
Nenhuma luz brilhava nas janelas, dos seus casebres.

Tudo dormia.

Entraram na povoação possuídos desse respeito irresistível
que se apodera de que vagueia a horas mortas.

O silêncio da noute nenhum dos homens teve ousadia de quebrar.

Costearam o rio e algumas casinhas. Chegaram ao largo principal. Nessa ocasião
um paraense divisou através das frestas de uma porta mal fechada a
chama sangüínea de uma candeia.

Era na morada do padre Jorge.

Eustáquio bateu com as unhas nas tábuas carunchosas da porta.
A porta cedeu, apresentando-se logo o sacerdote.

Ambos, sem outros cumprimentos, abraçaram-se com efusão.

— Donde vens, querido Eustáquio, perguntou o padre, coberto
de lama, coberto de rasgões, e coberto de armas?… E acompanhado dos
meus paraenses? Quase não te conhecia!

"Assenta-te ao meu lado e me conta o que houve…

"Vós todos estais sinistros!"

— As circunstâncias o exigem, respondeu Eustáquio.

"Vós sabeis dos tristes acontecimentos que tem havido em minha
casa, mas não sabeis que na manhã de ontem… pois que são
três horas da manhã de sexta-feira…"

— Oh! interrompeu o padre Jorge, julgava que ainda fossem dez horas
da noute de quinta-feira… estava tão entretido na leitura da história
de Napoleão Bonaparte…

E apontou para um alfarrábio que estava aberto sobre uma velha mesa
junto da lâmpada.

— Como dizia, continuou Eustáquio, na manhã de ontem
recebi por um modo extraordinário aviso de que ia ser atacado pelos
meus velhos perseguidores.

"Ora, isto assustou-me, e decidi-me a empreender uma viagem de reconhecimento,
que teve os melhores resultados, como ides ver:

"Depois de percorrer a mata encontrei os tratantes.

"Uma árvore serviu-me de observatório e dela me foi possível
ouvir dizer que a minha morada, hoje, ao romper do dia vai ser assaltada pelos
miseráveis, que são em numero de nove ou dez."

— É medonho! balbuciou o padre.

— Não é só isto. Os bandidos pretendem roubar
para o chefe… Quem?! a minha pobre Rosalina… Infeliz criança!

— Eustáquio, acreditas que eles ousem?

— Acredito, sim! Nunca pensei que eles se atrevessem a escalar-me grades
em pleno dia e entretanto a coitada da Rosalina, na janela da casa, escapou
de ser morta… por milagre!

"Morreria, se não fosse a intervenção de um salvador
misterioso."

O sacerdote prendeu melhor os óculos e continuou atento.

— Eles, que têm a coragem de penetrar quase nas minhas salas,
podem facilmente assaltar-me… Mas, meu padre, vai se fazendo dia, e eu quero
receber convenientemente os meus inimigos, por isso adeus. Entrei aqui para
descansar e já estou pronto.

O padre tomou a mão de Eustáquio, não tanto para saudá-lo
como para prendê-lo e não o deixar sair.

— Eustáquio, disse ele, tu não irás sem que eu
vá também.

"Tens somente seis contra nove ou dez. É pouca gente. Eu serei
mais um dos teus. E talvez não seja ainda suficiente."

— Oh! Sois um sacerdote e não contais a Providência, que
deve estar do meu lado?!

— Sim,… mas quero ir. Quero morrer contigo, ou contigo me salvar.

"Partamos! Não há tempo a perder."

— Que! bradou Eustáquio, padre Jorge, ficai!

Qual, amigo! Que tenho a recear? A morte? Ora! A morte já não
me pode causar dano. Deste meu lugar eu já a avisto. Que importa que
ela me alcance aqui ou ali?… Questão de lugar.

— Não! não haveis de ir!

— Hei de ir certamente, replicou o padre com firmeza.

— Padre Jorge, sejamos razoáveis. Lembrai-vos que há
almas por quem tendes de responder a Deus.

"E se morrerdes…"

— Outros me hão de substituir com muito mais aptidão
para o meu mister. Além disso, a tua e a dos teus não serão
dessas almas por quem sou responsável? Não tenho eu até
o dever de estar ao vosso lado pronto a confortar-vos em vosso último
momento, se ele chegar?

O ex-subdelegado viu que era impotente diante da vontade inabalável
daquele velho, curvou-se e beijou as costas da mão rugosa e magra que
segurava nas suas.

— Bem, disse comovido, sois o mais bravo dos sacerdotes e o mais dedicado
dos amigos, vinde! Iremos juntos, e morreremos juntos, se for da divina vontade.

E os dois se abraçaram.

Os paraenses, de pé, assistiam, calmos, mas enternecidos, as peripécias
belas dessa cena de amizade.

Passados alguns momentos, o velho sacerdote dirigiu-se à mesa e fechou
o alfarrábio. Aos pés do seu pobre leito havia um crucifixo
de madeira negra. Beijou-o respeitosamente e veio reunir-se aos companheiros
de Eustáquio.

Deixaram todos a casinha do padre, que talvez a ela não volvesse.

Ainda os lampejos alvacentos da madrugada não se irradiavam pelo nascente.
Era noute ainda.

Antes de sair da povoação, um grupo de trabalhadores passou
por diante de Eustáquio e dos seus, saudando respeitosamente com os
chapéus ao padre Jorge e ao esposo de Branca. Eram quatro rústicos,
em trajos grosseiros, que levavam ao ombro instrumentos de lavoura.

O padre Jorge aconselhou a Eustáquio que engajasse mais aqueles homens.
Eustáquio não trepidou. Tratou-se, sem regateio, a recompensa,
seguindo os exploradores com o novo reforço pela picada acima.

Avizinhava-se o roseiral de Eustáquio.

A lua, vermelha como a lanterna sangrenta de algum gemo das trevas, avançava
tristonha pelos céus além. A atmosfera, tristemente nublada,
mal coava uma frouxa claridade que dava a tudo uma feição fantástica.
À base da montanha que parecia envolta em um manto de gaze cinzenta,
repousava silenciosa a casa branca do ex-subdelegado como uma tímida
pomba abrigada nas fendas de algum penhasco.

Por sobre ela, em certos lugares escalvados da encosta da montanha, escorregavam
filetes d’água brilhando como prata.

Este quadro lúgubre veio encher de ligeiro pavor o ânimo atribulado
de Eustáquio.

A lâmpada das noutes parecia-lhe um presságio de sangue, e ao
entrar em sua habitação, sentiu apertar-se-lhe o coração.

Nenhuma novidade havia, felizmente; e a ansiedade com que todos esperavam
pela volta do ex-subdelegado foi traduzida pelo acolhimento que teve ele.

Logo que o dia tornou-se claro, a cozinha de Branca forneceu um almoço
restaurador, em que todos tomaram parte.

Foram carregadas cuidadosamente as armas de fogo e afiadas as de corte.

Todos estavam prontos.

Os oito engajados estavam postados, de espaço a espaço, por
toda a extensão da paliçada exterior. Ruperto com uma ótima
espingarda de dous canos, passeava sossegadamente no roseiral, preparado para
socorrer as sentinelas de fora. E finalmente Eustáquio com sua família
e o padre Jorge estavam dentro da habitação, transformada em
casamata, tendo a sua disposição quatro pistolas e dous rewolvers.

Reinava tranqüilidade, porque a casa era fortemente defendida, mas ninguém
conversava.

Tudo estava pronto. Só se esperava o ataque.

Capítulo XI: Uma fazendola

A natureza no norte do Brasil e, em geral, nessa zona ardente que afronta
os dardos de fogo, caídos verticalmente de um sol intertropical, é
esplêndida.

Por ai corre o Amazonas. As suas náiades e as dos seus numerosos tributários,
deslizando serenas, beijam com indolência os ramos floridos das seculares
árvores que se debruçam sobre elas. Tocando apenas às
duas margens deixam-nas impregnadas de fertilidade; e realizam os belos sonhos
de Orelíana, enchendo-as de riquezas que só esperam o braço
diligente e ativo para se transformarem em ouro.

Entretanto só rasgam-nas esses rios, correndo-as lentamente para tirarem
por único fruto os belos madeiros que são vomitados no Oceano,
e todas essas magnificências naturais são contempladas somente
pelos olhos luminosos da onça, rainha dessas matas, ou pelo selvagem
feroz e altivo, que as despreza.

A uma sossegada baía cavada na margem setentrional do Amazonas encostara-se
uma pesada embarcação.

Sem conceder um só olhar ao belo docel de verdejantes ramagens que
se recurvava sobre elas, desembarcaram dez ou doze pessoas. Sob a direção
de um homem branco, as outras, que eram escravos, entregaram-se ao trabalho
de descarregamento da sua barcaça. Grandes volumes foram depositados
nas ribas até o amanhecer do dia seguinte.

Durante a noute repousaram os viajantes da penosa navegação
pelo rio e, despertando-se com os passarinhos, começaram uma arrojada
travessia pelas avenidas agrestes de uma floresta onde pela primeira vez penetrava
o homem da civilização.

Avançaram diretamente para o norte e, só depois de avistarem
através do arvoredo as lisas águas do lago Aiamá rutilando
à luz solar, modificaram a direção, seguindo para o oeste.
Foram-se muitos dias antes de findar-se essa viagem que parecia sem rumo.

Afinal, chegando a um montículo rodeado de elegantes palmeiras e vicejantes
árvores, o homem branco ordenou que aí se fixasse residência.

Tinham lugar estes fatos dous anos antes dos que narramos nos primeiros capítulos
deste livrinho.

O aventureiro, coadjuvado pelos escravos, fez edificações e,
sem dar satisfações senão a si próprio, principiou
com ardor a cultivar o solo. Os progressos da fazendola foram rápidos.

Os trabalhos, presididos pelo senhor, eram admiráveis e havia a mais
completa harmonia entre este e os seus escravos. Assim correram as cousas
durante um ano.

Entrou novo ano. As insofríveis agruras do clima decidiram o fazendeiro
a abandonar a direção dos trabalhos. Ele quis escolher um feitor
entre os lavradores pobres que vagueavam pelas imediações da
pequena fazenda. Esse homem devia vigiar os negros obtendo por isso uma remuneração,
mas o fazendeiro para evitar despesas tomou a resolução de entregar
o cargo de feitor ao seu mais fiel escravo.

Os ciúmes nasceram logo entre os outros escravos, a inveja rebentou
furiosa e nuvens negras começaram a encobrir o horizonte da concórdia.

Estava armada a tormenta. O raio não podia tardar.

De fato, depois de freqüentes desobediências, precursoras de uma
insurreição, as quais foram justamente punidas, teve lugar um
horroroso crime, cuja imediata conseqüência foi a destruição
da fazenda, em outro tempo tão esperançosa.

Havia quase uma hora que o sol se pusera. Nuvenzinhas muito altas e estratos
cor de fogo, no meio de uma claridade que, como um leque, se irradiava pelo
firmamento, desmaiando gradualmente, lembravam apenas o facho diurno. Os grilos
e as rãs, já gritando nas matas que rodeavam a fazendola, marcavam
o momento de cessar-se a lida do campo.

Os escravos, que costumavam, a essa hora, tomar ao ombro as ferramentas agrárias
e seguir para seus domicílios, conservavam-se imóveis e encaravam
o feitor, em tácita provocação.

O feitor, enfadado por isso, deu uma expressiva gargalhada gutural e perguntou:

— Querem vocês passar a noute aqui?

Um negro de pouca idade atirou-lhe à face irritante injúria.
O ofendido agitou o látego em forma de ameaça.

Esse gesto imprudente foi para o malaventurado feitor uma sentença
fatal. O negrinho saltou sobre ele de fouce em punho e arrebentou-lhe o crânio.

A vítima ainda com vida foi logo carregada por dous escravos até
a beira de um profundo precipício e lá atirada.

Pouco depois de ouvir-se o choque abafado do corpo mergulhado na torrente
que estrondava no fundo do grotão, uma voz viril bradou de longe:

— Então! Não se recolhem?

Aparecia o fazendeiro que, achando singular a demora dos escravos no campo,
viera verificar o motivo dela.

A sua pergunta foi respondida por um desafio.

Adiantou-se devagar o fazendeiro e correu os olhos pelos escravos.

— O que fizeram do feitor? Respondam, miseráveis! gritou ele
sentindo a falta desse negro.

— Venha ver! disseram os escravos, apontando para umas nódoas
de sangue na beira do precipício.

O senhor compreendeu então. Havia revolta. O feitor fora morto e lançado
num abismo que já se apresentava aos olhos do fazendeiro como uma sepultura
cavada também para ele.

Os negros iam se aproximando do senhor em atitudes hostis. As fouces giravam
em suas mãos, desejosas de mergulhar no sangue. O lavrador sem tremer
engatilhou um rewolver.

Dous negros mais ousados o atacaram, mas rolaram-lhes aos pés. Terceiro
foi morto ainda.

Um quarto, porém, com rapidez felina atirou-se a ele e a despeito
da sua valentia assassinou-o.

Os mais ferozes e enraivecidos saciaram os seus instintos no cadáver.

Em seguida um montão de carnes sem formas foi arrojado aos borbotões
espumantes da torrente, que haviam devorado o feitor.

Estavam livres os cativos!

Com os ferros ainda ensangüentados, correram às habitações.
Iam saqueá-las. O roubo seria o primeiro emprego de uma liberdade comprada
por dous homicídios.

Algumas horas mais tarde estava o saque terminado e o incêndio rompia
de toda a parte.

Tremendo protesto acabava a escravidão de lavrar contra a sua própria
permanência num meio civilizado!

Uma escrava, a única que havia na fazendola, horrorizada à
vista do cadáver do senhor, fugira dentre os companheiros, que não
notaram o seu desaparecimento senão quando, terminado tudo, quiseram
abandonar o teatro de seus crimes.

— Fujamos! exclamou então um negro. Mariana (a escrava) foi
denunciar-nos!… Eu a vi correr para S. João do Príncipe. Fujamos!

Os escravos, sem perda de tempo, dispersaram-se todos, buscando um refúgio
na mata.

Em alguns minutos, porém, viram-se cercados, agarrados e manietados
por uma multidão de pessoas.

O subdelegado de polícia, avisado pela escrava, assim os prendia auxiliado
por vários paisanos. A prisão não se efetuou sem luta.
Houve até ferimentos e a infeliz Mariana foi morta pelas facas dos
criminosos.

Deixando os presos sob a vigilância de alguns homens, o subdelegado
tomou um caminho que, segundo as indicações da escrava, o levaria
até o lugar do crime, e aí chegou de fato e pôde descobrir
todos os sinais dos homicídios narrados pela denunciante.

Pouco depois da meia-noute entravam em S. João do Príncipe
o subdelegado, os presos e os paisanos, vindo quatro destes com os fardos
preparados pelos saqueadores da fazendola de que já nada restava mais
que fumegantes cinzas.

Por falta de mais conveniente prisão, foram os criminosos encerrados
numa casa, que devia guardá-los provisoriamente.

No dia seguinte foi o subdelegado visitar os presos.

Qual não seria o seu pasmo quando, ao penetrar na prisão, encontrou-a
vazia?!…

Os assassinos tinham se evadido. Um buraco no teto de palha e o barro da
parede quebrada eram os vestígios da fuga.

Capítulo XII: Algumas explicações

Era simples o que se tinha passado. Os presos, logo que perceberam que ninguém
os vigiava, trataram da evasão. A solidez das paredes e portas, em
que confiara o sub-delegado, havia de zombar de seus esforços, caso
quisessem arrombá-las, só o teto de palha oferecia-lhes possível
saída. Uma circunstância opunha-se, todavia, à fuga dos
negros por esse lugar. O teto era alto. Lembraram-se eles, porém, de
fazer de uma escada para alcançarem os outros as vigas em que descansava
a palha. Assim fizeram. Sobre os ombros de um negro vigoroso trepou um crioulo.
Com uma das mãos segurou-se a uma viga, com a outra afastou a palha,
fazendo no teto uma abertura, por onde enfiou a cabeça. Ainda não
rompia a madrugada. Os arredores da casa estavam desertos. Era a hora da fuga.
O crioulo deixou-se escorregar pela face exterior da parede e saltou no chão.
Depois dele os seus seis companheiros saíram também, sendo o
que servira de degrau guindado pelos outros. Estavam de novo livres. Com toda
precaução arredaram-se do povoado. Passando por um pardieiro
abandonado, distinguiram dentro dele um monte de objetos que a escuridão
impedia de reconhecer. Apalparam-nos. Eram armas, roupas, mantimentos, isto
é, tudo o que fora transportado da fazendola pelo subdelegado.

Feliz achado! Os fugitivos aproveitaram-se dele e bem munidos, embrenharam-se
no âmago da mata virgem.

Cada um desses escravos tinha o peito cheio de ódio, de um ódio
criado por longos dias de escravidão pesada, de um ódio ardente
que só o sangue resfriaria. O de seu desgraçado senhor e o do
feitor não lhes bastavam. Queriam mais!… E, por uma evolução
efetuada insensivelmente no seu espírito, voltaram toda a sua sanha
contra o subdelegado.

Julgando-o apenas culpado de algumas violências, empregadas para prendê-los,
condenavam-no contudo os negros a expiar todos os excessos praticados em outros
tempos contra eles pelo fazendeiro. Não haviam ainda saciado de todo
o seu desejo de vingança!

Procuraram a morada do subdelegado. Acharam-na. Encetaram então uma
perseguição atroz, com que feriam essa vítima enquanto
esperavam um momento propício para assaltando-lhe a casa, trucidarem
quem nela estivesse. Alta noute um grupo confuso de sombras surgia da floresta.
Se algum raio de lua caía sobre essas sombras, reluziam ferros. Como
uma coorte de serpentes avançavam arrastando-se até a habitação
do subdelegado. Aí devastavam tudo. Matavam o gado que dormia no curral,
roubavam animais, destruíam plantações e retiravam-se
depois para os antros tenebrosos dos bosques.

Assim eram as excursões dos negros.

Se o subdelegado, em quem já terá o leitor reconhecido Eustáquio,
se Eustáquio, aterrorizado por essa perseguição misteriosa,
tomava providências mais sérias, os malfeitores suspendiam-na
e se ocultavam. Reapareciam depois mais terríveis e audaciosos. As
primeiras perversidades, faziam-nas de noute, passaram a cometer crimes à
luz do sol.

Emboscados à beira da picada de comunicação entre S.
João do Príncipe e a morada de Eustáquio, viram aproximar-se
um escravo deste. Vinha do povoado. Deixaram-no passar, mas esfaquearam-no
pelas costas. No mesmo lugar assassinaram pouco tempo depois um pobre soldado
de polícia.

Na realização deste último atentado perderam um companheiro.
Esse fato fê-los desanimar e voltar sua atenção para empresas
de menos perigos e mais proveitosas deixando o subdelegado em paz.

Só dous anos, porém, durou a tranqüilidade para Eustáquio.

Os negros já quase dele se haviam esquecido. Viviam errantes, cometendo
pequenos roubos em lugares distantes uns dos outros, para não despertarem
desconfiança.

Depois de uma das suas mais ricas colheitas, estavam eles um dia de manhã,
reunidos no meio de uma floresta úmida e escura, onde a luz diurna,
passando dificilmente a copa do arvoredo, difundia-se em duvidosos clarões.

Assentados em círculo, conversavam.

Ouvi tanto falar em índios, dizia um, e entretanto ainda não
vimos nem um só deles.

— É mesmo de pasmar, dizia outro. Há dous anos e tanto
que nós vagamos por esses matos sem encontrar essa gente.

— Não falemos em índios, notou depois um terceiro. Contam
tantas histórias dos tais sujeitos que eu nem quero pensar neles. Deus
nos livre. Se nos agarrassem, nos tomariam tudo e só nos haviam de
pagar com uns elogios ao gosto do nosso lombo.

— Eles comem gente. Não é? perguntou ingenuamente um
negro velho, por não haver compreendido a frase do companheiro.

— Comem, respondeu esse companheiro, que olhou de repente para trás,
como se tivesse ouvido rumor suspeito.

— E, se são índios que aí vêm, podemos já
nos preparar, acrescentou ele, para darmos um passeio por suas tripas. Fica
bem entendido que não entraremos inteirinhos.

Apesar de estar gracejando, a voz do negro denunciava medo.

— Que cousas está você dizendo? gritaram os outros. Onde
viu índios, maluco?

— Escutem, disse ele.

Todos os negros se inclinaram para ouvirem melhor alguma cousa diferente
do rumorejar do vento…

— Índios! Índios! bradou aterrado um deles, levantando-se.
Os índios! ai estão eles!

Um ruído de folhas secas, pisadas, assinalava claramente a aproximação
de homens ou animais.

Os negros se tinham erguido e já se metiam pelo mato fugindo. Apareceram
então seis homens, saindo dentre dons matagais.

— Por que fogem, medrosos? gritaram para os fugitivos. Somos amigos!

Os pretos voltaram-se, apenas ouviram essas inesperadas palavras. Viram que
os recém-chegados não eram índios. Eram indivíduos
de cor branca, mal vestidos mas perfeitamente armados.

— Não tenham medo, continuaram os homens brancos, não
somos inimigos de vocês.

Os negros animaram-se a se chegar para eles. Pelo instinto de bandidos, adivinhavam
que os tais homens não eram muito melhores do que os assassinos de
um pobre fazendeiro. Assentaram-se pois como amigos sobre umas raízes,
que se alongavam, estorcendo-se fora da terra, e travaram conversa.

Um dos homens brancos, de barbas incultas, sobrancelhas grossas e de maneiras
que indicavam o hábito de mandar, encarregou-se de dizer que espécie
de gente eram os seus companheiros e ele. Apesar da incorreção
da sua linguagem, uma mistura de espanhol com português, deu a conhecer
que eram espanhóis, residentes desde longa data no Equador e que finalmente
se haviam passado para o Brasil, onde pretendiam continuar a cometer latrocínios,
sua única profissão naquela república. Disse mais que
tinham estado durante alguns dias na povoação de S. João
do Príncipe e aí ouvido falar-se da existência de uns
escravos evadidos, aos quais eram atribuídos vários crimes.
Confessou francamente que, depois de saberem do ódio votado por esses
escravos a um certo Eustáquio, homem de uma fortuna que, segundo se
suspeitava, não era multo pequena, tomaram a resolução
de procurá-los para com eles assaltarem a casa do tal ricaço.
Terminou dizendo que julgavam estar diante dos amigos em cuja procura andavam,
havia mais de vinte dias, e por isso ele, falando por si e pelos seus companheiros,
de quem era chefe, propunha que, de então em diante, negros e espanhóis
só operassem conjuntamente.

Os escravos responderam declarando que eram eles realmente os criminosos
evadidos a que se referiram os informadores dos espanhóis e contaram
toda sua história, desde o dia do assassinato do fazendeiro até
o momento em que resolveram suspender a perseguição de Eustáquio,
porque temiam acabar como o companheiro, que fora morto por um policial do
serviço do perseguido.

— Que fracalhões! exclamou então o chefe dos espanhóis.
Perdem um companheiro e, longe de o vingarem, fogem como covardes!

— Porque ninguém gosta de morrer, desculpou um negro.

— Ora! Quem é esperto não morre como qualquer tolo. Sejam
mais vivos e tratem de vingar o companheiro… Se quiserem tomar vingança
desse Eustáquio, que tanto mal lhes fez,… estamos prontos para os
auxiliarmos.

— Queremos, queremos! disseram a uma voz os negros.

— Aceitam pois a minha proposta?

— Aceitamos!

— Então, é negócio feito. De hoje em diante nós,
brancos, uniremos nossos esforços para facilitarmos a vingança
que vocês desejam, e vocês, pretos, unirão os seus para
facilitarem a nossa pretensão, isto é a posse do dinheiro do
tal Eustáquio.

— É bom lembrar, observou um negro sorrindo, que nós
não queremos unicamente nos vingar… alguma cousa mais não
destruiria o prazer da vingança.

— Pois bem, gaguejou o chefe dos espanhóis, meio desconcertado
e olhando de modo estranho para os patrícios que riam-se, do que encontrarmos
vocês terão uma parte.

— Está dito! disseram aos ladrões do Equador os assassinos
do Brasil, está dito! Somos companheiros.

Assim celebrou-se a aliança entre as duas quadrilhas.

Exatamente quando nas florestas se tramava a sua perda, o honrado esposo
de Branca, julgando-se em segurança, entregava-se as suaves alegrias
domésticas.

Os bandidos deixaram passar-se algum tempo antes de tomarem uma resolução
definitiva. Esperavam uma ocasião em que pudessem surpreender facilmente,
a família de Eustáquio. Entretanto alguns espiões vigiavam-lhe
a casa, de dia e de noite.

Um desses espiões apresentou-se uma vez ao chefe dos espanhóis,
que pouco a pouco se fizera chefe de todo o bando, e lhe disse:

— Quase sempre, pela manhã eu vejo uma moça e uma menina
que saem da casa do nosso amigo e vão passear, ou pela picada, ou pelo
campo… Poderei eu dar-lhes algum tiro?

O espião, que era um negro, fez essa pergunta sem mais emoção
do que sentiria se estivesse pedindo permissão para matar um pássaro.

— Nada, nada! respondeu-lhe o chefe. Vou dizer-te o que tens a fazer.

"Quando vires essa moça e essa menina, tomarás a tua faca…
faca, repara bem… Nada de tiros barulhentos…

"Tomarás a tua faca e darás cabo da moça. Quanto
à menina, tu hás de agarrá-la e trazer-ma. Estás
ouvindo?"

— Trazer para que? perguntou o negro, encarando de modo singular o
seu chefe.

— Para… Não é da tua conta!

— Ora, que esquisitice! Trazer aquele mosquitinho miúdo para
o senhor!

— Não faças observações! gritou o chefe.
Hás de trazer-ma! Entendes? É o que ordeno.

— Bem, custa pouco. Amanhã mesmo a menina estará aqui.

Apenas o negro acabou de fazer esta promessa, uma risada irônica ressoou
por trás de um agrupamento de arbustos.

O espanhol ouviu-a, julgou, porém, que fosse a gargalhada de algum
dós seus companheiros, que conversavam a pouca distância dele.

No dia imediato ao desse colóquio Branca e Rosalina foram assaltadas
na picada e, como já referimos, salvas por um braço oculto.

Quando deram-lhe a notícia da morte do negro encarregado de arrebatar
a protegida de Eustáquio, o chefe da quadrilha fez apenas com os ombros
um movimento que dizia:

— Que me importa?

Depois acrescentou:

— Poltrão! Deixou-se matar por uma mulher!

Acreditava que tivesse sido Branca a autora da morte.

O bandido não possuía a virtude de Fábio. Conhecendo
porém que o perigo de que Branca e Rosalina haviam escapado devia ter
despertado a vigilância de Eustáquio, adiou a luta que pretendia
desde logo romper.

Tratou contudo de ativar as disposições para ela.

Mandou mudar o acampamento do seu bando para um lugar menos afastado do alvo
dos seus desígnios.

Nesse novo acampamento reconheceram os bandidos que, espiavam a morada de
Eustáquio, e eram por seu turno espiados.

Por quem? Esta pergunta faziam eles a si, sem encontrar resposta.

Tinham por vezes descoberto pegadas na lama, e nos galhos sinais patentes
de que uma pessoa estivera sobre eles. Tinham até lobrigado ao clarão
da lua um vulto fugitivo, que inutilmente perseguiam. Não passava porém
disso o conhecimento que tinham de quem os espreitava. Estavam entretanto
convencidos de que o espião não era pessoa da família
de Eustáquio, pois que, nas noutes em que avistavam a sombra fugitiva,
ninguém saíra da casa do perseguido, como afirmavam os negros
que a vigiavam constantemente.

Além do que, sempre que os malfeitores iam no encalço de tal
sombra, viam-na refugiar-se na povoação.

Passaram-se duas semanas depois da tentativa de que Branca e Rosalina foram
vítimas. O chefe dos malfeitores julgava que era já tempo de
realizar os crimes que lhe ferviam na imaginação pervertida.

Reuniu, então, os companheiros, não para comunicar-lhes a resolução
que tomara de atacar sem mais demora a casa de Eustáquio, porque já
o fizera dias antes, mas para dizer-lhes o que cumpria cada um fazer.

O bandido apresentou-se diante dos seus subordinados com ar inquieto. Havia
notado que entre eles não estava um espanhol em quem não depositava
confiança e que sempre recalcitrara às suas determinações.

A ausência desse homem não lhe era desagradável, supunha
porém que o recalcitrante não aparecendo tinha alguma intenção
que ele não conhecia. Por essa razão, as primeiras palavras
que dirigiu aos malfeitores foram para perguntar se algum deles sabia qual
o motivo por que não estava presente o tal espanhol.

À interrogação ninguém respondeu. Três
negros porém abaixaram os olhos e não conseguiram mais levantá-los.

O chefe repetiu a pergunta, lançando a esses três negros olhares
furibundos.

Os miseráveis tremeram e quase desfaleceram quando nessa ocasião
ouviram a voz de um dos outros negros.

— Eu, se o senhor m’o consente, dizia ele com timidez humilde, posso…

Os três bandidos que pareciam réus perante o juiz quiseram prostrar-se
aos pés do que falava e rogar-lhe que se calasse, o chefe porém
bradou-lhe:

— Não se movam!

— Posso, continuou o que falava, dizer-lhe alguma cousa que explica
a ausência do branco.

— Dize! Dize!

— Estes meus três parceiros, principiou ele pausadamente e estendendo
a mão para os negros cabisbaixos, me disseram, muito em segredo, que,
anteontem à noute, um dos brancos (os espanhóis) pediu-lhes
que fossem com ele à casa do nosso rico amigo, porque, desejando pregar
uma peça ao senhor, precisava de auxiliares resolutos…

Tais palavras vieram aumentar os temores do chefe, que via com medo os três
negros aterrados, como se receassem o castigo de alguma grande culpa.

— Talvez os desgraçados me tenham traído, pensou ele.

— Continua, falou ao denunciante.

— Os meus parceiros anuíram ao pedido e, ontem pela manhã,
foram com efeito à tal casa, e com eles o branco. Enquanto este, penetrando
no cercado, se aproximava de uma das janelas da habitação, os
parceiros, do lado de fora, se preparavam para prestarem-lhe socorro, caso
fosse preciso. Na janela estava aquela menina que o senhor quer que se traga
para aqui. O branco pretendia matá-la. Tal seria a peça pregada
ao senhor, que tem sempre proibido que ofendamos a sua pequenita.

— E matou-a? exclamou o chefe, avançando com os punhos fechados
para os três negros culpados de cumplicidade. E matou-a miserável?

— Qual! respondeu o denunciante, deixando um pouco o tom de voz humilde.
Qual! Não matou-a não! Ele é que ficou com os miolos
furados…

— Que dizes?…

— … por um tiro. Sim, ele é que foi morto.

— E quem deu o tiro?

— Aí é que há um mistério. Os meus parceiros
só ouviram um estrondo que os fez fugir, deixando estirado o branco.

O chefe da quadrilha, cujos receios haviam desaparecido completamente, sentiu
grande júbilo sabendo que estava livre daquele incômodo companheiro,
contudo ocultou o prazer e voltou-se para os três criminosos de infidelidade,
fingindo-se irado.

— Infames, exclamou, o maior culpado já foi punido como merecia,
vocês ainda não. Eu devia matá-los agora mesmo, porém
quero perdoá-los. Perdôo, mas à primeira falta que cometerem
faço-os em migalhas!

O bandido perdoava porque não julgava muito prudente dizimar o seu
bando.

Apesar de haver concedido perdão aos três negros, não
moderara o seu furor fingido. O astucioso espanhol conhecia que os malfeitores
estavam impressionados com a atitude do chefe, e, para tirar partido da impressão
que causava, não quis mostrar-se indiferente à falta de lealdade
dos três negros.

Preparava a sua gente para receber ordens despóticas com estrondosas
repreensões e espantosas ameaças. Espanhóis e negros
se curvaram trêmulos diante do chefe.

Este falou:

— Amanhã, como já esta determinado, tentaremos a ação
decisiva contra o amigo que, há tanto tempo, nos traz atarefados. É
verdade que o meu miserável patrício, que o diabo tenha, necessariamente
despertou a vigilância do homem, mas este fato, que devera me fazer
adiar o assalto para outra ocasião, vindo contrariar-nos, não
vem senão favorecer um plano que concebi. Realmente: o nosso amigo
não é tão corajoso que, vendo-se ameaçado, não
trate logo de tomar precauções. Dessas precauções
uma será por certo o engajamento de defensores, serviço de que
deve ser encarregado o padreco da povoação, como já o
foi uma ou duas vezes. Pois bem, se vocês…

O chefe indicou os seus compatriotas.

— … forem, disfarçados em trabalhadores, oferecer serviços
ao padre, acredito que ele os engajará para defensores de seu medroso
amigo.

"Introduzidos na casa do homem, vocês não farão
mais do que esperar pelo meu assobio, que conhecem, para começarem
a luta, distraindo o ricaço, enquanto eu e os negros, invadindo a habitação,
fizermos a colheita. É esse o meu plano. E, como, sem dúvida,
o nosso amigo está assustado por causa da tentativa feita contra a
pequenita, julgo que é este o mais acertado e de mais provável
bom êxito. Amanhã pois, vocês entrarão de madrugada
no povoado para depois se apresentarem ao padre. Se ele os não aceitar,
voltarão a ter comigo, no caso contrário, cuidarão somente
em representar bem o seu papel. Por conseguinte, se vocês não
aparecerem, estarei certo de haver vencido a primeira e única dificuldade."

O espanhol estava convencido de que os seus patrícios tinham interesse
em ser guiados por ele e por essa razão, não receando que o
traíssem, terminou dizendo apenas:

— É inútil acrescentar que serei desapiedado para com
os covardes. Nunca se esqueçam disto:

"Aquele que não cumprir o seu dever… queimá-lo-ei vivo!"

Esta ameaça pavorosa foi abafar a última centelha de liberdade
que porventura restava nos ânimos escravos de todos que a ouviram. Esses
miseráveis podiam juntos esmagar o infame que os dominava; mas cada
um deles, não contando com o apoio dos companheiros, não tinha
coragem de ser o primeiro a resistir. Os espanhóis, a quem o chefe
confiara a parte mais perigosa da empresa, não ousaram fazer a menor
observação às ordens do superior. Os negros só
tiveram palavras de aplauso.

O chefe conhecia bem a sua gente.

Quando os bandidos se dispersaram já o crepúsculo ia se mudando
em noute.

Depois de engolirem alguma carne mal cozida e ervas quase cruas, enrolaram-se
eles em capas e estenderam-se na relva úmida, deixando a postos duas
sentinelas. Estas sentinelas eram dons negros, pai e filho, que lançaram
fogo a um monte de lenha, algum tanto molhada pela chuva que caíra
de dia, e começaram a prestar atenção aos ruídos
da noite.

Um vento fresco sibilava através das árvores. Agitando a ramagem
fazia cair uma infinidade de pingos d’água que a chuva depositara nas
folhas e curvava as chamas que principiavam a abrasar o monte de lenha.

O negro mais velho aproximou-se do fogo e assentou-se. Meio aquecido, pôs-se
a dormitar, ao passo que o filho continuava a escutar o barulho da viração
noturna.

Passadas duas ou três horas, ouviu este um rumor interrompido… uniforme,
como se fora o caminhar receoso de alguma pessoa sobre as folhas molhadas.

Por um momento a sentinela lembrou-se do desconhecido que costumava espiar
o acampamento. O barulho, porém, cessou e o negro, nada mais percebendo,
acreditou ter ouvido apenas os passos de alguma fera, que a fogueira acabava
de afugentar, e esqueceu-se do rumor para se divertir com o cabecear do companheiro
que dormia assentado…

Já se avizinhavam as primeiras horas da manhã quando o negro
mais moço resolveu acordar seu pai. Seguiu-se então a cena que
Eustáquio e os seus homens assistiram do alto da castanheira que nessa
ocasião ocupavam.

Como narramos em um dos precedentes capítulos, o estalido da espingarda
de um dos paraenses denunciou a presença dos exploradores no acampamento
dos bandidos, cujo chefe foi despertado pelo grito da sentinela. Como também
ficou narrado, o chefe ordenou que fossem examinadas as circunvizinhanças
da clareira e o alto do arvoredo.

Iam os dous negros trepando pelo tronco de uma árvore, mas desceram
logo e se precipitaram na clareira, gritando:

— O espião! o espião! Vai fugindo por ali!

Estendiam a mão na direção do povoado de S. João
do Príncipe. Tinham ouvido os passos dos exploradores que fugiam.

— Hoje temo-lo seguro! exclamou o chefe.

Em um instante ergueram-se todos os malfeitores, acenderam alguns fachos
e com eles lançaram-se na pista do espião assinalado pelas sentinelas,
indo a frente o chefe. Conquanto a essa hora a lua em minguante estivesse
ainda muito acima do horizonte nenhuma claridade havia na floresta que não
fosse a dos últimos tições da fogueira. Logo que as balsas
a encobriram, apenas os fachos dos bandidos deixaram-lhes ver o caminho.

A perseguição não durou muito tempo. O chefe conheceu
que o suposto espião ia escapar-lhe mais uma vez, refugiando-se na
povoação.

— Voltemos, disse ele.

E a quadrilha voltou para o acampamento.

Os quatro espanhóis que estavam incumbidos de oferecer serviços
ao padre Jorge receberam do chefe as últimas instruções
e, tomando ferramentas de lavoura, partiram apressadamente para o povoado…

Um luar fraco insinuava-se por entre a habitação de S. João
do Príncipe e cobria de lívidas tintas o chão das vielas.
Os bandidos transpuseram algumas habitações e pararam.

— Ouço vozes, disse então um deles.

— Há gente no largo, afirmou outro.

— Precaução! disse um terceiro.

E prosseguiu, abafando a voz, como haviam feito os seus companheiros:

— Passemos adiante como pacíficos lavradores, que se levantaram
cedo e vão ao campo.

Os malfeitores continuaram a atravessar o povoado e chegaram ao largo. Aí
viram várias pessoas que caminhavam no mesmo sentido que eles.

No meio delas estava o padre Jorge, que eles conheciam. Os espanhóis
o cumprimentaram. Em seguida, reconhecendo Eustáquio no meio do grupo,
saudaram-no da mesma forma.

Quando iam sair pelo lado oposto da povoação, o padre Jorge
os chamou e disse-lhes:

— Meus amigos, bem vejo que sois homens do campo, mas creio que apesar
disso sabeis descarregar uma espingarda. Temos necessidade de companheiros
valentes para repelir alguns salteadores. Quereis unir-vos a nós?

Os malfeitores disfarçados ficaram mudos e indecisos.

O amigo de Eustáquio viu-os se olharem entre si.

O acaso, tantas vezes favorável aos malvados, vinha de tal modo simplificar-lhes
a missão que eles estavam estupefactos.

— Se é por medo que hesitais, disse o padre Jorge, nada…

Não senhor, interrompeu com vivacidade um dos bandidos, que conheceu
que deviam aproveitar o ensejo. Não hesitamos! Ao contrário,
aceitamos com prazer a vossa proposta, pois estamos certos de que a remuneração…

— Será generosa, terminou o padre Jorge.

Estas palavras e um rápido ajuste fecharam negócio e os bandidos
acompanharam hipocritamente aqueles que em breve deviam ver-lhes as verdadeiras
fisionomias.

O padre Jorge havia reparado no sotaque da voz do indivíduo com quem
tratara o engajamento; todavia não teve desconfianças. No povoado
às vezes apareciam estrangeiros e muitos deles até se demoravam,
tomando parte nos trabalhos de extração da borracha que iam
depois vender no Pará.

No seu acampamento, o chefe da quadrilha exultava de contentamento, vendo
que os seus enviados não voltavam. Para ficar convencido do bom êxito
da primeira parte da sua malvada empresa, resolveu deixar o ataque para a
tarde.

Ao meio-dia reuniu os cinco pretos e, com a áspera secura que lhe
era habitual e o tom feroz de que usava quando queria impor obediência,
lhes disse:

— Cumpram cegamente o que eu mandar fazer.

E, dirigindo-se particularmente a um deles, acrescentou:

— José não te esqueças da minha pequenita.

O bandido não repetiu aos negros a promessa que lhe fizera relativamente
aos lucros da operação que iam tentar, mas apenas algumas ameaças,
e, seguido por eles, encaminhou-se para a habitação de Eustáquio.

Em caminho, aquele a cujos cuidados o chefe confiara a sua pequenita, com
repugnante alegria, segredou aos companheiros:

— Até que afinal chegou o dia da vingança!

— De que nos vamos vingar, meu filho? perguntou-lhe um negro já
velho.

O filho respondeu-lhe com um arregaçamento desdenhoso dos beiços.

Quando avistaram as paliçadas da habitação que buscavam,
os malfeitores se ocultaram no mato e esperaram…

Capítulo XIII: Quem persegue, quem defende

A manhã estava triste. O sol empanado subia do nascente, clareando
a paisagem com uns raios tímidos atirados de vez em quando por entre
as nuvens que voavam, ora rasgadas em estreitas fitas, ora distendidas em
amplos lençóis. Por sobre os píncaros arredondados das
montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento
a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio. Somente
depois de longos intervalos ouvia-se o gemer da floresta açoutada por
um golpe passageiro de vento, ou grito repetido de alguma ave perdida no mato.

Triste como a manhã, muda como a paisagem estava a morada de Eustáquio.
Por cima dela pairava alguma cousa de sinistro.

Em torno da habitação, Ruperto e os engajados permaneciam firmes
nos seus postos. Os espanhóis disfarçados trocavam de tempos
a tempos gestos suspeitos, que aos seus companheiros incautos passavam desapercebidos.

Na sala principal via-se o esposo de Branca. Dormitava sobre um sofá.
As fadigas da véspera haviam-no acabrunhado. Ao seu lado via-se o padre
Jorge. Recostado, com a cabeça pendida para trás, o sacerdote
fitava um ponto do teto, onde via redemoinhando o turbilhão das sombras
criadas pelo seu meditar. Na alcova do fundo achavam-se Branca e Rosalina.
A jovem, debruçada sobre a cabeceira do berço do filhinho, contemplava
com amor a criança adormecida, cujo bafejo tépido vinha-lhe
até o rosto. Rosalina, com a cabeça descansada sobre o ombro
de Branca, olhava distraidamente para as roseiras. Através da vidraça,
os arbustos mostravam-lhe algumas belas flores, que um último chuveiro
deixara aljofaradas de diamantinas gotas…

As horas corriam, cousa alguma, porém, indicava aproximação
de inimigos…

Eustáquio foi o primeiro que se moveu. Ergueu-se do lugar que ocupava
e aproximou-se de uma janela. Olhou por cima da paliçada para a montanha
e depois, voltando-se para o padre Jorge, disse:

— Parece-me que os meus inimigos adivinharam que me preparei para recebê-los…
Estão se demorando tanto… Teriam eles mudado de resolução?

O padre não deu resposta, mas, fazendo um movimento como quem é
bruscamente despertado, endireitou-se e por sua vez falou:

— Eustáquio, nunca me disseste quem são os indivíduos
que te perseguem há tanto tempo… Porventura não os conheces?

— É verdade… porque não os conhecia, agora porém…

— Ouvi-me.

"Como bem vos lembrais, quando eu ainda era subdelegado, uma escrava
trouxe ao meu conhecimento a notícia de um crime horroroso… aqueles
assassinatos…"

O padre Jorge abaixou a cabeça mostrando que sabia a que fato se referira
o amigo.

— Os criminosos eram sete negros, prosseguiu Eustáquio. Eu os
prendi, porém os tratantes se evadiram.

"Então teve princípio uma cruel perseguição
contra mim, e Branca, que pouco sabia das minhas ocupações de
subdelegado, mostrou-se receosa de uma correria de índios. Eu, porém,
lembrei-me logo dos negros evadidos; contudo, não acreditando que os
quilombolas tivessem motivos para me odiar, embora eu houvesse usado de violência
para prendê-los, participei dos receios de Branca. O tempo veio mostrar
que eram infundadas as nossas apreensões, e ficamos crentes de que
éramos perseguidos por algum desses velhacos que não amam muito
a polícia zelosa.

"Estava eu, pois, quase convencido de que os negros fugidos não
eram os meus perseguidores, quando, depois do assassinato de um dos policiais
que me serviam, deparei com um cadáver que pareceu-me ser de um dos
tais negros. As minhas primitivas suspeitas renasceram; mas, eu, incerto ainda,
guardei-as comigo… Depois daqueles doas anos…

— Sim, completou o padre Jorge, daqueles dous anos de sossego.

— Os meus inimigos, prosseguiu o marido de Branca, se manifestaram
de novo. Há menos de três semanas, Branca e Rosalina… e ante-ontem
esta menina pela segunda vez…

— Eu sei…

— Bem, com os meus inimigos apareceu ultimamente um devotado defensor
da minha causa e esse defensor, quando, na picada, salvou a Branca e a Rosalina,
matou um negro, que eu não vi…, mas quem era possível que
ele fosse?… Mais um fato a justificar as minhas desconfianças. Entretanto…
ante-ontem o golpe do meu protetor não abateu um negro… mas um branco.

"Fiquei nadando em um mar de dúvidas. Senti o meu espírito
se revoltar. Que culpa pretendiam fazer-me expiar? Quem eram os infames que
me perseguiam? Tive a idéia de ir procurá-los. O aviso, de que
vos falei hoje, me decidiu… eu partir e… tenho agora a solução
da questão.

"Vós me perguntastes se eu não os conhecia. Conheço-os,
são aqueles perversos que escaparam das mãos da polícia,
há pouco mais de dous anos, e outros que a eles se uniram pelo interesse
único que pode ligar dous bandos de salteadores… São uns miseráveis!
Uns miseráveis, que, vós o sabeis, têm intenção
de roubar-me, assassinar-nos a mim e a Branca e de…"

O padre Jorge, tapando com os dedos a boca do amigo, não o deixou
acabar. Rosalina estava perto.

Alguns segundos de silêncio seguiram-se às últimas palavras
de Eustáquio. Depois o padre Jorge, inclinando a cabeça para
o peito, recaiu nas suas meditações.

— Tudo, tudo, disse então Eustáquio, suspirando, tudo
se esclarece, exceto o mistério que encobre o meu protetor!…

O padre Jorge, com a cabeça caída, olhou para o amigo por dos
óculos, e um sorriso expressivo correu-lhe pelo rosto.

Eustáquio, que não arredara os olhos do sacerdote, exclamou:

— Padre Jorge, vós conheceis!… Dizei-me quem é por
favor!… Quem é esse ente misterioso que me tem protegido com tanto
desinteresse. Debalde procuro na minha memória alguma cousa… Uma
boa ação, que me houvesse granjeado o merecimento de uma dedicação
como a que ele tem testemunhado…

Nessa ocasião Branca e Rosalina saíam da alcova abraçadas.

O padre Jorge, indicando a menina, disse:

— Estás vendo aquela criança?… Deus não esquece
os atos de caridade.

— Explicai-vos, disse Eustáquio. Rosalina… A que aludis?…
Eu amparei-a, mas…

— Deus o viu… É por ela que alguém te protege.

— Padre Jorge, não sei quem…

Branca e Rosalina se tinham aproximado. Eustáquio atraiu a si a menina,
passou-lhe carinhosamente a mão pelos lindos cabelos negros e beijou-lhe
a fronte. Rosalina sorrindo voltou o rosto com ademanes de pombinho. Depois,
ouvindo Eustáquio falar, ergueu para ele os olhos redondos que lhe
brilhavam no moreno fugitivo do semblante.

— Por ventura, dizia ele, seu pai…

— Meu pai?! gritou ela de repente. Está vivo! oh!… então
tenho dous pais para amar!…

— Coitadinha murmurou o padre Jorge, vendo a alegria que se apossara
de Rosalina.

— Eustáquio, continuou ele, tu desejas saber quem 6 que te tem
defendido… vou dizer-to; porém hás de prometer-me uma cousa:
não procurar o teu defensor e esperar paciente que ele de modo próprio
se apresente.

— Prometo!

— Tenho a tua palavra… Vou falar…

Eustáquio, Branca e Rosalina chegaram-se para o padre e esperaram
com ansiosa curiosidade que ele falasse.

— Na noute de 13 deste mês, começou ele, o calor que fazia
não me deixava conciliar o sono. Eu levantei-me pelas onze horas e
saí da casa. em busca de ar fresco. Pus-me a vagar pelas vizinhanças
da minha morada. Alguns minutos depois ouvi um rumor estranho. Àquela
hora a noute estrelada ainda carecia de lua, mas não estava escura.
Eu vi um vulto passar correndo a alguns passos de distância do lugar
onde eu estava. Quem seria? Acabava ele de entrar na povoação,
ou ia sair dela?

"Com a curiosidade despertada, eu encaminhei-me rápido para a
viela onde vira o vulto desaparecer. Avistei-o ainda andando depressa e voltando
repetidas vezes a cabeça. Ele deu com a minha presença, pois
que, afrouxando os passos, saudou-me:

"- Boa noute, senhor padre.

"Eu conheci-lhe a voz.

"- Boa noute, meu filho, respondi.

"E, admirado de ver o menino a tais horas fora de casa, continuei:

— Está passeando… Não é?

— Estou, como o senhor, disse-me ele.

"A explicação dada não era muito aceitável.
Eu porém não pedi-lhe outras e, depois de vê-lo entrar
na sua habitação, voltei para a minha…

"Disse que o tal vulto era um menino. Era-o de fato… Um rapazinho
louro, que está em S. João do Príncipe pouco mais há
de dous anos… O filho de um naturalista francês, que lá o deixou
quando passou pela povoação e que agora percorre o norte desta
província, à cata de plantas desconhecidas ou raras, dando expansão
ao seu gênio, que ele mesmo chama aventuroso."

— Otávio Dugarbon! gritaram uníssonos Eustáquio.
sua mulher e Rosalina.

— Sim, Otávio Dugarbon, confirmou o padre Jorge. Era ele.

"No dia seguinte, pelas seis horas da manhã, eu o vi de novo.
Chamei-o. Ele veio à minha casa. Beijou-me respeitosamente a mão
e me interrogou com os olhos.

— Você quer saber, disse-lhe eu, depois que nos assentamos, porque
o chamei. Não é?" – Sim senhor, respondeu ele.

— Eu tenho desejo de saber o que fazia você, ontem à noute,
fora de casa… Diga a verdade… Eu não creio na tal história
de passeio com que me quis iludir ontem.

"Otávio abaixou o rosto, que lhe enrubescera e ficou calado,
olhando para as mãos.

"Julguei que o houvesse ofendido.

"- Está zangado comigo? perguntei-lhe, suavizando mais a voz.
Não está ……. Então fale…

"O menino encarou-me com os olhos úmidos e, extremamente perturbado,
murmurou:

"- Não posso…

"É fácil imaginar quão grande era o meu interesse
em descobrir o segredo do menino. Não sei que voz íntima me
dizia que esse segredo estava por qualquer forma relacionado com os fatos
que têm sucedido nesta casa… Aquela obstinação de Otávio
em calar-se vinha sobretudo me aguilhoar de modo insuportável a curiosidade.
Devo ainda lembrar que o filho do francês, fazendo-se meu amigo logo
após a sua chegada em S. João do Príncipe, juntara a
essa amizade uma veneração e uma confiança que me enterneciam.
Só um motivo fortíssimo o poderia coagir a ocultar-me qualquer
cousa.

— Vamos, meu filho. Pedi-lhe. Fale… Porque não me faz este
favor.

Otávio fez então um movimento de resolução e
falou:

"- Senhor padre, eu não devo ter segredos para com o …….
mas um receio me tem impedido de ser inteiramente franco nas conversas…

— O que é que receia, Otávio?

— Senhor padre, eu fiz um juramento, cujo o cumprimento aliás
não implica más ações, contudo…

— Receia que eu não o deixe cumprir?!

Otávio guardou silêncio. Neste silêncio adivinhei uma
resposta afirmativa e acrescentei:

"- Otávio, os juramentos proferidos em um momento de irreflexão
e cujo cumprimento está acima das nossas forcas não obrigam…"

"- Mas o meu juramento… eu posso cumpri-lo!… E, até, já
o tenho cumprido em parte."

"- Então o que receia?… De modo nenhum me oporei aos seus atos…
pelo contrário! eu os facilitarei como puder…"

"’- Muito lho agradeço, disse-me ele. Vou revelar-lhe tudo…"

O padre Jorge repetiu então o que lhe referira Otávio, isto
é, aquilo que os seus ouvintes mais ansiavam por conhecer, para que
se certificassem de que não era inexata uma suposição
que as palavras do sacerdote já lhes haviam inspirado…

Quando Henrique Dugarbou ao retirar-se de S. João do Príncipe
se despedia do filho, viu na mão do menino um pequeno objeto. Era o
brinco de coral com que a protegida do Eustáquio mimoseara o seu amiguinho
de uma tarde.

— Onde achaste isto, Otávio? perguntou o viajante com estranha
vivacidade.

Otávio, não tendo mostrado a seu pai o presente que recebera
e acreditando que ia ser censurado, respondeu timidamente:

— Foi a filhinha do subdelegado.

Estas palavras foram trocadas à porta da habitação de
um amigo de Henrique Dugarbon, onde tinha de ficar Otávio.

À resposta do menino, a fisionomia do viajante deixou transparecer
inexplicável alegria.

Henrique Dugarbon, ficando à sua espera os quatro homens que o deviam
acompanhar nas suas viagens, entrou de novo na habitação, puxando
Otávio pelo pulso.

Então, achando-se apenas com o menino e o dono da casa, pediu a Otávio
o objeto que lhe dera Rosalina. Examinou-o por momentos e depois, possuindo-se
de uma tristeza, mais inexplicável do que a alegria que a precedera,
falou gravemente a Otávio, que o observava admirado:

— Meu filho, a menina de cujas mãos recebeste este objetozinho
não é filha do subdelegado, como disseste… É a filha
de um pobre homem que morreu para salvar-me a vida.

— Oh! meu pai…

— É verdade, Otávio… Tens certamente na memória
o fato a que me refiro.

"Um dia, íamos atravessando o Amazonas…"

— Oh! bem me lembro!… Uma horrível borrasca se desencadeara…
Fomos abalroados por um tronco de árvore que sobrenadava… Caíste
fora da embarcação… Era impossível lutar com as ondas…
íeis morrer… o mísero lançou-se ao rio!… agarrou-vos…
conseguiu repor-vos sobre a embarcação… salvou-vos!… Mas
as águas revoltas o envolveram… eu vi uma mão agitar-se por
instantes fora d’água… era o adeus supremo do infeliz!… Ele sumiu-se…

Otávio enxugou com as costas da mão uma lágrima que
lhe pendia dos cílios.

— Exatamente, meu filho. Pois esse homem dedicado consagrava-me verdadeiro
afeto, e, seis dias antes do fatal desastre que findou a sua existência,
ele, adivinhando talvez que tinha de morrer em breve, quis dar-me uma lembrança
da sua amizade.

"Sr. Henrique, me disse ele, peço-lhe que aceite este objeto,
a que eu dou um apreço imenso, e por isso vô-lo ofereço"…

Henrique Dugarbon meteu dois dedos em um bolso, tirou uma mãozinha
de coral inteiramente igual à que lhe entregara Otávio e, apresentando-a
ao menino, disse:

— Aqui está o que ele me deu… O bom homem amava este objeto
porque lhe recordava uma filha que tinha em S. João do Príncipe,
com sua mulher. Essa menina chamava-se Rosalina e a inicial do seu nome estava
riscada sobre o fragmento de coral querido do seu pai, que lhe dera um brinco
semelhante, tendo também riscado a inicial do nome dele.

Estas cousas me foram referidas pelo meu pobre amigo ao fazer-me entrega
desta mãozinha de coral. Agora, vê…

Ele chamava-se Antônio… eis aqui a letra A riscada no objeto que
te deram. A sua filhinha chamava-se Rosalina… R é a letra que tem
a lembrança que me deu o dedicado Antônio… Rosalina é
também o nome da criança que vimos em casa do subdelegado!

— Sim, meu pai! Ela disse-me que se chamava Rosalina!

— Otávio, aquela criança é tua irmã!…
Eu sou seu pai ante a minha consciência! O pobre Antônio, sacrificando-se
por mim, confiou-ma sem o declarar. Eu devo ser agora seu pai.

Quando acabou de falar, Henrique Dugarbon, bastante comovido, pareceu refletir
por um momento e, voltando-se para o amigo, que de parte assistira, sem entender,
o diálogo dos dons estrangeiros, travado em francês, pediu-lhe
em português, que desse informações acerca da mãe
da protegida do subdelegado.

Soube que, havia bastante tempo, uma espécie de mendiga exalara o
derradeiro suspiro nos braços da miséria, deixando ao desamparo
uma filhinha, que Eustáquio de… acolhera. Contou então ao
seu informante a história do fim trágico que levara o pai da
orfãzinha.

— Se não fosse o Sr. Eustáquio, observou Otávio,
a pobre menina estaria tão abandonada, coitadinha!…

Esta observação de Otávio atraiu o pensamento do viajante
francês para as condições em que se achava Rosalina. Henrique
estava pronto para consagrar àquela criança uma dedicação
toda paternal… Rosalina encontrara generosos protetores, mas . . quem sabe
se não careceria ela alguma vez de proteção mais forte?…
Os benfeitores da menina tinham um inimigo talvez terrível… Cumpria
pois que ele, Henrique Dugarbon por amor de Rosalina se armasse para defendê-los.
Ocorreu-lhe a idéia de suspender por algum tempo as suas excursões
e entregar-se a essa defesa; a vida sedentária, porém, não
convinha à sua natureza. Depois de haver obtido do amigo em cuja casa
ia deixar o seu filho Otávio a promessa de que empregaria todos os
meios ao seu alcance para afastar os perigos que ameaçassem a família
do subdelegado Eustáquio. ele terminou as suas despedidas e. reunindo-se
aos seus quatro camaradas, partiu para o norte.

No momento em que Henrique Dugarbon estreitava consigo a Otávio. o
menino. elevando-se à altura de um homem, proferiu no íntimo
d’alma um juramento solene.

Quem tivesse o dom de ouvir os pensamentos, teria percebido o seguinte:

"Juro-vos, meu Deus, pelo vosso nome e pela alma do desditoso sertanejo
que morreu por meu pai, que a segurança de Rosalina será garantida!"

Tais foram os fatos referidos por Otávio na revelação
que fez ao padre Jorge. Tais foram os fatos cuja narração o
padre repetiu a Eustáquio, Branca e Rosalina.

As impressões que cada frase do sacerdote causara nos seus ouvintes
não se descreve. A princípio uma curiosidade indomável,
em seguida uma comoção que se traduzia por torrentes de lágrimas.
Quando ouviu falar de seu pai afogado no rio Amazonas, Rosalina lançou-se
ao colo de Branca, soluçando de modo a cortar o coração.
Por várias vezes o padre Jorge, compungido diante da dor da menina,
teve desejos de interromper a sua narrativa ela. porém. rogava-lhe
que prosseguisse. porque queria saber a quem devia a salvação
da sua existência. que duas vezes perigara, e quem velava pela tranqüilidade
dos seus benfeitores. Ele continuava. Quando declarou que juramento Otávio
fizera. um grito es capou-se dos lábios de Eustáquio…

— Oh! criança de heroísmo!

Branca e Rosalina puderam apenas exclamar.. Oh!

Mas esta exclamativa foi uni verdadeiro hino de admiração.
entoado em honra de Otávio. Doces lágrimas de gratidão.
desprendendo-se das pálpebras de Rosalina. Vieram minorar-lhe a mágoa
causada pela história lúgubre da morte do seu pai…

Uma bonança relativa ganhou o ânimo encapelado dos ouvintes
do padre Jorge, que, depois de longa pausa, pode terminar:

— Quando o jovem Otávio repetiu-me o seu juramento, quando contou-me,
em seguida, que o amigo do seu pai esquecera a promessa feita e que ele sozinho
ficara a braços com o cumprimento do que havia jurado, missão
que, como me dissera no princípio, ele já desempenhara em parte,
confesso-vos que senti por ele alguma cousa que se assemelhava ao respeito.
Não tive ânimo de dar-lhe um só conselho. Com os olhos
na Providência, conservei-me calado, apertando-o apenas em meus braços.

"Otávio também se calara. Julgava ter dito tudo, e dissera-o
com efeito. A explicação de tudo quanto havia de obscuro e misterioso
para mim e também para ti, Eustáquio, se podia facilmente depreender
daquilo que ele tinha dito.

"Desprendendo-se dos meus braços, Otávio fitou-me com
um sorriso que lhe dava uma fisionomia titânica.

"- Adivinhou já o que eu fazia ontem de noite fora da casa? perguntou-me
ele. . . Está então satisfeito?

"- Inteiramente, respondi-lhe.

"O menino retirou-se e foi prosseguir na admirável missão
que encetara, havia tão longo tempo, salvando nesse mesmo dia a tua
Rosalina e avisando-te depois do ataque que os teus inimigos tencionam dar
hoje a esta casa.

"Assim, pois, é o valente Otávio Dugarbon o defensor que
tantos serviços te há prestado, graças às suas
excursões, em uma das quais eu o surpreendi, na noite de 13, que permitem-lhe
conhecer os planos tenebrosos dos teus perseguidores.

"Uma cousa talvez te pareça ainda inexplicável: o incógnito
de que o bravo Otávio se queria cercar…

— De modo nenhum, padre Jorge. Eu bem compreendo o procedimento do
incomparável menino. Ele receava que, em atenção à
sua pouca idade, tivésseis vontade de dissuadi-lo das suas resoluções.
Por isso, apenas comunicou-vos o seu segredo depois de obter a promessa de
que vós não oporíeis ao cumprimento do seu juramento.
Não acreditou que me havíeis de dar a conhecer esse segredo
e não vos impôs a condição de fazer o contrário,
mas vós, dando-mo a conhecer, alcançastes de mim um compromisso
que me imobiliza tanto quanto te imobilizou a palavra que deste ao menino.
Nada mais do que vós eu posso fazer relativamente ao meu defensor.

— Nem devemos fazer cousa alguma, Eustáquio. A missão
daquele rapazinho não vulgar me parece providencial. Deixemo-lo obrar
livremente.

Alguns minutos depois que o padre Jorge calou-se, Eustáquio perguntou
a Branca e à sua pequena protegida se desejavam ir para S. João
do Príncipe, a fim de que não presenciassem o combate com os
malfeitores, o qual não havia tardar. Ambas responderam-lhe simultaneamente
que não, porquanto, além de não nutrirem desejo de se
apartar dele, não viam perigo algum em permanecer em um lugar tão
bem defendido.

Eustáquio concordou com elas. O padre Jorge foi da mesma opinião.

— Deus não permitirá, disse este, que a boa causa sela
vencida.

Capítulo XIV: A tragédia

Uma dessas tardes enfadonhas de céu cor de chumbo invadia a passos
lentos a natureza. As últimas horas do dia pouco destoavam das primeiras.
Aos golpes do vento que soprara pela manhã sucedera uma aragem úmida,
que punha em agitação os ramúsculos tenros da crista
das árvores, e o silêncio no mato se tornara quase absoluto.

Eustáquio e todos os que se achavam com ele sentiam o mal estar que
lhes comunicava o tempo. Pelas janelas da casa abertas para o ocidente, podiam
ver o sol, que baixava gradualmente para o horizonte, rodeado de nuvens, como
gigantesca medalha de ouro envolta em flocos de algodão amarelado;
mas as reflexões de cada um não nos deixavam atentar para esse
espetáculo.

Depois das últimas palavras do padre Jorge ninguém mais falara.
Ninguém se lembrava de que eram horas de jantar. Todos esperavam pelo
ataque dos bandidos. Branca com algum medo, Rosalina com impaciência,
porque queria ver logo seca a fonte das inquietações dos seus
benfeitores. Eustáquio e o seu amigo, confiados nos defensores da casa,
só contavam com a sua vitória e o extermínio dos malfeitores.
Apesar disso, vagos receios vinham turvar-lhes a tranqüilidade.

Assim estavam quando da orla da mata virgem partiu um assovio estridente.

Eustáquio e o padre Jorge se olharam. Ambos tinham empalidecido. Quase
tiveram medo.

Branca e a sua amiguinha os fitavam, esperando que eles exprimissem um juízo
acerca do silvo.

— Um sinal! balbuciou o padre Jorge.

Ao pronunciar a última sílaba de "sinal", um outro
assobio confundiu-se com a sua voz. A este silvo seguiu-se uma vozeria estrondosa.
A algazarra era nos fundos da casa. Eustáquio tomou uma pistola e,
passando pelo corredor central, chegou à cozinha. Nesse momento fortes
pancadas fizeram tremer uma porta da cozinha que dava para o roseiral e que
estava fechada, enquanto vários tiros estalavam da parte de fora.

Eustáquio ouviu também o ruído de estilhaços
de vidro que caíram no chão da sala, donde acabava de sair.

— Oh! atacado por dous lados exclamou ele, engatilhando a pistola que
empunhara.

A cousa vai mais rápida do que eu esperava, disse o padre Jorge, apresentando-se
na cozinha.

— Vai! vai! repetiu Eustáquio em tom gutural. E depois, olhando
espantado para o amigo, gritou:

— Estais ferido!

Pelo rosto do padre descia um fio vermelho.

— Isto não é nada!… Um fragmento de vidro tocou-me
a testa.

— Que vidro, padre Jorge?…

— Uma das vidraças da sala foi despedaçada por algumas
balas. Vem ver!

Eustáquio lançou um olhar à porta da cozinha e, vendo-a
solidamente trancada, voltou com o amigo para a sala principal.

Branca, tendo ouvido chorar o seu filhinho, que os tiros tinham acordado,
recolhera-se à alcova juntamente com Rosalina e fora acalentar a criança.

No roseiral repetiam-se detonações e gritos.

Uma luta terrível parecia ter lugar aí. Como dissera o padre
Jorge, uma das vidraças da sala fora quebrada por alguns projéteis
perdidos. Os dous amigos precipitaram-se para ela, que estava menos longe
deles, e, sem receio de se cortarem, enfiaram a cabeça pelos caixilhos,
que sustentavam ainda agudas pontas de vidro.

A vista do roseiral era de aterrar. Uma fumaça escura se enovelava
pelas roseiras, espalhando forte cheiro de pólvora. No chão
estavam estendidos três mortos. Dois paraenses e Ruperto haviam já
sucumbido. Um dos indivíduos ultimamente engajados jazia ferido junto
de uma estaca. Dos outros defensores de Eustáquio um, paraense, desaparecera
e os restantes combatiam.

Eustáquio e o padre Jorge, petrificados de espanto, viram sem compreender
o verdadeiro* dos paraenses cercado por três homens, de catadura inflamada
pela raiva brandindo fouces e punhais sobre ele, e nesses três homens
reconheceram os novos engajados!

O paraense defendia-se valentemente a coronhadas, e os seus adversários
recuavam para longe, a cada volta que ele descrevia com a sua espingarda segura
pelo cano.

Uma palavra repetia ele com indignação:

— Traidores! Traidores!

— Padre Jorge, badrou Eustáquio, que tivera de súbito
um pensamento, eles não são traidores!… Ainda há pouco
ouvimos um sinal… Era para eles, que, apenas o ouviram, romperam a luta.
Não são traidores! Fazem parte da quadrilha que me persegue!
Conseguiram introduzir-se em minha casa e estão desempenhando um papel
de que foram encarregados!

— Sim, meu amigo, sim! E sou eu quem tem a culpa desta desgraça…
Perdoa-me! Um excesso de prudência me fez imprudente… Fui muito precipitado
aconselhando-te engajamento de indivíduos que eu não conhecia…
mas fui levado por um grande receio de que não fosse suficiente o pessoal
que tinhas para tua defesa. Demais, as aparências dos malvados me iludiram!

— Oh! vão matar o paraense! exclamou Eustáquio, que,
sem dar atenção ao padre Jorge, acompanhava os rápidos
momentos do combate do roseiral.

O intrépido caboclo, que a princípio resistira com vantagem,
começava a fraquear.

O marido de Branca levantou a pistola que tinha na mão e, através
dos caixilhos, desfechou um tiro… Uma bala foi tocar o peito de um bandido,
cuja mão chegara a garganta do paraense. O miserável sentiu
afrouxarem-se-lhe os músculos. Ajoelhou-se e caiu de frente sobre o
ferido que estava por terra.

Na mesma ocasião uma pancada formidável descarregada pelo caboclo
esmagou o crânio de outro inimigo, cujo companheiro restante fugiu para
o lado dos fundos da habitação.

Senhor do campo, o paraense arrancou tranqüilamente um pedaço
da camisa, rasgada na luta, e com ele limpou o sangue de alguns ferimentos
leves que recebera.

Em seguida aproximou-se da janela ocupada por Eustáquio e o seu amigo
e pediu-lhes água:

— Entre para beber, disse-lhe Eustáquio.

— E traga aquele desgraçado, acrescentou o sacerdote, indicando
o malfeitor ferido, que gemia esforçando-se por livrar-se do cadáver
que caíra sobre ele.

Um minuto depois, era o ferido deitado a um canto da sala principal da habitação
pelo paraense, que fechou a porta que dava para fora, e, havendo saciado a
sede causada pelo combate terrível em que ele tomara parte, contou
a Eustáquio o que se tinha passado.

Estavam os paraenses e Ruperto assustados por causa dos estranhos assobios
no momento em que viram se transformar a fisionomia dos novos engajados, que
eles reputavam seus verdadeiros companheiros. Antes que pudessem servir-se
das suas armas, foram atacados violentamente. Um dos paraenses caiu logo morto
pelas mãos dos engajados convertidos em inimigos. Ruperto e os outros
paraenses, mais ou menos feridos, foram forçados a recuar do lado dos
fundos da habitação, onde principiara a luta, até o lado
do Iapurá. A retirada, porém, não foi apressada. Tiveram
tempo os que a efetuavam de ver um indivíduo de cor branca e cinco
negros transporem as paliçadas e, chegando à porta da cozinha,
arremessarem-se a ela manejando fouces. Na frente da casa findou-se o combate,
depois de sucessivamente rolarem por terra dous paraenses, Ruperto e dous
inimigos, mortos, e outro destes feridos, e quando o último dos malfeitores
fugiu, entregando com o campo a vitória ao último dos verdadeiros
defensores de Eustáquio.

O padre Jorge chegara-se para o ferido. Abrindo-lhe o peito da camisa, descobriu
um golpe profundo que lhe dera a faca do paraense. O desgraçado malfeitor
estava perdido. Acreditando que o ferido desejava beber água, o padre
Jorge, levantando-lhe com uma das mãos a cabeça, com a outra
aproximou-lhe um copo da boca. O bandido moveu convulsamente as pálpebras
e lançou ao sacerdote um olhar de rancor.

— Beba! insistiu o padre Jorge. O miserável fechou então
os olhos e voltou bruscamente a cara. Quis vomitar alguma blasfêmia…
Só pôde expelir uma onda de sangue e soltar um grunhido cavernoso,
o seu último suspiro.

O padre Jorge depôs entristecido a cabeça do morto no soalho
e dirigiu-se para Eustáquio, que, sem ver o que se passava na sala,
estava abraçando comovido seu dedicado defensor. O marido de Branca,
ao aproximar-se o padre Jorge, separou-se do paraense e prestou ouvidos a
umas marteladas aterradoras que retumbavam pela casa. A porta da cozinha era
atacada ainda pelos golpes de fouces dos malfeitores, que chegavam para terminar
a obra começada pelos seus companheiros.

— Meus amigos, disse a meia voz Eustáquio, dirigindo-se ao padre
Jorge e ao paraense, a nossa situação, não dissimulemos,
é quase desesperada. Se algum socorro não nos chegar de S. João
do Príncipe antes do arrombamento da porta da cozinha, só nos
restará correr para o roseiral, atacar os sete bandidos que querem
invadir-me a casa e morrer em suas mãos, deixando Branca, Rosalina
e o meu filhinho entregues a Deus.

O marido de Branca parou como que fatigado pelo esforço que fizera
para pronunciar aquelas palavras.

Depois prosseguiu, maquinalmente, deixando ver a preocupação
do seu espírito:

— Esse socorro não virá sem que se o vá buscar…
Eu vou ao povoado. Em breve estarei de volta, trazendo-vos… a salvação.

O padre Jorge e o paraense quiseram dizer alguma cousa.

— Não há nada a observar, meus amigos, ponderou Eustáquio,
em tom firme. É talvez perigoso alguém se aventurar lá
fora, mas eu espero que serei feliz… Além do que, quando se trata
de salvar a muitos, um pelo menos tem o dever de se arriscar… Eu parto…
Até já!

E, antes que os seus amigos tivessem tido a idéia de o deter, Eustáquio
encaminhou-se para a porta que dava para o roseiral. Quando suas mãos
tocavam a chave da porta, ele ouviu uma voz murmurar-lhe ao ouvido, com a
suavidade de um ósculo:

— Adeus!

Voltou-se… Ah! Branca jazia ensangüentada aos seus pés!

Uma detonação forte ressoara.

Enquanto o pobre marido se deixava cair sobre o corpo inanimado da mulher,
o padre Jorge e o paraense, meio aturdidos pelo inesperado lance, olhavam
com terror por uma janela para o roseiral. Lá fora, empoleirado sobre
a cerca, avistava-se um negro. Um bacamarte fumegava-lhe nas mãos.
O perverso ria-se do efeito do seu tiro.

Branca vira, da alcova, este miserável apontar uma arma para dentro
da casa. Saíra ligeira do aposento e, verificando que Eustáquio
era o alvo do bandido, possuída de um heroísmo de que ninguém
a julgaria capaz, correra a defender com o seu o corpo do esposo. No momento
em que este ouvia o seu doloroso adeus, a carga inteira do bacamarte lhe crivava
as costas.

Passada a primeira impressão daquele desgraçado incidente,
o padre Jorge e o paraense lembraram-se de fechar, por precaução,
todas as janelas que se achavam abertas, deixando o interior da casa em uma
meia escuridão, que o crepúsculo vinha aumentar. O infatigável
engajado de Eustáquio arrastou um leito para a sala e nele deitou com
todo o cuidado a infeliz Branca, que continuava desfalecida.

Inútil é dizer que Eustáquio esquecera a sua situação
quase desesperada, o meio de salvação que ele resolvera tentar,
tudo, só para entregar-se a sua dor. Quem o visse prostrado, com uma
das mãos de Branca colada aos lábios, as feições
alteradas pelo desespero, os olhos fechados, mas enxutos ainda, não
reconheceria nele o enérgico homem que fora o subdelegado de S. João
do Príncipe. Aos pés do leito soluçava Rosalina, orando
de joelhos. Entretanto o padre Jorge examinara as feridas de Branca e as refrescava
com água fria trazida pelo paraense, que nessa ocasião carregava
algumas armas, olhando, ora tristemente para a jovem ferida, ora com ferocidade
para o lado da cozinha, cuja porta via fender-se sob os golpes dos bandidos.

Branca deu um gemido quase imperceptível e abriu os olhos.

— Oh! gritou Eustáquio, levantando-se de um pulo e segurando
o braço do padre Jorge. Está viva! Não morreu não!
Deus não quis matá-la. Ah! se ela morresse eu seria um réprobo.
Ela morreria por minha causa!… Padre Jorge, ela coitada queria fugir e eu…
miserável!… me opus! Me opus!… ali está a minha obra!…

O pobre homem apontou para a esposa. Depois, inclinando-se para ela exclamou:

— Mas tu não morrerás, não, Branca! Deus não
será tão cruel para mim!…

E dos seus olhos irromperam as lágrimas, que até então
se tinham recusado a conceder-lhe alívio ao sofrimento.

Branca encarava-o com doçura, ao passo que trocava com Rosalina infinitos
beijos. A menina já a considerava salva.

O padre Jorge, que conhecia o estado da ferida e se lembrava dos malfeitores,
não teve forças para fingir que estava também satisfeito.
Afastou-se do leito de Branca e o paraense pode perceber que ele se arredara
para chorar.

Com os olhos cheios de lágrimas, que lhe foi impossível conter,
o sacerdote entrou na alcova da sala e deu uma volta pelo aposento. De passagem
viu no seu berço o filho de Eustáquio, dormindo tranqüilamente.
As pancadas incessantes com que os bandidos abalavam a porta da cozinha não
perturbavam o sono do inocente.

— Pobre anjinho! disse consigo mesmo.

Antes de deixar a alcova, deparou com uma cruz. Apoiou os cotovelos sobre
o móvel em que ela se achava e estas palavras rebentaram-lhe do peito:

— Por que não os salvais, meu Deus?!

E depois:

— Otávio, então desapareceste?!

Ao aproximar-se de novo da mulher de Eustáquio, o padre Jorge teve
uma visão desagradável.

Apenas as frestas das janelas davam a fraca claridade que havia no interior
da casa. Uma destas frestas projetava no soalho uma zona branca de luz, que
ia bater no semblante lívido do cadáver do bandido que o paraense
trouxera do roseiral. Aquele rosto, com a boca arregaçada pela última
contração da morte, parecia sorrir de escárnio ante as
cenas que se passavam na sala!

Desviou os olhos daquilo e, vendo Branca mover apressadamente as pálpebras,
o padre pensou que ela queria dizer alguma cousa e abaixou-se para ouvi-la.

— Meu padre, disse ela, eu vou morrer… quero me confessar.

Por mais baixa que fosse a voz de Branca ao dizer essas palavras não
deixou de ser percebida por Eustáquio, nem pela sua protegida.

A declaração de Branca fez voltar-lhes o desespero do ânimo.

— Não chorem, pediu-lhes a moribunda, eu vou para Deus…

O padre foi à alcova buscar a cruz que lá vira. Quando ia voltar
ouviu um estrondo assustador. A porta da cozinha desabara afinal. Os bandidos
tinham aberto passagem. Os seus passos ressoaram no corredor central da casa.

— Oh! está tudo acabado, disse com tristeza o padre.

E, empunhando a cruz, precipitou-se na sala.

O paraense, com admirável presteza e grande risco, fechara a porta
que havia na entrada do corredor, e, afrontando as balas dos malfeitores,
levantara novo obstáculo diante deles.

Este obstáculo, porém, era insignificante. Em poucos momentos
devia chegar o desenlace do drama.

Enquanto isto tinha lugar, junto do leito de Branca era doloroso o que se
via.

A infeliz moça agonizava. Debruçados sobre ela, como se pretendessem
abrigá-la dos golpes do anjo da morte, Eustáquio e Rosalina
pediam a Branca que não morresse… Mas não era possível.
A moribunda, por um esforço supremo, ergueu os braços, querendo
enlaçar os que regavam de lágrimas ardentes as suas faces resfriadas…
os braços caíram-lhe como se de um só golpe houvessem
sido decepados…

Exalou um gemido prolongado, e, de envolta com o seu estertor extremo, balbuciou:

— Meu filho!

Nesse momento chegou o padre Jorge. Era já tarde. Eustáquio
e Rosalina apenas abraçavam então um corpo que o frio da morte
conquistava com rapidez.

O barulho da queda da porta arrombada pelos malfeitores acordara o filho
de Eustáquio. Os vagidos da criança respondiam ao apelo derradeiro
da sua mãe.

— E ele não recebeu o batismo! disse o padre Jorge lembrando-se
de que o filhinho de Branca não fora ainda batizado.

Antes de correr à alcova para administrar ao menino o necessário
sacramento, o sacerdote conheceu que se rachavam as tábuas da porta
que o paraense opusera aos bandidos… Através de fendas, avistou o
clarão de alguma vela que os malfeitores haviam achado e acendido.
A porta ia desprender-se das dobradiças!

— Meu amigo, disse então a Eustáquio, encomenda a Deus
a tua alma e…

— Ah! ah! ah! ah!

Uma gargalhada horripilante de louco, que João Caetano não
poderia repetir no palco, retroou na sala.

Através da escuridão que aí havia, o padre Jorge tentou
distinguir quem a soltara. Acreditou que já estavam na sala os bandidos.
Não era isto.

— Meu padre, continuava uma voz em que o padre Jorge reconheceu com
indizível dor a do seu amigo, tu queres… que eu encomende?… E a
tua?… A Deus? Ah! Ah! Ah! A Deus?… A minha… já está encomendada!…
E Branca?!…

O acento selvagem destes vocábulos desconexos fez o sacerdote tremer.

— Meu Deus! Será castigo? exclamou ele, persignando-se com terror…

A porta do corredor desprendeu-se. O fim chegava.

A claridade de uma vela alumiou a sala. A essa luz, o padre Jorge conseguiu
ver o seu malfadado amigo encolhido perto do sofá, como um animal espavorido;
Rosalina desmaiada no chão; o paraense no meio de um bando de homens,
combatendo como um leão furioso, e ainda a cara do cadáver,
contemplando tudo com o escárnio que a morte estampara nela.

Imediatamente porém apagou-se a luz, e o padre pôde somente
perceber depois que a sala era o teatro de um combate horrendo, de uma luta
cega. Quis, rompendo as trevas, chegar ao berço do menino, cujo choro
o rumor da luta abafara, mas não tinha avançado três passos,
quando uma bala desviada do meio dos combatentes o fulminou…

Alguns minutos mais tarde, apenas dons homens andavam pela sala.

A vela que puderam reacender deixava ver que eram um negro e um dos bandidos
espanhóis. O negro era o miserável José, que o leitor
conhece, e o outro era o chefe da quadrilha dos inimigos de Eustáquio.
Estes dous velhacos se tinham refugiado na cozinha durante o combate e apareciam
depois de tudo acabado. Ao redor deles estavam estendidos numerosos cadáveres
e Rosalina ainda desmaiada.

Entre os cadáveres via-se o do mísero inocente, filho de Branca,
o de Eustáquio, que fora barbaramente morto sem tentar defender-se
e o do paraense que caíra dilacerado por muitos golpes; mas depois
de haver tirado a vida a cinco malvados.

Quando Rosalina voltou a si, achou-se ao ombro de um indivíduo, que
a carregava brutalmente para as florestas. Fez um esforço enérgico
para escapar das mãos que a prendiam. Foi debalde. Olhou em torno de
si, procurando com os olhos o anjo de salvação que tantas vezes
a socorrera.

Avistou então a alguma distância um outro indivíduo que
a noute não deixava claramente perceber e diante dele uma sombra, que
corria a agredi-lo.

Adivinhou logo quem era a sombra.

Quis gritar. A mão grosseira do seu carregador tapou-lhe a boca e
ela sentiu que ele deitava a correr para a mata. Fez uma contorsão
desesperada, mas, exausta, deixou pender depois a cabeça para as costas
do infame que a arrebatava…

A sombra que Rosalina avistara era Otávio Dugarbon; porém o
bravo menino não chegava a tempo…

Passara grande parte do dia escondido nas ribas do Iapurá, a pouca
distância da habitação de Eustáquio.

A demora dos malfeitores fê-lo crer que eles não apareceriam
naquele dia. Deixando o seu posto, ele seguiu para S. João do Príncipe,
onde demorou-se até cair a noute.

Voltou então para o lugar que ocupara de dia, indo pelo rio, embarcado
em uma pequena canoa, para não ser apercebido.

Estava a meio caminho, quando alguns tiros longínquos chegaram-lhe
aos ouvidos. Sem demora encostou à margem a sua embarcação,
saltou em terra e, tirando da cintura uma faca, única arma que nessa
ocasião levava, lançou-se de carreira para a habitação
de Eustáquio. Quando lá chegou, apenas viu dous indivíduos,
que, sem pressa, saíam de dentro do cercado daquela habitação.
O fardo era Rosalina, desmaiada. Um outro homem corria na frente.

O bandido ouviu os passos… olhou para trás, e, com pavor, viu aquela
sombrinha que o ia acometer. Como os gladiadores da antiga Roma, saltou para
o lado, fez fincar-pé e ergueu acima da cabeça um punhal, que
tirara do seio, para baixá-lo sobre o seu agressor.

Otávio, com felina agilidade, furta-se ao golpe da arma, que desce
rasgando somente o ar Agacha-se. Ergue-se, cosendo-se ao corpo do malfeitor
e, sem que este o espere, mergulha-lhe no peito toda a lâmina da sua
faca.

O bandido não deu um só gemido. . . Caiu sobre a menina, que
foi atirada ao chão pelo peso do corpo do seu adversário.

De súbito, Otávio sentiu nas costas uma dor aguda e soltou
um grito involuntário. Antes de cair, o malfeitor apunhalara-o pelas
costas. O menino levou a mão à ferida e arrancou a arma, que
os dedos de um morto já não seguravam.

Em seguida, horrorizado pela idéia de ter sobre si um cadáver,
moveu-se bruscamente e fez rolar para um lado o peso que o oprimia.

Nesse momento, um brado pungente veio perturbar o silêncio da noite.
Uma voz de criança gritou ao longe:

— Otávio! Otávio!

— É ela! É ela! exclamou o menino em francês.

O chefe da quadrilha fugia pelo mato com Rosalina ás costas. Otávio
quis levantar-se para socorrer a quem o chamava. O infeliz não teve
forças. Erguendo-se, por um instante, caiu prostrado.

— Meu Deus!… disse, apenas, e rompeu em soluços.

— Otávio! Otávio! repetiu mais longe a voz de criança.

— Ai! gemeu com desespero o menino.

Por um esforço inaudito, pôs-se de pé, mas não
conseguiu dar um passo sequer… Caiu de novo… Ficou sem movimento no chão…
Balbuciou:

— Meu pai, está satisfeito?

E morreu…

— Otávio! Otávio!

Estes gritos lancinantes partiram ainda uma vez do âmago das trevas,
mas já fracos… imperceptíveis quase.

Depois, mais nada… a noute a ciciar um cântico sobre a hecatombe.

Alta noute, no mesmo teatro das cenas de sangue que acabamos de narrar, passou-se
uma cousa indescritível.

Um homem apareceu correndo do meio da escuridão dos bosques. Trazia
nos braços uma carga, que não parecia pesar-lhe.

Inesperadamente ele parou.

Tropeçara em um objeto.

— Mais outro?! murmurou ele, em francês.

E abaixou-se para ver em que esbarrara.

Nessa ocasião o minguante da lua, levantando-se, mostrou-se no céu
e difundiu alguma luz pelo campo.

Então, como se essa luz viesse queimá-lo, o desconhecido deixou
partir dos seus lábios um som apenas comparável ao uivo derradeiro
do cão a morrer.

— Morto! disse depois.

O objeto em que tropeçara era o cadáver de Otávio.

Depôs então o seu fardo em terra e ajoelhou-se ao lado do menino
morto.

Aquele fardo era o corpo de Rosalina. O desconhecido o encontrara na floresta,
despido e sacrilegamente maltratado, e o trouxera envolto no seu capote.

Com dous estertores pronunciou dous nomes e chorando debruçou-se para
os cadáveres.

— Meus pobres filhos! exclamou ele.

Em tom de desespero acrescentou: – Meu Deus! Meu Deus! Ambos assassinados!

E, abatido pela dor, estirou-se ao lado dos dous cadáveres.

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