Certa Entidade em Busca de Outra

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Qorpo Santo

Comédia em dois atos.

Personagens

Velho Brás; homem sisudo

Ferrabrás; estudante, filho adotivo deste.

Micaela (Tagarela); mulher pouco comedida ou respeitável.

Satanás.

ATO PRIMEIRO

BRÁS – (entrando) Quem diabo está nesta casa!? (Muito admirado.)
Por um dos reposteiros vi aqui a Satanás com olhos adiante e pernas
atrás! Depois vi Judas Iscariotes, que andava a trotes! Por uma janela,
a Micaela abrindo a boca de gamela! Mas o meu rapaz, o meu Ferrabrás;
o meu contimpina, que de dia dorme, e de noite maquina! Oh! esse, nem por
sombras me quer aparecer, ou eu pude ver! Bárbaros! Assassinos! Traidores!
que tudo me roubam! Comem como burros; como cavalos; e depois querem que eu
trabalhe para sustenta-los! Infames! Poluem a honra das famílias! Divorciam
esposos para massacrá-los, e a seu gosto fruírem seus bens!
Escravizam em vez de libertarem… Hei de lançar por terra tão
indigno governo! Ou hão de os governantes e governados terem direitos
e deveres, ou nenhum governo durará no poder mais que treze meses!
A Nação, cujo espírito será como o de um só
homem, – os inutilizará, a todos embrutecendo ou a cabeça fendendo!
Ainda não estão satisfeitos estes entes (a que chamam Governo
porque ocupam as posições oficiais) com os milhões de
desgraças que têm ocasionado!? Quererão bilhões,
trilhões? Assassinos, traidores de sua Pátria! Até onde
chegará a vossa perversidade? E até que ponto subirá
também, ou a que extensão alcançará a vingança
do Supremo Arquiteto do Universo!? Tremei, malvados! A trombeta final não
tardará muito a tocar a voz: – Sejam queimados e reduzidos a cinzas!

(Aparece Satanás.)

BRÁS – Infeliz! Que fazes aquí?

SATANÁS – Sou Satanás, rei dos infernos, encarregado pelos
demônios para destruirmos os maus!

BRÁS – Oh! dai-me um abraço! Sois meu Irmão, meu amigo
e companheiro! Estais armado?

SATANÁS – Sim. Trago as armas – do Poder e da vingança!

BRÁS – Pois sabei que eu empunho a espada da justiça; o revólver
do direito e o punhal da razão! Combinam-se bem com as tuas. Triunfaremos!

SATANÁS – Sem dúvida. Com tais armas, jamais haverá
poder que nos possa vencer!

BRÁS – Muito bem! Muito bem! Venha de lá outro abraço!
(Torna a abraçá-lo.)

MICAELA – (entrando muito apressadamente) Oh! Vivam! Os Srs. juntos! Que
bela liga há de fazer Satanás com o velho Brás! Não
esperava ter o grande prazer de os encontrar tão amigos; e até
abraçados! Que lindos! Modificarão suas idéias!? Sem
dúvida grandes negócios políticos os hão juntado…
Deus os conserve para felicidade pública e individual. (Apontando para
o próprio peito.)

BRÁS – Seja bem-vinda, Sra. D. Micaela! Não sabe quanto aprecio
a sua presença (à parte:) e ainda mais a sua ausência
– cá para nós, a quem nenhum malévolo ouve. Que notícias
nos traz e o que há de novo pelo seu bairro? O que nos conta finalmente?

MICAELA – Estou muito escandalizada! Sendo eu a mulher menos faladora que
há, houve quem atrevesse-se à audácia de apelidar-me
Tagarela: e nesta mesma casa meus ouvidos ouviram suas tão duras palavras!

BRÁS – Sinto profundamente que tão grande infortúnio
pesasse tanto sobre a cabeça e o coração de minha muito
prezada… Sra D. Micaela Tagarela!

MICAELA – E o Sr. também me insulta!? Com efeito, não o esperava!

SATANÁS – Oh! eu não sabia de tal. Prometo que há de
ser vingada, que… a Sra. bem sabe! Eu não sou peco; e tenho à
minha disposição a força e poder necessários para
punir todos aqueles que ofendem a quem ninguém ofendeu. Tenho na minha
carteira as sentenças para todas as espécies de crimes, e fique
certa que ao abri-la, hei de puni-la! Isto é, hei de vingá-la!

MICAELA – Muito agradecida, Sr. Satanás! Muito obrigada; eu sou a
sua menor, porém mais afetuosa criada! Quer saber a única cousa
que me pesa? É que quando o Sr. defende ou castiga sempre lesa! Entretanto
sou de algum modo forçada a aceitar o seu tão importante oferecimento!

BRÁS – (chegando-se e apalpando os peitos de Tagarela) Que pomos
deliciosos!

MICAELA – Oh! Sr. Brás! Queira retirar-se da minha presença!
O Sr. bem sabe que eu não sou dessas mulheres mundanas, para com as
quais se procede de tal modo!

BRÁS – Desculpe-me, Sra. Tagarela! Pareceu-me – duas lindas laranjas;
é por isso que quis tocá-los.

MICAELA Pois não continue a ter desses enganos, porque podem ter
más conseqüências!

SATANÁS – Sim! Sim! (À parte:) Penso que são conhecidos
há muito! É talvez minha presença que os está
incomodando! Retiro-me portanto. (Vai saindo; Brás o agarra.)

BRÁS – Onde vai? Aonde vai!? Somos companheiros; e se não
chega para dois ao mesmo tempo, há de chegar passada uma hora!

SATANÁS – Não! Não! Sempre tive, tenho e terei medo de
mulheres. É para mim o objeto de mais perigo que o… Ah! não
digo! Mas fique certo que… sim!

MICAELA – Passem bem! Passem bem, meus Srs.! (Retirando-se com a frente
para ambos, e entrando em um dos quartos.)

BRÁS – (fazendo um cumprimento, e seguindo-a) Então já
vai? Não acha cedo? Eu… sim; mas… Vamos juntos! (Enfia-se pela
porta, atrás de Micaela.)

SATANÁS – (pondo as mãos) Céus! Meu Deus! Que imoralidade!
Deixar a minha presença, e a minha visita, e meterem-se em quarto…
em um quarto em presença… É audácia! É atrevimento!
Mas eu os hei de compor! (Puxa a porta e fecha por fora.) Agora hão
de sair, quando eu estiver cansado – de comer, de dormir, e de viver! Já
se vê pois que aí têm de morrer, se alguém os não
acudir, e secos como uma varinha de… como um palito! Porque já se
sabe: eu cá hei de durar pelo menos cem anos! Ou o que é mais
certo – não morro mais! (Metendo a chave na algibeira.) Cá vai!
Vou dar meu passeio, e não sei se cá voltarei mais! (Chegando-se
para perto da porta do quarto:) ~ minhas encomendas! ADeus, minhas venturas!
ADeus! ADeus! (Sai.)

ATO SEGUNDO

BRÁS – (batendo na porta; fazendo esforço para abrir; gritando)
Satanás! Satanás! Ó Diabo! trancaste-me a porta!? Judeu!
Que é isto, ó Diabo! Abre-me a porta, senão te engulo!
Não falas!? Querem ver que este demônio trancou-me a porta e
foi-se embora!? Tirano! Deixa estar que tu me pagas. Hei de perseguir-te até
os infernos!

MICAELA – Sr. Brás, não se aflija! Não se incomode!
Deixa estar que tudo se há de arranjar! Olhe! Veja! Pense! Medite,
e não fale!

BRÁS – (gritando) Como diabo não hei de falar e me incomOdar,
se o Satanás trancou-me a porta!? (Para Micaela:) Mulher, puxa dai,
que eu puxo daqui! Anda, mulher dos diabos! Faz força, cutia velha!
Parece-me que já não vales mais nada! Olha, e faz como eu!

MICAELA – Estou ajudando-o a bem morrer! Que mais quer!?

BRÁS – (tanto puxa, que cai no cenário com Micaela e a porta.
Levantando-se, para Micaela:) Quase quebrei a cuia! Mas ao menos não
fiquei enterrado! Que dizes? Levanta-te, não tenhas preguiça!

MICAELA – Não posso! Estou… ai! Penso que… (esfregando uma perna)
esta perna se não está quebrada, está esfolada!

BRÁS – Pois quem te mandou cair junto comigo!? Eu não te disse
que segurasse a porta!? Agora levanta-te; quer possa, quer não! (Pegando-lhe
em uma mão.) Vá! Arriba! Arriba!

MICAELA – Ai! ai! Não posso mais!

BRÁS – (atirando-a) Pois vai-te com a porta, e com todos os diabos
que saÍrem hoje dos infernos!

MICAELA – (levantando-se com muito custo) Ai! Além de ajudá-lo
a abrir a porta, e de cair com ele, mais esta crueldade! Atira comigo… esmaga-me…
(Endireita a cabeleira na cabeça.) Rasgou-me o vestido de que eu mais
gostava, com seus modos brutais! Quase pôs-me nua. Que crueldade! (Levantando-se,
compõe o xale.) Muito sofre quem ama!

FERRABRÁS – (entrando a manejar com uma bengale, vestido muito à
pelintra) Oh! hoje, sim! O dia foi grande! Grande! Muito grande para mim!
Vi a minha namorada da Rua dos Andradas! A minha amiguinha do Beco do Botabica!
A minha queridinha da Travessa da Candelária! Vi, vi, vi, que mais?
Ah! a minha prima do passeio noturno; e a minha tia avó (dando uma
grande gargalhada), e em visitas aos velhos tortos, aleijados! etc. etc.

BRÁS – Oh! rapaz! Quando tomarás tu juízo!? Cada vez
ficas pior! Anda para ali; anda! Toma a benção à tua
mãe.

FERRABRÁS – Ora, meu pai, sempre o Sr. me está dando mães!
Há três dias era uma velha de que todos têm nojo, porque
lhe sai tabaco pelas fossas, mormente pelos ouvidos, pela boca, e até
pelos olhos! Ontem era uma torta deste olho; aleijada desta perna (batendo
com a bengala na perna direita do pai.)

BRÁS – Mais devagar com os teus exemplos, que estas pernas já
são – o Sr. sabe – algum tanto velhas e cansadas!

FERRABRÁS – Senhor! Dizia eu que ontem era uma velha nestas agradabilÍssimas
condições, e hoje quer que eu tome a benção desta
tagarela (puxa-Lhe pelo xale e quase o tira do pescoço.)

MICAELA – Mais prudência, Sr. Dr.! Olhe que não estou acostumada
a estes insultos! Pilha-me abatida, senão o Sr. não ousaria
insultar-me, porque eu ainda teria mãos!

FERRABRÁS – Olhem; olhem que jóia!

BRÁS – (muito zangado) Este rapaz não toma mais caminho! Cada
vez fica mais tolo, mais estonteado, e mais surdo! Vai, vai! (empurrando-o)
Vai procurar outro pai! Eu não te quero mais por filho!

FERRABRÁS – Pois meu pai, o Sr. é que tem a culpa. Apresenta-me
(tira-lhe a cabeleira e atira-a no chão) com esta cabeça rapada
para minha mãe, como se eu fora alguma criança! Que quer que
eu lhe faça!?

MICAELA – (atirando-lhe com a cabeleira à cara) Eu não o posso
mais aturar, Sr. atrevido!

FERRABRÁS – Olhe que lhe dou com a bengala!

BRÁS – Acomodem-se! Senão eu lhes dou um cachação!

(Micaela avança À bengala, toma-a de Ferrabrás e dá-lhe
uma bengalada; trava-se uma peleja entre ambos; dando-lhe este com a cabeleira
pelo rosto. Brás mete-se entre ambos para apartar a briga,. apanha
e dá pancadas, e nesta luta termina a comedia.)

Porto Alegre, Junho 10 de 1866.

(Escusado é dizer que nada devem poupar os cômicos para tornar
mais interessante e agradável o gracejo.)

Note-se – podem começar a cena os três últimos, dando
alguns saltos, preferindo palavras sem nexo ao discurso, mostrando a respeito
de Brás algum desatinamento, e retirarem-se ao aparecer ou sentirem
o rumor da vinda daquele.

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