Os Maias – Livro Segundo

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Capítulo
IV

Capítulo V

Capítulo VI

Eça de Queiroz

Capítulo I

Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pé do
Ramalhete até á rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes.
No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da claraboia, uma velha
de lenço na cabeça, encolhida n’um chalesinho preto, esperava,
sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava
uma parede feia de corredor, forrada de papel amarello. Dentro um relogio
ronceiro estava batendo dez horas.
– A senhora já tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapéo.
A velha murmurou, d’entre a sombra do lenço que lhe cahia para os olhos,
n’um tom cançado e doente:
– Já, sim, meu senhor. Já fizeram o favor de me fallar. O criado,
o snr. Domingos, não tarda…
Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha um
barulho alegre de crianças brincando; por cima, o moço do Cruges
esfregava a escada com estrondo, assobiando desesperadamente o fado. Um longo
minuto arrastou-se, depois outro, infindavel. A velha, d’entre a negrura do
lenço, deu um suspirosinho abatido. Lá ao fundo um canario rompera
a cantar; e então Carlos, impaciente, puxou o cordão da campainha.
Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado n’um jaquetão de
flanella, appareceu correndo, com uma travessa na mão, abafada n’um
guardanapo; e ao vêr Carlos ficou tão atarantado, bambaleando
á porta, que um pouco de molho de assado escorregou, cahiu sobre o
soalho.
– Oh snr. D. Carlos Eduardo, faz favor d’entrar!… Ora esta! Tem a bondade
d’esperar um instantinho, que eu abro já a sala… Tome lá,
snr.ª Augusta, tome lá, olhe não entorne mais! A senhora
diz que lá manda logo o vinho do Porto… Desculpe v. exc.ª, snr.
D. Carlos… Por aqui, meu senhor…
Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos n’uma sala alta,
espaçosa, com um papel de ramagens azues, e duas varandas para a rua
de S. Francisco; e erguendo á pressa os dois transparentes de paninho
branco, perguntava a Carlos se s. exc.ª não se lembrava já
do Domingos. Quando elle se voltou, risonho, descendo precipitadamente os
canhões das mangas, Carlos reconbeceu-o pelas suissas ruivas. Era com
effeito o Domingos, escudeiro excellente, que no começo do inverno
estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patrioticas, birras ciumentas,
com o cozinheiro francez.
– Não o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar é
um pouco escuro… Lembro-me perfeitamente… E então vossê agora
aqui, hein? E está contente?
– Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor… O snr. Cruges tambem
mora cá por cima…
– Bem sei, bem sei…
– Tenha v. exc.ª a paciencia de esperar um instantinho que eu vou dar
parte á snr.ª D. Maria Eduarda…
Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome d’ella; e pareceu-lhe
perfeito, condizendo bem com a sua belleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo…
Havia uma similitude nos seus nomes. Quem sabe se não presagiava a
concordancia dos seus destinos!
Domingos, no entanto, já á porta da sala, com a mão no
reposteiro, parou ainda, para dizer n’um tom de confidencia e sorrindo:
– É a governante ingleza que está doente…
– Ah! é a governante?
– Sim, meu senhor, tem uma febresita desde hontem, peso no peito…
– Ah!…
O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar, contempiando
Carlos com admiração:
– E o avôsinho de v. exc.ª passa bem?
– Obrigado, Domingos, passa bem.
– Aquillo é que é um grande senhor!… Não ha, não
ha outro assim em Lisboa!
– Obrigado, Domingos, obrigado…
Quando elle finalmente sahiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa
e lenta pela sala. O soalho fôra esteirado de novo. Ao pé da
porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre uma
estante ao lado, cheia de partituras, de musicas, de jornaes illustrados,
pousava um vaso do Japão onde murchavam tres bellos lirios brancos;
todas as cadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos pés do sofá
estirava-se uma velha pelle de tigre. Como no Hotel Central, esta inlallação
summaria de casa alugada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas
novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substituido
as classicas bambinellas de cassa: um pequeno contador arabe, que Carlos se
lembrava de ter visto havia dias no tio Abrahão, viera encher um lado
mais desguarnecido da parede: o tapete de pellucia d’uma mesa oval, collocada
ao centro, desapparecia sob lindas encadernações de livros,
albuns, duas taças japonezas de bronze, um cesto para flôres
de porcelana de Dresde, objectos delicados d’arte que não pertenciam
decerto á mãi Cruges. E parecia errar alli, acariciando a ordem
das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquelle indefinido perfume
que Carlos já sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava
o jasmim.
Mas o que attrahiu Carlos foi um bonito biombo de linho crú, com ramalhetes
bordados, desdobrado ao pé da janella, fazendo um recanto mais resguardado
e mais intimo. Havia lá uma cadeirinha baixa de setim escarlate, uma
grande almofada para os pés, uma mesa de costura com todo um trabalho
de mulher interrompido, numeros de jornaes de modas, um bordado enrolado,
mólhos de lã de côres transbordando de um açafate.
E, confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se ahi, n’esse momento,
a famosa cadellinha escosseza, que tantas vezes passára nos sonhos
de Carlos, trotando ligeiramente atraz de uma radiante figura pelo Aterro
fóra, ou aninhada e adormecida n’um doce regaço…
– Bonjour, Mademoiselle, disse-lhe elle, baixinho, querendo captar-lhe as
sympathias.
A cadellinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, d’orelhas fitas, dardejando
para aquelle estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois bellos olhos
de azeviche, desconfiados, d’uma penetração quasi humana. Um
instante Carlos receou que ella rompesse a ladrar. Mas a cadellinha de repente
namorára-se d’elle, deitada já na cadeira. de patas ao ar, descomposta,
abandonando o ventresinho ás suas caricias. Carlos ia coçal-a
e amimal-a, quando um passo leve pizou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda
diante de si.
Foi como uma inesperada apparição – e vergou profundamente os
hombros, menos a saudal-a, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que
sentia abrazar-lhe o rosto. Ella, com um vestido simples e justo de sarja
preta, um collarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas
verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando
de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho,
Carlos pousou-se embaraçadamente á borda do sofá de reps.
E depois d’um instante de silencio, que lhe pareceu profundo, quasi solemne,
a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, d’um tom d’ouro que
acariciava.
Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ella lhe agradecia
os cuidados que elle tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava
n’ella um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra fórma
da sua perfeição. Os cabellos não eram louros, como julgára
de longe á claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro,
espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus
olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muilo dôce.
Por um geito familiar cruzava ás vezes, ao fallar, as mãos sobre
os joelhos. E através da manga justa de sarja, terminando n’um punho
branco, elle sentia a belleza, a brancura, o macio, quasi o calor dos seus
braços.
Ella calára-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue
abrazar-lhe o rosto. E, apesar de saber já pelo Domingos que a doente
era a governante, só achou, na sua perturbação, esta
pergunta timida:
– Não é sua filha que está doente, minha senhora?
– Oh não! graças a Deus!
E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante ingleza
havia dois dias se achava incommodada, com difficuldade de respirar, tosse,
uma ponta de febre…
– Imaginámos ao principio que era uma constipação passageira;
mas hontem á tarde esteva peor, e estou agora impaciente que a veja…
Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que pendia ao lado
do piano. O seu cabello por traz, repuxado para o alto da cabeça, deixava
uma pennugem d’ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura lactea do pescoço.
Entre aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d’estuque enxovalhado, toda
a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d’uma belleza mais nobre, e quasi
inaccesivel; e pensava que nunca alli ousaria olhal-a tão francamente,
com uma tão clara adoração, como quando a encontrava
na rua.
– Que linda cadellinha v. exc.ª tem, minha senhora disse elle, quando
Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo já n’estas palavras simples,
ditas a sorrir, um accento de ternura.
Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo,
dava uma doçura mais mimosa ás suas feições sérias.
E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:
– Niniche! estão-te a fazer elogios, vem agradecer!
Niniche appareceu a hocejar. Carlos achava lindo este nome de Niniche. E era
curioso, tinha tido tambem uma galguinha italiana que se chamava Niniche…

N’esse instante a criada entrou – a rapariga magra e sardenta, d’olhar petulante,
que Carlos vira já no Hotel Central.
– Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu
não o acompanho, porque ella é tão timida, tem tanto
escrupulo em incommodar, que diante de mim é capaz de negar tudo, dizer
que não tem nada…
– Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n’um encanto de
tudo.
E pareceu-lhe então que no olhar d’ella alguma coisa brilhára,
fugira para elle, de mais vivo, de mais dôce.
Com o seu chapéo na mão, pisando familiarmente aquelle corredor
intimo, surprehendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria
d’uma posse. Por uma porta meio aberta pôde entrevêr uma banheira,
e ao lado dependurados grandes roupões turcos de banho. Adiante, sobre
uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas
d’aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d’estas coisas
tão simples, tão banaes, evidencias de vida delicada.
Melanie correu um reposteiro de linho crú, fêl-o entrar n’um
quarto claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss Sarah n’um leitosinho
de ferro, sentada, com um laço de sêda azul ao pescoço,
e os bandós tão lisos, tão acamados pela escova, como
se fosse sahir n’um domingo para a capella presbyteriana. Na mesinha de cabeceira
os seus jornaes inglezes estavam escrupulosamente dobrados, junto d’um copo
com duas bellas rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde
os retratos da familia real d’Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda
que cobria a commoda, até ás suas botinas bem engraxadas, classificadas,
perfiladas n’uma prateleira de pinho.
Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de vergonha
na face, entre frouxos de tosse, declarou que não tinha nada. Era a
senhora, tão boa, tão cautelosa, que a forcára a metter-se
na cama… E para ella era um desgosto vêr-se alli ociosa, inutil, agora
que Madame estava tão só, n’uma casa sem jardim. Onde havia
a menina de brincar? Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma prisão
para Madame!…
Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu para
a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda n’um rubor afficto, apertando mais
a roupa contra o peito, querendo saber se era absolutamente necessario…
Sim, decerto, era neccssario… Achou-lhe o pulmão direito um pouco
tomado; e, em quanto a agasalhva, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua familia.
Ella contou que era de York, filha de um clergyman, e tinha quatorze irmãos:
os rapazes estavam na Nova Zelandia, e todos eram d’uma robustez de athletas.
Ella sahira a mais fraca; tanto que o pai, vendo que ella aos dezesete annos
pesava só oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.
Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia doenças
de peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mamã ainda vivia. O papá,
já muito velho, morrera do couce de uma egua.
Carlos, no entanto, pó de pé, com o chapéo na mão,
continuava a observal-a, reflectindo. Então, de repente, sem motivo,
ella enterneceu-se, os seus olhos pequeninos ennevoaram-se de agua. E quando
ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar alli no quarto
ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lagrimasinhas tímidas quasi
lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar paternalmente a mão.
– Oh! Thank you sir! murmurou ella, commovida de todo.
Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa, arranjando
ramos, com uma grande cesta de flôres pousada ao lado n’uma cadeira,
e o regáço cheio de cravos. Uma bella restea de sol, estendida
na esteira, vinha morrer-lhe aos pés; e Niniche, deitada alli, reluzia
como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janellas, um realejo
ia tocando, na alegria da linda manhã de sol, a walsa da Madame Angot.
Pelo andar de cima tinham recomeçado as correrias de crianças
brincando.
– Então? exclamou ella, voltando-se logo, com um mólho de cravos
na mão.
Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira, com
pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela…
– Certamente! E ha de tomar algum remedio, não é verdade?
Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi abrir uma
secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas. Ella mesmo arranjou
o papel para elle receitar, metteu um bico novo na penna. E estes cuidados
perturbavam Carlos como caricias.
– Oh minha senhora!… murmurava elle, um lapis basta…
Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida
n’esses objectos familiares onde pousava a doçura das mãos d’ella
– um sinete d’agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com
monogramma de prata ao lado d’uma taçasinha de Saxe cheia d’estaropilhas;
e em tudo havia a ordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil.
Na rua o realejo calára-se, por cima do tecto já não
cavallavam as crianças. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a
abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de
leve.
– Que bonitas flôres v. exc.ª tem, minha senhora! disse elle, voltando
a cabeça, em quanto ia seccando distrahida e lentamente a receita.
De pé, junto do contador arabe, onde pousava um vaso amarello da India,
ella arranjava folhas em volta de duas rosas.
– Dão frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia mais bonitas
flôres. Não ha nada que se compare ás flôres de
França… Pois não é verdade?
Elle não respondeu logo, esquecido a olhar para ella, pensando na doçura
de ficar alli eternamente n’aquella sala de reps vermelho, cheia de claridade
e cheia de silencio, a vêl-a pôr folhas verdes em torno de pés
de rosa!
– Em Cintra ha lindas flôres, murmurou por fim.
– Oh, Cintra é um encanto! disse ella, sem erguer os olhos do seu ramo.
Vale a pena vir a Portugal só por causa de Cintra.
N’esse momento, o reposteiro de reps esvoaçou, e Rosa entrou de dentro,
correndo, vestida de branco, com meiasinhas de sêda preta, uma onda
negra de cabello a bater-lhe as costas, e trazendo ao collo a sua grande boneca.
Ao vêr Carlos parou bruscamente, com os bellos olhos muito abertos para
elle, toda encantada, e apertando mais nos braços Cri-cri que vinha
em camisa.
– Não conheces? perguntou-lhe a mãi, indo sentar-se outra vez
diante do seu cesto de flôres.
Rosa começava já a sorrir, o seu rostosinho cobria-se d’uma
linda côr. E assim, toda d’alvo e negro como uma andorinha, tinha um
encanto raro, com o seu dôce mimo de fórma, a sua graça
ligeira, os seus grandes olhos cheios d’azul, e um ruborzinho de mulher na
face. Quando Carlos se adiantou com a mão estendida para renovar o
antigo conhecimento – ella ergueu-se na ponta dos pés, estendeu-lhe
vivamente a boquinha, fresca como um botão de rosa. Carlos ousou apenas
tocar-lhe de leve na testa.
Depois quiz apertar a mão á sua velha amiga Cri-cri. E então,
de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera alli a correr.
– É o robe-de-chambre, mamã! Não posso achar o robe-de-chambre
de Cri-cri… Ainda a não pude vestir… Dize, sabes onde é
que está o robe-de-chambre?
– Vejam esta desarranjada murmurava a mãi olhando-a com um sorriso
lento e terno. Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu guarda-vestidos,
não se lhe deviam perder as coisas… pois não é verdade,
snr. Carlos da Maia?
Elle, ainda com a sua receita na mão, sorria tambem, sem dizer nada,
todo no enternecimento d’aquella intimidade em que se seutia penetrar dôcemente.
A pequena então veio encostar-se à mãi, roçando-se
pelo seu braço, com uma vozinha languida, lenta, e de mimo:
– Anda, dize… Não sejas má… Anda… Onde está o robe-de-chambre?
Dize…
Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laço
de seda branca que lhe pendia no alto cabello. Depois ficou mais séria:
– Está bem, está quieta… Tu sabes que não sou eu que
trata dos arranjos da Cri-cri. Devias ter mais ordem… Vai perguntar a Melanie.
E Rosa obedeceu logo, séria também, comprimentando agora Carlos
ao passar, com um arzinho senhoril:
– Bonjour, Monsieur…
– É encantadora! murmurou elle.
A mãi sorriu. Tinha acabado de compôr o seu ramo de cravos; –
e immediatamente attendeu a Carlos, que pousára a receita sobre a mesa,
e sem se apressar, installando-se n’uma poltrona, lhe foi fallando da dieta
que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de codeina que se lhe deviam
dar de tres em tres horas…
– Pobre Sarah! dizia ella. E é curioso, não é verdade?
Veio com o presentimento, quasi com a certeza, que havia de adoecer em Portugal…
– Então vem a detestar Portugal!
– Oh! tem-lhe já horror! Acha muito calor, por toda a parte maus cheiros,
a gente hedionda… Tem medo de ser insultada na rua… Emfim é infelicissima,
está ardendo por se ir embora…
Carlos ria d’aquellas antipathias saxonias. De resto em muitas coisas a boa
miss Sarah tinha talvez razão…
– E v. exc.ª tem-se dado bem em Portugal, minha senhora?
– Ela encolheu os hombros, indecisa.
– Sim… Devo dar-me bem… É o meu paiz.
O seu paiz!… E elle que a julgava brazileira!
– Não, sou portugueza.
E, durante um momento, houve um silencio. Ella tomára de sobre a mesa,
abria lentamente um grande leque negro pintado de flôres vermelhas.
E Carlos sentia, sem saber porque, uma doçura nova penetrar-lhe no
coração. Depois ella fallou da sua viagem que fôra muito
agradavel; adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manhã da chegada
a Lisboa, com um céo azul-ferrete, o mar todo azul tambem, e já
um calorzinho de clima dôce… Mas depois, apenas desembarcados, tudo
corrra desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central. Niniche,
uma noite, assustára-os muito com uma indigestão. Em seguida
no Porto viera aquelle desastre…
– Sim, disse Carlos, o marido de v. exc.ª, na Praça Nova…
Ella pareceu surprehendida. Como sabia elle? Ah! sim, sabia de certo pelo
Damaso…
– São muito amigos, creio eu.
Depois d’uma leve hesitação, que ella comprehendeu, Carlos murmurou:
– Sim… O Damaso vai bastante ao Ramalhete… É de resto um rapaz
que eu conheço apenas ha mezes…
Ella abriu os olhos, pasmada.
– O Damaso? Mas elle disse-me que se conheciam desde pequeninos, que eram
até parentes…
Carlos encolheu simplesmente os hombros, sorrindo.
– É uma bella illusão… E se isso o faz feliz!…
Ella sorriu tambem, encolhendo tambem ligeiramente os hombros.
– E v. exc.ª, minha senhora, continuou logo Carlos não querendo
fallar mais do Damaso, como acha Lisboa?
Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade meridional…
Mas, havia tão poucos confortos!… A vida tinha aqui um ar que ella
não pudera perceber ainda – se era de simplicidade ou de pobreza.
– Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens…
Ella riu.
– Não direi isso. Mas supponho que são como os gregos: contentam-se
em comer uma azeitona, olhando o céo que é bonito…
Isto pareceu adoravel a Carlos, todo o seu coração fugiu para
ella.
Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tão faltas de commodidade,
tão despidas de gosto, tão desleixadas. Aquella em que vivia
fazia a sua desgraça. A cozinha era atroz, as portas não fechavam.
Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e collinas
que lhe tiravam o appetite…
– Além d’isso, acrescentou, é um horror não ter um quintal,
um jardim, onde a pequena possa correr, ir brincar…
– Não é facil encontrar assim uma casa nas condições
d’esta e com jardim, disse Carlos.
Deu um olhar ás paredes, ao estuque enxovalhado do tecto – e lembrou-lhe
de repente a Quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as frescas
ruas de acacias.
Felizmente, Maria Eduarda tomara a casa apenas ao mez, e estava pensando em
ir passar à beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal.
– De resto, disse ella, foi o que me aconselhou o meu medico em Paris, o dr.
Chaplain.
O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o dr. Chaplain. Ouvira-lhe
as lições, visitára-o até intimamente na sua propriedade
de Maisonnettes, ao pé de Saint-Germain. Era um grande mestre, era
um espirito bem superior!
– E tão bom coração! disse ella com um claro sorriso,
um olhar que brilhou.
E este sentimento commum pareceu de repente aproximal-os mais dôcemente:
cada um n’esse instante adorou o dr. Chaplain: e continuaram ainda fallando
d’elle prolongadamente, gozando, através d’essa trivial sympathia por
um velho clinico, a nascente concordancia dos seus corações.
O bom dr. Chaplain! Que physionomia tão amavel, tão fina!…
empre com o seu barretinho de sêda… E sempre com a sua grande flôr
na casaca… De resto, o pratico maior que sahira da geração
de Trousseau.
– E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, é uma pessoa encantadora…
Não é verdade?
Mas Maria Eduarda não conhecia Madame Chaplain.
Dentro o relogio ronceiro começára a bater onze horas. E Carlos
então ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidavel, deliciosa visita…
Quando ella lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhe de novo
á face ao tocar aquella palma tão macia e tão fresca.
Pediu os seus comprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, á porta,
já com o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma vez mais, n’uma
ultima saudação, a receber o olhar suave com que ella o seguia…
– Até ámanhã, está claro! exclamou ella de repente,
com o seu lindo sorriso.
– Até ámanhã, decerto!
O Domingos estava já no patamar, de casaca, risonho e bem penteado.
– É coisa de cuidado, meu senhor?
– Não é nada, Domingos… Estimei vêl-o por aqui.
– E eu muito a v. exc.ª Até ámanhã, meu senhor.
– Até ámanhã.
Niniche appareceu tambem no patamar. Elle abaixou-se ternamente a afagal-a,
e disse-lhe tambem, radiante:
– Até ámanhã, Niniche!

– Até ámanhã! Voltando para o Ramalhete, era esta a unica
idéa que elle sentia distinctamente através da nevoa luminosa
que lhe afogava a alma. Agora o seu dia estava findo: – mas, passadas as longas
horas, terminada a longa noite, elle penetraria outra vez n’aquella sala de
reps vermelho, onde ella o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando
ainda folhas verdes em torno de pés de rosa…
Pelo Aterro, por entre a poeira de verão e o ruido das carroças,
o que elle via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara:
por vezes uma phrase que ella dissera cantava-lhe na memoria, com o tom d’ouro
da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seus anneis entremettidos
pelos pêllos de Niniche. Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia
o seu sorriso d’uma graça tão delicada; era cheia de intelligencia,
era cheia de gosto; e a pobre velha á porta, esse doente a quem ella
mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade… E o que o encantava é
que não tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, á
busca dos seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se
diante d’elle a porta da sua casa: e tudo de repente na vida parecia tornar-se
facil, equilibrado, sem duvidas e sem imapciencias.
No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.
– Trouxe-a a escosseza, já v. exc.ª tinha sahido.
Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escripto a lapis
– all rigth. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!… Não se tornára
quasi a lembrar d’ella, desde a vespera, no radiante tumulto em que andára
o seu coração. E era no comboio d’essa noite, d’ahi a horas,
que deviam ambos partir para Santarem, a amarem-se, escondidos n’uma estalagem!
Elle promettera-lh’o, a sério; já ella se preparára decerto,
com a atroz cabelleira postiça, com o water-proof de grande roda; tudo
estava all right… Achou-a n’esse instante ridicula, reles, estupida… Oh,
era claro como a luz que não ia, que nunca iria, jámais! Mas
tinha d’apparecer na estação de Santa Apolonia, balbuciar uma
desculpa tosca, assistir á sua desconsolação, vêr-lhe
os olhos marejados de lagrimas. Que massada!… Teve-lhe odio.
Quando chegou á mesa do almoço Craft e Affonso, já sentados,
fallavam justamente do Gouvarinho, e dos artigos que elle continuava gravemente
a publicar no Jornal do Commercio.
– Que besta essa! exclamou Carlos n’uma voz que sibilava, desabafando sobre
a litteratura politica do marido a colera que lhe davam as importunidades
amorosas da mulher.
Affonso e Craft olharam-n’o, pasmados de tanta violencia. E Craft censurou-lhe
a ingratidão. Porque, realmente, não havia em toda a terra um
enthusiasmo como o que aquelle desventuroso homem d’estado tinha por Carlos…
– V. exc.ª não faz idéa, snr. Affonso da Maia. É
um culto. É uma idolatria!
Carlos encolhia os hombros, impaciente. E Affonso, já bem disposto
para com o homem que assim admirava tão prodigamente o seu neto, murmurou
com bondade:
– Coitado, supponho que é inoffensivo…
Craft fez uma ovação ao velho:
– Inoffensivo! Admiravel, snr. Affonso da Maia! Inoffensivo, applicado a um
homem d’estado, a um par, a um ministro, a um legislador, é um achado!
E é com effeito o que elle é, inoffensivo… E é o que
elles são…
– Chablis? murmurou o escudeiro.
– Não, tomo chá.
E acrescentou:
– Aquelle champagne que hontem bebemos nas corridas, por patriotismo, arrasou-me…
Tenho de me pôr uma semana a regimen de leite.
Então fallou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Clifford,
e do véo azul do Damaso.
– Ora quem estava hontem muito bem vestida era a Gouvarinbo, disse Craft remexendo
o seu chá. Ficava-lhe admiravelmente aquelle branco creme, tocado de
tons negros. Uma verdadeira toilette de corridas… C’était un oeillet
blanc panaché de noir… Vossê não achou, Carlos?
– Sim, rosnou Carlos, estava bem.
Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que não haveria na sua vida
conversa em que não surgisse a Gouvarinho, e que não haveria
caminho na sua vida que o não atravancasse a Gouvarinho! E alli mesmo,
á mesa, decidiu comsigo não a tornar a vêr, escrever-lhe
um bilhete curto, polido, recusando-se a ir a Santarem, sem razões…
Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrette, sem
achar phrase que não fosse pueril ou brutal. Nem tinha a sympathia
precisa para lhe dar o banal tratamento de querida: Vinha-lhe até por
ella uma indefinida repulsão physica: devia ser intoleravel toda uma
noite o seu, cheiro exagerado de verbena; – e lembrava-se que aquella pelle
do seu pescoço, que se lhe afigurava outr’ora um setim, tinha um tom
pegajoso, um tom amarellado, para além da linha de pós d’arroz.
Decidiu não lhe escrever. Iria à noite a Santa Apolonia, e no
momento do comboio partir correria á portinhola, a balbuciar fugitivamente
uma desculpa; não lhe daria tempo de choramigar, nem de recriminar;
um rapido aperto de mão, e adeus, para nunca mais…
Á noite, porém, á hora de ir á estação,
que sacrificio em se arrancar aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!…
Atirou-se para o coupé desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir
azul em que, por causa d’uma rosa e d’um certo vestido côr de folha
morta que lhe ficava bem, elle se achára cahido com ella n’um sofá…
Ao chegar a Santa Apolonia faltavam, para a partida do expresso, dois minutos.
Precipitou-se para a extremidade da sala, já quasi vazia áquella
hora, a comprar uma admissão; e ainda ahi esperou uma eternidade, vendo
dentro do postigo duas mãos lentas e molles arranjar laboriosamente
os patacos d’um troco.
Penetrava emfim na sala d’espera – quando esbarrou com o Damaso, de chapéo
desabado e saccola de viagem a tiracollo. Damaso agarrou-lhe as mãos,
enternecido:
– Ó menino! pois tiveste o incommodo?… E como soubeste tu que eu
partia ?
Carlos não o desilludiu, balbuciando que lh’o dissera o Taveira, que
encontrára o Taveira…
– Pois eu estava mais longe d’uma d’estas! exclamou o Damaso. Esta manhã,
muito regalado na cama, quando me vem o telegramma… fiquei furioso! Isto
é, imagina tu como eu fiquei, um desgosto assim!…
Foi então que Carlos reparou que elle estava carregado de luto, com
fumo no chapéo, luvas pretas, polainas pretas, barca preta no lenço…
Murmurou, embaraçado:
– O Taveira disse-me que ias, mas não me disse mais nada… Morreu-te
alguem?
– Meu tio Guimarães.
– O communista? o de Paris?
– Não, o irmão d’elle, o mais velho, o de Penafiel… Espera
ahi que eu volto já, vou alli ao café encher o frasco de cognac.
Com a afflição esquecia-me o cognac…
Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-pó, com
chapeleiras na mão. Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens.
D’uma portinhola, onde se exhibia um cavalheiro barrigudo, com um bonet bordado
a retroz, pendia todo um cacho d’amigos politicos, respeitosamente e em silencio.
A um canto uma senhora soluçava por baixo do véo.
Carlos, vendo um wagon com a papeleta de reservado imaginou lá a condessa.
Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a profanação
d’um santuario. Que queria elle, que queria elle d’alli? Não sabia
que era o reservado do snr. Carneiro?
– Não sabia.
– Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo.
Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava, atabafadamente,
na amontoação dos embrulhos; n’um, dois sujeitos, a proposito
de lugares, tratavam-se de malcriados; adiante, uma criança esperneava
no collo da ama, aos gritos.
– Ó menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Damaso alegremente,
surgindo por traz d’elle, e passando-lhe o braço pela cinta.
– Ninguem… Imaginei que tinha visto o marquez.
Immediatamente Damaso queixou-se d’aquella lugubre massada de ter d’ir a Penafiel!
– E então agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que tenho andado
com uma sorte para mulheres, menino!… Uma sorte damnada!
Uma sineta badalou. Damaso deu logo um abraço terno a Carlos, saltou
para o seu wagon, enterrou na cabeça um barretinho de sêda –
e depois debruçado da portinhola continuou ainda as confidencias. O
que mais o contrariava era deixar aquelle arranjinho da rua de S. Francisco.
Que ferro! agora que aquillo ia tão bem, o gajo no Brazil, e ella alli,
á mão, a dois passos do Gremio!…
Carlos mal o escutava, distrahido, olhando o grande relogio transparente.
De repente Damaso, á portinhola, deu um salto de surpreza:
– Olha os Gouvarinhos!
Carlos deu um salto tambem. O conde, de côco de viagem, de paletot alvadio,
sem se apressar, como competia a um director da Companhia, vinha conversando
com um empregado superior da estação, agaloado de ouro, que
se encarregára da chapeleira de papelão de s. exc.ª E a
condessa, com um rico guarda-pó de foulard côr de castanho, um
véo cinzento que lhe cobria a face e o chapéo, seguia atraz,
com a criada escosseza, trazendo na mão um ramo de rosas.
Carlos correu para elles, foi todo um assombro.
– Por aqui, Maia?
– De viagem, conde?
É verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos annos do papá…
Resolução da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.
– Então temol-o por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer,
Maia?
Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mão ao pobre Damaso,
de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.
Debruçado da portinhola, com as mãos de fóra calçadas
de negro, o pobre Damaso cstava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente.
E o bom Gouvarinho não quiz deixar de lhe ir dar logo o seu shake-hands
e o seu pezame.
Sósinho n’esse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas:
– Que ferro!
– Este maldito homem! exclamou ella, entre dentes, com um olhar que fuzilou
através do véo. Tudo tão bem arranjado, e á ultima
hora teima em vir!…
Carlos acompanhou-os até ao reservado, n’um outro wagon que se estivera
mettendo de novo para s. exc.ª A condessa tomou o lugar do canto junto
da portinhola. E como o conde, n’um tom de polidez acida, a aconselhava a
que se sentasse antes com o rosto para a machina, ella teve um gesto de aborrecimento,
atirou o ramo para o lado desabridamente, enterrou-se com mais força
na almofada; e um duro olhar de colera passou entre ambos. Carlos, embaraçado,
perguntava:
– Então vão com demora?
O conde respondeu, sorrindo, disfarçando o seu mau humor:
– Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.
– Tres dias, o mais, replicou ella n’uma voz fria e afiada como uma navalha.
O conde não respondeu, lívido.
Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silencio cahira sobre a plataforma.
O apito da machina varou o ar; e o comprido trem, n’um ruido secco de freios
retesados, começou a rolar, com gente ás portinholas, que ainda
se debruçava, estendendo a mão para um ultimo aperto. Aqui e
além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessa para
o lado de Carlos teve a doçura de um beijo, o Damaso gritou saudades
para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro
dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite…
Carlos, só, dentro do coupé, voltando á Baixa, sentia
uma alegria triumphante com aquella partida da condessa, e a inesperada jornada
do Damaso. Era como uma dispersão providencial de todos os importunos:
e assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solidão – com
todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.
No caes do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial,
veio passar diante das janellas na rua de S. Francisco. Só pôde
vêr uma vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas
isto bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisão o serão
calmo que ella estava passando na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome
dos livros que ella lia, e as partituras que tinha sobre o piano; e as flôres
que espalhavam alli o seu aroma vira-as elle arranjar n’essa manhã.
Poria ella um instante o seu pensamento n’elle? Decerto; a doença em
casa forçava-a a lembrar as horas do remedio, as explicações
que elle dera, e o som da sua voz; e fallando com miss Sarah pronunciaria
decerto o seu nome. Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu
para casa, sob a noite estrellada, devagar, ruminando a doçura d’aquelle
grande amor.

Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplendida,
perfeita, «a visita à ingleza».
Saltava do leito, cantando como um canario, e penetrava no seu dia como n’uma
acção triumphal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia
uma carta da Gouvarinho, tres folhas de papel d’onde cahia sempre alguma pequena
flôr meio murcha. Elle deixava ficar a flôr no tapete: e mal podia
dizer o que havia n’aquellas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamente
que, tres dias depois d’ella chegar ao Porto, o pai, o velho Thompson, tivera
uma apoplexia. Ella lá estava, d’enfermeira. Depois, levando duas ou
tres bellas flôres do jardim embrulhadas n’um papel de sêda, partia
para a rua de S. Francisco, sempre no seu coupé – porque o tempo mudára,
e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva.
Á porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido.
Niniche corria de dentro, a pular d’amizade; elle erguia-a nos braços
para a beijar. Esperava um instante na sala, de pé, saudando com o
olhar os moveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar no piano
a musica que ella tocára essa manhã, ou o livro que deixára
interrompido, com a faca de marfim entre as folhas.
Ella entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz d’ouro tinham
cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia ordinariamente
um vestido escuro e simples: apenas ás vezes uma gravata de rica renda
antiga, ou um cinto cuja fivella era cravejada de pedras, avivavam este traje
sobrio, quasi severo, que pareria a Carlos o mais bello, e como uma expressão
do seu espirito.
Começavam por fallar de miss Sarah, d’aquelle tempo agreste e humido
que lhe era tão desfavoravel. Conversando, ainda de pé, ella
dava aqui e além um arranjo melhor a um livro, ou ia mover uma cadeira
que não estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompor constantemente,
a symetria das coisas; – e, machinalmente, ao passar, sacudia a superficie
de moveis já perfeitamente espanejados com as magnificas rendas do
seu lenço.
Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor amarello,
caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a caricia d’esse intimo
perfume em que havia jasmim, e que parecia sahir do movimento das suas saias.
Ella ás vezes abria familiarmente a porta de um quarto, apenas mobilado
com um velho sofá: era alli que Rosa brincava, e que tinha os arranjos
de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri. Encontravam-na
vestindo e conversando profundamente com a boneca; ou então, ao canto
do sofá, com os pésinhos cruzados, immovel, perdida na admiração
d’algum livro d’estampas aberto sobre os joelhos. Ella corria, estendia a
boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma linda flôr.
No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pés do leito
branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa, verificando
a cada instante se o lenço de sêda lhe cobria correctamente o
pescoço, affirmava que estava boa. Carlos gracejava com ella, provando-lhe
que n’esse feio tempo d’inverno, a felicidade era estar alli na cama, com
bons cuidados em redor, alguns romances patheticos, e appetitosa dieta portugueza.
Ella voltava os olhos gratos para Madame, com um suspiro. Depois murmurava:
– Oh yes, I am very comfortable!
E enternecia-se.
Logo nos primeiros dias, ao voltar á sala, ria Eduarda tinha-se sentado
na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos, retomára muito
naturalmente o seu bordado como na presença familiar de um velho amigo.
Com que felicidade profunda elle viu desdobrar-se essa talagarça! Devia
ser um faisão de plumagens rutilantes: mas por ora só estava
bordado o galho de macieira em que elle pousava, galho fresco de primavera,
coberto de florzinhas brancas, como n’um pomar da Normandia.
Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, occupava a mais velha,
a mais commoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas rangiam de leve.
Entre elles ficava a mesa de costura com as Illustrações ou
algum jornal de modas; ás vezes, um instante calado, elle folheava
as gravuras, em quanto as lindas mãos de Maria, com brilhos de joias,
iam puxando os fios de lã. Aos pés d’ella Niniche dormitava,
espreitando-os a espaços, através das repas do focinho, com
o seu bello olho grave e negro. E n’esses escuros dias de chuva, cheios de
friagem lá fóra e do rumor das goteiras, aquelle canto da janella,
com a paz do vagaroso trabalho na talagarça, as vozes lentas e amigas,
e ás vezes um dôce silencio, tinha um ar intimo e carinhoso…
Mas no que diziam não havia intimidades. Fallavam de Paris e do seu
encanto, de Londres onde ella estivera durante quatro lugubres mezes de inverno,
da Italia que era o seu sonho vêr, de livros, de coisas d’arte. Os romances
que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos Feuillet, por cobrir
tudo de pó d’arroz, mesmo as feridas do coração. Apesar
de educada n’um convento severo d’Orleans, lêra Michelet e lêra
Renan. De resto não era catholica praticante; as igrejas apenas a attrahiam
pelos lados graciosos e artisticos do culto, a musica, as luzes, ou os lindos
mezes de Maria, em França, na doçura das flôres de maio.
Tinha um pensar muito recto e muito são – com um fundo de ternura que
a inclinava para tudo o que soffre e é fraco. Assim gostava da Republica
por lhe parecer o regimen em que ha mais solicitude pelos humildes. Carlos
provava-lhe rindo que ella era socialista.
– Socialista, legitimista, orleanista, dizia ella, qualquer coisa, comtanto
que não haja gente que tenha fome!
Mas era isso possivel? Já Jesus, mesmo, que tinha tão dôces
illusões, declarára que pobres sempre os haveria…
– Jesus viveu ha muito tempo, Jesus não sabia tudo… Hoje sabe-se
mais, os senhores sabem muito mais… É necessario arranjar-se outra
sociedade, e depressa, em que não haja miseria. Em Londres, as vezes,
por aquellas grandes neves, há criancinhas pelos portaes a tiritar,
a gemer de fome… É um horror! E em Paris então! É que
se não vê senão o boulevard; mas quanta pobreza, quanta
necessidade…
Os seus bellos olhos quasi se enchiam de lagrimas. E cada uma d’estas palavras
trazia todas as complexas bondades da sua alma – como n’um só sopro
podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.
Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ás suas caridades,
pedindo-lhe para ir ver a irmã da sua engommadeira que tinha rheumatismo,
e o filho da snr.ª Augusta, a velha do patamar, que estava tisico. Carlos
cumpria esses encargos com o fervor de acções religiosas. E
n’estas piedades achava-lhe semelhanças com o avô. Como Affonso,
todo o soffrimento dos animaes a consternava. Um dia viera indignada da Praça
da Figueira, quasi com idéas de vingança, por ter visto nas
tendas dos gallinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, soffrendo durante
dias as torturas da immobilidade e a anciedade da fome. Carlos levava estas
bellas coleras para o Ramalhete, increpava violentamente o marquez, que era
membro da Sociedade protectora dos animaes. O marquez, indignado tambem, jurava
justiça, fallava em cadêas, em costa d’Africa… E Carlos, commovido,
ficava a pensar quanta larga e distante influencia póde ter, mesmo
isolado de tudo, um coração que é justo.
Uma tarde fallaram do Damaso. Ella achava-o insupportavel, com a sua petulancia,
os olhos bugalhudos, as perguntas nescias. V. exc.ª acha Nice elegante?
V. exc.ª prefere a capella de S. João Baptista a Notre-Dame?…
– E então a insistencia de fallar de pessoas que eu não conheço!
A snr.ª condessa de Gouvarinho, e os chás da snr.ª condessa
de Gouvarinho, e a frisa da snr.ª condessa de Gouvarinho, e a preferencia
que a snr.ª condessa de Gouvarinho tem por elle…! E isto horas! Eu
ás vezes tinha medo de adormecer…
Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ella, entre todos, o nome da Gouvarinho?
Tranquillisou-se, vendo-a rir simples e limpidamente. Decerto não sabia
quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir logo d’entre elles esse nome, começou
a fallar de Mr. Guimarães, o famoso tio do Damaso, o amigo de Gambetta,
o influente da Republica…
– O Damaso tem-me dito que v. exc.ª o conhece muito…
Ella erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.
– Mr. Guimarães?… Sim, conheço muito… Ultimamente viamo-nos
menos, mas elle era muito amigo da mamã.
E depois d’um silencio, d’um curto sorriso, recomeçando a puxar o seu
longo fio de lã:
– Pobre Guimarães, coitado! A sua influencia na Republica é
traduzir noticias dos jornaes hespanhoes e italianos para o Rappel, que d’isso
é que vive… Se é amigo de Gambetta, não sei, Gambetta
tem amigos tão extraordinarios… Mas o Guimarães, aliás
bom homem e homem honrado, é um grutesco, uma especie de Calino republicano.
E tão pobre, coitado! O Damaso, que é rico, se tivesse decencia,
ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente.
– Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que falla
o Damaso…?
Ella encolheu mudamente os hombros: e Carlos sentiu pelo Damaso um asco intoleravel.
Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante.
Ella quiz saber a idade de Carlos, elle fallou-lhe do avô. E durante
essas horas suaves em que ella, silenciosa, ia picando a talagarça,
elle contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, e as
viagens… Agora ella conhecia a paizagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifacio,
as excentricidades do Ega. Um dia quiz que Carlos lhe explicasse longamente
a idéa do seu livro A medicina antiga e moderna. Approvou, com sympathia,
que elle pintasse as figuras dos grandes medicos, bemfeitores da humanidade.
Porque se glorificariam só guerreiros e fortes? A vida salva a uma
criança parecia-lhe coisa bem mais bella que a batalha de Austerlitz.
E estas palavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do
seu bordado, cahiam no coração de Carlos e ficavam lá
muito tempo, palpitando e brilhando…
Elle tinha-lhe feito assim largamente todas as confissões; – e ainda
não sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem
sequer a rua que habitava em Paris. Não lhe ouvira murmurar jamais
o nome do marido, nem fallar d’um amigo ou d’uma alegria da sua casa. Parecia
não ter em França, onde vivia, nem interesses, nem lar; – e
era realmente como a deusa que elle ideára, sem contactos anteriores
com a terra, descida da sua nuvem d’oiro. para vir ter alli, n’aquelle andar
alugado da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.
Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham falado d’affeições.
Ella acreditava candidamente que podesse haver, entre uma mulher e um homem,
uma amizade pura, immaterial, feita da concordancia amavel de dois espiritos
delicados. Carlos jurou que tambem tinha fé n’essas beilas uniões,
todas d’estima, rodas de razão comtanto que se lhes misturasse, ao
de leve que fosse, uma ponta de ternura… Isso perfumava-as d’um grande encanto
– e não lhes diminuia a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco
diffusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos sorrisos,
ficára subtilmente estabelecido que entre elles só deveria haver
um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de suavidade e sem tormentos.
Que importava a Carlos? Comtanto que podesse passar aquella hora na poltrona
de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes,
ou tornadas interessantes pela graça da sua pessoa; comtanto que visse
o seu rosto, ligeiramente córado, baixar-se, com a lenta attracção
d’uma caricia, sobre as flôres que lhe trazia; comtanto que lhe afagasse
a alma a certeza de que o pensamento d’ella o ficava seguindo sympathicamente
através do seu dia, mal elle deixava aquella adorada saia de reps vermelho
– o seu coração estava satisfeito, esplendidamente.
Não pensava mesmo que aquella ideal amizade, d’intenção
casta, era o caminho mais seguro para a trazer, brandamente enganada, aos
seus braços ardentes d’homem. No deslumbramento que o tomára
ao vêr-se de repente admittido a uma intimidade que julgára impenetravel,
– os seus desejos desappareciam: longe d’ella, ás vezes, ainda ousavam
ir temerariamente até á esperança d’um beijo, ou d’uma
fugitiva caricia com a ponta dos dedos; mas apenas transpunha a sua porta,
e recebia o calmo raio do seu olhar negro, cahia em devoção,
e julgaria um ultraje bestial roçar sequer as prégas do seu
vestido.
Foi aquelle decerto o periodo mais delicado da sua vida. Sentia em si mil
coisas finas, novas, d’uma tocante frescura. Nunca imaginára que houvesse
tanta felicidade em olhar para as estrellas quando o céo está
limpo; ou em descer de manhã ao jardim para escolher uma rosa mais
aberta. Tinha na alma um constante sorriso – que os seus labios repetiam.
O marquez achava-lhe o ar baboso e abençoador…
Ás vezes, passeando só no seu quarto, perguntara a si mesmo
onde o levaria aquelle grande amor. Não sabia. Tinha diante de si os
tres mezes em que ella estaria em Lisboa, e em que ninguem mais senão
elle occuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O marido andava longe,
separado por legoas de mar incerto. Depois elle era rico, e o mundo era largo…
Conservara sempre as suas grandes idéas de trabalho, querendo que no
seu dia só houvesse horas nobres, – e que aquellas que não pertenciam
ás puras felicidades do amor, pertencessem ás alegrias fortes
do estudo. Ia ao laboratorio, ajuntava algumas linhas ao seu manuscripto.
Mas antes da visita á rua de S. Francisco não podia disciplinar
o espirito, inquieto, n’um tumulto d’esperanças; e depois de voltar
de lá, passava o dia a recapitular o que ella dissera, o que elle respondera,
os seus gestos, a graça de certo sorriso… Fumava então cigarrettes,
lia os poetas.
Todas as noites no escriptorio d’Affonso se formava a partida de whist. O
marquez batia-se ao dominó com o Taveira, enfronhados ambos n’aquelle
vicio, com um rancor crescente que os levava a injurias. Depois das corridas,
o secretario de Steinbroken começára a vir ao Ramalhete; mas
era um inutil, nem cantava sequer como o seu chefe as bailadas da Filandia;
cabido no fundo d’uma poltrona, de casaca, de vidro no olho, bamboleando a
perna, cofiava silenciosamente os seus longos bigodes tristes.
O amigo que Carlos gostava de vêr entrar era o Cruges – que vinha da
rua de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava.
O maestro sabia que Carlos ia rodas as manhãs ao predio vêr a
«miss ingleza»: e muitas vezes, innocentemente, ignorando o interesse
de coração com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias
da visinha…
– A visinha lá ficou agora a tocar Mendelhson… Tem execução,
tem expressão, a visinha… Ha alli estofo… E entende o seu Choppin.
Se elle não apparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa buscal-o: entravam
no Gremio, fumavam um charuto n’alguma sala isolada, fallando da visinha:
Cruges achava-lhe «um verdadeiro typo de grande dame».
Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha vêr (como
elle dizia a faiscar d’ironia) o que se passava «no paiz do snr. Gambetta».
Parecera remoçar ultimamente, mais ligeiro nos modos, com uma claridade
d’esperança nas lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela
condessa. Lá estava no Porto, nos seus deveres de filha…
– E seu sogro?
O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:
– Mal.

Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando Niniche que se
lhe viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriu discretamente
o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraçado, um ar de cumplicidade,
murmurou:
– É o snr. Damaso!…
Ella olhou o Romão, surprehendida d’aquelles modos, e quasi escandalisada.
– Pois bem, mande entrar!
E Damaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flôr ao peito, gorducho,
risonho, familiar, com o chapeu na mão, trazendo dependurado por um
barbante um grande embrulho de papel pardo… Mas ao vêr Carlos alli,
intimamente, de cadellinha no collo, estacou assombrado, com o olho esbugalhado,
como tonto. Emfim desembaraçou as mãos, veio comprimentar Maria
Eduarda quasi de leve, – e voltando-se logo para Carlos, de braços
abertos, todo o seu espanto trasbordou ruidosamente:
– Então tu aqui, homem? Isto é que é uma surpreza! Ora
quem me diria!… Eu estava mais longe…
Maria Eduarda, incommodada com aquelle alarido, indicou-lhe vivamente uma
cadeira, interrompeu um instante o bordado, quiz saber como elle tinha chegado.
– Perfeitamente, minha senhora… Um bocado cançado, como é
natural… Venho direitinho de Penafiel… Como v. exc.ª vê – e
mostrou o seu luto pesado – acabo de passar por um grande desgosto.
Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Damaso pousára
os olhos no tapete. Vinha da provincia cheio de côr, cheio de sangue;
e como cortára a barba (que havia mezes deixára crescer para
imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais nedio. As côxas
roliças estalavam-lhe de gordura dentro da calça de casimira
preta.
– E então, perguntou Maria Eduarda, temol-o por cá algum tempo?
Elle deu um puxãosinho á cadeira, mais para junto d’ella, e
outra vez risonho:
– Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me morrer… Isto
é, credo! teria grande ferro se me morresse alguem. O que quero dizer
é que ha de custar a arrancar-me d’aqui!
Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pêllos da Niniche.
E houve então um pequeno silencio. Maria Eduarda retomára o
bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um geito ao bigode,
estendeu a mão para acariciar tambem Niniche sobre os joelhos de Carlos.
Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado,
ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.
– C’est moi Niniche! dizia Damaso, recuando a cadeira. C’est moi, ami… Alors,
Niniche…
Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente Niniche. E, aninhada
de novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso, rosnando, e
com rancor.
– Já me não conhece, dizia elle embaçado, é curioso…
– Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito séria. Mas não
sei o que o snr. Damaso lhe fez, que ella tem-lhe odio. É sempre este
escandalo.
Damaso balbuciava, escarlate:
– Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?… Caricias, sempre caricias…
E então não se conteve, fallou com ironia, amargamente, das
amizades novas de Mademoiselle Niniche. Alli estava nos braços d’outro,
emquanto que elle, o amigo velho, era deitado ao canto…
Carlos ria.
– Ó Damaso, não a accuses de ingratidão… Pois se a
snr.ª D. Maria Eduarda esta a dizer que ella sempre te teve odio…
– Sempre! exclamou Maria.
Damaso sorria tambem, lividamente. Depois, rirando um lenço de barra
negra, limpando os beiços e mesmo o suor do pescoço, lembrou
a Maria Eduarda como ella o tinha desapontado no dia das corridas… Elle
toda a tarde á espera…
– Eram vesperas de partida, disse ella.
– Sim, bem sei, o marido de v. exc.ª… E como vai o snr. Castro Gomes?
V. excª já recebeu noticias?
– Não, respondeu ella com o rosto sobre o bordado.
Damaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoiselle Rosa. Depois
por Cri-cri. Era necessario não esquecer Cri-cri…
– Pois v. excª – continuou elle, cheio subitamente de loquacidade – perdeu,
que as corridas estiveram esplendidas… Nós ainda não nos vimos
depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estação…
Pois não é verdade que estiveram muito chics? Olhe, minha senhora,
d’uma coisa póde v. excª estar certa, é que hippodromo
mais bonito não ha lá fóra. Uma vista até á
barra, que é d’appetite… Até se vêem entrar os navios…
Pois não é assim, Carlos?
– Sim, disse Carlos, sorrindo. Não é propriamente um campo de
corridas… É verdade que não ha tambem propriamente cavallos
de corridas… Verdade seja que não ha jockeys… Ora é verdade
que não ha apostas… Mas é verdade tambem que não ha
publico…
Maria Eduarda ria, alegremente.
– Mas então?
– Vêem-se entrar os navios, minha senhora…
Damaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer mal
á força… Não senhor, não senhor!… Eram muito
boas corridas. Tal qual como lá fóra, as mesmas regras, tudo…
– Até na pesagem, acrescentou elle muito sério, fallamos sempre
inglez!
Repetiu ainda que as corridas eram chics. Depois não achou mais nada:
– e fallou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que elle vira-se forçado
a ficar em casa, estupidamente, a lêr…
– Uma massada! Ainda se houvesse alli umas mulheres para ir dar um bocado
de cavaco… Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas de pé
descalço, não tolero… Ha gente que gosta… Mas eu, acredite
v. exc.ª não tolero…
Carlos corára: mas Maria Eduarda parceia não ter ouvido, occupada
a contar attentamente as malhas do seu bordado.
De repente Damaso recordou-se que tinha alli um presentinho para a snr.ª
D. Maria Eduarda. Mas não imaginasse que era alguma preciosidade…
Verdadeiramente até o presente era para Mademoiselle Rosa.
– Olhe, para não estar com mysterios, sabe o que é? Tenho-o
alli. no embrulhosinho de papel pardo… São seis barrilinhos d’ovos
molles d’Aveiro. É um dôce muito célebre, mesmo lá
fóra. Só o de Aveiro é que tem chic… Pergunte v. exc.ª
ao Carlos. Pois não é verdade, Carlos, que é uma delicia,
até conhecido lá fóra?
– Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente…
Pousára Niniche no chão, erguera-se, fôra buscar o seu
chapéo.
– Já?… perguntou-lhe Marla Eduarda, com um sorriso que era só
para elle. Até ámanhã, então!
E voltou-se logo para o Damaso, esperando vêl-o erguer-se tambem. Ello
conservou-se installado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a perna.
Carlos estendeu-lhe dois dedos.
– Au revoir, disse o outro. Recados lá no Ramalhete, hei de apparecer!…
Carlos desceu as escadas furioso.
Alli ficava pois aquelle imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente, tão
obtuso que não percebia o enfado d’ella, a sua regelada seccura! E
para que ficava? Que outras crassas banalidades tinha ainda a soltar, em calão,
e de perna traçada? E de repente lembrou-lhe o que elle lhe dissera
na noite do jantar do Ega, á porta do Hotel Central, a respeito da
propria Maria Eduarda, e do seu systema com mulheres «que era o atracão».
Se aquelle idiota, de repente, abrazado e bestial, ousasse um ultraje? A supposição
era insensata, talvez – mas reteve-o no pateo, applicando o ouvido para cima,
com idéas ferozes de esperar alli o Damaso, prohibir-lhe de tornar
a subir aquella escada, e, á menor reflexão d’elle, esmagar-lhe
o craneo nas lages…
Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e sahiu vivamente, no receio de ser assim
surprehendido á escuta. O coupé do Damaso estacionava na rua.
Então veio-lhe uma curiosidade mordente de saber quanto tempo elle
ficaria alli com Maria Eduarda. Correu ao Gremio; e apenas abrira uma vidraça
– viu logo o Damaso sahir do portão, saltar para o coupé, bater
com forca a portinhola. Pareceu-lhe que trazia o ar escorraçado, e
subitamente teve dó d’aquelle grutesco…
N’essa noite, depois de jantar, Carlos só no seu quarto fumava, enterrado
n’uma poltrona, relendo uma carta do Ega recebida n’essa manhã, – quando
appareceu o Damaso. E, sem pousar mesmo o chapéo, logo da porta, exclamou,
com o mesmo espanto da manhã:
– Então dize-me cá! Como diabo te vou eu encontrar hoje com
a brazileira?… Como a conheceste tu? Como foi isso?
Sem mover a cabeça do espaldar da poltrona, cruzando as mãos
sobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor,
disse, com uma dôce reprehensão paternal:
– Pois então tu vaes expôr a uma senhora as tuas opiniões
lubricas sobre as lavradeiras de Penafiel!
– Não se trata d’isso, sei muito bem o que hei de expôr! exclamou
o outro, vermelho. Conta lá, anda… Que diabo! Parece-me que tenho
direito a saber… Como a conheceste tu?
Carlos, imperturbavel, cerrando os olhos como para se recordar, começou
n’um tom lento e solemne de recitativo:
– Por uma tepida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens d’oiro,
um mensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete. Via-se-lhe
na mão uma carta, lacrada com sello heraldico; e a expressão
do seu semblante…
Damaso, já zangado, atirou com o chapéo para cima da mesa.
– Parece-me que era mais decente deixar-te d’esses mysterios!
– Mysterios? Tu vens obtuso, Damaso. Pois tu entras n’uma casa onde existe
ha quasi um mez uma pessoa gravemente doente, e ficas assombrado, petrificado,
ao encontrar lá o medicou! Quem esperavas tu vêr lá? Um
photographo?
– Então quem está doente?
Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronchite da ingleza – emquanto o
Damaso, sentado à beira do sofá, mordendo o charuto sem lume,
olhava para elle desconfiado.
– E como soube ella onde tu moravas?
– Como se sabe onde mora o rei; onde é a alfandega; de que lado luz
a estrella da tarde; os campos onde foi Troia… Estas coisas que se aprendem
nas aulas de instrucção primaria…
O pobre Damaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as mãos
nos bolsos.
– Ella tem agora lá o Romão, o que foi meu criado, murmurou
depois d’um silencio. Eu tinha-lh’o recommendado… Ella leva-se muito pelo
que eu lhe digo…
– Sim, tem, por uns dias, emquanto o Domingos foi á terra. Vai mandal-o
embora, é um imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado mas maneiras…
Então Damaso atirou-se para o canto do sofá e confessou que
ao entrar na sala, quando dera com os olhos em Carlos, de cadellinha no collo,
ficára furioso… Emfim, agora que sabia que era por doença,
bem, tudo se explicava… Mas primeiro parecera-lhe que anadava alli tramoia…
Só com ella, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que não
fosse delicado; e além d’isso ella estava de mau humor…
E acrescentou logo, accendendo o charuto:
– Que apenas tu sahiste, pôz-se melhor, mais á vontade… Rimos
muito… Eu fiquei ainda até tarde, quasi duas horas mais; era perto
das cinco quando sahi. Outra coisa, ella fallou-te alguma vez de mim?
– Não. É uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhecemos,
não se atreveria a dizer-me mal de ti. Damaso olhou-o, esgazeado:
– Ora essa!… Mas podia ter dito bem!
– Não; é uma pessoa de bom senso, não se atreveria tambem.
E erguendo-se vivamente, Carlos abraçou Damaso pela cinta, acariciando-o,
perguntando-lhe pela herança do titi, e em que amores, em que viagens,
em que cavallos de luxo ia gastar os milhões…
Damaso, sob aquellas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o de
revez.
– Olha que tu, disse elle, parece-me que me vaes sahindo tambem um traste…
Não ha a gente fiar-se em ninguem!
– Tudo na terra, meu Damaso, é apparencia e engano!
Seguiram d’alli á sala do bilhar fazer «a partida de reconciliação».
E pouco a pouco, sob a influencia que exercia sempre sobre elle o Ramalhete,
Damaso foi socegando, risonho já, gozando de novo a sua intimidade
com Carlos no meio d’aquelle luxo sério, e tratando-o oulra vez por
«menino». Perguntou pelo snr. Affonso da Maia. Quiz saber se o
bello marquez tinha apparecido. E o Ega, o grande Ega?…
– Recebi carta d’elle, disse Carlos. Vem ahi, temol-o talvez cá no
sabbado.
Foi um espanto para o Damaso.
– Homem! essa é curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!… Vieram
ha dois dias de Southampton… Jógo eu ?
Jogou, falhou a carambola.
– Pois é verdade, encontrei-os hoje, fallei-lhes um instante… E a
Rachel vem melhor, vem mais gorda… Trazia uma toilette ingleza com coisas
brancas, coisas côr de rosa… Chic a valer, parecia um moranguinho!
E então o Ega de volta?… Pois, menino, ainda temos escandalo!

Capítulo II

No sabbado, com effeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua
de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, mettido n’um fato de cheviotte
claro, e com o cabello muito crescido.
– Não faças espalhafato, gritou-lhe elle, que eu estou em Lisboa
incognito!
E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a Lisboa, só
por alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava
com Carlos para lhe fornecer esses requintes, alli, no Ramalhete…
– Ha cá um quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Hespanhol, mas
ainda nem mesmo abri a mala… Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho,
larga bastante para se escrever uma obra sublime.
Decerto! Havia o quarto em cima, onde elle estivera depois de deixar a Villa
Balzac. E mais sumptuoso agora, com um bello leito da Renascença, e
uma cópia dos Borrachos de Velasquez.
– Optimo covil para a arte! Velasquez é um dos Santos Padres do naturalismo…
A proposito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O pai Tompson esteve
á morte, arribou, depois o conde foi buscal-a. Achei-a magra; mas com
um ar ardente; e fallou-me constantemente de ti.
– Ah! murmurou Carlos.
Ega, de monoculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava Carlos.
– É verdade. Fallou de ti constantemente, irresistivelmente, immoderadamente!
Não me tinhas mandado contar isso… Sempre seguiste o meu conselho,
hein? Muito bem feita de corpo, não é verdade? E que tal, no
acto d’amor?
Carlos córou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a Gouvarinho
senão relações superficiaes. Ia lá ás vezes
tomar uma chavena de chá; e à hora do Chiado acontecia-lhe,
como a todo o mundo, conversar com o conde sobre as miserias publicas, á
esquina do Loreto. Nada mais.
– Tu estás-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas não importa.
Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira…
Porque nós vamos lá jantar na segunda-feira.
– Nós… Nós, quem?
– Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o Gouvarinho,
como compete ao individuo d’aquella especie, acrescentou logo que haviamos
de ter tambem «o nosso Maia». O Maia d’elle, e o Maia d’ella…
Santo accordo! Suavissimo arranjo!
Carlos olhou-o com severidade.
– Tu vens obsceno de Celorico, Ega.
– É o fluo se aprende no seio da Santa Madre Igreja.
Mas tambem Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega porém
já sabia. A chegada dos Cohens, não é verdade? Lêra-o
logo n’essa manhã, na Gazeta Illustrada no high-life. Lá se
dizia respeitosamente que s. exc.ªs tinham regressado do seu passeio
pelo estrangeiro.
– E que impressão te fez? perguntou Carlos rindo.
O outro encolheu brutalmente os hombros:
– Fez-me o effeito de haver um cabrão mais na cidade.
E, como Carlos o accusava outra vez de trazer de Celorico uma lingua immunda,
o Ega, um pouco córado, arrependido talvez, lançou-se em considerações
criticas, clamando pela necessidade social de dar ás coisas o nome
exacto. Para que servia então o grande movimento naturalista do seculo?
Se o vicio se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca,
lhe dava nomes que o embellezavam, que o idealisavam… Que escrupulo póde
ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lençoes conjugaes,
se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam
em estrophes d’ouro?
– E a proposito, a tua comedia, o Lodaçal? perguntou Carlos, que entrára
um instante para a alcova de banho.
– Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais… E além d’isso fazia-me
remexer na podridão lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana…
Affigia-me…
Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu jaquetão
claro e ás botas com mau verniz.
– Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos… O Poole naturalmente mandou-te
fato de verão, hei de querer examinar esses córtes da alta civilisação…
Não ha negal-o, diabo, esta minha linha está chimfrim!
Passou uma escova pelo bigode, e continuou fallando para dentro, para a alcova
de banho:
– Pois, menino, eu agora o que necessito é o regimen da Chimera. Vou-me
atirar outra vez ás Memorias. Ha de se fazer ahi uma quantidade d’arte
colossal n’esse quarto que me destinas, diante de Velasquez… E a proposito,
é necessario ir comprimentar o velho Affonso, uma vez que elle me vai
dar o pão, o tecto, e a enxerga…
Foram encontrar Affonso da Maia no escriptorio, na sua velha poltrona, com
um antigo volume da Illustração franceza aberto sobre os joelhos,
mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, d’olho vivo, e cabello
encarapinhado. O velho ficou contentíssimo ao saber que o Ega vinha
por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bella phantasia.
– Já não tenho phantasia, snr. Affonso da Maia!
Então esclarecêl-o com a tua clara razão, disse o velho
rindo. Estamos cá precisando d’ambas as coisas, John.
Depois apresentou-lhe aquelle pequeno cavalheiro, o snr. Manoelinho, rapazinho
amavel da visinhança, filho do Vicente, mestre d’obras; o Manoelinho
vinha ás vezes animar a solidão d’Affonso – e alli folheavam
ambos livros d’estampas e tinham conversas philosophicas. Agora, justamente,
estava elle muito embaraçado por não lhe saber explicar como
é que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre
o seu cavallo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas,
não era mellido na cadêa…
– Está visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraçado, com
as mãos cruzadas atraz das costas. Se mandou matar gente deviam-no
ferrar na cadêa!
– Hein, amigo Ega! dizia Affonso rindo. Que se ha de responder a esta bella
logica? Olha, filho, agora que estão aqui estes dois senhores que são
formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso… Vai tu vêr os bonecos
alli para cima da mesa… E depois vão sendo horas d’ires lá
dentro á Joanna, para merendares.
Carlos, ajudando o pequeno a accommodar-se á mesa com o seu grande
volume d’estampas, pensava quanto o avô, com aquelle seu amor por crianças,
gostaria de conhecer Rosa!
Affonso no emtanto perguntava tambem ao Ega pela comedia. O quê! Já
abandonada? Quando acabaria então o bravo John de fazer bocados incompletos
d’obras-primas?… – Ega queixou-se do paiz, da sua indifferença pela
arte. Que espirito original não esmoreceria, vendo em torno de si esta
espessa massa de burguezes, amodorrada e crassa, desdenhando a intelligencia,
incapaz de se interessar por uma idéa nobre, por uma phrase bem feita?
– Não vale a pena, snr. Affonso da Maia. N’este paiz, no meio d’esta
prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se
a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano…
– Pois então, acudiu o velho, planta os teus legumes. É um serviço
á alimentação publica. Mas tu nem isso fazes!
Carlos, muito sério, apoiava o Ega.
– A unica coisa a fazer em Portugal, dizia elle, é plantar legumes,
emquanto não ha uma revolução que faça subir á
superficie alguns dos elementos originaes, fortes, vivos, que isto ainda cerre
lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada,
demittamo-nos logo voluntariamente da nossa posição de paiz
para que não temos elementos, passemos a ser uma fertil e estupida
provincia hespanhola, e plantemos mais legumes!
O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia como
uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a
glorificação da sua inercia. Terminou por dizer:
– Pois então façam vocês essa revolução.
Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!
– O Carlos já não faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a
sua pessoa, a sua toilette e o seu phaeton, e por esse facto educa o gosto!
O relogio Luiz xv interrompeu-os – lembrando ao Ega que devia ainda, antes
de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Hespanhol. Depois no corredor confessou
a Carlos que, antes d’ir ao Hespanhol, queria correr ao Fillon, ao photographo,
vêr se podia tirar um bonito retrato.
– Um retrato?
– Uma surpreza que tem d’ir d’aqui a tres dias para Celorico, para o dia d’annos
d’uma creaturinha que me adoçou o exilio.
– Oh Ega!
– É horroroso, mas então? É a filha do padre Corrêa,
filha conhecida como tal; além d’isso casada com um proprietario rico
da visinhança, reaccionario odioso… De modo que, bem vês, esta
dupla peça a pregar á Religião e á Propriedade…
– Ah! n’esse caso…
– Ninguem se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democraticos!

Na segunda-feira seguinte choviscava quando Carlos e Ega, no coupé
fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa
Carlos vira-a só uma vez, em casa d’ella; e fôra uma meia hora
desagradavel, cheia de malestar, com um ou outro beijo frio, e recriminações
infindaveis. Ella queixára-se das cartas d’elle, tão raras,
tão seccas. Não se puderam entender sobre os planos d’esse verão,
ella devendo ir para Cintra onde já alugára casa, Carlos fallando
no dever de acompanhar o avô a Santa Olavia. A condessa achava-o distrahido:
elle achou-a exigente. Depois ella sentou-se um instante sobre os seus joelhos
e aquelle leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de
bronze.
Por fim a condessa arrancára-lhe a promessa de a ir encontrar, justamente
n’essa segunda-feira de manhã, a casa da titi, que estava em Santarem;
– porque tinha sempre o appetite perverso e requintado de o apertar nos braços
nús, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com ceremonia.
Mas Carlos faltára, – e agora, rodando para casa d’ella, impacientavam-n’o
já as queixas que teria de ouvir nos vãos de janella, e as mentiras
chôchas que teria de balbuciar…
De repente o Ega, que fumava em silencio, abotoado no seu paletot de verão,
bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:
– Dize-me uma coisa, se não é um segredo sacrosanto… Quem
é essa brazileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?
Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.
– Quem te fallou n’isso?
– Foi o Damaso que m’o disse. Isto é, o Damaso que m’o rugiu… Porque
foi de dentes rilhados, a dar murros surdos n’um sofá do Gremio, e
com uma côr d’apoplexia, que elle me contou tudo…
– Tudo o quê?
– Tudo. Que te apresentára a uma brazileira a quem se atirava, e que
tu, aproveitando a sua ausencia, te metteras lá, não sahias
de lá…
– Tudo isso é mentira! exclamou o outro, já impaciente.
E Ega, sempre risonho:
– Então «que é a verdade», como perguntava o velho
Pilatus ao chamado Jesus Christo?
– É que ha uma senhora a quem o Damaso suppunha ter inspirado uma paixão,
como suppõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante ingleza
com uma bronchite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda não está
melhor, eu vou vêl-a todos os dias. E Madame Gomes, que é o nome
da senhora, que nem brazileira é, não podendo tolerar o Damaso,
como ninguem o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta é a verdade;
mas talvez eu arranque as orelhas ao Damaso!
Ega contentou-se em murmurar:
– E ahi está como sc escreve a historia… vá-se lá a
gente fiar em Guizot!
Em silencio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cólera
contra o Damaso. Ahi estava pois rasgada por aquelle imbecil a penumbra suave
e favoravel em que se abrigára o seu amor! Agora já se pronunciava
o nome de Maria Eduarda no Gremio: o que o Damaso dissera ao Ega, repetil-o-hia
a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez nos lupanares: e
assim o interesse supremo da sua vida seria d’ahi por diante constantemente
perturbado, estragado, sujo pela tagarellice reles do Damaso!
– Parece-me que temos cá mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na
ante-camara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapé um paletot cinzento
e capas de sonhem.
A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «do busto»,
vestida de preto, com uma tira de velludo em volta do pescoço picada
de tres estrellas de diamantes. Uma cesta de esplendidas flôres quasi
enchia a mesa, onde se accumulavam tambem romances inglezes, e uma Revista
dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. Além
da boa D. Maria da Cunha e da baroneza d’Alvim, havia uma outra senhora, que
nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida d’escarlate; e de pé,
conversando baixo com o conde, de mãos atraz das costas, um cavalheiro
alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a commenda da Conceição.
A condessa, um pouco córada, estendeu a Carlos a mão amuada
e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo
do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o snr. Sousa Netto. O snr.
Sousa Netto já tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como
um medico distincto, uma honra da Universidade… E era esta a vantagem de
Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputação,
o poder-se ter assim uma apreciação mais justa dos caracteres.
Em Paris, por exemplo, era impossível; por isso havia tanta immoralidade,
tanta relaxação…
– Nunca sabe a gente quem mette em casa.
O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divan, mostrando as estrellinhas
bordadas das meias, fazia-as rir com a historia do seu exilio em Celorico,
onde se distrahia compondo sermões para o abbade: o abbade recitava-os;
e os sermões, sob uma fórma mystica, eram de facto affirmações
revolucionarias que o santo varão lançava com fervor, esmurrando
o pulpito… A senhora de vermelho, sentada defronte, de mãos no regaço,
escutava o Ega, com o olhar espantado.
– Imaginei que v. exe.ª tinha ido já para Cintra, veio dizer Carlos
á senhora baroneza, sentando-se junto d’ella. V. exc.ª é
sempre a primeira…
– Como quer o senhor que se vá para Cintra com um tempo d’estes?
– Com effeito, está infernal…
– E que conta de novo? perguntou ella, abrindo lentamente o seu grande leque
preto.
– Creio que não ha nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte
do snr. D. João VI.
– Agora ha o seu amigo Ega, por exemplo.
– É verdade, ha o Ega… Como o acha v. exc.ª, senhora baroneza?
Ella nem baixou a voz para dizer:
– Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não gosto d’elle,
não posso dizer nada…
– Oh senhora baroneza, que falta de caridade!
O escudeiro annunciára o jantar. A condessa tomou o braço de
Carlos, – e, ao atravessar o salão, entre o frouxo murmurio de vozes
e o rumor lento das caudas de sêda, pôde dizer-lhe asperamente:
– Esperei meia hora; mas comprehendi logo que estaria entretido com a brazileira…
Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel côr de vinho,
escurecida ainda por dois antigos paineis de paizagem tristonha, a mesa oval,
cercada de cadeiras de carvalho lavrado, resaltava alva e fresca, com um esplendido
cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos ficou á direita
da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que n’esse dia parecia um pouco
mais velha, e sorria com um ar cansado.
– Que tem feito todo este tempo, que ninguem o tem visto? Perguntou-lhe ella,
desdobrando o guardanapo.
– Por esse mundo, minha senhora, vagamente…
Defronte de Carlos, o snr. Sousa Netto, que tinha tres enormes coraes no peitilho
da camisa, estava já observando, emquanto remexia a sopa, que a senhora
condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas e nos edificios
grandes mudanças… A condessa, infelizmente, mal tinha sahido durante
o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, é que admirára
os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palacio de Crystal;
lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma vez
o comparou ao dualismo da Austria e da Hungria. E através d’estas coisas
graves, lançadas d’alto, com superioridade e com peso, a baroneza e
a senhora d’escarlate, aos dois lados d’elle, fallavam do convento das Selesias.
Carlos, no emtanto, comendo em silencio a sua sopa, ruminava as palavras da
condessa. Tambem ella conhecia já a sua intimidade com a «brazileira».
Era evidente pois que já andava alli, diffamante e torpe, a tagarellice
do Damaso. E quando o criado lhe offereceu Sauterne, estava decidido a bater
no Damaso.
De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e cantada:
– O snr. Maia é que deve saber… O snr. Maia já lá esteve.
Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora d’escarlate que lhe fallava,
sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buço forte de quarentona
pallida. Ninguem lh’a apresentára, elle não sabia quem era.
Sorriu tambem, perguntou:
– Onde, minha senhora?
– Na Russia.
– Na Russia?… Não, minha senhora, nunca estive na Russia.
Ella pareceu um pouco desapontada.
– Ah, é que me tinham dito… Não sei já quem me disse,
mas era pessoa que sabia…
O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera apenas
na Hollanda.
– Paiz de grande prosperidade, a Hollanda!… Em nada inferior ao nosso…
Já conheci mesmo um hollandez que era excessivamente instruido…
A condessa baixára os olhos, partindo vagamente um bocadinho de pão,
mais séria de repente, mais secca, como se a voz de Carlos, erguendo-se
tão tranquilla ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Elle,
então, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ella,
muito naturalmente e risonho:
– Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo idéa d’ir á Russia.
Ha assim uma infinidade de coisas que se dizem e que não são
exactas… E se se faz uma allusão ironica a ellas, ninguem comprehende
a allusão nem a ironia…
A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao
escudeiro. Depois, com um sorriso pallido:
– No fundo de tudo que se diz ha sempre um facto, ou um bocado de facto que
é verdadeiro. E isso basta… Pelo menos a mim basta-me…
– A senhora condessa tem então uma credulidade infantil. Estou vendo
que acredita que era uma vez uma filha d’um rei que tinha uma estrella na
testa…
Mas o conde interpellava-o, o conde queria a opinião do seu amigo Maia.
Tratava-se do livro de um inglez, o major Bratt, que atravessára a
Africa, e dizia coisas perfidamente desagradaveis para Portugal. O conde via
alli só inveja – a inveja que nos têm todas as nações
por causa da importancia das nossas colonias, e da nossa vasta influencia
na Africa…
– Está claro, dizia o conde, que não temos nem os milhões,
nem a marinha dos inglezes. Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique
é de primeira ordem; e a tomada d’Ormuz é um primor… E eu
que conheço alguma coisa de systemas coloniaes, posso affirmar que
não ha hoje colonias nem mais susceptiveis de riqueza, nem mais crentes
no progresso, nem mais liberaes que as nossas! Não lhe parece, Maia?
– Sim, talvez, é possível… Ha muita verdade n’isso…
Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monoculo
no olho e sorrindo para a baroneza, pronunciou-se alegremente contra todas
essas explorações da Africa, e essas longas missões geographicas…
Porque não se deixaria o preto socegado, na calma posse dos seus manipansos?
Que mal fazia á ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario,
davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pittoresco! Com a mania franceza
e burgueza de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo
typo de civilisação, o mundo ia tornar-se n’uma monotonia abominavel.
Dentro em breve um touriste faria enormes sacrificios, despezas sem fim, para
ir a Tombuctu – para quê? Para encontrar lá pretos de chapéo
alto, a lêr o Jornal dos Debates!
O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, sahindo do seu vago abatimento,
movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:
– Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chic!
Então Sousa Netto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta
grave:
V. exc.ª pois é em favor da escravatura?
Ega declarou muito decididamente ao snr. Sousa Netto que era pela escravatura.
Os desconfortos da vida, segundo elle, tinham começado com a libertação
dos negros. Só podia ser seriamente obedecido, quem era sériamente
temido… Por isso ninguem agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados,
o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha
criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas… Só houvera duas
civilisações em que o homem conseguira viver com razoavel commodidade:
a civilisação romana, e a civilisação especial
dos plantadores da Nova Orleans. Porque? porque n’uma e n’outra existira a
escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!…
Durante um momento o snr. Sousa Netto ficou como desorganisado. Depois passou
o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega:
– Então v. exc.ª n’essa idade, com a sua intelligencia, não
acredita no Progresso?
– Eu não senhor.
O conde interveio, affavel e risonho:
– O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem
realmente razão, porque os faz brilhantes…
Estava-se servindo Jambon aux épinards. Durante um momento fallou-se
de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia tambem brilhantes e difficeis
de sustentar, excessivamente difficeis, era o Barros, o ministro do reino…
– Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto.
– Sim, pujante, disse o conde.
Mas elle agora não fallava tanto do talento do Barros como parlamentar,
como homem d’estado. Fallava do seu espirito de sociedade, do seu esprit…
– Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até
foi em casa da snr.ª D. Maria da Cunha… V. exc.ª não se
lembra, snr. D. Maria? Esta minha desgraçada memoria! Ó Thereza,
lembras-te d’aquelle paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?… Emfim,
um paradoxo muito difficil de sustentar… Esta minha memoria!… Pois não
te lembras, Thereza?
A condessa não se lembrava. E emquanto o conde ficava remexendo anciosamente,
com a mão na testa, as suas recordações, – a senhora
d’escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d’uma cozinheira
preta que tivera uma tia d’ella, a tia Villar… Depois queixou-se amargamente
dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joanna, que estava em casa havia
quinze annos, não sabia que fazer, andava como tonta, tinha só
desgostos. Em seis mezes já vira quatro caras novas. E umas desleixadas,
umas pretenciosas, uma immoralidade!… Quasi lhe fugiu um suspiro do peito,
e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:
– Ó baroneza, ainda tens a Vicenta?
– Pois então não havia de ter a Vicenta?… Sempre a Vicenta…
A snr.ª D. Vicenta, se faz favor.
A outra contemplou-a um instante, com inveja d’aquella felicidade.
– E é a Vicenta que te penteia?
Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada… Mas sempre
caturra. Agora andava com a mania de aprender francez. Já sabia verbos.
Era de morrer, a Vicenta a dizer j’aime, tu aimes…
– E a senhora baroneza, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar
os verbos mais necessarios.
Está claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais necessario. Mas
na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!
– Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora me lembro!
Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que
os cães, quanto mais ensinados… Pois, não, não era
isto!
– Esta minha desgraçada memoria!… E era sobre cães. Uma coisa
brilhante, philosophica até!
E, por se fallar de cães, a baroneza lembrou-se do Tommy, o galgo da
condessa; perguntou por Tommy. Já o não via ha que tempos, esse
bravo Tommy! A condessa nem queria que se fallasse no Tommy, coitado! Tinham-lhe
nascido umas coisas nos ouvidos, um horror… Mandára-o para o Instituto,
lá morrera.
– Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se
para Carlos.
– Deliciosa.
E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma perfeição.
Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se
a responder ao snr. Sousa Netto, que, a proposito de cães, lhe estava
fallando da Sociedade protectora dos animaes. O snr. Sousa Netto approvava-a,
considerava-a como um progresso… E, segundo elle, não seria mesmo
de mais que o governo lhe désse um subsidio.
– Que eu creio que ella vai prosperando… E merece-o, acredite a senhora
condessa que o merece… Estudei essa questão, e de todas as sociedades
que ultimamente se têm fundado entre nós, á imitação
do que se faz lá fóra, como a Sociedade de Geographia e outras,
a Protectora dos animaes parece-me decerto uma das mais uteis.
Voltou-se para o lado, para o Ega:
– V. exc.ª pertence?
– Á Sociedade protectora dos animaes?… Não senhor, pertenço
a outra, á de Geographia. Sou dos protegidos.
A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente
sério: pertencia á Sociedade de Geographia, considerava-a um
pilar do Estado, acreditava na sua missão civilisadora, detestava aquellas
irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem: – e de repente
a frialdade que até ahi os conservára ao lado um do outro reservados,
n’uma ceremonia affectada, pareceu dissipar-se ao calor d’esse riso trocado,
no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o
Champagne, ella tinha uma côrzinha no rosto. O seu pé, sem ella
saber como, roçou pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez;
– e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos classicos que
ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma reprehensão
amavel:
– Que tolice foi essa da brazileira?… Quem lhe disse isso?
Ella confessou-lhe logo que fôra o Damaso… O Damaso viera contar-lhe
o enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que
lá passava, todos os dias, á mesma hora… Emfim o Damaso fizera-lhe
claramente entrevêr uma liaison.
Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia conhecer-lhe
bem a tagarellice, a imbecilidade…
– É perfeitamente verdade que eu vou a casa d’essa senhora, que nem
brazileira é, que é tão portugueza como eu; mas é
porque ella tem a governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico
da casa. Foi até o Damaso, elle proprio, que lá me levou como
medico!
No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do dôce
allivio que se fazia no seu coração.
– Mas o Datoaso disse-me que era tão linda!…
Sim, era muito linda. E então? Um medico, por fidelidade ás
suas affeições, e para as não inquietar, não podia
realmente, antes de penetrar na casa d’uma doente, exigir-lhe um certificado
de hediondez!
– Mas que está ella cá a fazer?…
– Está á espera do marido que foi a negocios ao Brazil, e vem
ahi… É uma gente muito distincta, e creio que muito rica… Vão-se
brevemente embora, de resto, e eu pouco sei d’elles. As minhas visitas são
de medico; tenho apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres, sobre
as suas impressões de Portugal…
A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello olhar
com que elle lh’as murmurava: e o seu pé apertava o de Carlos n’uma
reconciliação apaixonada, com a força que desejaria pôr
n’um abraço – se alli lh’o podesse dar.
A senhora d’escarlate, no emtanto, recomeçara a fallar da Russia. O
que a assustava é que o paiz era tão caro, corriam-se tantos
perigos por causa da dynamite, e uma constituição fraca devia
soffrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu
que ella era a esposa de Sousa Netto, e que se tratava d’um filho d’elles,
filho unico, despachado segundo secretario para a legação de
S. Petersburgo.
– O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do
leque. É um horror d’estupidez… Nem francez sabe! De resto não
é peor que os outros… Que a quantidade de mônos, de semsaborões
e de tolos que nos representam lá fóra até faz chorar…
Pois o menino não acha? Isto é um paiz desgraçado.
– Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto é um paiz cursi.
Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso
cansado; a senhora de escarlate calára-se, já preparada, tendo
mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em
que o Ega, ainda ácerca da Russia, acabava de contar uma historia ouvida
a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estupido…
– Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde,
já de pé.
Os homens, sós, accenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o café.
Então o snr. Sousa Netto, com a sua chavena na mão, aproximou-se
de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento…
– Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.ª…
Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia. Começava eu então
a minha carreira publica… E o avô de v. exc.ª, bom?
– Muito agradecido a v. exc.ª
Pessoa muito respeitavel… O pai de v. exc.ª era… Emfim, era o que
se chama «um elegante». Tive tambem o prazer de conhecer a mãi
de v. exc.ª…
E de repente calou-se, embaraçado, levando a chavena aos labios. Depois,
lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com
o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da secretária da legação
da Russia, com quem elle encontrára n’essa manhã o conde conversando
ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado,
os seus grandes olhos garços… E o conde, que a admirava tambem, gabava-lhe
sobretudo o espirito, a instrucção. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a:
porque o dever da mulher era primeiro ser bella, e depois ser estupida…
O conde affirmou logo com exuberancia que não gostava tambem de litteratas:
sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na bibliotheca…
– No emtanto é agradavel que uma senhora possa conversar sobre coisas
amenas, sobre o artigo d’uma Revista, sobre… Por exemplo, quando se publica
um livro… Emfim, não direi quando se trata d’um Guizot, ou d’um Jules
Simon… Mas, por exemplo, quando se trata d’um Feuillet, d’um… Emfim, uma
senhora deve ser prendada. Não lhe parece, Netto?
Netto, grave, murmurou:
– Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas…
Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas litterarias,
sabendo dizer coisas sobre o snr. Thiers, ou sobre o snr. Zola, é um
monstro, um phenomeno que cumpria recolher a uma companhia de cavallinhos,
como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas
prendas: cozinhar bem e amar bem.
– V. exc.ª decerto, snr. Sousa Netto, sabe o que diz Proudhon?
Não me recordo textualmente, mas…
Em todo o caso v. exc.ª conhece perfeitamente o seu Proudhon?
O outro, muito seccamente, não gostando decerto d’aquelle interrogatorio,
murmurou que Proudhon era um author de muita nomeada.
Mas o Ega insistia, com uma impertinencia perfida:
– V. exc.ª leu evidentemente, como nós todos, as grandes paginas
de Proudhon sobre o amor?
O snr. Netto, já vermelho, pousou a chavena sobre a mesa. E quiz ser
sarcastico, esmagar aquelle moço, tão litterario, tão
audaz.
– Não sabia, disse elle com um sorriso infinitamente superior, que
esse philosopho tivesse escripto sobre assumptos escabrosos!
Ega atirou os braços ao ar, consternado:
– Oh snr. Sousa Netto! Então v. exc.ª, um chefe de familia, acha
o amor um assumpto escabroso?!
O snr. Netto encordoou. E muito direito, muito digno, fallando do alto da
sua consideravel posição burocratica:
– É meu costume, snr. Ega, não entrar nunca em discussões,
e acatar rodas as opiniões alheias, mesmo quando ellas sejam absurdas…
E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos, desejando
saber, n’uma voz ainda um pouco alterada, se elle agora se fixava algum tempo
mais em Portugal. Então, durante um momento, acabando os charutos,
os dois fallaram de viagens. O snr. Netto lamentava que os seus muitos deveres
não lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fôra esse
o seu ideal; mas agora, com tantas occupações publicas, via-se
forçado a não deixar a carteira. E alli estava, sem ter visto
sequer Badajoz…
– E v. exc.ª de que gostou mais, de Paris ou de Londres ?
Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar… Duas cidades tão
differentes, duas civilisações tão originaes…
– Em Londres, observou o conselheiro, tudo carvão…
Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão, sobretudo nos fogões,
quando havia frio…
O snr. Sonsa Netto murmurou:
– E o frio alli deve ser sempre consideravel… Clima tão ao norte!…
Esteve um momento mamando o charuto, de palpebra cerrada. Depois, fez esta
observação sagaz e profunda:
– Povo pratico, povo essencialmente pratico.
– Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a sala,
onde se sentiam as risadas cantantes da baroneza.
– E diga-me outra coisa, proseguiu o snr. Sousa Netto, com interesse, cheio
de curiosidade intelligente. Encontra-se por lá, em Inglaterra, d’esta
litteratura amena, como entre nós, folhetinistas, poetas de pulso?…
Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com descaro:
– Não, não ha d’isso.
– Logo vi, murmurou Sousa Netto. Tudo gente de negocio.
E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baroneza, sentado defronte
d’ella, fallando outra vez de Celorico, contando-lhe uma soirée de
Celorico, com detalhes picarescos sobre as authoridades, e sobre um abbade
que tinha morto um homem e cantava fados sentimentaes ao piano. A senhora
d’escarlate, no sofá ao lado, com os braços cahidos no regaço,
pasmava para aquella veia do Ega como para as destrezas d’um palhaço.
D. Maria, junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma Illustração;
e vendo que Carlos ao entrar procurara com o olhar a condessa, chamou-o, disse-lhe
baixo que ella fôra dentro vêr Charlie, o pequeno…
– É verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado d’ella, que é
feito d’elle, d’esse lindo Charlie?
– Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho…
– A snr.ª D. Maria tambem me parece hoje um pouco murcha.
– É do tempo. Eu já estou na idade em que o bom humor ou o aborrecimento
vêm só das influencias do tempo… Na sua idade vem d’outras
coisas. E a proposito d’outras coisas: então a Cohen tambem chegou?
Chegou, disse Carlos, mas não tambem. O tambem. O tambem implica combinação…
E a Cohen e o Ega chegaram realmente ambos por acaso… De resto isso é
historia antiga, é como os amores de Helena e de Páris.
N’esse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e trazendo
aberto um grande leque negro. Sem se sentar, fallando sobretudo para a mulher
do snr. Sousa Netto, queixou-se logo de não ter achado Charlie bem…
Estava tão quente, tão inquieto… Tinha quasi medo que fosse
sarampo.- E voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso:
– Eu estou com vergonha… Mas se o snr. Carlos da Maia quizesse ter o incommodo
de o vir vêr um instante… É odioso, realmente, pedir-lhe logo
depois de jantar para examinar um doente…
– Oh senhora condessa! exclamou elle, já de pé.
Seguiu-a. N’uma saleta, ao lado, o conde e o snr. Sousa Netto, enterrados
n’um sofá, conversavam fumando.
– Levo o snr. Carlos da Mala para vêr o pequeno…
O conde erguera-se um pouco do sofá, sem comprehender bem. Já
ella passara. Carlos seguiu em silencio a sua longa cauda de sêda preta
através do bilhar, deserto, com o gaz acceso, ornado de quatro retratos
de damas, da familia dos Gouvarinhos, empoadas e sorumbaticas. Ao lado, por
traz de um pesado reposteiro de fazenda verde, era um gabinete, com uma velha
poltrona, alguns livros n’uma estante envidraçada, e uma escrevaninha
onde pousava um candieiro sob o abat-jour de renda côr de rosa. E ahi,
bruscamente, ella parou, atirou os braços ao pescoço de Carlos,
os seus labios prenderam-se aos d’elle n’um beijo sôfrego, penetrante,
completo, findando n’um soluço de desmaio… Elle sentia aquelle lindo
corpo estremecer, escorregar-lhe entre os braços, sobre os joelhos
sem força.
– Amanhã, em casa da titi, ás onze, murmurou ella quando pôde
fallar.
– Pois sim.
Desprendida d’elle, a condessa ficou um momento com as mãos sobre os
olhos, deixando desvanecer aquella languida vertigem, que a fizera côr
de cêra. Depois, cansada e sorrindo:
– Que doida que eu sou… Vamos vêr Charlie.
O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ahi, n’uma caminha de ferro,
junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco, com um bracinho
cahido para o lado, os seus lindos caracoes loiros espalhados no travesseiro
como uma aureola d’anjo. Carlos tocou-lhe apenas no pulso; e a criada escosseza,
que trouxera uma luz de sobre a commoda, disse, sorrindo tranquillamente:
– O menino n’estes ultimos dias tem andado muitissimo bem…
Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, já
com a mão no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus labios insaciaveis.
Elle colheu um rapido beijo. E, ao passar na antecamara, onde Sousa Netto
e o conde continuavam enfronhados n’uma conversa grave, ella disse ao marido:
– O pequeno está a dormir… O snr. Carlos da Maia achou-o bem.
O conde de Gouvarinho bateu no hombro de Carlos, carinhosamente. E durante
um momento a condessa ficou alli conversando, de pé, a deixar-se serenar,
pouco a pouco, n’aquella penumbra favoravel, antes de affrontar a luz forte
da sala. Depois, por se fallar em hygiene, convidou o snr. Sousa Netto para
uma partida de bilhar; mas o snr. Netto, desde Coimbra, desde a Universidade,
não pegára n’um taco. E ia-se chamar o Ega quando appareceu
Telles da Gama, que chegava do Price. Logo atraz d’elle entrou o conde de
Steinbroken. Então o resto da noite passou-se no salão, em redor
do piano. O ministro cantou melodias da Filandia. Telles da Gama tocou fados.
Carlos e Ega foram os derradeiros a sahir, depois de um brandy and soda, de
que a condessa partilhou, como ingleza forte. E em baixo, no pateo, acabando
de abotoar o paletot, Carlos pôde emfim soltar a pergunta que lhe faiscára
nos labios toda a noite:
– Ó Ega, quem é aquelle homem, aquelle Sousa Netto, que quiz
saber se em Inglaterra havia tambem litteratura?
Ega olhou-o com espanto:
– Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste
immediatamente quem n’este paiz é capaz de fazer essa pergunta?
– Não sei… Ha tanta gente capaz…
E o Ega radiante:
– Official superior d’uma grande repartição do Estado!
– De qual?
– Ora de qual! De qual ha de ser?… Da Instrucção publica!

Na tarde seguinte, ás cinco horas, Carlos, que se demorára de
mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos interminaveis,
fez voar o coupé até á rua de S. Francisco, olhando a
cada momento o relogio, n’um receio de que Maria Eduarda tivesse sahido por
aquelle lindo dia de verão, luminoso e sem calor. Com effeito á
porta d’ella estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas,
desesperado com a condessa, sobretudo comsigo mesmo, tão fraco, tão
passivo, que assim se deixára retomar por aquelles braços exigentes,
cada vez mais pesados, e já incapazes de o commover…
– A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que voltara da terra
havia tres dias, e ainda não cessára de lhe sorrir.
Sentada no sofá, de chapéo, tirando as uvas, ella acolheu-o
com uma dôce côr no rosto, e uma carinhosa reprehensão:
– Estive á espera mais de meia hora antes de sahir… É uma
ingratidão! Imaginei que nos tinha abandonado!
– Porquê? Está peor, miss Sarah?
Ella olhou-o, risonhamente escandalisada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia seguindo
perfeitamente na sua convalescença… Mas agora já não
eram as visitas de medico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe
faltado.
Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava junto
da mesa um livro novo d’estampas; e a ternura, a gratidão infinita
do seu coração, que não ousava mostrar á mãe,
pôl-a toda na longa caricia em que envolveu a filha.
– São historias que a mamã agora comprou, dizia Rosa, séria
e presa ao seu livro. Hei de t’as contar depois… São historias de
bichos.
Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapéo.
– Quer tomar uma chavena de chá comnosco, snr. Carlos da Maia? Eu vinha
morrendo por uma chavena de chá… Que lindo dia, não é
verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio emquanto eu vou tirar o chapéo…
Carlos, só com Rosa, sentou-se junto d’ella, desviando-a do livro,
tomando-lhe ambas as mãos.
– Fomos ao Passeio da Estrella, dizia a pequena. Mas a mamã não
se queria demorar, porque tu podias ter vindo!
Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mãosinhas de Rosa.
– E então que fizeste no Passeio? perguntou elle, depois d’um leve
suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.
– Andei a correr, havia uns patinhos novos…
– Bonitos?…
A pequena encolheu os hombros:
– Chinfrinzitos.
Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão feia?
Rosa sorriu. Fôra o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas
assim, engraçadas… Dizia que a Melanie era uma gaja… O Domingos
tinha muita graça.
Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tão bonitos
vestidos, não devia dizer aquellas palavras… Assim fallava a gente
rôta.
– O Domingos não anda rôto, disse Rosa muito séria.
E subitamente, com outra idéa, bateu as palmas, pulou-lhe entre os
joelhos, radiante:
– E trouxe-me uns grillos da Praça! O Domingos trouxe-me uns grillos…
Se tu soubesses! Niniche tem medo dos grillos! Parece incrivel, hein? Eu nunca
vi ninguem mais medrosa…
Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:
– É a mamã que lhe dá tanto mimo. É uma pena!
Maria Eduarda entrava, ageitando ainda de leve o ondeado do cabello: e, ouvindo
assim fallar de mimo, quiz saber quem é que ella estragava com mimo…
Niniche? Pobre Niniche, coitada, ainda essa manhã fôra castigada!
Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mãos:
– Sabes como a mamã a castiga? exclamava ella, puxando a manga de Carlos.
Sabes?… Faz-lhe voz grossa… Diz-lhe em inglez: Bad dog! dreadful dog!
Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com o dedinho
erguido, a ameaçar Niniche. A pobre Niniche, imaginando com effeito
que a estavam a reprehender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sofá.
E foi necessario que Rosa a tranquillisasse, de joelhos sobre a pelle de tigre,
jurando-lhe, por entre abraços, que ella nem era mau cão, nem
feio cão; fôra só para contar como fazia a mamã…
– Vai-lhe dar agua, que ella deve estar com sêde, disse então
Maria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos
que nos traga o chá.
Rosa e Niniche partiram correndo. Carlos veio occupar, junto da janella, a
costumada poltrona de reps. Mas pela primeira vez, desde a sua intimidade,
houve entre elles um silencio difficil. Depois ella queixou-se de calor, desenrolando
distrahidamente o bordado; e Carlos permanecia mudo, como se para elle, n’esse
dia, apenas houvesse encanto, apenas houvesse significação n’uma
certa palavra de que os seus labios estavam cheios e que não ousavam
murmurar, que quasi receava que fosse adivinhada apesar d’ella suffocar o
seu coração.
– Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse elle por fim, impaciente
de a vêr, tão serena, a occupar-se das suas lãs.
Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ella respondeu, sem erguer
os olhos:
– E para que se ha de acabar? O grande prazer é andal-o a fazer, pois
não acha? Uma malha hoje, outra malha ámanhã, torna-se
assim uma companhia… Para que se ha de querer chegar logo ao fim das coisas?
Uma sombra passou no rosto de Carlos. N’estas palavras, ditas de leve ácerca
do bordado, elle sentia uma desanimadora allusão ao seu amor, – esse
amor que lhe fôra enchendo o coração á maneira
que a lã cobria aquella talagarça, e que era obra simultanea
das mesmas brancas mãos. Queria ella pois conserval-o alli, arrastado
como o bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado tambem no
cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão?
Disse-lhe então, commovido:
– Não é assim. Ha coisas que só existem quando se completam,
e que só então dão a felicidade que se procurava n’ellas.
– É muito complicado isso, murmurou ella, córando. É
muito subtil…
– Quer que lh’o diga mais claramente?
N’esse instante Domingos, erguendo o reposteiro, annunciou que estava alli
o snr. Damaso…
Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciencia:
– Diga que não recebo!
Fóra, no silencio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou inquieto,
lembrando-se que o Damaso devia ter visto em baixo, passeando na rua, o seu
coupé. Santo Deus! O que elle iria tagarellar agora, com os seus pequeninos
rancores, assim humilhado! Quasi lhe pareceu n’esse instante a existencia
do Damaso incompativel com a tranquillidade do seu amor.
– Ahi está outro inconveniente d’esta casa, dizia no emtanto Maria
Eduarda. Aqui ao lado d’esse Gremio, a dois passos do Chiado, é demasiadamente
accessivel aos importunos. Tenho agora de repellir quasi todos os dias este
assalto á minha porta! É intoleravel.
E com uma subita idéa, atirando o bordado para o açafate, cruzando
as mãos sobre os joelhos:
– Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar… Não me seria
possivel arranjar por ahi uma casinhola, um cottage, onde eu fosse passar
os mezes de verão?… Era tão bom para a pequena! Mas não
conheço ninguem, não sei a quem me hei de dirigir…
Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivaes – como já
n’outra occasião em que ella mostrára desejos d’ir para o campo.
Justamente, n’esses ultimos tempos, Craft voltára a fallar, e mais
decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas collecções.
Que deliciosa vivenda para ella, artistica e campestre, condizendo tão
bem com os seus gostos! Uma tentação atravessou-o, irresistivel.
– Eu sei com effeito d’uma casa… E tão bem situada, que lhe convinha
tanto!…
– Que se aluga?
Carlos não hesitou:
– Sim, é possivel arranjar-se…
– Isso era um encanto!
Ella tinha dito – «era um encanto». E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe
desamoravel e mesquinho o ter-lhe suggerido uma esperança, e não
lh’a realisar com fervor.
O Domingos entrára com o taboleiro do chá. E emquanto o collocava
sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao pé da janella,
Carlos, erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pensava em começar
immediatamente negociações com o Craft, comprar-lhe as collecções,
alugar-lhe a casa por um anno, e offerecel-a a Maria Eduarda para os mezes
de verão. E não considerava, n’esse instante, nem as difficuldades,
nem o dinheiro. Via só a alegria d’ella passeando com a pequena, entre
as bellas arvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria ser mais gramdemente
formosa no meio d’esses moveis da Renascença, severos e nobres!
– Muito assucar? perguntou ella.
– Não… Perfeitamente, basta.
Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chavena de porcelana
ordinaria com um filetesinho azul, recordava o magnifico serviço que
tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e côr de fogo. Pobre senhora!
tão delicada, e alli enterrada entre aquelles reps, maculando a graça
das suas mãos nas coisas reles da mãi Cruges!
– E onde é essa casa? perguntou Maria Eduarda.
– Nos Olivaes, muito perto d’aqui, vai-se lá n’uma hora de carruagem…
Explicou-lhe detalhadamcnte o sitio,- acrescentando, com os olhos n’ella,
e com um sorriso inquieto:
– Estou aqui a preparar lenha para me queimar!… Porque se fôr para
lá installar-se, e depois vier o calor, quem é que a torna a
vêr?
Ella pareceu surprehendida:
– Mas que lhe custa, a si, que tem cavallos, que tem carruagens, que não
tem quasi nada que fazer?…
Assim ella achava natural que elle continuasse nos Olivaes as suas visitas
de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossivel renunciar ao encanto d’esta intimidade,
tão largamente offerecida, e decerto mais dôce na solidão
d’aldêa. Quando acabou a sua chavena de chá – era como se a casa,
os moveis, as arvores fossem já seus, fossem já d’ella. E teve
alli um momento delicioso, descrevendo-lhe a quietação da quinta,
a entrada por uma rua d’acacias, e a belleza da sala de jantar com duas janellas
abrindo sobre o rio…
Ella escutava-o, encantada:
– Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia d’esperanças…
Quando poderei ter uma resposta?
Carlos olhou o relogio. Era já tarde para ir aos Olivaes. Mas logo
na manhã seguinte cedo, ia fallar com o dono da casa, seu amigo…
– Quanto incommodo por minha causa! disse ella. Realmente! como lhe hei de
eu agradecer?…
Calou-se; mas os seus bellos olhos ficaram um instante pousados nos de Carlos,
como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do segredo que
ella retinha no seu coração.
Elle murmurou:
– Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra vez
assim.
Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.
– Não diga isso…
– E que necessidade ha que eu lh’o diga? Pois não sabe perfeitamente
que a adoro, que a adoro, que a adoro!
Ella ergueu-se bruscamente, elle tambem: – e assim ficaram, mudos, cheios
d’anciedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse feito uma grande
alteração no Universo, e elles esperassem, suspensos, o desfecho
supremo dos seus destinos… E foi ella que fallou, a custo, quasi desfallecida,
estendendo para elle, como se o quizesse afastar, as mãos inquietas
e tremulas:
– Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute… Antes que seja tarde
ha uma coisa que lhe quero dizer…
Carlos via-a assim tremer, via-a toda pallida… E nem a escutára,
nem a comprehendcra. Sentia apenas, n’um deslumbramento, que o amor comprimido
até ahi no seu coração irrompera por fim, triumphante,
e embatendo no coração d’ella, através do apparente marmore
do seu peito, fizera de lá resaltar uma chamma igual… Só via
que ella tremia, só via que ella o amava… E, com a gravidade forte
d’um acto de posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ella lhe abandonou,
submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lh’as
ora uma ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:
– Meu amor! meu amor! meu amor!
Maria Eduarda cahira pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as mãos,
erguendo para elle os olhos cheios de paixão, ennevoados de lagrimas,
balbuciou ainda, debilmente, n’uma derradeira supplicação:
– Ha uma coisa que eu lhe queria dizer!…
Carlos estava já ajoelhado aos seus pés.
– Eu sei o que é! exclamou, ardentemente, junto do rosto d’ella, sem
a deixar fallar mais, certo de que adivinhára o seu pensamento. Escusa
de dizer, sei perfeitamente. É o que eu tenho pensado tantas vezes!
É que um amor como o nosso não póde viver nas condições
em que vivem outros amores vulgares… É que desde que eu lhe digo
que a amo, é como se lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus…
Ella recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se não comprehendesse.
E Carlos continuava mais baixo, com as mãos d’ella presas, penetrando-a
toda da emoção que o fazia tremer:
– Sempre que pensava em si, era já com esta esperança d’uma
existencia toda nossa, longe d’aqui, longe de todos, tendo quebrado todos
os laços presentes, pondo a nossa paixão acima de todas as ficções
humanas, indo ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e para
sempre… Levamos Rosa, está claro, sei que não se póde
separar d’ella… E assim viveríamos sós, todos tres, n’um encanto!
– Meu Deus! Fugirmos? murmurou ella, assombrada.
Carlos erguera-se.
– E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nós fazer, digna do
nosso amor?
Maria não respondeu, immovel, a face erguida para elle, branca de cera.
E pouco a pouco uma idéa parecia surgir n’ella, inesperada e perturbadora,
revolvendo todo o seu sêr. Os seus olhos alargavam-se, anciosos e refulgentes.
Carlos ia fallar-lhe… Um leve rumor de passos na esteira da sala deteve-o.
Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do chá: e durante um momento,
quasi interminavel, houve entre aquelles dois sêres, sacudidos por um
ardente vendaval de paixão, a caseira passagera d’um criado arrumando
chavenas vazias. Maria Eduarda, bruscamente, refugiou-se detraz das bambinellas
de cretone com o rosto contra a vidraça. Carlos foi sentar-se no sofá,
a folhear ao acaso uma Illustração, que lhe tremia nas mãos.
E não pensava em nada, nem sabia onde estava… Ainda na vespera, havia
ainda instantes, conversando com ella, dizia ceremoniosamente «minha
cara senhora»: depois houvera um olhar; e agora deviam fugir ambos,
e ella tornára-se o cuidado supremo da sua vida, e a esposa secreta
do seu coração.
– V. exc.ª quer mais algumna coisa? perguntou Domingos.
Maria Eduarda respondeu sem se voltar:
– Não.
O Domingos sahiu, a porta ficou cerrada. Ella então atravessou a sala,
veio para Carlos, que a esperava no sofá, com os braços estendidos.
E era como se obedecesse só ao impulso da sua ternura, calmadas já
todas as incertezas. Mas hesitou de novo diante d’aquella paixão, tão
prompta a apoderar-se de todo o seu sêr, e mumurou, quasi triste:
– Mas conhece-me tão pouco!… Conhece-me tão pouco, para irmos
assim ambos, quebrando por tudo, crear um destino que é irreparavel…
Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado, brandamente:
– O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na vida!
Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do seu
coração, escutando-lhe as derradeiras agitações.
Depois soltou um longo suspiro.
– Pois seja assim! Seja assim… Havia uma coisa que eu lhe queria dizer,
mas não importa… É melhor assim!…
E que outra coisa podiam fazer? perguntava Carlos radiante. Era a unica solução
digna, séria… E nada os podia embaraçar; amavam-se, confiavam
absolutamente um no outro; elle era rico, o mundo era largo…
E ella repetia, mais firme agora, já decidida, e como se aquella resolução
a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma, penetrando-a toda e para
sempre:
– Pois seja assim! É melhor assim!
Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.
– Dize-me ao menos que és feliz, murmurou Carlos.
Ella lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus labios
uniram-se n’um beijo profundo, infinito, quasi immaterial pelo seu extasi.
Depois Maria Eduarda descerrou lentamente as palpebras, e disse-lhe, muito
baixo:
– Adeus, deixa-me só, vai.
Elle tomou o chapéo, e sahiu.

No dia seguinte Craft, que havia uma semana não ia ao Ramalhete, passeava
na quinta antes d’almoço – quando appareceu Carlos. Apertaram as mãos,
fallavam um instante do Ega, da chegada dos Cohens. Depois, Carlos, fazendo
um gesto largo que abrangia a quinta, a casa, todo o horisonte, perguntou
rindo:
– Você quer-me vender tudo isto, Craft?
O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:
– A la disposicion de ustêd…
E alli mesmo concluiram a negociação, passeando n’uma ruasinha
de buxo por entre os geranios em flôr.
Craft cedia a Carlos todos os seus moveis antigos e modernos por duas mil
e quinhentas libras, pagas em prestações: só reservava
algumas raras peças do tempo de Luiz XV, que deviam fazer parte d’essa
nova collecção que planeava, homogenea, e toda do seculo XVIII.
E como Carlos não tinha no Ramalhete lugar para este vasto bric-à-brac,
Craft alugava-lhe por um anno a casa dos Olivaes, com a quinta.
Depois foram almoçar. Carlos nem por um momento pensou na larga despeza
que fazia, só para offerecer uma residencia de verão, por dois
curtos mezes – a quem se contentaria com um simples cottage, entre arvores
de quintal. Pelo contrario! quando repercorreu as salas do Craft, já
com olhos de dono, achou tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de gosto.
Com que alegria, ao deixar os Olivaes, correu á rua de S. Francisco,
a annunciar a Maria Eduarda que lhe arranjára emfim definitivamente
uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o vira apear-se, veio ao seu
encontro ao patamar: elle ergueu-a nos braços, entrou assim na sala,
com ella ao collo, em triumpho. E não se conteve; foi á pequena
que deu logo «a grande novidade», annunciando-lhe que ia ter duas
vaccas, e uma cabra, e flôres, e arvores para se balouçar…
– Onde é? Dize, onde é? exclamava Rosa, com os lindos olhos
resplandecentes, e a facesinha cheia de riso.
– D’aqui muito longe… Vai-se n’uma carruagem… Vêem-se passar os
barcos no rio… E entra-se por um grande portão onde ha um cão
de fila.
Maria Eduarda appareceu, com Niniche ao collo.
– Mamã, mamã! gritou Rosa correndo para ella, dependurando-se-lhe
do vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um balouço… É
verdade? Dize, deixa vêr, onde é? Dize… E vamos já para
lá?
Maria e Carlos apertaram a mão, com um longo olhar, sem uma palavra.
E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos, Carlos contou a
sua ida aos Olivaes… O dono da casa estava prompto a alugar, já,
n’uma semana… E assim se achava ella de repente com uma vivenda pittoresca,
mobilada n’um bello estylo, deliciosamente saudavel…
Maria Eduarda parecia surprehendida, quasi desconfiada.
– Ha de ser necessario levar roupas de cama, roupas de mesa…
– Mas ha tudo! exclamou Carlos alegremente, ha quasi tudo! É tal qual
como n’um conto de fadas… As luzes estão accêsas, as jarras
estão cheias de flôres… É só tomar uma carruagem
e chegar.
– Sómente, é necessario saber o que esse paraíso me vae
custar…
Carlos fez-se vermelho. Não previra que se fallasse em dinheiro – e
que ella quereria decerto pagar a casa que habitasse… Então preferiu
confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um anno, andava desejando
desfazer-se das suas collecções, e alugar a quinta: o avô
e elle tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos moveis e
das faienças, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais
Santa Olavia; e elle emfim decidira-se a fazer essa compra desde que entrevira
a felicidade de lhe poder offerecer, por alguns mezes de verão, uma
residencia graciosa, e tão confortavel…
– Rosa, vai lá para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento
de silencio… Miss Sarah está á tua espera.
Depois, olhando para Carlos, muito séria:
– De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o campo, não
tinha feito essa despeza…
– Tinha feito a mesma despeza… Tinha tambem alugado a casa por seis mezes
ou por um anno… Onde possuia eu agora de repente um sitio para metter as
coisas do Craft? O que não fazia talvez era comprar conjuntamente roupas
de cama, roupas de mesa, mobilias dos quartos dos criados, etc…
E acrescentou, rindo:
– Ora se me quizer indemnisar d’isso podemos debater esse negocio…
Ella baixou os olhos, reflectindo, lentamente.
– Em todo o caso seu avô e os seus amigos devem saber d’aqui a dias
que me vou installar n’essa casa… E devem comprehender que a comprou para
que eu lá me installasse…
Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado d’elle. E isto
inquietou-o – o vêl-a assim retrahir-se áquella absoluta communhão
d’interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coração.
– Não approva então o que fiz? Seja franca…
– Decerto… Como não hei de eu approvar tudo quanto faz, tudo quanto
vem de si? Mas…
Elle acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se triumphar:
– Não ha mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa
no campo, inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto,
se quizer, metteremos n’isto tudo o meu procurador… Minha cara amiga, se
fosse possivel que a nossa affeição se passasse fóra
do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria
delicioso… Mas não pode ser!… Alguem tem de saber sempre alguma
coisa; quando não seja senão o cocheiro que me leva todos os
dias a sua casa, quando não seja senão o criado que me abre
todos os dias a sua porta… Ha sempre alguem que surprehende o encontro de
dois olhares; ha sempre alguem que adivinha d’onde se vem a certas horas…
Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que
os tornava invisiveis. Nós não somos deuses, felizmente…
Ella sorriu.
– Quantas palavras para converter uma convertida!
E tudo ficou harmonisado n’um grande beijo.

Affonso da Maia approvou plenamente a compra das collecções
do Craft. «É um valor, disse elle ao Villaça, e acabamos
d’encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»
Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em «desvario», despeitado
por essa transacção secreta para que não fôra consultado.
O que o irritava sobretudo era vêr, n’esta acquisição
inesperada de uma casa de campo, outro symptoma do grave e do fundo segredo
que presentia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que elle habitava
o Ramalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidencia!… Desde
a sua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Cella,
fôra elle o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos não
tinha uma aventura banal d’hotel, de que não mandasse ao Ega «um
relatorio». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tentára,
frouxamente, guardar um mysterio delicado, já o conhecia todo, já
lêra as cartas da Gouvarinho, já passára pela casa da
titi…
Mas do outro segredo não sabia nada – e considerava-se ultrajado. Via
rodas as manhãs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flôres;
via-o chegar de lá, como elle dizia, «besuntado d’extasi»;
via-lhe os silencios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao mesmo
tempo sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado…
E não sabia nada.
Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a fallar de planos
de verão, Carlos alludiu aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando
algumas das preciosidades do Craft, o dôce socego da casa, a clara vista
do Tejo… Aquillo realmente fôra obter por uma mão cheia de
libras um pedaço do paraiso…
Era á noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que passeara
com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os hombros,
impaciente, farto d’aquelles louvores eternos a casinhola do Craft.
– Essa concepção do paraiso, exclamou elle, parece-me d’um estofador
da rua Augusta! Como natureza, couves gallegas; como decoração,
os velhos cretones do gabinete, desbotados já por tres barrelas…
Um quarto de dormir lugubre como uma capella de santuario… Um salão
confuso como o armazem d’um cara-de-pau, e onde não é possivel
conversar… A não ser o armario hollandez, e um ou outro prato, tudo
aquillo é um lixo archeologico… Jesus! o que eu odeio bric-à-brac!
Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como reflectindo:
– Com effeito esses cretones são medonhos… Mas eu vou mandar remobilar,
tornar aquillo mais habitavel.
Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos.
– Habitavel? Vaes ter hospedes?
– Vou alugar.
– Vaes alugar! A quem?
E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos no tecto,
enfureceu Ega. Comprimentou quasi até ao chão, disse sarcasticamente:
– Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer
arrombar uma gaveta fechada… O aluguel d’um predio é sempre um d’esses
delicados segredos de sentimento e de honra em que não deve roçar
nem a aza da imaginação… Fui rude… Irra! Fui bestialmente
rude!
Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega – e quasi sentia um remorso
d’aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia
de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras
as contára ao Ega; e essas confidencias constituiam talvez mesmo o
prazer mais solido que ellas lhe davam. Isto, porém, não era
«uma aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso;
e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé…
Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentação de fallar d’ella
ao Ega, e de tornar vivas, e como visiveis aos seus proprios olhos, dando-lhes
o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe
enchiam o coração. Além d’isso, Ega não saberia
tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarellice alheia? Antes lh’o dissesse
elle, fraternalmente. Mas hesitou ainda, accendeu outra cigarrette. Justamente
o Ega tomára o seu castiçal, e começava a: accendel-o
a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.
– Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te ahi, disse
Carlos.
E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro, á
entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.
Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Suppuzera
um romancesinho, d’esses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e
agora, só pelo modo como Carlos fallava d’aquelle grande amor, elle
sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se
d’ahi por diante, e para sempre, o seu irreparavel destino. Imaginára
uma brazileira polida por Paris, bonita e futil, que tendo o marido longe,
no Brazil, e um formoso rapaz ao lado, no sofá, obedecia simplesmente
e alegremente á disposição das coisas: e sahia-lhe uma
creatura cheia de caracter, cheia de paixão, capaz de sacrificios,
capaz de heroismos. Como sempre, diante d’estas coisas patheticas, murchava-lhe
a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta
pergunta chôcha:
– Então estás decidido a safar-te com ella?
– A safar-me, não; a ir viver com ella longe d’aqui, decididissimo!
Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um phenomeno prodigioso,
e murmurou:
– É d’arromba!
Mas que outra coisa podiam elles fazer? D’ahi a tres mezes talvez, Castro
Gomes chegava do Brazil. Ora nem Carlos, nem ella, aceitariam nunca uma d’essas
situações atrozes e reles em que a mulher é do amante
e do marido, a horas diversas… Só lhes restava uma solução
digna, decente, seria – fugir.
Ega, depois de um silencio, disse pensativamente:
– Para o marido é que não é talvez divertido perder assim,
de uma vez, a mulher, a filha, e a cadellinha…
Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, tambem elle já
pensára n’isso… E não sentia remorsos – mesmo quando os podesse
haver no absoluto egoismo da paixão… Elle não conhecia intimamente
Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o typo, reconstruil-o, pelo que lhe
dissera o Damaso, e por algumas conversas com miss Sarah. Castro Gomes não
era um esposo a sério: era um dandy, um futil, um gommeux, um homem
de sport e de cocottes… Casára com uma mulher bella, saciára
a paixão, e recomeçára a sua vida de club e de bastidores…
Bastava olhar para elle, para a sua toilette, para os seus modos – e comprehendia-se
logo a trivialidade d’aquelle caracter…
– Que tal é como homem? perguntou Ega.
– Um brazileirito trigueiro, com um ar espartilhado… Um rastaquouère,
o verdadeiro typosinho do Café de la Paix… É possivel que
sinta, quando isto vier a succeder, um certo ardor na vaidade ferida… Mas
é um coração que se ha de consolar facilmente nas Folies
Bergères.
Ega não dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e mesmo consolavel
nas Folies Bergères, póde todavia amar muito sua filha… Depois,
atravessado por uma outra idéa, acrescentou:
– E teu avô?
Carlos encolheu os hombros:
– O avô tem de se affligir um pouco para eu poder ser profundamente
feliz; como eu teria de ser desgraçado toda a minha vida se quizesse
poupar ao avô essa contrariedade… O mundo é assim, Ega… E
eu, n’esse ponto, não estou decidido a fazer sacrificios.
Ega esfregou lentamente as mãos, com os olhos no chão, repetindo
a mesma palavra, a unica que lhe suggeria todo o seu espirito perante aquellas
coisas vehementes:
– É d’arromba!

Capítulo III

Carlos, que almoçára cedo, estava para sahir no coupé,
e já de chapéo – quando Baptista veio dizer que o snr. Ega,
desejando fallar-lhe n’uma coisa grave, lhe pedia para esperar um instante.
O snr. Ega ficára a fazer a barba.
Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ella chegára
a Lisboa, Ega ainda a não vira, e fallava d’ella raramente. Mas Carlos
sentia-o nervoso e desassocegado. Todas as manhãs o pobre Ega mostrava
um desapontamento ao receber o correio, que só lhe trazia algum jornal
cintado, ou cartas de Celorico. Á noite percorria dois, tres theatros,
já quasi vazios n’aquelle começo de verão; e ao recolher
era outra desconsolação, quando os criados lhe affirmavam, com
certeza, que não viera carta alguma para s. exc.ª Decerto Ega
não se resignava a perder Rachel, anciava por a encontrar; e roía-o
o despeito de que ella, de qualquer modo, lhe não tivesse mostrado
que no seu coração permanecia ao menos a saudade das antigas
felicidades… Justamente na vespera Ega apparecera á hora do jantar,
transtornado: cruzára-se com o Cohen na rua do Ouro, e parecera-lhe
que «esse canalha» lhe atirára de lado um olhar atrevido,
sacudindo a bengala; o Ega jurava que se «esse canalha» ousasse
outra vez fital-o, espedaçava-o, sem piedade, publicamente, a uma esquina
da Baixa.
Na ante-camara o relogio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir ao
quarto do Ega. Mas n’esse instante o correio chegava, com a Revista dos Dois
Mundos, e uma carta para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos acabava de a lêr
– quando o Ega appareceu, de jaquetão, e em chinelas.
– Tenho a fallar-te n’uma coisa grave, menino.
– Lê isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da Gouvarinho.
A Gouvarinho, n’um tom amargo, queixava-se que, já por duas vezes,
Carlos faltára ao rendez-vous em casa da titi, sem lhe ter sequer escripto
uma palavra; ella vira n’isto uma offensa, uma brutalidade; e vinha agora
intimal-o, «em nome de todos os sacrificios que por elle fizera»,
a que apparecesse na rua de S. Marçal, domingo ao meio dia, para terem
uma explicação definitiva antes d’ella partir para Cintra.
– Excellente occasião d’acabar! exclamou Ega, entregando a carta a
Carlos, depois de respirar o perfume do papel. Não vás, nem
respondas… Ella parte para Cintra, tu para Santa Olavia, não vos
vêdes mais, e assim finda o romance. Finda como todas as coisas grandes,
como o Imperio Romano, e como o Rheno, por dispersão, insensivelmente…
– É o que eu vou fazer, disse Carlos, começando a calçar
as luvas. Jesus! Que mulher massadora!
– E que desavergonhada! Chamar a essas coisas «sacrificios!…»
Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se lá de extravagancias,
bebe champagne, fuma cigarrettes, sobe ao setimo céo, delira, e depois
põe dolorosamente os olhos no chão, e chama a isso «sacrificios…»
Só com um chicote!…
Carlos encolheu os hombros, com resignação, como se nas condessas
de Gouvarinho, e no mundo, só houvesse incoherencia e dólo.
– E que é isso que tu me tinhas a dizer?
Ega então tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarrette,
abotoou devagar o jaquetão.
– Tu não tens visto o Damaso?
– Nunca mais me appareceu, disse Carlos. Creio que está amuado… Eu
sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavelmente com dois dedos…
– Devia ser antes com a bengala. O Damaso anda ahi, por toda a parte, fallando
de ti e d’essa senhora, tua amiga… A ti chama-te pulha, a ella peor ainda.
É a velha historia; diz que te apresentou, que te metteste de dentro,
e como para essa senhora é uma questão de dinheiro, e tu és
o mais rico, ella lhe passou o pé.. Vês d’ahi a infamiasinha.
E isto tagarellado pelo Gremio, pela Casa Havaneza, com detalhes torpes, envolvendo
sempre a questão de dinheiro. Tudo isto é atroz. Trata de lhe
pôr cobro.
Carlos, muito pallido, disse simplesmente:
– Ha de se fazer justiça.
Desceu, indignado. Aquella torpe insinuação sobre «dinheiro»
parecia-lhe poder ser castigada só com a morte. E um instante mesmo,
com a mão no fecho da portinhola do coupé, pensou em correr
a casa do Datoaso, tomar um desforço brutal.
Mas eram quasi onze horas, e elle tinha d’ir aos OIivaes. No dia seguinte,
sabbado, dia bello entre todos e solemne para o seu coração,
Maria Eduarda devia emfim visitar a quinta do Craft: e ficára combinado,
na vespera, que passariam lá as horas do calor, até tarde, sós,
n’aquella casa solitaria e sem criados, escondida entre as arvores. Elle pedira-lh’o
assim, hesitante e a tremer: ella consentira logo, sorrindo e naturalmente.
N’essa manhã elle mandára aos Olivaes dois criados para arejar
as salas, espanejar, encher tudo de flôres. Agora ia lá, como
um devoto, vêr se estava bem enfeitado o sacrario da sua deusa… E
era através d’estes deliciosos cuidados, em plena ventura, que lhe
apparecia outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a tagarellice
do Damaso!
Até aos Olivaes, não cessou de ruminar coisas vagas e violentas
que faria para aniquilar o Damaso. No seu amor não haveria paz, emquanto
aquelle villão o andasse commentando sordidamente pelas esquinas das
ruas. Era necessario enxovalhal-o de tal modo, com tal publicidade, que elle
não ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechuda, a face vil…
Quando o coupé parou á porta da quinta, Carlos decidira dar
bengaladas no Damaso, uma tarde, no Chiado, com apparato…
Mas depois, ao regressar da quinta, vinha já mais calmo. Pisára
a linda rua d’acacias que os pés d’ella pisariam na manhã seguinte:
dera um longo olhar ao leito que seria o leito d’ella, rico, alçado
sobre um estrado, envolto em cortinados de brocatel côr d’ouro, com
um esplendor sério d’altar profano… D’ahi a poucas horas, encontrar-se-hiam
sós n’aquella casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o verão
os seus amores viveriam escondidos n’esse fresco retiro d’aldêa; e d’ahi
a tres mezes estariam longe, na Italia, á beira d’um claro lago, entre
as flôres d’Isola Bella… No meio d’estas voluptuosidades magnificas,
que lhe podia importar o Damaso, gorducho e reles, palrando em calão
nos bilhares do Gremio! Quando chegou á rua de S. Francisco resolvera,
se visse o Damaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.
Maria Eduarda fôra passear a Belem com Rosa deixando-lhe um bilhete,
em que lhe pedia para vir á noite faire un bout de causerie. Carlos
desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinho de papel na carteira
como uma dôce reliquia; e sahia o portão, no momento em que o
Alencar desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto, moroso
e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braços abertos; depois vivamente,
como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro andar.
Não se tinham visto desde as corridas, o poeta abraçou com effusão
o seu Carlos. E fallou logo de si, copiosamente. Estivera outra vez em Cintra,
em Collares com o seu velho Carvalhosa: e o que se lembrára do rico
dia passado com Carlos e com o maestro em Sitiaes!… Cintra uma belleza.
Elle, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa, tão
erudito e tão profundo, apesar da excellente musica da mulher, da Julinha
(que para elle era como uma irmã), tinha-se aborrecido. Questão
de velhice…
– Com effeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho… Falta-te o teu
ar aureolado.
O poeta encolheu os hombros.
– O Evangelho lá o diz bem claro… Ou é a Biblia que o diz…?
Não; é S. Paulo… S. Paulo ou Santo Agostinho?… Emfim a authoridade
não faz ao caso. N’um d’esses santos livros se affirma que este mundo
é um valle de lagrimas…
– Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.
O poeta tornou a encolher os hombros. Lagrimas ou risos, que importava?…
Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na vespera elle dissera isso mesmo
em casa dos Cohens…
E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço de Carlos:
– E agora por fallar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu rapaz.
Eu sei que tu és intimo do Ega, e, que diabo, ninguem lhe admira mais
o talento do que eu!… Mas, realmente, tu approvas que elle, apenas soube
da chegada dos Cohens, se viesse metter em Lisboa? Depois do que houve!…
Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia mesmo da chegada,
horas depois, soubera pela Gazeta Illustrada a vinda dos Cohens… E de resto
se não podessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas entre
as quaes tivesse havido attritos desagradaveis, as sociedades humanas tinham
de se desfazer…
Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeça
baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:
– Outra coisa em que te quero fallar. Houve entre ti e o Damaso alguma péga?
Eu pergunto-te isto porque n’outro dia, lá em casa dos Cohens, elle
veio com uns ditos, umas insinuações… Eu declarei-lhe logo:
«Damaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, é como se fosse
meu irmão.» E o Damaso calou-se… Calou-se, porque me conhece,
e sabe que eu n’estas coisas de lealdade e de coração sou uma
fera!
Carlos disse simplesmente:
– Não, não ha nada, não sei nada… Nem sequer tenho
visto o Damaso.
– Pois é verdade, continuou Alencar tomando o braço de Carlos,
lembrei-me muito de ti em Cintra. Até fiz lá um coisita que
me não sahiu má, e que te dediquei… Um simples soneto, uma
paizagem, um quadrosinho de Cintra ao pôr do sol. Quiz provar ahi a
esses da Idéa Nova, que, sendo necessario, tambem por cá se
sabe cinzelar o verso moderno e dar o traço realista. Ora espera ahi,
eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se – Na estrada dos Capuchos…
Tinham parado á esquina do Seixas; e o poeta tossira já de leve,
antes de recitar, – quando justamente lhes appareceu o Ega, vindo de baixo,
vestido de campo, com uma bella rosa branca no jaquetão de flanella
azul.
Alencar e elle não se encontravam desde a fatal soirée dos Cohens.
E ao passo que o Ega conservava um resentimento feroz contra o poeta vendo
n’elle o inventor d’essa perfida lenda da «carta obscena»- Alencar
odiava-o pela certeza secreta de que elle fôra o amante amado da sua
divina Rachel. Ambos se fizeram pallidos; o aperto de mão que deram
foi incerto e regelado; e ficaram calados, todos tres, emquanto Ega nervoso
levava uma eternidade a accender o charuto no lume de Carlos. Mas foi elle
que fallou, por entre uma fumaça, affectando uma superioridade amavel:
– Acho-te com boa côr, Alencar!
O poeta foi amavel tambem, um pouco d’alto, passando os dedos no bigode:
– Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas Memorias homem?
– Estou á espera que o paiz aprenda a lêr.
– Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, elle occupa-se
da Instrucção publica… Olha, alli o tens tu, grave e ôco
como uma columna do Diario do Governo…
O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o Gouvarinho
descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado d’elles, de chapéo
branco, de collete branco, o Damaso deitava olhares pelo Chiado, risonho,
ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus dominios. Já aquelle
arzinho gordo de tranquillo triumpho irritou Carlos. Mas quando o Damaso parou
defronte, no outro passeio, todo de costas para elle, ostentando rir alto
com o Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.
Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou de leve
o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Damaso friamente:
– Ouve lá. Se continúas a fallar de mim e de pessoas das minhas
relações, do modo como tens fallado, e que não me convém,
arranco-te as orelhas.
O conde acudiu, mettendo-se entre elles:
– Maia, por quem é! Aqui no Chiado…
– Não é nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sério
e muito sereno. É apenas um aviso a este imbecil.
– Eu não quero questões, eu não quero questões!…
balbuciou o Damaso, livido, enfiando para dentro d’uma tabacaria.
E Carlos voltou, com socego, para junto dos seus amigos, depois de ter saudado
o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.
Vinha apenas um pouco pallido: mais perturbado estava o Ega, que julgára
vêr de novo, n’um olhar do Cohen, uma provocação intoleravel.
Só o Alencar não reparára em nada: continuava a discursar
sobre coisas litterarias, explicando ao Ega as concessões que se podiam
fazer ao naturalismo…
– Fiquei aqui a dizer ao Ega… É evidente que quando se trata de paizagem
é necessario copiar a realidade… Não se póde descrever
um castanheiro a priori, como se descreveria uma alma… E lá isso
faço eu… Ahi está esse soneto de Cintra que eu te dediquei,
Carlos. É realista, está claro que é, realista… Pudéra,
se é paizagem! Ora eu vol-o digo… Ia justamente dizel-o, quando tu
appareceste, Ega… Mas vejam lá vocês se isto os massa…
Qual massava! E até, para o escutarem melhor, penetraram na rua de
S. Francisco, mais silenciosa. Ahi, dando um passo lento, depois outro, o
poeta murmurou a sua ecloga. Era em Cintra, ao pôr do sol: uma ingleza,
de cabellos soltos, toda de branco, desce n’um burrinho por uma vereda que
domina um vale; as aves cantam de leve, ha borboletas em torno das madresilvas;
então a ingleza pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céo,
os arvoredos, a paz das casas; – e ahi, no ultimo terceto, vinha «a
nota realista» de que se ufanava o Alencar:
Ella olha a flôr dormente, a nuvem casta,
Emquanto o fumo dos casae se eleva
E ao lado o burro, pensativo, pasta.
– Ahi têm vocês o traço, a nota naturalista… Ao lado
o burro, pensativo, pasta… Eis ahi a realidade, está-se a vêr
o burro pensativo… Não ha nada mais pensativo que um burro… E são
estas pequeninas coisas da natureza que é necessario observar… Já
vêem votos que se póde fazer realismo, e do bom, sem vir logo
com obscenidades… Vocês que lhes parece o soneto?
Ambos o elogiaram profundamente – Carlos arrependido de não ter completado
a humilhação do Damaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando que
decerto, n’uma d’essas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como
elles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, já desanuviado, foi acompanhal-os
pelo Aterro. E fallou sempre, contando o plano de um romance historico, em
que elle queria pintar a grande figura d’Affonso d’Albuquerque, mas por um
lado mais humano, mais intimo: Affonso d’Albuquerque namorado: Affonso d’Albuquerque,
só, de noite, na pôpa do seu galeão, diante d’Ormuz incendiada,
beijando uma flôr secca, entre soluços. Alencar achava isto sublime.
Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir á rua de S. Francisco –
quando o Baptista veio dizer que o snr. Telles da Gama lhe desejava fallar
com urgencia. Não o querendo receber, alli, em mangas de camisa, mandou-o
entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio d’ahi a um instante encontrar
Telles da Gama admirando as bellas faianças hollandezas.
– Você, Maia, tem isto lindissimo, exclamou elle logo. Eu pello-me por
porcelanas… Hei de voltar um dia d’estes, com mais vagar, vêr tudo
isto, de dia… Mas hoje venho com pressa, venho com uma missão…
Você não adivinha?
Carlos não adivinhava.
E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um sorriso:
– Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Damaso, se você hoje, n’aquillo
que lhe disse, tinha tenção de o offender. É, só
isto… A minha missão é apenas esta: perguntar-lhe se você
tinha intenço de o offender.
Carlos olhou-o, muito sério:
– O quê!? Se tinha intenção de offender o Damaso quando
o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha só intenção
de lhe arrancar as orelhas!
Telles da Gama saudou, rasgadamente:
– Foi isso mesmo o que eu respondi ao Damaso: que você não tinha
senão essa intenção. Em todo o caso, desde este momento,
a minha missão está finda… Como você tem isto bonito!…
O que é aquelle prato grande, majolica?
– Não, um velho Nevers. Veja você ao pé… É Thetis
conduzindo as armas d’Achilles… É esplendido; e é muito raro…
Veja você esse Deft, com as duas tulipas amarellas… É um encanto!
Telles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando o
chapéo de sobre o sofá.
– Lindissimo tudo isto!… Então só intenção de
lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o offender?…
– Nenhuma de o offender, toda de lhe arrancar as orelhas… Fume você
um charuto.
– Não, obrigado…
– Calice de cognac?
– Não! abstenção total de bebidas e aguas ardentes…
Pois adeus, meu bom Maia!
– Adeus, meu bom Telles…
Ao outro dia, por uma radiante manhã de julho, Carlos saltava do coupé,
com um mólho de chaves, diante do portão da quinta do Craft.
Maria Eduarda devia chegar ás dez horas, só, na sua carruagem
da Companhia. O hortelão, dispensado por dois dias, fôra a Villa
Franca; não havia ainda criados na casa; as janellas estavam fechadas.
E pesava alli, envolvendo a estrada e a vivenda, um d’esses altos e graves
silencios d’aldêa, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.
Logo depois do portão, penetrava-se n’uma fresca rua d’acacias, onde
cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apparecia o kiosque, com tecto
de madeira, pintado de vermelho, que fôra o capricho de Craft, e que
elle mobilára á japoneza. E ao fundo era a casa, caiada de novo,
com janellas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre tres
degraus, flanqueados por vasos de louça azul cheios de cravos.
Só o metter a chave devagar e com uma inutil cautela na fechadura d’aquella
morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janellas: e a larga luz
que entrava pareceu-lhe trazer uma doçura rara, e uma alegria maior
que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar
a festa do seu coração. Correu logo á sala de jantar,
a verificar se, na mesa posta para o lunch, se conservavam ainda viçosas
as flôres que lá deixára na vespera. Depois voltou ao
coupé a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado
em flanella, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia só
passando uma saloia montada na sua egua.
Mas apenas accommodára o gelo – sentiu fóra o ruido lento da
carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor;
e ficou alli, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro da
Conpanhia. D’ahi a um instante viu-a emfim chegar, pela rua de acacias, alta
e bella, vestida de preto, e com um meio-véo espesso como uma mascara.
Os seus pésinhos subiram os tres degraus de pedra. Elle sentiu a sua
voz inquieta perguntar de leve:
– Êtes-vous là?
Appareceu – e ficaram um instante, á porta do gabinete, apertando sofregamente
as mãos, sem fallar, commovidos, deslumbrados.
– Que linda manhã! disse ella por fim, rindo e toda vermelha.
– Linda manhã, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado.
Maria Eduarda resvalára sobre uma cadeira, junto da porta, n’um cansaço
delicioso, deixando calmar o alvoroço do seu coração.
– É muito confortavel, é encantador tudo isto, dizia ella olhando
lentamente em redor os cretones do gabinete, o divan turco coberto com um
tapete de Brousse, a estante envidraçada cheia de livros. Vou ficar
aqui adoravelmente…
– Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido a olhar
para ella. Ainda nem lhe beijei a mão…
Maria Eduarda começou atirar o véo, depois as luvas, fallando
da estrada. Achara-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se accommodasse
n’aquelle fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa!
Atirou o chapéo para cima do divan – ergueu-se, toda alegre e luminosa.
– Vamos vêr a casa, estou morta por vêr essas maravilhas do seu
amigo Craft!… É Craft que se chama? Craft quer dizer industria!
– Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! tornou Carlos, sorrindo e
supplicante.
Ella estendeu-lhe os labios, e ficou presa nos seus braços.
E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabello, dizia-lhe quanto era feliz
e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de quinta que a
separavam do resto do mundo…
Ella deixava-se beijar, séria e grave:
– E é verdade isso? É realmente verdade?…
Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:
– Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga que
já Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que não
duvide de mim…
Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.
– Vamos vêr a casa, disse ella.
Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos
em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papeis claros, abriam sobre
o rio e sobre os campos.
– Os seus aposentos, disse Carlos, hão de ser em baixo, está
visto, entre as coisas ricas… Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui esplendidamente.
Não lhe parece?
E ella percorria os quartos, devagar, examinando a accommodação
dos armarios, palpando a elasticidade dos colxões, attenta, cuidadosa,
toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteração.
E era realmente como se aquelle homem que a seguia, enternecido e radiante,
fosse apenas um velho senhorio.
– O quarto com as duas janellas, ao fundo do corredor, seria o melhor para
Rosa. Mas a pequena não póde dormir n’aquelle enorme leito de
pau preto…
– Muda-se!
– Sim, póde mudar-se… E falta uma sala larga para ella brincar, ás
horas do calor… Se não houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos…
– Deita-se abaixo
Elle esfregava as mãos, encantado, prompto a refundir toda a casa;
e ella não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.
Desceram á sala de jantar. E ahi, diante da famosa chaminé de
carvalho lavrado, flanqueada á maneira de cariatides pelas duas negras
figuras de Nubios, com olhos rutilantes de crystal, Maria Eduarda começou
a achar o gosto do Craft excentrico, quasi exotico… Tambem Carlos não
lhe dizia que Craft tivesse o gosto correcto d’um atheniense. Era um saxonio
batido d’um raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua excentricidade…
– Oh, a vista é que é deliciosa! exclamou ella chegando-se á
janella.
Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado outro de baunilha
que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal aparada, um
pouco amarellada já pelo calor de julho; e entre duas grandes arvores
que lhe faziam sombra, havia alli, para os vagares da sésta, um largo
banco de cortiça. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a quinta
d’aquelle lado como uma sebe. Depois a collina descia, com outras quintarolas,
casas que se não viam, e uma chaminé de fabrica; e lá
no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, até
ás montanhas d’além-Tejo, azuladas tambem na faiscação
clara do céo de verão.
– Isto é encantador! repetia ella.
– É um paraiso! Pois não lhe dizia eu? É necessario pôr
um nome a esta casa… Como se ha de chamar? Villa-Marie? Não. Château-Rose…
Tambem não, crédo! Parece o nome d’um vinho. O melhor é
baptisal-a definitivamente com o nome que nós lhe davamos. Nós
chamavamos-lhe a Tóca.
Maria Eduarda achou originalissimo o nome de Tóca. Devia-se até
pintar em letras vermelhas sobre o portão.
– Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa de
bicho egoista na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!
Mas ella parára, com um lindo riso de surpreza, diante da mesa posta,
cheia de fruta, com as duas cadeiras já chegadas, e os crystaes brilhando
entre as flôres.
– São as bodas de Canná!
Os olhos de Carlos resplandeceram.
– São as nossas!
Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango,
depois a escolher uma rosa.
– Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? Nós
temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada, nem a benção
de Deus… Uma gotinha de champagne, vá!
Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se encontraram,
apaixonadamente.
Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A cozinha
agradou-lhe muito, arranjada á ingleza, toda em azulejos. No corredor
Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia de tourada, com uma cabeça
negra de touro, espadas e garrochas, mantos de sêda vermelha, conservando
nas suas pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarello de la
corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de
festa e de sol peninsular…
Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh’o foi mostrar, desagradou-lhe
com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade
d’uma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lá
os amores de Venus e Marte: da porta de communicação, arredondada
em arco de capella, pendia uma pesada lampada da Renascença, de ferro
forjado: e, áquella hora, batida por uma larga facha de sol, a alcova
resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado, convertido em retiro
lascivo de serralho… Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarello,
côr de botão d’ouro; um tapete de velludo do mesmo tom rico fazia
um pavimento d’ouro vivo sobre que poderiam correr nús os pés
ardentes d’uma deusa amorosa – e o leito de docel, alçado sobre um
estrado, coberto com uma colcha de setim amarello bordada a flôres d’ouro,
envolto em solemnes cortinas tambem amarellas de velho brocatel, – enchia
a alcova, esplendido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas
de uma paixão tragica do tempo de Lucrecia ou de Romeu. E era alli
que o bom Craft, com um lenço de sêda da India amarrado na cabeça,
resonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.
Mas Maria Eduarda não gostou d’estes amarellos excessivos. Depois impressionou-se,
ao reparar n’um painel antigo, defumado, resultando em negro do fundo de todo
aquelle ouro – onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, livida,
gelada no seu sangue, dentro d’um prato de cobre. E para maior excentricidade,
a um canto, de cima de uma columna de carvalho, uma enorme coruja empalhada
fixava no leito d’amor, com um ar de meditação sinistra, os
seus dois olhos redondos e agourentos… Maria Eduarda achava impossível
ter alli sonhos suaves.
Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor;
e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um setim côr
de rosa e risonho.
– Não, venho-me a acostumar a todos esses duros… Sómente aquelle
quadro, com a cabeça, e com o sangue… Jesus, que horror!
– Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho amigo S. João
Baptista.
Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salão nobre,
onde Craft concentrára as suas preciosidades. Maria Eduarda, porém,
ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.
– É para vêr de pé, e de passagem… Não se póde
ficar aqui sentado, a conversar.
– Mas esta é materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se
uma sala adoravel… Para que serve o nosso genio decorativo?… Olhe o armario,
veja que centro! Que belleza!
Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o «movel divino»
do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica, luxuoso e sombrio, tinha
uma magestade architectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte,
flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma
cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada
aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e
Matheus, imagens rigidas, envolvidas n’essas roupagens violentas que um vento
de prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um trophéo
agricola com mólhos d’espigas, fouces, cachos d’uvas e rabiças
d’arados; e, á sombra d’estas coisas de labor e fartura, dois Faunos,
recostados em symetria, indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam n’um
desafio bucolico a frauta de quatro tubos.
– Então, hein? dizia Carlos. Que movel! É todo um poema da Renascença,
Faunos e Apostolos, guerras e georgicas… Que se póde metter dentro
d’este armario? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como
n’um altar-mór.
Ella não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas
do passado, d’uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um luxo
morto: finos moveis da Renascença italiana, exilados dos seus palacios
de marmore, com embutidos de Cornalina e agatha que punham um brilho suave
de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras côr de rosa;
cofres nupciaes, longos como bahús, onde se guardavam os presentes
dos Papas e dos Principes, pintados a purpura e ouro, com graças de
miniatura; contadores hespanhoes impertigados, revestidos de ferro brunido
e de velludo vermelho, e com interiores mysteriosos, em fórma de capella,
cheios de nichos, de claustros de tartaruga… Aqui e além, sobre a
pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de setim toda recamada
de flôres e d’aves d’ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de
tons severos, com versículos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral
gentil d’um minuete em Cythera sobre a sêda de um leque aberto…
Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n’uma poltrona Luiz xv, ampla
e nobre, feita para a magestade das anquinhas, recoberta de tapeçaria
de Beauvais, d’onde parecia exhalar-se ainda um vago aroma d’empoado.
Carlos triumphava, vendo a admiração de Maria. Então,
ainda considerava uma extravagancia aquella compra, feita n’um rasgo de enthusiasmo?
– Não, ha aqui coisas adoraveis… Nem eu sei se me atreverei a viver
uma vida pacata de aldêa no meio de todas estas raridades…
– Não diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pégo fogo a
tudo!
Mas o que lhe agradou mais foram as bellas faianças, toda uma arte
immortal e fragil espalhada por sobre o marmore das consolas. Uma sobretudo
attrahiu-a, uma esplendida taça persa, d’um desenho raro, com um renque
de negros cyprestes, cada um abrigando uma flôr de côr viva: e
aquillo fazia lembrar breves sorrisos reapparecendo entre longas tristezas.
Depois eram as apparatosas majolicas, de tons estridentes e desencontrados,
cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando
Roxane; os lindos Nevers, ingenuos e sérios; os Marselhas, onde se
abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa vermelha;
os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o azul-ferrete de céo tropical;
os Wedgewood, côr de leite e côr de rosa, com transparencias fugitivas
de concha na agua…
– Só um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se,
é necessario saudar o genio tutelar da casa!
Era ao centro, sobre uma larga peanha, um idolo japonez de bronze, um deus
bestial, nú, pellado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso,
com o ventre óvante, distendido na indigestão de todo um universo
– e as duas perninhas bambas, molles e flaccidas como as pelles mortas d’um
feto. E este monstro triumphava, encanchado sobre um animal fabuloso, de pés
humanos, que dobrava para a terra o pescoço submisso, mostrando no
focinho e no olho obliquo todo o surdo resentimento da sua humilhação…
– E pensarmos, dizia Carlos, que gerações inteiras vieram ajoelhar-se
diante d’este ratão, rezar-lhe, beijar-lhe o embigo, offerecer-lhe
riquezas, morrer por elle…
– O amor que se tem por um monstro, disse Maria, é mais meritorio,
não é verdade?
– Por isso não acha talvez meritorio o amor que se tem por si…
Sentaram-se ao pé da janella, n’um divan baixo e largo, cheio de almofadas,
cercado por um biombo de sêda branca, que fazia entre aquelle luxo do
passado um fôfo recanto de conforto moderno: e como ella se queixava
um pouco de calor, Carlos abriu a janella. Junto do peitotil crescia tambem
um grande pé de margaridas; adiante, n’um velho vaso de pedra, pousado
sobre a relva, vermelhejava a flôr d’um cacto; e dos ramos de uma nogueira
cahia uma fina frescura.
Maria Eduarda veio encostar-se á janella, Carlos seguiu-a; e ficaram
alli juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doçura
d’aquella solidão. Um passaro cantou de leve no ramo da arvore; depois
calou-se. Ella quiz saber o nome de uma povoação que branquejava
ao longe ao sol na collina azulada. Carlos não se lembrava. Depois
brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: Elle m’aime, un peu, beaucoup…
Ella arrancou-lh’a das mãos.
– Para que precisa perguntar ás flôres?
– Porque ainda m’o não disse claramente, absolutamente, como eu quero
que m’o diga…
Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então Carlos, com
os olhos mergulhados nos d’ella, disse-lhe baixínho e implorando:
– Ainda não vimos a saleta de banho…
Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo salão, depois
através da sala de tapeçarias onde Marte e Venus se amavam entre
os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por
um velho tapete vermelho da Caramania. Elle, tendo-a sempre abraçada,
pousou-lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ella abandonou-se mais,
os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente
e côr d’ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capella,
feitas de uma sêda leve que coava para dentro uma claridade loura: e
um instante ficaram immoveis, sós emfim, desatado o abraço,
sem se tocarem, como suspensos e suffocados pela abundancia da sua felicidade.
– Aquella horrivel cabeça! murmurou ella.
Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E então
todo o rumor se extinguiu, a solitaria casa ficou adormecida entre as arvores,
n’uma demorada sésta, sob a calma de julho…

Os annos de Affonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo. Quasi
todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tomára-se o
café no escriptorio d’Affonso, onde as janellas se conservavam abertas.
A noite estava tepida, estrellada e serenissima. Craft, Sequeira e o Taveira
passeavam fumando no terraço. Ao canto d’um sofá Cruges escutava
religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos da
musica na Filandia. E em redor de Affonso, estendido na sua velha poltrona,
de cachimbo na mão, fallava-se do campo.
Ao jantar Affonso annunciára a intenção de ir visitar,
para o meado do mez, as velhas arvores de Santa Olavia; e combinára-se
logo uma grande romaria de amizade ás margens do Douro. Craft e Sequeira
acompanhavam Affonso. O marquez promettera uma visita para agosto «na
companhia melodiosa», dizia elle, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava,
com receio da longa jornada, da humidade da aldêa. E agora tratava-se
de persuadir Ega a ir tambem, com Carlos – quando Carlos acabasse emfim de
reunir esses materiaes do seu livro que o retinham em Lisboa «á
banca do labor…» Mas o Ega resistiu. O campo, dizia elle, era bom
para os selvagens. O homem, á maneira que se civilisa, afasta-se da
natureza; e a realisação do progresso, o paraíso na Terra,
que presagiam os Idealistas, concebia-o elle como uma vasta cidade occupando
totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além
um bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para
perfumar o altar da Justiça…
– E o milho? A bella fruta? A hortaliçasinha? perguntava Villaça,
rindo com malicia.
Imaginava então Villaça, replicava o outro, que d’aqui a seculos
ainda se comeriam hortaliças? O habito dos vegetaes era um resto da
rude animalidade do homem. Com os tempos o sêr civilisado e completo
vinha a alimentar-se unicamente de productos artificiaes, em frasquinhos e
em pilulas, feitos nos laboratorios do Estado…
– O campo, disse então D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos
bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito pic-nic,
para uma burficada, para uma partida de croquet… Sem campo não ha
sociedade.
– Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que tambem ha arvores ainda se admitte…
Enterrado n’uma poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em silencio.
Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a tudo, com um
ar luminoso e de deliciosa lassidão. E então o marquez, que
já duas vezes, dirigindo-se a elle, encontrára a mesma abstracção
radiosa, impacientou-se:
– Homem, falle, diga alguma coisa!… Você está hoje com um ar
extraordinario, um arzinho de beato que se regalou de papar o Santissimo!
Todos em redor, com sympathia, se affirmaram em Carlos: Villaça achava-lhe
agora melhor cara, côr d’alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo
mulher, invejou-lhe os annos, invejou-lhe o vigor. E Affonso reenchendo o
cachimbo olhava o neto, enternecido.
Carlos ergueu-se immediatamente, fugindo áquelle exame affectuoso.
– Com effeito, disse elle, espreguiçando-se de leve, tenho estado hoje
languido e mono… É o começo do verão… Mas é
necessario sacudir-me… Quer você fazer uma partida de bilhar, ó
marquez?
– Vá lá, homem. Se isso o resuscita…
Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquez parando, e como recordando-se,
perguntou sela rebuço ao Ega noticias dos Cohens. Tinham-se encontrado?
Estava tudo acabado? Para o marquez, uma flôr de lealdade, não
havia segredos: Ega contou-lhe que o romance findára, e agora o Cohen,
quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos…
– Eu perguntei isto, disse o marquez, porque já vi a Cohen duas vezes…
– Onde? foi a exclamação sôfrega do Ega.
– No Price, e sempre com o Damaso. A ultima vez foi já esta semana.
E lá estava o Damaso, muito chegadinho, palrando muito… Depois veio
sentar-se um bocado ao pé de mim, e sempre d’olho n’ella… E ella
de lá, com aquelle ar de lambisgoia, de luneta n’elle… Não
havia que duvidar, era um namoro… Aquelle Cohen é um predestinado.
Ega fez-se livido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:
– O Damaso é muito intimo d’elles… Mas talvez se atire, não
duvido… São dignos um do outro.
No bilhar, emquanto os dois carambolavam preguiçosamente, elle não
cessou de passear, n’uma agitação, trincando o charuto apagado.
De repente estacou em frente do marquez, com os olhos chammejantes:
– Quando é que você a viu ultimamente no Price, essa torpe iliba
d’Israel?
– Terça-feira, creio eu.
O Ega recomeçou a passear, sombrio.
N’esse instante Baptista, apparecendo á porta do bilhar, chamau Carlos
em silencio, com um leve olhar. Carlos veio, surprehendido.
– É um cocheiro de praça, murmurou Baptista. Diz que está
alli uma senhora dentro d’uma carruagem que lhe quer fallar.
– Que senhora?
Baptista encolheu os hombros. Carlos, de taco na mão, olhava para elle,
aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria… Que teria suceedido, santo Deus,
para ella vir n’uma tipoia, ás nove da noite, ao Ramalhete!
Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéo baixo; e assim mesmo,
de casaca, sem paletot, desceu n’uma grande anciedade. No peristyllo topou
com Eusebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenço
a poeira dos botins. Nem fallou ao Eusebiosinho. Correu ao coupé, parado
á porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, mysterioso, aterrador…
Abriu a pertinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro, abafado
n’uma mantilha de renda, debruçou-se, perturbado, balbuciou:
– É só um instante! Quero-lhe fallar!
Que allivio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação,
Carlos foi brutal.
– Que diabo de tolice é esta? Que quer?
Ia bater com a portinhola; ella empurrou-a para fóra, desesperada;
e não se conteve, desabafou logo alli, diante do cocheiro, que mexia
tranquillamente na fivela d’um tirante.
– De quem é a culpa? Para que me trata d’este modo?… É só
um instante, entre, tenho de lhe fallar!…
Carlos saltou para dentro, furioso:
– Dá uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!
O velho calhambeque desceu a calçada; e durante um momento, na escuridão,
recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas palavras, bruscas
e colericas, através do barulho das vidraças.
– Que imprudencia! que tolice!…
– E de quem é a culpa? De quem é a culpa?
Depois, na rampa de Santos, o coupé rolou mais silenciosamente no macadam.
Carlos então, arrependido da sua dureza, voltou-se para ella, e com
brandura, quasi no tom carinhoso d’outr’ora, reprehendeu-a por aquella imprudencia…
Pois não era melhor ter-lhe escripto?
– Para quê? exclamou ella. Para não me responder? Para não
fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe
uma esmola!…
Suffocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar do coupé,
sem ruido, ao longo do rio, Carlos sentia a respiração d’ella,
tumultuosa e cheia d’angustia. E não dizia nada, immovel, n’um infinito
mal-estar, entrevendo confusamente, através do vidro embaciado, na
sombra triste do rio adormecido, as mastreações vagas de falúas.
A parelha parecia ir adormecendo; e as queixas d’ella desenrolavam-se, profundas,
mordentes, repassadas d’amargura.
– Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem… Escrevo-lhe,
não me responde… Quero ter uma explicação franca comsigo,
não apparece… Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno…
Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro… Eu nem devia ter vindo… Mas
não pude, não pude!… Quiz saber o que lhe tinha feito. O que
é isto? Que lhe fiz eu?
Carlos percebia os olhos d’ella, faiscantes sob a nevoa de lagrimas retidas,
supplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a fitar, murmurou,
torturado:
– Realmente, minha amiga… As coisas fallam bem por si, não são
necessarias explicações.
– São! É necessario saber se isto é uma coisa passageira,
um amuo, ou se é uma coisa definitiva, um rompimento
Elle agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, affectuosa ainda,
de lhe dizer que todo o seu desejo d’ella findára. Terminou por afirmar
que não era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre elevados,
não cahiria agora na pieguice de ter um amuo…
– Então é um rompimento?…
– Não, tambem não… Um rompimento absoluto, para sempre, não…
– Então é um amuo? Porquê?
Carlos não respondeu. Ella, perdida, sacudiu-o pelo braço.
– Mas falle! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja cobarde, tenha
a coragem de dizer o que é!
Sim, ella tinha razão… Era uma cobardia, era uma indignidade, continuar
alli, gôchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas mesquinhas.
Quiz ser claro, quiz ser forte.
– Pois bem, ahi está. Eu entendi que as nossas relações
deviam ser alteradas…
E outra vez hesitou, a verdade amolleceu-lhe nos labios, sentindo aquella
mulher ao seu lado a tremer d’agonia.
– Alteradas, quero dizer… Podiamos transformar um capricho apaixonado, que
não podia durar, n’uma amizade agradavel, e mais nobre…
E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe faceis, habeis, persuasivas, através
do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquella ligação?
Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu bello
romance acabasse no escandalo e na vergonha; ou a que, envolvendo-os por muito
tempo o segredo, elle viesse a descahir na banalidade d’uma união quasi
conjugal, sem interesse e sem requinte. De resto era certo que, continuando
a encontrarem-se, aqui, em Cintra, n’outros sitios, a sociedadesinha curiosa
e mexeriqueira viria a perceber a sua affeição. E havia por
acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza d’alma, do que
uns amores que todo o publico conhece, até os cocheiros de praça?
Não… O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a necessidade
d’uma separação. Ella mesmo mais tarde lhe seria grata… Decerto,
esta primeira interrupção d’um habito dôce era desagradavel,
e elle estava bem longe de se sentir feliz. Fôra por isso que não
tivera a coragem de lhe escrever… Emfim deviam ser fortes, e não
se vêrem pelo menos durante alguns mezes… Depois, pouco a pouco, o
que era capricho fragil, cheio de inquietação, tornar-se-hia
uma boa amizade, bem segura e bem duradoura.
Calou-se; e então, no silencio, sentiu que ella, cahida para o canto
do coupé, como uma coisa miseravel e meio morta, encolhida no seu véo,
estara chorando baixo.
Foi um momento intoleravel. Ella chorava sem violencia, mansamente, com um
chôro lento, que parecia não dever findar. E Carlos só
achava esta palavra banal e desenxabida:
– Que tolice, que tolice!
Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gaz. Um americano
passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. N’aquella noite de verão
e d’estrellas, havia gente vagueando tranquillamente entre as arvores. Ella
continuava a chorar.
Aquelle pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou a commovel-o;
e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ella não reter essas lagrimas
infindaveis que laceravam o seu coração… E elle que estava
tão tranquillo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, n’uma
deliciosa lassidão!
Tomou-lhe a mão, querendo calmal-a, apiedado, e já impaciente.
– Realmente não tem razão. É absurdo… Tudo isto é
para seu bem…
Ella leve emfim um movimemto, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente por
entre longos soluços… E de repente, n’um arranque de paixão,
atirou-lhe os braços ao pescoço, prendendo-se a elle com desespero,
esmagando-o contra o seu seio.
– Oh meu amor, não me deixes, não me deixes! Se tu soubesses!
És a única felicidade que eu tenho na vida… Eu morro, eu mato-me!…
Que te fiz eu? Ninguem sabe do nosso amor… E que soubesse! Por ti sacrifico
tudo, vida, honra,tudo! tudo!…
Molhava-lhe a face com o resto das suas lagrimas; e elle abandonava-se, sentindo
aquelle corpo sem collete, quente e como nú, subir-lhe para os joelhos,
collar-se ao seu, n’um furor de o repossuir, com beijos sôfregos, furiosos,
que o suffocavam… Subitamente a tipoia parou. E um momento ficaram assim
– Carlos immovel, ella cahida sobre elle e arquejando.
Mas a tipoia não continuava. Então Carlos desprendeu um braço,
desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem obedecendo
á ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera
á porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentação
de descer, acabar alli bruscamente aquelle longo tormento. Mas pareceu-lhe
uma brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro:
– Outra vez ao Aterro, anda sempre!…
A tipoia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de novo
as pedras da calçada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais suavemente,
desceram a rampa de Santos.
Ella recomeçára os seus beijos. Mas tinham perdido a chamma
que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia só
uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que
ella o arrancára para o torturar com estas recriminações,
estes ardores entre lagrimas… E de repente, emquanto a condessa balbuciava,
como tonta, pendurada do seu pescoço, – elle viu surgir n’alma, viva
e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquilla áquella hora
na sua sala de reps vermelho, fazendo serão, confiando n’elle, pensando
n’elle, relembrando as felicidades da vespera, quando a Toca, cheia de seus
amores, dormia, branca entre as arvores… Teve então horror á
Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repelliu-a para o canto do coupé.
– Basta! Tudo isto é absurdo… As nossas relações estão
acabadas, não temos mais nada que nos dizer!
Ella ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso nervoso,
reppelliu-o tambem, phreneticamente, pisando-lhe o braço.
– Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brazileira! Eu conheço-a,
é uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague
as modistas!…
Elle voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipoia
escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhos d’ambos,
sem se vêrem, dardejavam o odio que os enchia… Carlos bateu raivosamente
no vidro. A tipoia não parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa,
magoando os dedos, procurava descer a vidraça.
– É melhor que sáia! dizia ella suffocada. Tenho horror de me
achar aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!
O calhambeque parou. Carlos pulou para fóra, fechou d’estalo a portinhola;
e sem uma palavra, sem erguer o chapéo, virou costas, abalou a grandes
passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio d’idéas de rancor,
sob a paz da noite estrellada.

Capítulo IV

Foi n’um sabbado que Affonso da Maia partiu para Santa Olavia. Cedo n’esse
mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia, installára-se
nos Olivaes. E Carlos, voltando de Santa Apolonia, onde fôra acompanhar
o avô, com o Ega, dizia-lhe alegremente:
– Então aqui ficamos nós sós a torrar, na cidade de marmore
e de lixo…
– Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a scismar, por
entre a poeirada de Cintra!
Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao anoitecer – Baptista
annunciou que o snr. Ega tinha partido n’esse momento para Cintra, levando
apenas livros e umas escovas embrulhadas n’um jornal… O snr. Ega tinha deixado
uma carta. E tinha dito: «Baptista, vou pastar.»
A carta, a lapis, n’uma larga folha d’almasso, dizia: «Assaltou-me de
«repente, amigo, juntamente com um horror á caliça de
Lisboa, uma saudade «infinita da natureza e do verde. A porção
d’animalidade que ainda resta no meu «sêr civilisado e recivilisado
precisa urgentemente d’espolinhar-se na relva, beber «no fio dos regatos,
e dormir balançada n’um ramo de castanheiro. O solicito «Baptista
que me remetta ámanhã pelo omnibus a mala com que eu não
quiz «sobrecarregar a tipoia do Mulato. Eu demoro-me apenas tres ou
quatro «dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto
dos «Capuchos, e vêr o que estão fazendo os myosotis junto
á meiga fonte dos Amores…»
– Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o deixava
o Ega. E atirando a carta:
– Baptista! O snr. Ega diz ahi que lhe mandem uma caixa de charutos, dos Imperiales.
Manda-lhe antes dos Flôr de Cuba. Os Imperiales são um veneno.
Esse animal nem fumar sabe!
Depois de jantar Carlos percorreu o Figaro, folheou um volume de Byron, bateu
carambolas solitarias no bilhar, assobiou malagueñas no terrasso –
e terminou por sahir, sem destino, para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o,
assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando,
achou-se na rua de S. Francisco. As janellas de Maria Eduarda estavam tambem
abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Victorino não
estava em casa…
Amaldiçoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira, de paletot
ao hombro, lendo os telegrammas. Não havia nada novo por essa velha
Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e elle Taveira ia ao Price…
– Vem tu tambem d’ahi, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonita que se
mette na agua com cobras e crocodilos… Eu pello-me por estas mulheres de
bichos!… Que esta é difficil, traz um chulo… Mas eu já lhe
escrevi: e ella faz-me um bocado d’olho de dentro da tina.
Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo fallou-lhe logo do Damaso. Não
tornára a ver essa flôr? Pois essa flôr andava apregoando
por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo
explicações humildes, covardes… Terrivel, aquelle Damaso!
Tinha figura, interior, e natureza de pélla! Com quanto mais força
se atirava ao chão, mais elle resaltava para o ar, triumphante!…
– Em todo o caso é uma rez traiçoeira, e deves ter cautela com
elle…
Carlos encolheu os hombros, rindo.
Não, não, dizia o Taveira muito sério, eu conheço
o meu Damaso. Quando foi da nossa péga, em casa da Lola Gorda, elle
portou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida…
É capaz de tudo… Antes d’hontem estava eu a cear no Silva, elle veio
sentar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas
a teu respeito, umas ameaças…
– Ameaças! Que disse elle?
– Diz que te das ares de espadachim e de valentão, mas has de encontrar
dentro em pouco quem te ensine… Que se está ahi preparando um escandalo
monumental… Que se não admirará de te vêr brevemente
com uma boa bala na cabeça…
– Uma bala?
– Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei… Eu, se fosse a ti, ia-me
ao Damaso e dizia-lhe: «Damasosinho, flôr, fique avisado que,
d’ora em diante, cada vez que me succeder uma coisa desagradavel, venho aqui
e parto-lhe uma costella; tome as suas medidas…»
Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre e pasmada,
apinhava-se até ás ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas
de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os requebros
do palhaço, rebocado de cáio e vermelhão, que tocava
nos pésinhos d’uma voltigeuse e lambia os dedos, d’olhos em alvo, n’um
gosto de mel… Descançando na sella larga de xairel dourado, a creatura,
magrinha e séria, com flôres nas tranças, dava a volta
devagar, ao passo d’um cavallo branco, que mordia o freio, levado á
mão por um estribeiro; e pela arena o palhaço lambão
e nescio acompanhava-a, com as mãos ambas apertadas ao coração,
n’uma supplica babosa, rebolando languidamente os quadris dentro das vastas
pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calça listrada
d’ouro, empurrava-o, n’um arremedo de ciumes; e o palhaço cahia, estatelado,
com um estoiro de nadegas, entre os risos das crianças e os rantantans
da charanga. O calor suffocava; e as fumaraças de charuto, subindo
sem cessar, faziam uma neva onde tremiam as chammas largas do gaz. Carlos,
incommodado, abalou.
– Espera ao menos para vêr a mulher dos crocodilos! gritou ainda o Taveira.
– Não posso, cheira mal, morro!
Mas á porta, de repente, foi detido pelos braços abertos do
Alencar, que chegava – com outro sujeito, velho e alto, de barbas brancas,
todo vestido de luto. O poeta ficou pasmado de vêr alli o de seu Carlos.
Fazia-o no seu solar Santa de Olavia! Vira até nos papeis publicos…
– Não, disse Carlos, o avô é que foi hontem… Eu não
me sinto ainda em disposição do ir communicar com a natureza…
Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho cavo. Ao
lado, grave, o ancião de barbas calçava as suas luvas pretas.
– Pois eu é o contrario! exclamava o poeta. Estou precisado d’um banho
de pantheismo! A bella natureza! O prado! O bosque!… De modo que talvez
me mimoseie com Cintra, para a semana. Estão lá os Cohens, alugaram
uma casita muito bonita, logo adiante do Victor…
Os Cohens! Carlos comprehendeu então a fuga do Ega e a «sua saudade
do verde.»
– Ouve lá, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga, para o
lado. Tu não conheces este meu amigo? Pois foi muito de teu pai, fizemos
muita troça juntos… Não era nenhum personagem, era apenas
um alquilador de cavallos… Mas tu sabes, cá em Portugal, sobretudo
n’esses tempos, havia muita bonhomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro…
Mas, que diabo, tu deves conhecel-o! É o tio do Damaso!
Carlos não se recordava.
– O Guimarães, o que está em Paris!
– Ah, o communista!
– Sim, muito republicano, homem de idéas humanitarias, amigo do Gambetta,
escreve no Rappel… Homem interessante!… Veio ahi por causa d’umas terras
que herdou do irmão, d’esse outro tio do Damaso que morreu ha mezes…
E demora-se, creio eu… Pois jantamos hoje juntos, beberam-se uns liquidos,
e até estivemos a fallar de teu pai… Queres tu que eu t’o apresente?
Carlos hesitou. Seria melhor n’outra occasião mais intima, quando podessem
fumar um charuto tranquillo, e conversar do passado…
– Valeu! Has de gostar d’elle. Conhece muito Victor Hugo, detesta a padraria…
Espírito largo, espirito muito largo!
O poeta sacudiu ardentemente as duas mãos de Carlos. O snr. Guimarães
ergueu de leve o seu chapéo, carregado de crepe.
Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e
n’esse passado, assim rememorado e estranhamente resurgido pela presença
d’aquelle patriarcha, antigo alquilador, que fizera com elle tantas troças!
E isto trazia conjuntamente outra idéa, que n’esses ultimos dias já
o atravessára, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua radiante
felicidade, um sombrio arripio de dôr… Carlos pensava no avô.
Estava agora decidido que Maria Eduarda e elle partiriam para Italia, nos
fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brazil, sêcca
e pretenciosa, fallava «em apparecer por Lisboa, com as elegancias do
frio, lá para meado de novembro»; e era necessario antes d’isso
que estivessem já longe, entre as verduras d’Isola Bella, escondidos
no seu amor e separados por elle do mundo como pelos muros d’um claustro.
Tudo isto era facil, considerado quasi legitimo pelo seu coração,
e enchia a sua vida d’esplendor… Somente havia n’isto um espinho – o avô!
Sim, o avô! Elle partia com Maria, elle entrava na ventura absoluta;
mas ia destruir de uma vez e para sempre a alegria d’Affonso, e a nobre paz
que lhe tornava tão bella a velhice. Homem de outras eras, austero
e puro, como uma d’essas fortes almas que nunca desfalleceram – o avô,
n’esta franca, viril, rasgada solução d’um amor indominavel,
só veria libertinagem! Para elle nada significava o esponsal natural
das almas, acima e fóra das ficções civis; e nunca comprehenderia
essa subtil ideologia sentimental, com que elles, como todos os transviados,
procuravam azular o seu erro. Para Affonso haveria apenas um homem que leva
a mulher d’outro, leva a filha d’outro, dispersa uma família, apaga
um lar, e se atola para sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixão,
por mais finas, por mais fortes, quebrar-se-hiam, como bolas de sabão,
contra as tres ou quatro idéas fundamentaes de Dever, de Justiça,
de Sociedade, de Familia, duras como blocos de marmore, sobre que assentára
a sua vida quasi durante um seculo… E seria para elle como o horror d’uma
fatalidade! Já a mulher de seu filho fugira com um homem, deixando
atraz de si um cadaver; seu neto agora fugia tambem, arrebatando a familia
d’outro: é a historia da sua casa tornava-se assim uma repetição
d’adulterios, de fugas, de dispersões, sob o bruto aguilhão
da carne!… Depois as esperanças que Affonso fundára n’elle
– consideral-as-hia tombadas, mortas no lodo! Elle passava a ser para sempre,
na imaginação angustiada do avô, um foragido, um inutilisado,
tendo partido todas as raízes que o prendiam ao seu sólo, tendo
abdicado toda a acção que o elevaria no seu paiz, vivendo por
hoteis de refugio, fallando linguas estranhas, entre uma familia equivoca
crescida em torno d’elle como as plantas de uma ruina… Sombrio tormento,
implacavel e sempre presente, que consumiria os derradeiros anhos do pobre
avô!… Mas, que podia elle fazer? Já o dissera ao Ega. A vida
é assim! Elle não tinha o heroismo nem a santidade que tornam
facil o sacrificio… E depois os dissabores do avô, de que provinham?
De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha direitos mais largos,
fundados na natureza!…
Chegára ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escuridão.
Por alli entraria em breve do Brazil, o outro – que nas suas cartas se esquecia
de mandar um beijo a sua filha! Ah, se elle não voltasse! Uma onda
providencial podia leval-o… Tudo se tornaria tão facil, perfeito
e limpido! De que servia na vida esse resequido? Era como um saco vazio que
cahisse ao mar! Ah, se elle morresse!… E esquecia-se, enlevado n’uma visão
em que a imagem de Maria o chamava, o esperava, livre, serena, sorrindo e
coberta de luto…
No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um suspiro
de fadiga, de desconsolação, – disse, depois de tossir risonhamente,
e dando mais luz ao candieiro:
– Isto agora, sem o snr. Ega, parece um bocadinho mais só…
– Está só, está triste, murmurou Carlos. É necessario
sacudirmo-nos… Eu já te disse que talvez fossemos viajar este inverno…
O menino não lhe tinha dito nada.
– Pois talvez vamos a Italia… Appetece-te voltar a Italia?
Baptista reflectiu.
– Eu, da outra vez não vi o Papa… E antes de morrer não se
me dava de vêr o Papa…
– Pois sim, ha de se arranjar isso, has de vêr o Papa.
Baptista, depois d’um silencio, perguntou, lançando um olhar ao espelho:
– Para vêr o Papa vai-se de casaca, creio eu?
– Sim, recommendo-te a casaca… O que tu devias ter, para esses casos, era
um habito de Christo… Hei de vêr se te arranjo um habito de Christo.
Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate, d’emoção:
– Muito agradecido a v. exc.ª Ha por ahi gente que o tem, ainda talvez
com menos merecimentos que eu… Dizem que até ha barbeiros…
– Tens razão, replicou Carlos muito sério. Era uma vergonha.
O que hei de vêr se te arranjo com effeito é a commenda da Conceição.

Todas as manhãs, agora, Carlos percorria o poeirento caminho dos Olivaes.
Para poupar aos seus cavallos a soalheira ia na tipoia do Mulato, o batedor
favorito do Ega – que recolhia a parelha na velha cavalhariça da Toca,
e, até á hora em que Carlos voltava ao Ramalhete, vadiava pelas
tabernas.
Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoçar, Maria Eduarda, ouvindo
rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar Carlos á porta da
casa, no topo dos degraus ornados de vasos e resguardados por um fresco toldo
de fazenda côr de rosa. Na quinta usava sempre vestidos claros; ás
vezes trazia, á antiga moda hespanhola, uma flôr entre os cabellos;
o forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais quente o mate eburneo
do seu rosto; – e assim, simples e radiante, entre sol e verdura, ella deslumbrava
Carlos cada dia com um encanto inesperado e maior. Cerrando o portão
d’entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se logo envolvido n’um «extraordinario
conforto moral», como elle dizia, em que todo o seu sêr se movia
mais facilmente, fluidamente, n’uma permanente impressão de harmonia
e doçura… Mas o seu primeiro beijo era para Rosa, que corria pela
rua de acacias ao seu encontro, com uma onda de cabello negro a bater-lhe
os hombros, e Niniche ao lado, pulando e ladrando de alegria. Elle erguia
Rosa ao collo. Maria de longe sorria-lhes, sob o toldo côr de rosa.
Em redor tudo era luminoso, familiar e cheio de paz.
A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. Já se podia
usar o salão nobre, que perdera o seu ar rigido de museu, exhalando
a tristeza d’um luxo morto: as flôres que Maria punha nos vasos, um
jornal esquecido, as lãs de um bordado, o simples roçar dos
seus frescos vestidos, tinham communicado já um subtil calor de vida
e de conchego aos mais impertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos
de ferro brunido: – e era alli que elles ficavam conversando emquanto não
chegava a hora das lições de Rosa.
A essa hora apparecia miss Sarah, séria e recolhida – sempre de preto,
com uma ferradura de prata em broche sobre o collarinho direito de homem.
Recuperára as suas côres fortes de boneca, e as pestanas baixas
tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandós puritanos. Gordinha,
com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se
toda contente da vida calma e lenta de aldêa. Mas aquellas terras trigueiras
d’olivedo não lhe pareciam campo: «é muito sêcco,
é muito duro,» dizia ella, com uma indefinida saudade dos verdes
molhados da sua Inglaterra, e dos céos de nevoa, cinzentos e vagos.
Davam duas horas; e começavam logo nos quartos de cima as longas lições
de Rosa. Carlos e Maria iam então refugiar-se n’uma intimidade mais
livre, no kiosque japonez, que uma phantasia de Craft, o seu amor do Japão,
construira ao pé da rua d’acacias, aproveitando a sombra e o retiro
bucolico de dois velhos castanheiros. Maria affeiçoara-se áquelle
recanto, chamava-lhe o seu pensadoiro. Era todo de madeira, com uma só
janellinha redonda, e um telhado agudo á japoneza, onde roçavam
os ramos – tão leve que através d’elle nos momentos de silencio
se sentiam piar as aves. Craft forrára-o todo de esteiras finas da
India; uma mesa de xarão, algumas faianças do Japão,
ornavam-no sobriamente; o tecto não se via, occulto por uma colcha
de sêda amarella, suspensa pelos quatro cantos, em laços, como
o rico docel de uma tenda; – e todo o ligeiro kiosque parceia ter sido armado
só com o fim d’abrigar um divan baixo e fôfo, d’uma languidez
de serralho, profundo para todos os sonhos, amplo para todas as preguiças…
Elles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presença de
miss Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro
cahiam logo no chão – e os seus labios, os seus braços uniam-se
arrebatadamente. Ella escorregava sobre o divan: Carlos ajoelhava n’uma almofada,
tremulo, impaciente depois da forçada reserva diante de Rosa e diante
de Sarah – e alli ficava, abraçado á sua cintura, balbuciando
mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam frouxos,
com os olhos cerrados, n’uma doçura de desmaio. Ella queria saber o
que elle tinha feito durante a longa, longa noite de separação.
E Carlos nada tinha a contar senão que pensára n’ella, que sonhára
com ella… Depois era um silencio: os pardaes piaram, as pombas arrulhavam
por cima do leve telhado : e Niniche, que os acompanhava sempre, seguia os
seus murmurios, os seus silencios, enroscada a um canto, com um olho negro,
reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.
Fóra, por aquelles dias de calma, sem aragem, a quinta sêcca,
d’um verde empoeirado, dormia com as folhagens immoveis, sob o peso do sol.
Da casa branca, através das persianas fechadas, vinha apenas o som
amodorrado das escalas que Rosa fazia no piano. E no kiosque havia tambem
um silencio satisfeito e pleno – sómente quebrado por algum dôce
suspiro de lassidão que sahia do divan, d’entre as almofadas de sêda,
ou algum beijo mais longo e d’um remate mais profundo… Era Niniche que os
tirava d’aquelle suave entorpecimento, farta de estar alli quieta, encerrada
entre as madeiras quentes, n’um ar molle já repassado d’esse aroma
indefinido em que havia jasmim.
Lenta, e passando as mãos no rosto Maria erguia-se – mas para cahir
logo aos pés de Carlos, no seu reconhecimento infinito… Meu Deus,
o que lhe custava então esse momento de separação! Para
que havia de ser assim? Parecia tão pouco natural, esposos como eram,
que ella ficasse alli toda a noite, sósinha, com o seu desejo d’elle,
e elle fosse, sem as suas carícias, dormir solitariamente ao Ramalhete!…
E ainda se demoravam muito tempo, n’uma mudez d’extasi, em que os olhos humidos,
trespassando-se, continuavam o beijo insaciado que morrera nos seus labios
cançados. Era Niniche que os fazia sahir por fim trotando impacientemente
da porta para o divan, rosnando, ameaçando ladrar.
Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma inquietação. Que
pensaria miss Sarah d’esta sésta assim enclausurada, sem um rumor,
com a janella do pavilhão cerrada? Melanie, desde pequena ao serviço
de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, um imbecil, não contava:
mas miss Sarah?… Maria confessava sorrindo que se sentia um pouco humilhada,
ao encontrar depois á mesa os candidos olhos da ingleza sob os seus
bandós virginaes… Está claro! se a boa miss tivesse a ousadia
de resmungar ou franzir de leve a testa, recebia logo seccamente a sua passagem
no Royal Mail para Southampton! Rosa não a lamentaria, Rosa não
lhe tinha affeição. Mas, emfim, era tão séria,
admirava tanto a senhora! Ella não gostava de perder a admiração
d’uma rapariga tão séria. E assim decidiram despedir miss Sarah,
régiamente paga, e substituil-a, mais tarde, em Italia, por uma governante
allemã, para quem elles fossem como casados, «Monsieur et Madame…»
Mas pouco a pouco o desejo d’uma felicidade mais intima, mais completa, foi
crescendo n’elles. Não lhes bastava já essa curta manhã
no divan com os passaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado
em redor: appeteciam o longo contentamento d’uma longa noite, quando os seus
braços se podessem enlaçar sem encontrar o estofo dos vestidos,
e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a luz… De resto era bem facil!
A sala de tapeçarias, communicando com a alcova de Maria, abriu sobre
o jardim por uma porta envidraçada; a governante, os criados, subiam
ás dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia profundamente;
Carlos tinha uma chave do portão; e o unico cão, Niniche, era
o confidente fiel dos seus beijos…
Maria desejava essa noite tão ardentemente como elle. Uma tarde ao
escurecer, voltando d’um fresco passeio nos campos, experimentaram ambos essa
dupla chave – que Carlos já promettia mandar dourar: e elle ficou surprehendido
ao vêr que o velho portão, que ouvira sempre ranger abominavelmente,
rolava agora nos gonzos com um silencio oleoso.
Veio n’essa mesma noite – tendo deixado na villa para o levar ao amanhecer
a caleche do Mulato, um batedor discreto, que elle cevava de gorgetas. O céo,
molle e abafado, não tinha uma estrella; e sobre o mar lampejava a
espaços, mudamente, a lividez d’um relampago. Caminhando com inuteis
cautelas rente do muro Carlos sentia, n’esta proximidade d’uma posse tão
desejada, uma melancolia, cerrada de anciedade, que vagamente o acobardava.
Abriu quasi a tremer o portão: e mal déra alguns passos estacou,
ouvindo ao fundo Niniche ladrar furiosamente. Mas tudo emmudeceu; e da janella
do canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade que o socegou. Foi encontrar
Maria, com um roupão de rendas, junto da porta envidraçada,
suffocando quasi entre os braços Niniche que ainda rosnava. Estava
toda medrosa, n’uma impaciencia de o sentir ao seu lado: e não quiz
recolher logo: um momento ficaram alli, sentados nos degraus, com Niniche
que aquietára e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma infinita
mancha de tinta; só lá em baixo, perdida e mortiça, surdia
da treva alguma luzinha vacillando no alto d’um mastro. Maria, conchegada
a Carlos, refugiada n’elle, deu um longo suspiro: e os seus olhos mergulhavam
inquietos n’aquella mudez negra, onde os arbustos familiares do jardim, toda
a quinta, parecia perder a realidade, sumida, diluida na sombra.
– Porque não havemos de partir já para a Italia? perguntou ella
de repente, procurando a mão de Carlos. Se tem de ser, porque não
ha de ser já?… Escusavamos de ter estes segredos, estes sustos!
– Sustos de que, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na Italia,
como na China… De resto podemos partir mais depressa, se quizeres… Dize
tu um dia, marca um dia!
Ella não respondeu, deixando cahir dôcemente a cabeça
sobre o hombro de Carlos. Elle acrescentou, devagar:
– Em todo o caso, comprehendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia, vêr
o avô…
Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão como recebendo
d’ella o presagio d’um futuro, onde tudo seria confuso e escuro tambem.
– Tu tens Santa Olavia, tens teu avô, tens os teus amigos… Eu não
tenho ninguem!
Carlos estreitou-a a si, enternecido.
– Não tens ninguem! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiça,
nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é tambem o que
os inglezes chamam a «impudente adulteração d’um facto.»
Ella ficára aninhada no peito de Carlos, como desfallecida.
– Não sei porque, queria morrer…
Um largo brilho de relampago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova.
Os mólhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os setins
amarellos, embebiam o ar tepido, onde errava um perfume, n’uma refulgencia
ardente de sacrario: e as bretanhas, as rendas do leito já aberto punham
uma casta alvura de neve fresca n’esse luxo amoroso e côr de chamma.
Fóra, para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas
Maria já o não ouviu, cahida nos braços de Carlos. Nunca
o desejára, nunca o adorára tanto! Os seus beijos anciosos pareciam
tender mais longe que a carne, trespassal-o, querer sorver-lhe a vontade e
a alma: – e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabellos
soltos, divina na sua nudez, ella lhe appareceu realmente como a Deusa que
elle sempre imaginára, que o arrebatava emfim, apertado ao seu seio
immortal, e com elle pairava n’uma celebração d’amor, muito
alto, sobre nuvens de ouro…
Quando sahiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o Mulato a dormir n’uma
taberna, bebedo. Teve de o meter dentro do carro; e foi elle que governou
até ao Ramalhete, embrulhado n’uma manta do taberneiro, encharcado,
cantarolando, esplendidamente feliz.
Passados dias, passeando com Maria nos arredores da Toca, Carlos reparou n’uma
casita, á beira da estrada, com escriptos: e veio-lhe logo a idéa
de a alugar, para evitar aquella desagradavel partida de madrugada com o Mulato
estremunhado, borracho, despedaçando o trem pelas calçadas.
Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e cortinas podia dar um
refugio confortavel. Tomou-a logo – e Baptista veio ao outro dia, com moveis
n’uma carroça, arranjar este novo ninho. Maria disse, quasi triste:
– Mais outra casa!
– Esta, exclamou Carlos rindo, é a ultima! Não, é a penultima…
Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, lá longe, não sei
onde…
Começaram a encontrar-se todas as noites. Ás nove e meia, pontualmente,
Carlos deixava a Toca, com o seu charuto accêso: e Domingos, adiante,
de lanterna, vinha fechar o portão, tirar a chave. Elle recolhia devagar
á sua «choupana» onde o servia um criadito, filho do jardineiro
do Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho soalho, havia apenas,
além do leito, uma mesa, um sofá de riscadinho, duas cadeiras
de palha; e Carlos entretinha as horas que o separavam ainda de Maria, escrevendo
para Santa Olavia e sobretudo ao Ega, que se eternisava em Cintra.
Recebera duas cartas d’elle, fallando quasi sómente do Damaso. O Damaso
apparecia em toda a parte com a Cohen; o Damaso tornára-se grutesco
em Cintra, n’uma corrida de burros; o Damaso arvorára capacete e véo
em Sitiaes; o Damaso era uma besta iramundo; o Datmaso, no pateo do Victor,
de perna traçada, dizia familiarmente «a Rachel»; era um
dever de moralidade publica dar bengaladas no Damaso!… Carlos encolhia os
hombros, achando estes ciumes indignos do coração do Ega. E
então por quem! Por aquella lambisgoia d’Israel, melada e mollenga,
sovada a bengala! «Se com effeito, escrevera elle ao Ega, ella desceu
de ti até ao Damaso, tens só a fazer como se fosse um charuto
que te cahisse á lama: não o pódes naturalmente levantar:
deves deixar fumal-o em paz ao garoto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto
ou com o charuto, é d’imbecil.» Mas ordinariamente, quando respondia,
fallava só ao Ega dos Olivaes, dos seus passeios com Maria, das conversas
d’ella, do encanto d’ella, da superioridade d’ella… Ao avô não
achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recommendava-lhe
que não se fatigasse, mandava saudades para os hospedes, e dava-lhe
recados do Manoelzinho- que elle nunca via.
Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com um livro
aberto, os olhos no ponteiro do relogio. Á meia noite sahia, encafuado
n’um gabão d’Aveiro, e de varapau. Os seus passos resoavam, solitarios
na mudez dos campos, com uma indefinida melancolia de segredo e de culpa…
N’uma d’essas noites, de grande calor, Carlos cançado adormeceu no
sofá: e só despertou, em sobresalto, quando o relogio na parede
dava tristemente duas horas. Que desespero! Ahi ficava perdida a sua noite
de amor! E Maria decerto á espera, angustiada, imaginando desastres!…
Agarrou o cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao abrir subtilmente
o portão da quinta, pensou que Maria teria adormecido: Niniche podia
ladrar: os seus passos, entre as acacias, abafaram-se, mais cautelosos. E
de repente sentiu ao lado, sob as ramagens, vindo do cháo, d’entre
a herva, um resfolgar ardente d’homem, a que se misturavam beijos. Parou,
varado: e o seu impeto logo foi esmagar a cacete aquelles dois animaes, enroscados
na relva, sujando brutamente o poetico retiro dos seus amores. Uma alvura
de saia moveu-se no escuro: uma voz soluçava, desfalecida – oh yes,
oh yes… Era a ingleza!
Oh santo Deus, era a ingleza, era miss Sarah! Apagando os passos, atordoado,
Carlos escoou-se pelo portão, cerrou-o mansamente, foi esperar adiante,
n’um recanto do muro, sob as ramarias d’uma faia, sumido na sombra. E tremia
de indignação. Era preciso contar immediatamente a Maria aquelle
grande horror! Não queria que ella consentisse um momento mais essa
impura fêmea, junto de Rosa, roçando a candidez do seu anjo…
Oh, era pavorosa uma tal hypocrisia, assim astuta e methodica, sem se desconcertar
jámais! Havia dias apenas, vira a creatura desviar os olhos d’uma gravura
d’Illustração, onde dois castos pastores se beijavam n’um arvoredo
bucolico! E agora rugia, estirada na herva!
Na estrada escura, do lado do portão, brilhou um lume de cigarro. Um
homem passou, forte e pesado, com uma manta aos hombros. Parecia um jornaleiro.
A boa miss Sarah não escolhera! Bem lavada, toda correcta, com os seus
bandós puritanos, aceitava um qualquer, rude e sujo, desde que era
um macho! E assim os embaíra, mezes, com aquellas suas duas existencias,
tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa, córando
sempre, com a Biblia no cesto da costura: á noite a pequena adormecia,
todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra,
chale aos hombros, e lá ia para a relva, com qualquer!… Que bello
romance para o Ega!
Voltou; tornou a abrir devagarinho o portão: de novo subiu, amollecendo
os passos, a sombria rua d’acacias. Mas agora ia sentindo uma hesitação
em contar a Maria aquelle horror. A seu pezar pensava que tambem Maria o esperava,
com o leito aberto, no silencio da casa adormecida; e que tambem elle penetrava
alli, as escondidas, como o homem da manta… De certo era bem differente!
Toda a immensuravel differença que vai do divino ao bestial… E todavia
receava despertar os melindrosos escrupulos de Maria, mostrando-lhe, parallelo
ao seu amor cheio de requintes e passado entre brocados côr d’ouro,
aquelle outro rude amor, secreto e illegitimo como o d’ella, e arrastado brutamente
na relva… Era como mostrar-lhe um reflexo da sua propria culpa, um pouco
esfumada, mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmente
parecida… Não, não diria nada. E a pequena?… Oh, nas suas
relações com Rosa a creatura continuaria a ser, como sempre,
a puritana laboriosa, grave e cheia d’ordem.
A porta envidraçada sobre o jardim tinha ainda luz: elle atirou aos
vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Maria appareceu, mal
embrulhada n’um roupão, juntando os cabellos que se tinham desenrolado,
e meia adormecida.
– Porque vieste tão tarde? Carlos beijou longamente os seus bellos
olhos pesados, quasi cerrados.
– Adormeci estupidamente, a lêr… Depois, quando entrei pareceu-me
ouvir passos na quinta, andei a rebuscar… Era imaginação,
tudo deserto.
– Precisavamos ter um cão de fila, murmurou ella, espreguiçando-se.
Sentada á beira do leito, com os braços cahidos e adormentados,
sorria da sua preguiça.
– Estás tão fatigada, filha! queres tu que me vá embora
?…
Ella puxou-o para o seu seio perfumado e quente.
– Je veux que tu m’aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps…
Ao outro dia Carlos não fôra a Lisboa, e appareceu cedo na Toca.
Melanie, que andava espanejando o kiosque, disse-lhe que Madame, um pouco
cançada, tinha justamente tomado o seu chocolate na cama. Elle entrou
no salão: defronte da janella aberta, sentada no banco de cortiça,
miss Sarah costurava, á sombra das arvores.
– Good morning, disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril, todo curioso de
a observar.
– Good morning, sir, respondeu ella com o seu ar modesto e tímido.
Carlos fallou do calor. Miss Sarah já áquella hora o achava
intoleravel. Felizmente a vista do rio, lá em baixo, refrescava…
Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos accendendo a cigarrette, fôra
tão abafada! Elle mal pudera dormir. E ella?
Oh, ella dormira d’um somno só. Carlos quiz saber se tivera bonitos
sonhos.
– Oh yes, sir.
– Oh yes! mas agora um yes pudico, sem gemidos, com os olhos baixos. E tão
correcta, tão pregada, fresca como se nunca tivesse servido!… Positivamente
era extraordinaria! E Carlos, torcendo o bigode, pensava que ella devia ter
um seiosinho bem alvo e bem redondinho!

Assim ia passando o verão nos Olivaes. No começo de setembro,
Carlos soube por uma carta do avô que Craft devia chegar a Lisboa, n’um
sabbado, ao Hotel Central: e correu lá cedo, logo n’essa manhã,
a ouvir as novidades de Santa Olavia. Achou Craft já a pé, diante
do espelho, fazendo a barba. A um canto do sofá, Eusebiosinho, que
viera na vespera á noite de Cintra e estava tambem no Hotel, limpava
as unhas com um canivete, em silencio, coberto de negro.
Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem comprehendia como Affonso, beirão
forte, tolerava a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do Ramalhete.
Tinha-se passado régiamente! O avô, cheio de saude, d’uma hospitalidade
que lembrava Abrahão e a Biblia. O Sequeira optimo comendo tanto que
ficava inutil depois de jantar, a estoirar e a gemer no fundo d’uma poltrona.
Lá conhecera o velho Travassos, que fallava sempre com os olhos cheios
de lagrimas do «talento do seu caro collega Carlos.» E o marquez
esplendido, com abraços de primo a todos os fidalgotes de Lamego, e
apaixonado por uma barqueira… De resto soberbos jantares, alguns tiros aos
coelhos, uma romaria, danças de raparigas no adro, guitarradas, esfolhadas,
todo o dôce idyllio portuguez…
– Mas a respeito de Santa Olavia temos a fallar mais sériamente, disse
por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar a cabeça.
– E tu, perguntou então Carlos, voltando-se para o Eusebiosinho. Tens
estado em Cintra, hein? Que se faz lá?… O Ega?
O outro ergueu-se guardando o canivete, ageitando as lunetas.
– Lá está no Victor, muito engraçado, comprou um burro…
Lá está o Damaso tambem… Mas esse pouco se vê, não
larga os Cohens… Emfim tem-se passado menos mal, com bastante calor…
– Tu estavas outra vez com a mesma prostituta, a Lola?
Eusebiosinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério!
O Palma é que lá tinha apparecido com uma rapariga portugueza…
Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.
– A Corneta…?
– Sim, do Diabo, disse o Eusebiosinho. É um jornal de pilherias, de
picuinhas… Elle já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou
para o Palma; elle vae-lhe augmentar o formato, e metter-lhe mais chalaça…
– Emfim, disse Carlos, qualquer coisa sebacea e immunda como elle…
Craft reappareceu, enxugando a cabeça. E emquanto se vestia, fallou
de uma viagem que agora o tentava, que estivera planeando em Santa Olavia.
Como já não tinha a Toca, e a sua casa ao pé do Porto
necessitava longas obras, ia passar o inverno ao Egypto, subindo o Nilo, em
communicação espiritual com a antiguidade Pharaonica. Depois
talvez se adiantasse até Bagdad, a vêr o Euphrates, e os sitios
de Babylonia…
– Por isso eu lhe vi alli, na mesa, exclamou Carlos, um livro, Ninive e Babylonia…
Que diabo, você gosta d’isso? Eu tenho horror a raças e a civilisações
defuntas… Não me interessa senão a Vida.
– É que você é um sensual, disse Craft. E a proposito
de sensualidade e de Babylonia, quer vir você almoçar ao Bragança?
Eu tenho de lá encontrar um inglez, o meu homem das minas… Mas havemos
d’ir pela rua do Ouro, que quero trepar um instante á caverna do meu
procurador… E a caminho, que é meio dia!
Deixaram o Eusebiosinho, em baixo na sala, ageitando as suas lugubres lunetas
negras diante dos telegrammas. E apenas sahira o pateo, Craft travou do braço
de Carlos, e disse-lhe que as coisas sérias a respeito de Santa Olavia
– era o visivel, profundo desgosto do avô por elle não ter lá
apparecido.
– Seu avô não me disse nada, mas eu sei que elle está
muitissimo magoado com você. Não ha desculpa, são umas
horas de viagem… Você sabe como elle o adora… Que diabo! Est modus
in rebus.
– Com effeito, murmurou Carlos. Eu devia ter lá ido… Que quer você,
amigo?… Emfim acabou-se, é necessario fazer um esforço!…
Talvez parta para a semana com o Ega.
– Sim, homem, dê-lhe esse alegrão… Esteja lá umas semanas…
– Est modus in rebus. Hei de vêr se lá estou uns dias.
A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava, havia
momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta – quando de repente avistou
Melanie, a sahir o portão do Monte-Pio, com uma matrona gorda, de chapéo
rôxo. Surprehendido, atravessou a rua. Ella estacou como apanhada, fazendo-se
toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta; balbuciou logo que Madame lhe
déra licença para vir a Lisboa, e ella andava acompanhando aquella
amiga… Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhada alli, contra
o passeio. Melanie saltou para dentro, á pressa. A traquitana rodou
aos solavancos para o Terreiro do Paço.
Carlos via-a desapparecer, pasmado. E Craft, que voltára, olhando tambem,
reconheceu no lamentavel calhambeque a caleche do Torto, dos Olivaes, onde
elle ás vezes costumava vir «janotar a Lisboa».
– Era alguem lá da Toca? perguntou.
Uma criada, disse Carlos, ainda espantado d’aquelle estranho embaraço
de Melanie.
E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor
da rua:
– Ouça lá! O Eusebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito,
Craft?
O outro confessou que Eusebiosinho, apenas lhe apparecera no quarto, rompera
logo, mascando as palavras, a informal-o da mysteriosa vida de Carlos nos
Olivaes…
– Mas eu fil-o calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tão
pouco curioso que nem mesmo quizera lêr nunca a Historia Romana… Em
todo o caso você deve ir a Santa Olavia.
Carlos, com effeito, logo n’essa noite fallou a Maria da visita que devia
ao avô. Ella, muito séria, aconselhou-lh’a tambem, arrependida
de o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dos outros que
o amavam.
– Mas ouve, querido, não é por muito tempo, não?
– Por dois ou tres dias, quando muito. E naturalmente, trago até o
avô. Não está lá a fazer nada, e eu não
estou para a massada de voltar lá…
Maria então lançou-lhe os braços ao pescoço, e
baixo, timidamente, confessou-lhe um grande desejo que tinha… Era vêr
o Ramalhete! Queria visitar os quartos d’elle, o jardim, todos esses recantos,
onde tantas vezes elle pensara n’ella, e se desesperára, sentindo-a
distante e inaccessivel…
– Dize, queres? Mas é necessario que seja antes de vir teu avô.
Queres?
– Acho um encanto! Ha só um perigo. É eu não te deixar
sahir mais e ficar a devorar-te na minha caverna.
– Prouvera a Deus!
Combinaram então que ella fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida
de Carlos para Santa Olavia. Á noitinha levava-o no coupé a
Santa Apolonia; depois seguia para os Olivaes.
Foi no sabbado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coração
batia com a deliciosa perturbação d’um primeiro encontro, quando
sentiu parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roçarem
o velludo côr de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos.
O beijo que trocaram, na ante-camara, teve a profunda doçura d’um primeiro
beijo!
Ella foi logo ao toucador tirar o chapéo, dar um geito ao cabello.
Elle não cessava de a beijar; abraçava-a pela cinta; e com os
rostos juntos sorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade.
Depois, impaciente, curiosa, ella percorreu os quartos, miudamente, até
á alcova de banho; leu os títulos dos livros, respirou o perfume
dos frascos, abriu os cortinados de sêda do leito… Sobre uma commoda
Luiz XV havia uma salva de prata, transbordando de retratos que Carlos se
esquecera de esconder, a coronella d’hussards d’amazona, madame Rughel decotada,
outras ainda. Ella mergulhou as mãos, com um sorriso triste, na profusão
d’aquellas recordacões… Carlos, rindo, pediu-lhe que não olhasse
«esses enganos do seu coração».
Porque não? dizia Maria, séria. Sabia bem que elle não
descera das nuvens, puro como um seraphim. Havia sempre photographias no passado
d’um homem. De resto tinha a certeza que nunca amára as outras como
a sabia amar a ella.
– Até é uma profanação fallar em amor quando se
trata d’essas coisas d’acaso, murmurou Carlos. São quartos de estalagem
onde se dorme uma vez…
No emtanto Maria considerava longamente a photograptfia da coronella d’hussards.
Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma franceza?
– Não, de Vienna. Mulher d’um correspondente meu, homem de negocios…
Gente tranquilla, que vivia no campo…
– Ah, Viennense… Dizem que tem um grande encanto as mulheres de Vienna!
Carlos tirou-lhe a photographia da mão. Para que haviam de fallar d’outras
mulheres? Existia em todo o vasto mundo uma mulher unica, e elle tinha-a alli
abraçada sobre o seu coração.
Foram então percorrer todo o Ramalhete, até ao terraço.
Ella gostou sobretudo do escriptorio d’Affonso, com os seus damascos de camara
de prelado, a sua feição severa de paz estudiosa.
– Não sei porque, murmurou dando um olhar lento ás estantes
pesadas e ao Christo na cruz, não sei porque, mas teu avô faz-me
medo!
Carlos riu. Que tonteria! O avô se a conhecesse, fazia-lhe logo a côrte
rasgadamente… O avô era um santo! E um lindo velho!
– Teve paixões?
– Não sei, talvez… Mas creio que o avô foi sempre um puritano.
Desceram ao jardim, que lhe agradou tambem, quieto e burguez, com a sua cascatasinha
chorando n’um rythmo dôce. Sentaram-se um instante sob o velho cedro,
junto a uma mesa rustica de pedra, onde estavam entalhadas letras mal distinctas
e uma data antiga; o chalrar das aves nos ramos pareceu a Maria mais dôce
que o de todas as outras aves que ouvira; depois arranjou um ramo para levar
como relíquia.
Mesmo em cabello foram vêr defronte as cocheiras: o guarda-portão
ficou de boné na mão, embasbacado para aquella senhora tão
linda, tão loira, a primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou
os cavallos, e fez uma festa grata e mais longa á Tunante, que tantas
vezes levára Carlos á rua de S. Francisco. Elle via n’estas
simples coisas as graças incomparaveis d’uma esposa perfeita.
Recolheram pela escada particular de Carlos – que Maria achava «mysteriosa»
com aquelles velludos grossos côr de cereja, forrando-a como um cofre,
e abafando todo o rumor de saias. Carlos jurou que nunca alli passára
outro vestido – a não ser o do Ega, uma vez, mascarado de varina.
Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista: mas
quando voltou encontrou-a a um canto do sofá, tão descahida,
tão desanimada, que lhe arrebatou as mãos, cheio d’inquietação.
– Que tens, amor? Estás doente?
Ella ergueu lentamente os olhos que brilhavam n’uma nevoa de lagrimas.
Pensar que tu vaes deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua paz,
os teus amigos… É uma tristeza, tenho remorsos!
Carlos ajoelhára ao seu lado, sorrindo dos seus escrupulos, chamando-lhe
tonta, seccando-lhe n’um beijo as lagrimas que rolavam… Considerava-se ella
então valendo menos que a cascata do jardim e alguns tapetes usados?…
– O que eu tenho pena é de te sacrificar tão pouco, minha querida
Maria, quando tu sacrificas tanto!
Ella encolheu os hombros, amargamente.
– Eu!
Passou-lhe as mãos entre os cabellos, puxou-o brandamente para o seu
seio – e dizia, baixo, como fallando ao seu proprio coração,
calmando-lhe as incertezas e as duvidas:
– Não, com effeito, nada vale no mundo senão o nosso amor! Nada
mais vale! Se elle é verdadeiro, se é profundo, tudo mais é
vão, nada mais importa…
A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraçada para
o leito – onde tentas vezes desesperava d’ella como d’uma deusa intangivel.
Ás cinco horas pensaram em jantar. A mesa fôra posta n’uma saleta
que Carlos quizera em tempo revestir de colxas de setim cor de perola e botão
d’ouro. Mas não estava ainda arranjada; as paredes conservavam o seu
papel verde-escuro; e Carlos puzera alli ultimamente o retrato de seu pai
– uma teia banal, representando um moço pallido, de grandes olhos,
com luvas de camurça amarella e um chicote na mão.
Era Baptista que os servia, já com um fato claro de viagem. A mesa,
redonda e pequena, parecia uma cesta de flôres; o champagne gelava dentro
dos baldes de prata; no aparador a travessa d’arroz dôce tinha as iniciaes
de Maria.
Aquelles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou no
retrato de Pedro da Maia: e interressou-se, ficou a contemplar aquella face
descórada, que o tempo fizera livida, e onde pareciam mais tristes
os grandes olhos d’arabe, negros e languidos.
– Quem é? perguntou.
– É meu pai.
Ella examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava que Carlos
se parecesse com elle. E voltando-se muito séria, emquanto Carlos desarrolhava
com veneração uma garrafa de velho Chambertin:
– Sabes tu com quem te pareces ás vezes?… É extraordinario,
mas é verdade. Pareces-te com minha mãi!
Carlos riu, encantado d’uma parecença que os aproximava mais, e que
o lisonjeava.
– Tens razão, disse ella, que a mamã era formosa… Pois é
verdade, ha um não sei quê na testa, no nariz… Mas sobretudo
certos geitos, uma maneira de sorrir… Outra maneira que tu tens de ficar
assim um pouco vago, esquecido… Tenho pensado n’isto muitas vezes…
Baptista entrava com uma terrina de louça do Japão. E Carlos,
alegremente, annunciou um jantar á portugueza. Mr. Antoine, o chef
francez, fôra com o avô. Ficára a Michaela, outra cozinheira
de casa, que elle achava magnifica, e que conservava a tradição
da antiga cozinha freiratica do tempo do snr. D. João V.
– Assim, para começar, minha querida Maria, ahi tens tu um caldo de
gallinha, como só se comia em Odivellas, na cella da madre Paula, em
noites de noivado mystico…
E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, elles apertavam-se
rapidamente a mão por cima das flôres. Nunca Carlos a achára
tão linda, tão perfeita: os seus olhos pareciam-lhe irradiar
uma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a superioridade
do seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de ficarem alli eternamente,
n’aquelle quarto de rapaz, com jantarinhos portuguezes á moda de D.
João V, servidos pelo Baptista de jaquetão.
– Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como implorando
a sua approvação.
– Não, deves ir… é necessario não sermos egoistas…
Sómente não te descuides, manda-me todos os dias um grande telegramma…
Que os telegraphos foram unicamente inventados para quem se ama e está
longe, como dizia a mamã.
Então Carlos gracejou de novo sobre a sua parecença com a mãi
d’ella. E baixando-se a remexer a garrafa de champagne dentro do gelo:
– É curioso não m’o teres dito antes… Tambem tu nunca me fallaste
de tua mãi…
Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca fallára
da mamã, porque nunca viera a proposito…
– De resto não havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou.
A mamã era uma senhora da ilha da Madeira, não tinha fortuna,
casou…
– Casou em Paris?
– Não, casou na Madeira com um austriaco que fôra lá acompanhar
um irmão tisico… Era um homem muito distincto, viu a mamã,
que era lindíssima, gostaram um do outro, et voilà…
Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma aza de
frango.
– Mas então, exclamou Carlos, se teu pai era austriaco, meu amor, tu
és tambem austriaca… És talvez uma d’essas viennenses que
tu dizes que tem um tão grande encanto…
Sim, talvez, segundo essas coisas dos codigos, era austriaca. Mas nunca conhecera
o pai, vivera sempre com a mamã, fallára sempre portuguez, considerava-se
portugueza. Nunca estivera na Austria, nem sabia mesmo allemão…
– Não tiveste irmãos?
– Sim, tive, uma irmãsinha que morreu em pequena… Mas não
me lembra. Tenho em Paris o retrato d’ella… Bem linda!
N’esse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote largo,
estacou. Carlos, surprehendido, correu á janella com o guardanapo na
mão.
– É o Ega! exclamou. É aquelle velhaco que chega de Cintra!
Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos se olharam,
hesitando… Mas o Ega era como um irmão de Carlos. Elle esperava só
que o Ega recolhesse de Cintra para o levar á Toca. Melhor seria que
o encontro se désse alli, natural, franco e simples…
– Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou a
jantar, que entre para aqui.
Maria sentára-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do cabello,
arranjado á pressa, um pouco desmanchado.
A porta abriu-se, – e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapéo
branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na mão.
– Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega.
E ao Ega disse simplesmente:
– Maria Eduarda.
Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a mão que Maria
Eduarda lhe estendia, córada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado,
desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Cintra rolou, esmagando-se,
sobre as flôres do tapete. Então todo o embaraço findou
através d’uma risada alegre – emquanto o Ega, desolado, abria os braços
sobre as ruinas do seu dôce.
– Tu já jantaste? perguntou Carlos.
Não, não tinha jantado. E via já alli uns ovos molles
nacionaes, que o encantavam, enfastiado como vinha da horrivel cozinha do
Victor. Oh, que cozinha! Pratos lugubres, traduzidos do francez em calão,
como as comedias do Gymnasio!
– Então avança! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!… Traze
o caldo de gallinha! Oh, ainda temos tempo!… Tu sabes que vou hoje para
Santa Olavia?
Está claro que sabia, recebera a carta d’elle, e por isso viera…
Mas não podia jantar ainda, assim coberto do pó da estrada,
e com um jaquetão de bucolica…
– Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo, que
eu trago uma fome de pastor da Arcadia!…
O Baptista servira o café. E a carruagem da senhora, que os devia levar
a Santa Apolonia, esperava já á porta com a maleta. Mas Ega
agora queria conversar, affirmou que tinham tempo, tirou o relogio. Estava
parado. E elle declarou logo que no campo se regulava pelo sol, como as flôres
e como as aves…
– Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda.
– Não, minha senhora, só o tempo de cumprir o meu dever de cidadão,
subindo duas ou tres vezes o Chiado… Depois volto para a relva. Cintra começa
a ser interessante para mim, agora que não está ninguem… Cintra,
de verão, com burguezes, parece-me um idyllio com nodoas de sebo.
Mas Baptista offerecia a Carlos a chartreuse – dizendo que s. exc.ª não
se devia demorar se não tencionava perder o comboio, de proposito.
Maria ergueu-se logo para ir dentro pôr o chapéo. E os dois amigos,
sós, ficaram um momento calados, emquanto Carlos accendia devagar o
charuto.
– Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega.
– Tres ou quatro dias. E tu não voltes para Cintra antes que eu chegue,
precisamos communicar… Que diabo tens tu feito lá?
O outro encolheu os hombros.
– Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando «que
lindo que isto é!» etc.
Depois, debruçado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona:
– De resto, nada… O Damaso lá está! Sempre com a Cohen, como
te mandei dizer… Está claro que não ha nada entre elles, aquillo
é só para mim, para me irritar… É um canalha aquelle
Damaso! Eu só quero um pretexto. Esgano-o!
Deu um puxão forte aos punhos, com uma côr de cólera no
rosto queimado:
– Eu, está claro, fallo-lhe, aperto-lhe a mão, chamo-lhe «amigo
Damaso», etc. Mas só quero um pretexto! É necessario aniquilar
aquelle animal. É um dever de moralidade, d’aceio publico, de gosto
varrer aquella bola de lama humana!
– Quem esteve por lá mais? perguntou Carlos.
– Que te interesse?… A Gouvarinho. Mas vi-a uma só vez. Apparecia
pouco, coitada, agora que andava de luto.
– De luto?
– Por ti.
Calou-se. Maria entrava, com o véu descido, acabando de apertar as
luvas. Então Carlos, suspirando, resignado, estendeu os braços
ao Baptista para elle lhe vestir um casaco leve de jornada. Ega ajudava, pedindo
um abraço filial para Affonso, e recados para o gordo Sequeira.
Foi acompanhal-os a baixo, em cabello: e fechou elle a portinhola, promettendo
a Maria Eduarda uma visita á Toca, apenas Carlos voltasse d’esses penhascos
do Douro…
– Não vás para Cintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos.
E a Michaela que tome conta em ti!
– All right, all right, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de v. exc.ª,
minha senhora… Até á Toca!
O coupé partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava
preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flôres e os restos do
jantar, as velas continuavam a arder solitarias, fazendo resaltar no painel
escuro a pallidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus olhos.

No sabbado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda á mesa
do almoço, acabavam os seus charutos, fallando de Santa Olavia. Carlos
chegára de lá essa madrugada, só. O avô decidira
ficar entre as suas velhas arvores até ao fim do outono que ia tão
luminoso e tão macio…
Carlos fôra-o encontrar muito alegre, muito forte – apesar de ter sido
obrigado, por causa d’um toque de rheumatismo, a abandonar emfim o seu culto
da agua fria. E esta macissa, resplandecente saude do velho fôra um
allivio para o coração de Carlos: parecia-lhe assim mais facil,
menos ingrata, a sua partida com Maria para Italia, em outubro. Além
d’isso achára um truc, como elle dizia ao Ega, para realisar o supremo
desejo da sua vida sem magoar o avô, sem lhe turbar a paz da velhice.
Era um truc, simples. Consistia em partir elle só para Madrid, no começo
d’uma certa «viagem d’estudo», para que já preparára
o avô em Santa Olavia. Maria ficava na Toca, durante um mez. Depois
tomava o paquete para Bordeus: e era ahi que Carlos se reunia com ella, a
começarem essa existencia de felicidade e romance que as flôres
da Italia deviam perfumar… Na primavera elle voltava a Lisboa, deixando
Maria installada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando
ao avô aquella ligação, a que o prendia a honra, e que
o forçaria agora a viver regularmente longos mezes n’uma outra terra
que se tornára a patria do seu coração. E que havia de
dizer o avô ? Aceitar esse romance, a que não veria os lados
desagradaveis, esbatido assim pela distancia e pela nevoa da paixão.
Seria para Affonso uma vaga e mal sabida coisa d’amor que se passava em Italia…
Poderia lamental-a apenas por lhe levar pontualmente todos os annos o neto
para longe; e cada anno se consolaria pensando na curta duração
dos idyllios humanos. De resto Carlos contava com essa larga benevolencia
que amollece as almas mais rígidas quando apenas alguns passos as separam
do tumulo… Emfim o seu truc parecia-lhe bom. Ega, em resumo, approvou o
truc.
Depois, mais alegremente, fallaram da instailação d’esse amor.
Carlos permanecia na sua idéa romantica um cottage á beira d’um
lago. Mas Ega não approvava o lago. Ter todos os dias diante dos olhos
uma agua sempre mansa e sempre azul, parcia-lhe perigoso para a durabilidade
da paixão. Na quietação continua d’uma paizagem igual,
dois amantes solitarios, dizia elle, não sendo botanicos nem pescando
á linha, vêem-se forçados a viver exclusivamente do desejo
um do outro, e a tirar d’ahi todas as suas idéas, sensações,
occupações, gracejos e silencios… E, que diabo, o mais forte
sentimento não póde dar para tanto! Dois amantes, cuja unica
profissão é amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta
cidade, tumultuosa e creadora, onde o homem tenha durante o dia os clubs,
o cavaco, os museus, as idéas, o sorriso d’outras mulheres – e a mulher
tenha as ruas, as compras, os theatros, a attenção d’outros
homens; de sorte que á noite, quando se reunam, não tendo passado
o infindavel dia a observarem-se um no outro e a si proprios, trazendo cada
um a vibração da vida forte que atravessaram – achem um encanto
novo e verdadeiro no conchego da sua solidão, e um sabor sempre renovado
na repetição dos seus beijos…
– Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, não
era para um lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicilia; era para
Paris, para o boulevard dos Italianos, alli á esquina do Vaudeville,
com janellas deitando para a grande vida, a um passo do Figaro, do Louvre,
da Philosophia e da blague… Aqui tens tu a minha doutrina!… E ahi temos
nós o amigo Baptista com o correio.
Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia n’uma
salva: e vinha tão perturbado que annunciou «um sujeito, alli
fóra, na antecamara, n’uma carruagem, á espera…»
Carlos olhou o bilhete, empallideceu terrivelmente. E ficou a reviral-o, lento
e como atordoado, entre os dedos que tremiam… Depois, em silencio, atirou-o
ao Ega por cima da mesa.
– Caramba! murmurou Ega, assombrado.
Era Castro Gomes!
Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.
– Manda entrar… Para o salão grande!
Baptista apontou para o jaquetão de flanella com que Carlos tinha almoçado,
e perguntou baixo se s. exc.ª queria uma sobrecasaca.
– Traze.
Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante, anciosamente.
– Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega.
Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se
Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escripto a lapis «Hotel
Bragança»… Baptista voltára com a sobrecasaca: e Carlos,
abotoando-a devagar, sahiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficára
de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo.
No salão nobre, forrado de brocados côr de musgo d’outono, Castro
Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado á borda do sofá,
a esplendida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bella e forte
no seu vestido de velludo escarlate de caçadora ingleza. Ao rumor dos
passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéo branco na mão,
sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para
aquelle soberbo Constable… Com um gesto rigido, Carlos, muito pallido, indicou-lhe
o sofá. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No
peito da sobrecasaca muito justa trazia um botão de rosas, os seus
sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado,
queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabellos rareavam-lhe na risca;
e mesmo a sorrir tinha um ar de seccura, de fadiga.
– Eu possuo tambem em Paris um Constable muito chic, disse elle, sem embaraço,
n’um tom arrastado, cheio de rr, que o sutaque brazileiro adocicava. Mas é
apenas uma pequena paizagem, com duas figurinhas. É um pintor que não
me diverte, a dizer a verdade… Todavia da muito tom a uma galeria. É
necessario tel-o.
Carlos, defronte n’uma cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os
joelhos, conservava a immobilidade d’um marmore. E, perante aquelle modo affavel,
uma idéa ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já
nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimivel
chamma de cólera. Carlos Gomes decerto não sabia nada! Chegára,
desembarcára, correra aos Olivaes, dormira nos Olivaes! Era o marido,
era novo, tivera-a já nos braços – a ella! E agora alli estava,
tranquillo, de flôr ao peito, fallando de Constable! O unico desejo
de Carlos, n’esse instante, era que aquelle homem o insultasse.
No emtanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim,
sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista…
– O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei
esta manhã ás dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto,
e estou aqui!… E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.
Fez-se um allivio infinito no coração de Carlos. Ainda não
vira então Maria Eduarda, aquelles seccos labios não a tinham
tocado! E sahiu emfim da sua rigidez de marmore, teve um movimento attento,
aproximando de leve a cadeira.
Castro Gomes no emtanto, tendo pousado o chapéo, tirára do bolso
interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monogramma de ouro; e, vagaroso,
procurava entre os papeis uma carta… Depois, com ella na mão, muito
tranquillamente:
– Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escripto anonymo… Mas
não creia v. exc.ª que foi elle que me levou a atravessar á
pressa o Atlantico. Seria o maior dos ridiculos… E desejo tambem afirmar-lhe
que todo o conteudo d’elle me deixou perfeitamente indiferente… Aqui o tem.
Quer v. exc.ª lêl-o, ou quer que eu leia?
Carlos murmurou com um esforço:
– Leia v. exc.ª
Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.
– Como v. exc.ª vê, é a carta anonyma em todo o seu horror:
papel de mercearia, pautadinho de azul; calligraphia reles; tinta reles; cheiro
reles. Um documento odioso. E aqui está como elle se exprime: «Um
homem «que teve a honra de apertar a mão de v. exc.ª»
Eu dispensava a honra… «que teve a hora de apertar a mão de
v. exc.ª e d’apreciar o seu «cavalheirismo, julga dever prevenil-o
que sua mulher é, á vista de toda a «Lisboa, a amante
d’um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da «Maia, que vive n’uma
casa ás Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. Este «heroe, que
é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivaes, «onde
installou a mulher de v. exc.ª e onde a vai vêr todos os dias,
ficando «ás vezes, com escandalo da visinhança, até
de madrugada. Assim o nome «honrado de v. exc.ª anda pelas lamas
da capital. » É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar,
porque o sei, que tudo quanto ella diz é incontestavelmente exacto…
O snr. Carlos da Maia é pois publicamente, com conhecimento de toda
a Lisboa, o amante d’essa senhora.
Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, n’uma
aceitação inteira de todas as responsabilidades:
– Não tenho então nada a dizer a v. exc.ª senão
que estou ás suas ordens!…
Uma fugitiva onda de sangue avivou a pallidez morena de Castro Gomes. Dobrou
a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente:
– Perdão… O snr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que
se isto tivesse de ter uma solução, violenta, eu não
viria aqui pessoalmente, a sua casa, lêr-lhe este papel… A coisa é
inteiramente outra.
Carlos recahira na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada
d’aquella voz ia-se-lhe tornando intoleravel. Um confuso terror do que viria
d’esses labios, que sorriam com uma pallidez impertinente, quasi fazia estalar
o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que
acabasse, que o matasse, ou que sahisse d’aquella sala, onde a sua presença
era uma inutilidade ou uma torpeza!…
O outro passou os dedos no bigode, e proseguiu, devagar, arranjando as suas
palavras com cuidado e com precisão:
– O meu caso é este, snr. Carlos da Maia. Ha pessoas em Lisboa que
me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures,
em Paris, no Brazil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher
bonita, e que a mulher d’esse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é
desagradavel, sobretudo por ser falso. E v. exc.ª comprehende que eu
não devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de marido infeliz,
visto que a não mereço, e que a não posso legalmente
ter… É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para
gentleman, dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que
aquella senhora não é minha mulher.
Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas elle
conservava uma face muda, impenetravel, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente
na lividez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a
cabeça, como acolhendo placidamente aquella revelação,
que tornava outra qualquer palavra entre elles desnecessaria e vã.
Mas Castro Gomes encolhera de leve os hombros, com uma languida resignação,
como quem attribue tudo á malicia dos Destinos.
– São as ridiculas scenas da vida… O snr. Carlos da Maia está
d’ahi a vêr as coisas. É a velha, a classica historia… Ha tres
annos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado d’ir ao
Brazil, trouxe-a a Lisboa para não vir sósinho. Fômos
para o hotel Central. V. exc.ª comprehende perfeitamente que eu não
fui fazer confidencias ao gerente do estabelecimento. Aquella senhora vinha
commigo, dormia commigo, portanto, para todos os effeitos do hotel, era minha
mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro
Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro
Gomes tomou emfim um amante… Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes,
mesmo nas circumstancias mais particularmente desagradaveis para Castro Gomes…
E, meu Deus! não podemos realmente condemnal-a muito… Achava-se por
acaso revestida d’uma excellente posição social e d’um nome
puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia
alguem, a declarar que posição e nome eram de emprestimo e ella
era apenas «Fulana de tal, amigada…» De resto, sejamos justos,
ella não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações
ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou á matrona que lhe alugava
a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguem, a não ser a um pai que lhe
quizesse apresentar sua filha, sahida do convento… Demais a mais sou eu
que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas
lhe deixei usar o meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que
ella tomou a governante ingleza. As inglezas são tão exigentes!…
Aquella, sobretudo, uma rapariga tão séria… Emfim tudo isso
passou… O que importa agora é que eu lhe retiro solemnemente o nome
que lhe emprestára; e ella fica apenas com o seu, que é Madame
Mac-Gren.
Carlos ergueu-se, livido. E com as mãos fincadas nas costas da cadeira
tão fortemente, que quasi lhe esgaçava o estofo:
– Mais nada, creio eu?
Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que
o despediu.
– Mais nada, disse elle tomando o chapéo e levantando-se muito vagarosamente.
Devo apenas acrescentar, para evitar a v. exc.ª suspeitas injustas, que
aquella senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e
a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que alli anda
não é minha filha… Eu conheço a mãi sómente
ha tres annos… Vinha dos braços d’um qualquer, passou para os meus…
Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu pagava.
Completára com esta palavra a humilhação do outro. Estava
deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, n’uma
sacudidella brusca. E, diante d’esta nova rudeza que revelava só mortificação,
Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou:
– Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pezar de ter feito o conhecimento
de v. exc.ª por um motivo tão desagradavel… Tão desagradavel
para mim.
Os seus passos desafogados e leves perderam-se na ante-camara, entre as tapeçarias.
Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calçada…
Carlos ficára cahido n’uma cadeira, junto da porta, com a cabeça
entre as mãos. E de todas aquellas palavras de Castro Gomes, que ainda
lhe resoavam em redor, adocicadas e lentas, só lhe restava o sentimento
atordoado de uma coisa muito bella, resplandecendo muito alto, e que cahia
de repente, se fazia em pedaços na lama, salpicando-o todo de nodoas
intoleraveis… Não soffria: era simplesmente um assombro de todo o
seu sêr perante este fim immundo d’um sonho divino… Unira a sua alma
arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens
d’ouro; de repente uma voz passava, cheia de rr; as duas almas rolavam, batiam
n’um charco; e elle achava-se tendo nos braços uma mulher que não
conhecia, e que se chamava Mac-Gren!
Mac-Gren! era a Mac-Gren!
Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa de todo
o seu orgulho contra essa ingenuidade que o trouxera mezes timido, tremulo,
ancioso, seguindo á maneira d’uma estrella aquella mulher, que qualquer
em Paris, com mil francos no bolso, poderia ter sobre um sofá, facil
e núa! Era horrivel! E recordava agora, afogueado de vergonha, a emoção
religiosa com que entrava na sala de reps vermelho da rua de S. Francisco:
o encanto enternecido com que via aquellas mãos, que elle julgava as
mais castas da terra, puxarem os fios de lã no bordado, n’um constante
trabalho de mãi laboriosa e recolhida; a veneração espiritual
com que se afastava da orla do seu vestido, igual para elle á tunica
d’uma Virgem cujas pregas rigidas nem a mais rude bestialidade ousaria desmanchar
de leve! Oh imbecil, imbecil!… E todo esse tempo ella sorria comsigo d’aquella
simpleza de provinciano do Douro! Oh! tinha vergonha agora das flôres
apaixonadas que lhe trouxera! Tinha vergonha das «excellencias»
que lhe déra!
E seria tão facil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que
aquella deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brazileiro! Mas quê!
a sua paixão absurda de romantico puzera-lhe logo, entre os olhos e
as coisas flagrantes e reveladoras, uma d’essas nevoas douradas que dão
ás montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa!
Porque escolhera ella precisamente para seu medico, na sua casa e na sua intimidade,
o homem que na rua a fitára com um fulgor de desejo na face? Porque
é que nas suas longas conversas, nas manhãs da rua de S. Franrisco,
não fallára jámais de Paris, dos seus amigos e das coisas
da sua casa? Porque é que ao fim de dois mezes, sem preparação,
sem todas essas progressivas evidencias do amor que cresce e desabrocha como
uma flôr, se lhe abandonára de chofre, toda prompta, apenas elle
lhe disse o primeiro «amo-te»?… Porque lhe aceitára uma
casa já mobilada, com a facilidade com que lhe aceitava os ramos? E
outras coisas ainda, pequeninas, mas que não teriam escapado ao mais
simples: joias brutaes, d’um luxo grosseiro de cocotte: o livro da Explicação
de sonhos, á cabeceira da cama; a sua familiaridade com Melanie…
E agora até o ardor dos seus beijos lhe parecia vir menos da sinceridade
da paixão – que da sciencia da voluptuosidade!… Mas tudo acabára,
providencialmente! A mulher que elle amára e as suas seducções
esvaíam-se de repente no ar como um sonho, radiante e impuro, de que
aquelle brazileiro o viera acordar por caridade! Esta mulher era apenas a
Mac-Gren… O seu amor fôra, desde que a vira, como o proprio sangue
das suas veias; e escoava-se agora todo através da ferida incuravel
e que nunca mais fecharia, feita no seu orgulho!
Ega appareceu á porta do salão, ainda pallido:
– Então?
Toda a cólera de Carlos fez explosão:
– Extraordinario, Ega, extraordinario! A coisa mais abjecta, a coisa mais
immunda!
– O homem pediu-te dinheiro?
– Peor!
– E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo, sem reticencias,
com as mesmas palavras cruas do outro, – que assim repetidas e avivadas pelos
seus labios, lhe descobriam motivos novos de humilhação e de
nojo.
– Já por acaso sucedeu a alguem coisa mais horrivel? exclamou por fim,
cruzando violentamente os braços diante do Ega, que se abatera no sofá,
assombrado. Pódes tu conceber um caso mais sordido? E bem mais burlesco?
É para estalar o coração. E é para rebentar a
rir. Estupendo! Ahi, nesse sofá, ahi onde tu estás, o homemzinho,
muito amavel, de flôr ao peito, a dizer: «Olhe que aquella creatura
não é minha mulher, é uma creatura que eu pago…»
Comprehendes isto bem! Aquelle sujeito paga-a… Quanto é o beijo?
Cem francos. Ahi estão cem francos… É de morrer!
E recomeçou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando
tudo, sempre com as palavras do Castro Gomes, que elle deformava ainda n’uma
brutalidade maior…
– Que te parece, Ega? Dize lá. Que fazias tu? É horrível,
heim?
Ega, que limpava pensativamente o vidro do monoculo, hesitou, terminou por
dizer que, considerando as coisas com superioridade, como homens do seu tempo
e «do seu mundo», ellas não offereciam nem motivos de cólera,
nem motivos de dôr…
– Então não comprehendes nada! gritou Carlos, não percebes
o meu caso!
Sim, sim, Ega comprehendia claramente que era horrivel para um homem, no momento
em que ia ligar com adoração o seu destino ao d’uma mulher,
saber que outros a tinham tido a tanto por noite… Mas isso mesmo simplificava
e amenisava as coisas. O que fôra um drama complicado tornava-se uma
distracção bonançosa. Ficava Carlos, desde logo, alliviado
do remorso de ter desorganisado uma familia: já não tinha de
se exilar, a esconder o seu erro, n’um buraco florido da Italia; já
o não prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez não
o prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! eram ,vantagens.
– E a dignidade d’ella! exclamou Carlos.
Sim, mas a diminuição de dignidade e pureza não era na
verdade grande, porque antes da visita de Castro Gomes já ella era
uma mulher que foge do seu marido – o que, sem mesmo usar termos austeros,
nem é muito puro nem muito digno… Decerto, tudo isso era uma humilhação
irritante – não superior todavia á d’um homem que tem uma Madona
que contempla com religião, suppondo-a de Raphael, e que descobre um
dia que a tela divina foi fabricada na Bahia por um sujeito chamado Castro
Gomes! Mas o resultado intimo e social parecia-lhe ser este: Carlos até
ahi tivera uma bella amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes
uma bella amante…
– O que tu deves fazer, meu caro Carlos…
– O que eu vou fazer é escrever-lhe uma carta, remettendo-lhe o preço
de dois mezes que dormi com ella…
– Brutalidade romantica!… Isso já vem na Dama das Camelias… Sobretudo
é não vêr com boa philosophia as nuances.
O outro atalhou, impaciente:
– Bem, Ega, não fallemos mais n’isso… Eu estou horrivelmente nervoso!…
Até logo. Tu jantas em casa, não é verdade? Bem, até
logo.
Sahia atirando a porta, quando Ega agora tranquillo, disse, erguendo-se muito
lentamente do sofá:
– O homemzinho foi para lá.
Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes:
– Foi para os Olivaes? Foi ter com ella?
Sim, pelo menos mandára a tipoia á quinta do Craft. Ega, para
conhecer esse snr. Castro Gomes, fôra metter-se no cubiculo do guarda-portão.
E vira-o descer, accender um charuto… Era com effeito um d’esses rastaquouèros
que, n’esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao Café de la Paix
às duas horas para tomar a sua groseille, tesos e embrutecidos… E
fôra o guarda-portão que lhe dissera que o sujeito parecia muito
alegre e mandára o cocheiro bater para os Olivaes…
Carlos parecia aniquilado:
– Tudo isso é nojento!… No fim talvez até se entendam ambos…
Estou como tu dizias aqui há tempos: «Cahiu-me a alma a uma latrina,
preciso um banho por dentro!»
Ega murmurou melancolicamente:
– Essa necessidade de banhos moraes está-se tornando com effeito tão
frequente!… Devia haver na cidade um estabelecimento para elles.

Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel,
em que ia escrever a Maria Eduarda, já tinha a data d’esse dia, depois
– Minha senhora, n’uma letra que elle se esforçára por traçar
firme e serena: – e não achava outra palavra. Estava bem decidido a
mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das
semanas que passára no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas,
impassiveis, que a ferissem mais que o dinheiro: não encontrava senão
phrases de grande cólera, revelando um grande amor.
Olhava a folha branca: e a banal expressão Minha senhora dava-lhe uma
saudade dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia «minha
adorada», pela mulher que se não chamava ainda Mac-Gren, que
era perfeita, e que uma paixão indomavel, superior á razão,
entontecera e vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante,
que se transformára na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente,
desesperado por ser irrealisavel – como o que se tem por uma morta e que palpita
mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ella pudesse resurgir outra
vez, limpa, clara, do lodo em que afundára, outra vez Maria Eduarda,
com o seu casto bordado!… De que amor mais delicado a cercaria, para a compensar
das affeições domesticas que ella deixasse de merecer! Que veneração
maior lhe consagraria – para supprir o respeito que o mundo superficial e
affectado lhe retirasse! E ella tinha tudo para reter amor e respeito – tinha
a belleza, a graça, a intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade,
um incomparavel gosto… E com todas estas qualidades dôces e fortes
– era apenas uma intrujona!
Mas porque? porque? Porque entrára ella n’esta longa fraude, tramada
dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia até ao nome que
usava!
Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intoleravel.
Se ella mentia – onde havia então a verdade? Se ella o trahia assim,
com aquelles olhos claros, o universo podia bem ser todo uma immensa traição
muda. Punha-se um mólho de rosas n’um vaso, exhalava-se d’elle a peste!
Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaçal! E para
que, para que mentira ella? Se, desde o primeiro dia em que o vira, tremulo
e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma acção
de santidade – lhe tivesse dito que não era esposa do snr. Castro Gomes,
mas só amante do snr. Castro Gomes – teria a sua paixão sido
menos viva, menos profunda? Não era a estola do padre que dava belleza
ao seu corpo e valor ás suas caricias… Para que fôra então
essa mentira tenebrosa e descarada – que lhe fazia suppôr agora que
eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!…
E com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira
por um corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta
mulher, tarifada ás horas como as caleches da Companhia, elle ia amarguarar
a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seu destino, cortar a
sua livre acção de homem!
Mas porque? Porque fôra esta farça banal, arrastada por todos
os palcos de opera comica, da cocotte que se finge senhora? Porque o fizera
ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil e a doçura de mãi?
Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais largamente
lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens… Sentia
ella que Castro Gomes a ia aabandonar, e queria ter ao lado aberta e prompta
outra bolsa rica? Então mais simples teria sido dizer-lhe: «eu
sou livre, gósto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.»
Não! Havia alli alguma coisa secreta, tortuosa, impenetravel… O que
daria por a conhecer!
E então pouco a pouco foi surgindo n’elle o desejo de ir aos Olivaes…
Sim, não lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao
regaço um cheque embrulhado n’uma insolencia! O que precisava, para
sua plena tranquillidade, era arrancar do fundo d’aquella turva alma o segredo
d’aquella torpe farça… Só isso amansaria o seu incomparavel
tormento. Queria entrar outra vez na tóca, vêr como era aquella
outra mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem
violencia, sem recriminações, muito calmo, sorrindo! Só
para que ella lhe dissesse qual fôra a razão d’aquella mentira
tão laboriosa, tão vã… Só para lhe perguntar
serenamente: «Minha rica senhora para quer foi toda esta intrujice?»
E depois vêl-a chorar… Sim, tinha esta anciedade cheia d’amor de a
vêr chorar. A agonia que elle sentira no salão côr de musgo
do outono, emquanto o outro arrastava os rr, queria vêl-a repetida n’esse
seio, onde elle atá ahi dormira tão dôcemente, esquecido
de tudo, e que era bello, tão divinamente bello!…
Bruscamente, decidido, deu um puxão á campainha. Baptista appareceu
todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto
a ser util n’aquella crise que adivinhava…
– Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se já entrou o snr. Castro
Gomes!… Não, escuta… Põe-te á porta do Central, e
espera até que entre aquelle sujeito que aqui esteve… Não,
é melhor perguntar!… Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou
ou está no hotel. E apenas estejas bem certo d’isso, volta aqui, á
desfilada, n’uma tipoia… Um batedor seguro, que é para me levar depois
aos Olivaes!…
Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um allivio immenso
não ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam
dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez o cheque de duzentas libras,
ao portador. Elle mesmo lh’o levaria… Oh, decerto, não lh’o atirava
romanticamente ao regaço… Deixal-o-hia sobre uma mesa, sobrescriptado
a Madame Mac-Gren… E de repente sentiu uma compaixão por ella. Via-a
já, abrindo o enveloppe com duas grandes lagrimas, lentas, caladas,
a rolarem-lhe na face… E os seus proprios olhos se humedeceram.
N’esse momento Ega, de fóra, perguntou se era importuno.
– Entra! gritou.
E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o outro, em
silencio tambem, foi encostar-se á janella sobre o jardim.
– Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por
fim, parando junto da mesa.
– Dá-lhe recados meus.
Carlos sentára-se, tomára languidamente a penna: mas bem depressa
a arremessou: cruzou as mãos por detraz da cabeça no espaldar
da cadeira, cerrou os olhos, como exhausto.
– Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janella.
Quem escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso!
Carlos olhou para elle:
– Achas?… Sim, talvez… Com effeito quem havia de ser?
– Não foi mais ninguem, menino. foi o Damaso!
Carlos então recordou o que lhe contára o Taveira – as allusões
mysteriosas do Damaso a um escandalo que se estava armando, uma bala que elle
devia receber na cabeça… O Damaso, portanto, tinha como certa a vinda
do brazileiro, depois um duello…
– É necessario esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso.
Não ha segurança, não ha paz na nossa vida emquanto esse
bandido viver!…
Carlos não respondeu. E o outro proseguia, transtornado, já
todo pallido, deixando transbordar odios cada dia accumulados:
– Eu não o mato porque não tenho um pretexto!… Se tivesse
um pretexto, uma insolencia d’elle, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!…
Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto não póde ficar assim!
Não póde! É necessario sangue… Vê tu que infamia,
uma carta anonyma!… Temos a nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto
constantemente aos ataques do snr. Damaso. Não póde ser. Eu
o que tenho pena é de não ter um pretexto! Mas tenl-o tu, aproveita,
e esmaga-o!
Carlos encolheu vagamente os hombros:
– Merecia chicotadas, com effeito… Mas elle realmente só tem sido
velhaco commigo por causa das minhas relações com essa senhora;
e como isso é um caso acabado, tudo o que se prende com elle finda
tambem. Parce sepultis… E no fim era elle que tinha razão, quando
dizia que ella era uma intrujona…
Atirou uma punhada á mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, n’um
tedio infinito de tudo:
– Era elle, era o snr. Damaso Salcede que tinha razão!…
Toda a sua cólera revivera, mais aspera, a esta idéa. Olhou
o relogio. Tinha pressa de a vêr, tinha pressa de a injuriar!…
– Escreveste-lhe? perguntou o Ega.
– Não, vou lá eu mesmo.
Ega pareceu espantado. Depois recomeçou a passear, calado, com os olhos
no tapete.
Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o snr. Castro Gomes apear-se no
hotel e mandar descer as suas bagagens: – e a tipoia, para levar o menino
aos Olivaes, esperava em baixo.
– Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas.
– Não jantas?
– Não.
D’ahi a pouco rodava pela estrada dos Olivaes. Já se accendera o gaz.
E inquieto, no estreito assento, accendendo nervosamente cigarettes que não
fumava, soffria já a perturbação d’aquelle encontro difficil
e doloroso… Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por «minha
senhora», se por «minha boa amiga», com uma superior indifferença.
E ao mesmo tempo sentia por ella uma compaixão indefinida, que o amollecia.
Diante d’estes seus modos regelados, via-a já toda pallida, a tremer,
com os olhos cheios d’agua. E estas lagrimas que appetecera, agora que estava
tão perto de as vêr correr, enchiam-no só de commoção
e de dó… Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria
muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para
sempre e seccamente! Poderia não lhe mandar o cheque, – affronta brutal
d’homem rico. Apesar d’embusteira era mulher, cheia de nervos, cheia de phantasia,
e amára-o talvez com desinteresse… Mas uma carta era mais digno.
E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e
precisas. Sim, devia-lhe ter dito – que se estava prompto a dar a sua vida
a uma mulher que se lhe abandonára por paixão, estava decidido
a não sacrificar nem os seus vagares a uma mulher que lhe cedera por
profissão. Era mais simples, era terminante… E depois não
a via, não teria de supportar a tortura das explicações
e das lagrimas.
Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, reflectir
um instante, mais calmamente, no silencio das rodas. O cocheiro não
ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos
deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, á maneira que reconhecia,
esbatidos na sombra, aquelles sitios onde tantas vezes passára com
o coração em festa, quando a sua paixão estava em flôr,
uma cólera nova voltava – menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que
contra essa mentira que fôra obra d’ella, e que vinha estragar irremediavelmente
o encanto divino da sua vida. Era essa mentira que agora odiava – vendo-a
como uma coisa material e tangivel, de um peso enorme, feia e côr de
ferro, esmagando-lhe o coração. Oh! Se não fosse essa
coisa pequenina e inolvidavel que estava entre elles, como um indestructivel
bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão
com a mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do outro ou
amante do outro – no fim que importava? Não era por faltar aos beijos
que lhe dera esse a consagração d’um padre, rosnada em latim
– que a sua pelle estava mais polluida por elles, ou tinha a menos frescura?
Mas havia a mentira, a mentira inicial, dita no primeiro dia em que fôra
á rua de S. Francisco, e que como um fermento podre ficava estragando
tudo d’ahi por diante, dôces conversas, silencios, passeios, sestas
no calor da quinta, murmurios de beijos morrendo entre os cortinados côr
d’ouro… Tudo manchado, tudo contaminado por aquella mentira primeira que
ella dissera sorrindo, com os seus tranquillos olhos limpidos…
Abafava. Ia a descer a vidraça que faltava a correia – quando a tipoia
parou de repente, na estrada solitaria… Abriu a portinhola. Uma mulher com
um chale pela cabeça fallava ao cocheiro.
– Melanie!
– Ah, monsieur!
Carlos saltou precipitadamente. Era já proximo da quinta, na volta
d’estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes de
piteiras resguardando campos d’olivedo. Carlos gritou ao cocheiro que seguisse
e esperasse no portão da quinta. E ficou alli, no escuro, com Melanie
encolhida no seu chale.
Que estava ella alli a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que vinha
procurar á villa uma carruagem, porque a senhora queria ir a Lisboa,
ao Ramalhete… Ella julgára a tipoia vazia.
E apertava as mãos, dando as graças, com um immenso allivio.
Ah! que felicidade, que felicidade ter elle vindo!… A senhora estava afflicta,
nem jantára, perdida de chôro. O snr. Castro Gomes apparecera
lá inesperadamente… A senhora, coitadinha, queria morrer!
Então Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera
o outro? que dissera? como se despedira?… Melanie não ouvira nada.
O Snr. Castro Gomes e a senhora tinham conversado sós no pavilhão
japonez. Á sahida é que vira o snr. Castro Gomes dizer adeus
a madame, muito socegado, muito amavel, rindo, fallando de Niniche… A senhora,
essa, parecia como morta, tão pallida! Quando o outro partiu, ia tendo
um desmaio.
Estavam proximo do portão da Toca. Carlos retrocedeu, respirando fortemente,
com o chapéo na mão. E agora todo o seu orgulho se ia sumindo
sob a violencia da sua anciedade. Queria saber! E perguntava, deixava Melanie
nas coisas dolorosas da sua paixão… Dites toujours, Melanie, dites!
Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com elle no Ramalhete, lhe confessára
tudo?…
Claramente que sabia, por isso chorava – dizia Melanie. Ah, ella bem repetira
á senhora que era melhor contar a verdade! Era muito amiga d’ella,
servia-a desde pequena, vira nascer a menina… E tinha-lh’o dito, até
já nos Olivaes!
Carlos curvava a cabeça na escuridão do muro. Melanie tinha-lh’o
dito! Assim ella e a criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que
andava presa a sua vida! E aquellas revelações de Melanie, que
suspirava com o chale sobre o rosto, abatiam os ultimos pedaços d’esse
sonho, que elle erguera tão alto, entre nuvens d’ouro. Nada restava.
Tudo jazia em estilhaços, no lodo immundo.
Um momento, com o coração cheio de fadiga, pensou em voltar
a Lisboa. Mas para além d’aquelle negro muro estava ella, perdida de
chôro, querendo morrer… E lentamente recomeçou a caminhar para
o portão.
E agora, sem resistencia nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais intimas
a Melanie. Porque é que Maria Eduarda não lhe dissera a verdade?
Melanie encolheu os hombros. Não sabia: nem a senhora sabia! Estivera
no Central como madame Gomes; alugára a casa da rua de S. Francisco
como madame Gomes; recebera-o como madame Gomes… E assim se deixára
ir, insensivelmente, conversando com elle, gostando d’elle, vindo para os
Olivaes… E depois era tarde, já não se atrevera a confessar,
toda enterrada assim na mentira, com medo do desgosto…
Mas, exclamava Carlos, nunca imaginára ella que fatalmente tudo se
descobriria um dia?
– Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a chorar.
Depois eram outras curiosidades. Ella não esperava Castro Gomes? não
suppunha que elle voltasse? não costumava fallar d’elle?…
– Oh non, monsieur, oh non!
Madame, desde que o senhor começára a ir todos os dias á
rua de S. Francisco, considerára-se para sempre desligada do snr. Castro
Gomes, nem fallava n’elle, nem queria que se fallasse… Antes d’isso a menina
chamava sempre ao snr. Castro Gomes petit ami. Agora não lhe chamava
nada. Tinham-lhe dito que já não havia petit ami…
– Ella escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ella lhe escrevia…
Sim, Melanie julgava que sim… Mas cartas indifferentes. A senhora levára
o seu escrupulo a ponto de que, desde que viera para os Olivaes, nunca mais
gastara um ceitil das quantias que lhe mandava o snr. Castro Gomes. As letras
para receber dinheiro conservava-as intactas, entregara-lh’as n’essa tarde…
Não se lembrava elle de a ter encontrado uma manhã á
porta do Monte-Pio? Pois bem! Fôra lá, com uma amiga franceza,
empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das
suas joias; tinha já outras no prégo.
Carlos parára, commovido. Mas então para que tinha ella mentido?
– Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas… Mais elle vous aime bien,
allez!
Estavam defronte do portão. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua d’acacias,
a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste.
Carlos julgou vêr mesmo a figura de Maria Eduarda, embrulhada n’uma
capa escura, de chapéo, atravessar n’essa claridade… Ouvira decerto
rodar a carruagem. Que afflicta paciencia seria a sua!
– Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.
A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no sombrio
silencio as pancadas desordenandas do seu coração. Subiu os
tres degraus de pedra – que lhe pareciam já d’uma casa estranha. Dentro,
o corredor estava deserto, com a sua lampada mourisca alumiando as panoplias
de touros… Alli ficou. Melanie, com o chale na mão, veio dizer-lhe
que a senhora estava na sala das tapeçarias…
Carlos entrou.
Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, palida, com toda
a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para
elle, arrebatou-lhe as mãos, sem poder fallar, soluçando, tremendo
toda.
Na sua terrivel perturbação, Carlos achava só esta palavra,
melancolicamente estupida:
– Não sei porque chora, não sei, não há razão
para chorar…
Ella pôde emfim balbuciar:
– Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te…
Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia vêr-te…
Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrivel… Mas escuta, não
digas nada ainda, perdôa, que eu não tenho culpa!
De novo os soluços a suffocaram. E cahiu ao canto do sofá, n’um
chôro brusco e nervoso, que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os
hombros os cabellos mal atados.
Carlos ficára diante d’ella, immovel. O seu coração parecia
parado de surpreza e de duvida, sem força para desafogar. Apenas agora
sentia quanto baixo e brutal deixar-lhe o cheque – que tinha alli na carteira
e que o enchia de vergonha… Ella ergueu o rosto, todo molhado, murmurou
com um grande esforço:
– Escuta-me!… Nem sei como hei de dizer… Oh, são tantas coisas,
são tantas coisas!… Tu não te vaes já embora, senta-te,
escuta…
Carlos puxou uma cadeira, lentamente.
– Não, aqui ao pé de mim… Para eu ter mais coragem… Por
quem és, tem pena, faze-me isso!
Elle cedeu á supplicação humilde e enternecedora dos
seus olhos arrazados d’agua: e sentou-se ao outro canto do sofá, afastado
d’ella, n’uma desconsolação infinita. Então, muito baixo,
enrouquecida pelo chôro, sem o olhar, e como n’um confessionario – Maria
começou a fallar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando,
entre grandes soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam
enterrar nas mãos a face afflicta.
A culpa não fôra d’ella! não fôra d’ella! Elle devia
ter perguntado áquelle homem que sabia toda a sua vida… Fôra
sua mãi… Era horroroso dizel-o, mas fôra por causa d’ella que
conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandez… E tinha
vivido com elle quatro annos, como sua esposa, tão fiel, tão
retirada de tudo e só occupada da sua casa, que elle ia casar com ella!
Mas morrera na guerra com os allemães, na batalha de Saint-Privat.
E ella ficára com Rosa, com a mãi já doente, sem recursos,
depois de vender tudo… Ao principio trabalhára… Em Londres tinha
procurado dar lições de piano… Tudo falhára, dois dias
vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! com fome! Ah, elle
não podia perceber o que isto era!… Quasi fôra por caridade
que as tinha repatriado para Paris… E ahi conhecera Castro Gomes. Era horrivel,
mas que havia d’ella fazer! Estava perdida…
Lentamente escorregára do sofá, cahira aos pés de Carlos.
E elle permanecia immovel, mudo, com o coração rasgado por angustias
differentes: era uma compaixão tremula por todas aquellas miserias
soffridas, dôr de mãi, trabalho procurado, fome, que lh’a tornavam
confusamente mais querida; e era o horror d’esse outro homem, o irlandez,
que surgia agora, e que lh’a tornava de repente mais maculada…
Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle, honestamente,
sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em casa.
Elle é que a forçava a andar em ceias, em noitadas…
E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos,
que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!…
– Oh não, não me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle
anciosamente. Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada…
Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não comprehendes
estas coisas… Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante
só, não voltes o rosto, tem pena de mim…
Não! elle não queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto
cheio d’agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, já
tudo n’elle começava a oscillar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciume…
E então, sem saber, a seu pezar, as suas mãos apertaram as d’ella.
Ella cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e anciosa
implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia.
Oh, dize que me perdôas! Tu és tão bom! Uma palavra só…
Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir… Mas dize
primeiro… Olha ao menos para mim como d’antes, uma só vez!…
E eram agora os seus labios que procuravam os d’elle. Então a fraqueza
em que sentia afundar-se todo o seu sêr encheu Carlos de cólera,
contra si e contra ella. Sacudiu-a brutalmente, gritou:
– Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Eu tinha-te
amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?
Largára-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cahir
sobre ella a sua queixa desesperada:
– É a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira
sómente!
Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de desmaio.
– Mas eu queria dizer-t’o, murmurou muito baixo, muito quebrado diante d’elle,
deixando cahir os braços. Eu queria dizer-t’o… Não te lembras,
n’aquelle dia em que vieste tarde, quando eu fallei da casa de campo, e que
tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: «ha
uma coisa que te quero contar…» Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas
o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo… E disseste então
que haviamos d’ir, com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo… Não
te lembras?… Foi então que me veio uma tentação! Era
não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois,
quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima,
confessar-te tudo e dizer-te: «agora, se queres, manda-me embora.»
Oh! foi mal feito, bem sei… Mas foi uma tentação, não
resisti… Se tu não fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo… Mas
mal fallaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança,
nem sei que! E além d’isso adiava aquella horrivel confissão!
Emfim, nem posso explicar, era como o céo que se abria, via-me comtigo
n’uma casa nossa… Foi uma tentação!… E depois era horrivel,
no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te «não faças
tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho…»
Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito.
Era tão bom ser assim estimada… Emfim foi um mal, foi um grande mal…
E agora ahi está, vejo-me perdida, tudo acabou!
Atirou-se para o chão, como uma creatura vencida e finda, escondendo
a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando
bruscamente até junto d’ella, tinha só a mesma recriminação,
a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia… Só os soluços
d’ella lhe respondiam.
– Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando
sabias que tu eras tudo para mim?…
Ella ergueu a cabeça fatigada:
– Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d’outro modo…
Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi dentro
de chapéo na cabeça, a perder a affeição á
pequena, a querer pagar as despezas da casa… Depois tinha remorsos, ia adiando.
Dizia «hoje não, um dia só mais de felicidade, ámanhã
será…» E assim ia indo! Emfim, nem eu sei, um horror!
Houve um silencio. E então Carlos sentiu á porta Niniche que
queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu,
pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhando
a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta: depois ficou plantada
junto d’ella, como a guarda-l’a, desconfiada, seguindo, com os seus vivos
olhos d’azeviche, Carlos que recomeçára a passear sombriamente.
Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento olhando
para aquella dôr humilhada… Todo abalado, com os labios a tremer,
murmurou:
– Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais?
Ha esta mentira horrivel sempre entre nós a separar-nos! Não
teria um unico dia de confiança e de paz…
– Nunca te menti senão n’uma coisa, e por amor de ti! disse ella gravemente
do fundo da sua prostração.
– Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso
o teu nome, falsa a tua vida toda… Nunca mais te poderia acreditar… Como
havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das tuas lagrimas?
Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de
repente seccos rebrilharam, revoltados e largos, no marmore da sua pallidez.
– Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas supplicas
são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te perder,
ter outro homem, agora que estou abandonada?…
Elle balbuciou:
– Não, não! Não é isso!
– E eu? exclamou ella, caminho para elle, dominando-o, magnifica e com um
esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar n’essa grande
paixão que me juravas? O que é que tu amavas então em
mim? Dize lá! Era a mulher d’outro, o nome, o requinte do adulterio,
as toilletes?… Ou era eu propria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor
por ti?… Eu sou a mesma, olha bem para mim!… Estes braços são
os mesmos, este peito é o mesmo… Só uma coisa é differente:
a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente
maior.
– Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.
N’um instante Maria estava cahida a seus pés, com os braços
abertos para elle.
– Juro-t’o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente,
absurdamente, até á morte!
Carlos tremia. Todo o seu sêr pendia para ella; e era um impulso irresistivel
de se deixar cahir sobre aquelle seio que arfava a seus pés, ainda
que elle fosse o abysmo da sua vida inteira… Mas outra vez a idéia
da mentira passou, regeladora. E afastou-se d’ella, levando os punhos á
cabeça, n’um desespero, revoltado contra aquella coisa pequenina e
indestructivel que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma
barra de ferro entre elle e a sua felicidade divina!
Ella ficára ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete.
Depois, no silencio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula:
– Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!…
É melhor que te vás embora… Ninguem me torna a acreditar…
Acabou tudo para mim, não tenho ninguem mais no mundo… Ámanhã
sáio d’aqui, deixo-te tudo… Has de me dar tempo para arranjar…
Depois, que hei de fazer, vou-me embora!
E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços
estirados, perdida de chôro.
Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro,
para alli cahida e abandonada, parecia já uma pobre creatura, arremessada
para fóra de todo o lar, sósinha a um canto, entre a inclemencia
do mundo… Então respeitos humanos, orgulho, dignidade humana, tudo
n’elle foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, offuscando
todas as fragilidades, a sua belleza, a sua dôr, a sua alma sublimemente
amante. Um delirio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se á sua
paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços
abertos:
– Maria, queres casar commigo?
Ella ergueu a cabeça, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas
Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para a fechar dentro
d’elles outra vez, como sua e para sempre… Então levantou-se, tropeçando
nos vestidos, veio cahir sobre o peito d’elle, cobrindo-o de beijos, entre
soluços e risos, tonta, n’um deslumbramento:
– Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos… E viver sempre, sempre comtigo?…
Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só
tua? E a pobre Rosa tambem… Não, não cases commigo, não
é possivel, não valho nada! Mas se tu queres, porque não?…
Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E
has de ser nosso amigo, meu e d’ella, que não temos ninguem no mundo…
Oh! meu Deus, meu Deus!…
Empallideceu, escorregando pesadamente entre os braços d’elle, desmaiada:
e os seus longos cabellos desprendidos rojavam o chão, tocados pelas
luz de tons d’ouro.

Capítulo V

Maria Eduarda e Carlos, que ficára essa noite nos Olivaes na sua casinhola,
acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sahir
deixára ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o Figaro. As duas
janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã
encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe
nos campos. No banco de cortiça, sob as arvores, miss Sarah costurava
preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera
n’uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de sêda e um jaquetão
de flanella, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe
a mão, brincando-lhe com os anneis, n’uma lenta caricia:
– Vamos a saber, meu amor… Decidiste, por fim? Quando queres partir?
N’essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostrára
o desejo enternecido de não alterar o plano da Italia e d’um ninho
romantico entre as flôres d’Isola-bella: sómente agora não
iam esconder a inquietação d’uma felicidade culpada, mas gozar
o repouso d’uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos
que o tinham agitado desde o dia em que cruzára Maria Eduarda no Aterro,
Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto d’um
amor sem duvidas e sem sobresaltos:
– Eu por mim abalava ámanhã. Estou sôfrego de paz. Estou
até sôfrego de preguiça… Mas tu, dize, quando queres?
Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado.
Depois, sem retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia,
chamou Rosa através da janella.
– Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas… Andam aqui
uns pardaes que ainda não almoçaram…
– Não, vem cá.
Quando ella appareceu á porta, toda de branco, córada, com uma
das ultimas rosas de verão mettida no cinto – Maria quil-a mais perto,
entre elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do
cabello, perguntou, muito séria, muito commovida, se ella gostaria
que Carlos viesse viver ver com ellas de todo e ficar alli na Toca. Os olhos
da pequena encheram-se de surpreza e de riso:
– O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?…
E ter aqui as suas malas, as suas coisas?…
Ambos murmuraram – «sim».
Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse
já, já, buscar as suas malas e as suas coisas…
– Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E
gostavas que elle fosse como o papá, e que ,andasse sempre comnosco,
e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d’elle ?
Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso
se apagára.
– Mas eu não posso gostar mais d’elle do que gósto!…
Ambos a beijaram, n’um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria
Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ella,
beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo,
depois para a mãi. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos
de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:
– Queres que te chame papá, só a ti?
– Só a mim, disse elle, fechando-a toda nos braços.
E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta, com
as mãos cheias de bolos para os pardaes.
Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e
contemplando-a profundamente, até á alma, murmurou n’um enlevo:
– És perfeita!
Ella desprendeu-se, com melancolia, d’aquella adoração que a
perturbava.
– Escuta… Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para
o nosso kiosque… Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas,
hoje és meu… Vou já ter comtigo. Leva as tuas cigarettes.
Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada
do céo cinzento… E a vida pareceu-lhe adoravel, d’uma poesia fina
e triste,assim envolta n’aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada
cantava, e que tão favoravel era para que dois corações,
desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos
ao contínuo encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.
– Vamos ter chuva, tio André, disse elle, passando junto do velho jardineiro
que aparava o buxo.
O tio André, atarantado, arrancou o chapéo. Ah! uma gota d’agua
era bem necessaria, depois da estiagem! O torrãosinho já estava
com sêde! E em casa todos bons? A senhora? A menina?
– Tudo bom, tio André, obrigado.
E no seu desejo de vêr todos em torno de si felizes como elle e como
a terra sequiosa que ia ser consolada – Carlos metteu uma libra na mão
do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre
aquele ouro extraordinario que reluziu.
Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o
divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe
uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pés, sobre o tapete, como
na humildade de uma confissão.
– Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?…
Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo…
Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pensára mesmo em
lh’a escrever n’uma carta interminavel, como nos romances. Mas decidira antes
tagarellar alli uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.
– Estás bem, não estás?
Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer revelações
pungentes para o seu coração e amargas para o seu orgulho. Mas
a confidencia da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse
toda no seu passado sentil-a-hia mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma
curiosidade insaciavel d’essas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.
– Sim, conta… Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta…
Onde nasceste tu por fim?
Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quasi
nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande
belleza. Tivera uma irmãsinha que morrera de dois annos e que se chamava
Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ella era já rapariga, não
tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memoria
das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho…
De Vienna apenas recordava confusamente largos passeios d’arvores, militares
vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava:
ás vezes durante tempos ella ficava lá só com o avô,
um velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara historias
de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se sómente
de ter atravessado um grande rumor de ruas, n’um dia de chuva, embrulhada
em pelles, sobre os joelhos d’um escudeiro. As suas primeiras memorias mais
nitidas datavam de Paris; a mamã, já viuva, andava de luto pelo
avô; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manhãs,
com um arco e com uma pélla, brincar aos Campos Elyseos. A noite costumava
vêr a mamã decotada, n’um quarto cheio de setins e de luzes;
e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sofás,
trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoiselle Triste-coeur
por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mamã mettera-a n’um convento
ao pé de Tours – porque n’essa idade, apesar de cantar já ao
piano as walsas da Belle Helène, ainda não sabia soletrar. Fôra
nos jardins do convento, onde havia lindos lilazes, que a mamã se separára
d’ella n’uma paixão de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar
decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora
fallara com veneração.
A mamã ao principio vinha vêl-a todos os mezes, demorando-se
em Tours dois, tres dias; trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas,
bonbons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permittia
usar a regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem
pelos arredores de Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam
a caleche – e tratavam a mamã por tu.. No convento as mestras, a Madre
Superiora não gostavam d’estas sahidas – nem mesmo que a mamã
viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruido das suas
sêdas; ao mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe Madame la Comtesse.
A mamã era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava
o bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial
na face e alludia risonhamente a son excellente mère. Depois a mamã
começou a apparecer menos em Tours. Esteve um anno longe, quasi sem
escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e
ficou toda a manhã abraçada a ella a chorar.
Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira,
com dois grandes galgos brancos, annunciando uma romagem poetica á
Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ella tinha então quasi dezeseis
annos: pela sua applicação, os seus modos dôces e graves,
ganhára a affeição da Madre Superiora – que ás
vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabello cahido em duas tranças
segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado.
Le monde, dizia ella, ne vous sera bon à rien, mon enfant!… Um dia,
porém, appareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame
de Chavigny, fidalga pobre, de caracoes brancos, que era como uma estampa
de severidade e de virtude.
O que ella chorára ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse
o que ía encontrar em Paris!
A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo
– mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias
de sêda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliario de França,
conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas
de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante.
Ella recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny,
que ficára como sua dama de companhia, ia com ella cedo ao Bois n’um
coupé estufo de douairière. Pouco a pouco, porém, este
grande verniz começou a estalar. A pobre mamã cahira sob o jugo
d’um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua seducção pessoal
e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descahiu rapidamente
n’uma bohemia mal dourada e ruidosa. Quando ella madrugava, com os seus habitos
saudaveis do convento, encontrava paletots d’homens por cima dos sofás:
no marmore das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de champagne;
e n’algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d’um baccarat talhado
á claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente
gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mamã estirada
no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lagrimas,
«que tinha havido uma desgraça»…
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d’Antin. Ahi
começou a apparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos
de grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam
para dentro das mangas os punhos enxovalhados… Por vezes entre esta malta
vinha algum gentleman que não tirava o paletot, como n’um café-concerto.
Um d’esses foi um irlandez, muito moço, Mac-Gren… Madame de Champigny
deixára-as desde que faltára o coupé severo, acolchoado
de setim; e ella, só com a mãi, insensivelmente, fatalmente,
fôra-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de baccarat.
A mamã chamava a Mac-Gren o «bébé». Era com
effeito uma criança estouvada e feliz. Namorára-se d’ella logo
com o ardor, a effusão, o impeto d’um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a
sua esposa apenas se emancipasse – porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo
das liberalidades de uma avó excentrica e rica que o adorava, e que
habitava a Provença n’uma vasta quinta onde tinha feras em jaulas…
E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com elle, desesperado de a vêr
entre aquelles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leval-a
para Fontainebleau, para um cottage com trepadeiras de que fallava sempre,
e esperar ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil libras
de renda. Decerto, era uma situação falsa: mas preferivel a
permanecer n’aquelle meio depravado e brutal onde ella a cada instante córava…
A esse tempo a mamã parcela ir perdendo todo o senso, desarranjada
de nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes estonteavam-n’a;
brigava com as criadas; bebia champagne «pour s’étourdir».
Para satisfazer as exigencias de Mr. de Trevernnes empenhára as suas
joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes d’elle. Por fim houve uma
penhora: uma noite tiveram d’enfardelar á pressa roupa n’um sacco,
e ir dormir a um hotel. E, peor, peor que tudo! Mr. de Trevernnes começava
a olhar para ella d’um modo que a assustava…
– Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as mãos.
Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos d’elle.
Depois limpando as lagrimas que a ennevoavam:
– Ahi estão as cartas de Mac-Gren, n’esse cofre… Tenho-as guardado
sempre para me justificar a mim mesma, se me é possível… Pede-me
em todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas
juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua indulgencia…
Mil promessas! E era sincero… Que queres que te diga? A mamã uma
manhã partiu com uma sucia para Baden. Fiquei em Paris só, n’um
hotel… Tinha um palpite, um terror que Trevernnes apparecia… E eu só!
Estava tão transtornada que pensei em comprar um rewolver… Mas quem
veio foi Mac-Gren.
E partira com elle, sem precipitação, como sua esposa, levando
todas as suas malas. A mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau,
desvairada e tragica, amaldiçoando Mac-Gren, ameaçando-o com
a prisão de Mazas, querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar. Mac-Gren,
como um bébé, agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem.
A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração,
já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos da sua alma».
Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada de Baden»,
já com o plano de vir installar-se no cottage, viver junto d’elles
n’uma felicidade calma e nobre de avósinha… Era em maio; Mac-Gren,
á noite, deitou um «fogo preso» no jardim.
Começou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mamã
vivesse com elles socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava pensativa,
dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergulhava no torvelinho
de Paris, d’onde resurgia uma manhã, n’um fiacre, estremunhada e afflicta,
com uma rica pelliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos…
Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade desde então fôra legitimar
a sua união. Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril
da avó. Era um perfeito bébé! Entretinha as manhãs
a caçar passaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso:
ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No começo da primavera
a mamã um dia appareceu em Fontainebleau com as suas malas, succumbida,
enojada da vida. Rompera emfim com Trevernnes. Mas quasi immediatamente se
consolou: e começou d’ahi a adorar Mac-Gren com uma tão larga
effusão de caricias, e achando-o tão lindo, que era ás
vezes embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac,
jogando o bezigue.
De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e apesar
das supplicas d’ellas, corrêra a alistar-se no batalhão de Zuavos
de Charette; a avó de resto approvára este rasgo d’amor pela
França, e fizera-lhe n’uma carta em verso, em que celebrava Jeanne
d’Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho.
Ella, sem lhe largar o leito, mal attendia ás noticias da guerra. Sabia
apenas confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã
a mamã rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitulara
em Sédan, o imperador estava prisioneiro! «É o fim de
tudo, é o fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ella
veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar
n’um portão, diante do tumulto d’um povo em delirio, acclamando, cantando
a Marselheza, em torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera,
com um cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado,
disse-lhe que o povo fôra buscar Rochefort á prisão e
que estava, proclamada a Republica.
Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias d’infinito sobresalto.
Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida
de repente, sombria, prostrada n’uma cadeira, murmurando apenas: «É
o fim de tudo, é o fim de tudo!» E parecia na verdade o fim da
França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados
em wagons de gado, internados a todo o vapor para os presidios d’Allemanha;
os prussianos marchando sobre Paris… Não podiam permanecer em Fontainebleau;
o duro inverno começava; e com o que venderam á pressa, com
o dinheiro que Mac-Gren deixara, partiram para Londres.
Fôra uma exigencia da mamã. E em Londres ella, desorientada na
enorme e estranha cidade, doente tambem, deixára-se levar pelas tontas
idéas da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros
de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã fallava em organisar alli
o centro de resistencia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada
pensava em crear uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos…
Os imperialistas, sem imperio, não jogavam já o baccarat. E
ellas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquella
dispendiosa casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco libras
no fundo d’uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milhão
de prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, até
as pelliças. Alugaram então, no bairro pobre de Soho, tres quartos
mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitaria tristeza;
uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvões humidos
fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e
cerveja da esquina. Por fim faltára mesmo o escasso shilling para pagar
o lodging. A mamã não sahia do catre, doente, succumbida, chorando.
Ella ás vezes ao anoitecer, escondida n’um water-proof, levava ao prégo
embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas!) para que
ao menos não faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que
a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d’Or
ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n’um bocado de papel, alguma
meia-libra que tinha o pavoroso sabor d’uma esmola. Uma noite, um sabbado
de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã, perdera-se,
errára na vasta Londres n’uma treva amarelada, a tiritar de frio, quasi
com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a alcool. Para lhes fugir
atirou-se para dentro d’um cab que a levou a casa. Mas não tinha um
penny para pagar ao cocheiro; e a patrôa roncava no seu cacifro, bebeda.
O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo na porta rompeu a chorar.
Então o cocheiro desceu da almofada, commovido, offereceu-se para a
levar de graça ao prégo, onde ajustariam as suas contas. Foi;
o pobre homem só aceitou um schilling; até mesmo suppondo-a
franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos, e teimou em lhe offerecer
uma bebida.
Ella no emtanto procurava uma occupação qualquer costura, bordados,
traducções, cópias de manuscriptos… Não achava
nada. N’aquelle duro inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma
multidão de francezes, pobres como ella, luctando pelo pão…
A mamã não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrivel
que as suas lagrimas – eram as suas allusões constantes á facilidade
de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se é nova e
se é bonita…
– Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as mãos
amargamente.
Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos.
– Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cêrco
acabou. Paris estava de novo aberto… Sómente a difficuldade era voltar.
– Como voltaste?
Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrára um amigo de Mac-Gren,
outro irlandez, que muitas vezes jantára com elles em Fontainebleau.
Veio vêl-as a Soho; diante d’aquella miseria, do bule de chá
aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas, começou,
como bom irlandez, por accusar o governo d’Inglaterra e jurar uma desforra
de sangue. Depois offereceu, com os beiços já a tremer, toda
a sua dedicação. O pobre rapaz batia tambem o lagedo n’uma lucta
tormentosa pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo generosamente, armado
de todos os seus ardis, a conquistar através de Londres o pouco que
ellas necessitavam para recolher a França. Com effeito appareceu n’essa
mesma noite, derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma garrafa
de champagne. A mamã ao vêr, depois de tantos mezes de chá
preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de ouro – quasi desmaiou,
de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estação
de Charing-Cross, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo
os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat…
– Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho.
Mas tudo estava ainda em confusão… Quasi immediatamente veio a Communa…
Pódes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas emfim já
não era Londres, nem o inverno, nem o exilio. Estavamos em Paris, soffriamos
de companhia com amigos d’outros tempos. Já não parecia tão
terrivel… Com todas estas privações a pobre Rosa começava
a definhar… Era um supplicio vêl-a perder as côres, tristinha,
mal vestida, mettida n’uma trapeira… A mamã já se queixava
da doença de coração que a matou… O trabalho que eu
encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não
morrer absolutamente de necessidade… Principiei a adoecer de anciedade,
de desespero. Luctei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se
não tivesse outro regimen, bom ar, algum conforto… Conheci então
Castro Gomes em casa d’uma antiga amiga da mamã, que não perdera
nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava trabalhos de costura…
E o resto sábel-o… Nem eu me lembro… Fui levada… Via ás
vezes Rosa, coitadinha, embrulhada n’um chale, muito quietinha ao seu canto,
depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome…
Não pôde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos
de Carlos. E elle na sua emoção só lhe podia dizer, passando-lhe
as mãos tremulas pelos cabellos, que a havia de desforrar bem de todas
as miserias passadas…
– Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha só uma coisa
mais que te quero dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de
Rosa! É que n’estas duas relações que tive o meu coração
conservou-se adormecido… Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar
nada, até que te vi… E ainda te quero dizer outra coisa…
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passára os braços em torno
de Carlos, pendurada toda d’elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi
mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo
o seu sêr:
– Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu
sempre frio, frio como um marmore…
Elle estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus labios ficaram collados muito
tempo, em silencio, completando, n’uma emoção nova e quasi virginal,
a communhão perfeita das suas almas.

D’ahi a dias Carlos e Ega vinham n’uma victoria, pela estrada dos Olivaes,
em caminho da Toca.
Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera emfim contando ao Ega
o impulso de paixão que o lançára de novo e para sempre,
como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absoluta que
o prendia ao Ega, revelára-lhe mesmo miudamente a historia d’ella,
dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propoz que fossem comer
as sopas á Toca. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim
começou a passar devagar a escova pelo paletot, murmurando, como durante
as longas confidencias de Carlos: «É prodigioso!… Que estranha
coisa, a vida!»
E agora pela estrada, na aragem doce do rio, Carlos fallava ainda de Maria,
da vida na Toca deixando escapar do coração muito cheio o interminavel
cantico da sua felicidade.
– É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!
– E cá na Toca ainda ninguem sabe nada?
Ninguem – a não ser Melanie, a confidente – suspeitava a profunda alteração
que se fizera nas suas relações: e tinham assentado que miss
Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam régiamente
recompensados e despedidos quando em fins de outubro elles partissem para
Italia.
– E ides então casar a Roma?…
– Sim… Em qualquer logar onde haja um altar e uma estola. Isso não
falta em Italia… E é então, Ega, que reapparece o espinho
de toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quasi.»
O terrivel espinho, o avô! – É verdade, o velho Affonso. Tu não
tens idéa como lhe has de fazer conhecer esse caso?…
Carlos não tinha idéa nenhuma. Sentia só que lhe faltava
absolutamente a coragem de dizer ao avô: «esta mulher, com quem
vou casar, teve na sua vida estes erros»… E além d’isso, já
reflectira, era inutil. O avô nunca comprehenderia os motivos complicados,
fataes, inilludiveis que tinham arrastado Maria. Se lh’os contasse miudamente
o avô veria alli um romance confuso e fragil, antipathico á sua
natureza forte e candida. A fealdade das culpas feril-o-hia, exclusivamente;
e não lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das
causas. Para perceber este caso d’um caracter nobre apanhado dentro d’uma
implacavel rede de fatalidades, seria necessario um espirito mais ductil,
mais mundano que o do avô… O velho Affonso era um bloco de granito:
não se podiam esperar d’elle as subtis discriminações
d’um casuista moderno. Da existencia de Maria só veria o facto tangivel:
– cahira successivamente nos braços de dois homens. E d’ahi decorreria
toda a sua attitude de chefe de familia. Para que havia elle pois de fazer
ao velho uma confissão, que necessariamente originaria um conflicto
de sentimentos e uma irreparavel separação domestica?…
– Pois não te parece, Ega?
– Falla mais baixo, olha o cocheiro.
– Não percebe bem o portuguez, sobretudo o nosso estylo… Pois não
te parece?
Ega raspava phosphoros na sola para accender o charuto. E resmungava:
– Sim, o velho Affonso é granitico…
Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao
avô o passado de Maria – e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam
secretamente em Italia. Regressavam: ella para a rua de S. Francisco, elle
filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avô a casa da sua
boa amiga, que conhecera em Italia, M. de Mac-Gren. Para o prender logo lá
estavam os encantos de Maria, todas as graças d’um interior delicado
e sério, jantarinhos perfeitos, idéas justas, Chopin, Beethoven,
etc. E, para completar a conquista de quem tão enternecidamente adorava
crianças, lá estava Rosa… Emfim, quando o avô estivesse
namorado de Maria, da pequena, de tudo – elle, uma manhã, dizia-lhe
francamente: «Esta creatura superior e adoravel teve uma quéda
no seu passado; mas eu casei com ella; e, sendo tal como é, não
fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô,
perante esta terrível irremediabilidade do facto consummado, com toda
a sua indulgencia de velho enternecido a defender Maria – seria o primeiro
a pensar que, se esse casamento não era o melhor segundo as regras
do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do coração…
– Pois não te parece, Ega?
Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo,
adoptára para com o avô a complicada combinação
que Maria Eduarda tentára para com elle – e imitava sem o sentir os
subtis raciocinios d’ella.
– E acabou-se, continuava Carlos. Se elle na sua indulgencia aceitar tudo,
bravo! dá-se uma grande festa no Ramalhete… Senão, foi-se!
passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a superioridade
de duas coisas excellentes: o avô as tradições do sangue,
eu os direitos do coração.
E, vendo o Ega ainda silencioso:
– Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de idéas,
homem!
O outro sacudiu a cabeça, como despertando.
– Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nós
somos dois homens fallando como homens!… Então aqui está:
teu avô tem quasi oitenta annos, tu tens vinte e sete ou o quer que
seja… É doloroso dizel-o, ninguem o diz com mais dôr que eu,
mas teu avô ha de morrer… Pois bem, espera até lá. Não
cases. Suppõe que ella tem um pae muito velho, teimoso e caturra, que
detesta o snr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera; continua a vir
á Toca, na tipoia do Mulato; e deixa teu avô acabar a sua velhice
calma, sem desillusões e sem desgostos…
Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da victoria. Nunca, n’esses
dias de inquietação, lhe acudira idéa tão sensata,
tão facil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao
pobre avô toda a dôr?… Maria de certo, como mulher, estava desejando
anciosamente a conversão do amante no marido pelo laço d’estola
que tudo purifica e nenhuma força desata. Mas ella mesma preferiria
uma consagração legal – que não fosse assim precipitada,
dissimulada… Depois, tão recta e generosa, comprehenderia bem a obrigação
suprema de não mortificar aquelle santo velho. De resto, não
conhecia ella a sua lealdade solida e pura como um diamante? Recebera a sua
palavra: desde esse momento estavam casados, não diante do sacrario
e nos registos da sacristia – mas diante da honra e na inabalavel communhão
dos seus corações…
– Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens immensamente
razão! Essa idéa é genial! Devo esperar… E emquanto
espero?…
– Como, emquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso não é
commigo!
E mais sério:
– Emquanto esperas tens esse metal vil que faz a existencia nobre. Installas
tua mulher, porque desde hoje é tua mulher, aqui nos Olivaes ou n’outro
sitio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua mulher…
E deixas-te ir! Nada impede que façaes essa viagem nupcial á
Italia… Voltas, continúas a fumar a tua cigarette e a deixar-te ir.
Este é o bom senso: é assim que pensaria o grande Sancho Pansa…
Que diabo tens tu n’aquelle embrulho que cheira tão bem?
– Um ananaz… Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. É
uma idéa!
Uma idéa! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com
effeito enredar-se n’uma meada de amarguras domesticas, por um excesso de
cavalheirismo romantico? Maria confiava n’elle; era rico, era moço;
o mundo abria-se ante elles facil e cheio de indulgencias. Não tinha
senão a deixar-se ir.
– Tens razão, Ega ! E Maria é a primeira a achar isto cheio
de senso e d’opportunismo. Eu tenho uma certa pena em adiar a installação
da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avô
seja feliz… E para celebrar o advento d’esta idéa, Deus queira que
Maria nos tenha um bom jantar!
Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria
Eduarda. Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella não poderia
occultar – certa que, como confidente de Carlos, elle conhecia a sua vida,
as suas miserias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso
hesitára em vir á Toca. Mas tambem, não apparecer mais
a Maria Eduarda seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso
de não molestar o seu pudor… Por isso decidira «dar o mergulho
d’uma vez». Quem, senão elle, deveria ser o mais apressado em
estender a mão á noiva de Carlos?… Além d’isso tinha
uma infinita curiosidade de vêr no seu interior, á sua mesa,
essa creatura tão bella, com a sua graça nobre de Deusa moderna!
Mas saltou da victoria muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada
nos degraus do jardim. Teve um sobresalto, córou toda, com effeito,
ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monoculo: o aperto de mão
que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos, alegremente, desembrulhára
o ananaz – e na admiração d’elle todo o constrangimento se dissipou.
– Oh! é magnifico!
– Que côr, que luxo de tons!
– E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltára á Toca desde a noite fatal da soirée
dos Cohens em que elle alli tanto bebera e delirára tanto. E lembrou
logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo d’um temporal, o grog
do Craft, a ceia de perú…
– Já aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!…
– Por causa de Margarida?
– Por quem se ha de soffrer n’este apaixonado mundo, minha senhora, senão
por Margarida ou por Fausto?
Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já
com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só
viesse assim á Toca no fim do verão e no fim das flôres.
Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste
de museu! Já alli se podia palrar livremente!
– Isto é um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror á
arte! É um Ibero, é um Semita…
Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo não
podia viver n’uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica
de antepassados com cabelleira…
– Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram
antes a ligeireza, o espirito, a graça de maneiras…
– V. exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados,
esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita… Nada!
nós vivemos n’uma Democracia! E não ha para exprimir a alegria
simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas
de marroquim, e o mogno envernizado!…
Assim n’uma risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram
ao jardim.
Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na
mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe
sôfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaixára a cortar
um geranio, exprimiu a Carlos n’um gesto mudo a sua admiração
por aquelle beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta…
Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava.
Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia
branca. Pediu-lhe um beijo. Ella exigiu primeiro, muito séria, que
ella tirasse o vidro do olho.
– Mas é para te vêr melhor! é para te vêr melhor!…
– Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me
vês metade…
Encantadora! Encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada
e impudente. Maria resplandecia.
E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo á sopa,
fallando-se de campo e d’um chalet que elle desejava construir em Cintra,
nos Capuchos, dissera – «quando nos casarmos». E Ega alludiu a
esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria. Agora que
Carlos se installava para sempre n’uma felicidade estavel (dizia elle) era
necessario trabalhar! E relembrou então a sua velha idéa do
Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse a litteratura, educasse
o gosto, elevasse a política, fizesse a civilisação,
remoçasse o carunchoso Portugal… Carlos, pelo seu espirito, pela
sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar
a direcção d’este movimento. E que profunda alegria para o velho
Affonso da Maia!
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida
toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella
união mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.
– Tem razão, tem bem razão! exclamava ella com ardor.
– Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nós! Como muito
bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz não tem
pessoal… Como ha de tel-o, se nós, que possuimos as aptidões,
nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos
atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biographia
d’um atomo!… No fim, este dilettantismo é absurdo. Clamamos por ahi,
em botequins e livros, «que o paiz é uma choldra». Mas
que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer
ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas idéas?… V. exc.ª
não conhece este paiz, minha senhora. É admiravel! É
uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está
em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas,
banaes, toscas, reles, rotineiras… É necessario pôl-a em mãos
d’artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!…
Carlos ria, preparando n’uma travessa o ananaz com sumo de laranja e vinho
da Madeira. Mas Maria não queria que elle risse. A idéa do Ega
parecia-lhe superior, inspirada n’um alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia
ella, d’aquella preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cerrado de
affeição serena, queria-o vêr trabalhar, mostrar-se, dominar…
– Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou.
E agora…
Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de enthusiasmo.
Oh que maravilha! Oh que delicia!
– Como fazes tu isto? Com Madeira…
– E genio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me
se tudo o que eu pudesse fazer pela civilisação valeria este
prato de ananaz! É para estas coisas que eu vivo! Eu não nasci
para fazer civilisação…
– Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flôres d’essa planta da civilisação
que a multidão rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino!
Não, não! Maria não queria que fallassem assim!
– Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos, devia
inspiral-o…
Ega protestou requebrando o olho, já languido. Se Carlos necessitava
uma musa inspiradota e benefica não podia ser elle, bicho com barbas
e bacharel em leis… A musa estava toute trouvée!
– Ah, com effeito!… Quantas paginas bellas, quantas nobres idéas
se náo podem produzir n’um paraiso d’estes!…
E o seu gesto molle e acariciador indicava a Toca, a quietação
dos arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um
nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos á porta do
jardim vendo nascer a lua – Ega declarou que, desde o começo do jantar,
estava com idéas de casar!… Realmente não havia nada como
o casamento, o interior, o ninho…
– Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto, que
quasi todo um anno da minha vida foi dado áquella israelita devassa
que gosta de levar bordoada…
– Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos.
– Ensopa-se na crapula. Não ha a menor duvida que dá todo o
seu coração ao Damaso… Tu sabes o que n’estes casos significa
o termo coracão… Viste já immundicie igual? É simplesmente
obscena!
– E tu adóral-a, disse Carlos.
O outro não respondeu. Depois, dentro, n’um odio repentino da bohemia
e do romantismo, entoou louvores sonoros á família, ao trabalho,
aos altos deveres humanos – bebendo copinhos de cognac. Á meia noite,
ao sahir, tropeçou duas vezes na rua d’acacias, já vago, citando
Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a victoria, que elle quiz
descoberta para ir communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço
para lhe fallar da Revista, d’um forte vento de espiritualidade e de virtude
viril que se devia fazer soprar sobre o paiz… Por fim, já estirado
no assento, tirando o chapéo á aragem da noite:
– E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas a ingleza… Ha vicios
deliciosos n’aquellas pestanas baixas… Vê se m’a arranjas… Vá
lá, bate lá, cocheiro! Caramba, que belleza de noite!

Carlos ficára encantado com este primeiro jantar d’amizade na Toca.
Elle tencionava não apresentar Maria aos seus intimos senão
depois de casado e á volta de Italia. Mas agora a «união
legal» estava já no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa
no vago. Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir… E no emtanto, Maria
e elle não poderiam isolar-se alli todo um longo inverno, sem o calor
sociavel d’alguns amigos em redor. Por isso uma manhã, encontrando
o Cruges, que fôra o visinho de Maria e outr’ora lhe dava noticias da
«lady ingleza», pediu-lhe para vir jantar á Toca no domingo.
O maestro appareceu n’uma tipóia, á tardinha, de laço
branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e
Ega começaram logo a enchel-o de mal-estar. Toda a mulher, além
das Lolas e Conchas, o atarantava, o emmudecia: Maria, «com o seu porte
de grande-dame», como elle dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou
diante d’ella, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras.
Antes de jantar, por lembrança de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta.
O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos,
fazia esforços anciosos por murmurar algum elogio «á belleza
do sitio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente coisas reles,
em calão: «vista catita»! «é pitada»!
Depois ficava furioso, coberto de suor, sem comprehender como se lhe babavam
dos labios esses ditos abominaveis, tão contrarios ao seu gosto fino
d’artista. Quando se sentou á mesa soffria um negrissimo accesso de
spleen e mudez! Nem uma controversia que Maria arranjára caridosamente
para elle sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os labios empedernidos.
Carlos ainda tentou envolvel-o na alegria da mesa – contando a ida a Cintra,
quando elle procurava Maria na Lawrence, e em vez d’ella achára uma
matrona obesa, de bigode, de cãosinho ao collo, ralhando com o homem
em hespanhol. Mas a cada exclamação de Carlos – «Lembras-te,
Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» – o maestro,
rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar alli, ao lado de Maria,
como um trambolho funebre. Estragou o jantar. Combinára-se para depois
do café um passeio pelos arredores, n’um break. E Carlos já
tomára as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas – quando
Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o paletot.
N’esse mesmo momento sentiram um trote de cavallo na estrada – e appareceu
o marquez.
Foi uma surpreza para Carlos, que o não vira durante esse verão.
O marquez parou logo, tirando profundamente, ao vêr Maria, o seu largo
chapéo desabado.
– Imaginava-o pela Gollegã! exclamou Carlos. Foi até o Cruges
que me disse… Quando chegou vossê?
Chegára na vespera. La fôra ao Ramalhete; tudo deserto. Agora
vinha aos Olivaes vêr um dos Vargas que tinha casado, se installára
alli perto, a passar o noivado…
– Quem, o gordo, o das corridas?
– Não, o magro, o das regatas.
Carlos, debruçado da almofada, examinava a egoasita do marquez, pequena,
bem estampada, d’um baio escuro e bonito.
– Isso é novo?
– Uma facasita do Darque… Quer-m’a vossê comprar? Sou já um
pouco pesado para ella, e isto mette-se a um dog-cart…
– Dê lá uma volta.
O marquez deu a volta, bem posto na sella, avantajando a egoa. Carlos achou-lhe
«boas acções». Maria murmurou – «Muito bonita,
uma cabeça fina…» Então Carlos apresentou o marquez
de Souzella a madame Mac-Gren. Elle chegou a egoa á roda, descoberto,
para apertar a mão a Maria: e á espera do Ega que se eternisava
lá dentro, ficaram fallando do verão, de Santa Olavia, dos Olivaes,
da Toca… Ha que tempos o marquez alli não passava! A ultima vez fôra
victima da excentricidade do Craft…
– Imagine v. exc.ª, disse elle a Maria Eduarda, que esse Craft me convida
a almoçar. Venho, e o hortelão diz-me que o snr. Craft, criado
e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o snr. Craft deixára
um cartaz na sala… Vou á sala, e vejo dependurado ao pescoço
d’um idolo japonez uma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos:
«O deus Tchi tem a honra de convidar o snr. marquez, em nome de seu
amo ausente, a passar á sala de jantar onde encontrará, n’um
aparador, queijo e vinho, que é o almoço que basta ao homem
forte.» E foi com effeito o meu almoço… Para não estar
só, partilhei-o com o hortelão.
– Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.
– Póde crêr, minha senhora… Convidei-o a jantar, e quando elle
appareceu, vindo d’aqui da Toca, o meu guarda-portão disse-lhe que
o snr. marquez fôra para longe, e que não havia nem pão
nem queijo… Resultado: o Craft mandou-me uma duzia de magnificas garrafas
de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a vêr…
O deus Tchi la estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou
o marquez a revisitar n’essa noite, á volta da casa do Vargas, o seu
velho amigo Tchi.
O marquez veio, ás dez horas – e foi um serão encantador. Conseguiu
sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com mão de ferro
para o piano; Maria cantou; palrou-se com graça; e aquelle escondrijo
d’amor ficou alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.
Estas reuniões alegres foram ao principio, como dizia o Ega, dominicaes:
mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as arvores da Toca, e Carlos
accumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade,
domingos e quintas. Tinha descoberto uma admiravel cozinheira alsaciana, educada
nas grandes tradições, que servira o bispo de Strasburgo, e
a quem as extravagancias d’um filho e outras desgraças tinham arrojado
a Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantares
uma sciencia delicada: o dia de vir á Toca era considerado pelo marquez
«dia de civilisação».
A mesa resplandecia; e as tapeçarias representando massas d’arvoredos
punham em redor como a sombra escura d’um retiro silvestre onde por um capricho
se tivessem accendido candelabros de prata. Os vinhos sahiam da frasqueira
preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do céo se grulhava
com phantasia – menos de «politica portugueza», considerada conversa
indecorosa entre pessoas de gosto.
Rosa apparecia ao café, exhalando do seu sorriso, dos bracinhos nús,
dos vestidos brancos tufados sobre as meias de sêda preta, um bom aroma
de flôr. O marquez adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria
em casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ella preferia o
marquez: achava o Ega «muito…» – e completava o seu pensamento
com um gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega «era
muito retorcido».
– Ahi está! exclamava elle. Porque eu sou mais civilisado que o outro!
É a simplicidade não comprehendendo o requinte.
– Não, desgraçado! exclamavam do lado. É porque és
impresso!… É a natureza repellindo a convenção!…
Bebia-se á saude de Maria: ella sorria, feliz entre os seus novos amigos,
divinamente bella, quasi sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia
o incomparavel esplendor do seu collo.
Depois organisaram-se solemnidades. N’um domingo, em que os sinos repicavam
e a distancia foguetes esfuziavam no ar – Ega lamentou que os seus austeros
principios philosophicos o impedissem de festejar tambem aquelle santo d’aldeia,
que fôra decerto em vida um caturra encantador, cheio d’illusões
e doçura… Mas de resto, acrescentou, não teria sido n’um dia
assim, fino e secco, sob um grande céo cheio de sol, que se feriu a
batalha das Thermopylas? Porque não se atiraria uma girandola de foguetes
em honra de Leonidas e dos trezentos? E atirou-se a girandola pela eterna
gloria de Sparta.
Depois celebraram-se outras datas historicas. O anniversario da descoberta
da Venus de Milo foi commemorado com um balão que ardeu. N’outra occasião
o marquez trouxe de Lisboa, apinhados n’uma tipoia, fadistas famosos, o Pintado,
o Vira-vira e o Gago: e depois de jantar, até tarde, com o luar sobre
o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.
Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãs no
kiosque japonez – affeiçoados áquelle primeiro retiro dos seus
amores, pequeno e apertado, onde os seus corações batiam mais
perto um do outro. Em logar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as
suas formosas colchas da India, côr de palha e côr de perola.
Um dos maiores cuidados d’elle, agora, era embellezar a Toca: nunca voltava
de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança,
como noivo feliz que aperfeiçôa o seu ninho.
Maria no emtanto não cessava de lembrar os planos intellectuaes do
Ega: queria que elle trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho intimo
d’ella, e sobretudo a alegria suprema do avô. Para a contentar (mais
que para satisfazer as suas necessidades de espirito) Carlos recomeçára
a compôr alguns dos seus artigos de medicina litteraria para a Gazeta
Medica. Trabalhava no kiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos,
livros, o seu famoso manuscripto da Medicina antiga e moderna. E por fim achára
um grande encanto em estar alli, com um leve casaco de sêda, as suas
cigarettes ao lado, um fresco murmurio de arvoredo em redor – cinzelando as
suas phrases, emquanto ella ao lado bordava silenciosa. As suas idéas
surgiam com mais originalidade, a sua fórma ganhava em colorido, n’aquelle
estreito kiosque assetinado que ella perfumava com a sua presença.
Maria respeitava este trabalho como coisa nobre e sagrada. De manhã,
ella mesma espanejava os livros do leve pó que a aragem soprava pela
janella; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente pennas novas; e andava
bordando uma almofada de pennas e setim para que o trabalhador estivesse mais
confortavel na sua vasta cadeira de couro lavrado.
Um dia offerecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, enthusiasmado com
a letra d’ella, quasi comparavel á lendaria letra do Damaso, occupava-a
agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um trabalho a que
ella se associava. Quantos cuidados se dava a dôce creatura! Tinha para
isso um papel especial, d’um tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar,
ia desenrolando as pesadas considerações de Carlos sobre o Vitalismo
e o Transformismo na graça delicada d’uma renda… Um beijo pagava-a
de tudo.
As vezes Carlos dava lições a Rosa – ora de historia, contando-lh’a
familiarmente como um conto de fadas; ora de geographia, interessando-a pelas
terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruinas
dos santuarios. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda,
cheia de religião, escutava aquelle sêr bem-amado ensinando sua
filha. Deixava escapar das mãos o trabalho – e o interesse de Carlos,
a enlevada atenção de Rosa sentada aos pés d’elle, bebendo
aquellas bellas historias de Joanna d’Arc ou das caravellas que foram á
India, fazia resplandecer nos seus olhos uma nevoa de lagrimas felizes…

Desde o meado d’outubro Affonso da Maia fallava da sua partida de Santa Olavia,
retardada apenas por algumas obras que começára na parte velha
da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paixão de
edificar – sentindo-se remoçar, como elle dizia, no contacto das madeiras
novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam tambem em abandonar
os Olivaes. Carlos não poderia por dever domestico permanecer alli
installado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além d’isso
aquelle fim d’outono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucolica,
com a quinta desfolhada e alagada, uma nevoa sobre o rio, e um fogão
unico no gabinete de cretones – além da sumptuosa chaminé da
sala de jantar, que, por entre os seus Nubios d’olhos de crystal, solfava
uma fumaraça odiosa quando o Domingos a tentava accender.
N’uma d’essas manhãs, Carlos, que ficára até tarde com
Maria, e depois no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de
vento e agua desencadeado de madrugada – ergueu-se ás nove horas, veio
á Toca. As janellas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas;
a manhã clareára; a quinta lavada, meio despida, no ar fino
e azul, tinha uma linda e silenciosa graça d’inverno. Carlos passeava,
olhando os vasos onde os chrysanthemos floriam, quando retiniu a sineta do
portão. Era o toque do carteiro. Justamente elle escrevera dias antes
ao Cruges, perguntando se estaria desoccupado para os primeiros frios de dezembro
o andar da rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir,
acompanhado por Niniche. Mas o correio, n’essa manhã, consistia apenas
n’uma carta do Ega e dois numeros de jornal cintados – um para elle, outro
para «Madame Castro Gomes, na quinta do snr. Craft, aos Olivaes».
Caminhando sob as acacias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da vespera, com
a data «á noite, á pressa». E dizia: «- Lê,
n’esse trapo que te «mando, esse superior pedaço de prosa que
lembra Tacito. Mas não te «assustes; eu supprimi, mediante pecunia,
toda a tiragem, com excepção «de dois numeros mais que
foram, um para a Toca, outro (oh «logica suprema dos habitos constitucionaes!)
para o Paço, para o chefe do «Estado!… Mas esse mesmo não
chegará ao seu destino. Em todo o caso «desconfio de que esgôto
sahiu esse enxurro e precisamos providenciar! «Vem já! Espero-te
até ás duas. E, como Iago dizia a Cassio – mette dinheiro na
bolsa.»
Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta do Diabo: e na impressão,
no papel, na abundancia dos italicos, no typo gasto, todo elle revelava immundicie
e malandrice. Logo na primeira pagina duas cruzes a lapis marcavam um artigo
que Carlos, n’um relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: «-
Ora viva, sô Maia! «Então já se não vai ao
consultorio, nem se vêem os doentes do bairro, «sô janota?
– Esta piada era botada no Chiado, á porta da «Havaneza, ao Maia,
ao Maia dos cavallos inglezes, um tal Maia do «Ramalhete, que abarrota
por ahi de catita; e o pai Paulino que «tem olho e que passava n’essa
occasião ouviu a seguinte «cornetada: – É que o sô
Maia acha que é mais «quente viver nas fraldas d’uma brazileira
casada, que nem é «brazileira nem é casada, e a quem o
papalvo poz casa, ahi para o lado dos «Olivaes, para estar ao fresco!
Sempre os ha n’este mundo!… Pensa «o homem que botou conquista; e
cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o «que a gaja lhe quer
não são os lindos olhos, são as lindas louras… «O
simplorio, que bate ahi pilecas bifes, que nem que fosse o «marquez,
o verdadeiro Marquez, imaginava que se estava «abiscoitando com uma
senhora do chic, e do boulevard de Paris, e «casada, e titular!… E
no fim (não, esta é para a gente deixar estoirar o «bandulho
a rir!) no fim descobre-se que a typa era uma cocotte «safada, que trouxe
para ahi um brazileiro já farto d’ella para a «passar cá,
aos bellos lusitanos… E cahiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! «Ainda
assim o sô Maia só apanhou os restos d’outro, porque a «typa
já antes d’elle se enfeitar, tinha pandegado á larga, «ahi
para a rua de S. Francisco com um rapaz da fina, que se safou «tambem,
porque cá como nós só aprecia a bella hespanhola. Mas
«não obsta a que o sô Maia seja traste! – Pois se assim
é, dissemos «nós, cautelinha, porque o diabo cá
tem a sua Corneta preparada «para cornetear por esse mundo as façanhas
do Maia das «conquistas. Ora viva,sô Maia!»
Carlos ficou immovel entre as acacias, com o jornal na mão, no espanto
furioso e mudo d’um homem que subitamente recebe na face uma grossa chapada
de lôdo! Não era a cólera de vêr o seu amor assim
aviltado na publicidade chula d’um jornal sordido: era o horror de sentir
aquellas phrases em calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa
as póde crear, pingando fetidamente, á maneira de sebo, sobre
si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua paixão… Sentia-se todo
emporcalhado. E uma unica idéa surgiu através da sua confusão
matar o bruto que escrevera aquillo.
Matal-o! Ega sustára a tiragem da folha, Ega pois conhecia o folliculario.
Nada importava que aquelles numeros, que tinha na mão, fossem os unicos
impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse espalhada nas praças
n’uma profusa publicidade ou lhe fosse atirada só a elle escondidamente
n’um papel unico, era igual… Quem tanto ousára tinha de cahir, esmagado!
Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos à janella da cozinha areava
pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe fallou de ir buscar um calhambeque
aos Olivaes, o bom Domingos consultou o relogio:
– V. exc.ª tem às onze horas a caleche do Torto que a senhora
mandou cá estar para ir a Lisboa…
Carlos, com effeito, recordou-se que Maria na vespera planeára ir á
Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente n’esse dia em que elle
precisava ficar livre – elle e a sua bengala! Mas Melanie, passando então
com um jarro d’agua quente, disse que a senhora ainda se não vestira,
que talvez nem fosse a Lisboa… E Carlos recomeçou a passear, no tapete
de relva, entre as nogueiras.
Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a Corneta sobrescriptada
para Maria, releu lentamente a prosa immunda: e, n’esse numero que lhe fôra
destinado a ella, todo aquelle calão lhe pareceu mais ultrajante, intoleravel,
punível só com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre
uma mulher, quieta, innoffensiva no silencio da sua casa, alguem ousasse tão
brutalmente arremessar esse lôdo ás mãos cheias! E a sua
indignação alargava-se do folliculario que babára aquillo
– até á sociedade que, na sua decomposição, produzira
o folliculario. Decerto toda a cidade soffria a sua vermina… Mas só
Lisboa, só a horrivel Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu
rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bom
gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.
E, no meio d’esta alta cólera de moralista, uma dôr perpassava,
precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sordido
n’este canto do mundo – mas, em summa, havia no artigo da Corneta uma calumnia?
Não. Era o passado de Maria, que ella arrancára de si como um
vestido rôto e sujo, que elle mesmo enterrára muito fundo, deitando-lhe
por cima o seu amor e o seu nome – e que alguem desenterrava para o mostrar
bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões… E isto agora
ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ella suspenso.
Debalde elle perdoára, debalde elle esquecera. O mundo em redor sabia.
E a todo o tempo o interesse ou a perversidade podefiam refazer o artigo da
Corneta.
Ergueu-se, abalado. E então alli, sob essas arvores desfolhadas, onde
durante o verão, quando ellas se enchiam de sombra e de murmurio, elle
passeára com Maria, esposa eleita da sua vida – Carlos perguntou pela
vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos
homens de quem descendia, a dignidade dos homens que d’elle descendessem lhe
permittiam em verdade casar com ella…
Dedicar-lhe toda a sua affeição, toda a sua fortuna, certamente!
Mas casar… E se tivesse um filho? O seu filho, já homem, altivo e
puro, poderia um dia lêr n’uma Corneta do Diabo que sua mãi fôra
amante d’um brazileiro, depois de ser amante d’um irlandez. E se seu filho
lhe viesse gritar, n’uma bella indignação, «é uma
calumnia?» – elle teria de baixar a cabeça, marmurar – «é
uma verdade!» E seu filho veria para sempre collada a si aquella mãi
de quem o mundo ignorava os martyrios e os encantos – mas de quem conhecia
cruelmente os erros.
E ella mesma! Se elle appellasse para a sua razão, alta e tão
recta, mostrando-lhe as zombarias e as affrontas de que uma vil Corneta do
Diabo poderia um dia trespassar o filho que d’elles nascesse – ella mesma
o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela
escadinha secreta forrada de velludo côr de cereja, comtanto que em
cima a esperasse um amor constante e forte… Nunca ella tornára, em
todo o verão, a alludir a uma união differente d’essa em que
os seus corações viviam tão lealmente, tão confortavelmente.
Não, Maria não era uma devota, preoccupada «do peccado
mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?…
Sim; mas elle que lhe pedira essa consagração na hora mais commovida
do seu longo amor, iria dizer-lhe agora – «foi uma criancice, não
pensemos mais n’isso, desculpa?» Não; nem o seu coração
o desejava! Antes pendia todo para ella… Pendia todo para ella, n’um enternecimento
mais generoso e mais quente – emquanto a sua razão assim arengava,
cautelosa e austera. Elle tinha n’aquella alma o seu culto perfeito, n’aquelles
braços a sua voluptuosidade magnifica; fóra d’alli não
havia felicidade; a unica sabedoria era prender-se a ella pelo derradeiro
elo, o mais forte, o seu nome, embora as Cornetas do Diabo atroassem todo
o ar. E assim affrontaria o mundo n’uma soberba revolta, affirmando a omnipotencia,
o reino unico da Paixão… Mas primeiro mataria o folliculario! – Passeava,
esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se resolviam por fim em furia
contra o infame que babára sobre o seu amor, e durante um instante
introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento!
Maria ao lado abriu a janella. Estava vestida d’escuro para sahir; e bastou
o brilho terno do seu sorriso, aquelles hombros a que o estofo justo modelava
a belleza cheia e quente – para que Carlos detestasse logo as duvidas desleaes
e covardes, a que se abandonára um momento sob as arvores desfolhadas…
Correu para ella. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade d’um
perdão que se implora.
– Que tens tu, que estás tão sério?
Elle sorriu. Sério, no sentido de solemne, não estava. Talvez
seccado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicações
do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda a noite…
– Toda a noite? exclamou ella com um desapontamento, pousando-lhe as mãos
sobre os hombros.
– Sim, é bem possivel, um horror! Nos negocios do Ega ha fatalmente
o inesperado… Tu com effeito vaes a Lisboa?
– Agora, com mais razão… Se me queres.
– O dia esta bonito… Mas ha de fazer frio na estrada.
Maria justamente gostava d’esses dias d’inverno, cheios de sol, com um arzinho
vivo e arripiado. Tornavam-n’a mais leve, mais esperta.
– Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoço, minha
filha… O pobre Ega deve estar a uivar de impaciencia.
Emquanto Maria correra a apressar o Domingos – Carlos, através da relva
humida, foi ainda lentamente até ao renque baixo d’arbustos que d’aquelle
lado fechava a Toca como uma sebe. Ahi a colina descia, com quintarolas, muros
brancos, olivedos, uma grande chaminé de fabrica que fumegava: para
além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, d’um azul mais
carregado, com a casaria branca da povoação aninhada á
beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar macio. Parou um momento,
olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e
feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de socego e de obscuridade,
n’um canto assim do mundo, á beira d’agua, onde ninguem o conhecesse
nem houvesse Cornetas do Diabo, e elle pudesse ter a paz d’um simples e d’um
pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem amava…
Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se debruçára
a apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.
– Que lindo tempo para viajar, Maria! – disse Carlos chegando, através
da relva.
– Lisboa é tambem muito linda, agora, havendo sol…
– Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas, todos
os horrores… A mim está-me positivamente a appetecer uma cubata na
Africa!
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche
do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite.
Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupé que trepava n’um
trote esfalfado. Maria julgou avistar n’elle de relance o chapéo branco
e o monoculo do Ega… Pararam. E era com effeito o Ega, que reconhecera tambem
a caleche da Toca, vinha já saltitando as lamas com longas pernadas
de cegonha, chamando por Carlos.
Ao vêr Maria ficou atrapalhado:
– Que bella surpreza! Eu ia para lá… Vi o dia tão bonito disse
commigo…
– Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega,
com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d’aquella brusca chegada
aos Olivaes.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado,
sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, começou,
sob os olhos de Carlos que o não deixavam, a fallar do inverno, das
inundações do Riba-Tejo… Maria lêra. Uma desgraça,
duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, uma grande
miseria! Por fim Carlos não se conteve:
– Eu lá recebi a tua carta…
Ega acudiu:
– Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com effeito eu não
vim senão por um sentimento bucolico…
Muito discretamente Maria olhára para o rio. Ega fez então um
gesto rapido com os dedos significando «dinheiro, só questão
de dinheiro». Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos inundados do
Riba-Tejo e do sarau litterario e artistico que em beneficio d’elles se «ia
commetter» no salão da Trindade… Era uma vasta solenidade oficial.
Tenores do parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com o habito
de S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo ia
entrar em fogo. Os reis assistiam, já se teciam grinaldas de camelias
para pendurar na sala. Elle, apesar de demagogo, fôra convidado para
lêr um episodio das Memorias d’um Atomo: recusára-se, por modestia,
por não encontrar nas Memorias nada tão suficientemente palerma
que agradasse á capital. Mas lembrára o Cruges; e o maestro
ia ribombar ou arrulhar uma das suas Meditações. Além
d’isso havia uma poesia social pelo Alencar. Emfim, tudo prenunciava uma immensa
orgia…
– E a snr.ª D. Maria, acrescentou elle, devia ir!… É summamente
pittoresco. Tinha v. exc.ª occasião de vêr todo o Portugal
romantico e liberal, à la besogne, engravatado de branco, dando tudo
que tem n’alma!
– Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca,
se o Alencar recita, é uma festa nossa…
– Pois está claro! gritou Ega, procurando o monoculo, já excitado.
Ha duas coisas que é necessario vêr em Lisboa… Uma procissão
do Senhor dos Passos e um sarau poetico!
Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que
parasse no começo da rua do Alecrim: elles apeavam-se e tomavam de
lá o americano para o Ramalhete.
Mas a tipoia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente
d’uma loja de alfaiate. E n’esse instante achava-se ahi parado, calçando
as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas d’apostolo, todo vestido
de luto. Ao vêr Maria, que se inclinára á portinhola,
o homem pareceu assombrado; depois, com uma leve côr na face larga e
pallida, fitou gravemente o chapéo, um immenso chapéo de abas
recurvas, á moda de 1830, carregado de crepe.
– Quem é? perguntou Carlos.
– É o tio do Damaso, o Guimarães, disse Maria, que córára
tambem. É, curioso, elle aqui!
Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rappel, o intimo de Gambetta!
Carlos recordava-se de ter já encontrado aquelle patriarcha no Price
com o Alencar. Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com uma gravidade
maior o seu sombrio chapéo de carbonario. Ega entalára vivamente
o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que ajudava a governar
a França: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche já
subia a rua do Alecrim e elles atravessavam para o Hotel Central, ainda se
voltou seduzido por aquelles modos, aquellas barbas austeras de revolucionario…
– Bom typo! E que magnifico chapéo, hein! D’onde diabo o conhece a
snr.ª D. Maria?
– De Paris… Este Mr. Guimarães era muito da mãi d’ella. A
Maria já me tinha fallado n’elle. É um pobre diabo. Nem amigo
de Gambetta, nem coisa nenhuma… Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para
o Rappel, e morre de fome…
– Mas então, o Damaso?
– O Damaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso…
Essa immundicie que me mandaste, a Corneta Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a historia da immundicie. Fôra
na vespera á tarde que recebera no Ramalhete a Corneta?. Elle já
conhecia o papelucho, já privára mesmo com o proprietario e
redactor – o Palma, chamado Palma Cavallão para se distinguir d’outro
benemerito chamado Palma Cavallinho. Comprehendeu logo que se a prosa era
do Palma a inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos,
nem de Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da Toca… Não
era natural que escrevesse por deleite intellectual um documento que só
lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fôra-lhe simplesmente
encommendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro.
Por este solido principio correra a procurar o Palma Cavallão no seu
antro.
– Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.
Tanto não… Fui perguntar á secretaria da Justiça a
um sujeito que esteve associado com elle n’um negocio de Almanachs religiosos…
Fôra pois ao antro. E encontrára as coisas dispostas pelas mãos
habeis d’uma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou
seis numeros, a machina, esfalfada na pratica d’aquellas maroteiras, desmanchára-se.
Além d’isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encommendára
o artigo, por divergencia na seriissima questão de pecunia. De sorte
que apenas elle propôz comprar a tiragem do jornal – o jornalista estendeu
logo a mão larga, d’unhas roídas, tremendo de reconhecimento
e de esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais
dez…
– É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, não
regateei bastante… E emquanto a dizer quem é o cavalheiro que encommendou
o artigo, o Palma, coitado, affirma que tem uma rapariga hespanhola a sustentar,
que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está carissima,
que a litteratura n’este desgraçado paiz…
– Quanto quer elle?
– Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a policia, talvez desça
a quarenta.
– Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome… Quem te
parece que seja?
Ega encolheu os hombros, deu um risco lento no chão com a bengala.
E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da Corneta devia
ser alguem familiar com Castro Gomes; alguem frequentador da rua de S. Francisco;
alguem conhecedor da Toca; alguem que tinha, por ciume ou vingança,
um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguem que sabia a historia de Maria;
e emfim alguem que era um covarde…
– Estás a descrever o Damaso! exclamou Carlos, pallido e parando.
Ega encolheu de novo os hombros, tornou a riscar o chão:
– Talvez não… Quem sabe! Emfim, nós vamos averigual-o com
certeza, porque, para terminar a negociação, fiquei de me ir
encontrar com o Palma ás tres horas no Lisbonense… E o melhor é
vires tambem. Trazes tu dinheiro?
– Se fôr o Damaso, mato-o! murmurou Carlos.
E não trazia sufficiente dinheiro. Tomaram uma tipoia para correr ao
escriptorio do Villaça. O procurador fôra a Mafra, a um baptisado.
Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avô.
Quando perto das quatro horas se apearam á entrada do Lisbonense, no
largo de Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquetão de velludo
coçado e calça de casimira clara collado á côxa,
accendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mão a Carlos – que
lhe não tocou. E Palma Cavallão, sem se offender, com a mão
abandonada no ar, declarou que ia justamente sahir, cançado já
de esperar em cima diante d’um grog frio. De resto sentia que o snr. Maia
se incommodasse em vir alli…
– Eu arranjava cá o negociosinho com o amigo Ega… Em todo o caso,
se os senhores querem, vamos lá p’ra cima para um gabinete, que se
está mais á vontade, e toma-se outra bebida.
Subindo a escada lobrega, Carlos recordava-se de ter já visto aquella
luneta de vidros grossos, aquella cara balofa côr de cidra… Sim, fôra
em Cintra, com o Eusebiosinho e duas hespanholas, n’esse dia em que elle farejára
pelas estradas silenciosas, como um cão abandonado, procurando Maria!…
Isto tornou-lhe mais odioso o snr. Palma. Em cima entraram n’um cubiculo,
com uma janella gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguão.
Na toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um
galheteiro que tinha moscas no azeite. O snr. Palma bateu as palmas, mandou
vir genebra. Depois dando um grande puxão ás calças:
– Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu já disse
cá ao amigo Ega, em todo este negocio…
Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala
na borda da mesa.
– Vamos ao ponto essencial… Quanto quer o snr. Palma por me dizer quem lhe
encommendou o artigo da Corneta?
– Dizer quem o encommendou, e proval-o! acudiu o Ega, que examinava na parede
uma gravura onde havia mulheres núas á beira d’agua. Não
nos basta o nome… O amigo Palma, está claro, é de toda a confiança…
Mas emfim, que diabo, não é natural que nós acreditassemos
se o amigo nos dissesse que tinha sido o snr. D. Luiz de Bragança!
Palma encolheu os hombros. Está visto que havia de dar provas. Elle
podia ter outros defeitos, trapalhão não! Em negocios era todo
franqueza e lisura… E, se se entendessem, alli as entregava logo, essas
provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e d’escachar! Tinha a
carta do amigo que lhe encommendára a piada: a lista das pessoas a
quem se devia mandar a Corneta: o rascunho do artigo a lapis…
– Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso, ageitando as lunetas com os dedos molles.
Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e então o redactor da
Corneta offereceu a «bebida» rasgadamente, puxou mesmo cadeiras
para aquelles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram – Carlos de pé
junto da mesa onde terminára por pousar a bengala, Ega passando a outra
gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado sahiu,
Ega acercou-se, tocou com bonhomia no hombro do jornalista:
– Cem mil reis são uma linda somma, Palma amigo! E olhe que se lhe
offerecem por delicadeza comsigo. Porque artiguinhos como este da Corneta
apresentados na Boa-Hora, levam á grilheta!… Está claro, este
caso é outro, vossê não teve intenção d’offender;
mas levam á grilheta!… Foi assim que o Severino marchou para a Africa.
Alli no porãosinho d’um navio, com ração de marujo e
chibatadas. Desagradavel, muito desagradavel. Por isso eu quiz que tratassemos
isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de assucar dentro
do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era
por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis…
Immediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras,
que começou a deixar cahir em silencio uma a uma dentro d’um prato.
E Palma Cavallão, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão,
sacou uma carteira onde reluzia um pesado monogramma de prata sob uma enorme
corôa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu
tres papeis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monoculo sôfrego,
teve um brado de triumpho. Reconhecera a letra do Damaso!
Carlos examinou os papeis lentamente. Era uma carta do Damaso ao Palma, curta
e em calão, remettendo o artigo, recommendando-lhe «que o apimentasse».
Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Damaso, com entrelinhas.
Era a lista, escripta pelo Damaso, das pessoas que deviam receber a Corneta:
vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brazil, D. Maria da Cunha, El-Rei,
todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias authoridades, e a Fancelli prima-donna…
Palma no emtanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato
onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os
olhos aos documentos por cima do hombro de Carlos:
– Recolha o bago, amigo Palma! Negocios são negocios, e o baguinho
está ahi a arrefecer!
Então, ao palpar o ouro, Palma Cavallão commoveu-se. Palavra,
caramba, se soubesse que se tratava d’um cavalheiro como o snr. Maia não
tinha aceitado o artigo! Mas então!… Fôra o Eusebio Silveira,
rapaz amigo, que lhe viera fallar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lérias,
e que era uma brincadeira, e que o Maia não se importava, e isto e
aquillo, e muita promessa… Emfim deixára-se tentar. E tanto o Salcede
como o Silveira se tinham portado pulhamente.
– Foi uma sorte que se escangalhasse a machina! Senão estava agora
entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas acabou-se!
O mal não foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca da vida.
Vivamente, com um olhar, recontára o dinheiro na palma da mão:
depois esvaziou a genebra, d’um trago consolado e ruidoso. Carlos guardára
as cartas do Damaso, levantava já o fecho da porta. Mas voltou-se ainda,
n’uma derradeira averiguação:
– Então esse meu amigo Eusebio Silveira tambem se metteu no negocio?…
O snr. Palma, muito lealmente, afiançou que o Eusebio lhe fallára
apenas em nome do Damaso!
– O Eusebio, coitado, veio só como embaixador… Que o Damaso e eu
não vamos muito na mesma bola. Ficámos exquisitos, desde uma
péga em casa da Biscainha. Aqui p’ra nós, eu prometti-lhe dois
estalos na cara, e elle embuchou. Passados tempos tornámos a fallar,
quando eu fazia o High-life na Verdade. Elle veio-me pedir com bons modos,
em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile
d’annos… Depois, quando o Damaso fez tambem annos, eu dei outra piadita.
Elle pagou a ceia, ficámos mais calhados… Mas é traste…
E lá o Eusebiosinho, coitado, veio só d’embaixador.
Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cubiculo.
O redactor da Corneta ainda baixou a cabeça para a porta; depois, sem
se offender, voltou alegremente á genebra, dando outro puxão
ás calças. Ega no emtanto accendia devagar o charuto.
– Vossê agora é que redige o jornal todo, Palma?
– O Silvestre, tambem…
– Que Silvestre?
– O que está com a Pingada. Vossê não conhece, creio eu.
Um rapazola magro, que não é feio… Semsaborão, escreve
uma palhada… Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa
de Gabellas, que elle chama a sua cabelluda… Que o Silvestre ás vezes
tem graça! E sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos,
amigações, pulhices… Vossê nunca leu nada d’elle? Chôcho.
Tenho sempre de lhe arranjar o estylo… N’este numero é que havia
um folhetimzito meu, catita, cá á moderna, como eu gósto,
alli com a piadinha realista a bater… Emfim fica para outra vez. E outra
coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quando quizer, eu e a Corneta ás
ordens!
Ega estendeu-lhe a mão:
– Obrigado, digno Palma! E adiós!
– Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito homem
com infinito salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
– E agora? perguntou Ega, á portinhola.
– Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso…
Carlos já esboçára summariamente o plano d’essa liquidação.
Queria mandar desafiar o Damaso como author comprovado d’um artigo de jornal
que o injuriava. O duello devia ser á espada ou ao florete, um d’esses
ferros cujo lampejo, na sala d’armas do Ramalhete, fazia empallidecer o Damaso.
Se contra toda a verosimilhança elle se batesse, Carlos fazia-lhe algures,
entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse mezes na cama. Senão
a unica explicação que Carlos aceitaria do snr. Salcede seria
um documento em que elle escrevesse esta coisa simples: «Eu abaixo assignado
declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contava
com o Ega.
– Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando
as mãos, faiscando de jubilo.
No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e lembrou
o Cruges, moço passivo e malleavel. Mas era impossivel encontrar o
maestro, porque invariavelmente a criada affirmava que o menino Victorino
não estava em casa… Decidiram ir ao Gremio, mandar de lá um
bilhete chamando o Cruges – «para um caso urgente d’amizade e d’arte».
– Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as mãos emquanto
a tipoia trotava para a rua de S. Francisco, com quê, demolir o nosso
Damaso?
– Sim, é necessario acabar com esta perseguição. Chega
a ser ridiculo… E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado
por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar
os termos d’uma carta forte…
– Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por elle
na sala das Illustrações. O conde de Gouvarinho e Steinbroken
conversavam de pé, no vão d’uma janella. E foi uma surpreza.
O ministro da Filandia abriu os braços para o cher Maia, que elle não
vira desde a partida d’Affonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega
risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre elles se formára
n’esse verão, em Cintra: mas o aperto de mão a Carlos foi sêcco
e curto. Já dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho
murmurára de leve e de passagem «um como está, Maia?»
em que se sentia arrefecimento. Ah! ja não eram essas effusões,
essas palmadas enternecidas pelos hombros, dos tempos em que Carlos e a condessa
fumavam cigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandonára
a snr.ª condessa de Gouvarinho, a rua de S. Marçal e o commodo
sofá em que ella cahia com um rumor de saias amarrotadas – o marido
amuava, como abandonado tambem.
– Tenho tido saudade das nossas bellas discussões em Cintra! disse
elle, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr’ora pertencia ao
Maia. Tivemol-as de primeira ordem!
Eram realmente «pégas tremendas» no pateo do Victor sobre
litteratura, sobre religião, sobre moral… Uma noite mesmo tinham-se
zangado por causa da divindade de Jesus.
– É verdade! acudiu o Ega. Vossê n’essa noite parecia ter ás
costas uma opa de irmão do Senhor dos Passos!
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não, graças
a Deus! Ninguem melhor do que elle sabia que n’esses sublimes episodios do
Evangelho reinava bastante lenda… Mas emfim eram lendas que serviam para
consolar a alma humana. É o que elle objectára n’essa noite
ao amigo Ega… Sentiam-se a philosophia e o racionalismo capazes de consolar
a mãi que chora? Não. Então…
-Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o relogio. E,
eu confesso, uma discussão elevada sobre religião, sobre metaphysica,
encanta-me… Se a politica me deixasse vagares dedicava-me á philosophia…
Nasci para isso, para aprofundar problemas.
Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobre-casaca azul, com um raminho
d’alecrim ao peito, tomára as mãos de Carlos:
– Mais vous êtes encore devenu plus fort!… Et Affonso da Maia, toujours
dans ses terres?… Est-ce qu’on ne va pas le voir un peu cet hiver?
E immediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas quê!
a familia real installára-se em Cintra; elle fôra forçado
a acompanhal-a, fazer a sua côrte… Depois necessitára ir de
fugida a Inglaterra d’onde acabava de chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Illustrada…
– Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable,
très aimable pour moi à la Gazette…
Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade
particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta affeição
sincera que liga Portugal e a Filandia… «Mais enfin on avait été
charmant, charmant!…»
– Seulement- ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem para o
Gouvarinho – on a fait une petite erreur… On a dit que j’étais venu
de Southampton par le Royal Mail… Ce n’est pas vrai, non! Je me suis embarqué
à Bordeaux dans les Messageries. J’ai même pensé à
écrire à Mr. Pinto, redacteur de la Gazette, qui est un charmant
garçon… Puis, j’ai reflechi, je me suis dit: «Mon Dieu, on
va croire que je veux donner une leçon d’exactitude à la Gazette
c’est très grave… » Alors, voilà, très prudemment,
j’ai gardé le silence… Mais enfin c’est une erreur: je me suis embarqué
à Bordeaux.
Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse facto.
O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por
polidez, quc a Historia se não incommodasse. E então o Gouvarinho,
que accendêra o charuto, espreitára outra vez o relogio, perguntou
se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da crise.
Foi uma surpreza para ambos, que não tinham lido os jornaes… Mas,
exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as camaras
fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo d’outono?
O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera, á
noitinha, uma reunião de ministros; n’essa manhã o presidente
do conselho fôra ao paço, fardado, determinado a «largar
o poder»… Não sabia mais. Não conferenciára com
os seus amigos, nem mesmo fôra ao seu Centro. Como n’outras occasiões
de crise, conservára-se retirado, calado, esperando… Alli estivera
toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriotica…
– Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem…
– Exactamente por isso, acudiu o conde com uma côr viva na face, não
desejo pôr-me em evidencia… Tenho o meu orgulho, talvez motivos para
o ter… Se a minha experiencia, a minha palavra, o meu nome são necessarios,
os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham pedir-m’os…
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas
politicas, começou logo a retrahir-se para o fundo da janella, limpando
os vidros da luneta, recolhido, já impenetravel, no grande recato neutral
que competia á Filandia. Ega no emtanto não sahia do seu espanto.
Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria nas camaras, socego
no paiz, o apoio do exercito, a benção da Igreja, a protecção
do Comptoir d’Escompte?…
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pera, e murmurou esta razão:
– O ministerio estava gasto.
– Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.
O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria… Sebo subentendia
obtusidade… Ora n’este ministerio sobrava o talento. Incontestavelmente
havia lá talentos pujantes…
– Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. É
extraordinario! N’este abençoado paiz todos os politicos têm
immenso talento. A opposição confessa sempre que os ministros,
que ella cobre d’injurias, têm, á parte os disparates que fazem,
um talento de primeira ordem! Por outro lado a maioria admitte que a opposição,
a quem ella constantemente recrimina pelos disparates que fez, está
cheia de robustissimos talentos! De resto todo o mundo concorda que o paiz
é uma choldra. E resulta portanto este facto supra-comico: um paiz
governado com immenso talento, que é de todos na Europa, segundo o
consenso unanime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a vêr:
que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!
O conde sorria com bonhomia e superioridade a estes exageros de phantasista.
E Carlos, ancioso por ser amavel, atalhou, accendendo o charuto no d’elle:
– Que pasta preferiria você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem?
A dos Estrangeiros, está claro…
O conde fez um largo gesto d’abnegação. Era pouco natural que
os seus amigos necessitassem da sua experiencia politica. Elle tornára-se
sobretudo um homem d’estudo e de theoria. Além d’isso não sabia
bem se as occupações da sua casa, a sua saude, os seus habitos
lhe permittiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta
dos Estrangeiros não o tentava…
– Essa, nunca! proseguiu elle, muito compenetrado. Para se poder fallar d’alto
na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessario ter por traz
um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos. Nós,
infelizmente, somos fracos… E eu, para papeis subalternos, para que venha
um Bismarck, um Gladstone, dizer-me «ha de ser assim», não
estou!… Pois não acha, Steinbroken?
O ministro tossiu, balbuciou:
– Certainement… C’est très grave… C’est excessivement grave…
Ega então affirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geographico
pela Africa, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado…
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
– Sim, talvez… Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colonias todas as coisas
bellas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já
os escravos; deu-se-lhes já uma sufficiente noção da
moral christã; organisaram-se já os serviços aduaneiros…
Emfim o melhor está feito. Em todo o caso ha ainda detalhes interessantes
a terminar… Por exemplo, em Loanda… Menciono isto apenas como um pormenor,
um retoque mais de progresso soa dar. Em Loanda precisava-se bem um theatro
normal como elemento civilisador!
N’esse momento um criado veio annunciar a Carlos – que o snr. Cruges estava
em baixo, no portal, á espera. Immediatamente os dois amigos desceram.
– Extraordinario, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.
– E este, observou Carlos com um immenso desdem de mundano, é um dos
melhores que ha na politica. Pensando mesmo bem, e mettendo a roupa branca
em linha de conta, este é talvez o melhor.
Acharam o Cruges á porta, de jaquetão claro, embrulhando um
cigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca
preta. O maestro arregalava os olhos.
– É jantar?
– É enterro.
E rapidamente, sem alludir a Maria, contaram ao maestro que o Damaso publicára
n’um jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragem elles tinham supprimido, não
sendo possivel por isso mostrar o numero immundo) um artigo em que a coisa
mais dôce que se chamava a Carlos era pulha. Portanto Ega e elle Cruges
iam a casa do Damaso pedir-lhe a honra ou a vida.
– Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?… Que eu d’essas coisas não
entendo.
– Tens, explicou Ega, d’ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobr’olho.
Depois vir commigo; não dizer nada; tratar o Damaso por «v. exc.ª»;
assentar em tudo o que eu propuzer; e nunca desfranzir o sobr’olho nem despir
a sobrecasaca…
Sem outra observaçáo, Cruges partiu a cobrir-se de ceremonia
e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu:
– Ó Carlos, olha que eu fallei lá em casa. Os quartos do primeiro
andar estão livres, e forrados de papel novo…
– Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!… O maestro abalára, quando
diante do Gremio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Telles
da Gama que, ainda com a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois
amigos:
– O Gouvarinho? está lá em cima?
– Está… Novidade fresca?
– Os homens cahiram. Foi chamado o Sá Nunes!
E enfiou pelo pateo, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar até
ao portão do Cruges. As janellas do primeiro andar estavem abertas,
sem cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensava n’essa tarde
das corridas em que elle viera no phaeton, de Belem, para vêr aquellas
janellas: ia então escurecendo, por traz dos stores fechados surgira
uma luz, elle contemplára-a como uma estrella inaccessivel… Como
tudo passa!
Retrocederam para o Gremio. Justamente o Gouvarinho e Telles atiravam-se á
pressa para dentro da caleche que esperára. Ega parou, deixou cahir
os braços:
– Lá vae o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a
Dama das Camelias no sertão! Deus se amerceie de nós!
Mas o Cruges appareceu emfim de chapéo alto, entalado n’uma sobrecasaca
solemne, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipoia estreita
e dura. Carlos ia leval-os a casa do Damaso. E como queria ainda jantar nos
Olivaes, esperaria por elles, para saber o resultado «do chinfrin»,
no jardim da Estrella, junto ao coreto.
– Sêde rapidos e medonhos!

A casa do Damaso, velha e d’um andar só tinha um enorme portão
verde, com um arame pendente que fez resoar dentro uma sineta triste de convento
e os dois amigos esperaram muito antes que apparecesse, arrastando as chinelas,
o gallego achavascado que o Damaso (agora livre de Carlos e das suas pompas)
já não trazia torturado em botins crueis de verniz. A um canto
do pateo uma portinha abria sobre a luz d’um quintal, que parecia ser um deposito
de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.
O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha
esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a môfo. Depois, batendo
o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade d’uma porta entreaberta.
Quasi immediatamente Damaso gritou de lá:
– Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!…
Eu estou-me a vestir…
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta effusão, Ega
ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:
– Não tem duvida, nós esperamos…
O Damaso insistia, á porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensorios:
– Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já
estou de calças!
– Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar.
A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era exactamente
igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vestigios
da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a cavallo, n’um vistoso
caixilho de flôres em faiança: uma das colchas da India das senhoras
Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes:
e sobre um contador hespanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de setim de
mulher, novo, que o Damaso comprára no Serra, por ter ouvido um dia
a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve apparecer, discretamente
disposta, alguma reliquia d’amor…»
Sob estes retoques de chic, dados á pressa sob a influencia do Maia,
impertigava-se a sólida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo
azul; a console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana acariciava
um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no caixilho uma fila
de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites para soirées.
E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do Damaso
soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante
do canapé de velludo, teso, commodo, com o seu chapéo alto na
mão.
Ao vêl-o, o bom Damaso, que se abotoára todo n’uma sobrecasaca
azul, florida por um botão de camelia, atirou risonhamente os braços
ao ar:
– Então esta é que é a pessoa de ceremonia? Sempre vocês
têm coisas! E eu a pôr sobrecasaca… Por pouco que não
lhe afinfo com o habito de Christo!…
Ega atalhou, muito sério:
– O Cruges não é de ceremonia, mas o motivo que aqui nos traz
é delicado e grave, Damaso.
Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n’aquelle estranho modo dos seus
amigos, ambos de negro, seccos, tão solemnes. E recuou, todo o sorriso
se lhe apagou na face.
– Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês…
A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado á borda d’uma poltrona baixa,
junto d’uma mesa coberta d’encadernações ricas, com as mãos
nos joelhos, ficou esperando, n’uma anciedade.
– Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso amigo Carlos
da Maia…
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso até á
risca do cabello encaracolado a ferro. E não achou uma palavra, attonito,
suffocado, esfregando estupidamente os joelhos.
Ega proseguiu, lento, direito no canapé:
– O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou fez
publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma senhora das
relações d’elle na Corneta do Diabo…
– Na Corneta, eu? acudiu o Damaso, balbuciando. Que Corneta? Nunca escrevi
em jornaes, graças a Deus! Ora essa, a Corneta!…
Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio collocal-os
um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico volume da Biblia
de Doré.
– Aqui está a sua carta remettendo ao Palma Cavallão o rascunho
do artigo… Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas
a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até á Fancelli…
Além d’isso nós temos as declarações do Palma.
O Damaso é não só o inspirador, mas materialmente o auctor
do artigo… O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma
reparação pelas armas…
Damaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado – que involuntariamente
Ega recuou, no receio d’uma brutalidade. Mas já o Damaso estava no
meio da sala, esgazeado, com os braços tremulos no ar:
– Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?… Que lhe fiz eu? Elle
a mim é que me pregou uma partida!… Foi elle, vocês sabem perfeitamente
que foi elle!…
E desabafou, n’um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito,
com os olhos marejados de lagrimas. Fôra Carlos, Carlos, que o desfeitiára
a elle, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o perseguido para que elle
o apresentasse a uma senhora brazileira muito chic, que vivia em Paris, e
que lhe fazia olho… E elle, bondoso como era, promettia, dizia: «Deixa
estar, eu te apresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma
occasião sagrada, um momento de luto, quando elle Damaso fôra
ao Norte por causa da morte do tio, e mette-se dentro da casa da brazileira…
E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a elle,
Damaso, que era intimo do marido, intimo de tu! Caramba, elle que devia mandar
desafiar Carlos! Mas não! fôra prudente, evitára o escandalo
por causa do snr. Affonso da Maia… Queixára-se de Carlos, é
verdade… Mas no Gremio, na Casa Havaneza, entre rapaziada amiga… E no
fim Carlos préga-lhe uma d’estas!
– Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!…
Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente
que se desviavam do ponto vivo da questão. O Damaso concebera, rascunhára,
pagára o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia negar:
as provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham além d’isso
a declaração do Palma…
– Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n’outra rajada d’indignação
que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos moveis. Esse descarado
do Palma! Com esse é que eu me quero vêr!… Lá a questão
com o Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos…
Com o Palma é que é! Esse traidor é que eu quero rachar!
Um homem a quem eu tenho dado ás meias libras, aos sete mil reis! E
ceias, e tipoias! Um ladrão que pediu o relogio ao Zeferino para figurar
n’um baptisado, e pôl-o no prégo!… E faz-me uma d’estas!…
Mas hei de escavacal-o! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá,
homem! Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas… Traições
não, não admitto a ninguem!
Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prêsa certa, lembrou
de novo a inutilidade d’aquellas divagações:
– Assim nunca acabamos, Damaso… O nosso ponto é este: o Damaso injuriou
Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d’essa injuria, ou dá uma
reparação pelas armas…
Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que se
não movera do sofá de velludo, esfregando, um contra o outro,
com um ar arripiado e de dôr, os dois sapatos novos de verniz.
– Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que fazia
de mim tudo! Até lhe copiava coisas… Você bem viu, Cruges.
Diga! Falle, homem! Não sejam vocês todos contra mim!… Até
ás vezes ia á alfandega despachar-lhe caixotes…
O maestro baixava os olhos, vermelho, n’um infinito mal-estar. E Ega, por
fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:
– Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?
– Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n’um penoso esforço
de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou
lá homem que me desdiga!
– Perfeitamente, então bate-se…
Damaso cambaleou para traz, desvairado:
– Qual bater-me! Ee sou lá homem que me bata! Eu cá é
a sôcco. Que venha para cá, não tenho medo d’elle, arrombo-o…
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados
e em riste. E queria Carlos alli para o escavacar! Não lhe faltava
mais senão bater-se… E então duellos em Portugal, que acabavam
sempre por troça!
Ega no emtanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoára
a sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre a Biblia. Depois, serenamente,
fez a ultima declaração de que fôra incumbido. Como o
snr. Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitara tambem uma reparação
pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse
d’ahi por diante, fosse uma rua, fosse um theatro, lhe escarraria na face…
– Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro já
viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o
Ega, agarrando-lhe as mãos, n’uma agonia:
– Ó João, ó João, tu, que és meu amigo,
por quem és, livra-me d’esta entaladella!
Ega foi generoso. Desprendeu-se d’elle, empurrou-o brandamente para a poltrona,
calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou que, desde que
Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o enviado de Carlos necessariamente
exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da villa
Balzac. Queria pois o amigo Damaso um conselho? Era assignar uma carta affirmando
que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre o snr. Carlos da Maia e certa
senhora fôra invenção falsa e gratuita. Só isto
o salvava. D’outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe
na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a não querer ser apontado
em Lisboa como um incomparavel cobarde, tinha de se bater á espada
ou á pistola…
– Ora, em qualquer d’esses casos, você era um homem morto.
O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a face
emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braços, murmurou da profundidade
do seu terror:
– Pois sim, eu assigno, João, eu assigno…
– É o que lhe convém… Arranje então papel. Você
está perturbado, eu mesmo redijo.
Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por
sobre os moveis:
– Papel de carta? É para carta?
– Sim, está claro, uma carta ao Carlos!
Os passos do desgraçado perderam-se emfim no corredor, pesados e succumbidos.
– Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a mão
aos sapatos.
Ega lançou-lhe um chut severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso papel
de monogramma e corôa. Para envolver em silencio e segredo aquelle transe
amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo, desdobrando-se, mostrou
o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço
armado, e por baixo, a letras d’ouro, a sua formidavel divisa: SOU FORTE!
Immediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao
papel a data e a adresse do Damaso…
– Eu faço o rascunho, você depois copía…
– Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o lenço
pelo pescoço e pela face.
Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n’aquelle silencio,
que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando até
ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes
e photographias. Eram as glorias sociaes do Damaso, os documentos do chic
a valer que era a paixão da sua vida: bilhetes com titulos, retratos
de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hippodromo, diplomas
de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos:
– até pedaços cortados de jornaes annunciando os annos, as partidas,
as chegadas do snr. Salcede, «um dos nossos mais distinctos sportmen».
Desventuroso sportman! Aquella folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o
enchendo pouco a pouco d’um terror angustioso. Santo Deus! Para que eram tantos
apuros n’uma carta ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha bastaria: – «Meu
querido carlos, não te zangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas
não! Toda uma pagina de letra miuda com entrelinhas! Já mesmo
Ega voltava a folha, molhava a penna, como se d’ella devessem escorrer sem
cessar coisas humilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre
a mesa, até o papel:
– Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é
verdade?
Ega reflectiu, com a penna no ar:
– Talvez não… Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo
o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d’uma gaveta.
Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente entre
amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento, até elle
desejava! Com effeito o artigo fôra uma tolice… Mas então!
Em questões de mulheres era assim, assomado, um leão…
Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabôr
á vida. Findou mesmo por accender um charuto, levantar-se sem rumor
acercar-se do Cruges – que, coxeando através das curiosidades da sala,
encalhára sobre o piano e sobre os livros de musica, com o pé
dorido no ar.
– Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?
Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.
Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um olhar
inquieto á mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou,
sobre o hombro do maestro:
– Uma entaladella assim! Eu é por causa da gente conhecida… Senão
não me importava! Mas veja você tambem se arranja as coisas e
se o Carlos deixa aquillo na gaveta…
Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o piano,
devagar, relendo baixo.
– Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fórma de carta
ao Carlos, é mais correcto. Você depois copia e assigna. Ouça
lá: «Exc.mo snr… Está claro, você dá-lhe
excellencia, porque é um documento d’honra… Exc.mo snr. – Tendo-me
v. exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e
Victorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causára
um certo artigo da Corneta do Diabo de que eu escrevi o rascunho e de que
promovi a publicação, venho declarar francamente a v. exc.ª
que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão
falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica está em que o
compuz e enviei á redacção da Corneta no momento de me
achar no mais completo estado d’embriaguez…»
Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deixára pender os braços,
rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando
o monoculo:
– Achas talvez forte?… Pois eu redigi assim por ser justamente a unica maneira
de resalvar a dignidade do nosso Damaso.
E desenvolveu a sua idéa, mostrando quanto era generosa e habil – emquanto
o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem elle queriam que
o Damaso n’uma carta (que se podia tornar publica) declarasse «que calumniára
por ser calumniador». Era necessario, pois, dar á calumnia uma
d’essas causas fortuitas e ingovernaveis que tiram a responsabilidade ás
acções. E que melhor, tratando-se d’um rapaz mundano e femeeiro,
do que estar bebedo?… Não era vergonha para ninguem embebedar-se…
O proprio Carlos, todos elles alli, homens de gosto e de honra, se tinham
embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma hygiene e um luxo,
muitos grandes homens na Historia bebiam de mais. Em Inglaterra era tão
chic, que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na Camara dos communs senão
aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo! Emfim a Historia, a Litteratura,
a Politica, tudo fervilhava de piteiras… Ora, desde que o Damaso se declarava
borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhára
uma carraspana e que commettera uma indiscrição… Nada mais!
– Pois não te parece, Cruges?
– Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente.
– Pois não lhe parece a você, francamente, Damaso?
– Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraçado.
Immediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim reconheço,
como sempre renheci e proclamei, que é v. exc.ª um caracter absolutamente
nobre; e as outras pessoas, que n’esse momento d’embriaguez ousei salpicar
de lama, são-me só merecedoras de veneração e
louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a succeder soltar eu alguma
palavra offensiva para v. exc.ª não lhe devia dar v. exc.ª,
ou aquelles que a escutassem, mais importancia do que a que se dá a
uma involuntaria baforada d’alcool – pois que, por um habito hereditario que
reapparece frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em estado
de embriaguez… De v. exc.ª, com toda a estima etc….» Rodou
sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa – e accendendo o charuto
ao lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o determinára
áquella confissão de bebedeira incorrigivel e palreira. Fôra
ainda o desejo de garantir a tranquillidade do «nosso Damaso».
Attribuindo todas as imprudencias em que pudesse cahir a um habito d’intemperança
hereditaria, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo,
o Damaso punha-se para sempre ao abrigo das provocações de Carlos…
– Você, Damaso, tem genio, tem lingua… Um dia esquece-se, e no Gremio,
sem querer, na cavaqueira depois do theatro, lá lhe escapa uma palavra
contra Carlos… Sem esta precaução, ahi recomeça a questão,
o escarro, o duello… Assim já Carlos não se póde queixar.
Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gotta de mais,
a gotta tomada por impulso de borrachice hereditaria… Você alcança
d’este modo a coisa que mais se appetece n’este nosso seculo XIX – a irresponsabilidade!…
E depois para a sua família não é vergonha, porque você
não tem familia. Em resumo, convem-lhe?
O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender aquellas roncantes
phrases sobre «a hereditariedade», sobre «o seculo XIX».
E um unico sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta,
livre de floretes e de escarros. Encolheu os hombros, sem força:
– Que lhe hei de eu fazer?… Para evitar fallatorios.
E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em que
o monogramma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa
letra, com finos e grossos, d’uma nitidez de gravura em aço.
Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em
torno da mesa, seguindo sôfregamente as linhas que traçava a
mão applicada do Damaso, ornada d’um grosso annel d’armas. E durante
um momento atravessou-o um susto… Damaso parára, com a penna indecisa.
Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella gordura balofa, um resto
escondido de dignidade, de revolta?… Damaso alçou para elle os olhos
embaciados:
– Embriaguez é com n ou com m?
– Com um m, um m só, Damaso! acudiu Ega affectuosamente. Vai muito
bem… Que linda letra você tem, caramba!
E o infeliz sorriu á sua propria letra – pondo a cabeça de lado,
no orgulho sincero d’aquella soberba prenda.
Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôz a pontuação.
Era necessario que o documento fosse chic e perfeito.
– Quem é o seu tabellião, Damaso?
– O Nunes, na rua do Ouro… Porque?
– Oh! nada. É um detalhe que n’estes casos se pergunta sempre. Mera
ceremonia… Pois amigos, como papel, como letra, como estylo, está
d’appetite a cartinha!
Metteu-a logo n’um enveloppe onde rebrilhava a divisa «Sou Forte»,
sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéo,
batendo no hombro do Damaso com uma familiaridade folgazã e leve:
– Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fóra de portas,
n’uma poça de sangue! Assim é uma delicia. E adeus… Não
se incommode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira?
Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem… Adeus!
Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar
reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltára:
– Isso não se mostra a ninguem, não é verdade, Ega?
Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos… Mas emfim Carlos
era tão bom rapaz, tão generoso!
Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso:
– E chamei eu áquelle homem meu amigo!
– Tudo na vida são desapontamentos, meu Damaso! foi a observaçáo
do Ega, saltando alegremente os degraus.
Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos já esperava
ao portão de ferro, n’uma impaciencia, por causa do jantar na Toca.
Enfiou logo para dentro atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse
ao Loreto.
– E então, meus senhores, temos sangue?
– Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o enveloppe.
Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro:
– Isto é incrível!… Chega a ser humilhante para a natureza
humana!
– O Damaso não é o genero humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas
tu? Que elle se batesse?
– Não sei, corta o coração… Que se ha de fazer a isto?
Segundo o Ega não se devia publicar; seria crear curiosidade e escandalo
em torno do artigo da Corneta que custára trinta libras a suffocar.
Mas convinha conservar aquillo como uma ameaça pairando sobre o Damaso,
tornando-o para longos annos nullo e inoffensivo.
– Eu eslou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra
tua, usa-o como quizeres…
Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria
saber como elle se portára n’aquelle lance d’honra…
– Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem
linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no
sapato…
– Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim. Vocês dizem-me que me ponha
de ceremonia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde
n’um tormento!
E não se conteve mais, arrancou o sapato, pallido, com um medonho suspiro
de consolação.

No dia seguinte, depois do almoço, emquanto uma chuva grossa alagava
os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado n’uma poltrona,
com os pés para o lume, relia a carta do Damaso: e pouco a pouco subiu
n’elle a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão
interessante para a physiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado
no escuro d’uma gaveta!… Que effeito, que soberbo effeito se aquella confissão
do «nosso distincto sportman» surgisse um dia na Gazeta Illustrada
ou no novo jornal A Tarde, nas columnas do High-life, sob este titulo- PENDENCIA
D’HONRA! E que lição, que meritorio acto de justiça social!
Todo esse verão, Ega detestára o Damaso, certo, desde Cintra,
de que elle era o amante da Cohen – e de que, por esse imbecil de grossas
nadegas, esquecera ella para sempre a villa Balzac, as manhãs na colcha
de setim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia,
os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poeticos. Mas o que lhe tornára
o Damaso intoleravel – fôra a sua farofia radiante de homem preferido;
o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Cintra,
vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe
sobre o hombro; e o acênosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava
de lado, ao passar, a elle proprio, Ega… Era odioso! Odiava-o: e através
d’esse odio ruminára sempre o desejo d’uma vingança – pancada,
deshonra ou ridiculo que tornasse o snr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezivel,
grutesco, chato como um balão furado…
E agora alli tinha essa carta providencial, em que o homem solemnemente se
declarava bebedo. «Sou um bebedo, estou sempre bebedo»! Assim
o dizia, no seu papel de monogramma d’ouro, o snr. Salcede, n’um medo vil
de cão gôso, rastejando com o rabo entre as pernas diante de
qualquer pau!… Nenhuma mulher resistiria a isto… E havia d’encafuar tão
decisivo documento no fundo d’um gavetão?
Publical-o na Gazeta Illustrada ou na Tarde não podia, infelizmente,
por interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «em segredo»,
como uma curiosidade psychologica, ao Craft, ao marquez, ao Telles, ao Gouvarinho,
ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cópia ao Taveira que, resentido
eternamente da questão com o Damaso em casa da Lola Gorda, correria
a lêl-a em segredo na Casa Havaneza, no bilhar do Gremio, no Silva,
nos camarins de cantoras… E ao fim de uma semana a snr.ª D. Rachel
saberia inevitavelmente que o escolhido do seu coração era por
confissão propria um calumniador e um bebedo!… Delicioso!
Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiar
a carta do Damaso. Mas quasi immediatamente um criado trouxe-lhe um telegramma
de Affonso da Maia annunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega
teve de sahir, telegraphar para os Olivaes, avisar Carlos.
Carlos appareceu n’essa noite, já tarde, transido de frio, com um monte
de bagagens porque abandonára definitivamente os Olivaes. Maria Eduarda
regressava tambem a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S. Francisco,
tomado agora por seis mezes, tapetado de novo pela mãi Cruges. E Carlos
vinha muito impressionado, com profundas saudades da Toca. Depois de cear,
ao fogão, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias
alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro d’uma dorna,
a festa do deus Tchi, as guitarradas do marquez, as longas cavaqueiras ao
café com as janellas abertas e as borboletas voando em torno aos candieiros…
Fóra as cordas d’agua, sob o vento d’inverno, batiam os vidros na mudez
da noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos
no lume.
– Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por fim
Carlos, já não havia uma unica folha nas arvores… Tu não
sentes sempre uma grande melancolia n’estes fins de outono?…
– Immensa! murmurou Ega lugubremente.
Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos,
ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolonia. O comboio acabava
justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que se escoava
das portinholas abertas, Affonso, com o seu velho capote de gola de velludo,
apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de boné agaloado que
lhe offereciam o Hotel Terreirense e a Pomba d’Ouro. Atraz Mr. Antoine, o
chefe francez, grave, de chapéo alto, trazia o cesto em que viajára
o reverendo Bonifacio.
Carlos e Ega acharam Afioaso mais acabado, mais pesado. Todavia gabaram-lhe
muito, entre os primeiros abraços, a sua robustez de patriarcha. Elle
encolheu os hombros, queixando-se de ter sentido desde o fim do verão
vertigens, um cansaço vago…
– Vocês é que estão excellentes, acrescentou abraçando
outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. E que ingratidão foi essa tua,
John, mettido aqui todo um verão sem me ir visitar?… Que tens tu
feito? Que têm vocês feito?
– Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, titulos… Temos sobretudo
o projecto d’uma Revista um apparelho d’educação superior que
vamos montar com uma força de mil cavallos!… Emfim logo se lhe conta
tudo ao almoço.
E ao almoço, com effeito, para justificarem as suas occupações
em Lisboa, fallaram da Revista como se ella já estivesse organisada
e os artigos a imprimir na officina – tanta foi a precisão com que
lhe descreveram as tendencias, a feição critica, as linhas de
pensamento sobre que ella devia rolar… Ega já preparára um
trabalho para o primeiro numero – A capital dos portuguezes. Carlos meditava
uma série d’ensaios á ingleza, sob este titulo – Porque falhou
entre nós o systema constitucional. E Affonso escutava, encantado com
aquellas bellas ambições de lucta, querendo partilhar da grande
obra como socio capitalista… Mas Ega entendia que o snr. Affonso da Maia
devia descer à arena, lançar tambem a palavra do seu saber e
da sua experiencia. Então o velho riu. O quê! compôr prosa,
elle, que hesitava para traçar uma carta ao feitor? De resto o que
teria a dizer ao seu paiz, como fructo da sua experiencia, reduzia-se pobremente
a tres conselhos em tres phrases: aos politicos – «menos liberalismo
e mais caracter»; aos homens de letras – «menos eloquencia e mais
ideia»; aos cidadãos em geral – «menos progresso e mais
moral».
Isto enthusiasmou o Ega! Justamente, ahi estavam as verdadeiras feições
da reforma espiritual que a Revista devia prégar! Era necessario tomal-as
como moto symbolico, inscrevel-as em letras gothicas no frontispicio – porque
Ega queria que a Revista fosse original logo na capa. E então a conversação
desviou para o exterior da Revista – Carlos pretendendo que fosse azul-claro
com typo Renascença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista
dos Dois Mundos, n’uma nuance mais côr de canario. E, levados pela sua
imaginação de meridionaes, já não era só
para agradar a Affonso da Maia que iam levantando e dando fórma áquelle
confuso plano.
Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:
– Isto agora é sério. Precisamos arranjar immediatamente a casa
para a redacção!
Ega bracejava:
– Pudera! E moveis! E machinas!
Toda a manhã, no escriptorio d’Affonso, azafamados, com papel e lapis,
se occuparam em fixar uma lista de collaboradores. Mas já as difficuldades
surgiam. Quasi todos os escriptores suggeridos desagradavam ao Ega, por lhes
faltar no estylo aquelle requinte plastico e parnasiano de que elle desejava
que a Revista fosse o impeccavel modelo. E a Carlos alguns homens de letras
pareciam impossiveis… – sem querer confessar que n’elles lhe repugnava exclusivamente
a falta de linha e o fato mal feito…
Uma coisa porém ficou decidida: a casa da redacção. Devia
ser mobilada luxuosamente, com sofás do consultorio de Carlos e algum
bric-à-brac da Toca: e sobre a porta (ornada d’um guarda-portão
de libré) a taboleta de verniz preto, com Revista de Portugal em altas
letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos, pensando na alegria
de Maria ao saber esta decisão que o lançava, como era o desejo
d’ella, na actividade, n’uma lucta interessante d’ideias. Ega, esse, via já
a brochura côr de canario aos montões nas vitrines dos livreiros,
discutida nas soirées do Gouvarinho, folheada na camara com espanto
pelos politicos…
– Vai-se remexer Lisboa este inverno, snr. Affonso da Maia! gritou elle atirando
um gesto immenso até ao tecto.
E o mais contente era o velho.
Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com elle á rua de S.
Francisco (onde Maria se installára n’essa manhã) levarem a
nova da grande obra. Mas encontraram á porta uma carroça descarregando
malas; e a senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, esteve ainda
jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confusão na casa,
Ega não quiz subir.
– Até logo, disse elle. Vou talvez procurar o Simão Craveiro
e fallar-lhe da Revista.
Subiu lentamente o Chiado, leu os telegrammas na Casa Havaneza. Depois á
esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido n’um paletot, offereceu-lhe
uma «senhasinha». Outros, em volta, gritavam na sombra do Hotel
Alliança:
– Bilhete para o Gymnasio! Mais barato… Bilhete para o Gymnasio! Quem vende?…
Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos de gaz do
Gymnasio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que atravessava
do lado do Loreto, de gravata branca e flôr no paletot.
– Que é isto?
– Festa de beneficencia, não sei, disse o Craft. Uma coisa promovida
por senhoras, a baroneza d’Alvim mandou-me um bilhete… Venha você
d’ahi ajudar-me a levar esta caridade ao Calvario.
E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha.
No perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente,
á espera que findasse a primeira comedia, o Fructo prohibido. Então
Craft propôz «botequim e genebra».
– E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto.
O Taveira não subiu. Todos esses dois longos dias se intrigára
desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira tambem.
E fallava-se d’uma scena terrível por causa de syndicatos, em casa
do presidente do conselho, o Sá Nunes, que terminára por dar
um murro na mesa, gritar: «Irra! que isto não é o pinhal
d’Azambuja!»
– Canalha! rosnou Ega com odio.
Depois fallaram do Ramalhete, da volta d’Affonso, da reapparição
do Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez n’esse inverno uma casa com
fogões, onde se passasse uma hora civilisada e intelligente.
Taveira acudiu com o olho brilhante:
– Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua de
S. Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai receber.
Craft não sabia mesmo que ella já tivesse recolhido da Toca.
– Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a conhece?… Encantadora.
– Creio que sim.
O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um ar tão
sympathico!
– Encantadora! repetiu Ega.
Mas o Fructo proibido findára, os homens enchiam o peristylo, n’um
rumor lento, accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com
a genebra, correu á plateia para descobrir o camarote da Alvim.
Mal erguera porém a cortina e assestára o monoculo – avistou
defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de
rendas brancas; por traz negrejavam as suissas fortes do marido; e em face
d’ella, recostado no velludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha,
uma grossa perola no peitilho da camisa, o Damaso, o bebedo!
Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d’uma cadeira: e perturbado, já
esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto d’annuncios, correndo
os dedos tremulos pelo bigode.
No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia.
Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro,
de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. exc.ª
Elle não escutava, não percebia: os seus olhos, um momento errantes,
tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de
lá, n’uma emoção que o empallidecia.
Não a tornára a encontrar desde Cintra, onde só a via
de longe, com vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda
de preto, em cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura
do seu collo, ella era outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da villa
Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do
fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado
de felicidade. Lá tinha a sua luneta d’ouro, presa por um fio d’ouro.
Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados,
o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como então os seus cabellos
magnificos e pesados cahiam habilmente n’uma massa meia solta sobre as costas,
n’um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor
das cadeiras Ega revia, n’uma onda de recordações que o suffocava,
o grande leito da villa Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes
comidas em camisa á borda do sofá, e a melancolia deliciosa
das tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de véos, e elle
ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a Traviata…
– V. exc.ª dá licença, snr. Ega?
Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega
ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sonsa Netto. O panno subira.
Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho á Plateia, fazia
confidencias sobre a patrôa, de espanejador debaixo do braço.
E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote, cofiando a suissas
com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.
Ega então, n’um soberbo alarde d’indifferença, cravou o monoculo
no palco. O lacaio abalára espavorido, a um repique furioso de sineta;
e uma megera azeda, de roupão verde e touca á banda, rompera
de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida
que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de amal-o
sempre! hei de amal-o sempre!»
Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o
Damaso, com as cabeças chegadas como em Cintra, cochichavam n’um sorriso.
E tudo logo dentro do Ega se resumiu n’um immenso odio ao Damaso! Collado
á umbreira da porta, rilhava os dentes, n’um desejo de subir, escarrar-lhe
na bochecha gorda.
E não desviava d’elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho
general, gottoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca.
A Plateia ria, o Cohen ria. E n’esse momento Damaso, que se debruçára
no camarote com as mãos de fóra, calçadas de gris-perle,
descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante,
muito d’alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda
na vespera aquelle covarde se lhe agarrára ás mãos, tremendo
todo, a gritar «que o salvasse!…»
Subitamente, com uma idéa, palpou por sobre o bolso a carteira onde
na vespera guardára a carta do Damaso… «Eu t’arranjo!»
murmurou elle. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como
uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, n’um
grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redacção
da Tarde.
Dentro do pateo d’esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz,
cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em cima ao
cavaco. O Neves, deputado, politico, director da Tarde, fôra, havia
annos, n’umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse
verão alegre em que o Neves lhe ficára sempre devendo tres moedas,
os dois tratavam-se por tu.
Foi encontral-o n’uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo, sentado
na borda n’uma mesa atulhada de jornaes, com o chapéo para a nuca,
discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de pé,
n’um respeito de crentes. N’um vão de janella, com dois homens d’idade,
um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabelleira
crespa que parecia erguida n’uma rajada de vento, bracejava como um moinho
na crista d’um monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava
laboriosamente uma tira de papel.
Ao vêr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacção,
n’aquella noite de intriga e de crise, Neves cravou n’elle os olhos tão
curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:
– Nada de politica, negocio particular… Não te interrompas. Depois
fallaremos.
O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento,
«essa grande besta que fôra metter tudo no bico da amiga do Sousa
e Sá, o par do reino» – e na sua impaciencia saltou da mesa,
travou do braço do Ega arrastando-o para um canto:
– Então que é?
– É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por
um sujeito muito conhecido. Nada d’interessante. Um paragrapho immundo na
Corneta do Diabo, por uma questão de cavallos… O Maia pediu-lhe explicações.
O outro deu-as, chatas, medonhas, n’uma carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flammejou:
– Quem é?
– O Damaso.
O Neves recuou d’assombro:
– O Damaso!? Ora essa! Isso é extraordinario! Ainda esta tarde jantei
com elle! Que diz a carta?
– Tudo. Pede perdão, declara que estava bebedo, que é de profissão
um bebedo…
O Neves agitou as mãos com indignação:
– E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo politico!…
E que não fosse, não é questão de partido, é
de decencia! Eu faço lá isso!… Se fosse uma acta de duello,
uma coisa honrosa, explicações dignas… Mas uma carta em que
um homem se declara bebedo! Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na
face, teve ainda uma revolta áquella idéa do Damaso se declarar
bebedo.
– Isso não póde ser! É absurdo! Ahi ha historia… Deixa
vêr a carta.
E, mal relanceára os olhos ao papel, á larga assignatura floreada,
rompeu n’um alarido:
– Isto não é o Damaso nem é letra do Damaso!… «Salcede»!
Quem diabo é «Salcede»? Nunca foi o meu Damaso!
– É o meu Damaso, disse o Ega. O Damaso Salcede, um gordo…
O outro atirou os braços ao ar:
– O meu é o Guedes, homem, o Damaso Guedes! Não ha outro! Que
diabo, quando se diz o Damaso é o Guedes!…
Respirou com grande allivio:
– Irra, que me assustaste! Olha agora n’este momento, com estas coisas de
ministerio, uma carta d’essas escripta pelo Guedes… Se é o Salcede,
bem, acabou-se! Espera lá… Não é um gordalhufo, um
janota que tem uma propriedade em Cintra? Isso! Um maganão que nos
entalou na eleição passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos
mil reis… Perfeitamente, ás ordens… Ó Pereirinha, olhe aqui
o snr. Ega. Tem ahi uma carta para sahir ámanhã, na primeira
pagina, typo largo…
O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a «Reforma
das Pautas».
– Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de tudo!
E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho, saltou
para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão de chefe, affirmando
no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!
Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos que
pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise arrastára
a Lisboa, arrancára á quietação das villas e das
quintas. O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme
face a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo
de porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco, tinha
um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados, muito morenos,
fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente apagado
e desconfiado, que marca os homens de provincia, perdidos entre as tipoias
e as intrigas da Capital. Vinham alli ás noites, áquelle jornal
do partido, saber as novas, beber do fino, uns com esperanças de empregos,
outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves
era um «robusto talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a tactica;
decerto gostavam de citar nas lojas das suas villas o amigo Neves, o jornalista,
o da Tarde… Mas, através d’essa admiração e do prazer
de roçar por elle, percebia-se-lhes um vago medo que aquelle «robusto
talento» lhes pedisse, n’um vão de janella, duas ou tres moedas.
O Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse
os rasgos, a pureza, as bellas syntheses historicas do José Clemente!
Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas que ferem
e que ficam cravadas, alli a arder, na pelle do touro! E era a grande coisa
na Camara – ter a farpa, sabêl-a ferrar!
– Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapezio?
gritou elle virando-se para a janella, para o rapaz de jaquetão claro.
O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malicia, estendeu
o pescoço magro n’um collarinho muito decotado, lançou de lá:
– A do trapezio? Divina! Conta á rapaziada!
A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, á espera da «do
trapezio». Fôra na Camara dos Pares, na reforma da instrucção.
Estava fallando o Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos
collegios e queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe
esta:
«Snr. presidente, direi uma palavra só. Portugal sahirá
para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem illustrado, no dia
em que nós fôrmos ao ensino, com mão impia, substituir
a cruz pelo trapezio!»
– Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.
E no murmurio de admiração que se ergueu destacou um ganido
– o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia os hombros, chasqueava com
uma risota na bochecha côr de tomate:
– Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sae é um grandissimo
carola!
E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de provincia, liberaes e
finorios, que achavam aquelle fidalgo excessivamente apegado á cruz.
Mas já o Neves, de pé, bravejava:
– Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!… O Gouvarinho carola!
Está claro que tem toda a orientação mental do seculo,
é um racionalista, um positivista… Mas a questão aqui é
a réplica, a tactica parlamentar! Desde que o typo da maioria vem de
lá com a descoberta do trapezio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse
tão atheu como Renan, zás! atira-lhe logo para cima com a cruz!…
Isto é que é a estrategia parlamentar! Pois não é
assim, Ega?
Ega murmurou, através do fumo do charuto:
– Sim, com effeito a cruz para isso ainda serve…
Mas n’esse momento o sujeito calvo, que repellira a tira de papel e se espreguiçava,
cahido para as costas da cadeira, exhausto, pediu ao snr. João da Ega
– que fallasse á gente e guardasse o seu dinheiro…
Ega acercou-se logo d’aquelle sympathico homem, tão engraçado,
tão querido de todos:
– Então, na grande faina, Melchior?
– Estou aqui a vêr se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro,
os Cantos da Serra, e não me sae nada em termos… Não sei o
que hei de dizer!
Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com
o Melchior:
– Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, annunciadores.
D’um livro como o do Craveiro têm só respeitosamente a dizer
onde se vende e quanto custa.
O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da nuca:
– Então onde queria você que se fallasse dos livros?… Nos reportorios?
Não, nas Revistas Criticas: ou então nos jornaes – que fossem
jornaes, não papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de politica
em estylo mazorro ou em estylo fadista, um romance mal traduzido do francez
por baixo e o resto cheio com «annos», despachos, parte de policia
e loteria da Misericordia. E como em Portugal não havia nem jornaes
sérios nem Revistas Criticas – que se não fallasse em parte
nenhuma.
– Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece pensar
em nada…
E com toda a razão, affirmou Ega. Certamente muito d’esse silencio
provinha do natural desejo que têm os que são mediocres de que
se não alluda muito aos que são grandes. É a invejasinha
reles e rastejante! Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros
provém sobretudo d’elles terem abdicado todas as funcções
elevadas d’estudo e de critica, de se terem tornado folhas rasteiras d’informação
caseira, e de sentirem por isso a sua incompetencia…
– Está claro, não fallo por você, Melchior, que é
dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus collegas, menino, calam-se por
se saberem incompetentes…
O Melchior ergueu os hombros com um ar cançado e descrente:
– Calam-se tambem porque o publico não se importa, ninguem se importa…
Ega protestou, já excitado. O Publico não se importava!? Essa
era curiosa! O Publico então não se importa que lhe fallem de
livros que elle compra aos tres mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada
a população de Portugal, caramba, é igual aos grandes
successos de Paris e de Londres… Não, Melchiorzinho amigo, não!
Esse silencio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras:
«Nós somos incompetentes. Nós estamos bestialisados pela
noticia do snr. conselheiro que chegou ou do snr. conselheiro que partiu,
pelos High-lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo
em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos…
Nós não sabemos, não podemos já fallar d’uma obra
d’arte ou d’uma obra de historia, d’este bello livro de versos ou d’este bello
livro de viagens. Não temos nem phrases nem idéas. Não
somos talvez cretinos – mas estamos cretinisados. A obra de litteratura passa
muito alto – nós chafurdamos aqui muito em baixo…»
– E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silencio dos
jornaes, o côro dos jornalistas!
Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz, como quem
goza uma bella ária. Depois com uma palmada na mesa:
– Caramba, ó Ega, muito bem falla você!… Você nunca pensou
em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! O Ega é
que era, para atirar alli na camara a piadinha á Rochefort. Ardia Troia!»
E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o charuto
– Melchior arrebatou a penna:
– Você está em veia! Diga lá, dicte lá… Que hei
de eu aqui pôr sobre o livro do Craveiro?
Ega quiz saber o que escrevera já, o amigo Melchior. Apenas tres linhas:
«Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simão Craveiro.
O precioso volume, onde scintillam em caprichosos relevos todas as joias d’este
prestigioso escriptor, é publicado pelos activos editores…»
E aqui o Melchior emperrára. Melchior não gostava d’aquelle
frouxo termo – activos. Ega então suggeriu – emprehendedores. Melchior
emendou, leu:
– «…publicado pelos emprehendedores editores…» Ora sêbo,
rima!
Arrojou a penna, descorçoado. Acabou-se! Não estava em verve.
E além d’isso era tarde, tinha a rapariga á espera…
– Fica para ámanhã… O peor é que já ando n’isto
ha cinco dias! Irra! Você tem razão, a gente bestialisa-se. E
faz-me raiva! Não é lá pelo livro, não me importa
o livro… É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais
pertence cá ao partido!
Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero.
E Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de cal – quando entre elles
surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua gaforinha perpetuamente
erguida como por uma rajada de vento.
– Que está o Egasinho a fazer n’este covil da noticia?
– Aqui a escovar o Sampaio… Estive tambem a ouvir o Neves, a grande phrase
do Gouvarinho…
O Gonçalo pulou, com uma faisca de malícia no olhos negros de
algarvio esperto.
– A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor!
Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janella:
– É necessario fallar baixo por causa da rapaziada de provincia…
Ha outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que sabe!
É uma coisa da Liberdade conduzindo á mão o corcel do
Progresso… O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calções
de jockey, o Progresso com um grande freio… Espantoso! Que besta, aquelle
Gouvarinho! E os outros, menino, os outros! Você não foi á
camara quando se discutiu a questão de Tondella? Extraordinario! O
que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta
eloquencia, estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto por
fim não é peor que a Bulgaria. Historias! Nunca houve uma choldra
assim no universo!
– Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.
O outro recuou com um grande gesto:
– Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e tróço
por gosto, como artista!
Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparavel para o paiz – esse
immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter. Assim, alli estava
o amigo Gonçalo, como homem de intelligencia, considerando o Gouvarinho
um imbecil…
– Uma cavalgadura, corrigiu o outro.
– Perfeitamente! E todavia, como politico, você quer essa cavalgadura
para ministro, e vai apoial-a com votos e com discursos sempre que ella rinche
ou escoucinhe.
Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a face franzida:
– É necessario, homem! Razões de disciplina e de solidariedade
partidaria… Ha uns compromissos… O paço quer, gosta d’elle…
Espreitou em roda, murmurou, collado ao Ega:
– a ahi umas questões de syndicatos, de banqueiros, de concessões
em Moçambique… Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!
E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito – o outro, faiscando
todo de finura e cynismo, atirou-lhe uma palmada ao hombro:
– Meu caro, a politica hoje é uma coisa muito differente! Nós
fizemos como vocês os litteratos. Antigamente a litteratura era a imaginação,
a phantasia, o ideal… Hoje é a realidade, a experiencia, o facto
positivo, o documento. Pois cá a politica em Portugal tambem se lançou
na corrente realista. No tempo da Regeneração e dos Historicos
a politica era o progresso, a viação, a liberdade, o palavrorio…
Nós mudamos tudo isso. Hoje é o facto positivo, – o dinheiro,
o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino
dinheiro!
E de repente emmudeceu, sentindo na sala um silencio – onde o seu grito de
«dinheiro! dinheiro!» parecera ficar vibrando, no ar quente do
gaz, com a prolongação de um toque de rebate acordando as cubiças,
chamando ao longe e ao largo todos os habeis para o saque da Patria inerte!…
O Neves desapparecera. Os cavalheiros de provincia dispersavam, uns enfiando
o paletot, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos jornaes sobre a
mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou nos tacões,
desappareceu tambem, abraçando ao passar um dos padres a quem tratou
de «malandro!»
Era meia noite, Ega sahiu. E na tipoia que o levava ao Ramalhete, já
mais calmo, começou logo a reflectir que o resultado da publicação
da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A «questão
de cavallos» com que o Neves se contentára promptamente, distrahido
e absorvido n’essa noite pela crise, – ninguem mais a acreditaria… O Damaso
decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de Carlos:
e uma intoleravel luz d’escandalo ia bater coisas que deviam permanecer na
sombra. Eram talvez apoquentações, desesperos que elle assim
estivera preparando a Carlos – por causa d’um odiosinho ao Damaso. Nada mais
egoista e pequeno!… E subindo para o quarto Ega decidia correr depois d’almoço
á redacção da Tarde, suster a publicação
da carta.
Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Damaso. Via-os rolando por uma
estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados n’uma carroça de
bois, sobre um enxergão onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha
de setim preto da villa Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem pudor,
sob a fresca sombra que cahia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por um
requinte do sonho cruel, elle Ega, sem perder a consciencia e o orgulho d’homem,
era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, a canga pesava-lhe;
e, a cada beijo mais cantado que atraz soava no carro, elle erguia o focinho
a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os céos!
Acordou n’estes urros d’agonia: e a sua cólera contra o Damaso resurgiu,
mais nutrida pelas incoherencias do sonho. Além d’isso chovia. E decidiu
não voltar á Tarde, deixar imprimir a carta. Que importava,
de resto, o que dissesse o Damaso? O artigo da Corneta estava extincto, o
Palma bem pago. – E quem jámais acreditaria n’um homem que nos jornaes
se declara calumniador e bebedo?
E Carlos assim pensou tambem – quando, depois d’almoço, Ega lhe contou
a sua resolução da vespera ao vêr o Damaso no camarote,
d’olho trocista posto n’elle, a segredar com os Cohens…
– Percebi claramente, sem erro possivel, que estava a fallar de ti, da snr.ª
D. Maria, de nós todos, contando horrores… E então acabou-se,
não hesitei mais. Era necessario deixar passar a justiça de
Deus! Não tinhamos paz emquanto o não aniquilassemos!
Sim, concordou Carlos, talvez. Sómente receava que o avô, sabendo
o escandalo, se desgostasse de vêr o seu nome misturado a toda aquella
sordidez de Corneta e de bebedeira…
– Elle não lê a Tarde, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, é
já vago e desfigurado.
Com effeito Affonso soube apenas confusamente que o Damaso soltára
no Gremio algumas palavras desagradaveis para Carlos, e declarára depois
n’um jornal que, n’esse momento, estava bebedo. E a opinião do velho
foi – que se o Damaso estava embriagado (e d’outro modo como teria injuriado
Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaração revelava extrema
lealdade e um amor quasi heroico da verdade!
– Por esta não esperavamos nós! exclamou depois Ega no quarto
de Carlos. O Damaso torna-se um justo!
De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta approvavam a
aniquilação do Damaso. Só o Craft sustentou que Carlos
lhe devia ter antes dado «bengaladas secretas»; e o Taveira achou
cruel que se dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito – «ou
a dignidade ou a vida!»
Mas dias depois não se fallava mais n’esse escandalo. Outras coisas
interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministerio fôra formado,
finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha – Neves no Tribunal de Contas. Já
os jornaes do governo cahido começavam, segundo a pratica constitucional,
a achar o paiz irremediavelmente perdido, e a alludir ao rei com azedume…
E o derradeiro, esvaído echo da carta do Damaso foi, na vespera do
sarau da Trindade, um paragrapho da propria Tarde onde ella fôra publicada,
n’estas amaveis palavras:
– «O nosso amigo e distincto sportman Damaso Salcede parte brevemente
para uma viagem de recreio a Italia. Desejamos ao elegante touriste todas
as prosperidades na sua bella excursão ao paiz do canto e das artes.»

Capítulo VI

Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se demorára no corredor
a procurar a charuteira pelos bolsos do paletot, entrou na sala, perguntando
a Maria, já sentada ao piano:
– Então, definitivamente, v. exc.ª não vem ao sarau da
Trindade?…
Ella voltou-se para dizer, preguiçosamente, por entre a walsa lenta
que lhe cantava entre os dedos:
– Não me interessa, estou muito cançada…
– É uma sécca, murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona onde
se estirára consoladamente, fumando, d’olhos cerrados.
Ega protestou. Tambem era uma massada subir ás Pyramides no Egypto.
E no emtanto soffria-se invariavelmente, porque nem todos os dias póde
um christão trepar a um monumento que tem cinco mil annos de existencia…
Ora a snr.ª D. Maria, n’este sarau, ia vêr por dez tostões
uma coisa tambem rara,- a alma sentimental d’um povo exhibindo-se n’um palco,
ao mesmo tempo nua e de casaca.
– Vá, coragem! um chapéo, um par de luvas, e a caminho!
Ella sorria, queixando-se de fadiga e preguiça.
– Bem, exclamou Ega, eu é que não quero perder o Rufino… Vamos
lá, Carlos, mexe-te!
Mas Carlos implorou clemencia:
– Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do Hamlet. Temos
tempo… Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, só gorgeiam mais tarde…
Então Ega, cedendo tambem a todo aquelle conchego tepido e amavel,
enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a canção
d’Ophelia, de que Maria já murmurava baixo as palavras scismadoras
e tristes:

Pâle et blonde,
Dort sous l’eau profonde…

Ega adorava esta velha ballada escandinavia. Mais porém o encantava
Maria que nunca lhe parecera tão bella: o vestido claro que tinha n’essa
noite modelava-a com a perfeição d’um marmore: e entre as velas
do piano, que lhe punham um traço de luz no perfil puro e tons d’ouro
esfiado no cabello – o incomparavel eburneo da sua pelle ganhava em esplendor
e mimo… Tudo n’ella era harmonioso, são, perfeito… E quanto aquella
serenidade da sua fórma devia tornar delicioso o ardor da sua paixão!
Carlos era positivamente o homem mais feliz d’estes reinos! Em torno d’elle
só havia facilidades, doçuras. Era rico, intelligente, d’uma
saude de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; só tinha
o numero d’inimigos que é necessario para confirmar uma superioridade;
nunca soffrera de dyspepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na
sua complacencia de forte nem a tolice publica o irritava. Sêr verdadeiramente
ditoso!.
– Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pés
pelo tapete, quando Maria findou a canção d’Ophelia.
Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado…
Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:
– É esse grande orador de que fallavam na Toca?
Não, não! Esse era outro, a sério, um amigo de Coimbra,
o José Clemente, homem d’eloquencia e de pensamento… Este Rufino
era um ratão de pera grande, deputado por Monção, e sublime
n’essa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana,
de arranjar, n’um voz de theatro e de papo, combinações sonoras
de palavras…
– Detesto isso! rosnou Carlos.
Maria tambem achava intoleravel um sujeito a chilrear, sem idéas, como
um passaro n’um galho d’arvore…
– É conforme a occasião, observou Ega, olhando o relogio. Uma
valsa de Strauss tambem não tem idéas, e á noite, com
mulheres n’uma sala, é deliciosa…
Não, não! Maria entendia que essa rhetorica amesquinhava sempre
a palavra humana, que, pela sua natureza mesma, só póde servir
para dar forma, ás idéas. A musica, essa, falla aos nervos.
Se se cantar uma marcha a uma criança, ella ri-se e salta no collo…
– E se lhe lêres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o anjinho
secca-se e berra!
– Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos costumes
que ella cria. Não ha inglez, por mais culto e espiritualista, que
não tenha um fraco pela força, pelos athletas, pelo sport, pelos
musculos de ferro. E nós, os meridionaes, por mais criticos, gostamos
do palavriadinho mavioso. Eu cá pelo menos, á noite, com mulheres,
luzes, um piano e gente de casaca, pello-me por um bocado de rhetorica.
E, com o appetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletot, voar
á Trindade, n’um receio de perder o Rufino.
Carlos deteve-o ainda, com uma grande idéa:
– Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca Beethoven; nós
declamamos Mussuet, Hugo, os parnasianos; temos padre Lacordaire se te appetece
a eloquencia; e passa-se a noite n’uma medonha orgia d’ideal!…
– E ha melhores cadeiras, acudiu Maria.
– Melhores poetas, affirmou Carlos.
– Bons charutos!
– Bom cognac!
Ega alçou os braços ao ar, desolado. Ahi está como se
pervertia um cidadão, impedindo-o de proteger as letras patrias – com
promessas perfidas de tabaco e de bebidas!… Mas de resto elle não
tinha só uma razão litteraria para ir ao sarau. O Cruges tocava
uma das suas Meditações d’Outono, e era necessario dar palmas
ao Cruges.
– Não digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona. Esquecia-me
o Cruges!… É um dever d’honra! Abalemos.
E d’ahi a pouco, tendo beijado a mão de Maria que ficava ao piano,
os dois, surprehendidos com a belleza d’essa noite d’inverno, tão clara
e dôce, seguiam devagar pela rua – onde Carlos ainda duas vezes se voltou
para olhar as janellas alumiadas.
– Estou bem contente, exclamou elle travando do braço do Ega, em ter
deixado os Olivaes!… Aqui ao menos podemos reunir-nos para um bocado de
cavaco e de litteratura…
Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o quarto ao
lado n’um fumoir forrado com as suas colchas da India, depois ter um dia certo
em que viessem os amigos cear… Assim se realisava o velho sonho, o cenaculo
de dilettantismo e d’arte… Além d’isso havia a lançar a Revista,
que era a suprema pandega intellectual. Tudo isto annunciava um inverno chic
a valer, como dizia o defunto Damaso.
– E tudo isto, resumiu o Ega, é dar civilisação ao paiz.
Positivamente, menino, vamo-nos tornar grandes cidadãos!…
– Se me quizerem erguer uma estatua, disse Carlos alegremente, que seja aqui
na rua de S. Francisco… Que belleza de noite!
Pararam á porta do theatro da Trindade no momento em que, d’uma tipoia
de praça, se apeava um sujeito de barbas de apostolo, todo de luto,
com um chapéo de largas abas recurvas á moda de 1830. Passou
junto dos dois amigos sem os vêr, recolhendo um troco á bolsa.
Mas Ega reconheceu-o.
– É o tio do Damaso, o demagogo! Bello typo!
– E segundo o Damaso, um dos bebedos da familia, lembrou Carlos rindo.
Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas. Carlos, que
dava o paletot ao porteiro, receou que já fosse o Cruges…
– Qual! disse o Ega. Aquillo é applaudir de rhetorica!
E com effeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao ante-salão,
onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos de pés, segredando
– sentiram logo um vozeirão tumido, garganteado, provinciano, de vogaes
arrastadas em canto, invocando lá do fundo, do estrado, «a alma
religiosa de Lamartine!…»
– É o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Telles da Gama que não
passára da porta, com o charuto escondido atraz das costas.
Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Telles. Mas Ega, esguio e magro, foi
rompendo pela coxia tapetada de vermelho. D’ambos os lados se cerravam filas
de cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até
junto ao tablado, onde dominavam os chapéos de senhoras picados por
manchas claras de plumas ou flôres. Em volta, de pé, encostados
aos pilares ligeiros que sustêm a galeria, reflectidos pelos espelhos,
estavam os homens, a gente do Gremio, da Casa Havaneza, das Secretarias, uns
de gravata branca, outros de jaquetões. Ega avistou o snr. Sousa Netto,
pensativo, sustentando entre dois dedos a face escaveirada, de barba rala;
adiante o Gonçalo, com a sua gaforinha ao vento; depois o marquez atabafado
n’um cache-nez de sêda branca; e, n’um grupo, mais longe, rapazes do
Jockey Club, os dois Vargas, o Mendonça, o Pinheiro, assistindo áquelle
sport da eloquencia com uma mistura d’assombro e tedio. Por cima, no parapeito
de velludo da galeria, corria outra linha de senhoras com vestidos claros,
abanando-se mollemente; por traz alçava-se ainda uma fila de cavalheiros
onde destacava o Neves, o novo Conselheiro, grave, de braços cruzados,
com um botão de camelia na casaca mal feita.
O gaz suffocava, vibrando cruamente n’aquella sala clara, d’um tom desmaiado
de canario, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e além uma tosse timida
de catarrho desmanchava o silencio, logo abafada no lenço. E na extremidade
da galeria, n’um camarote feito de tabiques, com sanefas de velludo côr
de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na solemnidade
real do seu damasco escarlate.
No emtanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito trigueiro,
de pera, alargava os braços, celebrava um anjo, «o Anjo da Esmola
que elle entrevira, além no azul, batendo as azas de setim…»
Ega não comprehendia bem – entalado entre um padre muito gordo que
pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim não se conteve:-
«Sobre que está elle a fallar?» E foi o padre que o informou,
com a face luzidia, inflammada de enthusiasmo:
– Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime… Infelizmente
está a acabar!
Parecia ser, com effeito, a peroração. O Rufino arrebatára
o lenço, limpara a testa lentamente; depois arremetteu para a borda
do tablado, voltando-se para as cadeiras reaes com um tão ardente gesto
d’inspiração – que o collete repuxado descobriu o começo
da ceroula. Foi então que Ega comprehendeu. Rufino estava exaltando
uma princeza que dera seiscentos mil reis para os inundados do Ribatejo, e
ia a beneficio d’elles organisar um bazar na Tapada. Mas não era só
essa soberba esmola que deslumbrava o Rufino – porque elle, «como todos
os homens educados pela philosophia e que têm a verdadeira orientação
mental do seu tempo, via nos grandes factos da historia não só
a sua belleza poetica, mas a sua influencia social. A multidão, essa,
sorria simplesmente, enlevada, para a incomparavel poesia da mão calçada
de fina luva que se estende para o pobre. Elle porém, philosopho, antevia
já, sahindo d’esses delicados dedos de princeza, um resultado bem profundo
e formoso… O quê, meus senhores? O renascimento da Fé!»
De repente, um leque que escorregára da galeria, arrancando em baixo
um berro a uma senhora gorda, creou um susurro, uma curta emoção.
Um commissario do sarau, D. José Sequeira, ergueu-se logo nos degraus
do tablado, com o seu laçarote de sêda vermelha na casaca, dardejando
severamente os olhos vesgos para o recanto indisciplinado onde curtos risos
esfusiavam. Outros cavalheiros, indignados, gritavam «chut, silencio,
fóra!» E das cadeiras da frente surgiu a face ministerial do
Gouvarinho, inquieta pela Ordem, com as lunetas brilhando duramente… Então
Ega procurou ao lado a condessa: e avistou-a emfim mais longe, com um chapéo
azul, entre a Alvim toda de preto e umas vastas espádoas cobertas de
setim malva que eram as da baroneza de Craben. Todo o rumor findava – e o
Rufino, que molhára lentamente os labios no copo, avançou um
passo, sorrindo, com o lenço branco na mão:
– Dizia eu, meus senhores, que dada a orientação mental d’este
seculo…
Mas o Ega suffocava, esmagado, farto do Rufino, com a impressão de
que o padre ao lado cheirava mal. E não aturou mais, furou para traz,
para desabafar com Carlos.
– Tu imaginavas uma besta assim?
– Horroroso! murmurou Carlos. Quando tocará o Cruges?
Ega não sabia, todo o programma fôra alterado.
– E tens cá a Gouvarinho! Está lá adiante, d’azul…
Hei de querer vêr logo esse encontro!
Mas ambos se voltaram sentindo por traz alguem ciciar discretamente «bonsoir,
messieurs…» Era Steinbroken e o seu secretario, graves, de casaca,
em pontas de pés, com as claques fechadas. E immediatamente Steinbroken
queixou-se da ausencia da familia real…
– Mr. de Cantanhede, qui est de service, m’avait cependant assuré que
la reine viendrait… C’est bien sous sa protection, n’est-ce pas, toute cette
musique, ces vers?… Voilà pourquoi je suis venu. C’est très
ennuyeux… Et Alphonse de Maia, toujours en santé?
– Merci…
Na sala o silencio impressionava. Rufino, com gestos de quem traça
n’uma tela linhas lentas e nobres, descrevia a doçura d’uma aldeia,
a aldeia em que elle nascera, ao pôr do sol. E o seu vozeirão
velava-se, enternecido, morrendo n’um rumor de crepusculo. Então Steinbroken,
subtilmente, tocou no hombro do Ega. Queria saber se era esse o grande orador
de que lhe tinham fallado…
Ega affirmou com patriotismo que era um dos maiores oradores da Europa!
– Em qual génerro?…
– Genero sublime, genero de Demosthenes!
Steinbroken alçou as sobrancelhas com admiração, fallou
em filandez ao seu secretario que entalou languidamente o monoculo: e com
as claques debaixo do braço, cerrados os olhos, recolhidos como n’um
templo, os dois enviados da Filandia ficaram escutando, á espera do
sublime.
Rufino, no emtanto, com as mãos descahidas, confessava uma fragilidade
de sua alma! Apesar da poesia ambiente d’essa sua aldeia natal, onde a violeta
em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus irrefutavelmente,
– elle fôra dilacerado pelo espinho da descrença! Sim, quantas
vezes, ao cahir da tarde, quando os sinos da velha torre choravam no ar a
Ave-Maria e no valle cantavam as ceifeiras, elle passára junto da cruz
do adro e da cruz do cemiterio, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso
frio de Voltaire…
Um largo fremito d’emoção passou. Vozes suffocadas de gozo mal
podiam : murmurar «muito bem, muito bem…»
Pois fôra n’esse estado, devorado pela duvida, que Rufino ouvira um
grito d’horror resoar por sobre o nosso Portugal… Que succedera? Era a Natureza
que atacava seus filhos! – E lançando os braços, como quem se
debate n’uma catastrophe, Rufino pintou a inundação… Aqui
aluia um casal, ninho florido d’amores; além, na quebrada, passava
o balar choroso dos gados; mais longe as negras aguas iam juntamente arrastando
um botão de rosa e um berço!…
Os bravos partiram profundos e roucos de peitos que arfavam. E em torno de
Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com
um brilho na face, commungando no mesmo enthusiasmo: «Que rajadas!…
Caramba!… Sublime!…»
Rufino sorria bebendo esta commoção, que era a obra do seu verbo.
Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reaes, solemnes e vazias…
Vendo que a cólera da Natureza rugia implacavel elle erguera os olhos
para o natural abrigo, para o exaltado logar d’onde desce a salvação,
para o Throno de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre elle
estenderam-se as azas brancas d’um anjo! Era o anjo da esmola, meus senhores!
E d’onde vinha? d’onde recebera a inspiração da caridade? d’onde
sahia assim, com os seus cabellos d’ouro? Dos livros da sciencia? dos laboratorios
chimicos? d’esses amphitheatros d’anatomia onde se nega covardemente a alma?
das sêccas escólas de philosophia que fazem de Jesus um precursor
de Robespierre? Não! Elle ousára interrogar o anjo, submisso,
com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o espaço divino,
murmurára: «Venho d’além!»
Então pelos bancos apinhados correu um susurro d’enlevo. Era como se
os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto. Um estremecimento
devoto e poetico arrepiava as caias das senhoras.
E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores! Desde
esse momento, a duvida fôra n’elle como a nevoa que o sol, este radiante
sol portuguez, desfaz nos ares… E agora, apesar de todas as ironias da sciencia,
apesar dos escarneos orgulhosos d’um Benan, d’um Littré e d’um Spencer,
elle, que recebera a confidencia divina, podia alli, com a mão sobre
o coração, affirmar a todos bem alto – havia um céo!
– Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento.
E por todo o salão, no aperto e no calor do gaz, os cavalheiros das
Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as mãos,
affirmaram soberbamente o céo!
O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de cólera. Era
o Alencar, de paletot, de gravata branca, cofiando sombriamente os bigodes.
– Que te parece, Thomaz?
– Faz nojo! rugiu surdamente o poeta.
Tremia, revoltado! N’uma noite d’aquellas, toda de poesia, quando os homens
de letras se deviam mostrar como são, filhos da democracia e da liberdade,
vir aquelle pulha pôr-se alli a lamber os pés á familia
real… Era simplesmente ascoroso!
Lá na fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto d’abraços,
de comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo de orgulho e suor. E
pela porta os homens escoavam-se, afogueados, commovidos ainda, puxando das
charuteiras. Então o poeta travou do braço do Ega:
– Ouve lá, eu vinha justamente procurar-te. É o Guimarães,
o tio do Damaso, que me pediu para te ser apresentado… Diz que é
uma coisa séria, muito séria… Está lá em baixo
no botequim, com um grog.
Ega pareceu surprendido… Coisa séria!?
– Bem, vamos nós lá abaixo tomar tambem um grog! E que recitas
tu logo, Alencar?
– A Democracia, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva. Uma coisita
nova, tu verás… São algumas verdades duras a toda essa burguezia…
Estavam á porta do botequim – e precisamente o snr. Guimaráes
sahia, com o chapéo sobre o olho, de charuto accêso, abotoando
a sobrecasaca. Alencar lançou a apresentação, com immensa
gravidade:
– O meu amigo João da Ega… O meu velho amigo Guimarães, um
bravo cá dos nossos, um veterano da Democracia.
Ega acercou-se d’uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano da Democracia,
quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja.
– Tomei agora o meu grog de guerra, disse o snr. Guimarães com seccura,
tenho para toda a noite.
Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega ordenou cerveja.
E directamente, largando o charuto, passando a mão pelas barbas a retocar
a magestade da face, o snr. Guimarães começou com lentidão
e solemnidade:
– Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar para
me apresentar a v. exc.ª, com o fim de o intimar a que olhe bem para
mim e que diga se me acha cara de bebedo…
Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia:
– V. exc.ª refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu…
– Carta que v. exc.ª dictou! Carta que v. exc.ª o forçou
a assignar!
– Eu?…
– Affirmou-m’o elle, senhor!
Alencar interveio:
– Fallem vocês baixo, que diabo!… Isto é terra de curiosos…
O snr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha estado,
contou elle, havia semanas fóra de Lisboa por negocios da herança
de seu irmão. Não vira o sobrinho, porque só por necessidade
se encontrava com esse imbecil. Na vespera, em casa d’um antigo amigo, o Vaz
Forte, deitára por acaso os olhos ao Futuro, um jornal republicano,
bem escripto, mas frouxo de idéas. E avistára logo na primeira
pagina, em typo enorme, sob esta rubrica aliás justa Coisas do highlife,
a carta do sobrinho… Imagine o snr. Ega o seu furor! Alli mesmo, em casa
do Forte, escrevera ao Damaso pouco mais ou menos n’estes termos: «Li
a tua infame declaração. Se ámanhã não
fazes outra, em todos os jornaes, dizendo que não tinhas intenção
de me incluir entre os bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos
um por um. Treme!» Assim lhe escrevera. E sabia o snr. João da
Ega qual fôra a resposta do snr. Damaso?
– Tenho-a aqui, é um documento humano, como diz o amigo Zola! Aqui
está… Grande papel, monogramma d’ouro, corôa de conde. Aquelle
asno! Quer v. exc.ª que eu leia?
A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando:
– «Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr. João
da Ega. Eu era incapaz de tal desacato á nossa querida família.
Foi elle que me agarrou na mão, á força, para eu assignar:
e eu, n’aquella atrapalhação, sem saber o que fazia, assignei
para evitar fallatorios. Foi um laço que me armaram os meus inimigos.
O meu querido tio, que sabe como eu gósto de si, que até estava
o anno passado com tenção, se soubesse a sua morada em Paris,
de lhe mandar meia pipa de vinho de Collares, não fique pois zangado
commigo. Bem infeliz já eu sou! E se quizer procure esse João
da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vingança que
ha de ser fallada! Ainda não decidi qual, n’esta atarantação;
mas em todo o caso a nossa familia ha de ficar desenxovalhada, porque eu nunca
admitti que ninguem brincasse com a minha dignidade… E se o não fiz
já antes de partir para Italia, se ainda não pugnei pela minha
honra, é porque ha dias, com todos estes abalos, veio-me uma tremenda
dysenteria, que estou que me não tenho nas pernas. Isto por cima dos
meus males moraes!…» V. exc.ª ri-se, snr. Ega?
– Pois que quer v. exc.ª que eu faça? balbuciou o Ega por fim,
suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se v.
exc.ª. Isso é extraordinario! Essa dignidade, essa dysenteria…
O snr. Guimarães, embaçado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava
sob os longos bigodes, e terminou por dizer:
– Com effeito, a carta é d’uma cavalgadura… Mas o facto permanece…
Então Ega appellou para o bom senso do snr. Guimarães, para
a sua experiencia das coisas d’honra. Comprehendia elle que dois cavalheiros,
indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente
a assignar uma carta em que elle se declara bebedo?…
O snr. Guimarães, agradado com aquella deferencia pelo seu tacto e
pela sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco
natural.
– E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto não é a Cafraria! E diga-me
o snr. Guimarães outra coisa, de gentleman para gentleman: como considera
seu sobrinho? um homem irreprehensivelmente veridico?
O snr. Guimarães cofiou as barbas, declarou lealmente:
– Um refinado mentiroso.
– Então! gritou Ega em triumpho, atirando os braços ao ar.
De novo Alencar interveio. A questão parecia-lhe satisfactoriamente
finda. E não restava senão os dois apertarem-se a mão
fraternalmente, como bons democratas…
Já de pé, atirou a genebra ás guelas. Ega sorria, estendia
a mão ao snr. Guimarães. Mas o velho demagogo, ainda com uma
sombra na face enrugada, desejou que o snr. João da Ega (se n’isso
não tinha duvida) declarasse, alli diante do amigo Alencar, que não
lhe achava a elle, Guimarães, cara de bebedo…
– Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para chamar
o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do Alencar, e
aos quatro ventos, que lhe acho a cara d’um perfeito cavalheiro e d’um patriota!
Então trocaram um rasgado aperto de mãos – emquanto o snr. Guimarães
affirmava a sua satisfação por conhecer o snr. João da
Ega, moço de tantos dotes e tão liberal. E quando s. exc.ª
quizesse qualquer coisa, politica ou litteraria, era escrever este endereço
bem conhecido no mundo:
– Redaction du RAPPEL, Paris!
Alencar abalára. E os dois deixaram o botequim, trocando impressões
do sarau. O snr. Guimarães estava enojado com a carolice, a sabujice
d’esse Rufino. Quando o ouvira palrar das azas da princeza e da cruz do adro,
quasi lhe gritára cá do fundo: «Quanto te pagam para isso,
miseravel?»
Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapéo:
– Oh snr.ª baroneza, então já nos abandona?
Era a Alvim que descia devagar, com a Joanninha
Villar, atando as largas fitas d’uma capa de pellucia verde. Queixou-se d’uma
dôr de cabeça que a torturava, apesar de ter gostado loucamente
do Rufino… Mas uma noite toda de litteratura, que estafa! E agora, para
mais, ficára lá um homemzinho a fazer musica classica…
– É o meu amigo Cruges!
– Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes
o Pirolito.
– V. exc.ª afllige-me com esse desdem pelos grandes mestres… Não
quer que a vá acompanhar á carruagem? Paciencia… Muito boa
noite, snr.ª D. Joanna!… Um servo seu, snr.ª baroneza! E Deus
lhe tire a sua dôr de cabeça!
Ella voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:
– Não seja impostor! O snr. Ega não acredita em Deus.
– Perdão… Que o Diabo lhe tire a sua dôr de cabeça,
snr.ª baroneza!
O velho democrata desapparecera discretamente. E da ante-sala Ega avistou
logo ao fundo, no tablado, sobre um môcho muito baixo que lhe fazia
roçar pelo chão as longas abas da casaca – o Cruges, com o nariz
bicudo contra o caderno da Sonata, martellando sabiamente o teclado. Foi então
subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada,
quasi vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cançadas, bocejavam
por traz dos leques.
Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho
intimo, a marquesa de Soutal, as duas Pedrosos, a Thereza Darque. E a boa
D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquelle musico
de cabelleira.
– Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.
O Cruges… O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E
era composiçao d’elle, aquella coisa triste?
– É de Beethoven, snr.ª D. Maria da Cunha, a Sonata pathetica.
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marqueza de
Soutal, muito séria, muito bella, cheirando devagar um frasquinho de
saes, disse que era a Sonata pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de
risos suffocados. A Sonata pateta! Aquillo parecia divino! Da extremidade
o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e côr
de papoula:
– Muito bem, snr.ª marqueza, muito catita!
E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam á marqueza,
entre o frou-frou dos leques. Ella triumphava, bella e séria, com um
velho vestido de velludo preto, respirando os saes – emquanto adiante um amador
de barba grisalha cravava n’aquelle rancho ruidoso dois grandes oculos d’ouro
que faiscavam de cólera.
No emtanto, por toda a sala, o susurro crescia. Os encatarrhoados tossiam
livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a Tarde. E cahido sobre o teclado,
oom a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado
por aquella desattenção rumorosa, atabalhoava as notas, n’uma
debandada.
– Fiasco completo, declarou Carlos que se aproximára do Ega e do rancho.
Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpreza! Até que emfim
se via o snr. Carlos da Maia, o Principe Tenebroso! Que fizera elle durante
esse verão? Todo o mundo a esperal-o em Cintra, alguem mesmo com anciedade…
Um chut furioso do amador de barbas grisalhas emmudeceu-a. E justamente Cruges,
depois de bater dois accordes bruscos, arredára o môcho, esgueirava-se
do estrado, enxugando as mãos ao lenço. Aqui e além algumas
palmas resoaram, molles e de cortezia, entre um grande murmurio d’allivio.
E o Ega e Carlos correram á porta, onde já esperavam o marquez,
o Craft, o Taveira – para abraçar, consolar o pobre Cruges que tremia
todo, com os olhos esgazeados.
E immediatamente, no silencio atento que redominava, um sujeito muito magro,
muito alto, surgiu no tablado, com um manuscripto na mão. Alguem ao
lado do Ega disse que era o Prata, que ia fallar sobre o Estado agricola da
provincia do Minho. Atraz, um criado veio collocar sobre a mesa um candelabro
de duas velas: o Prata, d’ilharga para a luz, mergulhou no caderno: e d’entre
o perfil triste e as folhas largas um rumor lento foi escorrendo, rumor de
reza n’uma somnolencia de novena, onde por vezes destacavam como gemidos –
«riqueza dos gados…, esphacelamento da propriedade…, fertil e desprotegida
região…»
Começou então uma debandada sorrateira e formigueira, que nem
os chuts do commissario do sarau, vigilante e de pé sobre um degrau
do estrado, podiam conter. Só as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata
idoso, que se inclinava zelosamente para o murmurio de reza, com a mão
em concha sobre a orelha.
Ega, que fugia tambem «ao vecejante paraiso do Minho», achou-se
em frente do snr. Guimarães.
– Que massada, hein?
O democrata concordou que aquelle preopinante não lhe parecia divertido…
Depois, mais sério, com outra idéa, segurando um botão
da casaca do Ega:
– Eu espero que v. exc.ª ha pouco não ficasse com a impressão
de que eu sou solidario ou me importo com meu sobrinho…
Oh! decerto que não! Ega vira bem que o snr. Guimarães não
tinha pelo Damaso nenhum enthusiasmo de familia.
– Asco, senhor, só asco! Quando elle foi a primeira vez a Paris, e
soube que eu morava n’uma trapeira, nunca me procurou! Porque aquelle imbecil
dá-se ares d’aristocrata… E como v. exc.ª sabe, é filho
d’um agiota!
Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:
– A mãi, sim! Minha irmã era d’uma boa familia. Fez aquelle
desgraçado casamento, mas era d’uma boa familia! Que, com os meus principios,
já v. exc.ª vê que tudo isso de fidalguia, pergaminhos,
brazões, são para mim blague e mais blague! Mas emfim os factos
são os factos, a historia de Portugal ahi está… Os Guimarães
da Bairrada eram de sangue azul.
Ega sorriu, n’um assentimento cortez:
– E v. exc.ª então parte brevemente para Paris?
– Amanhã mesmo, por Bordeus… Agora que toda essa cambada do marechal
de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Descazes foi pelos ares, já
se póde lá respirar…
N’esse instante Telles e o Taveira, passando de braço dado, voltaram-se,
a observar curiosamente aquelle velho austero, todo de preto, que fallava
alto com o Ega de marechaes e de duques. Ega reparou: o democrata, de resto,
tinha uma sobrecasaca de casimira nova; o seu altivo chapéo reluzia;
e Ega ficou de bom grado a conversar com aquelle gentleman correcto e venerando
que impressionava os seus amigos.
– A republica com effeito observou elle, dando alguns passos ao lado do snr.
Guimarães, esteve alli um momento compromettida!
– Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vê, para ser expulso
por causa d’umas verdadesinhas que soltei n’uma reunião anarchista.
Até me affirmaram que n’um conselho de ministros o marechal de Mac-Mahon,
que é um tarimbeiro, batera um murro na mesa e dissera: Ce sacré
Guimaran, il nous embête, faut lui donner du pied dans le derrière!
Eu não estava lá, não sei, mas affirmaram-me… Em Paris,
como os francezes não sabem pronunciar Guimarães, e eu embirro
que me estropiem o nome, assigno Mr. Guimaran. Ha dois annos, quando fui á
Italia, era Mr. Guimarini. E se fôr agora á Russia, cá
por coisas, hei de ser Mr. Guimaroff… Embirro que me estropiem o nome!
Tinham voltado á porta do salão. Longas bancadas vazias punham
dentro, no brilho pesado do gaz, uma tristeza de abandono e tedio; e no estrado
o Prata continuava, de mão no bolso, com o nariz sobre o manuscripto,
sem que se sentisse agora surdir um som d’aquelle espantalho esguio. Mas o
marquez, que descia do fundo, atabafando-se no seu cache-nez de sêda,
disse ao Ega ao passar que o homemzinho era muito pratico, sabia da póda,
e lá tinha ficado ás voltas com Proudhon.
Ega e o democrata recomeçaram então os seus passos lentos na
ante-sala onde o susurro de conversas mal abafadas crescia, como n’um palco,
entre fumaças furtivas de cigarro. E o snr. Guimarães chasqueava,
achando uma boa bêtise que se citasse Proudhon, alli n’aquelle theatreco,
a proposito d’estrumes do Minho…
– Oh, Proudhon entre nós, acudiu Ega rindo, cita-se muito, é
já um monstro classico. Até os conselheiros d’Estado já
sabem que para elle a propriedade era um roubo, e Deus era o mal…
O democrata encolheu os hombros:
– Grande homem, senhor! Homem immenso! São os tres grandes pimpões
d’este seculo: Proudhon, Garibaldi, e o compadre!
– O compadre! exclamou Ega, attonito.
Era o nome d’amizade que o snr. Guimarães dava em Paris a Gambetta.
Gambetta nunca o via, que não lhe gritasse de longe, em hespanhol:
«Hombre, compadre!» E elle tambem, logo: «Compadre, caramba!»
D’ahi ficára a alcunha, e Gambetta ria. Porque lá isso, bom
rapaz, e amigo d’esta franqueza do sul, e patriota, até alli!
– Immenso, meu caro senhor! O maior de todos!
Pois Ega imaginaria que o snr. Guimarães, com as suas relações
do Rappel, devia ter sobretudo o culto de Victor Hugo…
– Esse, meu caro senhor, não é um homem, é um mundo!
E o snr. Guimarães ergueu mais a face, ajuntou infinitamente grave:
– É um mundo!… E aqui onde me vê, ainda não ha tres
mezes que elle me disse uma coisa que me foi direita ao coração!
Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o democrata contou largamente
esse glorioso lance que ainda o commovia:
– Foi uma noite no Rappel. Eu estava a escrever, elle appareceu, já
um pouco trôpego, mas com o olho a luzir, e aquella bondade, aquella
magestade!… Eu ergui-me, como se entrasse um rei… Isto é, não!
que se fosse um rei tinha-lhe dado com a bota no rabiosque. Levantei-me como
se elle fosse um Deus! Qual Deus! não ha Deus que me fizesse levantar!…
Emfim, acabou-se, levantei-me! Elle olhou para mim, fez assim um gesto com
a mão, e disse, a sorrir, com aquelle ar de genio que tinha sempre:
Bonsoir, mon ami!
E o snr. Guimarães deu alguns passos dignos, em silencio, como se aquelle
bonsoir, aquelle mon ami, assim recordados,lhe fizessem mais vivamente sentir
a sua importancia no mundo.
De repente Alencar, que bracejava n’um grupo, rompeu para elles, pallido,
d’olhos chammejantes:
– Que me dizem vocês a esta pouca vergonha? Aquelle infame alli ha meia
hora, com o infolio, a rosnar, a rosnar… E toda a gente a sahir, não
fica ninguem! Tenho de recitar aos bancos de palhinha!…
E abalou, rilhando os dentes, a exhalar mais longe o seu furor.
Mas algumas palmas cançadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O estrado
ficára novamente vazio, com as duas velas ardendo no candelabro. Um
cartão em grossas letras, que um criado collocara no piano, annunciava
um «intervallo de dez minutos» como n’um circo. E n’esse instante
a snr.ª condessa de Gouvarinho sahira pelo braço do marido, deixando
atraz um sulco largo de comprimentos, d’espinhas que se vergavam, de chapéos
de burocratas rasgadamente erguidos. O commissario do sarau azafamava-se procurando
duas cadeiras para ss. exc.as A condessa porém foi reunir-se a D. Maria
da Cunha, que ella vira, com as Pedrosos e a marqueza de Soutal, refugiada
n’um vão de janella. Ega immediatamente acercou-se do rancho intimo,
esperando que as senhoras se beijocassem.
– Então, snr.ª condessa, ainda muito commovida com a eloquencia
do Rufino?
– Muito cansada… E que calor, hein?
– Horrivel. A snr.ª baronesa d’Alvim sahiu ha pouco, com uma dôr
de cabeça…
A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice aos cantos da
boca, murmurou:
– Não admira, isto não é divertido… Emfim, já
agora é necessario levar a cruz ao Calvario.
– Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. Infelizmente é
uma lyra!
Ella riu. E D. Maria da Cunha, n’essa noite mais remoçada e viva, ficou
logo toda banhada n’um sorriso, com aquella carinhosa admiração
pelo Ega, que era um dos seus sentimentos.
– Este Ega!… Não ha mal que lhe chegue!… E diga-me outra coisa,
que é feito do seu amigo Maia?
Ega vira-a momentos antes, no salão, puxar pela manga de Carles, cochichar
com Carlos. Mas conservou um ar innocente:
-Está ahi, anda por ahi, assistindo a toda essa litteratura.
De repente os olhos sempre bonitos e languidos de D. Maria da Cunha rebrilharam
com uma faisca de malicia:
– Fallai no mau… N’este caso seria fallar do bom. Emfim ahi nos vem o Principe
Tenebroso!
E era com effeito Carlos que passava, se encontrára diante dos braços
do conde de Gouvarinho, estendidos para elle com uma effusão em que
parecia renascer o antigo affecto. Pela primeira vez Carlos via a condessa,
desde a noite em que no Aterro, abandonando-a para sempre, fechára
com odio a portinhola da tipoia onde ella ficava chorando. Ambos baixaram
os olhos, ao adiantar a mão um para o outro, lentamente. E foi ella
que findou o embaraço, abrindo o seu grande leque de pennas de avestruz:
– Que calor, não é verdade?
– Atroz! disse Carlos. Não vá v. exc.ª apanhar ar d’essa
janella.
Ella forçou os labios brancos a um sorriso:
– É conselho de medico?
– Oh, minha senhora, não são as horas da minha consulta! É
apenas caridade de christão.
Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido, com a marqueza
de Soutal, para o reprehender por elle não ter apparecido terça-feira
na rua de S. Marçal. Surprehendido com tanto interesse, tanta familiaridade,
o Taveira, muito vermelho, balbuciou que nem sabia, fôra o seu infortunio,
tinham-se mettido umas coisas…
– Além d’isso não imaginei que v. exc.ª começasse
a receber tão cedo… V. exc.ª antigamente era só depois
da Cerração da Velha. Até me lembro que o anno passado…
Mas emmudeceu. O conde de Gouvarinho voltára-se, pousando a mão
carinhosa no hombro de Carlos, desejando a sua impressão sobre o «nosso
Rufino». Elle conde estava encantado! Encantado sobretudo com a variedade
d’escala, aquella arte tão difficil de passar do solemne para o ameno,
de descer das grandes rajadas para os brincados de linguagem. Extraordinario!
– Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros
muitos. Mas não são estes vôos, esta opulencia… É
tudo muito sêcco, idéas e factos. Não entra n’alma! Vejam
os amigos aquella imagem tão pujante, tão respeitosa, do Anjo
da Esmola, descendo devagar, com as azas de setim… É de primeira
ordem.
Ega não se conteve:
– Eu acho esse genio um imbecil.
O conde sorriu, como á tonteria d’uma criança:
– São opiniões…
E estendeu em redor as mãos ao Sousa Netto, ao Darque, ao Telles da
Gama, a outros que se juntavam ao rancho intimo – emquanto os seus correligionarios,
os seus collegas do Centro e da Camara, o Gonçalo, o Neves, o Vieira
da Costa rondavam de longe, sem poder roçar pelo ministro que tinham
creado, agora que elle conversava e ria com rapazes e senhoras da «sociedade».
O Darque, que era parente do Gouvarinho, quiz saber como o amigo Gastão
se ia dando com os encargos do Poder… O conde declarou para os lados que
não fizera mais por ora do que passar em revista os elementos com que
contava para atacar os problemas… De resto, em questões de trabalho,
o ministerio fôra infelicissimo! O presidente do conselho de cama com
uma catarrheira, inutil para uma semana. Agora o collega da fazenda com as
febres do Aterro…
– Está melhor? Já sae? foi em torno a pergunta cheia de cuidado.
– Está na mesma, vai ámanhã para o Dáfundo. Mas
realmente esse não se acha de todo inutilisado. Ainda hontem eu lhe
dizia: «Você parte para o Dáfundo, leva os seus papeis,
os seus documentos… Pela manhã dá os seus passeios, respira
o bom ar… E á noite, depois de jantar, á luz do candieiro,
entretem-se a resolver a questão de fazenda!»
Uma campainha retiniu. D. José Sequeira, escarlate d’azafama, veio,
furando, annunciar a s. exc.ª o fim do intervallo – offerecer o braço
á snr.ª condessa. Ao passar, ella lembrou a Carlos as suas «terças-feiras»,
com a delicada simplicidade d’um dever. Elle curvou-se em silencio. Era como
se todo o passado, o sofá que rolava, a casa da titi em Santa Isabel,
as tipoias em que ella deixava o seu cheiro de verbena – fossem coisas lidas
por ambos n’um livro e por ambos esquecidas. Atraz, o marido seguiu, erguendo
alto a cabeça e as lunetas, como representante do Poder n’aquella festa
da Intelligencia.
– Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem topete!
– Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de paixão,
e agora continúa tranquillamente na rotina da vida.
– E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo comtigo, que
a viste em camisa!… Bonito mundo!
Mas o Alencar appareceu no alto da escada, voltando do botequim e da genebra,
com um brilho maior no olho cavo, de paletot no braço, já preparado
para gorgear. E o marquez juntou-se a elles, abafado no cache-nez de sêda
branca, mais rouco, queixando-se de que a cada minuto a garganta se lhe punha
peor… Aquella canalha d’aquella garganta ainda lhe vinha a pregar uma!…
Depois, muito sério, considerando o Alencar:
– Ouve lá, isso que tu vaes recitar, a Democracia é política
ou sentimento? Se é política, raspo-me. Mas se é sentimento,
e a humanidade, e o santo operario, e a fraternidade, então fico, que
d’isso gosto e até talvez me faça bem.
Os outros affirmaram que era sentimento. O poeta tirou o chapéo, passou
os dedos pelos anneis fôfos da grenha inspirada:
-Eu vos digo, rapazes… Uma coisa não vai sem a outra, vejam vocês
Danton!… Mas já não fallo emfim d’esses leões da Revolução.
Vejam vocês o Passos Manoel! Está claro, é necessario
logica… Mas, tambem, caramba, sêbo para uma politica sem entranhas
e sem um bocado de infinito!
Subitamente, por sobre o novo silencio da sala, um vozeirão mais forte
que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. João de Castro
e de Affonso d’Albuquerque… Todos se acercaram da porta, curiosamente. Era
um maganão gordo, de barba em bico e camelia na casaca, que, de mão
fechada no ar como se agitasse o pendão das Quinas, lamentava aos berros
que nós portuguezes, possuindo este nobre estuario do Tejo e tão
formosas tradições de gloria, deixassemos esbanjar, ao vento
do indifferentismo, a sublime herança dos avós!…
– É patriotismo, disse o Ega. Fujamos!
Mas o marquez reteve-os, gostando tambem de um bocado de Quinas. E foi o pobre
marquez que o patriota pareceu interpellar, alçando na ponta dos botins
o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora ahi, que, agarrando n’uma
das mãos a espada e na outra a cruz, saltasse para o convés
d’uma caravella a ir levar o nome portuguez através dos mares desconhecidos?
Quem havia ahi, heroico bastante, para imitar o grande João de Castro,
que na sua quinta de Cintra arrancára todas as arvores de fructo, tal
a era a isenção da sua alma de poeta?…
– Aquelle miseravel quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega.
Em torno correram risos alegres. O marquez virou costas, enojado com aquella
patriotice reles. Outros bocejavam por traz da mão, n’um tedio completo
de «todas as nossas glorias». E Carlos, enervado, preso alli pelo
dever de applaudir o Alencar, chamava o Ega para irem abaixo ao botequim espairecer
a impaciencia – quando viu o Eusebiosinho que descia a escada, enfiando á
pressa um paletot alvadio. Não o encontrara mais desde a infamia da
Corneta, em que elle fôra «embaixador». E a cólera
que tivera contra elle n’esse dia reviveu logo n’um desejo irresistivel de
o espancar. Disse ao Ega:
– Vou aproveitar o tempo, emquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar as orelhas
áquelle maroto!
– Deixa lá, acudiu Ega, é um irresponsavel!
Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz, inquieto, temendo
uma violencia. Quando chegaram á porta, Eusebio mettera para os lados
do Carmo. E alcançaram-no no largo da Abegoaria, áquella hora
deserto, mudo, com dois bicos de gaz mortiços. Ao vêr Carlos
fender assim sobre elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o
Eusebio, encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por aqui…»
– Ouve cá, estupôr! rugiu Carlos, baixo. Então tambem
andaste mettido n’essa maroteira da Corneta? Eu devia rachar-te os ossos um
a um!
Agarrára-lhe o braço, ainda sem odio. Mas, apenas sentiu na
sua mão de forte aquella carne mollenga e tremula, resurgiu n’elle
essa aversão nunca apagada – que já em pequeno o fazia saltar
sobre o Eusebiosinho, esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam á
quinta. E então abanou-o, como outr’ora, furiosamente, gozando o seu
furor. O pobre viuvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéo
coberto de luto que lhe rolára nas lages, dançava, escanifrado
e desengonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta d’uma cocheira.
– Acudam! Aqui d’el-rei, policia! rouquejou o desgraçado.
Já a mão de Carlos lhe empolgára as guelas. Mas Ega interveio:
– Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua dóse…
Elle mesmo lhe apanhou o chapéo. Tremendo, arquejando, de bruços,
Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de Carlos
atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima d’uma sargeta onde restavam
immundicies e humidade de cavallo.
O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros baços.
Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No peristylo, cheio de luz e
plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado d’amigos, em
caminho para o botequim, limpando ao lenço o pescoço e a face,
exclamando com o cansaço radiante d’um triumphador:
– Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!
Já o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E
com effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de
duas velas.
Esguio, mais sombrio n’aquelle fundo côr de canario, o poeta derramou
pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e
um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solemnidade.
– A Democracia! annunciou o auctor d’Elvira com a pompa d’uma revelação.
Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para
a mesa. E levantando a mão n’um gesto demorado e largo:

Era n’um parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos…

– Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovêlo do marquez.
É sentimento… Aposto que é o festim!
E era com effeito o festim, já cantado na Flôr de Martyrio, festim
romantico, n’um vago jardim onde vinhos de Chypre circulam, caudas de brocado
rojam entre macissos de magnolias, e das aguas do lago sobem cantos ao gemer
dos violoncellos… Mas bem depressa transpareceu a severa idéa social
da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de luar, tudo são «risos,
brindes, lascivos murmurios» – fôra, junto ás grades douradas
do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos,
chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pão… E o poeta,
sacudindo os cabellos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados
n’este orgulhoso seculo XIX? De que servira então, desde Spartacus,
o esforço desesperado dos homens para a Justiça e para a Igualdade?
De que servira então a cruz do grande Martyr, erguida além na
collina, onde, por entre os abetos

Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala…
E as aguias revolteando
D’entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!

A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mãos tremendo
no ar, desolava-se de que todo o Genio das gerações fosse impotente
para esta coisa simples – dar pão á criança que chora!

Martyrio do coração!
Espanto da consciencia!
Que toda a humana sciencia
Não solva a negra questão!

Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja d’um lado a fome
E do outro a indigestão!

Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que rebentava. «E
do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas lyricas, se gritára
nada tão extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d’aquelle
realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões já havia
o bi-carbonato de potassa.
– Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado,
que alargava a fivela do colete.
Mas tudo emmudeceu ante um chut terrível do marquez, que desapertára
o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes
humanitarismos poeticos. E entretanto, no estrado, o Alencar achára
a solução do soffrimento humano! Fôra uma Voz que lh’a
ensinára! Uma Voz sahida do fundo dos seculos, e que através
d’elles, sempre suffocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde
o Golgotha até á Bastilha! E então, mais solemne por
traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como
se aquelle honesto movel de mogno fosse um pulpito e uma barricada – o Alencar,
alçando a fronte n’uma grande audacia á Danton, soltou o brado
temeroso. Alencar queria a Bepublica!
Sim, a Republica! Não a do Terror e a do odio, mas a da mansidão
e do Amor. Aquella em que o Millionario sorrindo abre os braços ao
Operario! Aquella que é Aurora, Consolação, Refugio,
Estrella mystica e Pomba…

Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas azas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!…

Em cima, na galeria, resoou um bravo ardente. E immediatamente, para o suffocar,
sujeitos sérios lançaram, aqui e além: «Chut, silencio!»
Então Ega ergueu as mãos magras, bem alto, berrou com um destaque
atrevido:
– Bravo! Muito bem! Bravo!
E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os lados:
– Aquella democracia é absurda… Mas que os burguezes se dêem
ares intolerantes, isso não! Então applaudo eu!
E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do marquez
que retumbavam como malhos. Outros em volta, immediatamente, não se
querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquelle fidalgo de tão
grande linhagem, reforçaram os bravos com calor. Já pela sala
se voltavam olhares inquietos para aquelle grupo cheio de revolução.
Mas um silencio cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente
previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes iradas o que detestavam,
o que receavam elles, no advento sublime da Republica? Era o pão carinhoso
dado á criança? Era a mão justa estendida ao proletario?
Era a esperança? Era a aurora?

Receaes a grande luz?
Tendes medo do Abecê?…
Então castigai quem lê,
Voltai á plebe soez!
Recuai sempre na Historia,
Apagai o gaz nas ruas,
Deixai as crianças nuas,
E venha a forca outra vez!

Palmas, mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala, que cedia
emfim ao repetido encanto d’aquelle lyrismo humanitario e sonoro. Já
não importava a Republica, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes
e claros; e a sua onda larga arrastava os espiritos mais positivos. Sob aquelle
bafo de sympathia Alencar sorria, com os braços abertos, annunciando
uma a uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que traria a Republica.
Debaixo da sua bandeira, não vermelha mas branca, elle via a terra
coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as nações cantando
nos valles sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque Alencar não queria
uma Republica sem Deus! A Democracia e o Christianismo, como um lirio que
se abraça a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha
do Golgotha tornava-se a tribuna da Convenção! E para tão
dôce ideal não se necessitavam cardeaes, nem missaes, nem novenas,
nem igrejas. A Republica, feita só de pureza e de fé, reza nos
campos; a lua cheia é hostia; os rouxinoes entoam o tantum ergo nos
ramos dos loureiraes. E tudo prospéra, tudo refulge – ao mundo do Conflicto
substitue-se o mundo do Amor…

Á espada succede o arado,
A Justiça ri da Morte,
A escóla está livre e forte,
E a Bastilha derrocada.
Róla a tiára no lodo,
Brota o lirio da Igualdade,
E uma nova Humanidade
Planta a cruz na barricada!

Uma rajada farta e franca de bravos fez oscillar as chammas do gaz! Era a
paixão meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romantico,
da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando
emfim tudo, pondo uma palpitação em cada peito, levando chefes
de repartição a berrarem, estirados por cima das damas, no enthusiasmo
d’aquella republica onde havia rouxinoes! E quando Alencar, alçando
os braços ao tecto, com modulações de preghiera na voz
roufenha, chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o vôo
do Calvario, e vinha com largos sulcos de luz – foi um enternecimento banhando
as almas, um fundo arrepio d’extasi. As senhoras amolleciam nas cadeiras,
com a face meia voltada ao céo. No salão abrazado perpassavam
frescuras de capella. As rimas fundiam-se n’um murmurio de ladainha, como
evoladas para uma Imagem que pregas de setim cobrissem, estrellas d’ouro coroassem.
E mal se sabia já se Essa, que se invocava e se esperava, era a deusa
da Liberdade – ou Nossa Senhora das Dôres.
Alencar no emtanto via-a descer, espalhando um perfume. Já Ella tocava
com os seus pés divinos os valles humanos. Já do seu seio fecundo
trasbordava a universal abundancia. Tudo reflorescia, tudo rejuvenescia:

As rosas têm mais aroma!
Os fructos têm mais doçura!
Brilha a alma clara e pura,
Solta de sombras e véos…
Foge a dôr espavorida,
Foi-se a fome, foi-se a guerra,
O homem canta na terra,
E Christo sorri nos céos!…

Uma acclamação rompeu, immensa e rouca, abalando os muros côr
de canario. Moços exaltados treparam ás cadeiras, dois lenços
brancos fluctuavam. E o poeta, tremulo, exhausto, rolou pela escada até
aos braços que se lhe estendiam frementes. Elle suffocava, murmurava:
«filhos! rapazes!…» Quando Ega correu do fundo, com Carlos,
gritando – «Fôste extraordinario, Thomaz!»… – as lagrimas
saltaram dos olhos do Alencar, quebrado todo d’emoção.
E ao longo da coxia a ovação continuou, feita de palmadinhas
pelo hombro, de shake-hands da gente séria, de «muitos parabens
a v. exc.ª!» Pouco a pouco elle erguia a cabeça, n’um altivo
sorriso que lhe mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta da Democracia,
consagrado, ungido pelo triumpho, com a inesperada missão de libertar
almas! D. Maria da Cunha puxou-lhe pela manga quando elle passou, para murmurar,
encantada, que achára – «lindissimo, lindissimo». E o poeta,
estonteado, exclamou: «Maria, é necessario luz!» Telles
da Gama veio bater-lhe nas costas affirmando-lhe que «piára esplendidamente».
E Alencar, inteiramente perdido, balbuciou: «Sursum corda, meu Telles,
sursum corda!»
Ega no emtanto, através do tumulto, farejava buscando Carlos que desapparecera
depois dos abraços ao Alencar. Taveira assegurou-lhe que Carlos passára
para o botequim. Depois em baixo um garoto jurou que o snr. D. Carlos tomára
uma tipoia e ia já, virando o Chiado…
Ega ficou á porta hesitando se aturaria o resto do sarau. N’esse momento
o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braço, deseja rapidamente, com
a face toda contrariada e sombria. O trintanario de ss. exc.as correu a chamar
o coupé. E quando o Ega se acercou, sorrindo, para saber que impressão
lhes deixára o grande triumpho democratico do Alencar – a profunda
cólera do Gouvarinho escapou-se-lhe, mal contida, por entre os dentes
cerrados:
– Versos admiraveis, mas indecentes!
O coupé avançou. Elle teve apenas tempo de rosnar ainda, surdamente,
apertando a mão ao Ega:
– N’uma festa de sociedade, sob a protecção da rainha, diante
d’um ministro da coroa, fallar de barricadas, prometter mundos e fundos ás
classes proletarias… É perfeitamente indecente!
Já a condessa enfiára a portinhola, apanhando a larga cauda
de sêda. O ministro mergulhou tambem furiosamente na sombra do coupé.
Junto ás rodas passou choutando, n’uma pileca branca, o correio agaloado.
Ega ia subir. Mas o marquez appareceu, abafado n’um gabão d’Aveiro,
fugindo a um poeta de grandes bigodes que ficára em cima a recitar
quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e o marquez detestava versos
feitos a partes do corpo humano. Depois foi o Cruges que surgiu do botequim,
abotoando o paletot. Então, perante essa debandada de todos os amigos,
Ega decidiu abalar tambem, ir tomar o seu grog ao Gremio com o maestro.
Metteram o marquez n’uma tipoia – e elle e Cruges desceram a rua Nova da Trindade,
devagar, no encanto estranho d’aquella noite d’inverno, sem estrellas, mas
tão macia que n’ella parecia andar perdido um bafo de maio.
Passavam á porta do Hotel Alliança quando Ega sentiu alguem,
que se apressava, chamar atraz: – «Ó snr. Ega! V. exc.ª
faz favor, snr. Ega?…»
– Parou, reconheceu o chapéo recurvo, as barbas brancas do snr. Guimarães.
– V. exc.ª desculpe! exclamou o demagogo esbaforido. Mas vi-o descer,
queria dar-lhe duas palavras, e como me vou embora ámanhã…
– Perfeitamente… Ó Cruges, vai andando, já te apanho!
O maestro estacionou á esquina do Chiado. O snr. Guimarães pedia
de novo desculpa. De resto eram duas curtas palavras…
– V. exc.ª, segundo me disseram, é o grande amigo do snr. Carlos
da Maia… São como irmãos…
– Sim, muito amigos…
A rua estava deserta, com alguns garotos apenas á porta alumiada da
Trindade. Na noite escura a alta fachada do Alliança lançava
sobre elles uma sombra maior. Todavia o snr. Guimarães baixou a voz
cautelosa:
– Aqui está o que é… V. exc.ª sabe, ou talvez não
saiba, que eu fui em Paris intimo da mãi do snr. Carlos da Maia…
V. exc.ª tem pressa, e não vem agora a proposito essa historia.
Basta dizer que aqui ha annos ella entregou-me, para eu guardar, um cofre
que, segundo dizia continha papeis importantes… Depois naturalmente, ambos
tivemos muitas outras coisas em que pensar, os annos correram, ella morreu.
N’uma palavra, porque v. exc.ª está com pressa: eu conservo ainda
em meu poder esse deposito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal
por negocios da herança de meu irmão… Ora hoje justamente,
alli no theatro, comecei a reflectir que o melhor era entregal-o á
familia…
O Cruges mexeu-se impaciente:
– Ainda te demoras?
– Um instante! gritou Ega, já interessado por aquelles papeis e pelo
cofre. Vai andando.
Então o snr. Guimarães, á pressa, resumiu o pedido. Como
sabia a intimidade do snr. João da Ega e de Carlos da Maia, lembrára-se
de lhe entregar o cofresinho para que elle o restituisse á familia…
– Perfeitamente! acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no Ramalhete.
– Ah, muito bem! Então v. exc.ª manda um criado de confiança
ámanhã buscal-o… Eu estou no Hotel de Paris, no Pelourinho.
Ou melhor ainda: levo-lh’o eu, não me dá incommodo nenhum, apesar
de ser dia de partida…
– Não, não, eu mando um criado! insistiu o Ega estendendo a
mão ao democrata.
Elle estreitou-lh’a com calor.
– Muito agradecido a v. exc.ª! Eu junto-lhe então um bilhete e
v. exc.ª entrega-o da minha parte ao Carlos da Maia, ou á irmã.
Ega teve um movimento d’espanto:
– Á irmã!… A que irmã?
O snr. Guimarães considerou Ega tambem com assombro. E abandonando-lhe
lentamente a mão:
– A que irmã!? A irmã d’elle, á unica que tem, á
Maria!
Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina:
– Bem, eu vou andando para o Gremio.
– Até logo!
O snr. Guimarães, no emtanto, passava os dedos calçados de pellica
preta pelos longos fios da barba, fitando o Ega, n’um esforço de penetração.
E quando Ega lhe travou do braço, pedindo-lhe para conversarem um pouco
até ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma lentidão
desconfiada.
– Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nós estamos
aqui a enrodilhar-nos n’um equivoco… Eu conheço o Maia desde pequeno,
vivo até agora em casa d’elle, posso afiançar-lhe que não
tem irmã nenhuma…
Então o snr. Guimarães começou a rosnar umas desculpas
embrulhadas que mais enervavam, torturavam o Ega. O snr. Guimarães
imaginava que não era segredo, que todas essas coisas da irmã
estavam esquecidas, desde que houvera reconciliação…
– Como vi, ainda não ha muitos dias, o snr. Carlos da Maia com a irmã
e com v. exc.ª, na mesma carruagem, no caes do Sodré…
– O quê! Aquella senhora! A que ia na carruagem?
– Sim! exclamou o snr. Guimarães irritado, farto emfim d’essa confusão
em que se debatiam. Aquella mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda
Maia, como quizer, que eu conheci de pequena, com quem andei muitas vezes
ao collo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve depois com a besta do Castro
Gomes… Essa mesma!
Era ao meio do Loreto sob o lampeão de gaz. E o snr. Guimarães
de repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror, uma terrivel
pallidez cobrir-lhe a face.
– V. exc.ª não sabia nada d’isto?
Ega respirou fortemente, arredando o chapéo da testa sem responder.
Então o outro, embaçado, terminou por encolher os hombros. Bem,
via que tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometter nos negocios
alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o snr. Ega que aquillo fôra um pesadêlo,
depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente – e desejava ao
snr. João da Ega muitissimo boas noites.
Ega, como a um clarão de relampago, entrevira toda a catastrophe: e
agarrou avidamente o braço do snr. Guimarães, n’um terror que
elle abalasse, desapparecesse, levando para sempre o seu testemunho, esses
papeis, o cofre da Monforte, e com elles a certeza – a certeza por que agora
anciava. E através do Loreto, vagamente, foi balbuciando, justificando
a sua emoção, para tranquillisar o homem, poder lentamente arrancar-lhe
as coisas que soubesse, as provas, a verdade inteira.
– O snr. Guimarães comprehende… Isto são coisas muito delicadas,
que eu suppunha absolutamente ignoradas de todos… De modo que fiquei embatucado,
fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente fallar d’ellas com essa simplicidade…
Porque emfim, aqui para nós, essa senhora não passa em Lisboa
por irmã de Carlos.
O snr. Guimarães atirou logo a mão n’um grande-gesto. Ah, bem!
Então era jogo com elle? Pois tinha feito o snr. Ega perfeitamente…
Com certeza eram coisas muito sérias, que necessitavam toda a sorte
de vêos… Elle comprehendia, comprehendia muito bem!… E realmente,
dada a posição dos Maias em Lisboa, na sociedade, aquella senhora
não era irmã que se apresentasse.
– Mas a culpa não a teve ella, meu caro senhor! Foi a mãi, foi
aquella extraordinaria mãi que o Diabo lhe deu!…
Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de febre:
– O snr. Guimarães conheceu muito essa senhora, a Monforte?
Intimamente! Já a conhecera em Lisboa – mas de longe, como mulher de
Pedro da Maia. Depois viera essa tragedia, ella fugira com o italiano. Elle
abalára tambem para Paris n’esse anno, com uma Clemence, uma costureira
da Levaillant: e, umas coisas enfiando n’outras, negocios e desgraças,
por lá ficára para sempre! Emfim, não era a sua vida
que lhe ia contar… Só mais tarde encontrára a Monforte, uma
noite, no baile Laborde: e d’ahi datavam as suas relações. A
esse tempo já o italiano morrera n’um duello, e o velho Monforte espichára
da bexiga. Ella estava então com um rapaz chamado Trevernnes – n’uma
casa bonita, no Parc Monceaux, em grande chic… Mulher extraordinaria! E
não se envergonhava de confessar que lhe devia obrigações!
Quando essa rapariga, a Clemence, que era um encanto, adoecera do peito, a
Monforte trazia-lhe flôres, frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a
como um anjo… Porque lá isso coração largo e generoso
atá alli! Esta, a filha, a D. Maria, tinha então sete ou oito
annos, linda como os amores… E houvera uma outra pequena do italiano, muito
galantinha tarobem. Oh! muito galantinha tambem! Mas morrera em Londres, essa…
– E com esta Maria andei muitas vezes ao collo, meu caro senhor… Não
sei se ella ainda se lembra d’uma boneca que eu lhe dei, que fallava, dizia
Napoléon… Era no bello tempo do Imperio, até as desavergonhadas
das bonecas eram imperialistas! Depois, quando ella estava em Tours, no convento,
fui lá duas vezes com a mãi. Já então os meus
principios me não permittiam entrar n’esses covis religiosos: mas emfim
fui acompanhar a mãi… E quando ella fugiu com o irlandez, o MacGren,
foi commigo que a mãi veio ter, furiosa, a querer que eu chamasse o
commissario de policia para se prender o irlandez. Por fim metteu-se n’um
fiacre, foi para Fontainebleau, lá fez as pazes, viviam até
juntos… Emfim uma série de trapalhadas.
Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos, succumbido:
– E esta senhora, está claro, não sabia então de quem
era filha…
O snr. Guimarães encolheu os hombros:
– Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte dissera-lhe
sempre que o pai era um fidalgo austriaco com quem ella casára na Mudeira…
Uma mixordia, meu caro senhor, uma mixordia!
– É horrivel! murmurou Ega.
Mas, dizia o snr. Guimarães, que podia tambem fazer a Monforte? Que
diabo, era duro confessar á filha: «Olha que eu fugi a teu pai,
e elle por causa d’isso matou-se!» Não tanto pela questão
de pudor; a rapariga devia perceber que a mãi tinha amantes, ella mesma
aos dezoito annos, coitadinha, já tinha um; mas por causa do tiro,
do cadaver, do sangue…
-A mim mesmo! exclamou o snr. Guimarães, parando, alargando os braços
na rua deserta. A mim mesmo nunca ella fallou do marido, nem de Lisboa, nem
de Portugal. Lembra-me até uma occasião em casa da Clemence,
que eu alludi a um cavallo lazão, um cavallo de Pedro da Maia, em que
ella costumava montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, fallei
só do cavallo. Pois senhores, bate com o leque em cima da mesa, grita
como uma bicha: – Dites donc, mon cher, vous m’embêtez avec ces histoires
de l’autre monde!… Com effeito, bem o podia dizer, eram historias do outro
mundo! Para encurtar: estou convencido que nos ultimos tempos ella mesmo julgava
que Pedro da Maia nunca existira. Uma insensata! Por fim até bebia…
Mas acabou-se! Tinha grande coração, e portou-se muito bem com
a Clemence. Parce sepultis!
– É horrivel! murmurou outra vez o Ega, tirando o chapéo correndo
a mão tremula pela testa.
E agora o seu unico desejo era a accumulação incessante de provas,
de detalhes. Fallou então d’esses papeis, d’esse cofre da Monforte.
O snr. Guimarães não sabia o que elles continham; e não
se admiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaços velhos
do Figaro em que se fallava d’ella…
– É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vespera de partir
para Londres com a filha. Era no tempo da guerra… Já a Maria vivia
com o irlandez, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Communa, todos
aquelles desastres. Quando a Monforte voltou de Londres eu estava em Marselha.
Foi então que a pobre Maria se metteu com o Castro Gomes, creio que
para não morrer de fome… Eu recolhi a Paris, mas não vi mais
a Monforte, que já estava muito doente… Á Maria, collada então
a essa besta do Castro Gomes, um pedante, um rastaquouère mesmo a calhar
para a guilhotina, não tornei tambem a fallar. Se a encontrava era
um comprimento de longe, como n’outro dia, quando a vi na carruagem com v.
exc.ª e com o irmão… De sorte que fui ficando com os papeis.
Nem a fallar a verdade, com estas coisas todas de politica, me lembrei mais
d’elles. E agora ahi estão, ás ordens da familia.
– Se isso não fosse incommodo para v. exc.ª, acudiu Ega, eu passava
agora pelo seu hotel e levava-os logo commigo…
– Incommodo nenhum! Estamos em caminho, é negocio que fica feito!
Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acabára. Um bater de
carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto d’elles passaram duas senhoras,
com um rapaz que bracejava, fallando alto do Alencar. O snr. Guimarães
tirára lentamente do bolso a charuteira: depois parando, para raspar
um phosphoro:
– Então a D. Maria passa simplesmente por parenta?… E como soube
ella? Como foi isso?
Ega, que caminhava com a cabeça cahida, estremeceu como se acordasse.
E começou a tartamudear uma historia confusa, de que elle mesmo córava
na sombra. Sim, Maria Eduarda passava por parenta. Fôra o procurador
que descobrira. Ella rompera com o Castro Gomes, com todo o passado. Os Maias
davam-lhe uma mezada; e vivia nos Olivaes, muito retirada, como filha d’um
Maia que morrera na Italia. Todos gostaram muito d’ella, Affonso da Maia tinha
grande ternura pela pequena…
E de repente indignou-se com estas invenções por onde arrastava
já o nome do nobre velho, exclamou como se abafasse:
– Emfim, nem eu sei, um horror!
– Um drama! resumiu gravemente o snr. Guimarães.
E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento emquanto
elle corria acima buscar os papeis da Monforte.
Só, no largo, Ega ergueu as mãos ao céo n’um desabafo
mudo d’aquella angustia em que caminhava, como um somnambulo, desde o Loreto.
E a sua unica sensação, bem clara – era a indestructivel certeza
da historia do Guimarães, tão compacta, sem uma lacuna, sem
uma falha por onde rachasse e se fizesse cahir aos pedaços. O homem
conhecera Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando
no seu cavallo lazão; encontrára-a em Paris já fugida,
depois da morte do primeiro amante, vivendo com outros; andára então
ao collo com Maria Eduarda a quem se davam bonecas… E desde então
não deixára mais de vêr Maria Eduarda, de a seguir: em
Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o irlandez; nos braços
de Castro Gomes; n’uma tipoia de praça emfim com elle e com Carlos
da Maia, havia dias, no caes do Sodré! Tudo isto se encadeava, concordando
com a historia contada por Maria Eduarda. E de tudo resaltava esta certeza
monstruosa: – Carlos amante da irmã!
Guimarães não descia. No segundo andar surgira uma luz viva,
n’uma janella aberta. Ega recomeçou a passear lentamente pelo meio
do largo. E agora, pouco a pouco, subiu n’elle uma incredulidade contra esta
catastrophe de dramalhão. Era acaso verosimil que tal se passasse,
com um amigo seu, n’uma rua de Lisboa, n’uma casa alugada á mãi
Cruges?… Não podia ser! Esses horrores só se produziam na
confusão social, no tumulto da Meia-Idade! Mas n’uma sociedade burgueza,
bem policiada, bem escripturada, garantida por tantas leis, documentada por
tantos papeis, com tanto registro de baptismo, com tanta certidão de
casamento, não podia ser! Não! Não estava no feitio da
vida contemporanea que duas crianças separadas por uma loucura da mãi,
depois de dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras
distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remotas dos seus destinos –
para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, n’um leito
de concubinagem! Não era possivel. Taes coisas pertencem só
aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para
dar, á alma humana um terror novo… Depois levantava os olhos para
a janella alumiada – onde o snr. Guimarães decerto rebuscava os papeis
na mala. Alli estava porém esse homem com a sua historia em que não
havia uma discordancia por onde ella pudesse ser abalada!… E pouco a pouco
aquella luz viva, sahida do alto, parecia ao Ega penetrar n’essa intrincada
desgraça, aclaral-a toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução.
Sim, tudo isso era provavel no fundo! Essa criança, filha d’uma senhora
que a levára comsigo, cresce, é amante d’um brazileiro, vem
a Lisboa, habita Lisboa. N’um bairro visinho vive outro filho d’essa mulher,
por ella deixado, que cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo,
elle destaca n’esta cidade provinciana e pelintra. Ella por seu lado, loura,
alta, esplendida, vestida pela Laferrière, flôr d’uma civilisação
superior, faz relêvo n’esta multidão de mulheres miudinhas e
morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os
dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se
attrahem! Ha nada mais natural? Se ella fosse feia e trouxesse aos hombros
uma confecção barata da loja da America, se elle fosse um mocinho
encolhido de chapéo côco, nunca se notariam e seguiriam diversamente
nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-se
era provavel… E um dia o snr. Guimarães passa, a verdade terrivel
estala!
A porta do hotel rangeu no escuro, o snr. Guimarães adiantou-se, de
boné de sêda na cabeça, com o embrulho na mão.
– Não podia dar com a chave da mala, desculpe v. exc.ª É
sempre assim quando ha pressa… E aqui temos o famoso cofre!
– Perfeitamente, perfeitamente…
Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata embrulhára
n’um velho numero do Rappel. Ega metteu-a no bolso largo do seu paletot: e
immediatamente, como se qualquer outra palavra entre elles fosse vã,
estendeu a mão ao snr. Guimarães. Mas o outro insistiu em o
acompanhar até á esquina da rua do Arsenal, apesar de estar
de boné. A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma doçura
oriental – e elle, com os seus habitos de jornalista, nunca se deitava senão
tarde, ás duas, tres horas da madrugada…
E então, caminhando devagar, com as mãos nos bolsos e o charuto
entre os dentes, o snr. Guimarães voltou á politica e ao sarau.
A poesia do Alencar (de que esperára muito por causa do titulo, A Democracia)
sahira-lhe consideravelmente chôcha.
– Muita flôr, muita farofia, muita liberdade, mas não havia alli
um ataque em fórma, duas ou tres boas estocadas n’esta choldra da monarchia
e da côrte… Pois não é verdade?
– Sim, com effeito… – murmurou Ega, olhando ao longe, na esperança
d’uma tipoia.
– É como os jornaes republicanos que por ahi ha… Tudo uma palhada,
senhores, tudo uma balofice!… É o que eu lhes digo a elles: – «Ó
almas do diabo, atacai as questões sociaes!»
Felizmente um trem avançava, rolando devagar, do lado do Terreiro do
Paço. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mão ao democrata,
desejou-lhe uma «boa viagem», atirou ao cocheiro a adresse do
Ramalhete. Mas o snr. Guimarães ainda se apoderou da portinhola para
aconselhar ao Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia
de o apresentar a toda aquella gente… E o snr. Ega veria! Não era
cá a grande pose portugueza, d’estes imbecis, d’estes pelintras a darem-se
ares, torcendo os bigodes. Lá, na primeira nação do mundo,
tudo era alegria e fraternidade e espirito a rodos…
– E a minha adresse, na redacção do Rappel! Bem conhecida no
mundo! Emquanto ao embrulhosinho fico descançado…
– Póde v. exc.ª ficar descançado!
– Criado de v. exc.ª… Os meus comprimentos á snr.ª D. Maria!
Na carruagem, através do Aterro, a anciosa interrogação
do Ega a si mesmo foi – que hei de fazer?» Que faria, santo Deus, com
aquelle segredo terrivel que possuia, de que só elle era senhor, agora
que o Guimarães partia, desapparecia para sempre? E antevendo com terror
todas as angustias em que essa revelação ia lançar o
homem que mais estimava no mundo – a sua instinctiva idéa foi guardar
para sempre o segredo, deixal-o morrer dentro em si. Não diria nada;
o Guimarães sumia-se em Paris; e quem se amava continuava a amar-se!…
Não crearia assim uma crise atroz na vida de Carlos – nem soffreria
elle, como companheiro, a sua parte d’essas afflicções. Que
coisa mais impiedosa, de resto, que estragar a vida de duas innocentes e adoraveis
creaturas, atirando-lhes á face uma prova de incesto!…
Mas, a esta idéa de incesto, todas as consequencias d’esse silencio
lhe appareceram, como coisas vivas e pavorosas, flammejando no escuro diante
dos seus olhos. Poderia elle tranquillamente testemunhar a vida dos dois –
desde que a sabia incestuosa? Ir á rua de S. Francisco, sentar-se-lhes
alegremente á mesa, entrevêr através do reposteiro a cama
em que ambos dormiam – e saber que esta sordidez de peccado era obra do seu
silencio? Não podia ser… Mas teria tambem coragem de entrar ao outro
dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face – «Olha que tu és
amante de tua irmã?»
A carruagem parára no Ramalhete. Ega subiu, como costumava, pela escada
particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Accendeu a sua palmatoria;
entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu alguns passos timidos
no tapete, que pareceram já soar tristemente. Um reflexo d’espelho
alvejou ao fundo na sombra da alcova. E a luz cahiu sobre o leito intacto,
com a sua longa colcha lisa, entre os cortinados de sêda. Então
a idéa que Carlos estava áquella hora na rua de S. Francisco,
dormindo com uma mulher que era sua irmã, atravessou-o com uma cruel
nitidez, n’uma imagem material, tão viva e real, que elle viu-os claramente,
de braços enlaçados, e em camisa… Toda a belleza de Maria,
todo o requinte de Carlos desappareciam. Ficavam só dois animaes, nascidos
do mesmo ventre, juntando-se a um canto como cães, sob o impulso bruto
do cio!
Correu para o seu quarto, fugindo áquella visão a que o escuro
do corredor, mal dissipado pela luz tremula, accentuava mais o relêvo.
Aferrolhou a porta; accendeu á pressa sobre o toucador, uma depois
da outra, com a mão agitada, as seis velas dos candelabros. E agora
apparecia-lhe mais urgente, inevitavel, a necessidade de contar tudo a Carlos.
Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cada instante, menos animo para chegar,
encarar Carlos, e destruir-lhe a felicidade e a vida com uma revelação
d’incesto. Não podia! Outro que lh’o dissesse! Elle lá estava
depois para o consolar, tomar metade da sua dôr, carinhoso e fiel. Mas
o desgosto supremo da vida de Carlos não viria de palavras cahidas
da sua boca!… Outro que lh’o dissesse! Mas quem? Mil idéas passavam
na sua pobre cabeça, incoherentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse,
desapparecesse… Escrever uma carta anonyma a Carlos, com a detalhada historia
do Guimarães… E esta confusão, esta anciedade ia-se resolvendo
lentamente em odio ao snr. Guimarães. Para que fallára áquelle
imbecil? Para que insistira em lhe confiar papeis alheios? Para que lh’o apresentára
o Alencar? Ah! se não fosse a carta do Damaso… Tudo provinha do maldito
Damaso!
Agitando-se pelo quarto, ainda de chapéo, os seus olhos cahiram n’um
sobrescripto pousado sobre a mesa de cabeceira. Reconheceu a letra do Villaça.
E nem a abriu… Uma idéa sulcára-o de repente. Contar tudo
ao Villaça!… Porque não? Era o procurador dos Maias. Nunca
para elle houvera segredos n’aquella casa. E esta complicação
singular d’uma senhora da familia, considerada morta e que surge inesperadamente
– a quem a pertencia aclarar senão ao fiel procurador, ao velho confidente,
ao homem que, por herança e por destino, recebera sempre todos os segredos
e partilhára todos os interesses domesticos?… E sem pensar, sem aprofundar
mais, fixou-se logo n’esta decisão salvadora, – que ao menos o socegava,
lhe tirava já do coração um peso de ferro, suffocante
e intoleravel…
Devia acordar cedo, procurar Villaça em casa. Escreveu n’uma folha
de papel – «Acorda-me ás sete». E desceu abaixo, ao longo
corredor de pedra onde dormiam os criados, dependurou este recado na chave
do quarto do escudeiro.
Quando subiu, mais calmo, – abriu então a carta do Villaça.
Era uma curta linha lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzentos mil
reis, no Banco Popular, se vencia d’ahi a dois dias…
– Sêbo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta amarrotada
para o chão.

Capítulo VII

Pontual, ás sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da porta
elle sentou-se na cama um salto – e logo todos os negros cuidados da vespera,
Carlos, a irmã, a felicidade d’aquella casa acabada para sempre, se
lhe ergueram n’alma em sobresalto, como despertando tambem. A portada da varanda
ficára aberta; um ar silencioso e livido de madrugada clareava através
do transparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficou olhando em
redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou nos lençoes, gozando
aquelle bocado de calor e de conchêgo antes d’ir affrontar fóra
as amarguras do dia.
E pouco a pouco, sob o tepido conchêgo dos cobertores em que se atabafára,
começou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menos util, essa correria
estremunhada a casa do Villaça… De que servia procurar o Villaça?
Não se tratava alli de dinheiro, nem de demandas, nem de legalidade
– de nada que reclamasse a experiencia d’um procurador. Era apenas introduzir
um burguez mais n’um segredo tão terrivelmente delicado que elle mesmo
se assustava de o saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz ao
frio, murmurava comsigo: «É uma tolice ir ao Villaça!»
De resto não poderia elle ajuntar em si bastante coragem para contar
tudo a Carlos, logo, n’essa manhã, claramente, virilmente? Era por
fim aquelle caso tão pavoroso como lhe parecera na vespera – um irreparavel
desabamento d’uma vida de homem?… Ao pé da quinta da mãe,
em Celorico, no logar de Vouzeias, houvera um successo parecido, dois irmãos
que innocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papeis para
os banhos. Os noivos ficaram uns dias «embatucados», como dizia
o padre Seraphim; mas por fim já riam, muito amigos, muito divertidos,
quando se tratavam de «manos». O noivo, um rapagão bonito,
contava depois «que ia havendo uma mixordia na familia». Aqui
o engano seguira mais longe, as sensibilidades eram mais requintadas; mas
os seus corações permaneciam livres de toda a culpa, innocentes
absolutamente. Porque ficaria pois a existencia de Carlos para sempre estragada?
A inconsciencia impediu-lhe o remorso: e passado o primeiro horror, de que
lhe podia, na realidade, vir a definitiva dôr? Sómente do prazer
ter findado. Era então como outro qualquer desgosto d’amor. Bem menos
atroz do que se Maria o tivesse trahido com o Damaso!
De repente a porta abriu-se, Carlos appareceu exclamando:
– Então que madrugada foi esta? Disse-me agora lá em baixo o
Baptista… É aventura? duello?
Trazia o paletot todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a gravata
branca da vespera; e decerto chegára da rua de S. Francisco na tipoia
que havia instantes Ega sentira parar na calçada.
Elle sentára-se bruscamente na cama; e estendendo a mão para
os cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que na vespera combinára
uma ida a Cintra com o Taveira… Por precaução mandára-se
chamar… Mas não sabia, acordára cansado…
– Que tal está o dia?
Justamente Carlos fôra correr o transparente da janella. Ahi, na mesa
de trabalho, collocada em plena luz, ficára a caixa da Monforte embrulhada
no Rappel. E Ega pensou n’um relance: – «Se elle repara, se pergunta,
digo tudo!» – O seu pobre coração pôz-se a bater
anciosamente no terror d’aquella decisão. Mas o transparente um pouco
pêrro subiu, uma facha de sol banhou a mesa – e Carlos voltou sem reparar
no cofre. Foi um immenso allivio para o Ega.
– Então, Cintra? disse Carlos, sentando-se aos pés da cama.
Com effeito não é má idéa… A Maria ainda hontem
esteve tambem a fallar d’ir a Cintra… Espera! Podiamos fazer a patuscada
juntos… Iamos no break, a quatro!
E olhava já o relogio, calculando o tempo para atrellar, avisar Maria.
– O peor, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monoculo, é
que o Taveira fallou em irmos com umas raparigas…
Carlos encolheu os hombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres para
Cintra, de dia!… De noite, nas trevas, por bebedeira, vá… Mas á
luz do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?…
Ega embrulhou-se n’uma complicada historia, limpando o monoculo á ponta
do lençol. Não eram hespanholas… Pelo contrario, umas costureiras,
raparigas sérias… Elle tinha um compromisso antigo d’ir a Cintra
com uma d’ellas, filha d’um Simões, um estofador que fallira… Gente
muito séria!…
Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da idéa
de Cintra.
– Bem, acabou-se!… Vou então tomar banho e depois a negocios… E
tu, se fôres, traze-me umas queijadas para a Rosa, que ella gosta!…
Apenas Carlos sahiu, Ega cruzou os braços desanimado, descorçoado,
sentindo bem que não teria coragem nunca de «dizer tudo».
Que havia de fazer?… E de novo, insensivelmente, se refugiou na idéa
de procurar o Villaça, entregar-lhe o cofre da Monforte. Não
havia homem mais honesto, nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade do
seu espirito burguez, quem melhor para encarar aquella catastrophe sem paixão
e sem nervos?… E esta falta de nervos do Villaça fixou-o definitivamente.
Saltou então da cama, n’uma impaciencia, repicou a campainha. E emquanto
o criado não entrava, foi, com o robe-de-chambre aos hombros, examinar
o cofre da Monforte. Parecia com effeito uma velha caixa de charutos, embrulhada
n’um papel de dobras já sujas e gastas, com marcas de lacre onde se
distinguia uma divisa que seria decerto a da Monforte – Pro amore. Na tampa
tinha escripto n’uma letra de mulher mal-ensinada – Monsieur Guimaran, à
Paris. Ao sentir os passos do criado deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia
ao lado, n’uma cadeira. E d’ahi a meia hora rolava pelo Aterro n’uma tipoia
descoberta, mais animado, respirando largamente aquelle bello ar da manhã,
fino e fresco, que elle tão raras vezes gozava.
Começou por uma contrariedade. Villaça já sahira: e a
criada não sabia bem se elle fôra para o escriptorio, se a uma
vistoria ao Alfeite… Ega largou para o escriptorio, na rua da Prata. O snr.
Villaça ainda não viera…
– E a que horas virá?
O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o collete uma
corrente de coral, balbuciou que o snr. Villaça não devia tardar,
se não tivesse atravessado, no vapor das nove, para o Alfeite… Ega
desceu desesperado.
– Bem, gritou ao cocheiro, vai ao café Tavares…
No Tavares, ainda solitario áquella hora, um moço areava o sobrado.
E emquanto esperava o almoço Ega percorreu os jornaes. Todos fallavam
do sarau, em linhas curtas, promettendo detalhes criticos, mais tarde, sobre
esse brilhante torneio artistico. Só a Gazeta Illustrada se alargava,
com phrases sérias, tratando o Rufino de grandioso o Cruges de esperançoso:
no Alencar a Gazeta separava o philosopho do poeta; ao philosopho a Gazeta
lembrava com respeito que nem todas as aspirações ideaes da
philosophia, bellas como miragens de deserto, são realisaveis na pratica
social; mas ao poeta, ao creador de tão formosas imagens, de tão
inspiradas estancias, a Gazeta desafogadamente bradava «bravo! bravo!»
Havia ainda outras abominaveis sandices. Depois seguia-se a lista das pessoas
que a Gazeta se recordava de ter visto, entre as quaes «destacava com
o seu monoculo o fino perfil de João da Ega, sempre brilhante de verve.»
Ega sorriu, cofiando o bigode. Justamente o bife chegava, fumegante, chiando
na frigideirinha de barro. Ega pousou a Gazeta ao lado, dizendo comsigo: «Não
é nada mal feito, este jornal!»
O bife era excellente: – e depois d’uma perdiz fria, d’um pouco de dôce
de ananaz, d’um café forte, Ega sentiu adelgaçar-se emfim aquelle
negrume que desde a vespera lhe pesava n’alma. No fim, pensava elle, accendendo
o charuto e lançando os olhos ao relogio, n’aquelle desastre praticamente
encarado só havia para Carlos a perda d’uma bella amante. E essa perda,
que agora o angustiava, não traria depois compensações?
O futuro de Carlos até ahi tinha uma sombra – aquella promessa de casamento
que irreparavelmente o collava pela honra a uma mulher muito interessante,
mas com um passado cheio de brazileiros e de irlandezes… A sua belleza poetisava
tudo: mas quanto tempo mais duraria esse encanto, o seu brilho de deusa pisando
a terra?… Não seria por fim aquella descoberta do Guimarães
uma libertação providencial? D’ahi a annos Carlos estaria consolado,
sereno como se nunca tivesse soffrido – e livre, e rico, com o largo mundo
diante de si!
O relogio do café deu dez horas. «Bem, vamos a isto», pensou
Ega.
De novo a tipoia bateu para a rua da Prata. O snr. Villaça ainda não
viera, o escrevente estava realmente pensando que o snr. Villaça fôra
ao Alfeite. E diante d’esta incerteza, de repente, Ega ficou de novo descorçoado,
sem coragem. Despediu a tipoia: com o embrulho do cofre na mão foi
andando pela rua do Ouro, depois até ao Rocio, parando distrahidamente
diante d’um ourives, lendo aqui e além a capa d’um livro na vitrine
dos livreiros. Pouco a pouco o negrume da vespera, um momento adelgaçado,
recahia-lhe n’alma mais denso. Já não via as «libertações»
nem as «compensações». Só sentia em torno
de si, como fluctuando no ar, aquelle horror – Carlos a dormir com a irmã.
Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e logo
no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o Villaça que sahia,
atarefado, calçando as luvas.
– Homem, até que emfim!
– Ah! Era o amigo que me tinha procurado?… Pois tenha paciencia, que está
o visconde do Torral á minha espera…
Ega quasi o empurrou. Qual visconde!… Tratava-se d’uma coisa muito urgente,
muito séria! Mas o outro não se arredava da porta, acabando
de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de negocio e de pressa.
– O amigo bem vê… Está o homem á espera! É um
rendez-vous para as onze!
Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto á face,
tragicamente, que se tratava de Carlos, d’um caso de vida ou de morte! Então
o Villaça, n’um grande espanto, atravessou bruscamente o escriptorio,
fez entrar Ega n’um cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapé
de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pó, e um armario ao fundo.
Fechou a porta, atirou o chapéo para a nuca:
– Então que é?
Ega, com um gesto, indicou fóra o escrevente que podia escutar. O procurador
abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel Pelicano pedir ao snr.
visconde do Torral a fineza de esperar meia hora… Depois, fechada a porta
no ferrolho, foi a mesma exclamação anciosa:
– Então que é?
– É um horror, Villaça, um grande horror… Nem eu sei por onde
hei de começar.
Villaça, já muito pallido, pousou lentamente o guardachuva sobre
a mesa.
– É duello?
– Não… É isto… Você sabia que o Carlos tinha relações
com uma snr. Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?…
Uma senhora brazileira, mulher d’um brazileiro, que passára o verão
nos Olivaes?… Sim, Villaça sabia. Fallára até n’isso
com o Eusebiosinho.
– Ah, com o Eusebio?… Pois não é brazileira! É portugueza,
e irmã d’elle!
Villaça cahiu para o canapé, batendo as mãos n’um assombro.
– Irmã do Eusebio!
– Qual do Eusebio, homem!… Irmã de Carlos!
Villaça ficára mudo, sem comprehender, com os olhos terrivelmente
arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: «irmã!
Irmã legitima!» Ega por fim sentou-se no canapé de palhinha;
e baixo, muito baixo, apesar da solidão do escriptorio, contou o seu
encontro com o Guimarães no sarau, e como a verdade terrivel estalára
casualmente, n’uma palavra, á esquina do Alliança… Mas quando
fallou dos papeis, entregues pela Monforte ao Guimarães, ha tantos
annos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora, tão de
repente, tão urgentemente, queria restituir á familia – Villaça,
até ahi esmagado e como emparvecido, despertou, teve uma explosão:
– Ahi ha marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!…
– Apanhar dinheiro! Quem?
– Quem? exclamou Villaça de pé, arrebatadamente. Essa senhora,
esse Guimarães, essa tropa!… É que o amigo não percebe!
Se apparecer uma irmã do Maia, legitima e authentica, são quatrocentos
contos e pico que cabem á irmã do Maia!…
Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impressão
d’aquella idéa inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o
procurador, tremulo, voltava á grande somma de quatrocentos contos,
lembrava a Companhia do Olho Vivo, Ega terminou por encolher os hombros:
– Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ella é incapaz,
absolutamente incapaz, de semelhante intriga. Além d’isso, se é
uma questão de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como
irmã desde que Carlos lhe promettera casar com ella?
Casar com ella! Villaça erguia as mãos, não queria acreditar.
O quê! o snr. Carlos da Maia dar a sua mão, o seu nome, a essa
creatura amigada com um brazileiro?… Santissimo nome de Deus! E através
do assombro recrescia-lhe a desconfiança, via ahi um novo feito do
Olho Vivo.
– Não senhor, Villaça, não senhor! insistiu Ega, já
impaciente. Se a questão é de documentos e se ella os tinha,
verdadeiros ou falsificados, apresentava-os logo, não ia primeiro dormir
com o irmão!
Villaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o
diante d’aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade, empolgada
por uma aventureira… Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava que de resto
a questão não era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna
– o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:
– Espere, homem, ha outra coisa!… Talvez ella seja filha do italiano!
– E então?… Vem a dar na mesma.
– Alto lá! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. Não
tem direito á legitima do pai, e não apanha um real d’esta casa!…
Irra, ahi é que está o ponto!
Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso, desgraçadamente!
Esta era a filha do Pedro da Maia. O Guimarães conhecia-a de a trazer
ao collo, de lhe dar bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas
havia quatro ou cinco annos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com
uma chumbada… A filha d’esse morrera em Londres, pequenina.
Villaça recahiu no canapé, succumbido.
– Quatrocentos contos, que bolada!
Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma certeza legal, havia
já uma forte suspeita. E desde logo não se podia deixar o pobre
Carlos, innocentemente, a chafurdar n’aquella sordidez. Era pois indispensavel
revelar tudo a Carlos n’essa noite…
– E você, Villaça, é que tem de lh’o dizer.
Villaça deu um salto que fez bater o canapé contra a parede.

– Eu?
– Você, que é o procurador da casa!
Que havia alli, senão uma questão de filiação,
portanto de legitima? A quem pertenciam esses detalhes legaes senão
ao procurador?
Villaça murmurou com todo o sangue na face:
– Homem, o amigo mette-me n’uma!…
Não. Ega mettia-o apenas n’aquillo em que o Villaça, como procurador,
logicamente e profissionalmente devia estar.
O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo! Não
era esquivar-se aos seus deveres! Mas é que elle não sabia nada!
Que podia dizer ao snr. Carlos da Maia? «O amigo Ega veio-me contar
isto, que lhe contou um tal Guimarães hontem á noite no Loreto…»
Não tinha a dizer mais nada…
– Pois diga isso.
O outro encarou Ega com olhos que chammejavam:
– Diga isso, diga isso… Que diabo, senhor, é necessario ter topete!
Deu um puxão desesperado ao collete, foi bufando até ao fundo
do cubiculo, onde esbarrou com o armario. Voltou, tornou a encarar o Ega:
– Não se vai a um homem com uma coisa d’essas sem provas… Onde estão
as provas?…
– Ó Villaça, desculpe, você está obtuso!… A que
vim eu aqui senão trazer-lhe as provas, as que ha, boas ou más,
a historia do Guimarães, essa caixa com os papeis da Monforte?…
Villaça, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas mãos,
decifrando o mote do sinete Pro amore.
– Então, abrimol-a?
Já Ega puxára uma cadeira para a mesa. Villaça cortou
o papel, gasto nos cantos, que envolvia o cofre. E appareceu effectivamente
uma velha caixa de charutos pregada com duas taxas, cheia de papeis, alguns
em maços apertados por fitas, outros soltos dentro de sobrescriptos
abertos que tinham o monogramma da Monforte sob uma corôa de marquez.
Ega desembrulhou o primeiro maço. Eram cartas em allemão, que
elle não percebia, datadas de Buda-Pesth e de Carlsruhe.
– Bem, isto não nos diz nada… Adiante!
Outro embrulho, a que Villaça cuidadosamente desapertou o nó
côr de rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura d’um homem de
bigodes e suissas ruivas, entalado na alta gola dourada d’uma farda branca.
Villaça achou a pintura «linda».
– Algum oficial austriaco, rosnou Ega. outro amante… Ça marche.
Iam tirando os papeis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em reliquias.
Um largo enveloppe atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem
recibo, interessou profundamente o Villaça – que percorria os items,
espantado dos preços, das infinitas invenções do luxo.
Contas de seis mil francos! Um só vestido, dois mil francos!… Outro
maço trouxe uma surpreza. Eram cartas de Maria Eduarda á mãi,
escriptas do convento, n’uma letra redonda e trabalhada como um desenho, com
phrasesinhas cheias de gravidade devota, dictadas decerto pelas boas Irmãs;
e n’estas composições, virtuosas e frias como themas, o sincero
coração da rapariga só transparecia n’alguma florzinha,
agora sêcca, pregada no alto do papel com um alfinete.
– Isto põe-se de parte, murmurou Villaça.
Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa,
alastrou os papeis. E entre cartas, «entras contas, bilhetes de visita,
um grande sobrescripto destacou com esta linha a tinta azul: – Pertence a
minha filha Maria Eduarda. Foi Villaça que lançou os olhos rapidamente
á enorme folha de papel que elle continha, luxuosa e documental, com
o monogramma d’ouro sob a corôa de marquez. Quando o passou em silencio
para a mão do Ega parecia suffocado, com todo o sangue nas orelhas.
Ega leu-o alto, devagar. Dizia: – «Como a Maria teve a pequena e anda
muito fraca, e eu tambem me não sinto nada boa com umas pontadas, parece-me
prudente, para o que possa vir a succeder, fazer aqui uma declaração
que te pertence a ti, minha querida filha, e que só sabe o padre Talloux
(Mr. l’abbé Talloux, coadjuteur à Saint-Roch) porque lh’o disse
ha dois annos quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro que
minha filha Maria Eduarda, que costuma assignar Maria Calzaski, por suppôr
ser esse o nome de seu pai, é portugueza e filha de meu marido Pedro
da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a commigo para Vienna,
depois para Paris, e que agora vive em companhia de Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau,
com quem vai casar. E o pai de meu marido era meu sogro Affonso da Maia, viuvo,
que vivia em Bemfica e tambem em Santa Olavia ao pé do rio Douro. O
que tudo se póde verificar em Lisboa pois devem lá estar os
papeis; e os meus erros de que vejo agora as consequencias não devem
impedir que tu, minha querida filha, tenhas a posição e fortuna
que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assigno, no caso que
o não possa fazer diante d’um tabellião, o que tenciono logo
que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deus não permitiu,
peço perdão a minha filha. E assigno com o meu nome de casada
– Maria Monforte da Maia.»
Ega ficou a olhar para o Villaça. O procurador só pôde
murmurar, com as mãos cruzadas sobre a mesa:
– Que bolada! Que bolada!
Então Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia unicamente
a entregar aquelle documento a Carlos, sem commentarios. Mas o Villaça
coçava a cabeça, retomado por uma duvida:
– Eu não sei se este papelinho faria fé em juizo…
– Qual fé, qual juizo! exclamou Ega violentamente. É o bastante
para que elle não torne a dormir com ella!…
Uma pancada timida na porta do cubiculo fêl-o estacar, inquieto. Desandou
a chave. Era o escrevente, que segredou através da frincha:
– O snr. Carlos da Maia ficou agora lá em baixo no carrinho quando
eu entrei, perguntou pelo snr. Villaça.
Houve um pânico! Ega, atarantado, agarrára o chapéo do
Villaça. O procurador atirava ás mãos ambas, para dentro
d’uma gaveta, os papeis da Monforte.
– É talvez melhor dizer que não está, lembrou o escrevente.
– Sim, que não está! foi o grito abafado de ambos.
Ficaram á escuta, ainda pallidos. O dog-cart de Carlos rolou na calçada;
os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-se de não terem
mandado subir Carlos – e alli mesmo, sem outras vacillações
nem pieguices, corajosamente, contarem-lhe tudo, diante d’aquelles papeis
bem abertos. E estava saltado o barranco!
– Homem, dizia o Villaça passando o lenço pela testa, as coisas
querem-se devagar, com methodo. É necessario preparar-se a gente, respirar
para dar bem o mergulho…
Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros papeis
da caixa perdiam o interesse depois d’aquella confissão da Monforte.
Só restava que Villaça apparecesse á noite no Ramalhete
ás oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos subir para a rua de
S. Francisco.
– Mas o amigo ha de lá estar! exclamou o procurador, já aterrado.
Ega prometteu. Villaça teve um pequeno suspiro. Depois, no patamar,
onde viera acompanhar o outro:
– Uma d’estas, uma d’estas!… E eu ainda, tão contente, a jantar no
Ramalhete…
– E eu, com elles, na rua de S. Francisco!…
– Emfim, até á noite !
– Até á noite.
Ega não se atreveu n’esse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar diante
de Carlos, a vêr-lhe a alegria e a paz – sentindo aquella negra desgraça
que descia sobre elle á maneira que a noite descia. Foi pedir as sopas
ao marquez, que desde o sarau se conservava em casa, de garganta entrapada.
Depois, ás oito e meia, quando calculou que Villaça devia estar
já no Ramalhete, deixou o marquez que se enfronhára com o capellão
n’uma partida de damas.
Aquelle lindo dia, toldado de tarde, findára n’uma chuvinha miuda que
transia as ruas. Ega tomou uma tipoia. E parava no Ramalhete, já terrivelmente
nervoso, quando avistou Villaça no portal, de guardachuva sob o braço,
arregaçando as calças para subir.
– Então? gritou-lhe o Ega.
Villaça abriu o guardachuva, para murmurar debaixo, mas em segredo:
– Não foi possivel… Disse que tinha muita pressa, que não
me podia ouvir.
Ega bateu o pé, desesperado:
– Oh homem!
– Que quer o amigo? Havia de o agarrar á força? Ficou para ámanhã…
Tenho de cá estar ámanhã ás onze horas.
Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: «Irra! não sahimos
d’esta!» Foi até ao escriptorio de Affonso. Mas não entrou.
Através d’uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto da
sala apparecia, quente e cheio de conchêgo, no dôce tom côr
de rosa da luz cahindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do whist:
no sofá bordado a matiz D. Diogo, murcho e molle, olhava o lume, cofiando
os bigodes. E, travadas n’alguma questão, a voz do Craft, que perpassou
de cachimbo na mão, e a voz mais lenta de Affonso, tranquillo na sua
poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava furiosamente:
– «Mas se ámanhã houvesse uma bernarda, esse exercito
com que os senhores querem acabar por ser uma escóla de vadiagem é
que lhes havia de guardar as costas… É bom fallar, ter muita philosophia!
Mas quando ellas chegam, se não ha meia duzia de baionetas promptas,
então são as cólicas!…»
Ega foi d’alli aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas serpentinas:
um aroma errava de agua de Lubin e charuto: e o Baptista disse-lhe que o snr.
D. Carlos «sahira havia dez minutos». Fôra para a rua de
S. Francisco! Ia lá dormir! Então enervado, com a longa e triste
noite diante de si, Ega teve um appetite de se atordoar, dissipar n’uma excitação
forte as idéas que o torturavam. Não despedira a tipoia, abalou
para S. Carlos. E findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e duas raparigas,
a Paca e a Carmen Philosopha, prodigalisando o champagne. Ás quatro
da manhã estava bebedo, estatelado sobre o sofá, gemendo sentimentalmente,
só para si, as estrophes de Musset á Malibran… O Taveira e
a Paca, juntinhos na mesma cadeira, elle com o seu ar terno de chulo, ella
muy caliente tambem, debicavam copinhos de gelatina. E a Carmen Philosopha,
empanturrada, desapertada, com o collete embrulhado já n’um Diario
de Noticias, repicava a faca na borda do prato, cantarolando d’olhos perdidos
nos bicos de gaz:

Señor Alcalde mayor,
No prenda usted los ladrones…

Acordou ao outro dia ás nove horas, ao lado da Carmen Philosopha,
n’um quarto de grandes janellas rasgadas por onde entrava toda a melancolia
da escura manhã de chuva. E, emquanto não vinha a tipoia fechada
que a servente correra a chamar, o pobre Ega enojado, vexado, com a lingua
pastosa, os pés nús sobre o tapete, reunindo o fato espalhado,
tinha só uma idéa clara – fugir d’alli para um grande banho,
bem perfumado e bem fresco, onde se purificasse n’uma sensação
viscosa de Carmen e d’orgia que o arrepiava.
Esse banho lustral foi tomal-o ao Hotel Braganza, para se encontrar com Carlos
e com Villaça ás onze horas já lavado e preparado. Mas
precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o Baptista,
voára a buscar ao Ramalhete: depois almoçou: e já batera
meio dia quando se apeou á porta particular dos quartos de Carlos,
com a roupa suja n’uma trouxa.
Justamente Baptista atravessva o patamar com camelias n’um açafate.
– O Villaça já veio? Perguntou-lhe Ega baixo, andando em pontas
de pés.
– O snr. Villaça já lá está dentro ha bocado.
V. exc.ª recebeu a roupa branca?… Eu tambem mandei um fato, porque
n’esses casos sempre dá mais frescura…
– Obrigado, Baptista, obrigado!
E Ega pensava: – «Bem, Carlos já sabe tudo, o barranco está
passado!» Mas demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletot com uma
lentidão cobarde. Por fim, sentindo bater alto o coração,
puxou o reposteiro de velludo. Na ante-camara pesava um silencio; a chuva
grossa fustigava a porta envidraçada, por onde se viam as arvores do
jardim esfumadas na nevoa. Ega levantou o outro reposteiro que tinha bordadas
as armas dos Maias.
– Ah! és tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de trabalho com uns
papeis na mão.
Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe rebrilhavam,
com um fulgor sêcco, anciosos e mais largos na pallidez que o cobria.
Villaça, sentado defronte, passava vagarosamente pela testa, n’um movimento
cansado, o lenço de sêda da India. Sobre a mesa alastravam-se
os papeis da Monforte.
– Que diabo de embrulhada é esta que me vem contar o Villaça?
rompeu Carlos, cruzando os braços diante do Ega, n’uma voz que apenas
de leve tremia.
Ega balbuciou:
– Eu não tive coragem de te dizer…
– Mas tenho eu para ouvir!… Que diabo te contou esse homem?
Villaça ergueu-se immediatamente. Ergueu-se com a pressa d’um galucho
timido que é rendido n’um posto arriscado, pediu licença, se
não precisavam d’elle, para voltar ao escriptorio. Os amigos decerto
preferiam conversar mais livremente. De resto, alli ficaram os papeis da snr.ª
D. Maria Monforte. E se elle fosse necessario um recado encontrava-o na rua
da Prata ou em casa…
– E v. exc.ª comprehende, acrescentou elle enrolando nas mãos
o lenço de sêda, eu tomei a iniciativa de vir fallar, por ser
o meu dever, como amigo confidencial da casa… Foi essa tambem a opinião
do nosso Ega…
– Perfeitamente, Villaça, obrigado! acudiu Corlos. Se fôr necessario
lá mando…
O procurador, com o lenço na mão, lançou em redor um
olhar lento. Depois espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surprehendido.
E Carlos seguia com impaciencia os passos timidos que elle dava pelo quarto,
procurando…
– Que é, homem?
– O meu chapéo. Imaginei que o tinha posto aqui… Naturalmente ficou
lá fóra… Bem, se fôr necessario alguma coisa…
Mal elle sahiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos fechou
violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, cahindo pesadamente n’uma
cadeira:
– Dize lá!
Ega, sentado no sofá, começou por contar o encontro com o snr.
Guimarães, em baixo no botequim da Trindade, depois de ter fallado
o Rufino. O homem queria explicações sobre a carta do Damaso,
sobre a bebedeira hereditaria… Tudo se aclarára, ficando d’ahi entre
elles um começo de familiaridade…
Mas o reposteiro mexeu de leve – e surdiu de novo a face do Villaça:
– Peço desculpa, mas é o meu chapéo… Não o acho,
havia de jurar que o deixei aqui…
Carlos conteve uma praga. Então Ega procurou tambem, por traz do sofá,
no vão da janella. Carlos, desesperado, para findar, foi vêr
entre os cortinados da cama. E Villaça, escarlate, afflicto, esquadrinhava
até a alcova do banho…
-Um sumiço assim! Emfim, talvez me esquecesse na ante-camara!… Vou
vêr outra vez… O que peço é desculpa.
Os dois ficaram sós. E Ega recomeçou, detalhando como Guimarães,
duas ou tres vezes nos intervallos, lhe viera fallar de coisas indifferentes,
do sarau, de politica, do papá Hugo, etc. Depois elle procurára
Carlos para irem um bocado ao Gremio. Terminára por sahir com o Cruges.
E passavam defronte do Alliança…
Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a suas excellencias:
– É o snr. Villaça que não acha o chapéo, diz
que o deixou aqui…
Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para despachar
o Baptista.
– Vai para o diabo tu e o snr. Villaça!… Que sáia sem chapéo!
Dá-lhe o meu! Irra!
Baptista recuou, muito grave.
Vá, acaba lá! exclamou Carlos, recahindo no assento, mais pallido.
E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o Guimarães,
desde o momento em que o homem por acaso, já ao despedir-se, já
ao estender-lhe a mão, fallára da «irmã do Maia».
Depois entregára-lhe os papeis da Monforte á porta do Hotel
de Paris, no Pelourinho…
– E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei!
Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao Villaça… Fui ao Villaça
com a esperança sobretudo de elle saber algum facto, ter algum documento
que atirrasse por terra toda esta historia do Guimarães… Não
tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!
No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do
jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arrebatadamente, n’uma
revolta de todo o sêr:
– E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um homem
como eu, como tu, n’uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher, ólho para
ella, conheço-a, durmo com ella e, entre todas as mulheres do mundo,
essa justamente ha de ser minha irmã! É impossivel… Não
ha Guimarães, não ha documentos que me convençam!
E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhos no chão:
– Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. Duvída tambem, homem, duvída
commigo!… É extraordinario! Todos vocês acreditam, como se
isto fosse a coisa fosse a coisa mais natural do mundo, e não houvesse
por essa cidade fóra senão irmaõs a dormir juntos!
Ega murmurou:
– Já ia succedendo um caso assim, lá ao pé da quinta,
em Celorico…
E n’este momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia appareceu
n’uma abertura do reposteiro, encostada á bengala, sorrindo todo com
alguma idéa que decerto o divertia. Era ainda o chapéo do Villaça.
– Que diabo fizeram vocês ao chapéo do Villaça? O pobre
homem andou por ahi afflicto… Teve de levar um chapéo meu. Cahia-lhe
pela cabeça abaixo, enchumaçaram-lh’o com lenços…
Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na atarantação
do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente d’elle para Carlos.
Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento:
– Que é isso, que têm vocês?… Ha alguma coisa?
Então Carlos, no ardente egoismo da sua paixão, sem pensar no
abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio só de esperança
que elle, seu avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse
alguma certeza contraria a toda essa historia de Guimarães, a todos
esses papeis da Monforte – veio para elle, desabafou:
– Ha uma coisa extraordinaria, avô! O avô talvez saiba… O avô
deve saber alguma coisa que nos tire d’esta afflicção!… Aqui
está, em duas palavras. Eu conheço ahi uma senhora que chegou
ha tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se
que é minha irmã legitima!… Passou ahi um homem que a conhecia,
que tinha uns papeis… Os papeis ahi estão. São cartas, uma
declaração de minha mãi… Emfim uma trapalhada, um montão
de provas… Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada
em pequena, não morreu?… O avô deve saber!
Affonso da Maia, que um tremor tomára, agarrou-se um momento com força
á bengala, cahiu por fim pesadamente n’uma poltrona, junto do reposteiro.
E ficou devorando o neto, o Ega, com o olhar esgazeado e mudo.
– Esse homem, exclamou Carlos, é Guimarães, um tio do Damaso…
Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis… Conta tu ao avô,
Ega, conta tu do comêço!
Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer que
o importante, o decisivo alli era este homem, o Guimarães, que não
tinha interesse em mentir e só por acaso, puramente por acaso, fallára
em taes coisas – conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de Pedro
da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista. Vira-a crescer em
Paris, andára com ella ao collo, dera-lhe bonecas. Visitára-a
com a mãi no convento. Frequentára a casa que ella habitava
em Fontainebleau, como casada…
– Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n’uma carruagem, commigo
e com o Ega… Que lha parece, avô?
O velho murmurou, n’um grande esforço, como se as palavras sahindo
lhe rasgassem o coração:
– Essa senhora, está claro, não sabe nada…
Ega e Carlos, a um tempo, gritaram: – «Não sabe nada!»
Segundo affirmava o Guimarães, a mãi escondera-lhe sempre a
verdade. Ella julgava-se filha d’um autriaco. Assignava-se ao principio Calzaski…
Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na mão:
– Aqui tem o avô a declaração de minha mãi.
O velho levou muito tempo a procurar. a tirar a luneta d’entre o collete com
os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar, empallidecendo mais
a cada linha, respirando penosamente; ao findar deixou cahir sobre os joelhos
as mãos, que ainda agarravam o papel, ficou como esmagado e sem força.
As palavras por fim vieram-lhe apagadas, morosas. Elle nada sabia… O que
a Monforte alli assegurava, elle não podia destruir… Essa senhora
da rua de S. de Francisco era talvez na verdade sua neta… Não sabia
mais…
E Carlos diante d’elle vergava os hombros, esmagado tambem sob a certeza da
sua desgraça. O avô, testemunha do passado, nada sabia! Aquella
declaração, toda a historia do Guimarães ahi permaneciam
inteiras, irrefutaveis. Nada havia, nem memoria de homem, nem documento de
escripto, que as pudesse abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irmã!…
E um defronte do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma dôr
– nascida da mesma idéa.
Por fim Affonso ergueu-se, fortemente encostado á bengala, foi pousar
sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes tocar, ás
cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois, lentamente, passando
a mão pela testa:
– Nada mais sei… Sempre pensamos que essa criança tinha morrido…
Fizeram-se todas as pesquizas… Ella mesma disse que lhe tinha morrido a
filha, mostrou já não sei a quem um retrato…
– Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O Guimarães
fallou-me n’isso… Foi esta que viveu. Esta, que tinha já sete ou
oito annos, quando havia apenas quatro ou cinco que esse sujeito italiano
apparecera em Lisboa… Foi esta.
– Foi esta, murmurou o velho.
Teve um gesto vago de resignação, acrescentou, depois de respirar
fortemente:
– Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado… Parece-me bom tornar a chamar
o Villaça… Talvez seja necessario que elle vá a Paris… E
antes de tudo precisamos socegar… De resto não ha aqui morte d’homem…
Não ha aqui morte d’homem!
A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a mão a Carlos que lh’a
beijou, suffocado; e o velho, puxando o neto para si, pousou-lhe os labios
na testa. Depois deu dois passos para a porta, tão lentos e incertos
que Ega correu para elle:
– Tome v. exc.ª o meu braço…
Affonso apoiou-se n’elle, pesadamente. Atravessaram a ante-camara silenciosa
onde a chuva contínua batia nos vidros. Por traz d’elles cahiu o grande
reposteiro com as armas dos Maias. E então Affonso, de repente, soltando
o braço do Ega, murmurou-lhe, junto á face, no desabafo de toda
a sua dôr:
– Eu sabia d’essa mulher!… Vive na rua de S. Francisco, passou todo o verão
nos Olivaes… É a amante d’elle!
Ega ainda balbuciou: «Não, não, snr. Affonso da Maia!»
Mas o velho pôz o dedo nos labios, indicou Carlos dentro que podia ouvir…
E afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido emfim por aquelle implacavel
destino que depois de o ter ferido na idade de força com a desgraça
do filho – o esmagava ao fim de velhice com a desgraça do neto.
Ega enervado, exhausto, voltou para o quarto – onde Carlos recomeçára
n’aquelle agitado passeio que abalava o soalho, fazia tilintar finamente os
frascos de crystal sobre o marmore da console. Calado, junto da mesa, Ega
ficou percorrendo outros papeis da Monforte – cartas, um livrinho de marroquim
com adresses, bilhetes de visita de membros do Jockey Club e de senadores
do imperio. Subitamente Carlos parou diante d’elle, apertando desesperadamente
as mãos:
– Estarem duas creaturas em pleno céo, passar um quidam, um idiota,
um Guimarães, dizer duas palavras, entregar uns papeis e quebrar para
sempre duas existencias!… Olha que isto é horrivel, Ega!
Ega arriscou uma consolação banal:
– Era peor se ella morresse…
– Peor porque? exclamou Carlos. Se ella morresse, ou eu, acabava o motivo
d’esta paixão, restava a dôr e a saudade, era outra coisa…
Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a paixão que
nos unia!… Pois tu imaginas que por me virem provar que ella é minha
irmã, eu gósto menos d’ella do que gostava hontem, ou gósto
d’um modo differente? Está claro que não! O meu amor não
se via d’uma hora para a outra accommodar a novas circumstancias, e transformar-se
em amizade… Nunca! Nem eu quero!
Era uma brutal revolta – o seu amor defendendo-se, não querendo morrer,
só porque as revelações d’um Guimarães e uma caixa
de charutos cheia de papeis velhos o declaravam impossivel, e lhe ordenavam
que morresse!
Houve outro melancolico silencio. Ega accendeu uma cigarrette, foi-se enterrar
ao canto do sofá. Uma fadiga ia-o vencendo, feita de toda aquella emoção,
da noitada do Augusto, da estremunhada manhã na alcova da Carmen. Todo
o quarto foi entristecendo, á luz mais triste da tarde d’inverno que
descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu outra
exclamação de Carlos, que de novo, diante d’elle, apertava as
mãos com desespero:
– E o peor ainda não é isto, Ega! O peor é que temos
de lhe dizer tudo, a ella!…
Ega já pensára n’isso… E era necessario que se lhe dissesse
immediatamente, sem hesitações.
– Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos.
– Tu!?
– Pois quem, então? Querias que fosse o Villaça?…
Ega franzia a testa:
– O que tu devias fazer era metter-te esta noite no comboio, e partir para
Santa Olavia. De lá contavas-lhe tudo. Estavas assim mais seguro.
Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga:
– Sim, talvez, ámanhã, no comboio da noite… Já pensei
n’isso, era o melhor… Agora o que estou é muito cansado!
– Tambem eu, disse o Ega espreguiçando-se. E já não adiantamos
nada, atolamo-nos mais na confusão. O melhor é serenar… Eu
vou-me estirar um bocado na cama.
– Até logo!
Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu immenso cansaço
bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da porta. Era Carlos que
entrava, raspando um phosphoro. Anoitecera, em baixo tocava a campainha para
o jantar.
– Demais a mais esta massada do jantar! dizia Carlos accendendo as velas no
toucador. Não termos um pretexto para irmos fóra, a uma taverna,
conversar em socego! Ainda por cima convidei hontem o Steinbroken.
Depois voltando-se:
– Ó Ega, tu achas que o avô sabe tudo?
O outro saltára da cama, e diante do lavatorio arregaçava as
mangas:
– Eu te digo… Parece-me que teu avô desconfia… O caso fez-lhe a
impressão de uma catastrophe… E, se não suspeitasse o que
ha, devia-lhe causar simplesmente a surpreza de quem descobre uma neta perdida.
Carlos teve um lento suspiro. D’ahi a um instante desciam para o jantar.
Em baixo encontraram, além de Steinbroken e D. Diogo – o Craft, que
viera «pedir as sopas». E em tôrno áquella mesa,
sempre alegre, coberta de flôres e de luzes, uma melancolia fluctuava
n’essa tarde através d’uma conversa dormente sobre doenças,
– o Sequeira que tinha rheumatismo, o pobre marquez peorára.
De resto Affonso, no escriptorio, queixára-se d’uma forte dôr
de cabeça, que justificava o seu ar consumido e pallido. Carlos, a
quem Steinbroken achára «má cara», explicou tambem
que passára uma noite abominavel. Então Ega, para desanuviar
o jantar, pediu ao amigo Steinbroken as suas impressões sobre o grande
orador do sarau da Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surprehendera-o
bastante saber que o Rufino era um politico, um parlamentar… Aquelles gestos,
o bocado da camisa a vêr-se-lhe no estomago, a pera, a grenha, as botas,
não lhe pareciam realmente d’um Homem d’Estado:
– Mais cependant, cependant… Dans ce genre à, dans le genre sublime,
dans le genre de Demosthènes, il m’a paru très fort… Oh, il
m’a paru excessivement fort!
– E você, Craft?
Craft, no sarau, só gostára do Alencar. Ega encolheu violentamente
os hombros. Ora historias! Nada podia haver mais comico que a democracia romantica
do Alencar, aquella Republica meiga e loura, vestida de branco como Ophelia,
orando no prado, sob o olhar de Deus… Mas Craft justamente achava tudo isso
excellente por ser sincero. O que feria sempre nas exhibições
da litteratura portugueza? A escandalosa falta de sinceridade. Ninguem, em
verso ou prosa, parecia jámais acreditar n’aquillo que declamava com
ardor, esmurrando o peito. E assim fôra na vespera. Nem o Rufino parecia
acreditar na influencia da religião; nem o homem da barba bicuda no
heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem mesmo o poeta dos olhinhos bonitos
na bonitice dos olhinhos… Tudo contrafeito e postiço! Com o Alencar,
que differença! Esse tinha uma fé real no que cantava, na Fraternidade
dos povos, no Christo republicano, na Democracia devota e coroada d’estrellas…
– Já deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que rolava
bolinhas de pão entre os longos dedos pallidos.
Carlos, ao lado, emergiu emfim do seu silencio:
– O Alencar deve ter bons cincoenta annos.
Ega jurou pelo menos sessenta. Já em 1836 o Alencar publicava coisas
delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas virgens que seduzira…
– Ha que annos, com effeito, murmurou lentamente Affonso, eu ouvi fallar d’esse
homem!
D. Diogo, que levára os labios ao copo, voltou-se para Carlos:
– O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai… Eram intimos, d’essa roda
distinguée d’então. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre
D. João da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma fina
flôr, e regulavam pela mesma idade… Já nada resta, já
nada resta!
– Carlos baixára os olhos: todos por acaso emmudeceram: um ar de tristeza
passou entre as flôres e as luzes como vinda do fundo d’esse passado,
cheio de sepulturas e dôres.
– E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir aquella
nevoa.
Craft achava o fiasco justo. Para que fôra elle dar Beethoven a uma
gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega não admittia esse
desdem por Offenbach, uma das mais finas manifestações modernas
do scepticismo e da ironia! Steinbroken accusou Offenbach de não saber
contra-ponto. Durante um momento discutiu-se musica. Ega acabou por sustentar
que nada havia em arte tão bello como o fado. E appellou para Affonso,
para o despertar.
– Pois não é verdade, snr. Affonso da Maia? V. exc.ª tambem
é como eu, um dos fieis ao fado, á nossa grande creação
nacional.
– Sim, com effeito, murmurou o velho, levando a mão á testa,
como a justificar o seu modo desinteressado e murcho. Ha muita poesia no fado…
– Craft porém atacava o fado, as malagueñas, as peteneras –
toda essa musica meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo,
prolongado infinitamente, em ais de esterilidade e de preguiça. Elle,
por exemplo, ouvira uma noite uma malagueña, uma d’essas famosas malagueñas,
cantada em perfeito estylo por uma senhora de Malaga. Era em Madrid, em casa
dos Villa-Rubia. A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobre piedra
e sepultura, e rompe a gemer n’um gemido que não findava – ã-ã-ã-ã-ã-ah…
Pois senhores, elle aborrece-se, passa para a outra sala, vê jogar todo
um robber de whist, folheia um immenso album, discute a guerra carlista com
o general Jovellos, e quando volta, lá estava ainda a senhora, de cravos
na trança e olhos no tecto, a gemer o mesmo – ã-ã-ã-ã-ã-ah!…
Todos riram. Ega protestou com impeto, já excitado. O Craft era um
sêcco inglez, educado sobre o chato seio da Economia Politica, incapaz
de comprehender todo o mundo de poesia que podia conter um ai! Mas elle não
fallava das malagueñas. Não estava encarregado de defender a
Hespanha. Ella possuia, para convencer o Craft e outros britannicos, bastante
pilheria e bastante navalha… A questão era o fado!
– Onde é que você tem ouvido o fado? Ahi pelas salas, ao piano…
Com effeito assim, concordo, é chôcho. Mas ouça-o você
por tres ou quatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bella lua no
céo… Como nos Olivaes este verão, quando o marquez lá
levou o Vira-vira! Lembras-te, Carlos?…
E estacou, como enlatado, no arrependimento d’aquella memoria da toca que
levianamente evocára. Carlos permanecera silencioso, com uma sombra
na face. Craft ainda rosnou que, n’uma linda noite de luar, todos os sons
do campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo uma estranha desanimação
amolleceu a sala; os escudeiros serviam os dôces.
Então, no silencio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua magestade
de leão saudoso que relembra um grande passado:
– Uma musica tambem muito distinguée antigamente eram os sinos do mosteiro.
Parecia mesmo que se estavam ouvindo os sinos… Já não ha d’isso!
O jantar terminava friamente. Steinbroken voltára áquella falta
da familia real no sarau, que desde a vespera o inquietava. Ninguem alli se
interessava pelo Paço. Depois D. Diogo surdiu com uma velhe e fastidiosa
historia sobre a infanta D. Isabel. Foi um allivio quando o escudeiro trouxe
em volta a larga bacia de prata e o jarro d’agua perfumada.
Ao fim do café, servido no bilhar, Steinbroken e Craft começaram
uma partida «ás cincoenta» e a quinze tostões para
interessar. Affonso e D. Diogo tinham recolhido ao escriptorio. Ega enterrára-se
no fundo de uma poltrona, com o Figaro. Mas bem depressa deixou escorregar
a folha no tapete, cerrou os olhos. Então Carlos, que passeava pensativamente
fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por traz do reposteiro.

Ia á rua de S. Francisco.
Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado n’um paletot
de pelles, acabando o charuto. A noite clareára, com o crescente de
lua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sobre um norte fino.
Fôra n’essa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir fallar
a Maria Eduarda – por um motivo supremo de dignidade e de razão, que
elle descobrira e que repetia a si mesmo incessantemente para se justificar.
Nem ella nem elle eram duas crianças frouxas, necessitando que a crise
mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo
Villaça: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante resoluto, e
o juizo bastante seguro, para elles mesmos acharem o caminho da dignidade
e da razão n’aquella catastrophe que lhes desmantelava a existencia.
Por isso elle, só elle devia ir á rua de S. Francisco.
Decerto era terrivel tornar a vêl-a n’aquella sala, quente ainda do
seu amor, agora que a sabia sua irmã… Mas porque não? Havia
acaso alli dois devotos, possuidos da preoccupação do demonio,
espavoridos pelo peccado em que se tinham atolado ainda que inconscientemente,
anciosos por irem esconder no fundo de mosteiros distantes o horror carnal
um do outro? Não! Necessitavam elles acaso pôr immediatamente
entre si as compridas legoas que vão de Lisboa a Santa Olavia, com
receio de cahir na antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem
com a antiga chamma? Não! Ambos tinham em si bastante força
para enterrar o coração sobre a razão, como sob uma fria
e dura pedra, tão completamente que não lhe sentissem mais nem
a revolta nem o chôro. E elle podia desafogadamente voltar áquella
sala, toda quente ainda do seu amor…
De resto, que precisavam appellar para a razão, para a sua coragem
de fortes?… Elle não ia revelar bruscamente toda a verdade a Maria
Eduarda, dizer-lhe um «adeus!» pathetico, um adeus de theatro,
affrontar uma crise de paixão e dôr. Pelo contrario! Toda essa
tarde, através do seu proprio tormento, procurára anciosamente
um meio de adoçar e graduar áquella pobre creatura o horror
da revelação que lhe devia. E achára um por fim, bem
complicado, bem cobarde! Mas que! Era o unico, o unico que por uma preparação
lenta, caridosa, lhe pouparia uma dôr fulminante e brutal. E esse meio
justamente só era praticavel indo elle, com toda a frieza, com todo
o animo, á rua de S. Francisco.
Por isso ia – e ao longo do Aterro retardando os passos, resumia, retocava
esse plano, ensaiando mesmo comsigo, baixo, palavras que lhe diria. Entraria
na sala, com um grande ar de pressa – e contava-lhe que um negocio de casa,
uma complicação de feitores o obrigava a partir para Santa Olavia
d’ahi a dias. E immediatamente sahia, com o pretexto de correr a casa do procurador.
Podia mesmo ajuntar – «é um momento, não tardo, até
já.» Uma coisa o inquietava. Se ella lhe désse um beijo?…
Decidia então exagerar a sua pressa, conservando o charuto na bôca,
sem mesmo pousar o chapéo… E sahia. Não voltava. Pobre d’ella,
coitada, que ia esperar até tarde, escutando cada rumor de carruagem
na rua!… Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o Ega, deixando-lhe
a ella uma carta a annunciar que infelizmente, por causa d’um telegramma,
se viria forçado a partir n’esse comboio. Podia mesmo ajuntar – «volto
d’aqui a dois ou tres dias…» E ahi estava longe d’ella para sempre.
De Santa Olavia escrevia-lhe logo, d’um modo incerto e confuso, fallando de
documentos de familia, inesperadamente descobertos, provocando entre elles
um parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto, «á pressa».
Por fim n’outra carta deixava escapar toda a verdade, mandava-lhe a declaração
da mãe; e mostrando a necessidade d’uma separação, emquanto
se não esclarecessem todas as duvidas, pedia-lhe que partisse para
Paris. Villaça ficava encarregado da questão de dinheiro, entregando-lhe
logo para a viagem trezentas ou quatrocentas libras… Ah! Tudo isto era bem
complicado, bem covarde! Mas só havia esse meio. E quem, senão
elle, o podia tentar com caridade e com tacto?
E, entre o tumulto d’estes pensamentos, de repente achou-se na travessa da
Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, através das cortinas,
transparecia uma luz dormente. Todo o resto estava apagado – a janella do
gabinete estreito onde ella se vestia, a varanda do quarto d’ella com os vasos
de chrysantemos.
E pouco a pouco aquella fachada muda d’onde apenas sahia, a um canto, uma
claridade languida d’alcova adormecida, foi-o estranhamente penetrando de
inquietação e desconfiança. Era uma medo d’essa penumbra
molle que sentia lá dentro, toda cheia de calor e do perfume em que
havia jasmim. Não entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro, pensando
em certos detalhes da casa – o sofá largo e profundo com almofadas
de sêda, as rendas do toucador, o cortinado branco da cama d’ella…
Depois parou diante da larga barra de claridade que sahia do portão
do Gremio; e foi para lá, machinalmente attrahido pela simplicidade
e segurança d’aquella entrada, lageada de pedra, com grossos bicos
de gaz, sem penumbras e sem perfumes.
Na sala, em baixo, ficou percorrendo sem os comprehender, os telegrammas soltos
sobre a mesa. Um criado passou, elle pediu cognac. Telles da Gama, que vinha
de dentro assobiando, com as mãos nos bolsos do paletot, deteve-se
um momento para lhe perguntar se ia na terça-feira aos Gouvarinhos.

– Talvez, murmurou Carlos.
– Então venha!… Eu ando a arrebanhar gente… São os annos
do Charlie, de mais a mais. Cae lá o peso do mundo, e ha ceia!…
O criado entrou com a bandeja – e Carlos, de pé junto da mesa, remexendo
o assucar no copo, recordava, sem saber porque, aquella tarde em que a condessa,
pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia o sofá
onde ella cahira com um rumor de sêdas amarrotadas… Como tudo isto
era já vago e remoto!
Apenas acabou o cognac shiu. Agora, caminhando rente das casas, não
via aquella fachada que o perturbava com a sua claridade d’alcova morrendo
nos vidros. O portão ficára cerrado, o gaz ardia no patamar.
E subiu, sentindo mais pela escada de pedra as pancadas do coração
que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora,
um pouco cansada, se fôra encostar sobre a roupa; – e a sala, com effeito,
parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas apagadas, o bordado
ocioso e enrolado no seu cesto, os livros n’um frio arranjo orlando a mesa
onde o candieiro espalhava uma luz tenue sob o abat-jour de renda amarella.
Carlos tirara as luvas, lentamente, retomado de novo por uma inquietação
ante aquelle recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de dentro,
rindo, pulando, com os cabellos soltos nos hombros, os braços abertos
para elle. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava: «Lá
vem a cabrita!… »
Mas então, quando a tinha assim suspensa, batendo os pésinhos
– atravessou-o a idéa de que aquella criança era sua sobrinha
e tinha o seu nome!… Largou-a, quasi a deixou cahir – assombrado para ella,
como se pela vez primeira visse essa facesinha eburnea e fina onde corria
o seu sangue…
– Que estás tu a olhar para mim? murmurou ella, recuando e serrindo,
com as mãosinhas cruzadas atraz das saias que tufavam.
Elle não sabia, parecia-lhe outra Rosa: e á sua perturbação
misturava-se uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filha de Madame
MacGren, a quem elle contava historias de Joanna d’Arc, a quem balouçava
na Toca sob as acacias em flôr. Ella no emtanto sorria mais, com um
brilho nos dentinhos miudos, uma ternura nos bellos olhos azues, vendo-o assim
tão grave e tão mudo, pensando que elle ia brincar, fazer «voz
de Carlos Magno». Tinha o mesmo sorriso da mãi, com a mesma covinha
no queixo. Carlos viu n’ella de repente toda a graça de Maria, todo
o encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos braços, tão violentamente,
com beijos tão bruscos no cabello e nas faces, que Rosa estrebuchou,
assustada e com um grito. Soltou-a logo, n’um receio de não ter sido
casto… Depois, muito sério:
– Onde está a mamã?
Rosa coçava o braço, com a testasinha franzida:
– Apre!… Magoaste-me.
Carlos passou-lhe pelos cabellos a mão que ainda tremia.
– Vá, não sejas piegas, a mamã não gosta. Onde
está ella?
A pequena, aplacada, já contente, pulava em redor, agarrando nos pulsos
de Carlos para que elle saltasse tambem…
– A mamã foi deitar-se… Diz que está muito cansada, depois
chama-me a mim preguiçosa… Vá, salta tambem. Não sejas
mono!…
N’esse instante, do corredor, miss Sarah chamou:
– Mademoiselle!…
Rosa pôz o dedinho na bôca cheia de riso:
– Dize-lhe que não estou aqui! A vêr… Para a fazer zangar!…
Dize!
Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida por
traz de Carlos, na pontinha dos pés, fazendo-se pequenina. Teve um
sorriso benevolo, murmurou «good night, sir». Depois lembrou que
eram quasi nove e meia, mademoiselle tinha estado um pouco constipada e devia
recolher-se. Então Carlos puxou brandamente pelo braço de Rosa,
acariciou-a ainda para que ella obedecesse a miss Sarah.
Mas Rosa sacudia-o, indignada d’aquella traição.
– Tambem nunca fazes nada!… Semsaborão! Pois olha, nem te digo adeus!
Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repellão á governante
que sorria e lhe estendia a mão – e pelo corredor rompeu n’um chôro
despeitado e pêrro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle.
Era a constipação que a tornava impertinente. Mas se fosse diante
da mamã não fazia aquillo, não!
– Good night, sir.
– Good night, miss Sarah…
Só, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o pedaço
de tapeçaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria se vestiu.
Ahi, na escuridão, um brilho pallido d’espelho tremia, batido por um
longo raio do candieiro da rua. Muito de leve empurrou a porta do quarto.

– Maria!… Estás a dormir?
Não havia luz; mas o mesmo candieiro da rua, através do transparente
erguido, tirava das trevas a brancura vaga do cortinado que envolvia o leito.
E foi d’ahi que ella murmurou, mal acordada:
– Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada… Que horas são?
Carlos não se movera, ainda com a mão na porta:
– É tarde, e eu preciso sahir já a procurar o Villaça…
Vinha dizer-te que tenho talvez de ir a Santa Olavia, além d’ámanhã,
por dois ou tres dias…
Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.
– Para Santa Olavia?… Ora essa, porque? E assim de repente… Entra!…
Vem cá!
Então Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia o ranger
molle do leito. E já todo aquelle aroma d’ella que tão bem conhecia,
esparso na sombra tepida, o envolvia, lhe entrava n’alma com uma seducção
inesperada de carícia nova, que o perturbava estranhamente. Mas ia
balbuciando, insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o Villaça.
– É uma massada, por causa d’uns feitores, d’umas aguas….
Tocou no leito; e sentou-se muito á beira, n’uma fadiga que de repente
o enleára, lhe tirava a força para continuar essas invenções
d’aguas e de feitores, como se ellas fossem montanhas de ferro a mover.
O grande e bello corpo de Maria, embrulhado n’um roupão branco de sêda,
movia-se, espreguiçava-se languidamente sobre o leito brando.
– Achei-me tão cansada, depois de jantar, veio-me uma preguiça…
Mas então partires assim de repente!… Que sécca! D’á
cá a mão!
Elle tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a que
percebia a fórma e o calor suave, através da sêda leve:
e alli esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, n’um entorpecimento
onde toda a vontade e toda a consciencia se lhe fundiam, deixando-lhe apenas
a sensação d’aquella pelle quente e macia onde a sua palma pousava.
Um suspiro, um pequenino suspiro de criança, fugiu dos labios de Maria,
morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha d’ella, que
o entontecia, terrivel como o bafo ardente d’um abysmo, escancarado na terra
a seus pés. Ainda balbuciou: «não, não…»
Mas ella estendeu os braços, envolveu-lhe o pescoço, puxando-o
para si, n’um murmurio que era como a continuação do suspiro,
e em que o nome de querido susurrava e tremia. Sem resistencia, como um corpo
morto que um sopro impelle, elle cahiu-lhe sobre o seio. Os seus labios seccos
acharam-se collados n’um beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos
enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, n’uma paixão
e n’um desespero que fez tremer todo o leito.
A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o cansaço
o prostrára. Bocejando, estremunhado, arrastou os passos até
ao escriptorio de Affonso.
Ahi ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifacio se deixava torrar, enrolado
sobre a pelle d’urso. Affonso fazia a partida de whist com Steinbroken e com
o Villaça: mas tão distrahido, tão confuso, que já
duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosnára que se a dôr
de cabeça assim o estonteava melhor seria findarem! Quando Ega appareceu,
o velho levantou os olhos inquietos:
– O Carlos? Sahiu?…
– Sim, creio que sahiu com o Craft, disse o Ega. Tinham fallado em ir vêr
o marquez.
Villaça, que baralhava com a sua lentidão meticulosa, deitou
tambem para o Ega um olhar curioso e vivo. Mas já D. Diogo batia com
os dedos no pano da mesa, resmungando: -«Vamos lá, vamos lá…
Não se ganha nada em saber dos outros!» Então Ega ficou
alli um momento, com bocejos vagos, seguindo o cahir lento das cartas. Por
fim, molle e seccado, decidiu ir lêr para a cama, hesitou por diante
das estantes, sahiu com um velho numero do Panorama.
Ao outro dia, á hora do almoço, entrou no quarto de Carlos.
E ficou pasmado quando o Baptista – tristonho desde a vespera, farejando desgosto
– lhe disse que Carlos fôra para a Tapada, muito cedo, a cavallo…
– Ora essa!… E não deixou ordens nenhumas, não fallou em ir
para Santa Olavia?…
Baptista olhou Ega, espantado:
– Para Santa Olavia!… Não senhor, não fallou em semelhante
coisa. Mas deixou uma carta para v. exc.ª vêr. Creio que é
do snr. marquez. E diz que lá apparecia depois, ás seis… Acho
que é jantar.
N’um bilhete de visita, o marquez, com effeito, lembrava que esse dia era
«o seu fausto natalício», e esperava Carlos e o Ega ás
seis, para lhe ajudarem a comer a gallinha de dieta.
– Bem, lá nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o jardim.
Aquillo parecia-lhe extraordinario! Carlos passeando a cavallo, Carlos jantando
com o marquez, como se nada houvesse perturbado a sua vida facil de rapaz
feliz!… Estava agora certo de que elle na vespera fôra á rua
de S. Francisco. Justos céos! Que se teria lá passado? Subiu,
ouvindo a sineta do almoço. O escudeiro annunciou-lhe que o snr. Affonso
da Maia tomara uma chavena de chá no quarto e ainda estava recolhido.
Todos sumidos! Pela primeira vez no Ramalhete Ega almoçou solitariamente
na larga mesa, lendo a Gazeta Illustrada.
De tarde, ás seis, no quarto do marquez (que tinha o pescoço
enrolado n’uma boa de senhora de pelle de marta), encontrou Carlos, o Darque,
o Craft, em torno d’um rapaz gordo que tocava guitarra – emquanto ao lado
o procurador do marquez, um bello homem de barba preta, se batia com o Telles
n’uma partida de damas.
– Viste o avô? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a mão.
– Não, almocei só.
O jantar, d’ahi a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os soberbos
vinhos da casa. E ninguem decerto bebeu mais, ninguem riu mais do que Carlos,
resurgido quasi de repente d’uma desanimação sombria a uma alegria
nervosa – que incommodava o Ega, sentindo n’ella um timbre falso e como um
som de crystal rachado. O proprio Ega por fim á sobremesa se excitou
consideravelmente com um esplendido Porto de 1815. Depois houve um baccarat
em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instante os olhos ao relogio,
teve uma sorte triumphante, uma «sorte de cabrão», como
a classificou o Darque, indignado, ao trocar a sua ultima nota de vinte mil
reis… Á meia noite porém, inexoravelmente, o procurador do
marquez lembrou as ordens do medico que marcára esse limite «ao
natalicio». Foi então um enfiar de paletots, em debandada, por
entre os queixumes do Darque e do Craft, que sahiam escorridos, sem sequer
um troco para o «americano». Fez-se-lhes uma subscripção
de caridade, que elles recolheram nos chapéos, rosnando bençãos
aos bemfeitores.
Na tipoia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito tempo
em silencio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi já ao meio
do Aterro que Ega pareceu despertar:
– E então por fim?… Sempre vaes para Santa Olavia, ou que fazes?
Carlos mexeu-se no escuro da tipoia. Depois, lentamente, como cheio de cansaço:
– Talvez vá ámanhã… Ainda não disse nada, ainda
não fiz nada… Decidi dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para
reflectir… Não se póde agora fallar com este barulho das rodas.
De novo cada um recahiu na sua mudez, ao seu canto.
Em casa, subindo a escadinha forrada de velludo, Carlos declarou-se exhausto
e com uma intoleravel dôr de cabeça:
– Amanhã fallamos, Ega… Boa noite, sim?
– Até ámanhã.
Alta noite Ega acordou com uma grande sêde. Saltára da cama,
esvaziára a garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no
quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou
nos lençoes. Mas espertára inteiramente, com uma idéa
estranha, insensata, que o assaltára sem motivo, o agitava, lhe fazia
palpitar o coração no grande silencio da noite. Ouviu assim
dar tres horas. A porta de novo batera, depois uma janella: era decerto vento
que se erguera. Não podia porém readormecer, ás voltas,
n’um terrivel mal-estar, com aquella idéa cravada na imaginação
que o torturava. Então, desesperado, pulou da cama, enfiou um paletot,
e em pontas de chinelas, com a mão diante da luz, desceu surdamente
ao quarto de Carlos. Na ante-sala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro,
na esperança de perceber algum calmo rumor de respiração.
O silencio era pesado e pleno. Ousou entrar… A cama estava feita e vazia,
Carlos sahira.
Elle ficou a olhar estupidamente para aquella colcha lisa, com a dobra do
lençol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista. E agora não
duvidava. Carlos fôra findar a noite á rua de S. Francisco!…
Estava lá, dormia lá! E só uma idéa surgia através
do seu horror – fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunha d’aquella
incomparavel infamia!…
E o dia seguinte, terça-feira, foi desolador para o pobre Ega. Vexado,
n’um terror de encontrar Carlos ou Affonso, levantou-se cedo, esgueirou-se
pelas escadas com cautelas de ladrão, foi almoçar ao Tavares.
De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no break o Cruges
e o Taveira – arrebanhados certamente para elle se não encontrar só
á mesa com o avô. Ega jantou melancolicamente no Universal. Só
entrou no Ramalhete ás nove horas, vestir-se para a soirée da
Gouvarinho, que pela manhã no Loreto parára a carruagem para
lhe lembrar «que era a festa do Charlie». E foi já de paletot,
de claque na mão, que appareceu emfim na salinha Luiz xv onde Cruges
tocava Chopin, e Carlos se installára n’uma partida de bezigue com
o Craft. Vinha saber se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes
de Gouvarinho…
– Diverte-te!
– Sê faiscante!
– Eu lá appareço para a ceia! prometteu Taveira, estirado n’uma
poltrona com o Figaro.
Eram duas horas da manhã quando Ega recolheu da soirée – onde
por fim se divertira n’uma desesperada flirtação com a baroneza
d’Alvim, que á ceia, depois do champagne, vencida por tanta graça
e tanta audacia, lhe tinha dado duas rosas. Diante do quarto de Carlos, accendendo
a vela, Ega hesitou, mordido por uma curiosidade… Estaria lá? Mas
teve vergonha d’aquella espionagem, e subiu, bem decidido como na vespera
a fugir para Celorico. No seu quarto, diante do espelho, pôz cuidadosamente
n’um copo as rosas da Alvim. E começava a despir-se, quando ouviu passos
no negro corredor, passos muito lentos, muito pesados, que se adiantavam,
findaram á sua porta em suspensão e silencio. Assustado, gritou:
«Que é lá?» A porta rangeu. E appareceu Affonso
da Maia, pallido, com um jaquetão sobre a camisa de dormir, e um castiçal
onde a vela ia morrendo. Não entrou. N’uma voz enrouquecida, que tremia:’
– O Carlos? esteve lá?
Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Não subiu… Estivera
apenas um momento nos Gouvarinhos… Era provavel que Carlos tivesse ido mais
tarde com o Taveira, para a ceia.
O velho cerrára os olhos, como se desfallecesse, estendendo a mão
para se apoiar. Ega correu para elle:
– Não se afflija, snr. Affonso da Maia!
– Que queres então que faça? Onde está elle? Lá
mettido, com essa mulher… Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar…
Desci a isso, mas quiz acabar esta angustia… E esteve lá hontem até
de manhã, está lá a dormir n’este instante… E foi para
este horror que Deus me deixou viver até agora!
Teve um grande gesto de revolta e de dôr. De novo os seus passos, mais
pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.
Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se despindo
devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao outro dia, antes
de partir para Celorico, que a sua infamia estava matando o avô, e o
forçava a elle, seu melhor amigo, a fugir para a não testemunhar
por mais tempo.
Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da cama,
ás braçadas, a roupa que ia emmalar. E durante meia hora, em
mangas de camisa, lidou n’esta tarefa, misturando aos seus pensamentos de
cólera lembranças da soirée da vespera, certos olhares
da Alvim, certas esperanças que lhe tornavam saudosa a partida. Um
alegre sol dourava a varanda. Terminou por abrir a vidraça, respirar,
olhar o bello azul d’inverno. Lisboa ganhava tanto com aquelle tempo! E já
Celorico, a quinta, o padre Seraphim, lhe estendiam de longe a sua sombra
n’alma. Ao baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrellado com a Tunante,
que escarvava a calçada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que
ia sahir cedo – para não se encontrar com elle e com o avô!
N’um receio de o não apanhar n’esse dia, desceu correndo. Carlos aferrolhára-se
na alcova de banho. Ega chamou, o outro não tugiu. Por fim Ega bateu,
gritou através da porta, sem esconder a sua irritação:
– Tem a bondade d’escutar!… Então partes para Santa Olavia, ou quê?
Depois d’um instante, Carlos lançou de lá, entre um rumor d’agua
que cahia:
– Não sei… Talvez… Logo te digo…
O outro não se conteve mais:
– É que se não póde ficar assim eternamente… Recebi
uma carta de minha mãi… E se não partes para Santa Olavia,
eu vou para Celorico… É absurdo! Já estamos n’isto ha tres
dias!
E quasi se arrependia já da sua violencia, quando a voz de Carlos se
arrastou de dentro, humilde e cansada, n’uma supplica:
– Por quem és, Ega! Tem um bocado de paciencia commigo. Eu logo te
digo…
N’uma d’aquellas subitas emoções de nervoso, que o sacudiam
os olhos do Ega humedeceram.
Balbuciou logo:
– Bem, bem! Eu fallei alto por ser através da porta… Não ha
pressa!
E fugiu para o quarto, cheio só de compaixão e ternura, com
uma grossa lagrima nas pestanas. Sentia agora bem a tortura em que o pobre
Carlos se debatera, sob o despotismo d’uma paixão até ahi legitima,
e que n’uma hora amarga se tornava de repente monstruosa, sem nada perder
de seu encanto e da sua intensidade… Humano e fragil, elle não pudera
estacar n’aquelle violento impulso de amor e de desejo que o levava como n’um
vendaval! Cedera, cedera, continuára a rolar áquelles braços,
que innocentemente o continuavam a chamar. E ahi andava agora, aterrado, escorraçado,
fugindo occultamente de casa, passando o dia longe dos seus, n’uma vadiagem
tragica, como um excommungado que receia encontrar olhos puros onde sinta
o horror do seu peccado… E ao lado, o pobre Affonso, sabendo tudo, morrendo
d’aquella dôr! Podia elle, hospede querido dos tempos alegres, partir,
agora que uma onda de desgraça quebrára sobre essa casa, onde
o acolhiam affeições mais largas que na sua propria? Seria ignobil!
Tornou logo a desfazer a mala; e, furioso no seu egoismo com rodas aquellas
amarguras que o abalavam, arranjava outra vez a roupa dentro da commoda, com
a mesma cólera com que a desmanchára, rosnando:
– Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!…
Quando desceu, já vestido, Carlos desapparecera! Mas Baptista, tristonho,
carrancudo, certo agora de que havia um grande desgosto, deteve-o para lhe
murmurar:
– Tinha v.exc.ª razão… Partimos amanhã para Santa Olavia
e levamos roupa para muito tempo… Este inverno começa mal!

N’essa madrugada, ás quatro horas, em plena escuridão, Carlos
cerrára de manso o portão da rua de S. Francisco. E, mais pungente,
apoderava-se d’elle, na frialdade da rua, o medo que já o roçára,
ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de Maria adormecida – o medo de
voltar ao Ramalhete! Era esse medo que já na vespera o trouxera todo
o dia por fóra no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o
Cruges, escondido n’um gabinete do Augusto. Era medo do avô, medo do
Ega, medo do Villaça; medo d’aquella sineta do jantar que os chamava,
os juntava; medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer d’elles podia
erguer o reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo…
Tinha agora a certeza que elles sabiam tudo. E mesmo que n’essa noite fugisse
para Santa Olavia, pondo entre si e Maria uma separação tão
alta como o muro d’um claustro, nunca mais do espirito d’aquelles homens,
que eram os seus amigos melhores, sahiria a memoria e a dôr da infamia
em que elle se despenhára. A sua vida moral estava estragada… Então,
para que partiria abandonando a paixão, sem que por isso encontrasse
a paz? Não seria mais logico calcar desesperadamente todas as leis
humanas e divinas, arrebatar para longe Maria na sua innocencia, e para todo
o sempre abysmar-se n’esse crime que se tornára a sua sombria partilha
na terra?
Já assim pensára na vespera. Já assim pensára…
Mas antevira então um outro horror, um supremo castigo, a esperal-o
na solidão onde se sepultasse. Jfi lhe percebera mesmo a aproximação;
já n’outra noite recebera d’elle um arrepio; já n’essa noite,
deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o presentira, apoderando-se
d’elle, com um primeiro frio d’agonia.
Era, surgindo do fundo do seu sêr, ainda tenue mas já perceptivel,
uma saciedade, uma repugnancia por ella desde que a sabia do seu sangue!…
Uma repugnancia material, carnal, á flôr da pelle, que passava
como um arrepio. Fôra primeiramente aquelle aroma que a envolvia, fluctuava
entre os cortinados, lhe ficava a elle na pelle e no fato, o excitava tanto
outr’ora, o impacientava tanto agora – que ainda na vespera se encharcára
em agua de Colonia para o dissipar. Fôra depois aquelle corpo d’ella,
adorado sempre como um marmore ideal, que de repente lhe apparecera, como
era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de Amazona
barbara, com todas as bellezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabellos
d’um lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba.
Os seus movimentos na cama, ainda n’essa noite, o tinham assustado como se
fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar… Quando
os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos
peitos tumidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chamma que
era toda bestial. Mas, apenas o ultimo suspiro lhe morria nos labios, ahi
começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com
um susto estranho: e immovel, encolhido na roupa, perdido no fundo d’uma infinita
tristeza, esquecia-se pensando n’uma outra vida que podia ter, longe d’alli,
n’uma casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua,
flôr de graça domestica, pequenina, tímida, pudica, que
não soltasse aquelles gritos lascivos, e não usasse esse aroma
tão quente! E desgraçadamente agora já não duvidava…
Se partisse com ella, seria para bem cedo se debater no indizível horror
de um nojo physico. E que lhe restaria então, morta a paixão
que fôra a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o
enojava – e que era… Só lhe restava matar-se!
Mas, tendo por um só dia dormido com ella, na plena consciencia da
consanguinidade que os separava, poderia recomeçar a vida tranquillamente?
Ainda que possuisse frieza e força para apagar dentro em si essa memoria
– ella não morreria no coração do avô, e do seu
amigo. Aquelle ascoroso segredo ficaria entre elles, estragando, maculando
tudo. A existencia d’ora ávante só lhe offerecia intoleravel
amargôr… Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguem o podesse
aconselhar, o podesse consolar! Quando chegou á porta de casa o seu
desejo unico era atirar-se aos pés d’um padre, aos pés d’um
santo, abrir-lhe as miserias do seu coração, implorar-lhe a
doçura da sua misericordia! Mas ali onde havia um santo?
Defronte do Ramalhete os candieiros ainda ardiam. Abriu de leve a porta. Pé
ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo velludo côr de cereja.
No patamar tacteava, procurava a vela – quando, através do reposteiro
entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso,
recuou, parou no recanto. O clarão chegava, crescendo: passos lentos,
pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu – e com ella o avô
em mangas de camisa, livido, mudo, grande, espectral. Carlos não se
moveu, suffocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios
de horror, cahiram sobre elle, ficaram sobre elle, varando-o até ás
profundidades d’alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra,
com a cabeça branca a tremer, Affonso atravessou o patamar, onde a
luz sobre o velludo espalhava um tom de sangue: – e os seus passos perderam-se
no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem
os derradeiros que devesse dar na vida!
Carlos entrou no quarto ás escuras, tropeçou n’um sofá
e alli se deixou cahir, com a cabeça enterrada nos braços, sem
pensar, sem sentir, vendo o velho livido passar, repassar diante d’elle como
um longo phantasma, com a luz avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o
tomando um cansaço, uma inercia, uma infinita lassidão da vontade,
onde um desejo apenas transparecia, se alongava – o desejo de interminavelmente
repousar algures n’uma grande mudez e n’uma grande treva… Assim escorregou
ao pensamento da morte. Ella seria a perfeita cura, o asylo seguro. Porque
não iria ao seu encontro? Alguns grãos de laudano n’essa noite
e penetrava na absoluta paz…
Ficou muito tempo, embebendo-se n’esta idéa que lhe dava allivio e
consolo, como se, escorraçado por uma tormenta ruidosa, visse diante
dos seus passos abrir-se uma porta d’onde sahisse calor e silencio. Um rumor,
o chilrear d’um passaro na janella, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se,
despiu-se muito devagar, n’uma immensa molleza. E mergulhou na cama, enterrou
a cabeça no travesseiro para recahir na doçura d’aquella inercia,
que era um antegosto da morte, e não sentir mais nas horas que lhe
restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da terra.

O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:
– Ó snr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no
jardim, não dá accordo!…
Carlos pulou do leito, enfiando um paletot que agarrára. Na ante-camara
a governante, debruçada no corrimão, gritava, afflicta: – «Adiante,
homem de Deus, ao pé da padaria, o snr. dr. Azevedo!» E um moço
que corria, com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar:
– Ao fundo, ao pé da cascata, snr. D. Carlos, na mesa de pedra!…
Affonso da Maia lá estava, n’esse recanto do quintal, sob os ramos
do cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por sobre a tosca mesa,
com a face cahida entre os braços. O chapéo desabado rolára
para o chão; nas costas, com a gola erguida, conservava o seu velho
capote azul… Em volta, nas folhas das camelias, nas aleas arcadas, refulgiu,
côr d’ouro, o sol fino d’inverno. Por entre as conchas da cascata o
fio d’agua punha o seu choro lento.
Arrebatadamente, Carlos levatára-lhe a face, já rigida, côr
de cera, com os olhos cerrados, e um fio de sangue aos cantos da longa barba
de neve. Depois cahiu de joelhos no chão humido, sacudia-lhe as mãos,
murmurando: – «Ó avò! Ó avô!» – Correu
ao tanque, borrifou-o d’agua:
– Chamem alguem! chamem alguem!
Outra vez lhe palpava o coração… Mas estava morto. Estava
morto, já frio, aquelle corpo que, mais velho que o seculo, resistira
tão formidavelmente, como um grande roble, aos annos e aos vendavaes.
Alli morrera solitariamente, já o sol ia alto, n’aquella tosca mesa
de pedra onde deixára pender a cabeça cansada.
Quando Carlos se ergueu, Ega apparecia, esguedelhado, embrulhado no robe-de-chambre.
Carlos abraçou-se n’elle, tremendo todo, n’um chôro despedaçado.
Os criados em redor olharam, aterrados. E a governante, como tonta, entre
as ruas de roseiras, gemia com as mãos na cabeça: – «Ai
o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!»
Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o medico, o dr. Azevedo, que felizmente
encontrára na rua. Era um rapaz, apenas sahido da Escóla, magrinho
e nervoso, com as pontas do bigode muito frisadas. Deu em redor, atarantadamente,
um comprimento aos criados, ao Ega, e a Carlos, que procurava serenar com
a face lavada de lagrimas. Depois, tendo descalçado a luva, estudou
todo o corpo de Affonso com uma lentidão, uma minuciosidade que exagerava,
á medida que sentia em volta, mais anciosos e attentos n’elle, todos
aquelles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos, passando nervosamente
os dedos no bigode, murmurou termos technicos… De resto, dizia, já
o collega se teria compenetrado de que tudo infelizmente findára. Elle
sentia das véras da alma o desgosto… Se para alguma coisa fosse necessario,
com o maximo prazer…
– Muito agradecido a v. exc.ª, balbuciou Carlos.
Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe indicar
a porta do jardim.
Carlos no emtanto ficára defronte do velho, sem chorar, perdido apenas
no espanto d’aquelle brusco fim! Imagens do avô, do avô vivo e
forte, cachimbando ao canto do fogão, regando de manhã as roseiras,
passaram-lhe n’alma, em tropel, deixando-lh’a cada vez mais dorida e negra…
E era então um desejo de findar tambem, encostar-se como elle áquella
mesa de pedra, e sem outro esforço, nenhuma outra dôr da vida,
cahir como elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos grossos
do cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os passaros, um momento
espantados, tinham recomeçado a chalrar. Ega veio a Carlos, tocou-lhe
no braço:
– É necessario leval-o para cima.
Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os beiços
a tremer, levantou o avô pelos hombros carinhosamente. Baptista correra
a ajudar; Ega, embaraçado no seu largo roupão, segurava os pés
do velho. Através do jardim, do terraço cheio de sol, do escriptorio
onde a sua poltrona esperava diante do lume accêso, foram-o transportando
n’um silencio só quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir
as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o Ega
fraquejavam sob o peso do grande corpo. A governante já estava no quarto
d’Affonso com uma colcha de sêda para estender na singela cama de ferro,
sem cortinado. E alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas
na sêda azul.
Ega accendera dois castiçaes de prata: a governante, de joelhos á
beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco
de cozinheiro na mão, ficára á porta, junto d’um cesto
que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se
pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, voltava a cada instante,
n’uma derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou o coração
do velho. Com o jaquetão de velludilho, os seus grossos sapatos brancos,
Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito:
entre o cabello de neve cortado á escovinha e a longa barba desleixada,
a pelle ganhára um tom de marfim velho, onde as rugas tomaram a dureza
d’entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam
com a consolada serenidade de quem emfim descança; e ao deitarem-no
uma das mãos ficára-lhe aberta e posta sobre o coração,
na simples e natural attitude de quem tanto pelo coração vivêra!

Carlos perdia-se n’esta contemplação dolorosa. E o seu desespero
era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles
houvesse um adeus, uma dôce palavra trocada. Nada! Apenas aquelle olhar
angustiado, quando passára com a vela accêsa na mão. Já
então elle ia andando para a morte. O avô sabia tudo, d’isso
morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia n’alma, com uma longa pancada
repetida e lugubre. O avô sabia tudo, d’isso morrera!
Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam – elle de robe-de-chambre,
Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir:
– É necessario descer, é necessario vestir-nos.
Carlos balbuciou:
– Sim, vamo-nos vestir…
Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braço. Elle
caminhava como um somnambulo, passando o lenço devagar pela testa e
pela barba. E de repente no corredor, apertando desesperadamente as mãos,
outra vez coberto de lagrimas, n’um agoniado desabafo de toda a sua culpa:
Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã quando entrei!
E passou, não me disse nada… Sabia tudo, foi isso que o matou!…
Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idéa. Que tolice! O avô
tinha quasi oitenta annos, e uma doença de coração…
Desde a volta de Santa Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n’isso,
aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado com semelhante
imaginação!
Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no chão:
– Não! É estranho, não me faço mais desgraçado!
Aceito isto como um castigo… Quero que seja um castigo… E sinto-me só
muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhã
pensava em matar-me. E agora não! É o meu castigo viver, esmagado
para sempre… O que me custa é que elle não me tivesse dito
adeus!!
De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero. Ega
levou-o para o quarto, como uma criança. E assim o deixou a um canto
do sofá, com o lenço sobre a face, n’um chôro continuo
e quieto, que lhe ia lavando, alliviando o coração de todas
as angustias confusas e sem nome que n’esses dias derradeiros o traziam suffocado.
Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando Villaça lhe rompeu
pelo quarto de braços abertos.
– Então como foi isto, como foi isto?
Baptista mandára-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola pouco lhe
soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlos abraçára-o, coitadinho,
lavado em lagrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe só para se entender
em tudo com o Ega… E alli estava.
– Mas como foi, como foi, assim de repente?…
Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Affonso de manhã no
jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas tudo
acabára!
Villaça levou as mãos á cabeça:
– Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi appareceu,
que o matou! Nunca foi o mesmo depois d’aquelle abalo! Não foi mais
nada! Foi isso!
Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no lenço:
– Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma doença
de coração.
Fallaram então do enterro, que devia ser simples como convinha áquelle
homem simples. Para depositar o corpo, emquanto não fosse trasladado
para Santa Olavia, Ega lembrára-se do jazigo do marquez.
Villaça coçava o queixo, hesitando:
– Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o mandou
erguer para meu pai, que Deus haja… Ora parece-me que por uns dias ficava
lá perfeitamente. Assim não se pedia a ninguem, e eu tinha n’isso
muita honra…
Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de chave
do caixão. Por fim Villarça, olhando o relogio, ergueu-se com
um grande suspiro:
– Bem, vou dar esses tristes passos! E cá appareço logo, que
o quero vêr pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia
de dizer! Ainda antes de hontem a jogar com elle… Até lhe ganhei
tres mil reis, coitadinho!
Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.
Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado á escrivaninha,
diante d’uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se, arrojou a penna.
– Não posso!… Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras.
Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia: «Minha
senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada, de repente, com uma
apoplexia. V. exc.ª comprehende que, n’este momento, Carlos nada mais
póde do que pedir-me para eu transmittir a v. exc.ª esta desgraçada
noticia. Creia-me, etc.» Não o leu a Carlos. E como Baptista
entrava n’esse momento, todo de preto, com o almoço n’uma bandeja,
Ega pediu-lhe para mandar o trintanario com aquelle bilhete á rua de
S. Francisco. Baptista segredou sobre o hombro do Ega:
– É bom não esquecer as fardas de luto para os criados…
– O snr. Villaça já sabe.
Tomaram chá á pressa em cima do taboleiro. Depois Ega escreveu
bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos d’Affonso: e davam
duas horas quando chegaram os homens com o caixão para amortalhar o
corpo. Mas Carlos não permittiu que mãos mercenarias tocassem
no avô. Foi elle e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente,
recalcando a emoção sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuzeram
dentro do grande cofre de carvalho, forrado de setim claro, onde Carlos collocou
uma miniatura de sua avó Runa. Á tarde, com auxilio de Villaça,
que voltára «para dar o ultimo olhar ao patrão»,
desceram-no ao escriptorio, que Ega não quizera alterar nem ornar,
e que, com os damascos escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando
a carteira de pau preto, conservava a sua feição austera de
paz estudiosa. Sómente, para depôr o caixão, tinham juntado
duas largas mesas, recobertas por um panno de velludo negro que havia na casa,
com as armas bordadas a ouro. Por cima o Christo de Rubens abria os braços
sobre a vermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze castiçaes
de prata. Largas palmas d’estufa cruzavam-se á cabeceira do esquife,
entre ramos de camelias. E Ega accendeu um pouco de incenso em dois perfumadores
de bronze.
Á noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D. Diogo, solemne,
de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do caixão, só pôde
murmurar: – «E tinha menos sete mezes que eu!» O marquez veio
já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flôres.
Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos; – e
receberam a primeira surpreza ao vêr fechado o portão do Ramalhete.
O ultimo a chegar foi o Sequeira, que passára o dia na quinta, e se
abraçou em Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima
nos olhos injectados, balbuciando: – «Foi-se o companheiro de muitos
annos. Tambem não tardo!…»
E a noite de vigilia e pezames começou, lenta e silenciosa. As doze
chammas das velas ardiam, muito altas, n’uma solemnidade funeraria. Os amigos
trocaram algum murmurio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco a pouco,
o calor, o aroma do incenso, a exhalação das flôres forçaram
o Baptista a abrir uma das janellas do terraço. O céo estava
cheio d’estrellas. Um vento fino susurrara nas ramagens do jardim.
Já tarde Sequeira, que não se movera d’uma poltrona, com os
braços cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o á sala de jantar,
a reconfortal-o com um calice de cognac. Havia lá uma ceia fria, com
vinhos e dôces. E Craft veio tambem – com o Taveira, que soubera a desgraça
na redacção da Tarde, e correra quasi sem jantar. Tomando um
pouco de Bordeus, uma sandwich, Sequeira reanimava-se, lembrava o passado,
os tempos brilhantes, quando Affonso e elle eram novos. Mas emmudeceu vendo
apparecer Carlos, pallido e vagaroso como um somnambulo, que balbuciou: «Tomem
alguma coisa, sim, tomem alguma coisa…»
Mexeu n’um prato, deu uma volta á mesa, sahiu. Assim vagamente foi
até á ante-camara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura
esguia e negra surgiu da escada. Dois braços enlaçaram-no. Era
o Alencar.
– Nunca vim cá nos dias felizes, aqui estou na hora triste!
E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pés, como pela nave d’um
templo.
Carlos no emtanto deu ainda alguns passos pela ante-camara. Ao canto d’um
divan ficára um grande cesto com uma corôa de flôres, sobre
que pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria. Não lhe tocou,
recolheu ao escriptorio. Alencar, diante do caixão, com a mão
pousada no hombro do Ega, murmurava: «Foi-se uma alma de heroe!»
As velas iam-se consumindo. Um cansaço pesava. Baptista fez servir
café no bilhar. E ahi, apenas recebeu a sua chavena, Alencar, cercado
do Cruges, do Taveira, do Villaça, rompeu a fallar tambem do passado,
dos tempos brilhantes d’Arroios, dos rapazes ardentes d’então:
– Vejam vocês, filhos, se se encontra ainda uma gente como estes Maias,
almas de leões, generosos, valentes!… Tudo parece ir morrendo n’este
desgraçado paiz!… Foi-se a faisca, foi-se a paixão… Affonso
da Maia! Parece que o estou a vêr, á janella do palacio em Bemfica,
com a sua grande gravata de setim, aquella cara nobre de portuguez d’outr’ora…
E lá vai! E o meu pobre Pedro tambem… Caramba, até se me faz
a alma negra!
Os olhos ennevoavam-se-lhe, deu um immenso sorvo ao cognac.
Ega, depois de beber um gole de café, voltára ao escriptorio,
onde o cheiro d’incenso espalhava uma melancolia de capella. D. Diogo, estirado
no sofá, resonava; Sequeira defronte dormitaVa tambem, descahido sobre
os braços cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de
leve. Os dois velhos amigos, depois d’um abraço a Carlos, partiram
na mesma carruagem, com os charutos accêsos. Os outros, pouco a pouco,
iam tambem abraçar Carlos, enfiavam os paletots. O ultimo a sahir foi
Alencar, que, no pateo, beijou o Ega, n’um impulso d’emoção,
lamentando ainda o passado, os companheiros desapparecidos:
– O que me vale agora são vocês, rapazes, a gente nova. Não
me deitem á margem! Senão, caramba, quando quizer fazer uma
visita tenho d’ir ao cemiterio. Adeus, não apanhes frio!
O enterro foi ao outro dia, á uma hora. O Ega, o marquez, o Craft,
o Sequeira levaram o caixão até á porta, seguidos pelo
grupo d’amigos, onde destacava o conde de Gouvarinho, solemnissimo, de gran-cruz.
O conde de Steinbroken, com o seu secretario, trazia na mão uma corôa
de violetas. Na calçada estreita os trens apertavam-se, n’uma longa
fila que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas travessas: em todas as
janellas do bairro se apinhava gente: os polícias berravam com os cocheiros.
Por fim o carro, muito simples, rodou, seguido por duas carruagens da casa,
vazias, com as lanternas recobertas de longos véos de crepe que pendiam.
Atraz, um a um, desfilaram os trens da Companhia com os convidados, que abotoavam
os casacos, corriam os vidros contra a friagem do dia ennevoado. O Darque
e o Vargas iam no mesmo coupé. O correio do Gouvarinho passou choutando
na sua pileca branca. E, sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um
grande luto o portão do Ramalhete.
Quando Ega voltou do cemiterio encontrou Carlos no quarto, rasgando papeis,
emquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava uma mala de
couro. E como Ega, pallido e arrepiado de frio, esfregava as mãos,
Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que fossem para o fumoir onde
havia lume.
Apenas lá entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o Ega:
– Tens duvida em lhe ir fallar, a ella?
– Não. Para que?… Para lhe dizer o que?
– Tudo.
Ega rolou uma poltrona para junto da chaminé, despertou as brazas.
E Carlos, ao lado, proseguiu devagar, olhando o lume:
– Além d’isso, desejo que ella parta, que parta já para Paris…
Seria absurdo ficar em Lisboa… Emquanto se não liquidar o que lhe
pertence, hade-se-lhe estabelecer uma mezada, uma larga mezada… Villaça
vem d’aqui a bocado para fallar d’esses detalhes… Em todo o caso, ámanhã,
para ella partir, levas-lhe quinhentas libras.
Ega murmurou:
– Talvez para essas questões de dinheiro fosse melhor ir lá
o Villaça…
– Não, pelo amor de Deus! Para que se ha de fazer córar a pobre
creatura diante do Villaça?…
Houve um silencio. Ambos olhavam a chamma clara que bailava.
– Custa-te muito, não é verdade, meu pobre Ega?…
– Não… Começo a estar embotado. É fechar os olhos,
tragar mais essa má hora, e depois descansar. Quando voltas tu de Santa
Olavia?
Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa missão á
rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com elle a Santa Olavia.
Mais tarde era necessario trasladar para lá o corpo do avô…
– E passado isso, vou viajar… Vou á America, vou ao Japão,
vou fazer esta coisa estupida e sempre efficaz que se chama distrahir…
Encolheu os hombros, foi devagar até á janella, onde morria
pallidamente um raio de sol na tarde que clareára. Depois voltando
para o Ega, que de novo remexia os carvões:
Eu, está claro, não me atrevo a dizer-te que venhas, Ega…
Desejava bem, mas não me atrevo!
Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braços para Carlos,
commovido:
– Atreve, que diabo… Porque não?
– Então vem!
Carlos puzera n’isto toda a sua alma. E ao abraçar o Ega corriam-lhe
na face duas grandes lagrimas.
Então Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava fazer uma
romagem á quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia pois arrancar
á mãi algumas letras de credito… E como Carlos pretendia ter
«bastante para o luxo d’ambos», Ega atalhou muito sério:
– Não, não! Minha mãi tambem é rica. Uma viagem
á America e ao Japão são fórmas de educação.
E a mamã tem o dever de completar a minha educação. O
que acceito, sim, é uma das tuas malas de couro…
Quando n’essa noite, acompanhados pelo Villaça, Carlos e Ega chegaram
á estação de Santa Apolonia, o comboio ia partir. Carlos
mal teve tempo de saltar para o seu compartimento reservado – emquanto o Baptista,
abraçado ás mantas de viagem, empurrado pelo guarda, se içava
desesperadamente para outra carruagem, entre os protestos dos sujeitos que
a atulhavam. O trem immediatamente rolou. Carlos debruçou-se á
portinhola, gritando ao Ega: – «Manda um telegramma ámanhã
a dizer o que houve!»
Recolhendo ao Ramalhete com o Villaça, que ia n’essa noite colligir
e sellar os papeis de Affonso da Maia, Ega fallou logo nas quinhentas libras
que elle devia entregar na manhã seguinte a Maria Eduarda. Villaça
recebera com effeito essa ordem de Carlos. Mas francamente, entre amigos,
não lhe parecia excessiva a somma, para uma jornada? Além d’isso
Carlos fallára em estabelecer a essa senhora uma mezada de quatro mil
francos, cento e sessenta libras! Não achava tambem exagerado? Para
uma mulher, uma simples mulher…
Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais…
– Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem ainda
de ser muito estudado. Não fallemos n’isso. Eu nem gósto de
fallar d’isso!…
Depois como Ega alludia á fortuna que deixava Affonso da Maia – Villaça
deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portugal. Só o que
viera da herança de Sebastião da Maia, representava bem quinze
contos de renda. As propriedades do Alemtejo, com os trabalhos que lá
fizera o pai d’elle Villaça, tinham triplicado de valor. Santa Olavia
era uma despeza. Mas as quintas ao pé de Lamego, um condado.
– Ha muito dinheiro! exclamou elle com satisfação, batendo no
joelho do Ega. E isto, amigo, digam lá o que disserem, sempre consola
de tudo.
– Consola de muito, com effeito.
Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar feliz
e amavel que alli houvera e que para sempre se apagára. Na ante-camara,
os seus passos já lhe pareceram soar tristemente como os que se dão
n’uma casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de incenso e de phenol.
No lustre do corredor havia uma luz só e dormente.
– Já anda aqui um ar de ruina, Villaça.
– Ruinasinha bem confortavel, todavia murmurou o procurador dando um olhar
ás tapeçarias e aos divans, e esfregando as mãos, arrepiado
da friagem da noite.
Entraram no escriptorio de Affonso, onde durante um momento se ficaram aquecendo
ao lume.O relogio Luiz XV bateu finalmente as nove horas – depois a toada
argentina do seu minuete vibrou um instante e morreu. Villaça preparou-se
para começar a sua tarefa. Ega declarou que ia para o quarto arranjar
tambem a sua papelada, fazer a limpeza final de dois annos de mocidade…
Subiu. E pousára apenas a luz sobre a commoda, quando sentiu ao fundo,
no silencio do corredor, um gemido longo, desolado, d’uma tristeza infinita.
Um terror arrepiou-lhe os cabellos. Aquillo arrastava-se, gemia no escuro,
para o lado dos aposentos d’Affonso da Maia. Por fim, reflectindo que toda
a casa estava acordada, cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns
passos no corredor, com o castiçal na mão tremula.
Era o gato! Era o reverendo Bonifacio, que, diante do quarto d’Affonso, arranhando
a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraçou-o, furioso. O
pobre Bonifacio fugiu, obeso e lento, com a cauda fôfa a roçar
o chão: mas voltou logo e esgatanhando a porta, roçando-se pelas
pernas do Ega, recomeçou a miar, n’um lamento agudo, saudoso como o
d’uma dôr humana, chorando o dono perdido que o acariciava no collo
e que não tornára a apparecer.
Ega correu ao escriptorio a pedir ao Villaça que dormisse essa noite
no Ramalhete. O procurador accedeu, impressionado com aquelle horror do gato
a chorar. Deixára o montão de papeis sobre a mesa, voltára
a aquecer os pés ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se
sentára, ainda todo pallido, no sofá bordado a matiz, antigo
logar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente:
– Ha tres annos, quando o snr. Affonso me encomendou aqui as primeiras obras,
lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fataes aos Maias
as paredes do Ramalhete. O snr. Affonso da Maia riu d’agouros e lendas…
Pois fataes foram!

No dia seguinte, levando os papeis da Monforte e o dinheiro em letras e libras
que Villaça lhe entregára á porta do Banco de Portugal,
Ega, com o coração aos pulos, mas decidido a ser forte, a affrontar
a crise serenamente, subiu ao primeiro andar da rua de S. Francisco. O Domingos,
de gravata preta, movendo-se em pontas de pés, abriu o reposteiro da
sala. E Ega pousára apenas sobre o sofá a velha caixa de charutos
da Monforte – quando Maria Eduarda entrou, pallida, toda coberta de negro,
estendendo-lhe as mãos ambas.
– Então Carlos ?
Ega balbuciou:
– Como v. exc.ª póde imaginar, n’um momento d’estes… Foi horrivel,
assim de surpreza…
Uma lagrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ella não conhecia o
snr. Affonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas soffria realmente por sentir
bem o soffrimento de Carlos… O que aquelle rapaz estremecia o avô!
– Foi de repente, não?
Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a corôa que ella mandára.
Contou os gemidos, a afflicção do pobre Bonifacio…
– E Carlos? repetiu ella.
– Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora.
Ella apertou as mãos, n’uma surpreza que a acabrunhava. Para Santa
Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?… Um terror empallidecia-a mais,
diante d’aquella partida tão arrebatada, quasi parecida com um abandono.
Terminou por murmurar, com um ar de resignação e de confiança
que não sentia:
– Sim, com effeito, n’este momento não se pensa nos outros…
Duas lagrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante d’esta dôr, tão
humilde e tão muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com
os dedos tremulos no bigode, viu Maria chorar em silencio. Por fim ergueu-se,
foi á janella, voltou, abriu os braços diante d’ella n’uma afflicção:
– Não, não é isso, minha querida senhora! Ha outra coisa,
ha ainda outra coisa! Tem sido para nós dias terriveis! Tem sido dias
d’angustia…
Outra coisa?… Ella esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma toda
suspensa.
Ega respirou fortemente:
– V. exc.ª lembra-se d’um Guimarães, que vive em Paris, um tio
do Damaso?
Maria, espantada, moveu lentamente a cabeça.
– Esse Guimarães era muito conhecido da de v. exc.ª não
é verdade?
Ella teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava ainda,
com a face arrepanhada e branca, n’um embaraço que o dilacerava:
– Eu fallo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu… Deus
sabe o que me custa!… E é horrível, nem sei por onde hei de
começar…
Ella juntou as mãos, n’uma supplica, n’uma angustia:
– Pelo amor de Deus!
E n’esse instante, muito socegadamente, Rosa erguia uma ponta do reposteiro,
com Niniche aolado e a sua boneca nos braços. A mãi teve um
grito impaciente:
– Vai lá p’ra dentro! deixa-me!
Assustada, a pequena não se moveu mais, com os lindos olhos de repente
cheios de agua. O reposteiro cahiu, do fundo do corredor veio um grande chôro
magoado.
Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo de findar.
– V. exc.ª conhece a letra de sua mãi, não é verdade?…
Pois bem! Eu trago aqui uma declaração d’ella a seu respeito…
Esse Guimarães é que tinha este documento, com outros papeis
que ella lhe entregou em 71, nas vesperas da guerra… Elle conservou-os até
agora, e queria restituir-lh’os, mas não sabia onde v. exc.ª vivia.
Viu-a ha dias n’uma carruagem, commigo, e com o Carlos… Foi ao pé
do Aterro, v. exc.ª deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vinhamos
da Toca… Pois bem! o Guimarães veio immediatamente ao procurador
dos Maias, deu-lhe esses papeis, para que os entregasse a v. exc.ª…
E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se
entreviu que v. exc.ª era parenta de Carlos, e parenta muito chegada…
Atabalhoára esta historia de pé, quasi d’um fôlego, com
bruscos gestos de nervoso. Ella mal comprehendia, livida, n’um indefinido
terror. Só pôde murmurar muito debilmente: «Mas…»
E de novo emmudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega que, debruçado
sobre o sofá, desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte.
Por fim voltou para ella com um papel na mão, atropellando as palavras
n’uma debandada:
– A mãi de v. exc.ª nunca lh’o disse… Havia um motivo muito
grave… Ella tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido… Digo isto assim
brutalmente, perdôe-me v. exc.ª mas não é o momento
de attenuar as coisas… Aqui está! v. exc.ª conhece a letra de
sua mãi. É d’ella esta letra, não é verdade?
– É! exclamou Maria, indo arrebatar o papel.
– Perdão! gritou Ega, retirando-lh’o violentamente. Eu sou um estranho!
E v. exc.ª não se pode inteirar de tudo isto emquanto eu não
sahir d’aqui.
Fôra uma inspiração providencial, que o salvava de testemunhar
o choque terrivel, o horror das coisas que ella ia saber. E insistiu. Deixava-lhe
alli todos os papeis que eram de sua mãi. Ella leria, quando elle sahisse,
comprehenderia a realidade atroz… Depois, tirando do bolso os dois pesados
rôlos de libras, o sobrescripto que continha a letra sobre Paris, pôz
tudo em cima da mesa, com a declaração da Monforte.
– Agora só mais duas palavras. Carlos pensa que o que v. exc.ª
deve fazer já é partir para Paris. V. exc.ª tem direito,
como sua filha ha de ter, a uma parte da fortuna d’esta familia dos Maias,
que agora é a sua… N’este masso que lhe deixo está uma letra
sobre Paris para as despezas immediatas… O procurador de Carlos tomou já
um wagon-salão. Quando v. exc.ª decidir partir, peço-lhe
que mande um recado ao Ramalhete para eu estar na gare… Creio que é
tudo. E agora devo deixal-a…
Agarrára rapidamente o chapéo, veio tomar-lhe a mão inerte
e fria:
– Tudo é uma fatalidade! V. exc.ª é nova, ainda lhe resta
muita coisa na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo… Nem lhe sei dizer
mais nada!
Suffocado, beijou-lhe a mão que ella lhe abandonou, sem consciencia
e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com a lividez parada d’um
marmore. E fugiu.
– Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro.
Foi só na rua do Ouro que começou a serenar, tirando o chapéo,
respirando largamente. E ia então repetindo a si mesmo rodas as consolações
que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu peccado fôra
inconsciente; o tempo acalma toda a dôr; e em breve, já resignada,
encontrar-se-hia com uma familia séria, uma larga fortuna, n’esse amavel
Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil francos, têm
sempre um reinado seguro…
– É uma situação de viuva bonita e rica, terminou elle
por dizer alto no coupé. Ha peor na vida.
Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora do dia
de inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a escrever a longa carta
que promettera a Carlos. Villaça já lá estava installado,
com um boné de velludilho na cabeça, emmassando ainda os papeis
de Affonso, liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumaram junto
do lume, na sala Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em
baixo, n’uma carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo
Maria, alguma resolução desesperada. Villaça ainda teve
a esperança d’ella trazer alguma nova revelação, que
tudo mudasse, salvasse da «bolada»… Ega desceu a tremer. Era
Melanie n’uma tipoia de praça, abafada n’uma grande ulster com uma
carta de Madame.
Á luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas um cartão
branco, com estas palavras a lapis: «Decidi partir ámanhã
para Paris.»
Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo as
escadas: e seguido de Villaça, que ficára na ante-camara á
espreita, correu ao escriptorio d’Affonso, a escrever a Maria. N’um papel
tarjado de luto dizia-lhe (além de detalhes sobre bagagens)- que o
wagon-salão estava tomado até Paris, e que elle teria a honra
de a vêr em Santa Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com
a penna no ar, n’um embaraço. Devia pôr «Madame Mac-Gren»
ou «D. Maria Eduarda da Maia?» Villaça achava preferivel
o antigo nome, porque ella legalmente ainda não era Maia. Mas, dizia
o Ega atrapalhado, tambem já não era Mac-Gren…
-Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento…
Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie guardou-a no
regalo. E, debruçada portinhola, entristecendo a voz, desejou saber,
da parte de Madame, onde estava enterrado o avô do senhor…
Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella curiosidade
de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma indicação.
Era nos Prazeres, á direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha.
O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs. Villaças.
– Merci, monsieur, bien le bonsoir.
– Bonsoir, Melanie!
No dia seguinte, na estação de Santa Apolonia, Ega, que viera
cedo com o Villaça, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro,
quando avistou Maria que entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda
envolta n’uma grande pelliça escura, com um véo dobrado, espesso
como uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena,
fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sarah, n’uma ulster clara de
quadrados, sobraçava um masso de livros. Atraz o Domingos, com olhos
muito vermelhos, segurava um rôlo de mantas, ao lado de Melanie carregada
de preto que levava Niniche ao collo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a
pelo braço, em silencio, ao wagon-salão que tinha todas as cortinas
cerradas. Junto do estribo ella tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe
a mão.
– Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o Norte.
Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vêr sumir-se n’aquella
carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que parecia tão
bella, d’ar tão triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola,
o Neves, o da Tarde e do Tribunal de Contas, rompeu d’entre um rancho, arrebatou-lhe
o braço com sofreguidão:
– Quem é?
Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido, já
muito adiante, tragicamente:
– Cleopatra!
O politico, furioso, ficou rosnando: «Que asno!…» Ega abalára.
Junto do seu compartimento Villaça esperava, ainda deslumbrado com
aquella figura de Maria Eduarda, tão melancolica e nobre. Nunca a vira
antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.
– Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bella mulher! Dá-nos
uma bolada, mas é uma soberba praça!
O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenço de côres
sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso,
vendo o Ega á portinhola, atirou-lhe de lado, disfarçadamente,
um gesto obsceno.
No Entroncamento Ega veio bater nos vidrosdo salão que se conservava
fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um canto,
com a cabeça n’uma almofada. E Niniche assustada ladrou.
– Quer tomar alguma coisa, minha senhora ?
– Não, obrigada…
Ficaram calados, emquanto Ega com o pé no estribo tirava lentamente
a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, devagar,
abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a machina
resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salão,
com olhares curiosos e já languidos para aquella magnifica mulher,
tão grave e sombria, envolta na sua pelliça negra.
– Vai para o Porto? murmurou ella.
– Para Santa Olavia…
– Ah!
Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:
– Adeus!
Ella apertou-lhe a mão com muita força, em silencio, suffocada.
Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracollo
que corriam a beber á cantina. Á porta do buffete voltou-se
ainda, ergueu o chapéo. Ella, de pé, moveu de leve o braço
n’um lento adeus. E foi assim que elle pela derradeira vez na vida viu Maria
Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, á portinhola d’aquelle
wagon que para sempre a levava.

Capítulo VIII

Semanas depois, nos primeiros dias d’anno novo, a Gazeta Illustrada trazia
na sua columna do High-life esta noticia: «O distincto e brilhante sportman,
o snr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e collaborador João da Ega,
partiram hontem para Londres, d’onde seguirão em breve para a America
do Norte, devendo d’ahi prolongar a sua interessante viagem até ao
Japão. Numerosos amigos foram a bordo do Tamar despedir-se dos sympathicos
touristes. Vimos entre outros os snrs. ministro da Filandia e seu secretario,
o marquez de Souzella, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme
Craft, Telles da Gama, Cruges, Taveira, Villaça, general Sequeira,
o glorioso poeta Thomaz d’Alencar,etc. etc. O nosso amigo e collaborador João
da Ega fez-nos, no ultimo shake-hands, a promessa de nos mandar algumas cartas
com as suas impressões do Japão, esse delicioso paiz d’onde
nos vem o sol e a moda! É uma boa nova para todos os que prezam a observação
e o espirito. Au revoir!»
Depois d’estas linhas affectuosas (em que o Alencar collaborára) as
primeiras noticias dos «viajantes» vieram, n’uma carta do Ega
para o Villaça, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle
ajuntava um post-scriptum com o titulo de Informações geraes
para os amigos. Contava ahi a medonha travessia desde Liverpool, a persistente
tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E acrescentava
ainda: «Está-se apossando de nós a embriaguez das viagens,
decididos a trilhar este estreito Universo até que cancem as nossas
tristezas. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a Asia
Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar na Russia; d’ahi, pela Armenia
e pela Syria, descer ao Egypto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois
a Athenas, lançar sobre a Acropole uma saudação a Minerva;
passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir emfim ao comprido
em Santa Olavia lá para os meados de 79 a descançar os membros
fatigados. Não escrevinho mais porque é tarde,e vamos á
Opera vêr a Patti no Barbeiro. Larga distribuição d’abraços
a todos os amigos queridos.»
Villaça copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para mostrar
aos fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com admiração,
tão bellas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com aquella
vastidão do Universo, murmurou tristemente: «Não voltam
cá!»
Mas, passado anno e meio, n’um lindo dia de março, Ega reappareceu
no Chiado. E foi uma sensação! Vinha esplendido, mais forte,
mais trigueiro, soberbo de verve, n’um alto apuro de toilette, cheio de historias
e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arte ou poesia que
não fosse do Japão ou da China, e annunciando um grande livro,o
«seu livro», sob este titulo grave de chronica heroica – Jornadas
da Asia.
– E Carlos?…
Magnifico! Installado em Paris, n’um delicioso appartamento dos Campos-Elyseos,
fazendo a vida larga d’um principe artista da Renascença…
Ao Villaça porém, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos
ficára ainda abalado. Vivia, ria, governava o seu phaeton no Bois –
mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada e negra,
a memoria da «semana terrivel».
Todavia os annos vão passando, Villaça, acrescentou elle. E
com os annos, a não ser a China, tudo na terra passa…
E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos
murcharam. Outros annos passaram.

Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa d’um
amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d’essa propriedade dos Villa-Medina,
chamada La Soledad, escreveu para Lisboa ao Ega annunciando que – depois d’um
exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao velho Portugal vêr as arvores
de Santa Olavia e as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidavel
nova, que assombraria o bom Ega: e se elle já ardia em curiosidade,
que viesse ao seu encontro com o Villaça, comer o porco a Santa Olavia.
– Vae casar! pensou Ega.
Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle não
via Carlos. Infelizmente não pôde correr a Santa Olavia, retido
n’um quarto do Braganza com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida
com que celebrára no Silva a noite de Reis. Villaça, porém,
levou a Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina,
lhe supplicava que se não retardasse com o porco n’esses penhascos
do Douro, e que voasse á grande Capital a trazer a grande nova.
Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende. E n’uma luminosa e macia
manhã de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos almoçavam
n’um salão do Hotel Braganza, com as duas janellas abertas para o rio.
Ega, já curado, radiante, n’uma excitação que não
se calmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o monoculo
para admirar Carlos e a sua «immutabilidade».
– Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!… Tudo isso é
Paris, menino!… Lisboa arraza. Olha para mim, olha para isto!
Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face
chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que começára
havia dois annos, alastrára, já reluzia no alto.
– Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a calva!
Transformam-se as civilisações, a calva fica!… Já tem
tons de bola de bilhar, não é verdade?… De que será?
– É a ociosidade, lembrou Carlos rindo.
– A ociosidade… E tu, então?
De resto, que podia elle fazer n’este paiz?… Quando voltára de França,
ultimamente, pensára em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera
a blague: e agora que a mamã, coitada, lá estava no seu grande
jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflectira. Por fim, em que
consistia a diplomacia portugueza? N’uma outra fórma da ociosidade,
passada no estrangeiro, com o sentimento constante da propria insignificancia.
Antes o Chiado!
E como Carlos lembrava a Politica, occupação dos inuteis, Ega
trovejou. A politica! Isso tornára-se moralmente e physicamente nojento,
desde que o negocio atacára o constitucionalismo como uma phylloxera!
Os politicos hoje eram bonecos de engonços,que faziam gestos e tomavam
attitudes porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam pelos cordeis…
Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual!
Ahi é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham
maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas… Coisa extraordinaria,
que em paiz algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro
salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem fôr, largamente,
excluem a maioria dos politicos. E porque? Porque as senhoras têm nôjo!
– Olha o Gouvarinho! Vê lá se elle recebe ás terças-feiras
os seus correligionarios…
Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na cadeira:
– É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?
Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa herdára
uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia a Santa Isabel, tinha
agora melhores carruagens, recebia sempre ás terças-feiras.
Mas soffria uma doença qualquer, grave, no figado ou no pulmão.
Ainda elegante todavia, muito séria, uma terrivel flôr de pruderie…
Elle, o Gouvarinho, ahi continuava, palrador, escrevinhador, politicote, impertigadote,
já grisalho, duas vezes ministro, e coberto de gran-cruzes…
– Tu não os viste em Paris, ultimamente?
– Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na
vespera para Vichy…
A porta abriu-se, um brado cavo resoou:
– Até que emfim, meu rapaz!
– Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.
E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos hombros, e
um beijo ruidoso – o beijo paternal do Alencar, que tremia, commovido. Ega
arrastára uma cadeira, berrava pelo escudeiro:
– Que tomas tu, Thomaz? Cognac? Curaçáo? Em todo o caso café!
Mais café! Muito forte, para o snr. Alencar!
O poeta, no emtanto, abysmado na contemplação de Carlos, agarrára-o
pelas mãos, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais
estragados. Achava-o magnifico, varão soberbo, honra da raça…
Ah! Paris, com o seu espirito, a sua vida ardente, conserva…
– E Lisboa arraza! acudiu Ega. Já cá tive essa phrase. Vá,
abanca, ahi tens o cafésinho e a bebida!
Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais bonito,
mais poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquellas rugas fundas
na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das
emoções…
– Estás typico, Alencar! Estás a preceito para a gravura e para
a estatua!…
O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes romanticos,
que a idade embranquecera e o cigarro amarellára. Que diabo, algumas
compensações havia de ter a velhice!… Em todo o caso o estomago
não era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de coração.
– O que não impede, meu Carlos, que isto por cá esteja cada
vez peor! Mas acabou-se… A gente queixa-se sempre do seu paiz, é
habito humano. Já Horacio se queixava. E vocês, intelligencias
superiores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto… Sem fallar, é
claro, na quéda da republica, n’aquelle desabamento das velhas instituições…
Emfim deixemos lá os Romanos! Que está alli n’aquella garrafa?
Chablis… Não desgosto, no outono, com as ostras. Pois vá lá
o Chablis. E á tua chegada, meu Carlos! e á tua, meu João,
e que Deus vos dê as glorias que mereceis, meus rapazes!…
Bebeu. Rosnou: «bom Chablis, bouquet fino». E acabou por abancar,
ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.»
– Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no hombro com carinho.
Não ha outro, é unico! O bom Deus fel-o n’um dia de grande verve,
e depois quebrou a fôrma.
Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bons como
elle. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Biblia – ou
do mesmo macaco como affirmava o Darwin…
– Que, lá essas coisas d’evolução, origem das especies,
desenvolvimento da cellula, cá para mim… Está claro, o Darwin,
o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o Littré, tudo isso, é
gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que
o homem prova sublimemente que tem alma!
– Toma o cafésinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chavena.
Toma o cafésinho!
– Obrigado!… E é verdade, João, lá dei a tua boneca
á pequena. Começou logo a beijal-a, a embalal-a, com aquelle
profundo instincto de mãi, aquelle quid divino… É uma sobrinhita
minha, meu Carlos. Ficou sem mãi, coitadinha, lá a tenho, lá
vou tratando de fazer d’ella uma mulher… Has de vêl-a. Quero que vocês
lá vão jantar um dia, para vos dar umas perdizes á hespanhola…
Tu demoras-te, Carlos?
– Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria.
– Tens razão, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac.
Isto ainda não é tão mau como se diz… Olha tu para
isso, para esse céo, para esse rio, homem!
– Com effeito é encantador!
Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do rio,
vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céo, esplendidamente
coberto de sol.
– E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta. Abandonaste
a lingua divina?
Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a lingua divina?
O novo Portugal só comprehendia a lingua da libra, da «massa».
Agora, filho, tudo eram syndicatos!
– Mas ainda ás vezes me passa uma coisa cá por dentro, o velho
homem estremece… Tu não viste nos jornaes?… Está claro,
não lês cá esses trapos que por ahi chamam gazetas…
Pois veio ahi uma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu t’a digo se
me lembrar…
Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou à estrophe
n’um tom de lamento:

Luz d’esperança, luz d’amor,
Que vento vos desfolhou?
Que a alma que vos seguia
Nunca mais vos encontrou!

Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou: «Muito fino!»
E o poeta, aquecendo, já commovido, esboçou um movimento d’aza
que foge:

Minh’alma em tempos d’outr’ora,
Quando nascia o luar,
Como um rouxinol que acorda
Punha-se logo a cantar.

Pensamentos era flôres,
Que a aragem lenta de Maio…

– O snr. Cruges! annunciou o criado, entreabrindo a porta.
Carlos ergueu os braços. E o maestro, todo abotoado n’um paletot claro,
abandonou-se á effusão de Carlos, balbuciando:
– Eu só hontem é que soube. Queria-te ir esperar, mas não
me acordaram…
– Então continúa o mesmo desleixo? exclamava Carlos, alegremente.
Nunca te acordam?
Cruges encolhia os hombros, muito vermelho, acanhado, depois d’aquella longa
separação. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado, enternecido
com o seu velho maestro, sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grenha cahindo
mais crespa sobre a gola do paletot.
– E deixa-me dar-te os parabens! Lá soube pelos jornaes, o triumpho,
a linda opera-comica, a Flôr de Sevilha…
– De Granada! acudiu o maestro. Sim, uma coisita para ahi, não desgostaram.
– Uma belleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma musica toda
do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira… Mas já lhe tenho dito:
«Deixa lá a opereta, rapaz, vôa mais alto, faze uma grande
symphonia historica!» Ainda ha dias lhe dei uma idéa. A partida
de D. Sebastião para a Africa. Cantos de marinheiros, atabales, o chôro
do povo, as ondas batendo… Sublime! Qual, põe-se-me lá com
castanholas… Emfim, acabou-se, tem muito talento, e é como se fosse
meu filho porque me sujou muita calça!…
Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim confessou a
Carlos que não se podia demorar, tinha um rendez-vous…
– D’amor?
– Não… É o Barradas que me anda atirar o retrato a oleo.
– Com a lyra na mão?
– Não, respondeu o maestro, muito sério. Com a batuta… E estou
de casaca.
E desabotoou o paletot, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois coraes
no peitilho da camisa, e a batuta de marfim mettida na abertura do collete.
– Estás magnifico! affirmou Carlos. Então outra coisa, vem cá
jantar logo. Alencar, tu tambem, hein? Quero ouvir esses bellos versos com
socego… Ás seis, em ponto, sem falhar. Tenho um jantarinho á
portugueza que encommendei de manhã com cozido, arroz de forno, grão
de bico, etc., para matar saudades…
Alencar lançou um gesto immenso de desdem. Nunca o cozinheiro do Braganza,
francelhote miseravel, estaria á altura d’esses nobres petiscos do
velho Portugal. Emfim acabou-se. Seria pontual ás seis para uma grande
saude ao seu Carlos!
– Vocês vão sahir, rapazes?
Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarão.
O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Então elle partia
com o maestro. O seu caminho ficava tambem para o lado do Barradas… Moço
de talento, esse Barradas!… Um pouco pardo de côr, tudo por acabar,
esborratado, mas uma bella ponta de faisca.
– E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E não
era só o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrificio!… Já não
ha d’isso, já lá vai tudo. Emfim, acabou-se, ás seis!

– Ás seis, em ponto, sem falhar!
Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E d’ahi a
pouco Carlos e Ega seguiam tambem pela rua do Thesouro Velho, de braço
dado, muito lentamente.
Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega conhecêra,
havia quatro annos, quando lá passára um tão alegre inverno
nos appartamentos de Carlos. E a surpreza do Ega, a cada nome evocado, era
o curto brilho, o fim brusco de toda essa mocidade estouvada. A Lucy Gray,
morta. A Conrad, morta… E a Maria Blond? Gorda, emburguezada, casada com
um fabricante de velas de estearina. O polaco, o louro? Fugido, desapparecido.
Mr. de Menant, esse D. Juan? Sub-prefeito no departamento do Doubs. E o rapaz
que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa… E outros ainda, mortos,
sumidos, afundados no lodo de Paris!
Pois tudo sommado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de Lisboa, simples,
pacata, corredia, é infinitamente preferivel.
Estavam no Loreto; e Carlos parára, olhando, reentrando na intimidade
d’aquelle velho coração da capital. Nada mudára. A mesma
sentinella somnolenta rondava em torno á estatua triste de Camões.
Os mesmos reposteiros vermelhos, com brazões ecclesiasticos, pendiam
nas portas das duas igrejas. O Hotel Alliance conservava o mesmo ar mudo e
deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapéo á
faia fustigavam as pilecas; tres varinas, de canastra á cabeça,
meneavam os quadris, fortes e ageis na plena luz. A uma esquina, vadios em
farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam tambem outros
vadios, de sobrecasaca, politicando.
– Isto é horrivel quando se vem de fóra! exclamou Carlos. Não
é a cidade, é a gente. Uma gente feiissima, encardida, mollenga,
reles, amarellada, acabrunhada!…
– Todavia Lisboa faz differença, affirmou Ega, muito sério.
Oh, faz muita differença! Has de vêr a Avenida… Antes do Ramalhete
vamos dar uma volta á Avenida.
Foram descendo o Chiado. Do outro tado os toldos das lojas estendiam no chão
uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ás mesmas
portas, sujeitos que lá deixára havia dez annos, já assim
encostados, já assim melancolicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas
lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas humbreiras,
com collarinhos á moda. Depois, diante da livraria Bertrand, Ega, rindo,
tocou no braço de Carlos:
– Olha quem alli está, á porta do Baltresqui!
Era o Damaso. O Damaso, barrigudo, nedio, mais pesado, de flôr ao peito,
mamando um grande charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente embrutecido
d’um ruminante farto e feliz. Ao avistar tambem os seus dois velhos amigos
que desciam, teve um movimento para se esquivar, refugiar-se na confeitaria.
Mas, insensivelmente, irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos, com
a mão aberta e um sorriso na bochecha, que se lhe esbrazeára.
– Olá, por cá!… Que grande surpreza!
Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo tambem,
indifferente e esquecido.
– É verdade, Damaso… Como vai isso?
– Por aqui, n’esta semsaboria… E então com demora?
– Umas semanas.
– Estás no Ramalhete?
– No Braganza. Mas não te incommodes, eu ando sempre por fóra.
– Pois sim senhor!… Eu tambem estive em Paris, ha tres mezes, no Continental…
– Ah!… Bem, estimei vêr-te, até sempre! Adeus, rapazes. Tu
estás bom, Carlos, estás com boa cara!
– É dos teus olhos, Damaso.
E nos olhos do Damaso, com effeito, parecia reviver a antiga admiração,
arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca, o
chapéo, o andar, como no tempo em que o Maia era para elle o typo supremo
do seu querido chic «uma d’essas coisas que só se vêem
lá fóra…»
– Sabes que o nosso Damaso casou? disse o Ega um pouco adiante, travando outra
vez do braço de Carlos.
E foi um espanto para Carlos. O quê! O nosso Damaso! Casado!?… Sim,
casado com uma filha dos condes d’Agueda, uma gente arruinada, com um rancho
de raparigas. Tinham-lhe impingido a mais nova. E o optimo Damaso, verdadeira
sorte grande para aquella distincta familia, pagava agora os vestidos das
mais velhas.
– É bonita?
– Sim, bonitinha… Faz ahi a felicidade d’um rapazote sympathico, chamado
Barroso.
– O quê, o Damaso, coitado…
– Sim, coitado, coitadinho, coitadissimo… Mas como vês, immensamente
ditoso, até tem engordado com a perfidia!
Carlos parára. Olhava, pasmado para as varandas extraordinarias d’um
primeiro andar, recobertas como em dia de procissão, de sanefas de
pano vermelho onde se entrelaçavam monogrammas. E ia indagar – quando,
d’entre um grupo que estacionava ao portal d’esse predio festivo, um rapaz
d’ar estouvado, com a face imberbe cheia d’espinhas carnaes, atravessou rapidamente
a rua para gritar ao Ega, suffocado de riso:
– Se você fôr depressa ainda a encontra ahi abaixo! Corra!
– Quem?
– A Adosinda!… De vestido azul, com plumas brancas no chapéo… Vá
depressa… O João Elyseu metteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a
fazendo estatelar no chão, foi uma scena… Vá depressa, homem!
Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho – onde todos, já
calados, com uma curiosidade de provincia, examinavam aquelle homem de tão
alta elegancia que acompanhava o Ega e que nenhum conhecia. E Ega, no emtanto,
explicava a Carlos as varandas e o grupo:
– São rapazes do Turf. É um club novo, antigo Jockey da travessa
da Palha. Faz-se lá uma batotinha barata, tudo gente muito sympathica…
E como vês estão sempre assim preparados, com sanefas e tudo,
para se acaso passar por ahi o senhor dos Passos.
Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda. Fôra
no Silva, havia duas semanas, estando elle a cear com rapazes depois de S.
Carlos, que lhes apparecera essa mulher inverosimil, vestida de vermelho,
carregando sensatamente nos rr, mettendo rr em todas as palavras, e perguntando
pelo snr. virrsconde… Qual virrsconde? Ella não sabia bem. Erra um
virrsconde que encontrrárra no Crrolyseu. Senta-se, offerecem-lhe champagne,
e D. Adosinda começa a revelar-se um sêr prodigioso. Fallavam
de politica, do ministerio e do deficit. D. Adosinda declara logo que conhece
muito bem o deficit, e que é um bello rapaz… O deficit bello rapaz
– immensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que já fôra
com elle a Cintra, que é um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco
Inglez… O deficit empregado no Banco Inglez – gritos, uivos, urros! E não
cessou esta gargalhada continua, estrondosa, phrenetica, até ás
cinco da manhã em que D. Adosinda fôra rifada e sahira ao Telles!…
Noite soberba!
– Com effeito, disse Carlos rindo, é uma orgia grandiosa, lembra Heliogabalo
e o Conde d’Orsay…
Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na
Europa, em qualquer civilisação? Sempre queria vêr que
se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do Grand-Treize,
ou em Londres, n’aquella correcta e massuda semsaboria do Bristol! O que ainda
tornava a vida toleravel era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa
o homem requintado já não ri, – sorri regeladamente, lividamente.
Só nós aqui, n’este canto do mundo barbaro, conservamos ainda
esse dom supremo, essa coisa bemdita e consoladora – a barrigada de riso!
– Que diabo estás tu a olhar?
Era o consultorio, o antigo consultorio de Carlos – onde agora, pela taboleta,
parecia existir um pequeno atelier de modista. Então bruscamente os
dois amigos recahiram nas recordações do passado. Que estupidas
horas Carlos alli arrastára, com a Revista dos Dois Mundos, na espera
vã dos doentes, cheio ainda de fé nas alegrias do trabalho!…
E a manhã em que o Ega lá apparecera com a sua esplendida pelliça,
preparando-se para transformar, n’um só inverno, todo o velho e rotineiro
Portugal!
– Em que tudo ficou!
– Em que tudo ficou! Mas rimos bastante!
Lembras-te d’aquella noite em que o pobre marquez queria levar ao consultorio
a Paca, para utilisar emfim o divan, movel de serralho?…
Carlos teve uma exclamação de saudade. Pobre marquez! Fôra
uma das suas fortes impressões, n’esses ultimos annos – aquella morte
do marquez, sabida de repente ao almoço, n’uma banal noticia de jornal!…
E através do Rocio, andando mais devagar, recordavam outros desapparecimentos:
a D. Maria da Cunha, coitada, que acabára hydropica; o D. Diogo, casado
por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma noite n’uma tipoia ao
sahir dos cavallinhos…
– E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres ?
– Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pé de Richmond…
Mas está muito avelhado, queixa-se muito do figado. E, desgraçadamente,
carrega de mais nos alcools. É uma pena!
Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moço, contou o Ega, tinha
agora por cima mais dez annos de Secretaria e de Chiado. Mas sempre apurado,
já um bocado grisalho, mettido continuamente com alguma hespanhola,
dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando todas as tardes na Havaneza,
com um ar dôce e contente – «isto é um paiz perdido»!
Emfim um bom typosinho de lisboeta fino.
– E a besta do Steinbroken?
– Ministro em Athenas, exclamou Carlos, entre as ruinas classicas!
E esta idéa do Steinbroken, na velha Grecia, divertiu-os infinitamente.
Ega imaginava já o bom Steinbroken, têso nos seus altos collarinhos,
affirmando a respeito de Socrates, com prudencia: «Oh,il est très
fort, il est excessivement fort!» Ou ainda, a proposito da batalha das
Thermopylas, rosnando, com medo de se comprometter: «C’est très
grave, c’est excessivement grave!» Valia a pena ir á Grecia para
vêr!
Subitamente Ega parou:
– Ora ahi tens tu essa Avenida! Hein?… Já não é mau!
N’um claro espaço rasgado, onde Carlos deixára o Passeio Publico
pacato e frondoso – um obelisco, com borrões de bronze no pedestal,
erguia um traço côr d’assucar na vibração fina
da luz de inverno: e os largos globos dos candieiros que o cercavam, batidos
do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão
suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os pesados
predios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde
negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra, quadrilhados a branco e preto,
onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aquelles dois hirtos renques
de casas ajanotadas lembravam a Carlos as familias que outr’ora se immobilisavam
em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma»,
ouvindo a Banda, com casimiras e sêdas, no catitismo domingueiro. Todo
o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia na
aragem a sua folhagem pallida e rara. E ao fundo a collina verde, salpicada
d’arvores, os terrenos de Valle de Pereiro, punham um brusco remate campestre
áquelle curto rompante de luxo barato – que partira para transformar
a velha cidade, e estacára logo, com o fôlego curto, entre montões
de cascalho.
Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliça; a divina
serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoçava. E os dois amigos
sentaram-se n’um banco, junto de uma verdura que orlava a agua d’um tanque
esverdinhada e molle.
Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flôres na lapella,
a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era
toda uma geração nova e miuda que Carlos não conhecia.
Por vezes Ega murmurava um ólá!, acenava com a bengala. E elles
iam, repassavam, com um arzinho timido e contrafeito, como mal acostumados
áquelle vasto espaço, a tanta luz, ao seu proprio chic. Carlos
pasmava. Que faziam ,alli, ás horas de trabalho, aquelles moços
tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas n’um banco
adiante uma creatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas
matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes, arejavam
um cãosinho felpudo. O que attrahia pois alli aquella mocidade pallida?
E o que sobretudo o espantava eram as botas d’esses cavalheiros, botas despropositadamente
compridas, rompendo para fóra da calça collante com pontas aguçadas
e reviradas como prôas de barcos varinos…
– Isto é phantastico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples fórma
de botas explicava todo o Portugal contemporaneo. Via-se por alli como a coisa
era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, á D. João VI, que
tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se
á moderna: mas sem originalidade, sem força, sem caracter para
crear um feitio seu, um feitio proprio, manda vir modelos do estrangeiro –
modelos d’idéas, de calças, de costumes, de leis, d’arte, de
cozinha… Sómente, como lhe falta o sentimento da proporção,
e ao mesmo tempo o domina a impaciencia de parecer muito moderno e muito civilisado
– exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até á caricatura. O
figurino da bota que veio de fóra era levemente estreito na ponta;
– immediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico d’alfinete.
Por seu lado o escriptor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em
estylo precioso e cinzelado; – immediatamente retorce, emmaranha, desengonça
a sua pobre phrase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua
vez o legislador ouve dizer que lá fóra se levanta o nivel da
instrucção; – immediatamente põe no programma dos exames
de primeiras letras a metaphysica, a astronomia, a philologia, a egyptologia,
a chresmatica, a critica das religiões comparadas, e outros infinitos
terrores. E tudo por ahi adiante assim, em todas as classes e profissões,
desde o orador até ao photographo, desde o jurisconsulto até
ao sportman… é o que sucede com os pretos já corrompidos de
S. Thomé, que vêem os europeus de lunetas – e imaginam que n’isso
consiste ser civilisado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão
de progresso e de brancura acavallam no nariz tres ou quatro lunetas, claras,
defumadas, até de côr. E assim andam pela cidade, de tanga, de
nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço
de equilibrarem todos estes vidros – para serem immensamente civilisados e
immensamente brancos…
Carlos ria:
– De modo que isto está cada vez peor…
– Medonho! É d’um reles, d’um postiço! Sobretudo postiço!
Já não ha nada genuino n’este miseravel paiz, nem mesmo o pão
que comemos!
Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, n’um gesto lento:
– Resta aquillo, que é genuino…
E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha,
com o seu casario escorregando pelas encostas resequidas e tisnadas do sol.
No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas
ecclesiasticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha,
tardes de procissão, irmandades d’opa atulhando os adros, herva dôce
juncando as ruas, tremoço e fava-rica apregoada ás esquinas,
e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante
azul a miseria da sua muralha, era o castello, sordido e tarimbeiro, d’onde
outr’ora, ao som do hymno tocado em fagotes, descia a tropa de calça
branca a fazer a bernarda! E abrigados por elle, no escuro bairro de S. Vicente
e da Sé, os palacetes decrepitos, com vistas saudosas para a barra,
enormes brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicencia, a
devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, cachetica
e caturra, a velha Lisboa fidalga!
Ega olhou um momento, pensativo:
– Sim, com effeito, é talvez mais genuino. Mas tão estupido,
tão sebento! Não sabe a gente para onde se ha de voltar… E
se nos voltamos para nós mesmos, ainda peor!
E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:
– Espera… Olha quem ahi vem!
Era uma vittoria, bem posta e correcta, avançando com lentidão
e estylo, ao trote esteppado de duas egoas inglezas. Mas foi um desapontamento.
Vinha lá sómente um rapaz muito louro, d’uma brancura de camelia,
com uma pennugem no beiço, languidamente recostado. Fez um aceno ao
Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vittoria passou.
– Não conheces?
Carlos procurava, com uma recordação.
– O teu antigo doente! O Charlie!
O outro bateu as mãos. O Charlie! O seu Charlie! Como aquillo o fazia
velho!… E era bonitinho!
– Sim, muito bonitinho. Tem ahi uma amizade com um velho, anda sempre com
um velho… Mas elle vinha decerto com a mãi, estou convencido que
ella ficou por ahi a passear a pé. Vamos nós vêr?
Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o Eusebiosinho.
Parecia mais funebre, mais tisico, dando o braço a uma senhora muito
forte, muito córada, que estalava n’um vestido de sêda côr
de pinhão. Iam devagar, tomando o sol. E o Eusebio nem os viu, descahido
e mollengo, seguindo com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua
sombra.
– Aquella aventesma é a mulher, contou Ega. Depois de varias paixões
em lupanares, o nosso Eusebio teve este namoro. O pai da creatura, que é
dono d’um prego, apanhou-o uma noite na escada com ella a surripiar-lhe uns
prazeres… Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desappareceu, não
o tornei a vêr… Diz que a mulher que o derreia á pancada.
– Deus a conserve!
– Amen!
E então Carlos, que recordava a coça no Eusebio, o caso da Corneta,
quiz saber do Palma Cavallão. Ainda deshonrava o Universo com a sua
presença, esse benemerito? Ainda o deshonrava, disse o Ega. Sómente
deixára a litteratura, e tornára-se factotum do Carneiro, o
que fôra ministro; levava-lhe a hespanhola ao theatro pelo braço;
e era um bom empenho em politica.
– Ainda ha de ser deputado, acrescentou Ega! E, da fórma que as coisas
vão, ainda ha de ser ministro… E isto está-se fazendo tarde,
Carlinhos. Vamos nós tomar esta tipoia e abalar para o Ramalhete?
Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha já um tom pallido.
Tomaram a tipoia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu – parou, sacudiu
ardentemente a mão no ar. E então Carlos exclamou, com uma surpreza
que já o assaltara essa manhã no Braganza:
– Ouve cá, Ega! Tu agora pareces intimo do Alencar! Que transformação
foi essa?
Ega confessou que realmente agora apreciava immensamente o Alencar. Em primeiro
logar no meio d’esta Lisboa toda postiça, Alencar permanecia o unico
portuguez genuino. Depois, através da contagiosa intrujice, conservava
uma honestidade resistente. Além d’isso havia n’elle lealdade,bondade,
generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais
cortezia, melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não
lhe ia mal ao seu feitio lyrico. E por fim, no estado a que descambára
a litteratura, a versalhada do Alencar tomara relevo pela correcção,
pela simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em resumo,
um bardo infinitamente estimavel.
– E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegamos! Não ha nada
com effeito que caracterise melhor a pavorosa decadencia de Portugal, nos
ultimos trinta annos, do que este simples facto: tão profundamente
tem baixado o caracter e o talento, que de repente o nosso velho Thomaz, o
homem da Flôr de Martyrio, o Alencar d’Alemquer, apparece com as proporções
d’um Genio e d’um Justo!
Ainda fallavam de Portugal e dos seus males quando a tipoia parou. Com que
commoção Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janellinhas
abrigadas á beira do telhado, o grande ramo de girasoes fazendo painel
no logar do estudo d’armas! Ao ruido da carruagem, Villaça appareceu
á porta, calçando luvas amarellas. Estava mais gordo o Villaça
– e tudo na sua pessoa, desde o chapéo novo até ao castão
de prata da bengala, revelava a sua importancia como administrador, quasi
directo senhor durante o longo desterro de Carlos, d’aquella vasta casa dos
Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que alli vivia com a mulher
e o filho, guardando o casarão deserto. Depois felicitou-se de vêr
emfim os dois amigos juntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar no hombro
de Carlos:
– Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolonia, fui tomar um banho
ao Central e não me deitei. Olhe que é uma grande commodidade
o tal sleeping-car! Ah lá isso, em progresso, o nosso Portugal já
não está atraz de ninguem!… E v. exc.ª agora precisa
de mim?
– Não, obrigado, Villaça. Vamos dar uma volta pelas salas…
Vá jantar comnosco. Ás seis! Mas ás seis em ponto, que
ha petiscos especiaes.
E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda lá se conservavam
os bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros de cathedral. Em
cima porém a ante-camara entristecia, toda despida, sem um movel, sem
um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. Tapeçarias orientaes
que pendiam como n’uma tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estatua
da Friorenta rindo e arrepiando-se, na sua nudez de marmore, ao metter o pésinho
na agua – tudo ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixões
apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar, levando as melhores faianças
da Toca. Depois no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como
n’um claustro abandonado. Nos quadros devotos, n’um tom mais negro, destacava
aqui e além, sob a luz escassa, um hombro descarnado de eremita, a
mancha livida d’uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantára a
gola do paletot.
No salão nobre os moveis de brocado côr de musgo estavam embrulhados
em lençoes d’algodão, como amortalhados, exhalando um cheiro
de mumia a terebinthina e camphora. E no chão, na tela de Constable,
encostada á parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate
de caçadora ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho dourado,
para partir tambem, consummar a dispersão da sua raça…
– Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lugubre…
Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que era
a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na confusão
das artes e dos seculos, como n’um armazem de bric-à-brac, todos os
moveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão, dominando tudo na
sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica,
com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas prégando
aos cantos, envoltos n’essas roupagens violentas que um vento de prophecia
parece agitar. E Carlos immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos
dois faunos que entre trophéos agricolas tocavam ao desafio. Um partira
o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica…
– Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d’arte. Um
movel d’estes!…
Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto, errava
entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes, bufetes da
Renascença italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que tinham
ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra
de Leonidas… Como tudo passára! De repente deu com o pé n’uma
caixa de chapéo sem tampa, atulhada de coisas velhas – um véo,
luvas desirmanadas, uma meia de sêda, fitas, flôres artificiaes.
Eram objectos de Maria, achados n’algum canto da Toca, para alli atirados,
no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes restos
d’ella, misturados como na promiscuidade d’um lixo, apparecia uma chinela
de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da Maia! Ega escondeu
a caixa rapidamente debaixo d’um pedaço solto de tapeçaria.
Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as mãos, ainda indignado,
Ega apressou aquella peregrinação, que lhe estragava a alegria
do dia.
– Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e abalamos!
Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de Affonso
da Maia. A fechadura estava pêrra. No esforço de abrir a mão
de Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como outr’ora,
com os seus candieiros Carcel dando um tom côr de rosa, o lume crepitando,
o reverendo Bonifacio sobre a pelle d’urso, e Affonso na sua velha poltrona,
de casaco de velludo, sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mão.
A porta cedeu: e toda a emoção de repente findou, na grutesca,
absurda surpreza de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, suffocados
pelo cheiro acre d’um pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava.
Fôra o Villaça, que, seguindo uma receita d’almanach, fizera
espalhar ás mãos cheias, sobre os moveis, sobre os lençoes
que os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! E estrangulados,
sem vêr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois continuavam, um defronte
do outro, em espirros afflictivos que os desengonçavam.
Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d’uma janella.
No terraço morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar puro,
alli ficaram de pé, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda por
um ou outro espirro retardado.
– Que infernal invenção! exclamou Carlos, indignado.
Ega, ao fugir com o lenço na face, tropeçara, batera contra
um sofá, coçava a canella:
– Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!… Voltou a olhar para a sala,
onde todos os moveis desappareciam sob os largos sudarios brancos. E reconheceu
que tropeçara na antiga almofada de velludo do velho Bonifacio. Pobre
Bonifacio! Que fôra feito d’elle ?
Carlos, que se sentára no parapeito baixo do terraço, entre
os vasos sem flôr, contou o fim do reverendo Bonifacio. Morrera em Santa
Olavia, resignado, e tão obeso que se não movia. E o Villaça,
com uma idéa poetica, a unica da sua vida de procurador, mandára-lhe
fazer um mausoléo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma roseira,
debaixo das janellas do quarto do avô.
Ega sentára-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n’um silencio.
Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez d’inverno, tinha
a melancolia de um retiro esquecido que já ninguem ama: uma ferrugem
verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea; o cypreste
e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n’um ermo; e mais lento corria
o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta a gotta na bacia de marmore.
Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois
altos predios, a curta paizagem do Ramalhete, um pedaço de Tejo e monte,
tomava n’aquelle fim de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio
um paquete fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo,
como já devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho parára,
transido na larga friagem do ar; e nas janellas das casas á beira d’agua
um raio de sol morria, lentamente sumido, esvaído na primeira cinza
do crepusculo, como um resto d’esperança n’uma face que se anuvia.
Então, n’aquella mudez de soledade e d’abandono, Ega, com os olhos
para o longe, murmurou devagar:
– Mas tu d’esse casamento não tinhas a menor indicação,
a menor suspeita?
– Nenhuma… Soube-o de repente pela carta d’ella em Sevilha.
E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle logo contára
de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraços, em Santa Apolonia.
Maria Eduarda ia casar.
Assim o annunciára ella a Carlos n’uma carta muito simples, que elle
recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E não parecia ser uma
resolução tomada arrebatadamente sob um impulso do coração;
mas antes um proposito lento, longamente amadurecido. Ella alludia n’essa
carta a ter «pensado muito, reflectido muito…» De resto o noivo
devia ir perto dos cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a união
de dois sêres desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou
assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sérias
de coração e de espirito, punham em commum o seu resto de calor,
d’alegria e de coragem para affrontar juntos a velhice…
– Que idade tem ella?
Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois annos.
Ella dizia na carta «sou apenas mais nova que o meu noivo seis annos
e tres mezes». Elle chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um
homem d’espirito largo, desembaraçado de prejuizos, d’uma benevolencia
quasi misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem os seus erros.
– Sabe tudo? exclamou Ega, que saltára do parapeito.
– Tudo não. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado «todos
aquelles erros em que ella cahira inconscientemente». Isto dá
a entender que não sabe tudo… Vamos andando, que se faz tarde, e
quero ainda vêr os meus quartos.
Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam outr’ora
as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias ainda existia o banco de cortiça;
Maria sentára-se alli, na sua visita ao Ramalhete, a atar n’um ramo
flôres que ia levar como reliquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina
margarida que ainda floria solitariamente.
– Ella continúa a viver em Orléans, não é verdade?
Sim, disse Carlos, vivia ao pé d’Orléans, n’uma quinta que lá
comprára, chamada Les Rosières. O noivo devia habitar nos arredores
algum pequeno château. Ella chamava-lhe «visinho». E era
naturalmente um gentilhomme campagnard, de familia séria, com fortuna…
Ella só tem o que tu lhe dás, está claro.
– Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella recusou-se
a receber parte alguma da sua herança… E o Villaça arranjou
as coisas por meio d’uma doação que lhe fiz, correspondente
a doze contos de reis de renda…
– É bonito. Ella fallava de Rosa na carta?
– Sim, de passagem, que ia bem… Deve estar uma mulher.
– E bem linda!
Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos quartos
de Carlos. Com a mão na porta da vidraça, Ega parou ainda, n’uma
derradeira curiosidade:
– E que effeito te fez isso?
Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da varandinha
de ferro onde uma trepadeira se enlaçava:
– Um effeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ella
morresse, morrendo com ella todo o passado, e agora renascesse sob outra fórma.
Já não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, uma
senhora franceza. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a
mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memoria… Foi o effeito
que me fez.
– Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimarães?
– Nunca. Naturalmente morreu.
Entraram no quarto. Villaça, na supposição de Carlos
vir para o Ramalhete, mandára-o preparar; e todo elle regelava – com
o marmore das commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n’um castiçal
solitario, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito sem cortinados.
Carlos pousou o chapéo e a bengaIa em cima da sua antiga mesa de trabalho.
Depois, como dando um resumo:
– E aqui tens tu a vida, meu Ega! N’este quarto, durante noites, soffri a
certeza de que tudo no mundo acabára para mim… Pensei em me matar.
Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma conclusão
logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou outra vez…
Parou diante do alto espelho suspenso entre as uas columnas de carvalho lavrado,
deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:
– E mais gordo!
Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo:
– Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n’uma agonia, vestido de Mephistopheles?
Então Carlos teve um grito. E a Rachel, é verdade! A Rachel?
Que era feito da Rachel, esse lirio d’Israel?
Ega encolheu os hombros:
– Para ahi anda, estuporada…
Carlos murmurou – «coitada! E foi tudo o que disseram sobre a grande
paixão romantica do Ega.
Carlos no emtanto fôra examinar, junto da janella, um quadro que pousava
no chão, para alli esquecido e voltado para a parede. Era o retrato
do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão,
os grandes olhos arabes na face triste e pallida que o tempo amarellára
mais. Collocou-o em cima d’uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella
com o lenço:
– Não ha nada que me faça mais pena do que não ter um
retrato do avô!… Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.
Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrára,
se, n’esses ultimos annos, elle não tivera a idéa, o vago desejo
de voltar para Portugal…
Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos tristes
desde o Gremio até á Casa Havaneza? Não! Paris era o
unico logar da terra congenere com o typo definitivo em que elle se fixára:
– «o homem rico que vive bem». Passeio a cavallo no Bois; almóço
no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no club com os jornaes; um bocado
de florete na sala d’armas; á noite a Comédie Française
ou uma soirée; Trouville no verão, alguns tiros ás lebres
no inverno; e através do anno as mulheres, as corridas, certo interesse
pela sciencia, o bric-à-brac, e uma pouca de blague. Nada mais inoffensivo,
mais nullo, e mais agradavel.
– E aqui tens tu uma existencia d’homem! Em dez annos não me tem succedido
nada, a não ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de Saint-Cloud..:
Vim no Figaro.
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
– Falhámos a vida, menino!
– Creio que sim… Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é falha-se
sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginacão. Diz-se:
«vou ser assim, porque a belleza está em ser assim». E
nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o
pobre marquez. Ás vezes melhor, mas sempre differente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d’inverno. Carlos pôz
tambem o chapéo: e desceram pelas escadas forradas de velludo côr
de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panoplia
de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio
casarão, que n’aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado
de residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de janellinhas
fechadas, as grades dos postigos terreos cheias de treva, mudo, para sempre
deshabitado, cobrindo-se já de tons de ruina.
Uma commoção passou-lhe n’alma, murmurou, travando do braço
do Ega:
– É curioso! Só vivi dois annos n’esta casa, e é n’ella
que me parece estar mettida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só alli no Ramalhete elle vivera realmente
d’aquillo que dá sabôr e relevo á vida – a paixão.

– Muitas outras coisas dão valor á vida… Isso é uma
velha idéa de romantico, meu Ega!
– E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós sido desde o
collegio, desde o exame de latim? Romanticos: isto é, individuos inferiores
que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão…
Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que
se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca d’ella,
torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sêccos, hirtos,
logicos, sem emoção até ao fim…
– Creio que não, disse o Ega. Por fóra, á vista, são
desconsoladores. E por dentro, para elles mesmos, são talvez desconsolados.
O que prova que n’este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor…
– Resumo: não vale a pena viver…
– Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega.
Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua theoria da vida,
a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava.
Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear… Não se abandonar
a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem
e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes mudanças
de dias agrestes e de dias suaves. E, n’esta placidez, deixar esse pedaço
de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo
até reentrar e se perder no infinito Universo… Sobretudo não
ter appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n’esses
estreitos annos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não
valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra – porque
tudo se resolve, como já ensinára o sabio do Ecclesiastes, em
desillusão e poeira.
– Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds
ou a corôa imperial de Carlos V, á minha espera, para serem minhas
se eu para lá corresse, eu não apressava o passo… Não!
Não sahia d’este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é
o unico que se deve ter na vida.
– Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquelle
fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de só encontrar
ao fim desillusão e poeira, não devessem jámais avançar
senão com lentidão e desdem. Já avistavam o Aterro, a
sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
– Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me de mandar
fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até
ahi esquecido em memorias do passado e syntheses da existencia, pareceu ter
inesperadamente consciencia da noite que cahira, dos candieiros accêsos.
A um bico de gaz tirou o relogio. Eram seis e um quarto!
– Oh, diabo!… E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem
no Braganza pontualmente ás seis! Não apparecer por ahi uma
tipoia!…
– Espera! exclamou Ega. Lá vem um «americano», ainda o
apanhamos.
– Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojára
o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
– Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos assentamos
a theoria definitiva da existencia. Com effeito, não vale a pena fazer
um esforço, correr com ancia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras:
– Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parára.
E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
– Ainda o apanhamos!
– Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslisou, e fugiu. Então, para apanhar o «americano»,
os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo
Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

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