Breves Contos III

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Voltaire

Apresentação

Apresentamos três dentre os mais conhecidos contos de Voltaire. São
textos críticos mas não tão irônicos e sarcásticos
como os de outras obras. A preocupação maior parece fixar-se
no estilo, na análise de contradições filosóficas
e na pregação moral.

Em “O Branco e o Preto” Voltaire não se mostra tão
crítico em relação às idéias e instituições.
O conto vale pelo estilo, que lembra o romance oriental. No conteúdo,
a discussão principal se refere às diferenças e similitudes
entre o sonho e a realidade.

“Jeannot e Colin” é menos um conto crítico que
moral. A história envolve dois amigos que se separam após o
enriquecimento repentino de Jeannot, que a partir de então despreza
o antigo companheiro. Mas a fortuna se esvai rapidamente. Colin aceita tornar
à antiga amizade, compreendendo que a felicidade está no trabalho
e na generosidade.

“Pot-pourri” mostra o Voltaire agressivamente crítico.
Ataca várias religiões e culturas, os filósofos, a ganância
e a especulação, a vaidade e o egoísmo.

Nélson Jahr Garcia

O BRANCO E O PRETO

Certamente não há, na província de Candahar, quem não
conheça a aventura do jovem Rustan. Era filho único de um mirza,
título este que corresponde a marquês entre nós, ou a
barão entre os alemães. O mirza seu pai era possuidor de uma
bela fortuna honestamente adquirida. Deviam casar o jovem Rustan com uma.
dama, ou mirzesa, da sua categoria. As duas famílias o desejavam ardentemente.
Devia ele constituir o consolo dos pais, tornar a sua esposa feliz, e o ser
com ela.

Mas, por infelicidade, vira a princesa de Caxemira na feira de Cabul, que
é a feira mais importante do mundo, e incomparavelmente mais freqüentada
que as de Baçorá e Astracã. E eis agora por que o príncipe
de Caxemira comparecera à feira com a sua filha.

Perdera ele as duas mais raras peças de seu tesouro: uma era um diamante
do tamanho de um polegar e no qual fora gravada a efígie de sua filha,
com uma arte que os hindus possuíam então e que depois se perdeu;
a outra era uma azagaia que ia por si própria aonde a gente o desejava,
coisa não muito extraordinária entre nós, mas que o era
em Caxemira.

Um faquir de Sua Alteza lhe roubara essas duas preciosidades e as entregara
à princesa. “Guardai cuidadosamente estes dois objetos –
disse-lhe ele. – Deles depende o vosso destino”. Partiu então,
e nunca mais o tornaram a ver. O duque de Caxemira, desesperado, e ignorando
que ambas as coisas se achavam em poder da filha, resolveu ir à feira
de Cabul, para ver se entre os mercadores que ali acorriam dos quatro cantos
do mundo, não haveria algum que tivesse o seu diamante e a sua arma.
Levava a filha consigo em todas as viagens que fazia. Trazia esta o diamante
bem escondido no cinto; quanto à azagaia, que não podia ocultar
tão bem, encerrara-a cuidadosamente em Caxemira, no seu grande cofre
chinês.

Rustan e ela viram-se em Cabul; amaram-se com toda a boa-fé da sua
idade e toda a ternura da sua terra. A princesa, em penhor de seu afeto, lhe
deu o diamante, e Rustan, à despedida, prometeu ir vê-la secretamente
em Caxemira.

Tinha o jovem mirza dois favoritos que lhe serviam de secretários,
escudeiros, mordomos e criados de quarto. Um chamava-se Topázio; era
belo, bem feito, branco como uma circassiana, dócil e serviçal
como um armênio, sábio como um guebro. O outro chamava-se Ébano;
era um negro bastante bonito, mais ativo, mais industrioso que Topázio,
e que não achava nada difícil. Comunicou-lhes o seu projeto
de viagem. Topázio procurou dissuadi-lo com o zelo circunspecto de
um servo que não queria desagradar-lhe; fez-lhe ver tudo o que arriscava.
Como deixar duas famílias em desespero? Como cravar um punhal no coração
de seus pais? Chegou a abalar Rustan; mas Ébano o encorajou e varreu-lhe
todos os escrúpulos.

— Mas faltava-lhe dinheiro para tão longa viagem. O sábio
Topázio não faria com que lho emprestassem; Ébano o conseguiu.
Sem que o patrão o soubesse, apoderou-se do diamante e mandou fazer
uma imitação, que pôs no seu lugar, empenhando o verdadeiro
a um armênio, por alguns milhares de rúpias.

Quando o marquês se viu de posse das suas rúpias, tudo ficou
pronto para a partida. Carregaram um elefante com a bagagem; montaram a cavalo.
Topázio disse ao amo: “Tomei a liberdade de fazer algumas críticas
à sua empresa; mas, depois de criticar, cumpre-me obedecer; pertenço-lhe,
estimo-o, hei de segui-lo até o fim do mundo; mas consultemos em caminho
o oráculo que fica a duas parasangas daqui”. Rustan consentiu,
O oráculo respondeu: se fores ao oriente, estarás no ocidente.
Rustan não compreendeu coisa alguma dessa resposta. Topázio
sustentou que não augurava nada de bom, Ébano, sempre complacente,
persuadiu-o de que ela era bastante favorável.

Havia ainda um outro oráculo em Cabul; foram também consultá-lo.
O oráculo de Cabul respondeu nestes termos: Se possuis, não
possuirás; se és vencedor, não vencerás; se és
Rustan, não o serás. Esse oráculo afigurou-se-lhes ainda
mais ininteligível que o outro. – Cuidado! – advertia-lhe
Topázio. Nada tema – dizia – Ébano, e este ministro,
como era de prever, tinha sempre razão perante o amo, a quem estimulava
a paixão e a esperança.

Deixando Cabul, internaram-se por uma grande floresta; sentaram-se na relva
para comer, soltando os cavalos no pasto. Preparavam-se para descarregar o
elefante que trazia os víveres e o serviço, quando perceberam
que Topázio e Ébano não mais se achavam com a pequena
caravana. Chamam-nos; reboa a floresta com os nomes de Ébano e Topázio.
Os criados procuram-nos por todas as direções e enchem a floresta
com os seus gritos; voltam sem nada ter visto, sem que ninguém lhes
tenha respondido. “Apenas encontramos – disseram a Rustan –
um abutre que se batia com uma águia e que lhe arrancava todas as penas.”
A narrativa desse combate espicaçou a curiosidade de Rustan; dirigiu-se
a pé até o local; não avistou nem abutre nem águia,
mas viu o seu elefante, ainda com a carga, que era assaltado por um grande
rinoceronte. Um investia com o chifre, o outro com a tromba. O rinoceronte,
à vista de Rustan, abandonou a presa; recolheram o elefante, mas não
puderam encontrar os cavalos. “Estranhas coisas acontecem quando se
viaja pela floresta!” – exclamava Rustan. Os servos estavam consternados,
e o amo em desespero, por haver perdido ao mesmo tempo os seus cavalos, o
seu caro negro e o sábio Topázio, ao qual tinha grande amizade,
embora este nunca fosse da sua opinião.

Consolava-se na esperança de em breve se ver aos pés da bela
princesa de Caxemira, quando encontrou um grande asno malhado, a que um vigoroso
e brutal campônio enchia de pauladas. Nada mais belo, nem mais raro,
nem mais veloz na corrida do que os asnos dessa espécie. Aos golpes
do vilão, respondia o asno a coices capazes de arrancar um carvalho.
O jovem mirza tomou, como de razão, o partido do asno, que era uma
criatura encantadora. O campônio fugiu, dizendo ao asno: “Tu me
pagarás”. O asno agradeceu ao libertador na sua linguagem, aproximou-se,
deixou-se acariciar, acariciou. Depois da refeição, Rustan monta
no asno e encaminha-se para Caxemira com os seus criados, que seguem, uns
a pé, outros montados no elefante.

Mal se havia ele acomodado no lombo do asno, quando este animal se volta
na direção de Cabul, em vez de seguir o rumo de Caxemira. Por
mais que o cavaleiro torcesse a rédea e apertasse os joelhos, por mais
que o sofreasse, por mais que lhe metesse o relho e as esporas, o teimoso
animal corria sempre direito a Cabul.

Rustan suava, debatia-se, exasperava-se, quando encontrou um vendedor de
camelos que lhe disse: “Bastante velhaco é este seu burro, que
o leva aonde o senhor não pretende ir; não quer trocá-lo
por quatro de meus camelos, à escolha?”
Rustan agradeceu à Providência, por lhe haver deparado tão
bom negócio. “Muito enganado estava Topázio – pensava
ele – em me dizer que a minha viagem não seria feliz”.
Monta no melhor camelo, os três outros o seguem; alcança a sua
caravana, e vê-se a caminho da felicidade.

Mal andara quatro parasangas, quando é detido por uma torrente profunda,
larga e impetuosa, que rolava de rochedos brancos de espuma. As duas margens
eram horríveis precipícios, que turbavam a vista e gelavam o
sangue; nenhum meio de atravessar, nenhum meio de tomar pela direita ou pela
esquerda. “Começo a temer – disse Rustan – que Topázio
tivesse razão em censurar minha viagem, e que eu tenha feito muito
mal em partir; se ao menos ele estivesse aqui, poderia dar-me alguns bons
conselhos. Se aqui estivesse Ébano, haveria de consolar-me e encontraria
algum expediente; mas tudo me falha”. Seu embaraço era aumentado
pela consternação da caravana: a noite era sem estrelas, passaram-na
a lamentar-se. Afinal a fadiga e o abatimento adormeceram o enamorado viajante.
Desperta ao raiar do dia e vê uma bela ponte de mármore erguida
sobre a torrente, de uma margem à outra.

E foram exclamações, gritos de espanto e de alegria. “Será
possível? Não será um sonho? Que prodígio! Que
encantamento! Teremos coragem de passar?” Todo o bando se punha de joelhos,
erguia-se, dirigia-se à ponte, beijava a terra, olhava o céu,
estendia as mãos, avançava o pé a tremer, voltava, extasiava-se;
e Rustan murmurava: “Sem dúvida o Céu me favorece; Topázio
não sabia o que dizia; os oráculos eram em meu favor; Ébano
tinha razão; mas por que não está ele aqui?”
Mal a caravana atravessou a torrente, eis que a ponte se abisma nas águas
com terrível fragor. “Tanto melhor! Tanto melhor! – exclamou
Rustan. – Louvado seja Deus! Ele não quer que eu volte para a
minha terra, onde não passaria de simples gentil-homem; quer que eu
despose aquela a quem amo. Serei príncipe de Caxemira; é assim
que, possuindo a minha amada, não possuirei o meu pequeno marquesado
de Candahar. Serei Rustan, e não o serei, visto que vou tornar-me um
grande príncipe: eis aí, claramente explicada em meu favor,
grande parte do oráculo, o resto se explicará por si mesmo;
hei de ser muito feliz. Mas por que não se acha Ébano comigo?
Lamento-o muito mais do que a Topázio”.

Avançou mais algumas parasangas na maior alegria; mas, ao escurecer,
uma cadeia de montanhas mais abruptas que uma contra-escarpa e mais altas
do que o seria a torre de Babel, se a tivessem concluído, barrou inteiramente
a caravana transida de medo.

“Deus quer que pereçamos aqui – exclamavam todos. –
Ele só afundou a ponte para nos tirar toda esperança de regresso;
e ergueu a montanha para nos privar de qualquer meio de seguir avante. Ó
Rustan! ó infeliz marquês! jamais veremos Caxemira, nunca mais
regressaremos à terra de Candahar”. A mais cruciante dor, o mais
pesado abatimento, sucediam-se, na alma de Rustan, à imoderada alegria
que sentira, às esperanças com que se embriagara. Bem longe
estava agora de interpretar as profecias em seu favor. “Ó Céus!
ó Deus bondoso! Para que fui perder meu amigo Topázio?!”

Como pronunciasse tais palavras, soltando profundos suspiros e derramando
lágrimas, em meio da comitiva em desespero, eis que se fende a base
da montanha, e um longo túnel, alumiado de cem mil archotes, se lhes
apresenta às vistas ofuscadas. E Rustan a exclamar, e sua gente a cair
de joelhos, a tombar de espanto, a proclamar milagre! E a dizer: “Rustan
é o favorito de Vixnu, o bem-amado de Brama; será o senhor do
mundo”. Rustan o acreditava, estava fora de si, erguido acima de si
mesmo. “Ah! Ébano, meu querido Ébano! Onde estás,
que não vens testemunhar estas maravilhas? Como te fui perder? E quando,
bela princesa de Caxemira, quando tornarei a ver os teus encantos?”

Avança, com os seus criados, com o seu elefante, com o seu camelo,
por debaixo da abóbada da montanha, ao fim da qual penetra em um vale
esmaltado de flores e bordado de arroios; e além do prado, alamedas
a perder de vista; e além das alamedas, um rio, a cujas margens se
erguem mil casas de recreio, com deliciosos jardins. Ouve, por toda parte,
cantos e instrumentos; vê gente dançando; apressa-se em atravessar
uma das pontes; indaga ao primeiro que lindo país seria aquele.

Aquele a quem se dirigia respondeu-lhe: “Esta é a província
de Caxemira; os habitantes entregam-se agora à alegria e aos folguedos,
celebrando as núpcias da nossa bela princesa, que vai casar-se com
o senhor Barbabu, a quem o pai a prometeu; que Deus lhes perpetue a felicidade.”

A estas palavras Rustan tombou desfalecido, e o senhor de Caxemira julgou-o
sujeito a ataques epilépticos; mandou levá-lo para sua casa,
onde se conservou por muito tempo sem sentidos. Mandou chamar os dois médicos
mais hábeis do cantão; tomaram o pulso ao doente que, tendo-se
refeito um pouco, lançava soluços e revirava os olhos, exclamando
de tempos em tempos: “Topázio, Topázio, tu tinhas razão!”

Um dos médicos disse ao senhor de Caxemira: “Vejo, pelo seu sotaque,
que é um jovem de Candahar, a quem este clima não convém;
deixe-o comigo, que o levarei de volta à sua pátria e o curarei”.
Assegurou o outro médico que Rustan só estava doente de desgosto,
que deviam levá-lo às núpcias da princesa e fazê-lo
dançar; os dois médicos foram dispensados e Rustan ficou a sós
com o seu hóspede.

— Senhor – lhe disse ele, – peço-lhe perdão
por haver desmaiado na sua presença, sei que isso não é
nada polido;, queira aceitar meu elefante como prova de reconhecimento pela
bondade com que me honrou.

Contou-lhe em seguida todas as suas aventuras, evitando referir-se ao objetivo
da viagem.

— Mas – indagou ele, – em nome de Vixnu e Brama, diga-me
quem é esse feliz Barbabu que desposa a princesa de Caxemira, por que
seu pai escolheu para genro e por que a princesa o aceitou como esposo?
— Senhor, a princesa absolutamente não aceitou Barbabu: pelo
contrário, está em pranto, enquanto toda a província
celebra com alegria o seu casamento; encerrou-se na torre do palácio;
não quer assistir a nenhum dos festejos que fazem em sua honra.

Rustan, ao ouvir essas palavras, sentiu-se renascer; o brilho de suas cores,
que a dor fanara, reapareceu-lhe nas faces.

— Queira dizer-me – continuou ele – por que o príncipe
de Caxemira se obstina em dar sua filha a um Barbabu a quem ela detesta?
— Não sabia o senhor que o nosso augusto príncipe perdera
um valioso diamante e uma azagaia de grande estimação?
— Ah! bem o sei.

— Pois saiba que o nosso príncipe, desesperado por não
ter notícias dessas preciosidades, depois de as ter mandado procurar
por toda a terra, prometeu a mão da filha a quem lhe trouxesse qualquer
um dos dois objetos. Apareceu um senhor Barbabu, munido do diamante, e amanhã
vai casar com a princesa.

Rustan empalideceu, gaguejou um cumprimento, despediu-se, e correu de dromedário
à capital, onde deveria realizar-se a cerimônia. Chega ao palácio
do príncipe; alega que tem coisas importantíssimas para lhe
comunicar; pede uma audiência; respondem que – o príncipe
está ocupado nos preparativos do casamento.

— É por isso mesmo que quero falar-lhe.

E tanto instou que foi introduzido.

— Senhor – diz ele ao príncipe, – que Deus coroe
todos os vossos dias de glória e magnificência! O vosso genro
é um trapaceiro.

— Como! um trapaceiro? Atreve-se a dizê-lo? E assim que se fala
a um duque de Caxemira do genro que ele escolheu?
— Sim, um trapaceiro. E para o provar a Vossa Alteza, é que trago
aqui vosso diamante.

O duque, espantado, confrontou os dois diamantes e, como não entendia
de pedras preciosas, não pode decidir qual fosse o verdadeiro. “Aqui
estão dois diamantes – disse ele – e só tenho uma
filha: eis-me num estranho embaraço!” Mandou chamar Barbabu e
perguntou-lhe se não o havia enganado. Barbabu jurou que comprara o
seu diamante a um armênio; o outro não dizia de quem houvera
o seu, mas propôs um expediente: que aprouvesse a Sua Alteza fazê-lo
combater em seguida contra o rival.

— Não basta que vosso genro dê um diamante – dizia
ele, – é preciso que também dê provas de valor.
Não achais bem que aquele que matar o outro despose a princesa?
— Esplêndido – respondeu o príncipe, – será
um belo espetáculo para a Corte: batei-vos depressa os dois; o vencedor
tomará as armas do vencido, segundo o costume de Caxemira, e desposará
minha filha.

Os dois pretendentes desceram logo à pista. Havia na escada uma pega
e um corvo. O corvo gritava: “Batam-se, batam-se”; e a pega: “Não
se batam”. O que fez rir ao príncipe; os dois rivais, mal lhes
deram atenção, iniciaram o combate; todos os cortesãos
formavam circulo em torno deles. A princesa, sempre encerrada na torre, não
quis assistir ao espetáculo; longe estava de imaginar que o seu apaixonado
se achava em Caxemira, e tinha tamanho horror a Barbabu que nada queria ver.
O combate desenvolveu-se o melhor possível; Barbabu foi logo morto
e o povo sentiu-se encantado, pois que Barbabu era feio e Rustan muito bonito:
é o que decide quase sempre do favor público.

O vencedor vestiu a cota de malha, a charpa e o capacete do vencido e foi,
ao som das fanfarras e seguido de toda a Corte, apresentar-se sob as janelas
da bem-amada. “Bela princesa – gritavam todos, – vinde ver
vosso belo marido que matou seu feio rival”. As aias repetiam tais palavras.

A princesa, por desgraça, pôs a cabeça à janela
e, avistando a armadura do homem a quem abominava, correu desesperada ao cofre
chinês e retirou a azagaia fatal, que foi ferir o seu querido Rustan
na fenda da couraça; este lança um grito e nesse grito a princesa
julga reconhecer a voz de seu infeliz amado.

Desce desgrenhada, com a morte nos olhos e no coração. Rustan,
coberto de sangue, jazia tombado nos braços do rei. Ela o vê:
ó momento! ó espetáculo, ó reconhecimento, de
que se não pode exprimir nem a angústia, nem a ternura, nem
o horror! Lança-se a ele, beija-o. “Tu recebes – lhe diz
ela – os primeiros e os últimos beijos da tua amada e da tua
assassina”. Retira o dardo da ferida, mergulha-o no próprio coração
e expira sobre aquele a quem adora. O pai, fora de si, alucinado, pronto a
morrer com ela, tenta em vão chamá-la à vida; a pobre
não mais existia; ele amaldiçoa aquele dardo fatal, quebra-o
em pedaços, lança ao longe aqueles dois diamantes funestos;
e, enquanto preparam os funerais da filha em vez de seu casamento, manda transportar
para o palácio Rustan ensangüentado, que tinha ainda uns restos
de vida. Colocam-no em um leito. A primeira coisa que vê aos dois lados
daquele leito de morte, é Topázio e Ébano. A surpresa
lhe devolve um pouco as forças.

— Ah! cruéis – diz ele, – por que me abandonastes?
Talvez a princesa ainda vivesse, se estivésseis perto do infeliz Rustan.

— Eu nunca vos abandonei um único instante – diz Topázio.

— Sempre estive perto de vós – afirma Ébano.

— Ah! que dizeis? Por que insultar meus últimos momentos? –
lhes diz Rustan com voz débil.

— Podeis acreditar-me – diz Topázio, – bem sabeis
que nunca aprovei essa fatal viagem, de que previa as horríveis conseqüências.
Era eu a águia que lutou com o abutre; era eu o elefante que se sumiu
com a bagagem, para forçar-vos a voltar à pátria; era
eu o asno malhado que vos reconduzia para a casa paterna; fui eu quem dispersou
vossos cavalos; fui eu quem formou a torrente que vos impedia a passagem;
fui eu quem ergueu a montanha que vos fechava um caminho tão funesto;
era eu o médico que vos aconselhava o clima natal; era eu a pega que
vos gritava que combatêsseis.

— E eu – diz Ébano, – eu era o abutre que lutou
com a águia, eu era o rinoceronte que dava chifradas no elefante, o
vilão que castigava o asno malhado, o mercador que vos cedia camelos
para a vossa perda; construí a ponte sobre a qual passastes; cavei
a galeria que atravessastes; sou o médico que vos animava a seguir,
o corvo que vos gritava que combatêsseis.

—.Lembra-te dos oráculos – diz Topázio. –
Se vais ao oriente, estará, no ocidente.

— Sim – confirma Ébano, – aqui enterram os mortos
com o rosto voltado para o ocidente. O oráculo era claro. Como não
o compreendeste? Tu possuías, e não possuías: pois tinhas
o diamante, mas era falso, e o ignoravas. És vencedor e morres; és
Rustan e deixas de o ser; tudo foi cumprido.

Enquanto assim falava, quatro asas brancas cobriram o corpo de Topázio,
e quatro asas negras o de Ébano.

— Que vejo?! – exclamou Rustan.

Topázio e Ébano responderam juntos:
— Tu vês os teus dois gênios.

— Ai! – gemeu o infeliz Rustan. – Para que vos metestes
nisso? E para que dois gênios para um pobre homem?
— É a lei – sentenciou Topázio. – Cada homem
tem os seus dois gênios, foi Platão quem primeiro o disse, e
outros depois o repetiram; bem vês que nada é mais verdadeiro:
eu, que te falo, sou o teu bom gênio, e o meu encargo era velar por
ti até o último instante da tua vida; desempenhei fielmente
o meu papel
— Mas – disse o moribundo, – se a tua função
era servir-me, sou pois de uma natureza muito superior à tua; e depois,
como ousas afirmar que és o meu bom gênio, quando deixaste me
enganarem em tudo o que empreendo; e nos deixas morrer miseravelmente, a mim
e à minha bem-amada?
— Era o teu destino – disse Topázio.

— Se é o destino que faz tudo – observou o moribundo,
para que serve então meu gênio? E tu, Ébano,- com as tuas
quatro asas negras, és, pelo que se vê, o meu gênio mau?

— Tu o disseste – respondeu Ébano.

— Então eras também o gênio mau da minha princesa?

— Não, a princesa tinha o seu, e eu secundei-o perfeitamente.

— Ah! maldito Ébano, se és tão mau assim, não
pertences então ao mesmo senhor que Topázio? São ambos
formados por dois princípios diferentes, dos quais um é bom
e o outro mau por natureza?
— Não é uma conseqüência – disse Ébano,
– mas é uma grande dificuldade.

— Não é possível, tornou o moribundo, que um
ser favorável tenha criado um gênio tão funesto.

— Possível ou não – retrucou Ébano, –
a coisa é como te digo.

— Ah! meu pobre amigo – interrompeu Topázio, –
não vês que esse velhaco tem ainda a malícia de te fazer
discutir, para assanhar teu sangue e precipitar a hora da tua morte?
— Vai-te, não estou mais contente contigo do que com ele –
diz o triste Rustan. – Ele ao menos confessa que me quis fazer mal;
e tu, que pretendias defender-me, não me serviste de nada.

— Sinto-o muito – desculpou-se o bom gênio.

— E eu também – afirmou o moribundo. – Há
nisso tudo qualquer coisa que eu não compreendo.

— Nem eu tampouco – disse o pobre do bom gênio.

— Mas daqui a um instante saberei tudo – disse Rustan.

— É o que veremos – concluiu Topázio.

Então tudo desapareceu. Rustan achou-se na casa de seu pai, de onde
não saíra, e no seu leito, onde havia dormido durante uma hora.

Desperta em sobressalto, banhado em suor, perdido; apalpa-se, chama, grita,
puxa a sineta. Seu criado Topázio acorre de carapuça e bocejando.

— Estou morto? Estou vivo? – exclamou Rustan. – E a bela
princesa de Caxemira? Será que escapa?
— O meu senhor está sonhando? – disse friamente Topázio.

— Ah! – clamava Rustan. – Que é feito desse maldito
Ébano, com as suas quatro asas negras? Foi ele que me fez morrer de
morte tão cruel.

— Senhor, deixei-o lá em cima, a roncar. Faço-o descer
também?
— O celerado! Há seis meses inteiros que me persegue. Foi ele
quem me levou a essa feira aziaga de Cabul. Foi ele quem escamoteou o diamante
que me deu a princesa. É ele o culpado da minha viagem, da morte da
minha princesa, e do golpe de azagaia de que morro na flor da idade.

— Tranqüilizai-vos – disse Topázio. – Nunca
estivestes em Cabul; não existe nenhuma princesa de Caxemira; o seu
pai tem apenas dois filhos varões, que estão atualmente no colégio.
Nunca tivestes diamante; a princesa não pode estar morta porque não
nasceu; e a vossa saúde é perfeita.

— Como! Não é verdade que assistias à minha morte
no leito do príncipe de Caxemira? Não me confessaste que, para
me preservar de tantos males, havias sido águia, elefante, asno malhado,
médico e pega?
— Sonhastes isso tudo, senhor: as nossas idéias não pendem
mais de nós no sono do que na vigília. Quis Deus que esse desfile
de idéias vos passasse pela cabeça, para vos dar decerto alguma
instrução, de que tirareis proveito.

— Zombas de mim – tornou Rustan.. – Quanto tempo dormi?

— Senhor, não dormistes ainda uma hora.

— Pois então, maldito argumentador, como queres tu que, em
uma hora, tenha eu estado há seis meses na feira de Cabul, de lá
tenha voltado e ido a Caxemira, e que estejamos mortos, Barbabu, a princesa
e eu?
Não há nada mais fácil nem mais ordinário, senhor,
e realmente poderíeis ter dado volta ao mundo e passado por mais aventuras
em muito menos tempo. Não é verdade que podeis ler em uma hora
o compêndio da história dos persas, escrito por Zoroastro? No
entanto, esse compêndio abrange oitocentos mil anos. Todos esses acontecimentos
passam um após outro, a vossos olhos, durante uma hora. E haveis de
concordar que é tão fácil a Brama comprimi-los todos
no espaço de uma hora como estendê-los no espaço de oitocentos
mil anos; é exatamente a mesma coisa. Imaginai que o tempo gira sobre
uma roda cujo diâmetro é infinito. Nessa roda imensa há
uma multidão inumerável de rodas, umas dentro das outras; a
do centro é imperceptível e dá um número infinito
de voltas precisamente no mesmo tempo em que a grande roda completa uma volta.
É claro que todos os acontecimentos, desde o princípio do mundo
até o seu fim, podem acontecer sucessivamente em muito menos tempo
que a centésima milésima parte de um segundo; e pode-se afirmar
que a coisa é mesmo assim.

— Não compreendo – disse Rustan.

— Se quiserdes – disse Topázio, – tenho um papagaio
que vos fará fielmente compreender isso tudo. Nasceu algum tempo antes
do Dilúvio; estava na Arca; viu muitas coisas; no entanto, tem apenas
ano e meio: ele vos contará a sua história, que é muito
interessante.

— Traze-me depressa o teu papagaio – disse Rustan, – Ele
me divertirá até que eu possa adormecer de novo.

— Está com a minha irmã religiosa – disse Topázio.
Vou buscá-lo, gostareis dele; a sua memória é fiel, e
ele conta simplesmente, sem procurar mostrar espírito à propósito
de tudo, e sem fazer frases.

Tanto melhor – observou Rustan, – é assim que me agradam
as histórias.

Trouxeram-lhe o papagaio, o qual assim falou:

N. B.: Mademoiselle Catherine Vadé nunca pode encontrar a história
do papagaio entre os papéis de seu falecido primo Antoine Vadé,
autor deste conto. O que é uma pena, dado o tempo em que vivera o papagaio.

JEANNOT E COLIN

Várias pessoas dignas de fé viram Jeannot e Colin na escola
da cidade de Issoire, em Auvergne, famosa em todo o universo por seus colégios
e seus tachos. Jeannot era filho de um conhecido vendedor de mulas, e Colin
devia seus dias a um bravo lavrador dos arredores, que cultivava a terra com
quatro animais e que depois de haver pago a talha, mais o imposto adicional,
e as gabelas, o soldo por libra, a captação e os vigésimos,
não se encontrava lá muito rico ao fim do ano.

Jeannot e Colin eram muito bonitos para auvernheses; estimavam-se muito
e tinham dessas pequenas intimidades, dessas pequenas confidências,
que a gente sempre relembra com agrado, quando torna a encontrar-se mais tarde.

Estava para findar o tempo de seus estudos, quando um alfaiate trouxe a
Jeannot uma roupa de veludo de três cores, com uma jaqueta leonesa de
excelente gosto: vinha tudo acompanhado de uma carta para o senhor de La Jeannotière.
Colin admirou a roupa, sem sentir inveja; mas Jeannot tomou um ar de superioridade
que afligiu Colin. Desde esse momento Jeannot não estudou mais, olhava-se
ao espelho e desprezava a todo o mundo. Algum tempo depois, chega um criado
de diligência e traz uma segunda carta para o senhor marquês de
La Jeannotière: era uma ordem do senhor seu pai para que o senhor seu
filho se dirigisse a Paris. Jeannot subiu para o carro, estendendo a mão
a Colin com um nobre sorriso protetor. Colin sentiu o seu próprio nada
e chorou. Jeannot partiu em toda a pompa da sua glória.

Os leitores que gostam de instruir-se devem saber que o senhor Jeannot pai
adquirira uma fortuna imensa nos negócios. Indagais como se fica assim
tão rico? Mera questão de sorte. O senhor Jeannot era bem parecido,
sua mulher também, e ainda estava bastante viçosa. Foram ambos
a Paris, devido a um processo que os arruinava, quando a sorte, que eleva
e rebaixa os homens a seu bel-prazer, os apresentou à esposa de um
empreiteiro dos hospitais militares, homem de grande talento e que podia gabar-se
de haver liquidado mais soldados em um ano do que o canhão em dez.
Jeannot agradou a Madame; a mulher de Jeannot agradou a Monsieur. Em breve
Jeannot participava da empresa; meteu-se em outros negócios. Quando
a gente está na correnteza, é só deixar-se carregar;
e faz-se sem trabalho uma fortuna imensa. Os pobretões que, da margem,
nos vêem vogar a todo o pano, arregalam os olhos; não atinam
como pudemos vencer; invejam-nos pura e simplesmente e escrevem, contra nós,
panfletos que não lemos. Foi o que aconteceu a Jeannot pai, que em
breve se transformou em senhor de La Jeannotière e que, tendo adquirido
um marquesado ao cabo de seis meses, retirou da escola o senhor marquês
seu filho, para introduzi-lo na alta sociedade de Paris.

Colin, sempre terno, escreveu uma carta de cumprimentos a seu antigo camarada,
enviando-lhe estas linhas para congratular-me… O marquesinho não
lhe deu resposta. Colin adoeceu de pesar.

O pai e a mãe deram primeiro um preceptor ao jovem marquês:
esse preceptor, que era um homem da alta e que nada sabia, não pode
ensinar coisa alguma a seu pupilo. Monsieur queria que o filho aprendesse
latim, Madame não o queria. Tomaram por árbitro um autor que
era então famoso por obras agradáveis. Convidaram-no a jantar.
O dono da casa começou por lhe dizer:
— O senhor que sabe latim e que é um homem da Corte…

— Eu, senhor, latim?! Não sei uma palavra de latim e me dou
muito bem com isso: é claro que se fala muito melhor a própria
língua quando não se divide a aplicação entre
ela e as línguas estrangeiras. Veja todas as nossas damas: têm
um espírito mais agradável que o dos homens; as suas cartas
têm cem vezes mais graça; e, se nos levam essa vantagem, é
porque não sabem latim.

— Pois não tinha eu razão? – disse Madame. –
Eu quero que o meu filho seja um homem de espírito, que obtenha sucesso
na sociedade; e bem se vê que, se soubesse latim, estaria perdido. Acaso
se representa comédia e ópera em latim? Pleiteia-se em latim,
quando se tem um processo? Ama-se em latim?
Monsieur, ofuscado com essas razões, abdicou, e ficou assentado que
o jovem marquês não desperdiçaria tempo em conhecer Cícero,
Horácio e Virgílio.

— Mas que aprenderá. ele então? – insistiu. –
Pois é preciso que saiba alguma coisa. Não se poderia ministrar-lhe
um pouco de geografia?
— De que lhe serviria? – retrucou o preceptor. – Quando
o senhor marquês for visitar suas terras, acaso os postilhões
não saberão o caminho? Certamente que não hão
de extraviá-lo. Não se tem necessidade de um esquadro para viajar,
e vai-se muito comodamente de Paris a Auvergne sem que seja preciso tirar
a latitude.

Tem razão – replicou o pai. – Mas ouvi falar de uma bela
ciência que se chama, creio eu, astronomia.

— Qual! – disse o preceptor. – Quem é que se guia
pelos astros neste mundo? E será preciso que o senhor marquês
se mate em calcular um eclipse quando o encontra indicado no almanaque, o
qual, ainda por cima, o informa das festas móveis, a idade da lua e
de todas as princesas da Europa!
Madame ficou de pleno acordo com o preceptor. O marquesinbo estava no auge
da alegria; o pai hesitava.

— Mas que se deve então ensinar a meu filho? – dizia.

— A ser amável – respondeu o amigo a quem consultavam.
– E, se sabe os meios de agradar, saberá tudo: é uma arte
que aprenderá com a senhora sua mãe, sem que nenhum dos dois
se dê ao mínimo trabalho.

Madame, a estas palavras, beijou o gracioso ignorante, e disse-lhe:
— Bem se vê que o senhor é o homem mais sábio do
mundo; meu filho lhe ficará devendo toda a sua educação.
Imagino que não ficaria mal se ele soubesse um pouco de história.

— Mas para que serve isso, Madame! só é agradável
e útil a história do dia. Todas as histórias antigas,
como o dizia um de nossos talentos, são apenas fábulas admitidas;
e, quanto às modernas, são um verdadeiro caos que não
se pode destrinçar. Que importa ao senhor seu filho que Carlos Magno
haja instituído os doze pares de França e o seu sucessor fosse
gago?
— Muito bem! – exclamou o preceptor. – Abafa-se o espírito
das crianças sob esse amontoado de conhecimentos inúteis; mas,
de todas as ciências, a mais absurda, a meu ver, e a mais capaz de abafar
toda espécie de gênio, é sem dúvida a geometria.
Essa ciência ridícula tem por objeto superfícies, linhas
e pontos que não existem na natureza. Faz-se passar, em espírito,
cem mil linhas curvas entre um circulo e uma linha reta que o toca, embora
na realidade não se lhe possa meter um fio de linha. A geometria, na
verdade, não passa de uma brincadeira de mau gosto.

Monsieur e Madame não compreendiam muito bem o que queria dizer o
preceptor, mas mostraram-se de pleno acordo.

— Um senhor como o jovem marquês – continuou ele –
não deve secar o cérebro nesses vãos estudos. Se um dia
tiver necessidade de um sublime geômetra para fazer o levantamento de
suas terras, manda-la-á medir a dinheiro. Se quiser evidenciar a antigüidade
de sua nobreza, que remonta aos mais afastados tempos, mandará buscar
um beneditino. O mesmo acontece com todas as artes. Um jovem senhor de bom
nascimento não é nem pintor, nem músico, nem arquiteto,
nem escultor; mas faz florescerem todas as artes, animando-as com a sua munificência.
Mais vale sem dúvida protegê-las que as exercer; basta que o
senhor marquês tenha bom gosto; compete aos artistas trabalharem para
ele; eis por que há, muita razão em dizer-se que as pessoas
de qualidade (refiro-me às bastante ricas) sabem tudo sem nada ter
aprendido, pois, com o tempo, são capazes de julgar todas as coisas
que encomendam e pagam.

O amável ignorante tomou então a palavra e disse:

— Madame observou muito bem que o grande objetivo do homem é
triunfar na sociedade. Mas, falando com sinceridade, será com as ciências
que se obtém esse triunfo? Alguém já se lembrou de falar
sobre geometria em boa sociedade? Acaso se pergunta a um homem às direitas
que astro se ergue hoje com o sol? Quem é que se informa, numa ceia,
se Clódio, o cabeludo, atravessou o Reno?

— Certamente que não! – exclamou a marquesa de La Jeannotière,
cujos encantos a tinham às vezes introduzido na alta sociedade. –
E o senhor meu filho não deve abafar seu engenho no estudo de toda
essa trapalheira. Mas, afinal, que lhe mandaremos ensinar? Pois é bom
que um jovem fidalgo possa brilhar de vez em quando, como diz o senhor meu
marido. Ouvi um padre dizer que a mais agradável das ciências
era uma coisa de que esqueci o nome, mas que começa por b.

— Por b, Madame? Não será botânica?
— Não, não era de botânica que ele me falava; começava
por b e acabava por ões.

— Ah! compreendo, Madame; trata-se da ciência dos brasões:
é na verdade uma ciência muito profunda; mas passou de moda depois
que se perdeu o costume de mandar pintar as armas nas portas da carruagem
era o que poderia haver de mais útil em um Estado devidamente civilizado.
Aliás, esses estudos não findariam nunca; não há
hoje barbeiro que não tenha o seu escudo; e Madame bem sabe que o que
se torna comum é pouco apreciado.

Afinal, depois de examinadas as vantagens e desvantagens das ciências,
ficou resolvido que o marquês aprenderia a dançar.

A natureza, que faz tudo, dera-lhe um talento que logo se desenvolveu com
prodigioso sucesso: o de cantar agradavelmente vaudevilles. As graças
da mocidade, aliadas a esse dote superior, fizeram-no considerar como um dos
jovens mais esperançosos da cidade. Foi amado das mulheres e, tendo
a cabeça cheia de canções, fê-las aos centos para
as suas namoradas. Pilhava Bacchus et l’Amour em um vaudeulle, la nuit
et le jour em outro, les charmes et les alarmes em um terceiro. Mas, como
sempre havia em seus versos alguns pés de mais ou de menos do que cumpria,
mandava-os corrigir a vinte luises por produção: e foi posto
na Année littéraire, ao lado dos La Fare, dos Chaulieu, dos
Hamilton, dos Sarrasin e dos Voiture.

A senhora marquesa julgou então ser mãe de um bel esprit,
e deu para oferecer jantares a todos, os beaux esprit de Paris. Isso logo
virou a cabeça do jovem, que adquiriu a arte de falar sem entender-se
e aperfeiçoou-se no hábito de não prestar para coisa
alguma. O pai, quando o viu tão eloqüente, sentiu não lhe
ter mandado ensinar latim, pois nesse caso lhe compraria um alto cargo na
justiça. A mãe, que tinha sentimentos mais nobres, encarregou-se
de solicitar um regimento para o filho; e este, enquanto o regimento não
vinha, dedicava-se ao amor. O amor é às vezes mais caro que
um regimento. Gastou muitíssimo, enquanto seus pais tampouco olhavam
a despesas, para viverem como grão-senhores.

Ora, tinham eles como vizinha uma viúva moça e nobre, que
resolveu salvar a fortuna do senhor e da senhora de La Jeannotière,
apropriando-se dela e desposando o jovem marquês. Soube atraí-lo
à sua casa, deixou-se amar, deu-lhe a entender que não lhe era
indiferente, governou-o pouco a pouco, encantou-o, subjugou-o sem dificuldade.
Ora o elogiava, ora lhe dava conselhos; tornou-se a melhor amiga do pai e
da mãe. Uma velha vizinha propõe o casamento; os pais, deslumbrados
com o esplendor de tal aliança, aceitaram com alegria a proposta: deram
o seu filho único à sua amiga íntima. O jovem marquês
ia desposar uma mulher a quem adorava e por quem era amado; os amigos da casa
o felicitavam: iam redigir as cláusulas, enquanto se trabalhava no
enxoval e no epitalâmio.

Estava ele, certa manhã, aos joelhos da encantadora esposa que o
amor, a estima e a amizade lhe iam dar; gozavam, num terno e animado colóquio,
as primícias de sua ventura; arquitetavam uma existência deliciosa,
quando entra alarmado um camareiro da senhora mãe.

— Diferentes notícias lhes trago – assim os interrompe
ele, – os meirinhos despejam a casa de Monsieur e de Madame; tudo está
sendo seqüestrado pelos credores: fala-se até de prisão,
e eu vou tomar providências para que me paguem os meus ordenados.

— Espera! Que coisa me disse? Que história é essa?!
– exclama o marquês.

— Anda, vai já punir esses malandros! – Incita-o a viúva.

Corre, chega à casa, o pai já estava preso, todos os criados
haviam fugido cada um para o seu lado, carregando com tudo o que podiam. A
mãe achava-se sozinha, sem amparo, sem consolação, afogada
em pranto: nada mais lhe restava que a lembrança da sua fortuna, da
sua beleza, das suas faltas e das suas loucas despesas.

O filho, depois de haver longamente chorado com a mãe, afinal lhe
disse:
— Não desesperemos, a viúva me ama loucamente, é
ainda mais generosa que rica, respondo por ela; espere, que vou buscá-la.

Volta, pois, à casa da noiva: encontra-a em colóquio com um
jovem oficial muito amável.

O marquês, pasmado, com a cólera no coração,
foi procurar o antigo preceptor, derramou-lhe no peito as suas dores, e lhe
pediu conselhos. Este lhe propõe fazer-se, como ele, preceptor de meninos.
“Ai de mim! nada sei; o senhor não me ensinou coisa alguma, e
foi o primeiro fator da minha desgraça”. E rompia em soluços,
enquanto assim lhe falava. “Escreva romances” – disse um
bel esprit que se achava presente.

— “É um ótimo recurso em Paris.”
O jovem, mais desesperado do que nunca, correu ao confessor de sua mãe.
Era um teatino muito acreditado, que só dirigia senhoras da alta sociedade.
Logo que avistou Jeannot, precipitou-se para este:
— Meu Deus, senhor marquês! Onde esta a sua carruagem? Como passa
a respeitável senhora marquesa sua mãe?
O pobre infeliz contou-lhe o desastre da família. A medida que ele
se explicava, o teatino assumia um ar mais grave, mais alheado, mais imponente:

— Meu filho, eis aonde Deus queria chegar: as riquezas só servem
para corromper o coração. Com que então Deus concedeu
à sua mãe a graça de reduzi-la à mendicidade?

— Sim, meu padre.

— Tanto melhor: agora ela pode ter certeza da sua .salvação.

— Mas, meu padre, enquanto se espera, não haveria meio de obter
algum socorro neste mundo?
— Adeus, meu filho; está uma dama da Corte à minha espera.

O marquês esteve a ponto de desmaiar; seus amigos trataram-no mais
ou menos da mesma maneira e, numa só tarde, aprendeu melhor a conhecer
o mundo do que em todo o resto da sua vida.

Estando assim acabrunhado pelo desespero, viu que se aproximava um carro
antigo, espécie de aranha coberta, com cortinas de couro, seguido de
quatro enormes carroças completamente carregadas. Achava-se no carro
um homem grosseiramente vestido; tinha um rosto redondo e fresco, que respirava
brandura e alegria. Sua mulherzinha, morena, e também rusticamente
agradável, era sacudida a seu lado. O veículo não corria
como a carruagem de um peralvilho. O viajante tem tempo de sobra para contemplar
o marquês imóvel, abismado na dor.

— Meu Deus! – exclamou ele. – Creio que é Jeannot.

A este nome, o marquês ergue os olhos, o carro detém-se.

— É Jeannot mesmo. É Jeannot!
E o homenzinho rechonchudo corre, de um salto, a abraçar o seu antigo
camarada. Jeannot reconhece Colin;. a vergonha e as lágrimas cobrem-lhe
as faces.

— Tu me abandonaste – diz Colin, – mas, por mais fino
que estejas agora, eu sempre te estimarei.

Jeannot, confuso e enternecido, contou-lhe, entre soluços, uma parte
da sua história.

— Anda comigo à hospedaria para contar-me o resto – lhe
diz Colin, – abraça a minha mulherzinha e vamos jantar juntos.

Seguem os três a pé, seguidos da bagagem.

— Que trazes ai? Tudo isso é teu?
— Meu e de minha mulher. Venho do interior; dirijo uma boa manufatura
de ferro estanhado e cobre. Desposei a filha de um rico negociante de utensílios
necessários aos grandes e aos pequenos; trabalhamos muito; Deus nos
ajuda: não mudamos de condição, estamos bem, e ajudaremos
ao nosso amigo Jeannot. Não sejas mais; marquês; as grandezas
deste mundo não valem um bom amigo. Voltarás comigo à
nossa terra, aprenderás meu ofício; não é muito
dificultoso; eu te darei sociedade, e viveremos alegremente no pedaço
de terra onde nascemos.

Jeannot, desconcertado, sentia-se dividido entre a dor e a alegria, a ternura
e a vergonha; e dizia baixinho: “Todos os meus amigos da alta me traíram,
apenas Colin, a quem desprezei, vem em meu socorro. Que lição!”
A magnanimidade de Colin animou as generosas inclinações de
Jeannot, que a sociedade ainda não destruíra. Sentiu que não
podia abandonar o pai e a mãe. “Cuidaremos de tua mãe
– disse Colin – e, quanto ao velho, que está preso, eu
cá entendo um pouco de negócios; seus credores, vendo que ele
não tem mais nada, hão de contentar-se com pouco; deixa a coisa
comigo”. Tanto fez Colin, que tirou o pai da prisão. Jeannot
voltou para a sua terra, com os pais, que retomaram a sua primeira profissão.
Jeannot desposou uma irmã de Colin, a qual, tendo e mesmo gênio
do irmão, o fez muito feliz.

E Jeannot pai, e Jeanotte mãe, e Jeannot filho viram que a ventura
não está na vaidade.

POT-POURRI

§ I

O pai de Polichinelo foi Brioché, não seu pai propriamente
dito, mas pai espiritual. O pai de Brioché era Guillot Gorju, que foi
filho de Gilles, que foi filho de Gros-René, que era descendente do
rei dos bobos e da tia boba; é assim que o escreve o autor de “L’almanach
de la Foire”. O sr. Parfait, escritor não menos digno de fé,
dá por pai, a Brioché, Tabarin; a Tabarin, Gros-Guillaume; a
Gros-Guillaume, Jean-Boudin; mas remontando sempre ao rei dos bobos. Se se
contradizem os dois historiadores, isto constitui uma prova da verdade para
o padre Daniel, que os concilia com maravilhosa sagacidade, destruindo assim
o pirronismo da História.

§ II

Quando eu terminava o parágrafo primeiro dos cadernos de Merri Hissing,
no meu gabinete, que dá para a rua de Saint-Antoine vi passar os síndicos
dos apoticários, que iam apreender drogas e verdete que os jesuítas
da rua contrabandeavam. O meu vizinho sr. Husson, que é uma sólida
cabeça, veio ter comigo e disse-me:
— O senhor ri, meu amigo, de ver os jesuítas vilipendiados; e
se alegra com saber que são acusados de um parricídio em Portugal
e de uma rebelião no Paraguai. O clamor público que contra eles
se eleva na França, o ódio que lhes votam, os repetidos opróbrios
de que são cobertos, parece tudo isso um consolo para o senhor; mas
saiba que, se forem condenados, como todas as pessoas honradas o desejam,
o senhor nada ganhará com isso: será esmagado pela facção
dos jansenistas. São entusiastas ferozes, almas de bronze, piores que
os presbiterianos que derrubaram o trono de Carlos I. Considere que os fanáticos
são mais perigosos do que os velhacos. Jamais se convence um energúmeno;
a um velhaco, sim. Discuti muito tempo com o sr. Husson; disse-lhe afinal:

— Console-se, senhor, talvez venham a ser os jansenistas algum dia tão
hábeis como os jesuítas.

Tratei de abrandá-lo; mas é uma cabeça dura, incapaz
de mudar de idéia.

§ III

Brioché, vendo que Polichinelo era duplamente corcunda, quis ensinar-lhe
a ler e a escrever. Ao cabo de dois anos, Polichinelo sabia soletrar passavelmente,
mas jamais conseguiu servir-se de uma pena. Um dos narradores da sua vida
observa que ele tentou um dia escrever o próprio nome, mas ninguém
pôde lê-lo.

Brioché era muito pobre; sua mulher e ele não tinham meios
para sustentar Polichinelo, e muito menos para fazê-lo aprender um ofício.
Polichinelo lhes disse:
— Eu sou corcunda, e tenho memória; três ou quatro de meus
amigos e eu podemos estabelecer-nos com fantoches; ganharei algum dinheiro:
os homens sempre gostaram de fantoches; algumas vezes dá prejuízo
apresentar novos fantoches, mas também há margem para grandes
lucros.

O sr. e a sra. Brioché admiraram o bom senso do jovem; constituiu-se
a companhia, que foi armar seu tablado num burgo suíço, na estrada
de Appenzell a Milão.

Fora justamente nessa aldeia que os charlatães de Orvieto haviam
fundado a loja do seu orvietão. Aperceberam-se que insensivelmente
a canalha ia para os fantoches e que eles vendiam agora metade menos de sabonetes
e ungüentos para queimaduras. Acusaram Polichinelo de vários desmandos
e apresentaram queixa ao magistrado. Dizia a acusação que se
tratava de um bêbedo perigoso; que um dia dera cem pontapés no
ventre, em pleno mercado, a camponeses que vendiam nêsperas.

Alegavam também que havia molestado um vendedor de galos da Índia;
acusaram-no, enfim, de feiticeiro. O Sr. Parfait, na sua História do
Teatro, pretende que ele foi engolido por um sapo; mas o padre Daniel pensa,
ou pelo menos fala, de outro modo. Não se sabe o que foi feito de Brioché
Como era apenas pai putativo de Polichinelo, o historiador não julgou
a propósito dar-nos notícias suas

§ IV

Assegurava o falecido senhor de Marsais que o maior dos abusos era a venalidade
dos cargos. É uma grande desgraça para o Estado – dizia
ele – que um homem de mérito, sem fortuna, não possa chegar
a nada. Quantos talentos enterrados, e quantos néscios em evidência!
Que detestável política haver extinguido a emulação“
O senhor de Marsais pleiteava sem querer, a sua própria causa; vira-se
reduzido a ensinar latim, quando teria prestado grandes serviços ao
Estado se lhe houvessem dado um cargo público. Conheço rabiscadores
de papel que teriam enriquecido uma província se estivessem no lugar
daqueles que a roubaram. Mas, para obter esse lugar, é preciso ser
filho de um rico que nos deixe com que comprar um cargo, um ofício,
e o que se chama uma dignidade.

Assegurava Marsais que um Montaigne, um Charron, um Descartes, um Gassendi,
um Bayle, jamais teriam condenado às galés estudantes que defendessem
teses contrárias à filosofia de Aristóteles, nem teriam
mandado queimar o cura Urbano Grandier, o cura Ganfredi, e que não
teriam etc., etc.

§ V

Não faz muito que o cavaleiro Roginante, gentil-homem ferrarense,
querendo constituir uma coleção de quadros da escola flamenga,
foi adquiri-los em Amsterdã. Negociou um belo Cristo com o senhor Vandergru.

— Será possível – disse o ferrarense ao batavo
– que o senhor, que não é cristão (pois que é
holandês), tenha em casa um Jesus?
— Sou cristão e – católico – respondeu o sr.
Vandergru sem se zangar; e vendeu o seu quadro bastante caro.

— Acredita então que Jesus Cristo é Deus? – perguntou-lhe
Roginante.

— Naturalmente – retrucou Vandergru.

Um outro amador, que residia à porta contígua, era sociniano.
Vendeu-lhe uma Sagrada Família.

— Que pensa do – filho? – indagou o ferrarense.

— Penso – respondeu o outro – que foi a criatura mais
perfeita que Deus pôs no mundo.

Dali, dirigiu-se o ferrarense ao estabelecimento de Moisés Mansebo,
que apenas tinha belas paisagens. e nenhuma Sagrada Família. Roginante
perguntou-lhe por que não se encontravam tais assuntos em sua casa.

— É porque nós execramos essa família –
disse ele.

Roginante passou por casa de um famoso anabatista, que tinha os mais belos
filhos do mundo. Perguntou-lhes em que igreja haviam sido batizados.

— Ora, senhor! Nós, graças a Deus, ainda não
somos batizados.

Ainda não chegara Roginante à metade da rua e já tinha
visto uma dúzia de seitas inteiramente opostas umas às outras.
Disse-lhe então o sr. Sacrito, seu companheiro de viagem:
— Escapemo-nos depressa, que chegou a hora da Bolsa: toda essa gente
vai sem dúvida engalfinhar-se, segundo o antigo costume, pois todos
pensam de modo diverso; e o populacho dará cabo de nós, por
sermos súditos do papa.

Muito espantados ficaram quando viram todas aquelas excelentes criaturas
saírem de casa com os empregados, cumprimentar-se polidamente e dirigir-se
para a Bolsa. Naquele dia, contando os armênios e os jansenistas, havia
ao todo cinqüenta e três religiões no local. Negociaram
cerca de cinqüenta e três milhões, da maneira mais pacífica
do mundo, e o ferrarense voltou à sua terra, onde encontrou mais Agnus
Dei do que letras de câmbio.

Vê-se todos os dias a mesma cena em Londres, em Hamburgo, em Danzig,
na própria Veneza, etc. Mas o que vi de mais edificante foi em Constantinopla.

Há cinqüenta anos tive a honra de assistir à instalação
de um patriarca grego, pelo sultão Achmet III, a quem Deus haja. Entregou
ele ao sacerdote cristão o anel e o báculo. Realizou-se em seguida
uma procissão de cristãos na rua Cleóbulo; dois janízaros
marchavam à frente da procissão. Tive o prazer de comungar publicamente
na igreja patriarcal, e só dependeu da minha vontade obter um canonicato.

— Confesso que, no meu regresso a Marselha, fiquei muito espantado
de não encontrar ali uma mesquita. Externei minha surpresa ao senhor
intendente e ao senhor bispo. Disse-lhes que isso era muito incivil e que,
se os cristãos tinham Igrejas entre os muçulmanos, podia-se
pelo menos fazer aos turcos a galanteria de algumas capelas. Prometeram-me
ambos escrever para as Cortes; mas o assunto ficou nesse pé, devido
à constituição Unigenitus.

Ó meus irmãos jesuítas, não fostes tolerantes
e não o são para convosco. Consolai-vos; outros por sua vez,
Se tornarão perseguidores, e serão, por sua vez, execrados.

§ VI

Há poucos dias, contava eu essas coisas ao senhor de Boucacous, languedoquiano
exaltado e huguenote zeloso.

— Está vendo?! – exclamou ele. – Tratam-nos então
em França como aos turcos: a eles recusam mesquitas e a nós
não concedem templos!
— Quanto às mesquitas – disse eu, – os turcos ainda
não as pediram; e aventuro-me a afirmar que obterão tantas quantas
quiserem, pois que são nossos bons aliados. Mas duvido muito que restabeleçam
os vossos templos, apesar de toda a polidez de que fazemos gala. A razão
disso é que os huguenotes são um tanto inimigos nossos.

— Inimigos vossos! – exclamou o senhor de Boucacous. –
Nós que somos os mais ardentes servidores do rei!
— É que sois demasiado ardentes, que fizestes nove guerras civis,
sem contar os massacres de Cévennes.

— Mas se fizemos guerras civis, é porque nos cozinhavam em
praça pública e afinal a gente se cansa de ser cozido, não
há paciência de santo que o agüente. Que nos deixem em paz,
e juro que seremos os mais fiéis dos súditos.

— É justamente o que fazem. Fecham os olhos, e vos permitem
especular à vontade, tendes liberdade suficiente.

— Linda liberdade! – exclamou o senhor de Boucacous. –
Mal nos reunimos quatro ou cinco mil, para cantar salmos em pleno campo, logo
chega um regimento de dragões, que nos faz voltar para casa. Isso lá
é vida? Isso é ser livre?
Não há nenhum país no mundo – retruquei –
onde a gente se possa reunir sem ordem do soberano; toda reunião em
bandos é contra a lei. Servi Deus à vossa moda em vossas próprias
casas, não atordoeis ninguém com urros a que chamais música.
Pensais que Deus há de ficar muito contente quando cantais os seus
mandamentos com a música de Desperta, ó bela adormecida, e quando
dizeis com os judeus, falando de um povo vizinho: “Feliz aquele que
pegar em teus filhos e der com eles nas pedras”? Será que Deus
quer absolutamente que arrebentem as cabeças das criancinhas? Será
isso humano? E, de resto, gostará Deus de maus versos e pior música?

O senhor de Boucacous interrompeu-me, Indagando se acaso valia mais o latim
de cozinha de nossos salmos.

— Certamente que não – respondi. – E acredito até
que haja um pouco de esterilidade de imaginação em só
rezarmos a Deus numa tradução bastante viciosa de velhos cânticos
de um povo a quem abominamos; somos todos judeus à hora das vésperas,
como somos todos pagãos na Ópera.

Só me desagrada que, por malícia do demônio, sejam as
Metamorfoses de Ovídio muito mais bem escritas e mais agradáveis
que os cânticos judeus; pois cumpre confessar que essa montanha de Sião,
e essas faces de basilisco, e essas colinas que saltam como carneiros, e todas
essas repetições fastidiosas, não valem nem a poesia
grega, nem a latina, nem a francesa. Por mais que faça o frio Racininho,
nunca esse filho desnaturado impedirá (profanamente falando) que o
seu pai seja melhor poeta que David.

Mas afinal constituímos a religião predominante em nossa terra;
na Inglaterra não vos permitem agrupamentos: per que haveis de exigir
essa liberdade em França? Fazei o que quiserdes em casa, e tenho a
palavra do senhor governador e do senhor intendente de que, se vos comportardes
bem, vos deixarão em paz; só a imprudência tem ocasionado,
e ocasionará as perseguições. Acho mau que os vossos
casamentos, a situação de vossos filhos, o direito de herança,
sofram o mínimo obstáculo. Não é justo que vos
sangrem e vos purguem porque os vossos pais estiveram doentes. Mas que quereis?
Este mundo é um grande Bedlam onde loucos encarceram outros loucos.

Assim falávamos, o senhor de Boucacous e eu, quando vimos passar
precipitadamente Jean-Jacques Rousseau.

— Ouça! Aonde vai tão depressa, senhor Jean-Jacques?

— Vou fugindo, pois Joly de Fleury afirmou, num requisitório,
que eu pregava contra a intolerância e contra a existência da
religião cristã.

— Ele quis dizer evidência – respondi-lhe. – Não
nos queimemos por uma palavra.

— Ah, meu Deus! – tornou Jean-Jacques, – bem queimado
estou; por toda parte lançam ao fogo o meu livro. Saio de Paris como
o senhor D’Assouci de Montpellier, de medo que queimem a minha pessoa.

— Isso acontecia no tempo de Anne du Bourg e de Michel Servet, mas
agora já se é mais humano. Que espécie de livro é
esse que queimaram?
— Eu educava, à minha maneira, um rapazinho, em quatro tomos.
Sentia que talvez me tornasse enfadonho; e resolvi, para arejar a matéria,
incluir habilmente umas cinqüenta páginas em favor do teísmo.
Julguei que, dizendo injúrias aos filósofos, o meu teísmo
passaria, mas estava muito enganado.

— E que quer dizer teísmo?
— É a adoração de um Deus, enquanto não
estou melhor informado.

— Ah! se este é o seu único crime, não se aflija.
Mas por que injuriar os filósofos?
— Fiz mal – confessou ele. –
— Mas como se tornou teísta, senhor Jean-Jacques? Que cerimônia
é preciso para isso?
— Nenhuma. Nasci protestante, cortei tudo o que os protestantes condenam
na religião romana. Em seguida, cortei tudo o que as outras religiões
condenam no protestantismo. Só me restou Deus. Adorei-o. E Joly de
Fleury apresentou um requisitório contra mim.

Falamos então a fundo do teísmo com Jean-Jacques, o qual nos
informou que havia trezentos mil teistas em Londres, e cerca de cinqüenta
mil apenas em Paris, pois os parisienses nunca chegam a nada senão
muito depois dos ingleses; haja vista a inoculação, a gravitação,
a semeadeira, etc., etc. Acrescentou que o norte da Alemanha formigava de
teístas e de gente que se batia bem.

O senhor de Boucacous ouviu atentamente e prometeu fazer-se teísta.
Quanto a mim, fiquei firme. Não sei no entanto se queimarão
este escrito, como uma obra de Jean-Jacques, ou uma pastoral de bispo; mas
um mal que nos ameaça nem sempre me impede de ser sensível aos
males de outrem; e, como tenho bom coração, lamentei as atribulações
de Jean Jacques.

§ VII

Reduzidos à miséria, que era o seu estado natural, os companheiros
de Polichinelo associaram-se com alguns ciganos, saindo a percorrer as aldeias.
Chegaram a uma cidadezinha e alojaram-se num quarto andar, onde começaram
a fabricar drogas, o que os ajudou a subsistir, por algum tempo Chegaram até
a curar da sarna o fraldiqueiro de uma dama de consideração;
os vizinhos clamaram que era um milagre; mas, apesar de toda a sua habilidade,
o bando não fez fortuna. Lamentavam-se de sua obscuridade e miséria,
quando ouviram um dia um ruído acima das suas cabeças, como
o de um carrinho de mão que estivesse a rodar. Subiram ao quinto andar
e ali encontraram um homem que fabricava fantoches; chamava-se Bienfait; e
tinha justamente o talento necessário à sua arte.

Não se entendia patavina do que ele dizia, mas tinha uma algaravia
bastante passável; e não faziam mal os seus bonecos. Um companheiro,
igualmente versado em algaravia, assim lhe falou:
— Cremos que estais destinado a ressuscitar os nossos títeres;
pois lemos em Nostradamus estas palavras textuais: nelo chi li porata cisus
res fait en bi, as quais, tomadas às avessas, significam evidentemente:
Bienfait ressuscitará Polichinelo. O nosso foi engolido por um sapo,
mas encontramos o seu chapéu, a sua bossa e a sua gaita. Vós
fornecereis o fio de arame. Creio aliás que vós será
fácil lhe fabricardes um bigode semelhante ao que ele possuía;
e, quando estivermos associados, é de esperar considerável lucro.
Elevaremos Polichinelo à custa de Nostradamus, e Nostradamus à
custa de Polichinelo.

O senhor Bienfait aceitou a proposta. Perguntaram-lhe o que queria pelo
seu trabalho.

— Eu quero – disse ele – muitas honrarias e muito dinheiro.

— Não temos nada disso – respondeu o orador do bando,
mas, com o tempo, tudo se consegue.

O senhor Bienfait juntou-se, pois, com os ciganos; e foram todos a Milão,
inaugurar o seu teatro, sob a proteção da senhora Carminetta.
Anunciaram que o mesmo Polichinelo que fora engolido por um sapo da aldeia
do cantão de Appenzell, reapareceria no teatro de Milão e dançaria
com a senhora Gigogne. Por mais que protestassem os vendedores de electuário,
o senhor Bienfait, que também possuía o segredo da sua fabricação,
sustentou que o seu era o melhor; vendeu muito às mulheres, que eram
loucas por Polichinelo, e ficou tão rico que se tornou diretor da companhia.

Logo que obteve o que queria (e o que todos querem), isto é, honrarias
e bens, mostrou-se muito ingrato com a senhora Carminetta. Comprou uma bela
casa fronteira à da sua benfeitora e descobriu o segredo de fazer que
seus sócios a pagassem. Não mais o viram cortejar a senhora
Carminetta; pelo contrário, fez questão que esta fosse almoçar
em casa dele, e, no dia em que ela se dignou comparecer, mandou fechar-lhe
a porta no nariz, etc.

§ VIII

Como nada houvesse compreendido do precedente capítulo de Merri Hissing,
fui à casa de meu amigo sr. Husson, para solicitar uma explicação.
Disse-me que era uma profunda alegoria, a respeito do padre La Valette, negociante
falido da América. Mas que fazia muito que não se preocupava
com essas tolices, nunca ia aos fantoches e que naquela noite representavam
Polyeucte, a que ele queria assistir. Acompanhei-o ao teatro.

Durante o primeiro ato, o sr. Husson não parava de sacudir a cabeça.
Perguntei-lhe, no intervalo, por que sua cabeça sacudia tanto.

— Confesso – disse ele – que estou indignado com esse
tolo Polyeucte e com esse impudente Nearco. Que me diria de um genro do senhor
governador de Paris, que fosse huguenote e que, acompanhando o sogro a Notre-Dame
no dia da Páscoa, espatifasse o cibório e o cálice e
se pusesse a dar pontapés na barriga do arcebispo e dos cônegos?
Estaria justificado se nos dissesse que somos uns idólatras? E que
isso ele o soubera por intermédio do senhor Lubolier, pregador de Amsterdã,
e do senhor Monfié, compilador de Berlim, autor da Biblioteca Germânica,
o qual por sua vez o soubera pelo pregador Urieju? Eis a fiel imagem do procedimento
de Polyeucte. Acaso pode a gente interessar-se por esse vulgar fanático,
seduzido pelo fanático Nearco?
Assim me dizia ele amigavelmente a sua opinião, nos entreatos. Pôs-se
a rir quando viu Polyeucte ceder a mulher ao rival, e achou-a um pouco burguesa
quando ela diz ao amante que vai para o quarto, em vez de ir com ele à
igreja;.

Adieu, trop vertueux objet, et top charmant;
Adieu, trop généreux et trop parfait amant;
Je vais seule en ma chambre enfermer mes regrets.

Mas admirou a cena em que ela implora ao amante o perdão do marido.

— Há aqui – disse ele – um governador da Armênia
que é mesmo o mais covarde, o mais baixo dos homens; esse, o pai de
Paulina, chega a confessar que tem os sentimentos de um patife:

Polyeucte est ici l’appui de ma famille,
Mais, si par son trépas l’autre épousait ma fille,
J’acquerrais bien là de plus puissants appuis,
Qui me mettraient plus haut cent fois que je ne suis.

Um procurador no Châtelet não poderia pensar nem exprimir-se
de outro modo. Há boas almas que engolem tudo isso, eu não sou
desses. Se tais misérias podem entrar numa tragédia do país
das Gálias, cumpre queimar o Édipo dos Gregos.

O sr. Husson é um homem rude. Fiz o possível para abrandá-lo;
mas nada consegui. Ele persistiu na sua idéia, e eu na minha.

§ IX

Deixamos o senhor Bienfait muito rico e muito insolente. Tanto fez, que
foi reconhecido como empreiteiro de grande número de fantoches. Logo
que se viu investido dessa dignidade, passeou Polichinelo por todas as cidades,
mandando afixar que todos teriam de chamar Senhor ao fantoche, sem o que,
este não representaria. Vem dai que, em todos os espetáculos
de fantoches, ele só responde ao comparsa quando o comparsa o chama
de senhor Polichinelo. Pouco a pouco se tornou Polichinelo tão importante
que não deram mais nenhum espetáculo sem lhe pagar uma retribuição,
como as óperas da província pagam uma à Opera de Paris.

Um dia o porteiro e varredor do teatro foi despedido e revoltou-se contra
Bienfait, abrindo outro teatro de fantoches, que desacreditaram todas as danças
da senhora Gigogne e todos os truques de Bienfait. Cortou mais de cinqüenta
ingredientes que entravam no electuário, compôs o seu com cinco
ou seis drogas e, vendendo-o muito mais barato, arrebatou uma infinidade de
fregueses a Bienfait; o que suscitou um furioso processo, e houve tremendas
brigas, durante muito tempo à porta do teatro, na feira.

§ X

O sr. Husson falava-me ontem de suas viagens. Com efeito, passou vários
anos no Levante, foi à Pérsia, demorou-se nas Índias
e viu toda a Europa.

— Observei – dizia-me ele – que há um número
prodigioso de judeus que esperam o Messias e que prefeririam deixar-se empalar
a confessar que ele já veio. Vi milhares de turcos persuadidos de que
Maomé escondia metade da lua na manga. O populacho, de um extremo a
outro da terra, acredita piamente nas coisas mais absurdas. No entanto, se
um filósofo tiver de dividir um escudo com o mais imbecil desses infelizes
em que a razão humana se acha tão horrivelmente obscurecida,
é certo que o imbecil levará a melhor. Como é que toupeiras
tão cegas quanto ao maior dos interesses, são uns verdadeiros
linces nos menores? Por que é que o mesmo judeu que nos esfola na sexta-feira
não roubaria um ceitil no sábado? Essa contradição
da espécie humana bem merece um detido exame.

— Não será – disse eu – porque os homens
são supersticiosos por costume e velhacos por instinto
— Vou pensar nisso – respondeu-me o sr. Husson, – essa idéia
me parece bastante apreciável.

§ XI

Depois da aventura do porteiro, Polichinelo passou por muitas desgraças.
Os ingleses, que são raciocinadores e sombrios, preferiram-lhe Shakespeare;
mas alhures as suas farsas têm estado muito em voga; e, não fora
a ópera-bufa, o seu teatro seria o primeiro dos teatros. Houve muitas
querelas com Scaramouche e Arlequim, e ainda não se sabe quem ganhará.
Mas…

§ XII

— Mas, meu caro senhor – dizia eu, – como se pode ser
ao mesmo tempo tão bárbaro e tão divertido? Como é
que na história de um povo pode haver ao mesmo tempo S. Bartolomeu
e os contos de La Fontaine, etc,? Será efeito do clima? Será
efeito das leis?
— O gênero humano – respondeu o sr. Husson – é
capaz de tudo. Nero chorou quando teve de assinar a sentença de morte
de um criminoso, representou farsas, e assassinou a mãe. Os macacos
fazem coisas engraçadíssimas e esganam os filhos. Nada mais
suave, mais tímido que uma galga, mas estraçalha uma lebre e
mergulha o longo focinho no sangue da vítima.

— O senhor deveria – disse-lhe eu – escrever um belo tratado
onde desenvolvesse todas essas contradições.

— Esse tratado já está pronto – respondeu-me.
– E só olharmos para um catavento: gira, ora ao suave bafejo
do Zéfiro, ora ao sopro violento do aquilão: eis o homem.

§ XIII

Nada pode ser por vezes mais conveniente do que amar a uma prima. Pode-se
também amar a própria sobrinha, mas custa dezoito mil libras,
pagáveis em Roma, para desposar uma prima, e oitenta mil francos para
dormir com a sobrinha em legítimo matrimônio.

Calculando quarenta casamentos por ano de tios com sobrinhas e cem entre
primos, eis aí seis milhões e oitocentas mil libras em sacramentos
que saem anualmente do reino. Acrescente-se a isto cerca de seiscentos mil
francos para o que se chama as anatas das terras de França, que o rei
de França dá a franceses, em benefícios; juntem-se ainda
algumas despesas miúdas; são cerca de oito milhões e
quatrocentas mil libras que damos liberalmente ao Santo Padre por ano. Talvez
exageremos um pouco; mas convenhamos que, se tivermos muitas primas e sobrinhas
bonitas, e se a mortalidade se coloca entre os beneficiários, a soma
pode chegar ao dobro. Seria um pesado fardo, quando temos de construir navios,
pagar exércitos e rendeiros.

Espanta-me que, entre a enorme quantidade de livros, cujos autores vêm
governando há vinte anos o Estado, em nenhuma se tenha pensado em sanar
tais abusos. Pedi a um doutor da Sorbonne meu amigo que me dissesse em que
passagem das Escrituras se encontra que a França deva pagar a Roma
a supradita quantia: nunca a pode encontrar. Falei a um jesuíta: respondeu-me
que tal imposto fora lançado por S. Pedro sobre as Gálias, logo
no primeiro ano em que foi a Roma; e como eu duvidava que S. Pedro tivesse
feito tal viagem, o jesuíta convenceu-me, dizendo que ainda se vêem
em Roma as chaves do Paraíso que ele carregava sempre à cinta.
“É verdade – disse-me ele – que nenhum autor canônico
fala da tal viagem desse Simão Barjonas; mas temos uma bela carta dele,
datada de Babilônia: ora, certamente Babilônia quer dizer Roma;
deveis, pois, dinheiro ao Papa, quando casais com as vossas primas.”
Confesso que fiquei impressionado com a força desse argumento.

§ XIV

Tenho um velho parente que serviu o rei durante cinqüenta e dois anos.
Retirou-se para a alta Alsácia, onde possui uma pequena terra que cultiva,
na diocese de Poventru. Quis um dia dar a última lavra a seu campo;
a estação ia avançada, o serviço urgia. O. empregados
recusaram-se, dando como motivo ser aquele o dia de Santa Bárbara,
a santa mais festejada em Poventru.

— Mas meus amigos – observou-lhes meu parente. – já
estivestes na missa em honra de Bárbara, destes a Bárbara o
que lhe pertence, dai-me a mim o que me deveis: cultivai meu campo em vez
de ir à taverna; Santa Bárbara ordena acaso que a gente se embriague
para lhe prestar honras e que me falte trigo este ano?
— Senhor – disse-lhe o capataz, – bem sabeis que perderia
minh’alma se trabalhasse num dia santo; Santa Bárbara é
a maior santa do Paraíso; ela gravou o sinal da cruz em uma coluna
de mármore, com a ponta do dedo; e, com o mesmo dedo e com o mesmo
sinal, fez cair todos os dentes a um cachorro que lhe mordera as nádegas:
não trabalharei no dia de Santa Bárbara.

Meu parente mandou procurar trabalhadores luteranos, e seu campo foi cultivado.
O bispo de Poventru excomungou-o. Meu parente apelou do abuso; .0 processo
ainda não foi julgado. Ninguém por certo está mais persuadido
de que o meu parente de que cumpre venerar os santos, mas acha também
que é preciso cultivar a terra.

Suponho que haja em França cerca de cinco milhões de operários,
simples trabalhadores ou artesãos, que ganham cada um, em média,
vinte “sous” por dia, que são devotamente forçados
a nada ganhar durante trinta dias do ano, não contando os domingos;
isso importa em cento e cinqüenta milhões a menos na circulação,
e cento e cinqüenta milhões a menos em mão de obra. Que
prodigiosa superioridade não devem ter sobre nós os reinos vizinhos,
que não possuem nem Santa Bárbara nem arcebispo de Poventru!
Respondiam a esta objeção que as tabernas abertas nos dias santos
dão muito lucro. Meu parente concordava, mas pretendia que era uma
leve indenização e que, por outro lado, se se pode trabalhar
após a missa, pode-se muito bem ir à taberna depois do trabalho.
Sustenta que é um assunto puramente da alçada da policia, e
nada tem de episcopal; sustenta que vale mais lavrar do que embriagar-se.
Tenho muito medo de que ele perca o processo.»

§ XV

Faz alguns anos, viajando eu pela Borgonha, em companhia do sr. Evrard,
que todos vós conheceis, vimos um vasto palácio em construção.
Perguntei a que príncipe pertencia. Respondeu-me um pedreiro que pertencia
ao senhor abade de Citeaux; que a construção fora orçada
em um milhão e setecentas mil libras, mas que provavelmente custaria
muito mais.

Abençoei a Deus que pusera seu servidor em condições
de erguer tão belo monumento e de espalhar tanto dinheiro pelo país.

— Está brincando – disse o senhor Evrard. – Não
é abominável que a ociosidade seja recompensada com duzentas
e cinqüenta mil libras de renda, e que a abnegação de um
pobre cura de campanha seja punida com uma côngrua de cem escudos! Não
é essa desigualdade a coisa mais injusta e odiosa do mundo? Que sucederá
ao Estado quando um monge for alojado num palácio de dois milhões?
Vinte famílias de pobres oficiais, que compartilhassem desses dois
milhões, teriam cada qual uma fortuna decente e dariam ao rei novos
oficiais. Os monges, que são hoje súditos inúteis de
um dos seus, por eles eleito, se tornariam membros do Estado, ao passo que
não são mais do que cancros que o corroem.

— O senhor vai muito longe e muito depressa – respondi eu, –
tenha paciência: o que me diz acontecerá certamente daqui a duzentos
ou trezentos anos.

— É precisamente porque só acontecerá dentro
de dois ou três séculos, que eu perco toda paciência; estou
cansado de todos os abusos a que assisto: parece-me que marcho nos deserto,
da Líbia, onde o nosso sangue é sugado por insetos quando os
leões não nos devoram. »
— Eu tinha – continuou ele – uma irmã bastante imbecil
para ser jansenista de boa-fé, e não por espírito partidário.
A bela aventura dos certificados de confissão a fez morrer de desespero.
Meu irmão tinha um processo que fora ganho em primeira instância
e de que dependia a sua fortuna. Não sei como aconteceu, mas os juizes
pararam de distribuir justiça, e o meu irmão ficou arruinado.
Tenho um velho tio crivado de ferimentos, que transportava seus móveis
e baixela de uma província a outra; comissários expertos apreenderam
tudo, sob o pretexto do não preenchimento de uma pequena formalidade;
meu tio não pode pagar os três vigésimos, e morreu na
prisão. »
O sr. Evrard contou-me aventuras desse gênero durante duas horas inteiras.

— Meu caro senhor Evrard, passei por muito piores que o senhor; os
homens são todos a mesma coisa, de um extremo a outro do mundo; supomos
que só existem abusos em nossa terra; somos os dois como Astolphe e
Joconde que pensavam a princípio que só as suas mulheres eram
infiéis; puseram-se a viajar, e encontraram por toda parte gente da
sua confraria.

— Sim – disse o Sr. Evrard, – mas tiveram o prazer de
devolver por toda parte o que generosamente lhes haviam emprestado em casa.

— Pois trate – disse-lhe eu – de ser apenas durante três
anos diretor de… ou de… ou de… e o senhor se vingará com usura

O sr. Evrard acreditou-me; é agora em França o homem que rouba
ao rei, ao Estado e aos particulares da maneira mais nobre, que tem o melhor
passadio e que julga mais convencidamente uma nova peça de teatro.

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