A Tortura da Carne

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Leon Tolstoi

I

Eugénio Irtenieff tinha razões para aspirar a uma carreira
brilhante. Para tal nada lhe faltava, a sua educação fora muito
cuidada; terminara com brilho os estudos na Faculdade de Direito de S. Petersburgo
e, por intermédio do pai, falecido havia pouco, conseguira as melhores
relações na alta sociedade. Basta dizer-se que entrara para
o Ministério pela mão do próprio Ministro. Possuía
também uma avultada fortuna, embora esta já estivesse comprometida.
O pai vivera no estrangeiro e em S. Petersburgo e dava a cada um dos seus
filhos, Eugénio e André, uma pensão anual de seis mil
rublos, e ele e a mulher de nada se privavam, gastavam à larga. No
verão, passava dois meses no campo, mas não administrava directamente
as suas propriedades, confiando tal encargo a um encarregado que por sua vez,
embora este fosse pessoa da sua inteira confiança, deixava andar tudo
ao Deus dará.

Por morte do pai, quando os dois irmãos resolveram liquidar a herança,
apareceram tantas dívidas que o advogado aconselhou-os a ficarem apenas
com uma propriedade da avó, que fora avaliada em cem mil rublos, e
desistirem do restante. Mas um vizinho da herdade, igualmente proprietário,
que tivera negócios com o velho Irtenieff, veio a S. Petersburgo propositadamente
para apresentar uma letra aceite por este – e fez-lhes saber que, apesar das
grandes dívidas, poderiam chegar a acordo com ele e ainda refariam
grande parte da fortuna. Para tal, bastava que vendessem a madeira, alguns
bocados de terreno bravio e conservassem o melhor, isto é, a propriedade
de Semionovskoié, uma verdadeira mina de oiro, com as suas quatro mil
geiras de terra, duzentas das quais de belos pastos, e a refinaria. Afirmou
ainda que, para tal se arranjar, era indispensável que uma pessoa enérgica
se entregasse de corpo e alma a essa tarefa instalando-se no campo para

administrar a herdade inteligente e economizante.

O pai morrera na altura da quaresma e na primavera, Eugénio, foi
à propriedade; depois duma inspecção minuciosa, resolveu
pedir a sua demissão de oficial do exército e fixar lá
residência com a mãe, a fim de dar execução às
sugestões do vizinho. Mas antes disso, contratou o seguinte com o irmão:
pagar-lhe anualmente quatro mil rublos, ou entregar-lhe duma vez só
oitenta mil, com o que ficariam saldadas as suas contas.

Eugénio, logo que se instalou com a mãe na velha casa, atirou-se
com coragem e prudência à revalorização das terras.
Pensa-se, em geral, que os velhos são conservadores impenitentes e
que, pelo contrário, os novos tendem mais para as modificações.
Mas não é bem assim! Às vezes, mais conservadores são
os novos que desejam viver e não têm tempo de pensar na maneira
como devem fazê-lo, por isso se entregam à vida tal como ela
é.

Contudo não era este o caso de Eugénio. Agora, que vivia no
campo, o seu sonho, o seu ideal máximo, era restabelecer, não
o modo de vida do pai, que fora um mau administrador, mas sim as medidas adoptadas
pelo avô. Em casa, no jardim, em toda a parte, procurava ressuscitar
o método de então, para sentir em redor a alegria de todos,
o bem-estar e a ordem. Em casa, no jardim, em toda a parte. Era preciso ir
de encontro às exigências dos credores e dos bancos e, para tal,
procurava vender terras e adiar pagamentos… Depois, era forçoso arranjar
dinheiro para as culturas, por administração directa servindo-se
dos próprios criados no amanho da imensa propriedade de Semionovskoié,
com as suas quatrocentas geiras de terreno de cultivo e a sua refinaria. Impunha-se
que a casa e o parque não tivessem o aspecto de abandono e ruína.
A tarefa parecia exaustiva mas a Eugénio não faltava força
de vontade. Tinha vinte e seis anos, era de estatura mediana, robusto e sanguíneo,
tinha os músculos desenvolvidos pelo exercício, as faces rosadas,
os dentes fortes, os cabelos anelados apesar de pouco espessos. O seu único
defeito era a miopia, agravada pelo uso dos óculos, que não
podia deixar.

Era uma destas pessoas que, quanto mais as conhecemos, mais delas gostamos.
A mãe sempre manifestara por ele uma exagerada preferência e,
depois da morte do marido, sentiu que aumentava a sua ternura pelo filho,
como se nele encontrasse toda a sua vida. E não era só a mãe
que o amava. Também os companheiros do liceu e da universidade lhe
dedicavam uma grande estima. O mesmo acontecia com os estranhos. Ninguém
tinha coragem de pôr em dúvida uma afirmação sua,
ninguém o supunha capaz de mentir, tão sincera era a sua expressão,
tão francos eram os seus olhos.

A sua figura em muito o ajudava nos negócios. Os credores tinham
confiança nele e concediam-lhe, muitas vezes, aquilo que negavam a
outros. Um camponês ou um staroste, capazes de cometer a maior vilania,
não ousavam enganá-lo, porque lhes era agradável entabular
relações com um homem tão bondoso e, sobretudo, tão
franco, tão leal.

Era nos fins de Maio. Bem ou mal, Eugénio conseguira resgatar as
hipotecas das suas terras incultas, que foram vendidas a um negociante, que
ainda por cima, lhe emprestou dinheiro para comprar o gado e as alfaias agrícolas
de que necessitava. Havia já trabalhadores nas dependências da
quinta e comprara oitenta carros de adubo. No entanto, reconhecia que, apesar
de toda a prudência e boa vontade, qualquer descuido poderia desmoronar-lhe
o pouco sólido castelo da vida.

II

Entretanto deu-se um acontecimento que, embora de pouca importância,
muito contrariou Eugénio. Ele, que até aí levara uma
vida de rapaz solteiro, tivera, como é natural, relações
com mulheres de diferentes classes sociais. Não era um devasso mas,
segundo ele próprio afirmava, também não era um monge.
Por isso gozara da vida tanto quanto lhe exigia a saúde do corpo e
a liberdade do espírito. Desde os dezasseis anos que tudo lhe correra
bem e não se corrompeu nem contraiu qualquer doença. Em S. Petersburgo
fora amante de uma costureira; porém, como esta adoecesse, procurou
substitui-la, e a sua vida em nada se

modificara.

Mas desde que, havia dois meses, se tinha instalado no campo, não
voltara a ter relações com qualquer mulher. Uma continência
tal principiava a enervá-lo. Precisaria de ir à cidade.

Eugénio Ivanovitch começou a seguir com uns olhos concupiscentes
as raparigas que encontrava. Sabia bem que não era bonito ligar-se
a qualquer mulher do campo. Sabia, isto pelo que o informaram, que o pai e
o avô tiveram uma conduta que sempre se distinguira dos outros proprietários,
nunca se metendo com as criadas de casa ou as jornaleiras. Por isso, resolveu
seguir-lhes o exemplo. Mas, com o tempo, sentindo-se cada vez mais inquieto,
pensou que seria possível arranjar uma mulher, isto sem que ninguém
o soubesse… Quando falava com o staroste ou com os carpinteiros, encaminhava
a conversa para o assunto, prolongando-a propositadamente. Entretanto, sempre
que se lhe proporcionava o ensejo, olhava para as camponesas com mal contido
interesse.

III

Contudo, uma coisa é tomar uma decisão e outra é efectivá-la.
Dirigir-se pessoalmente a uma mulher, não era possível. E qual?
E onde? Era precisa a intervenção no caso de uma terceira pessoa.
Mas quem? Uma vez sucedeu-lhe ter de entrar em casa do guarda florestal, um
antigo caçador, ao serviço da casa, no tempo de seu pai. Eugénio
Irtenieff pôs-se a conversar com ele. O guarda contou-lhe velhas histórias
de orgias e caçadas e Eugénio pensou, logo, que talvez fosse
possível conseguir alguma coisa naquela cabana, em plena floresta.
O que não sabia era como o velho Danilo receberia a proposta. «É
capaz de ficar indignado», disse de si para si. «Mas também
pode ser que não se importe…» Tais eram os pensamentos de Eugénio
enquanto o velho falava. A certa altura, este contou como uma vez conseguira
uma

mulher para Prianitchnikoff. Vou tentar, decidiu-se por fim.

– Seu pai, que Deus tenha em descanso a sua alma, não se metia nessas
coisas…

Para apalpar o terreno, Eugénio perguntou: – E tu prestavas-te a
esses papéis? – Ora! Que mal tem isso? Ela gostava e Fédor Zakaritch
também. E como ele me dava sempre um rublo, por que não havia
de auxiliá-lo? Afinal, um homem é um homem…

Parece-me que posso falar, pensou Eugénio. E começou: – Pois,
amigo Danilo, tu bem sabes que, e – sentiu-se corar até às orelhas
-, afinal de contas, não sou nenhum frade, estou acostumado…

Percebeu que as suas palavras eram estúpidas, mas verificou que Danilo
esboçava um sorriso de aprovação.

– Por que o não disse há mais tempo? Sim, tudo se pode arranjar.
Diga qual delas prefere.

– É-me indiferente. O que é preciso é que tenha saúde
e não seja muito feia.

– Está bem – disse Danilo. – Tenho uma, muito bonita, que casou no
outono, debaixo de olho.

E segredou qualquer coisa a Eugénio, que o deixou espantado.

– Mas, não – disse ele. – Não é propriamente isso o
que eu pretendo. Pelo contrário: quero uma mulher sem compromissos,
mas que seja saudável.

– Muito bem! Stepanida serve-lhe. O marido trabalha na cidade. É
como se fosse uma mulher solteira. Além disso, é uma bela rapariga,
muito desenxovalhada. O senhor vai ficar satisfeitíssimo. Amanhã
já lho direi. Venha cá, e ela…

– Quando? – Amanhã, se quiser. Vou comprar tabaco e passarei por
sua casa. Esteja ao meio-dia no bosque, perto da clareira. Ninguém
os verá a essa hora, porque depois do almoço, todos dormem a
sesta.

– Está bem.

Uma comoção extraordinária se apoderou de Eugénio
ao voltar para casa. Que irá acontecer? Como será essa camponesa?
Feia? Nojenta? Não, algumas até são bem lindas, murmurou
recordando-se das que já lhe tinham atraído a atenção.

No dia seguinte, à hora combinada, foi à choupana do guarda.
Danilo estava à porta e, com ar de importante, fez-lhe um sinal apontando
na direcção do bosque. O coração bateu-lhe com
força. Dirigiu-se para o sítio indicado e não viu ninguém.
Inspeccionou as imediações e já ia a retirar-se quando
ouviu o súbito estalar dum ramo seco. Voltou-se. A mulher estava atrás
duma árvore, separada dele por uma vala apenas. Foi ao seu encontro.
Picou-se numa urtiga em que não tinha reparado e caíram-lhe
os óculos quando saltou para o outro lado do talude. Ei-lo junto duma
linda mulher, fresca, de saia branca, com uma bata vermelha, e um lenço
da mesma cor na cabeça, os pés descalços, sorrindo timidamente…

– É melhor o senhor passar por esse atalho – disse-lhe a rapariga.

Aproximou-se dela e, depois de certificar-se que não era visto, abraçou-a.
Dali a um quarto de hora separaram-se. Passou pela cabana de Danilo e, como
este lhe perguntasse se estava satisfeito, atirou-lhe um rublo para as mãos,
retomando em seguida o caminho interrompido.

Ia contente. A princípio tivera vergonha, mas agora sentia-se calmo,
tranquilo e corajoso.

Quase não encarara a mulher. Lembrava-se de que não lhe parecera
feia nem fizera cerimónia.

Quem será ela?, perguntou a si mesmo. Chamava-se Petchnikoff, mas
existiam duas famílias com esse nome. Talvez seja a nora do velho Mikhail.
É com certeza. O filho trabalha em Moscovo. Hei-de perguntar isto a
Danilo.

Dessa altura em diante a vida de Eugénio, passou a ter encantos até
ai desconhecidos.

Sentia-se com mais coragem para tratar dos seus negócios. A tarefa
assumida era bem difícil. Às vezes parecia-lhe que as forças
iam faltar-lhe, antes de levar tudo a bom termo, que se seria obrigado a vender
as terras, e que seria em vão todo o seu esforço. E isso entristecia-o,
pois mal pagava uma conta, outra aparecia em seu lugar.

Além disso, quase todos os dias surgiam dívidas ignoradas
contraídas pelo pai. Sabia que, nos últimos tempos, ele pedira
dinheiro emprestado a toda a gente. Por ocasião das partilhas, Eugénio
convenceu-se de que ficava a ter conhecimento de todos esses empréstimos
mas, em certa altura, avisaram-no de que havia ainda um de doze mil rublos,
de que era credora a viúva Essipoff. Não existia qualquer documento
considerado legal mas um recibo, que segundo a opinião do advogado
oferecia dúvidas. Eugénio, porém, nem sequer podia conceber
a ideia de se negar ao pagamento duma dívida contraída pelo
pai.

Quis apenas saber se efectivamente a dívida existia.

– Mamã, quem é essa Essipoff, essa Caléria Vladimirovna
Essipoff? – perguntou à mãe, enquanto jantava.

– Essipoff? Ah! foi pupila do teu avô. Por que fazes essa pergunta?
E, como Eugénio lhe dissesse do que se tratava, a mãe acrescentou:
– Essa mulher devia ter vergonha… Tanto dinheiro que o teu pai lhe deu…

– Mas, não lhe deveria nada? – Quer dizer… Dívida não.
Teu pai, cuja bondade era infinita…

– Mas ele considerava ou não isso uma dívida? – Que dizer-te?
O que sei é que todas essas coisas te causam muitas dores de cabeça.

Eugênio percebia que Maria Pavlovna não tinha lá multo
bem a consciência do que estava a dizer.

– O que deduzo de tudo isso é que é preciso pagar – disse
o filho. – Amanha irei a casa dessa senhora perguntar-lhe se é possível
um adiamento.

– Tenho pena de ti, meu filho, por te teres metido nesses trabalhos, mas
realmente será melhor lá ir. Pede-lhe para esperar algum tempo
– aconselhou a mãe.

Havia outra coisa que apoquentava Eugénio, era o facto de sua mãe
o não compreender.

Habituada a gastar às mãos cheias durante toda a sua vida,
não podia compreender a situação do filho, que dispunha
somente dum rendimento de dois mil rublos e que, para refazer a casa, se via
na necessidade de diminuir todos os gastos, fazer cortes nos salários
do jardineiro, dos cocheiros e mesmo até nas despesas com a alimentação.

Como a maior parte das viúvas, sua mãe sentia pela memória
do marido uma admiração que ultrapassava toda a afeição
que por ele tivera em vida, e não admitia que nada do que por ele fora
feito, se modificasse. Eugénio, com grande dificuldade, conseguia o
arranjo do jardim e da estufa e das cavalariças com dois jardineiros
e dois coveiros. Mas Maria Pavlovna, só porque não se queixava
do pouco pessoal da cozinha, a cargo da antiga cozinheira, nem das áleas
do jardim por não andarem rigorosamente amanhadas, nem de só
terem um criado de mesa em vez de muitos, pensava ingenuamente que fazia tudo
quanto uma mãe extremosa deve fazer por um filho.

Naquela nova dívida, em que Eugénio via um golpe que lhe podia
arrasar a vida, Maria Pavlovna descobria apenas um ensejo para o filho mostrar
a sua generosidade. Havia, ainda, uma circunstância que em muito concorria
para Maria Pavlovna se não inquietar com a situação material
da casa: tinha a certeza de que Eugénio havia de fazer um casamento
brilhante. Conhecia até uma dezena de famílias que se julgariam
felizes concedendo-lhe a mão de suas filhas.

IV

Eugénio pensava também no casamento, mas não da mesma
forma de sua mãe. A ideia de casar-se para pagar as dividas repugnava-lhe.
Queria fazê-lo mas por amor. Olhava as raparigas que encontrava, examinava-as
minuciosamente, comparava-as, mas não se

decidia.

Entretanto, as suas relações com Stepanida continuavam e nada
indicava que pensasse acabar com elas. Depois do primeiro encontro, Eugénio
julgou que não a procuraria mais.

Todavia, passado algum tempo voltou a sentir-se inquieto, e na sua inquietação
evocava aqueles mesmos olhos negros e brilhantes, aquela mesma voz grave,
aquele mesmo aroma de mulher fresca e sádia, aquele mesmo peito vigoroso
que tufava a blusa. Tudo isto lhe passava pela mente associado à ideia
dum bosque de nogueiras e plátanos, inundado de luz.

Apesar de envergonhado, apelou outra vez para Danilo. E novamente a entrevista
foi marcada para o meio-dia. Desta vez, Eugénio examinou-a demoradamente
a rapariga e tudo nela lhe pareceu atraente. Procurou conversar, falou-lhe
do marido. Era, com efeito, o filho de Mikhail e trabalhava em Moscovo como
cocheiro.

– Bem… e que é que faz ele para o enganares? – Ah! – exclamou ela
rindo. – Penso que ele, lá onde está, também se não
priva de nada.

Então, porque não hei-de eu fazer outro tanto? Via-se que
se esforçava por mostrar arrogância e isto pareceu a Eugénio
encantador. Apesar disso não lhe marcou nova entrevista. Quando ela
propôs que voltassem a encontrar-se sem a intervenção
de Danilo, com quem não parecia simpatizar, Eugénio recusou-se.
Esperava que fosse aquela a última vez. Apesar disso Stepanida agradava-lhe;
de resto, entendia que uma ligação destas lhe era necessária
e que daí não lhe viria nenhum mal.

No entanto, no íntimo, um juiz mais severo repreendia-o, e por isso
Eugénio contava que fosse aquele o último encontro. Porém
passou-se o verão e durante esse tempo encontraram-se uma dezena de
vezes mas sempre com a interferência de Danilo. Certa ocasião,
ela não apareceu, porque o marido chegara. Depois, ele regressou a
Moscovo e as entrevistas recomeçaram, a princípio com a cumplicidade
de Danilo, mas, por fim, Eugénio marcava o dia e ela vinha acompanhada
duma outra mulher.

Um dia, precisamente à hora em que se devia realizar o encontro,
Maria Pavlovna recebeu a visita duma rapariga com quem muito desejava casar
o filho, o que tornou impossível a saída de Eugénio.
Logo que pôde escapar-se, fingiu ir à granja e, por uma vereda,
correu para o bosque, para o lugar da entrevista. Ela não estava, e
tudo quanto havia no sítio fora destruído: nogueiras, cerejeiras
e até os plátanos pequenos. Stepanida, como Eugénio a
fizesse esperar, enervou-se e devastou tudo o que encontrou pela frente.

Eugénio ainda ali se demorou uns momentos, mas em seguida correu
à choupana de Danilo e pediu-lhe que a convencesse a voltar no dia
seguinte.

Assim se passou todo o verão. Estes encontros deram-se sempre no
bosque, à excepção duma vez, já perto do outono,
em que se encontraram na granja. A Eugénio nem lhe passava pela cabeça
que aquelas relações viessem a ter, para si, qualquer complicação
futura. Quanto ao caso de Stepanida, nem pensava nisso: dava-lhe dinheiro
e tudo ficaria arrumado. Não sabia nem podia imaginar que toda a aldeia
estava ao corrente das suas ligações, que todos invejavam Stepanida,
lhe extorquiam dinheiro, a encorajavam, e que, sob a influência e os
conselhos dos parentes, desaparecia completamente, para a rapariga, a noção
do seu irregular comportamento. Parecia-lhe até que, pelo facto de
os outros a invejarem, ela só procedia bem.

Muitas vezes Eugénio punha-se a discorrer: Admitamos que não
está certo… e, embora ninguém diga nada, toda a gente deve
saber… A mulher que a acompanha com certeza dá à língua…
Parece-me que ando por mau caminho, mas como deve ser por pouco tempo.

O que mais aborrecia Eugénio era saber que ela tinha marido. A princípio,
até sem saber porquê, imaginava-o feio e, se assim fosse, estava
justificado em parte o procedimento da mulher. Mas quando uma vez o viu, ficou
espantado; era um rapaz elegante, em nada inferior a ele, tinha até
mesmo melhor apresentação. No primeiro encontro que tiveram
depois disso, ele pô-la ao facto da impressão com que ficou a
respeito do marido.

– Não há melhor em toda a aldeia! – exclamou ela com orgulho.

Isto mais espantou Eugénio. Uma vez, em casa de Danilo, no decorrer
de uma conversa, este disse-lhe: – Mikhail perguntou-me há dias se
era verdade o senhor andar a namorar-lhe a mulher.

Respondi-lhe que de nada sabia.

– Ora! – disse ele – afinal de contas, antes com um fidalgo, do que com
um camponês.

– E que mais disse ele? – Nada, nada mais do que isto: – Vou saber a verdade
e depois lhe farei ver.

– Se ele voltar da cidade deixá-la-ei.

Mas o marido lá ia ficando e as suas relações mantinham-se
inalteráveis. Chegado o momento próprio, acabarei com isto duma
vez para sempre, pensava. A questão parecia-lhe de fácil solução,
tanto mais que nessa época andava muito ocupado com os seus trabalhos,
a construção duma nova casa, a colheita, o pagamento de dívidas
e a venda de uma parte das terras. Essas coisas absorviam-no inteiramente.
E tudo isso era a vida, a verdadeira vida, enquanto as suas relações
com Stepanida, que vendo bem não tomava muito a sério, não
tinham o mínimo interesse. É certo que, quando lhe vinha o desejo
de a ver, em nada mais pensava. Isto, porém, não durava muito:
depois duma entrevista, a esquecia de novo durante semanas e, às vezes,
até mais.

Entretanto, começou a frequentar a cidade onde vivia a família
Annensky e onde conheceu uma menina que acabava de sair do colégio.
Com grande tristeza de Maria Pavlovna, Eugénio enamorou-se de Lisa
e pediu-a em casamento. Assim terminaram as suas relações com
Stepanida.

V

Que teria levado Eugénio a escolher para sua noiva Lisa Annensky?
Não se encontra uma

explicação, pois ninguém sabe o motivo porque um homem
escolhe esta ou aquela mulher.

Contudo nessa escolha havia uma série de prós e contras a
considerar. Em primeiro lugar, Lisa não era o rico partido que a mãe
sonhara para ele, nem embora fosse bonita, era uma dessas belezas que fascinam
qualquer rapaz. Mas aconteceu conhece-la precisamente na ocasião em
que principiava a amadurecer para o casamento. Lisa Annensky, de começo
agradara-lhe e nada mais. Porém, ao resolver fazer dela sua mulher,
experimentou um mais vivo sentimento e percebeu que estava apaixonado. Lisa
era alta, delgada e esbelta. Tinha a pele do rosto fina e branca com um leve
e permanente rubor; os cabelos loiros, sedosos, longos e encaracolados; os
olhos eram azuis, suaves e confiantes. Quanto às suas qualidades morais,
nada delas conhecia. Não via mais que os seus olhos, que pareciam-lhe
dizer tudo quanto ele precisava saber.

Desde os quinze anos, ainda colegial, que Lisa se enamorava de quase todos
os rapazes que conhecia. Só se sentia feliz quando tinha algum namoro.
Depois de sair do colégio, continuou a gostar de todos os jovens que
via e, muito naturalmente, apaixonou-se por Eugénio logo que o conheceu.
Era esse temperamento amoroso que lhe dava aos olhos aquela expressão
tão doce que seduziu Eugénio.

Naquele mesmo inverno andava ela enamorada por dois rapazes, a um tempo,
e corava, e ficava perturbada se acontecia algum deles entrar onde ela já
estivesse, ou até quando deles se falava. Mas, desde que a mãe
lhe dera a entender que Irtenieff parecia ter ideias de casar, o seu amor
por ele cresceu a tal ponto que, de súbito, se esqueceu dos outros
dois. E quando Eugénio começou a frequentar a casa, quando nos
bailes dançava mais com ela do que com as outras, quando procurava
unicamente saber se ela correspondia ao seu amor, então Lisa apaixonou-se
por ele dum modo quase doentio. Via-o em sonhos e acreditava vê-lo na
realidade. Nenhum outro homem existia para ela.

Depois do pedido de casamento, quando se beijaram e ficaram noivos, um só
pensamento, um só desejo se sobrepunha a todos os pensamentos, a todos
os desejos, o de ficar com ele, o de ser amada. Orgulhava-se dele, enternecia-se
pensando nele e a ternura que ele lhe demonstrava fazia-a enlouquecer. Do
mesmo modo Eugénio, quanto mais a conhecia, mais a adorava. Jamais
esperara encontrar semelhante amor na vida.

Antes da primavera, Eugénio regressou a Semionovskoié, a fim
de ver a propriedade, dar ordens e preparar a casa onde devia instalar-se
após o casamento. Maria Pavlovna estava descontente com a escolha do
filho, não só por não fazer o casamento brilhante a que
tinha direito, como por não lhe agradar a mãe da sua futura
nora. Se era boa ou má, ignorava-o; aliás não se preocupava
muito com isso. Verificara que não era uma mulher alta, uma inglesa
como dizia, e isto bastava para a impressionar desagradavelmente. Mas era
preciso resignar-se a amá-la, para não desgostar Eugénio,
e Maria Pavlovna estava sinceramente disposta a tal sacrifício.

Eugénio encontrou a mãe radiante de felicidade e alegria;
arranjara tudo em casa e preparava-se para partir, logo que o filho trouxesse
a sua jovem esposa. Ele, porém, pediulhe que se deixasse estar, e essa
questão ficou ainda para ser resolvida.

À noite, depois do chá, como de costume, Maria Pavlovna, com
um baralho de cartas pôsse a fazer uma paciência. Eugénio,
sentado a seu lado, ajudava-a. No fim, Maria Pavlovna fitou o filho e, um
pouco hesitante, disse-lhe: – Ouve, Eugénio, quero dizer-te uma coisa.
Apesar de eu nada saber a esse respeito, penso que é preciso acabar
inteiramente com todas as tuas aventuras, para que nem tu nem tua futura mulher
possam mais tarde ter aborrecimentos. Compreendes onde quero chegar? Deste
modo, Eugénio compreendeu logo que Maria Pavlovna se referia às
suas relações com Stepanida, acabadas desde o outono, e lhes
dava uma importância exagerada. Corou ao ver a bondosa Maria Pavlovna
imiscuir-se num assunto que não poderia compreender.

Garantiu-lhe que nada havia a recear, pois sempre se conduzira de modo a
que nenhum obstáculo viesse entravar o casamento.

– Está bem, meu filho, não te zangues – disse-lhe a mãe,
um tanto confundida.

Mas Eugénio notou que ela não dissera tudo o que pretendia.
Com efeito, dali a pouco a mãe pôs-se a contar-lhe que durante
a sua ausência lhe pediram que fosse madrinha duma criança nascida
em casa dos Petchnikoff. Eugénio corou de novo. Maria Pavlovna continuou
a conversar e, embora sem intenções reservadas, a certa altura
disse que naquele ano somente tinham nascido meninos, o que provavelmente,
era sinal de guerra. Em casa dos Vassine e em casa dos Petchnikoff os primogénitos
eram rapazes. Maria Pavlovna queria contar isto sem parecer que o fazia premeditadamente,
mas ficou arrependida de ter abordado o assunto ao notar o rubor do filho,
os seus movimentos nervosos, o modo precipitado de acender o cigarro. Calou-se
então. Ele não sabia como reatar a conversa, mas ambos se compreenderam
mutuamente.

– Sim, é preciso que haja justiça, para que não existam
favoritos como na casa de teu tio.

– Mamã – respondeu Eugénio a seguir – eu sei porque fala assim.
Afianço-lhe, porém, que a minha futura vida doméstica
será para mim uma coisa sagrada. Tudo quanto a esse respeito se passou
comigo, enquanto fui solteiro, está acabado e bem acabado, tanto mais
que nunca tive ligações duradouras e ninguém tem portanto
alguns direitos sobre mim.

– Está bem! Sinto-me muito feliz por me poderes falar assim – concluiu
a mãe – isso, não vem senão confirmar os teus nobres
sentimentos.

No dia seguinte pela manhã, Eugénio dirigiu-se à cidade.
Pensava na noiva… e tinha esquecido Stepanida. Mas, dir-se-ia que propositadamente
para relembrar-lha, ao aproximar-se da Igreja, encontrou um grupo de pessoas:
era o velho Mateus, algumas crianças, raparigas, duas mulheres, uma
delas já idosa, a outra, elegante, que lhe pareceu conhecer, de lenço
vermelho-escarlate. Ao encarar com ele, a velha saudou-o à moda antiga,
parando; a outra, que levava o recém-nascido, inclinou apenas a cabeça
e cravou nele os seus dois olhos alegres, risonhos e muito conhecidos. «Sim,
é Stepanida, mas, como tudo acabou, não vale a pena olhar mais
para ela. A criança? Talvez seja seu pai. Não! Mas que pensamento
tão estúpido! O pai é certamente o marido».

Estava perfeitamente convencido de que, para ele, não houvera em
toda aquela aventura mais do que uma necessidade fisiológica e que
como tinha dado dinheiro a Stepanida o caso estava arrumado, que entre ele
e Stepanida não existia agora qualquer ligação. E, ao
pensar assim, Eugénio não procurava sufocar a voz da consciência,
tanto mais que, após a conversa que tivera com a mãe sobre o
assunto, nunca mais pensou nela nem a encontrara.

Depois da Páscoa celebrou-se o casamento e Eugénio trouxe
a noiva para o campo. A casa estava preparada para condignamente receber os
recém-casados. Maria Pavlovna quis retirar-se. Contudo, Eugénio
e principalmente Lisa, pediram-lhe que ficasse. Ela acedeu, mas passou a ocupar
uma outra parte da casa.

E, assim, começava para Eugénio uma vida nova.

VI

Durante o primeiro ano de casado, Eugénio teve de vencer inúmeras
dificuldades económicas. Primeiro, viu-se obrigado a vender uma parte
da propriedade a fim de satisfazer alguns compromissos mais urgentes; e depois
outros surgiram e ele ficou quase sem dinheiro. A propriedade ia dando bom
rendimento, mas era preciso mandar uma parte ao irmão e isso impedia-o
de continuar com a laboração da refinaria. O único meio
de sair de tal embaraço era lançar mão dos bens de sua
esposa. Lisa, compreendendo a situação do marido, exigiu que
ele fizesse uso do seu dote; Eugénio concordou, desde que metade da
herdade ficasse registada em seu nome. Assim se fez, não por vontade
da mulher, mas para

que fosse dada uma satisfação a sua mãe.

Depois, sete meses após o casamento, Lisa sofreu um desastre. Saíra
de carro ao encontro do marido que regressava da cidade. O cavalo, apesar
de ser manso, espantou-se. Lisa, cheia de medo, atirou-se do carro abaixo.
A queda não foi grande mas, como estava grávida, abortou.

A perda do filho tão desejado, a doença da mulher e as dificuldades
financeiras, tudo acrescido da presença da sogra, que acorreu a tratar
da filha, contribuíram para que esse primeiro ano de casado fosse extremamente
difícil para Eugénio.

Contudo essas dificuldades não o fizeram desanimar, pois verificava
que o sistema do avô, por ele adoptado, ia dando resultado. Então,
felizmente, já não existia o perigo de se ver obrigado a vender
toda a propriedade para pagar as dívidas. A parte principal, agora
em nome da mulher, estava salva e com uma excelente colheita de beterraba,
vendida a bom preço, estaria assegurada a situação do
ano seguinte.

Além disso encontrara na mulher aquilo que nunca esperara. Com efeito,
Lisa ultrapassara toda a sua expectativa. Não se tratava da sua ternura,
do seu entusiasmo amoroso. Mais do que tudo isso, Lisa convencera-se, logo
a seguir ao casamento, de que, de todos os homens existentes no universo,
o melhor era Eugénio Irtenieff. O melhor e o mais inteligente, o mais
puro e o mais nobre.

Por conseguinte, o dever de todos era fazerem o possível para lhe
serem agradáveis; como, todavia, não podia obrigar os estranhos
a cumprir tal dever, a ela se impunha a necessidade de dirigir nesse sentido
todas as suas forças. Assim foi. Aplicou toda a sua boa vontade em
lhe adivinhar os gostos e os desejos, procurando satisfazê-los por mais
dificuldades que para tal encontrasse. Graças ao seu amor pelo marido,
sabia ler-lhe na alma. Compreendia, talvez, melhor do que ele o seu espírito
e tratava de agir em conformidade com os sentimentos que ele traduzia, procurando
adoçar-lhe desagradáveis impressões. Quase lhe adivinhava
os próprios pensamentos. As coisas até então mais estranhas
para ele, como os trabalhos agrícolas, a refinaria, a apreciação
das pessoas, tornavam-se para ela, de repente, acessíveis e transformara-se
numa companheira útil, insubstituível. Amava a mãe, mas,
percebendo que a sua intromissão na vida do casal era desagradável
a Eugénio, tomou logo o partido do marido, e tão resolutamente
que ele se viu na necessidade de lhe recomendar moderação.

Possuía ainda, em grande dose, o bom gosto, o tacto administrativo
e era dócil. A tudo imprimia um cunho de elegância, e de ordem.
Lisa compreendera qual era o ideal do marido e esforçava-se por atingi-lo.

Só um desgosto escurecia a sua felicidade conjugal: não tinham
filhos. No inverno, porém, foram a S. Petersburgo consultar um especialista,
que lhes afirmou ter Lisa muito boa saúde e ser possível verem,
dentro em pouco, os seus desejos realizados.

Com efeito, no fim do ano, Lisa estava grávida novamente.

VII

Não há bela sem senão e Lisa era ciumenta o que a fazia
sofrer muito. Pensava que Eugénio não devia apenas viver só
para ela, como também não admitia que outra mulher pudesse amá-lo.
Mas como, residiam no campo, não havia muita razão para acirrados
ciúmes. Por

consequência, a existência decorria-lhes serena e calma.

Até a sogra se tinha ido embora. Só Maria Pavlovna, de quem
Lisa era extraordinariamente amiga, aparecia de vez em quando e com eles ficava
semanas inteiras. O trabalho de Eugénio ia-se tornando mais suave a
saúde de Lisa, apesar do seu estado, era excelente.

Eugénio levantava-se cedo e dava uma volta pela propriedade. Ao bater
das dez horas ia tomar o café no terraço, onde o esperavam Maria
Pavlovna, um tio que agora vivia com eles, e Lisa. Depois, não se viam
até ao jantar, ocupando cada qual o tempo a seu modo; em seguida davam
um passeio, a pé ou de carro. À noite, quando Eugénio
regressava da refinaria tomavam chá; mais tarde, uma vez por outra,
faziam qualquer leitura em voz alta; Lisa trabalhava ou tocava piano. Quando
Eugénio precisava de se ausentar, recebia todos os dias carta da mulher.
Mas, às vezes, ela acompanhava-o e sentia-se, com isso, particularmente
alegre. No aniversário dum ou doutro reuniam alguns amigos, e era um
gosto ver como Lisa sabia dispor as coisas de modo que estivessem satisfeitos.
Eugénio sentia que admiravam a sua jovem e encantadora mulher, o que
fazia com que ele a amasse ainda mais.

Tudo agora lhes corria bem. Ela suportava corajosamente a gravidez e ambos
começavam a fazer projectos sobre a maneira de educar o filho. O modo
de educação, os métodos a seguir, tudo isso era resolvido
por Eugénio. Ela, afinal, não desejava senão uma coisa:
proceder segundo a vontade do marido. Eugénio começou a ler
muitos livros de medicina e prometia a si próprio que o menino havia
de ser criado segundo os métodos da ciência. Lisa concordava
naturalmente com esses projectos, e, numa perfeita comunhão de ideias,
assim chegaram ao segundo ano do seu casamento, melhor, à sua segunda
primavera de casados.

VIII

Era a véspera da Trindade. Lisa estava grávida de cinco meses
e, embora tivesse os necessários cuidados, andava muito bem disposta.
A mãe de Lisa e a mãe de Eugénio, que nessa altura estava
em casa dele, a pretexto de cuidar da nora, tinham frequentes disputas

que muito aborreciam o casal.

Aconteceu que, por essa ocasião, Lisa resolvera mandar fazer uma
grande limpeza a toda a casa, o que não acontecia desde a Páscoa;
para ajudar os criados, chamou duas mulheres a dias para lavarem os soalhos,
janelas e móveis, bater os tapetes, pregar os reposteiros, etc.

De manhã cedo, as mulheres chegaram com grandes baldes de água
e puseram-se a trabalhar. Uma delas era Stepanida que, por intermédio
dum criado, conseguiu ser chamada: queria ver de perto a senhora da casa.
Stepanida vivia como dantes, sem o marido; e, como outrora, tinha entendimentos
com o velho Danilo, que a surpreendera uma vez a roubar lenha. Foi depois
disso que Eugénio a conheceu; e agora mantinha relações
com um dos empregados do escritório da refinaria.

Afirmava que não pensara mais no senhor. Ele agora tem a sua esposa
– dizia ela – mas gostava de ver a casa que todos dizem estar muito bem posta.

Eugénio, desde que a encontrara com o filho nos braços, não
a tornara a ver. Ela não trabalhava fora de casa, porque tinha de tomar
conta da criança, e muito raramente ia à aldeia.

Naquela manhã, Eugénio levantou-se às cinco horas e
saiu para o campo antes que chegassem as mulheres encarregadas da limpeza
da casa; mas já havia gente na cozinha, perto do fogão, a aquecer
água.

Contente, e cheio de apetite, Eugénio voltou para almoçar.
Entregando o cavalo ao jardineiro, bateu com o pingalim na erva, ao mesmo
tempo que repetia um dos seus estribilhos habituais. Ouvia-se o bater dos
tapetes. Todos os móveis estavam fora de casa, no pátio. «Meu
Deus, que limpeza anda Lisa a fazer. Eis o que é uma boa dona de casa!
Sim, e que dona de casa!» dizia, ao lembrar-se de Lisa em roupas brancas,
com aquele rosto radiante de felicidade que sempre apresentava quando o fitava.
«Sim, é preciso mudar de botas, de contrário – e voltou
a repetir a frase – «Sim, em Lisa cresce um novo Irtenieff».

E, sorrindo, empurrou a porta do quarto. Mas, no mesmo instante, a porta
abriu-se, puxada de dentro, e ele deu de cara com uma mulher que saía
do quarto, com um balde na mão, a saia enrolada, os pés descalços,
as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Afastou-se para a deixar
passar. Ela afastou-se também, ajeitando com a mão húmida
o lenço que escorregara.

– Faça favor de passar – disse Eugénio, mas de repente reconheceu-a.

A rapariga sorriu-lhe com os olhos, fitou-o alegremente e, soltando a saia,
retirou-se.

Mas afinal que significa isto? Não é possível disse
Eugénio franzindo o sobrolho e afastando com a mão, como se
fosse uma mosca, certa ideia importuna. Estava aborrecido por tê-la
visto mas, ao mesmo tempo, não podia afastar os olhos do seu corpo
ondulante, dos seus pés descalços, dos seus braços, dos
seus ombros, das graciosas pregas da saia encarnada, erguida até meia
perna.

«Mas por que será que eu estou a olhar para ela?» perguntou
procurando desviar a vista.

«Sim, tenho de mudar de calçado». Entrou no quarto e
ainda não tinha dado cinco passos quando se voltou para a ver uma vez
mais. Ela fazia qualquer coisa, a pequena distância e, no mesmo instante,
também se voltou para Eugénio. «Ah! que estou eu a fazer?
Ela é capaz de pensar… Sim, com certeza já pensou.»
O quarto ainda estava molhado. Uma mulher idosa e magra dava começo
à lavagem.

Eugénio avançou na ponta dos pés até onde se
encontravam as botas. Ia a retirar-se quando a mulher saiu também.
Esta vai e Stepanida vem.

«Meu Deus, que irá passar-se? Que estou eu a fazer?»
Pegou nas botas e foi calçar-se para o vestíbulo. Escovou-se
e apareceu no terraço onde já estavam a mãe e a sogra.
Lisa, evidentemente, esperava-o. Entrou por outra porta ao mesmo tempo que
ele.

Meu Deus, se ela, que me supõe tão puro e tão inocente,
soubesse!, pensou Eugénio.

Lisa, como sempre, foi ao encontro do marido, radiante de felicidade. Mas,
nesse instante, ela pareceu-lhe singularmente pálida, desfigurada,
esquelética… Durante o café, as duas senhoras, trocaram insinuações,
cujos efeitos Lisa tentava iludir habilmente.

– Estou morta por que terminem com a limpeza do teu quarto – disse ela ao
marido. – Gosto de ver tudo bem arrumado…

– Deixa lá isso. E tu dormiste depois de eu ter saído? – Dormi.
Sinto-me muito bem, até.

– Como pode uma mulher nesse estado sentir-se bem com este calor insuportável
e num quarto com as janelas viradas para o sol, sem reposteiros nem cortinas?
– disse Bárbara Alexievna, a mãe de Lisa. Em minha casa há
sempre cortinas.

– Mas aqui às dez horas da manhã já temos sombra –
retorquiu Maria Pavlovna.

– É por isso que há tantas febres… – A humidade… – tornou
Bárbara Alexievna, sem reparar que estava em contradição
consigo própria – O meu médico disse sempre que não se
pode diagnosticar a moléstia sem conhecer o temperamento do doente.
E ele sabe muito bem o que diz, é o melhor médico que há
por estas redondezas. Também, pagamos-lhe cem rublos, por cada visita.
O meu defunto marido não gostava de chamar o médico para ele;
mas, em se tratando de mim, não olhava a despesas.

– Mas como pode um homem fugir a despesas, quando está em jogo a
vida da mulher e do filho? – disse Eugénio.

– Uma boa esposa obedece ao seu marido – acrescentou Bárbara Alexievna.
– Simplesmente, Lisa está ainda muito fraca depois da doença
que teve.

– Não, mamã, eu sinto-me bem. – E mudando de assunto – Não
lhe serviram creme cozido? – Eu não quero creme cozido. Contento-me
com o creme fresco.

– Eu bem disse a Bárbara Alexievna, mas ela não faz caso –
disse Maria Pavlovna, como que a justificar-se.

– E, realmente, não quero.

Pretendendo terminar uma conversa que lhe era desagradável, Bárbara
Alexievna perguntou a Eugénio: – Afinal, sempre lançaram à
terra os fosfatos? Lisa, entretanto, corria a buscar o creme.

– Não vás, que não me apetece – gritou a mãe.

– Lisa! Lisa, mais devagar! – acudiu Maria Pavlovna. – Essas pressas podem
dar mau resultado.

– Nada nos faz mal, quando estamos tranquilos de espírito – sentenciou
Bárbara Alexievna, parecendo aludir a qualquer coisa.

Lisa, entretanto, corria a buscar o creme fresco.

Cabisbaixo, Eugénio bebia o café e ouvia em silêncio.
Já estava habituado àquelas conversas que o irritavam particularmente.
Queria reflectir sobre o que se passara consigo naquele dia, e não
o conseguia. Depois do café, Bárbara Alexievna retirou-se de
mau humor. A conversa entre os três tornou-se depois simples e agradável.
Mas Lisa reparou que alguma coisa preocupava Eugénio e perguntou-lhe
se tinha tido algum aborrecimento.

Como não estava preparado para essa pergunta atrapalhou-se um pouco
ao responder negativamente. Lisa, no entanto, ficou desconfiada. Que alguma
coisa o afligia, estava ela bem certa disso. Mas por que seria que ele não
falava francamente.

IX

No fim do almoço, separaram-se. Eugénio foi, como de costume,
para o escritório. Não lia nem escrevia; sentado, fumava cigarro
atrás de cigarro. O que o surpreendia e entristecia penosamente eram
os pensamentos que, de repente, lhe vieram à cabeça, tanto mais
que, desde que casara, se supunha liberto deles. Com efeito, a partir dessa
data, não voltara a ter relações com Stepanida, nem com
outra mulher que não fosse a sua. Intimamente regozijava-se com essa
libertação, mas eis que, de súbito, como por acaso, verificava
não

estar de todo liberto, posto que tais sentimentos viviam dentro de si, incisivos
e indomáveis.

Precisava de escrever uma carta. Sentou-se à secretária para
esse efeito. Escrita a carta, esquecido completamente dos pensamentos de há
pouco, dirigiu-se para a estrebaria. E, de novo, como de propósito
ou por um infeliz acaso, quando ia a descer a escada, viu na sua frente a
saia vermelha, o lenço vermelho e, balançando os braços
requebrando o corpo, ele passou à sua frente. Não só
passou à sua frente, mas deu também uma pequena corrida, como
se estivesse a brincar com ele. Neste momento, vieram-lhe à imaginação
o meio dia brilhante, as urtigas, Danilo, a cabana e, à sombra dos
plátanos, uma boca risonha que mordiscava folhas…

Não, é impossível deixar isso tudo, disse ele, e, esperando
que as duas mulheres desaparecessem, tornou ao escritório. Era meio
dia em ponto e contava lá encontrar o feitor que, com efeito, acabava
de acordar. Espreguiçando-se e bocejando, olhava para o vaqueiro, que
lhe dizia qualquer coisa.

– Vassili Nicolaievitch! – Queira dizer, senhor.

– Preciso de lhe falar.

– Estou às suas ordens! – Acabe o que estava a dizer.

– Verás que não podes com ele… – disse Vassili Nicolaievitch,
voltando-se para o vaqueiro.

– É pesado, Vassili Nicolaievitch.

– Que há? – perguntou Eugénio.

– Foi uma vaca que pariu no campo.

– Bem. Vou dar ordens para arrearem Nicolau que leve um carro dos grandes.

O vaqueiro saiu.

– Veja lá, Vassili Nicolaievitch, o que me havia de acontecer…
– começou Eugénio, corando e sentando-se. – Calcule que em solteiro
tive uma ligação… Talvez tenha ouvido falar nisso.

Vassili Nicolaievitch sorriu e, mostrando-se compadecido, perguntou: – Trata-se
da Stepanida? – Sim. Peço-lhe, que não torne a contratá-la
para trabalhar cá em casa. Compreenderá que isso é muito
desagradável para mim…

– Foi o criado Ivan, quem possivelmente, deu essa ordem.

– Então, ficamos entendidos. Não acha que faço bem?
– disse Eugénio para esconder a sua confusão.

– Vou já tratar disso.

E Eugénio tranquilizou-se pensando que, se passara um ano sem a encontrar,
não seria difícil esquecê-la definitivamente. De resto,
Vassili Nicolaievitch falará ao criado, este por sua vez falará
a Stepanida, e ela compreenderá a razão por que não quero
vê-la aqui, dizia consigo Eugénio, satisfeito por ter tido a
coragem de se abrir com Vassili Nicolaievitch, embora isso lhe tivesse custado.
«Sim, tudo, menos esta vergonha». E estremecia, só com
a lembrança desse crime.

O esforço moral que fez, para ter aquele desabafo com Vassili Nicolaievitch
e lhe dar aquela ordem, serenou Eugénio. Parecia-lhe que tudo estava
arrumado e até Lisa notou que o marido voltava inteiramente calmo e
mesmo mais alegre do que era costume. Se calhar estava aborrecido por causa
das discussões entre minha mãe e a dele. Realmente, com a sua
sensibilidade e o seu nobre carácter, é sempre desagradável
ouvir alusões, hostis e de tão mau gosto, pensava Lisa.

O tempo estava lindo. As mulheres, segundo uma velha tradição,
foram ao bosque apanhar flores, com as quais teceram coroas e, aproximando-se
da escadaria da casa senhorial, puseram-se a dançar e a cantar. Maria
Pavlovna e Bárbara Alexievna, com os seus elegantes vestidos, saíram
para o terraço e acercaram-se da roda para ver as camponesas. O tio,
um bêbedo muito devasso, que passava o verão com Eugénio,
seguia-as, envergando um trajo chinês.

Como de costume, havia uma grande roda gritante de cores vivas, de mulheres
novas e de raparigas, roda que era como o centro de toda aquela animação.
Em volta dela, de todos os lados, como planetas que giram em torno do astro
principal, raparigas de mãos dadas faziam rodar as saias; os rapazes
riam com satisfação e por tudo e por nada, corriam e agarravam-se
uns aos outros; os mais velhos, de poddiovka azul e preta, com bonés
e blusas encarnadas, quando passavam, faziam estalar entre os dedos sementes
de girassol; os criados e os estranhos olhavam, de longe, a roda.

As duas senhoras aproximaram-se mais; Lisa pôs-se atrás delas,
vestida de azul, com uma fita da mesma cor no cabelo, mostrando os braços
bem torneados e brancos, e os cotovelos que saíam das largas mangas.
Eugénio não desejava aparecer, mas seria ridículo esconderse.

Apareceu, pois, na escadaria, de cigarro na boca; saudou os rapazes e os
camponeses e dirigiu-se a um deles. Nesse momento, as raparigas cantavam,
batiam palmas e saltavam em animada roda.

– A senhora chama-o – disse-lhe um criado aproximando-se dele. Lisa chamava-o
para que ele visse uma das mulheres que melhor dançava. Era Stepanida.
Vestia saia amarela, corpete sem mangas e ostentava lenço de seda.
Estava enérgica, corada e alegre. Era, não havia dúvida,
certo que dançava muito bem, mas Eugénio nem sequer deu por
isso.

– Sim, sim, – respondeu ele enquanto tirava e voltava a pôr os óculos.

Desta forma nunca mais me vejo livre dela!, pensou. E não a fitava
porque receava o seu encontro; mas, assim mesmo, olhando de soslaio, achou-a
extraordinariamente insinuante.

Além disso, lia-lhe nos olhos que ela também o via e se sabia
admirada. Demorou-se apenas o bastante para não parecer grosseiro e,
percebendo que Bárbara Alexievna o chamava, tratando-o com afectada
hipocrisia por «querido», voltou as costas e foi-se embora.

Regressou a casa para não a ver, mas, quando subiu ao andar superior,
sem saber como nem porquê, abeirou-se da janela e ali ficou a olhar
para Stepanida, embevecido, enquanto as duas senhoras e Lisa se conservavam
perto da escadaria. Depois, retirou-se para que o não vissem e voltou
para o terraço. Acendeu um cigarro e desceu ao jardim ao encontro da
camponesa. Mal tinha dado dois passos na alameda, quando, por entre as árvores,
descortinou o seu colete sem mangas sobre a blusa cor-de-rosa e o lenço
encarnado. Ia com outra mulher. Para onde? De repente apoderou-se dele um
desejo irreprimível, ardente.

Como se obedecesse a uma força estranha, Eugénio dirigiu-se-lhe.

– Eugénio Ivanovitch! Eugénio Ivanovitch! Quero pedir-lhe
um favor – disse, por detrás dele, uma voz.

Era o velho Samokhine, encarregado de abrir um poço. Parou, retrocedeu
bruscamente e encaminhou-se para ele. Finda a conversa, voltou a cabeça
e viu que as duas mulheres se dirigiam para o poço ou, pelo menos,
tomavam esse caminho. Porém, não se demoraram e voltaram novamente
para a roda.

X

Despedindo-se de Samokhine, Eugénio voltou a casa tão deprimido
como se tivesse cometido um crime. Primeiro, Stepanida convenceu-se de que
ele desejava vê-la; segundo, a outra, essa Ana Prokhorova, sabia de
tudo, evidentemente. Sentiu-se abatido. Tinha a consciência de que perdera
o domínio de si próprio, que era impelido por uma força
estranha, que desta vez tinha escapado, por milagre, mas que, mais cedo ou
mais tarde,

sucumbiria.

Sim, estava perdido! Atraiçoar a sua jovem e terna esposa com uma
camponesa! Aliás toda a gente o sabia! Era a derrocada da sua vida
conjugal, fora da qual ele não poderia viver.

Não, não! É preciso arrepiar caminho. Mas que devo
fazer? Tudo o que me for possível, para deixar de pensar nela.

Não pensar!… E era precisamente nela que continuava à pensar!
Via-a diante de si, até na sombra dos plátanos! Lembrou-se de
que tinha lido algures a história dum velho que, para fugir à
sedução duma mulher sobre a qual devia colocar a mão
direita, a fim de a curar, punha, no entanto, a esquerda por cima de uma fogueira.
«Sim, estou disposto a queimar a mão, mas não quero sucumbir».
Olhando à volta de si e vendo que se encontrava só no quarto,
acendeu um fósforo e chegou-o aos dedos. Bem, agora pensa nela!, disse
com ironia. Mas, sentindo queimar-se, retirou os dedos e atirou para o chão
o fósforo, acabando por se rir de si mesmo.

«Que estupidez! Não é preciso fazer isto. O que é
preciso é tomar providências para que não a torne a ver.
Afastar-me ou afastá-la. Sim, é melhor afastá-la. Dar-lhe
dinheiro para que se instale com o marido noutra parte. Isto começará
a constar. Depois será o tema das conversas de toda a gente. Tudo,
menos isso. Sim, tem de ser, dizia ele sem a perder de vista. Aonde é
que ela vai? perguntou a si próprio. Pareceu-lhe que Stepanida o vira
perto da janela e, depois de o envolver num olhar significativo ia, de braço
dado com a outra mulher, para os lados do jardim, requebrando-se.

Mesmo sem dar por isso, Eugénio dirigiu-se ao escritório.
Vassili Nicolaievitch, de blusão novo, tomava chá com a mulher
e uma visita.

– Diga-me, Vassili Nicolaievitch, pode dar-me atenção por
um momento? – Porque não? Aqui me tem.

– Não, vamos antes lá para fora.

– É para já. Passa-me o chapéu, Tamia, e tapa o samovar
– disse Vassili Nicolaievitch, acompanhando Eugénio, de bom humor.

A este, pareceu-lhe, que Vassili Nicolaievitch tinha bebido uma pinga a
mais; mas talvez fosse melhor assim, talvez encarasse com mais simpatia o
caso que lhe ia expor.

– Ouça. Vassili Nicolaievitch, queria falar-lhe novamente acerca
daquela mulher…

– Que há? Eu já dei ordem para que não voltem a chamá-la.

– Não é isso! Pensando melhor, não seria possível
mandá-la daqui para fora? A ela e toda a família? É um
conselho que desejo pedir-lhe.

– Mandá-los, para onde? – perguntou Vassili Nicolaievitch, com estranheza
e Eugénio interpretou aquelas palavras com descontentamento e ironia.

– Pensei que lhes podia dar dinheiro ou até algum terreno em Kholtovskoié,
mas com a condição de ela não permanecer aqui mais tempo.

– Mas como se há-de expulsar essa gente? Como poderemos nós
arrancá-los da sua terra? Que mal lhe causa a sua presença?
Em que é que os incomodam, senhor? – É que, Vassili Nicolaievitch,
você deve compreender, se uma coisa destas chegasse aos ouvidos de minha
mulher, seria terrível…

– Mas quem terá o atrevimento de lho dizer? – Depois, seria para
mim uma tortura constante viver, dia a dia, hora a hora, com receio de que
ela viesse a saber…

– Não se apoquente. «Quem se recorda de faltas passadas, não
mostra muito tino, e quem não pecou diante de Deus não é
culpado perante o czar».

– Em todo o caso, acho que seria preferível levá-los para
fora daqui. Você não poderia tocar nisto ao marido? – Mas para
quê? Para que é que o senhor anda com esses escrúpulos?
São coisas que acontecem. E agora, quem se atreveria a censurá-lo?
Ora! – Tenha paciência… fale com o homem…

– Bem, já que assim o quer, falarei, embora eu esteja convencido
de que nada se arranjará.

Esta conversa fez serenar um pouco Eugénio. Chegou até a acreditar
que, por causa do seu receio, exagerara o perigo em que estava. Afinal, voltara
a ter qualquer entrevista com ela? Não, muito simplesmente, ia dar
uma volta pelo jardim quando, por acaso, ela surgira. No dia da Trindade,
depois do jantar, Lisa, passando pelo jardim, quis saltar uma valeta para
ver no prado um pé de trevo que o marido desejava mostrar-lhe, mas,
ao fazê-lo, deu um trambolhão. Caiu suavemente, de lado, soltou
um ai e Eugénio viu-lhe na cara uma expressão de sofrimento.
Quis levantá-la mas ela afastou-o com a mão.

– Não, Eugénio, espera um bocadinho – disse com um sorriso
forçado – parece que desloquei um pé.

– Vês? Há muito tempo que eu ando a dizer-te que, no estado
em que estás não deves andar aos saltos – censurou Bárbara
Alexievna.

– Não, não é nada, mamã. Eu levanto-me já.

Levantou-se com a ajuda do marido, mas no mesmo instante empalideceu e o
terror estampou-se-lhe no rosto.

– Sim, parece que não me sinto bem – segredou-lhe, para que a mãe
não ouvisse.

– Ah, meu Deus, o que fizeram? Eu bem lhe dizia que não andasse tanto
– gritava Bárbara Alexievna. – Esperem, que eu vou chamar alguém.
Ela não deve caminhar. É preciso levála.

– Não tens medo, Lisa? Eu levo-te – disse Eugénio, passando-lhe
o braço esquerdo à volta da cinta.

– Segura-te no meu pescoço. Vamos, isso mesmo – e, inclinando-se,
levantou-a com o braço direito. Nunca mais Eugénio esqueceu
a expressão contristada e ao mesmo tempo feliz que se reflectia no
rosto de Lisa.

– Não achas que peso muito, meu amor? – perguntou-lhe ela sorrindo.
– Olha a mamã a correr! – E, dobrando-se para ele, beijou-o.

Eugénio gritou a Bárbara Alexievna que não se afligisse
porque ele podia bem com Lisa.

Mas a sogra, parando, começou a gritar ainda com mais força:
– Tu deixa-la cair, pela certa. Olha que a matas! Não tens a consciência…

– Posso bem com ela, esteja descansada…

– Não posso, não quero ver a morte da minha filha – e correu
para o fundo da alameda.

– Isto não é nada, vais ver – afirmou Lisa a sorrir.

– Oxalá que não suceda como da outra vez! Embora Lisa pesasse
um pouco, Eugénio, orgulhoso e alegre, transportou-a até casa,
não querendo entregá-la à criada de quarto nem ao cozinheiro,
que Bárbara Alexievna encontrara e mandara ao encontro deles. Levou
Lisa até ao quarto e deitou-a na cama estendendo-a ao comprido.

– Bem, vai-te embora – disse ela e, puxando-lhe a mão, beijou-o.
– Nós cá nos arranjaremos, eu e Annuchka.

Maria Pavlovna viera também, a correr. Enquanto despiam Lisa e a
metiam no leito, Eugénio, sentado numa sala próxima, com um
livro na mão, esperava. Bárbara Alexievna passou diante dele
com um ar tão mal encarado e tão carregado de censuras que deixou
o genro aterrado.

– Que aconteceu – inquiriu.

– Para que o perguntas? Aconteceu o que possivelmente desejavas ao obrigares
tua mulher a saltar a valeta.

– Bárbara Alexievna! – exclamou ele indignado. – Eu não lhe
admito tais insinuações! Se me quer atormentar e envenenar a
vida… ia continuar: «Vá-se embora», mas suspendeu a frase.

A senhora não tem vergonha de me atribuir essas ideias? Não
percebo porquê? – Agora já é tarde! – e retirou-se, sacudindo
com violência a coifa, ao transpor a porta. E saiu.

A queda fora efectivamente desastrosa. O pé deslocara-se, mas o pior
era que o abalo sofrido podia ocasionar um aborto. Toda a gente sabia que,
naquela emergência, nada havia a fazer. O mais recomendável era
deixá-la repousar. Apesar disso, resolveram chamar o médico
quanto antes.

«Meu prezado Nicolau Semiwovitch – escreveu Eugénio – você
tem sido sempre muito amável para connosco e, por isso, mais uma vez
lhe peço que venha acudir a minha mulher; ela… etc.».

Depois de escrever a carta, dirigiu-se à cavalariça, a fim
de indicar qual o carro e os cavalos que deviam seguir para trazer o médico.
Depois, voltou para casa. Eram aproximadamente dez horas da noite. Lisa, na
cama, dizia que já se sentia bem e que nada lhe doía. Bárbara
Alexievna, sentada à cabeceira, oculta por detrás duma rima
de papéis de música, trabalhava numa grande coberta vermelha
e o seu rosto denunciava que, depois do que se passara, não voltaria
a haver paz naquela casa.

– Os outros podem fazer o que quiserem; eu cá entendo que já
cumpri o meu dever.

Eugénio compreendia bem os sentimentos que a animavam, mas fingia
não dar por isso.

Contou, com ar satisfeito e desembaraçado, que já tinha enviado
a carruagem e que a égua Kavuchka puxava muito bem, engatada à
esquerda.

– Quando se trata de pedir socorros urgentes é realmente ocasião
propícia a experiências com cavalos? Oxalá que se não
atire também com o doutor para algum barranco – disse Bárbara
Alexievna, olhando fixamente detrás dos óculos, para o trabalho,
que chegara agora para junto da lâmpada e sobre o qual se inclinara.

– De qualquer modo, era preciso mandá-lo buscar… Fiz o que me pareceu
melhor.

– Sim, lembro-me muito bem de que os seus cavalos quase me atiraram contra
uma escada…

Era uma invenção sua, já antiga; mas, desta vez, Eugénio
cometeu a imprudência de afirmar que as coisas não se tinham
passado como ela pretendia mostrar.

– Razão tenho eu para dizer… e quantas vezes já o disse
ao príncipe, que muito me custa viver com gente injusta e falsa. Suporto
tudo, mas isso não. Nunca! – Se a alguém isto custa, é
principalmente a mim – afirmou Eugénio.

– Bem se vê! Claro! – Mas que é que se vê? – Nada. Estou
a contar as malhas.

Nesse momento, Eugénio encontrava-se perto do leito. Lisa fitava-o.
Com uma das mãos, que tinha fora das roupas, ela pegou-lhe na dele
e apertou-a. «Tem paciência, por mim, ela não impedirá
que nos amemos», dizia o seu olhar.

– Não farei nada – murmurou ele beijando-lhe a mão húmida
e, depois, os belos olhos, que se fecharam languidamente.

– Será como da outra vez? – perguntou ele. – Como te sentes? – É
horrível pensar nisso, mas julgo que o menino vive e viverá
– respondeu ela, olhando para o ventre.

– Ah! é terrível, é terrível mesmo só
pensar nisso.

Apesar da insistência de Lisa para que se retirasse, Eugénio
ficou até junto dela; dormitava, mas pronto a dispensar-lhe os seus
cuidados. A tarde correu bem; se não esperassem pelo médico,
talvez ela se levantasse. O médico chegou à hora da ceia. Disse
que, embora tais acidentes pudessem ser perigosos, não havia indícios
concretos e portanto só poderiam formular-se hipóteses. Aconselhou
a que ficasse de cama e tomasse determinados medicamentos, posto que fosse
contrário a drogas. Além disso, dissertou largamente sobre a
anatomia da mulher; Bárbara Alexievna escutava-o meneando a cabeça
com ar de importância. Depois de receber os seus honorários,
colocados na concha da mão como é da praxe, o médico
retirou-se e Lisa ficou de cama durante uma semana.

XI

Eugénio passava a maior parte do tempo junto da mulher. Tratava-a,
conversava com ela, lia-lhe qualquer coisa e até suportava, sem enfado,
Bárbara Alexievna, chegando mesmo a gracejar com ela. Mas não
podia estar sempre em casa. Lisa mandava-o embora, receando que a sua permanência
ali o aborrecesse, e ainda porque a propriedade necessitava constantemente
da sua presença. Não podia estar sempre em casa. E Eugénio
lá partiu, percorrendo os campos, o bosque, o jardim, o pomar; por
toda a parte o perseguia a lembrança e a imagem de Stepanida; só
raramente conseguia esquecê-la. Mas isso era o menos, porque talvez
pudesse vencer esse sentimento: o pior é que dantes passava meses sem
a ver e agora encontrava-a a cada passo. Stepanida compreendera, sem dúvida,
que ele desejava reatar as antigas relações e procurava atravessar-se-lhe
no caminho. Mas, como

nada tinham combinado, não havia entrevistas.

Fazia apenas o possível para se encontrar com ele, como que por acaso.

O melhor lugar para tal era o bosque, onde as mulheres iam buscar sacos
de erva para as vacas. Eugénio sabia disto e todos os dias passava
por esses sítios. E todos os dias resolvia não voltar lá.
Mas não passava um dia sem lá ir. Quando ouvia vozes, parava,
com o coração a palpitar. Escondia-se atrás de uma moita,
para ver se era Stepanida… Se fosse ela, ainda que estivesse só,
não iria ao seu encontro, pensava ele. – Não, fugir-lhe-ia,
mas tinha necessidade de a ver. Sim, tinha.

Uma vez encontrou-a. Ia a entrar no bosque quando ela saía com outras
mulheres, levando um grande saco de erva às costas. Se tivesse vindo
um instante mais cedo, talvez a tivesse encontrado no bosque; agora, porém,
diante das outras mulheres, não poderia ir ter com ela.

Apesar disso, correndo o risco de chamar a atenção das companheiras,
Eugénio conservouse atrás dum massiço de aveleiras. Como
era natural, ela não apareceu e ele ali ficou por muito tempo. Meu
Deus! com que atractivos ele a revia na sua imaginação! E não
era uma vez, eram muitas, muitas vezes, cada vez mais viva e real… Nunca
lhe parecera tão sedutora e nunca a possuira tão completamente.

Sentia que já não era bem senhor de si; aquilo enlouquecia-o.
No entanto, não deixava de ser severo consigo próprio; compreendia
a monstruosidade dos seus desejos e até dos seus actos. Sabia que,
se a encontrasse em qualquer parte, num lugar escuro, bastaria tocar-lhe para
que a sua paixão o empolgasse. Sabia que só se continha por
vergonha dos outros, dela e talvez de si. E sabia que procurava forma de ocultar
essa vergonha e pensava num lugar escuro ou num contacto que viesse saciar-lhe
a paixão.

Considerava-se, assim, um miserável, um criminoso, desprezava-se
e abominava-se, indignado. E detestava-se por não ter cedido. Rogava
a Deus diariamente que o fortalecesse, que o livrasse da perdição.
Resolvia diariamente não dar mais um passo, nunca mais a fitar, esquecê-la;
imaginava diariamente todos os meios de se libertar dessa obsessão
e punha-os em prática. Mas tudo era em vão.

Um dos meios consistia em ocupar o seu espírito com qualquer outra
ideia: outro era o trabalho físico e o jejum; um terceiro, a reflexão
da vergonha que sobre ele cairia quando toda a gente, a mulher e a sogra viessem
a saber. Fazia tudo isto e supunha dominar-se, mas, quando chegava ao meio-dia,
a hora das antigas entrevistas, a hora em que costumava encontrá-la
com o saco da erva, corria para o bosque só para a ver.

Assim passaram cinco penosos dias. Só a via de longe; nunca se aproximava
dela.

XII

Lisa melhorava pouco a pouco; já dava pequenos passeios mas inquietava-se
com a mudança do marido, cuja causa ela não compreendia. Bárbara
Alexievna retirou-se por algum tempo e em casa apenas ficaram o tio e Maria
Pavlovna. Eugénio encontrava-se nesse estado de angústia, quando
chegaram as grandes chuvas que se prolongam por alguns dias, como sucede sempre
depois das tempestades de Junho. As chuvas fizeram suspender todos os trabalhos:
não se podia juntar o estrume por causa da humidade e da lama e os
camponeses esperavam em casa; os pastores dificilmente conseguiam meter os
rebanhos nos redis, as vacas e os carneiros invadiam os pátios, e as
mulheres descalças e de xale, patinhando na lama, procuravam os animais
tresmalhados. Os caminhos estavam transformados em ribeiros, as folhas e a
erva estavam ensopados, os riachos e as lagoas transbordavam. Eugénio
ficara em casa com a mulher, que começara a sentir-se um pouco agoniada.
Lisa várias vezes interrogara o marido sobre a causa daquela mudança
de disposição, mas ele respondia-lhe com enfado dizendo que
não tinha nada. Lisa desistira

por fim de o interrogar e ficara triste.

Uma tarde, depois do almoço, estavam todos reunidos no salão
e pela milésima vez o tio contava as suas aventuras mundanas. Lisa
trabalhava num casaquinho de bebé e suspirava, queixando-se do mau
tempo e de dores nos rins. O tio pediu vinho e aconselhou-a a que se deitasse.
Eugénio aborrecia-se muito em casa; tudo ali lhe era desagradável.
Fumava e lia, mas sem compreender o que lia. «Tenho que sair para ver
o que se passa», disse, e levantou-se para sair.

– Leva o guarda-chuva.

– Não, tenho o casaco de couro, e não vou ao bosque.

Calçou as botas, vestiu o casaco de couro e foi até à
refinaria. Mas ainda não tinha dado vinte passos quando encontrou Stepanida
com a saia arregaçada até ao joelho, mostrando a perna branca.
Caminhava segurando, com as mãos o xale que lhe cobria a cabeça
e os ombros.

– Que procuras? – perguntou sem saber com quem falava.

Quando a reconheceu já era tarde. Ela parou, sorriu, fitou-o demoradamente.

– Procuro um bezerrinho. Onde vai o senhor com este tempo? – perguntou como
se se vissem todos os dias.

– Vamos à cabana – disse Eugénio sem mesmo dar pelas palavras
que pronunciara.

Ela fez, com os olhos, um sinal de assentimento e dirigiu-se para o jardim
direita à cabana; ele seguiu o seu caminho com intenção
de contornar o massiço de lilazes e ir juntar-se-lhe.

– Senhor! – gritaram-lhe atrás – a senhora pede-lhe que vá
a casa depressa.

Era o criado Miguel. Meu Deus! salvaste-me pela segunda vez!, pensou Eugénio;
e voltou logo para casa. Lisa queria lembrar-lhe que ele prometera uma poção
a certa doente e pedia-lhe que não se esqueceria de a arranjar.

Decorreram quinze minutos enquanto preparava a poção e, quando
saiu, não se atreveu a ir directamente à cabana receando que
alguém o visse. Mal percebeu que o não viam, deu uma volta e
dirigiu-se para a cabana. Sonhava vê-la ali sorrindo alegremente, mas
não a encontrou, e não havia indício de lá ter
estado. Pensou que não tivesse ido, que não compreendesse ou
não ouvisse as suas palavras murmuradas entre dentes, ou que talvez
não o quisesse. «E porque razão havia de lançar-se-me
ao pescoço?» interrogara. «Tem o marido. Eu é que
sou um miserável; tenho uma linda mulher e ando atrás de outra».

Sentado na cabana onde a água escorria a um canto, Eugénio
pensava. Que felicidade se ela tivesse vindo! Sozinhos ali, com aquela chuva!
Possuí-la ao menos uma vez, quaisquer que fossem as consequências!
«Ah, sim – lembrou-se – se ela veio deve ter deixado rasto».

Olhou para o chão, para um carreirinho sem relva e notou as pegadas
de um pé descalço.

Sim, ela tinha vindo. Já não hesitaria. Onde quer que a visse,
iria ter com ela. Iria a sua casa, de noite. Esteve muito tempo na cabana
acabando por se afastar ansioso e cansado.

Levou a poção, regressou a casa e deitou-se à espera
da hora do jantar.

XIII

Antes disso, Lisa foi ter com ele, dissimulando tanto quanto pôde a
sua tristeza. Informou-o de que pretendiam levá-la para Moscovo, antes
do parto; mas que ela, receando que esse projecto desagradasse a Eugénio,
resolvera ficar e que, por nada sua alma, tinha Eugénio tanta lama,
tanta fraqueza – um amedrontava por temer não dar à luz uma
criança fisicamente bem constituída, e por isso enterneceu-o
a facilidade com que ela se prestava a sacrificar tudo ao seu amor. Na sua
casa achava que tudo era bom, alegre, puro e, no entanto, na coisa. «Mas
é impossível!» dizia ele passeando no quarto, um horror!
Durante o serão pensou que, apesar da sua sincera repugnância
pela fraqueza que o subjugava e apesar da decidida intenção
de lhe escapar, no dia seguinte aconteceria a mesma coisa. «Não,
é impossível» dizia ele passeando no quarto, dum lado
para o outro. «Deve existir qualquer solução para esta
miséria. Meu Deus, que devo eu fazer?»

Alguém bateu à porta duma maneira especial. Percebeu que era o
tio.

– Entre! – disse secamente.

O tio vinha como emissário, mas espontaneamente, falar-lhe de Lisa.

– Tenho ultimamente observado em ti uma certa mudança e compreendo
que certamente isso há-de afligir a tua mulher. É certo que
te será aborrecido teres de abandonar a empresa em que te meteste,
mas hás-de ter paciência. Eu penso que deverias sair daqui com
ela.

Ambos ficariam mais sossegados. Não achava mal que fossem até
à Crimeia: o clima é esplêndido, há lá um
afamado parteiro e vocês chegariam justamente na época das chuvas.

– Tio – disse emocionado Eugénio – posso confiar-lhe um segredo,
um segredo horrível, vergonhoso mesmo? – Então desconfias de
teu tio? – O tio pode auxiliar-me! E não apenas isso, mas salvar-me
até – disse Eugénio. E a ideia de se abrir com o parente, que
aliás não estimava, o pensamento de se lhe apresentar sob o
aspecto mais miserável agradava-lhe. Reconhecia-se fraco, culpado,
e queria, portanto, castigar-se, punir-se de todos os seus pecados.

– Podes falar, Eugénio: bem sabes como sou teu amigo – segredou-lhe
visivelmente lisonjeado por descobrir um segredo, um segredo escandaloso de
que seria confidente, além de que poderia ser útil ao sobrinho.

– Antes de mais nada, quero dizer-lhe que sou um canalha.

– Que estás para aí a dizer? – Que estás para aí
a dizer? – Como é que não hei-de considerar-me um criminoso,
se eu, marido de Lisa, cuja pureza e cuja afeição por mim são
indiscutíveis, se eu quero enganá-la com uma camponesa? – Que
dizes? Por enquanto, queres… Mas ainda não a atraiçoaste?
Não é assim? – Para o caso, é a mesma coisa. Se a não
atraiçoei, não foi porque não fizesse esforços
nesse sentido. As circunstâncias é que o proporcionaram.

– Mas, vamos lá a saber do que se trata.

– Oiça: quando solteiro, caí na asneira de manter relações
com uma mulher cá da terra.

Encontravamo-nos no bosque…

– E que tal? Era bonita? – perguntou o tio.

A essa pergunta, Eugénio franziu as sobrancelhas, mas fingindo não
ouvir, continuou nervosamente.

– Realmente, eu pensei que daí nenhum mal resultaria para mim; que,
depois de a deixar, tudo estava terminado. E, assim, cortei relações
com ela antes do meu casamento, e durante, quase um ano não a vi, nem
nela tornei a pensar. Mas, de súbito, não sei como nem por quê,
voltei a vê-la e senti-me novamente preso dos seus encantos. Chego a
revoltar-me contra mim próprio, compreendo todo o horror do meu procedimento,
quero dizer, do acto que estou pronto a praticar na primeira ocasião,
e, apesar de reconhecer tudo isso, continuo a procurar essa ocasião,
e até ao presente só Deus me tem livrado de assim proceder.
Ontem ia encontrar-me com ela quando Lisa me chamou.

– Com aquela chuva? – Sim… Estou cansado, tio, e resolvi confessar-lhe
tudo e pedir-lhe que me ajude. O tio pode ajudar-me.

– Efectivamente, aqui reparam muito nessas coisas. Mais dia menos dia saberão
tudo, se o não, sabem já. Compreendo que Lisa, fraca como é,
precisa de ser poupada…

Eugénio simulou mais uma vez não o ouvir, para chegar ao fim
da sua narrativa.

– Peço-lhe que me ajude. Hoje foi o acaso que me impediu de cair,
mas agora também ela sabe… Não me deixe só.

– Está bem, disse o tio. Mas estás assim tão apaixonado?
– Oh! Não é bem isso. É uma força qualquer que
me prende, me domina. Não sei o que heide fazer. É possível
que quando me sentir com mais coragem…

– Bem, a única ajuda que posso dar-te é esta: irmos todos
para a Crimeia! Que te parece? – É uma solução que me
agrada – respondeu Eugénio, – mas não vamos já, por hora
ficarei aqui com o tio a conversar um pouco.

XIV

Ao confessar o seu segredo ao tio, em especial aquilo que tanto o apoquentava
após aquele

dia da chuva, Eugénio sentiu-se mais aliviado. Marcou-se a partida para
a semana seguinte.

Daí a dias, Eugénio foi à cidade levantar dinheiro
para a viagem, deu as necessárias ordens para que a lavoura não
sofresse qualquer atraso e de novo se tornou alegre e optimista.

Sentia-se renascer.

Partiu com Lisa para a Crimeia sem ver uma só vez Stepanida. Passaram
dois meses deliciosos. Eugénio, com as profundas impressões
experimentadas nos últimos tempos, esquecera-se completamente do passado.
Na Crimeia fez relações e novos amigos se lhes juntaram. A vida
então tornara-se para Eugénio uma festa. Davam-se também
com um velho marechal, pertencente à nobreza provinciana, homem liberal
e inteligente que muito distinguia Eugénio.

No fim do mês de Agosto, Lisa deu à luz uma linda e sadia menina,
depois dum parto inesperado e fácil. Em Setembro voltaram à
sua casa de campo, trazendo consigo uma ama, porque Lisa não podia
amamentar a criança. Completamente liberto das antigas apoquentações,
Eugénio voltava feliz e parecia outro homem. Em seguida àqueles
transes por que passam todos os maridos nesse momento difícil da vida
das esposas, sentia que amava a sua cada vez com maior ardor. Aquilo que experimentava
pela filhinha quando a segurava nos braços era um sentimento inédito,
que fazia dele o mais feliz dos homens.

Acrescia que um novo interesse se juntara, agora, às suas ocupações.
Com efeito, devido à sua intimidade com Dumchine, o velho marechal
da nobreza, Eugénio interessava-se pelo Zemstvo, entendendo que era
da sua obrigação tomar parte nos negócios públicos.
Em Outubro devia ser convocada a assembleia para efeitos da sua eleição.
Depois de regressar da Crimeia teve de ir, uma vez, à cidade e outra
a casa de Dumchine. Não mais voltara a pensar nos tormentos que passara
nem na luta que se vira obrigado a travar para não cair na tentação.
Era com dificuldade que relembrava, agora, essa crise, cuja causa atribuía
a uma espécie de loucura que se apoderara de si. Sentia-se livre, tão
livre que uma vez estando a sós com o feitor, chegou a pedir, com toda
a serenidade, informações sobre Stepanida.

– Que faz Petchnikoff? Agora está sempre em casa? – Não. Continua
permanentemente na cidade.

– E a mulher? – Oh! Essa! Deu em droga. Agora vive com Zinovci. É
uma perdida, uma desgraçada.

É melhor assim, pensou Eugénio, coisa estranha. O caso agora
é-me por completo indiferente. Devo estar muito mudado.

E assim a vida para Eugénio corria-lhe à medida dos seus desejos:
a propriedade pertencialhe inteiramente; a refinaria funcionava com regularidade,
a colheita da beterraba tinha sido esplêndida, a mulher dera à
luz uma linda menina, com a maior felicidade, a sogra tinha-se ido embora;
e fora eleito por unanimidade. A seguir à eleição, Eugénio
regressou a casa e foi muito felicitado. Viu-se obrigado a agradecer, e ao
jantar bebeu cinco taças de champanhe. Tudo se lhe apresentava decididamente
com um risonho aspecto. Tudo parecia estar resolvido.

Enquanto se dirigia para casa, ia a magicar em vários projectos que
tencionava realizar. O verão impunha-se o caminho era lindo e o sol
brilhava radiante. Ao aproximar-se da quinta, Eugénio pensava que,
por causa da sua eleição, iria ocupar agora entre o povo a situação
que sempre ambicionara, isto é, poderia dar trabalho a muita gente
e dispor da influência política de que passava a gozar. Fantasiava
já como daí a três anos sua esposa, as outras pessoas
e os camponeses o julgariam. Por exemplo, aqueles que acolá vêm,
pensava ao avistar um homem e uma mulher que se dirigiam para ele, com um
balde de água, e que se detiveram para lhe dar passagem. O camponês
era o velho Petchnikoff e a mulher era Stepanida! Eugénio olhou para
ela, reconheceu-a e sentiu alegremente que ficara absolutamente calmo.

Ela estava cada vez mais bela mas isso em nada o perturbou. Dirigiu-se a
casa. Lisa esperava-o na escada.

– Posso dar-te um abraço – perguntou o tio? – Sim, fui eleito.

– Magnífico! Agora é preciso beber! Na manhã seguinte
Eugénio percorreu toda a propriedade, o que já há algum
tempo não fazia. Na eira estavam a funcionar as debulhadoras de trigo.
Para inspeccionar o trabalho, Eugénio passou entre as mulheres não
reparando em nenhuma delas. Mas, apesar dos seus esforços nesse sentido,
por duas vezes notou os olhos pretos e o lenço vermelho de Stepanida.
Ela transportava palha. Duas vezes, também, ela o olhou de soslaio
e de novo Eugénio sentiu qualquer coisa que não sabia bem o
que era. Mas no outro dia, quando voltou à eira, onde se deixou ficar
duas horas, sem necessidade para tal, mas, apenas, para olhar a imagem daquela
formosa mulher, Eugénio percebeu que estava irremediavelmente perdido.
Outra vez os antigos tormentos, outra vez todo aquele horror e já não
havia salvação possível.

Acontecera aquilo que sempre receara. No dia seguinte, à tarde, sem
saber como, apareceu junto da sebe do pátio, em frente da granja onde
certa vez, pelo Outono, tivera uma entrevista com Stepanida. Ia passeando
mas, num dado momento, parou para acender um cigarro. Uma vizinha notou-o
e, voltando para trás, ele ouviu dizer a alguém: Vai, que ele
está à tua espera, há mais de uma hora. Vai, não
sejas tola! Não podia voltar atrás; um camponês vinha
agora ao seu encontro, mas viu uma mulher que corria para ele do lado da granja.
Era Stepanida.

XV

E a antiga luta recomeçou, mas com redobrado ímpeto. À
noite, Eugénio imaginava coisas terríveis. Pensava que o seu
viver era monótono, cheio de tédio, que a autêntica vida
estava lá fora, em contacto com aquela mulher robusta, forte, sempre
alegre. O seu desejo era arrancá-la de casa, metê-la numa carruagem
ou sentá-la na garupa dum cavalo, e

desaparecer na estepe ou ir para a América. E muitas ideias iguais lhe
assaltavam o cérebro.

Ao entrar no salão tudo lhe pareceu desconhecido, absolutamente estranho
e sem significado Levantou-se tarde mas cheio de coragem, decidido a esquecer
aquela mulher, disposto a não pensar mais nela. Quase sem dar por isso
passou toda a manhã alheio ao trabalho, fazendo esforços para
fugir às preocupações. Aquilo que até ali lhe
parecera de grande importância passava de repente a não ter qualquer
valor. Inconscientemente, procurava enfronhar-se no seu trabalho. Julgava
ser-lhe indispensável ver-se livre dos cuidados, das preocupações
para devidamente reflectir em tudo. Afastava os que estavam junto de si, ficava
sozinho. Mas, logo que se sentia isolado, começava a passear pelo jardim
ou pelo bosque. Todos aqueles lugares tinham sido testemunhas de cenas que
o empolgavam arrebatadamente. Passeava pelo jardim e pensava que era preciso
resolver qualquer coisa, mas não descobria o quê e, doida e inconscientemente,
esperava. Esperava que um milagre a fizesse saber quanto a desejava e aparecesse
ali, ou noutro sítio qualquer, onde ninguém os visse, ou que,
numa noite escura, ela o procurasse para que todo o seu corpo lhe pertencesse,
só a ele pertencesse.

Ora aqui está – dizia – aqui está: para me sentir feliz arranjei
uma mulher saudável mas está demonstrado que se não pode
brincar com as mulheres… Julgava tê-la atraído e foi ela, afinal,
quem me prendeu nas malhas dos seus encantos, e agora não consigo libertar-me
dela. Julguei-me senhor absoluto dos meus actos, mas isto não passava
duma ilusão.

Enganei-me a mim próprio quando resolvi casar. Tudo o que eu sentia
era estupidez, era mentira. Desde a altura em que a possuí, experimentei
um sentimento novo… O verdadeiro sentimento do homem adulto. Sim, não
posso passar sem ela. Mas o que estou a pensar não passa duma tolice!
Isto não pode ser! exclamou subitamente… – O que é preciso
é reflectir, ver claramente o que tenho a fazer.

Deu uma volta pelos campos e continuou a pensar: Sim, para o meu caso só
há dois caminhos a seguir: Aquele por onde enveredei desde que conheci
Lisa, as minhas funções políticas, a lavoura, a minha
filha, o respeito pelos outros. A fim de prosseguir nesse caminho é
indispensável que Stepanida seja afastada definitivamente. O outro
caminho será arrebatá-la ao marido, dar-lhe dinheiro, fazer
calar as bocas do mundo e viver com ela. Mas para isso é necessário
que Lisa e a minha filha desapareçam. Não, porque… A criança
podia ficar… Mas o que é indispensável é que Lisa se
vá embora e saiba de tudo. Que me amaldiçoe, mas que desapareça.
É preciso que saiba que eu a troquei por uma camponesa, que sou um
miserável, um homem sem vontade própria. Não, é
horrível! Isto não pode ser! Talvez se arranje tudo doutra maneira…
Lisa pode ficar doente, morrer… Ah, se ela morresse tudo se remediaria,
tudo correria às maravilhas! E viveríamos felizes.

Em todo o caso, não passo de um miserável. Não, se
uma delas tem de morrer, que morra antes a outra. Se Stepanida morresse, seria
melhor. Agora compreendo como é possível matar, como se pode
envenenar, estrangular as amantes. Pegar num revólver, fazê-la
vir aqui e, em lugar de beijos dar-lhe um tiro no peito. Pronto, estava tudo
acabado. É horrível.

Foi contra minha vontade que ela se apoderou de mim. Matá-la, a ela,
ou matar minha mulher. Continuar nesta vida, é-me impossível,
totalmente impossível! É preciso reflectir e encarar tudo a
sangue-frio. Mas deixar as coisas continuarem como até aqui, daria
mau resultado. Juraria ainda muitas vezes não tornar a vê-la,
renunciar a ela, mas não passaria das promessas vis, porque no dia
seguinte esperá-la-ia. Ela sabe-lo-ia e lá estaria eu na mesma
alternativa. Ou a minha mulher o saberá, pois não falta quem
lho vá dizer, ou eu próprio lho direi, porque não posso
continuar a viver desta forma. Não posso. Tudo se saberá. Todos
o sabem já. Bem! Mas será possível que se possa viver
assim? Não, não se pode. Só há duas saídas:
matá-la ou matar a minha mulher. Mas existe ainda uma terceira: «Matar-me»,
murmurou sofrendo e seguidamente um arrepio lhe percorreu o corpo.

– Sim, mato-me! Assim, já não será preciso que qualquer
delas morra. É o que devo fazer.

Tremia violentamente, sentindo que era esse o único caminho possível.
Tenho em casa um revólver. Terei de acabar desta forma? Eis o que até
hoje ainda não tinha pensado… Mas agora…

Entrou em casa, dirigiu-se ao seu quarto e abriu a gaveta onde se encontrava
o revólver mas antes que tivesse tempo de o tirar, Lisa entrou.

XVI

Cobriu o revólver com um jornal, apressadamente.

– Então continuas na mesma? – perguntou Lisa sobressaltada, fitando-o.

– Que queres dizer com isso? – Vejo no teu olhar a mesma expressão
que tinhas outrora, quando nada querias dizer-me…

Dize-me meu querido, o que te aflige… Tenho a certeza de que sofres. Desabafa
comigo, isso aliviar-te-á. Qualquer que seja a causa dos teus sofrimentos,
encontraremos um remédio para eles.

– Acreditas nisso? – Fala, fala, não te deixarei sem que me digas
o que tens.

Eugénio esboçou um sorriso doloroso.

– Falar? É impossível. Aliás, nada tenho para te dizer.

Podia ser, no entanto, que acabasse por lhe dizer tudo; mas nessa altura
entrou a ama e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta. Lisa saiu para cuidar
da filha.

– Hás-de dizer-me o que tens, eu venho já.

– Sim, talvez…

Ela nunca pôde esquecer o sorriso magoado com que o marido disse estas
palavras. Saiu.

Apressadamente, como se fosse praticar um delito, Eugénio pegou no
revólver e examinouo.

«Estará carregado? Sim, e desde há muito… Já
foi até disparado uma vez… Bem, aconteça o que acontecer…

Encostou o revólver ao parietal direito, hesitou um momento mas,
lembrando-se de Stepanida e da decisão tomada de não a tornar
a ver, da luta que nos últimos tempos travara consigo próprio,
da tentação, da queda, tremeu horrorizado. «Não,
antes isto». E deu ao gatilho…

Quando Lisa acorreu ao quarto, mal tivera tempo de descer a varanda, viu-o
deitado de bruços, no chão, e o sangue negro e espesso corria
da ferida.

Procedeu-se a investigações, mas ninguém pôde
atinar com a causa do suicídio. O tio nem por sombras podia admitir
que o acontecimento tivesse qualquer relação com as confidências
que dois meses antes Eugénio lhe fizera.

Bárbara Alexievna afirmava que sempre tinha previsto aquele desfecho.
«Via-se logo, quando se punha a discutir».

Nem Lisa nem Maria Pavlovna compreendiam como aquilo sucedera, e nem tão
pouco se podiam conformar com a opinião dos médicos, que classificaram
Eugénio de psicópata, de semi-louco. Não podiam admitir
tal hipótese, estavam convencidos de que ele era mais ajuizado do que
a maioria dos homens.

Se Eugénio Irtenieff era um anormal, um doente, ter-se-ia de concluir
que todos os homens o eram e, ainda mais, que doentes serão todos os
que nos outros vêem sintomas de loucura quando não têm
um espelho em que possam ver o que lhes vai dentro da alma.

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