Mateus e Mateusa

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Qorpo Santo

Comédia em Um Ato

Personagens

Mateus, velho de 80 anos

Mateusa, idem

Catarina, filha

Pêdra, filha

Silvestra, filha

Barriôs, criado

ATO PRIMEIRO

CENA PRIMEIRA

MATEUS (caminhando em roda da casa; e Mateusa assentada em uma cadeira) –
Que estão fazendo as meninas, que ainda as não vi hoje?!

MATEUSA (balançando-se) – E o Sr. Que se importa, Sr. Velho Mateus,
com as suas filhas?

MATEUS (voltando-se para esta) – Ora é boa esta! A Sra. sempre foi,
é, e será uma (atirando com a perna) – não só
impertinente, como atrevida!

MATEUSA – Ora, veja lá, Sr. Torto (levantando-se), se estamos no tempo
em que o Sr. A seu belo prazer me insultava! Agora eu tenho filhos que me
hão de vingar.

MATEUS (abraçando-a) – Não; não, minha querida Mateusa;
tu bem sabes que isso não passa de impertinências dos 80. Tem
paciência. Vai me aturando, que te hei de deixar minha universal herdeira
( atirando com uma perna) do reumatismo que o demo do teu Avô torto
meteu-me nesta perna! (atirando com um braço) das inchações
que todas as primaveras arrebentam nestes braços! (abrindo a camisa)
das chagas que tua mãe com seus lábios de vênus imprimiu-me
neste peito! E finalmente (arrancando a cabeleira): da calvície que
tu me pegaste, arrancando-me ora os cabelos brancos, ora os pretos, conforme
as mulheres com quem eu falava! Se elas (virando-se para o público)
os tinham pretos, assim que a sujeitinha podia, arrancava-me os brancos, sob
o frívolo pretexto de que me namoravam! Se elas os tinham brancos,
fazia-me o mesmo, sob ainda o frivolíssimo pretexto de que eu as namorava
(batendo com as mãos, e caminhando). E assim é; e assim é,
– que calvo! calvo, calvo, calvo, calvo, calvo (algum tanto cantando) calvô…
calvô… calvô… ô…ô…ô!…

MATEUSA (pondo as mãos na cabeça) – Meu Deus! Que homem mais
mentiroso! Céus!

Quem diria que ainda aos 80 este judeu-errante havia de proceder como aso
quinze, quando roubava frutas do Pai!

MATEUS (com fala e voz muito rouquenha) – Ora, Sra.! Ora, Sra.!Quem, quem
lhe disse essa asneira?! (Profere estas palavras querendo andar e quase sem
poder. É este o todo do velho em todos os seus discursos.)

MATEUSA (empurrando-o) – Então para que fala de mim a todas as moças
que aqui vêm, Sr., chino?! Para quê, hem? Se o Sr. não
fosse mais namorador que um macaco preso a um cepo, certamente não
diria – que sou velha, feia e magra! Que sou doente de asma; que tenho uma
perna mais curta que a outra; que… que… finalmente, que já (voltando-se
com expressão de terror) não lhe sirvo para os seus fins de
(pondo a mão em um olho) de… O Sr. bem sabe! (esfregando com as costas
da mão o outro [ olho] com voz de quem chora). Sim, se eu não
fosse desde a minha mais tenra idade um espelho, tipo, ou sombra de vergonha
e de acanhamento, eu diria (virando-se para o público): Já não
quer dormir comigo! Feio! (saindo da sala) mau! velho! rabugento! Tãobém
não te quero mais, fedorento!

MATEUS – Mas (voltando-se para o fundo), e as meninas, onde estão!?
Onde? Onde? (Puxa a cabeleira.) Pêdra! Catarina! Silvestra! (Escuta
um pouco.) Nenhuma aparece! Cruéis! Fariam o mesmo que a Mãe!?
Fugiriam de mim!? Coitado! Pobre de quem é velho! As mulheres fogem,
e as filhas desaparecem!

CENA SEGUNDA

PÊDRA (entrando) – O que é, Papaizinho? O que é que quer?
O que tem? Sucedeu-lhe alguma cousa? Não? (Pegando-lhe no braço.)

MATEUS (como acordando-se de um sonho.) – Hem? (Esfregando os olhos.) Hem?
O que é? Que é? Chegou alguém? Eu estava, aqui estava.

PÊDRA – Que tem, meu Pai?

MATEUS (assoando-se sem tocar no nariz, e olhando) – Vejam o que é
ser velho! Menina, menina, já que estás aqui, dá-me um
lenço; anda (pegando nos braços da filha), anda, minha queridinha;
vê um lenço para o vosso velho paizinho! Sim; sim; vai; vai;
anda. (Fazendo-a caminhar.)

PÊDRA (voltando-se) – Também este meu Pai cada vez fica mais
porco! Por isso é que a

minha mãe já enjoou ele tanto, que nem o pode ver! (Saindo.)
Eu já vou buscar! Espere um minuto (com as mãos, fazendo-o parar),
já venho, Papai! Já venho, e vou buscar-lhe um dos mais lindos
(com ar gracioso) que encontrar em meu guarda-roupa, ouviu, Papai? Ouviu?

MATEUS – Sim, sim; já ouvi. Tu sempre foste o encanto dos meus olhos;
o sonho de todos os meus momentos… (Entra outra.) Esta menina (voltado para
o povo) é os encantos da imaginação desta cabeça
(batendo com as mãos, uma de cada lado da cabeça) e objeto que
ao ver, me enche (apalpando o coração) este coração
de alegria!

CATARINA – E eu, Papai? E eu, então não mereço alguma?!

MATEUS (voltando-se e olhando para Catarina) – Minha querida Filha! Minha
querida Catarina! (Abraçando-a .) És tu, oh! Quanto me apraz
ver-te! Se tu soubesses, queridíssima Filha, quão grande é
o prazer que banha (inclinando-se e levando a mão ao peito) este peito!
Sim (tornando a abraçá-la) , tu és um dos entes que fazem
com que eu preze a velha existência, ainda por alguns dias! Sim sim,
sim! Tu, tua sábia irmã Pêdra; e… e aquela que ainda
hoje não tive a fortuna de ver, a tua mais que simpática irmã
Silvestra; – são todas três os Anjos que me amparam; que me alimentam
o corpo e a lama; por que, e para quem vivo; e morreria, se fosse mister!

(Entra Silvestra, aos pulinhos, e Pêdra, fazendo passos de dança.)

SILVESTRA – Papaizinho do meu coração! (abraçando-o
pelas pernas.) Você é o meu tudo! Olhe, Papaizinho: eu sonhei
que o Sr. queria um lenço, e corri! Tomei este que a mana Catarina
lhe trazia, e lhe truce!

MATEUS – Quanto sou feliz! (Pega o lenço e enxuga os olhos.)

CATARINA (à parte, e com expressão de dor) – Ele disse que
a outra era simpática; e de mim nem ao menos diz que sou formosa. Sempre
é velho: não sabe agradar a todos!

PÊDRA – Papai! Eu não fui portadora do que me pediu, porque
a Silvestra é muito velhaca, e muito ligeira! Assim que me viu com
o lenço na mão, tomou-m’o, e correu para trazer-lhe primeiro
que eu!

SILVESTRA – É porque eu quero (dando com a mão na irmã)
mais bem ao Papai do que Você; aí está!

PÊDRA – Pois não! Não vê que a Sra. já pesou
os graus de amor que em meu coração eu consagro a meu Pai…

SILVESTRA – Não preciso pesar! Olhe: no seu coração
existe certa força ou quantidade de amor consagrado (afagando com as
mãos) ao papaizinho! E em mim, todo o meu coração é
puro amor a ele tributado!

PÊDRA – Vejam só (com aspecto impertinente, desgostoso; rosto
franzido, pondo a cabeça de um lado, etc.) como é retórica!
Não pensei que a Sra. estivesse tão adiantada! Não estudou;
não se preparou hoje tãobém em seus velhos alfarrábios
de filosofia!? Se não se preparou, para outra vez prepare-se, e veja
se ganha mais um afeto do papai!

CATARINA (acomodando-as) – Meninas! (pegando no braço de uma e de
outra) acomodem-se; vocês parecem nenês!

MATEUS – Meus anjos (tãobém querendo acomodá-las). Minhas
santas; minhas virgens… não quero que briguem, porque isso me desgosta.
Sabem que já sou velho e que os velhos são sempre mais sensíveis
que os moços… Quero vê-las contentes; contentezinhas; ao contrário
fico triste.

PÊDRA E CATARINA (formando com as mãos pegadas umas nas outras
um círculo em roda do pai.) – Nosso Papaizinho! Não há
de se desgostar; não há de chorar (dançando). Nós
havemos de amparar o nosso querido Papai. (Umas para as outras: ) Vamos; pulemos;
dancemos; e cantemos: todos! Todos a uma só voz. ( O Pai vira-se ora
para uma, ora para outra, cheio do maior contentamento: o sorriso não
lhe sai dos lábios; os olhos são ternos; a face se franze de
prazer; quer falar, e apenas diz: ) Meu Deus! Eu sou; eu sou tão feliz!
que… Sim, sou; sou muito feliz!

(As filhas cantam:)

Nós somos três anjinhos;
E quatro éramos nós,
Que do céu descemos;
E o amor procuremos:
– Mataremos ao algoz
Destes dois nossos paizinhos!

Sempre fomos bem tratadas
Quer deste, quer daquela:
Não queremos que a maldade,
Para nossa felicidade,
Maltrate a ele ou a ela…
Mataremos tresloucadas!

Não somos só anjos
Que assim pensamos;
Que assim praticamos;
Tãobém são os arcanjos!

De principados – exércitos
Temos tãobém de virtudes!
De tronos! Não mudes,
Papai! Vivam as ordens!

– Para debelarmos facínoras!
– Para triunfarem direitos,
– As armas temos nos peitos!
– A força de milhões d’espíritos!

(Terminado o canto, abraçarão todas o Pai, e este a elas, banhados
todos na maior efusão de júbilo.)

PÊDRA ( para o pai) – Agora, Papai, vamos coser, bordar, fiar; fazer
renda. (Para as irmãs:) Vamos, Meninas; a Mamãe já há
de Ter a nossa tarefa pronta para nos dar trabalho!

CATARINA- Ainda é cedo; eu não ouvi dar oito horas; e o nosso
trabalho sempre principia às nove.

SILVESTRA – Eu não sei o que fazer hoje: se bordar, se fiar, ou se
crivar!

PÊDRA – Por bem de Deus, você nunca sabe o que há de fazer!

SILVESTRA (olhando-a com certo ar de indiferença) – Se te parece,
minha querida Maninha, chama-me de preguiçosa!

PÊDRA – Não; isso eu não digo, porque a Sra. deu as mais
delumbrantes provas de que há de vir a ser lá… (elevando a
mão) para o futuro uma moça das mais trabalhadoras que eu conheço!
E ainda hoje disso deu segurança no jardim do quintal, em que não
ficava flor que não fosse pela Sra. cultivada!

SILVESTRA – Inda bem que a Sra. sabe, e faz-me o obséquio de dizer!
E se eu o não fora ainda, não era de admirar; pois não
conto mais de nove a dez anos de idade.

MATEUS (voltando-se para Silvestra) – Pois a Sra. esteve no quintal?

SILVESTRA – Pois então, Papai; eu não havia de ir cortar, arrancar
todas as ervas perniciosas, que crescendo destroem as plantas, as flores preciosas
?

MATEUS (com muita alegria, pegando a filha) – Filha! Filha minha! Vem a meus
braços! (Abraça-a e beija-a muitas vezes.) Fazes, minha muito
amada Silvestra, o que Deus faz aos Governos! O que os bons Governos fazem
aos Governados! Prendem; castigam; melhoram; ou inutilizam os maus – para
que não ofendam, nem prejudiquem os bons! E vocês (para as outras),
o que faziam, durante o tempo em que minha inteligente Silvestra procedia
com tanto acerto, praticando uma tão meritória ação
e digna dos maiores elogios?

PÊDRA E CATARINA (quase ao mesmo tempo) – Eu regava as plantas e flores,
com a mais fresca e cristalina água, a fim de que crescessem e dasabrochassem
– perfeitas e puras! ( Isto disse Catarina)

PÊDRA – Eu, Papai, mudava algumas e plantava outras.

MATEUS – Já vejo que todas trabalharam muito! Hei de fazer a cada
uma das Sras. O mais lindo presente! (Movendo a cabeça – inclinando-
a.) Isto é, quando eu sair à rua! Pois bem sabem que eu aqui
não tenho com que lhes presentear.

PÊDRA – Eu quero… quero: o que há de ser? (Levantando algum
tanto a cabeça.) Uma

boneca de cera, do tamanho da (apontando) Silvestra! E toda vestida de seda,
ouviu, Papai? Com brincos, adereço… O Sr. sabe como se vestem as
moças que se casam; assim é que eu quero! Não se esqueça;
não se esqueça de comprar e me trazer assim. Olhe ( batendo-
lhe a mão no braço), se na loja do Pacífico não
tiver, tem na do Leite, na do Rodolfo, ou do Paradeda.

SILVESTRA – Eu me contento com menos! Quero um vestido de seda, lavrada a
barra, e as mangas a fio de ouro; com blonds, e tudo o mais que se usar, do
mesmo fio, ou daquilo que for mais moderno.

MATEUS (para Silvestra) – Contentas-te só com isso? Não queres
sapatos de seda, botinhas de veludo tãobém bordadas de ouro,
ou enfeite fino para a cabeça?

SILVESTRA – Não, Papai; basta o vestido; o mais tudo eu tenho muito
bom, e em estado de poder servir com o lindo vestido que lhe peço.
Sempre gostei da economia; e sempre aborreci a prodigalidade!

MATEUS – Estimo muito; é o mais fiel retrato da moral do velho Mateus!
(Para Catarina:)E a Sra., que está tão calada! Então,
não pede nada?

CATARINA – As manas já pediram tanto, que eu não sei o que
lhe hei de pedir; parece que tudo há de custar tanto dinheiro, que
se o Sr. não tivesse ainda há pouco tirado a sorte grande na
loteria do Rio de Janeiro, eu acreditaria – que teria de vender a cabeleira,
para satisfazer tantos pedidos!

MATEUS – Não; não, menina! O que elas pedem custa pouco comparativamente
aos meus e vossos rendimentos. Diga, diga: o que mais estimará que
eu lhe traga, para comprar e trazer-lhe?!

CATARINA – Pois bem; em vou dizer-lhe: mas V. Mcê não se há
de zangar.

MATEUS – Não; não; peça o que quiser, que eu com muito
prazer lhe trago!

CATARINA – Pois então, visto que tem gosto em me fazer um presente…
Até se eu não tivesse de ir a um batizado à casa da minha
amiga e comadre D. Leocádia das Neves Navarro e Souto, eu não
diria o que mais preciso, e quero que me dê… É um ramalhete
das mais delicadas flores que se costumavam vender nas lojas das modistas
francesas e alemãs.

MATEUS – E levou tanto tempo para pedir uma cousa de tão pouco valor!?

CATARINA – Não é de muito pequeno valor! O que eu quero é
de uns muito mimosos, cujo preço sobe a dez ou doze mil-réis!

MATEUS – Pois então, isso é muito barato! Mas como é
o que me pede, fique certa que há de ser servida, tanto mais que tem
a intenção de se apresentar com ele em um baile, batizado, ou
não sei que festa!

CATARINA – É quanto basta; e com ele ficarei muito contente!

MATEUSA (entra rengueando, revirando os olhos, e fazendo mil trejeitos; as
filhas que a observam dizem umas para as outras) – Aí vem a Mamãe!
– (Quase em segredo, rapidamente:) Olhem a Mamãe! Vamos! Vamos! Já
são nove horas! (Para o pai:) Papai! Não se esqueça das
nossas encomendas, como nós não nos esquecemos d’orar
a Deus para que prolongue seus dias; e que estes sejam felizes! Até
logo à hora do jantar ( e fazendo uma profunda cortesia, depois de
lhes beijarem a mão, pegando nas saias dos vestidos), que é
quando poderemos ter o inexprimível prazer de passar alguns preciosos
momentos em sua estimável companhia.

CENA TERCEIRA

MATEUSA (aproximando-se às filhas) – Vão meninas, vão
fazer a sua costura! Está tudo marchando! Cada uma das Sras. Tem na
sua almofada o pano, a linha, a agulha; e tudo o mais que é necessário
para trabalhar até às 2 da tarde. O que é de abordar
para a Pêdra, está desenhado a lápis; os picados para
a Catarina, estão alinhavados; e a costura lisa, a camisa deste velho
feio ( batendo no ombro do marido) está começada. Tenham cuidado:
façam tudo muito bem feitinho.

CATARINA, PÊDRA E SILVESTRA – Como sabe, somos obedientes filhas; deve
por isso contar que assim havemos de fazer. (Saem.)

MATEUSA (para o marido, batendo-lhe no ombro) – Já sei que está
repassado de prazer! Esteve com suas queridas filhinhas mais de duas horas!
E eu lá, sofrendo as maiores saudades!

MATEUS – É verdade, minha querida Mateusa (batendo-lhe também
no ombro), mas, antes de te dizer o que pretendia, confessa-me: Por que não
quiseste tu o teu nome de batismo, que te foi posto por teus falecidos Pais?

MATEUSA – Porque achei muito feio o nome Jônatas que me puseram; e
então preferi o de Mateusa, que bem casa com o teu!

MATEUS – Sempre és mulher! E não sei o que me pareces depois
que ficaste velha e rabugenta!

MATEUSA (recuando um pouco) – És bem atrevido! De repente, e quando
não esperares, hei de tomar a mais justa vingança das grosserias,
das duras afrontas com que costumas insultar-me!

MATEUS (aproximando-se e ela recuando)

MATEUSA – Não se chegue para mim ( pondo as mãos na cintura
e arregaçando os punhos) que eu não sou mais sua! Não
o quero mais! Já tenho outro com quem pretendo viver mais felizes dias!

MATEUS (correndo a abraçá-la apressadamente) – Minha queridinha;
minha velhinha! Minha companheirinha de mais de 50 anos (agarrando-a), por
quem és, não fujas de mim, do vosso velhinho! E as nossas queridas
filhinhas! Que seriam delas, se nós nos separássemos; se tu
buscasses, depois de velha e feia, outro marido, ainda que moço e bonito!
Que seria de mim? Que seria de ti? Não! Não! Tu jamais me deixarás.
(Tanto se abraçam; agarram; pegam, beijam-se, que cai um por cima do
outro.) Ai! Que quase quebrei uma perna! Esta velha é o diabo! Sempre
mostra que é velha e renga! (Querem erguer-se sem poder.) Isto é
o diabo!…

MATEUSA ( levantando-se, querendo fazê-lo apressadamente e sem poder,
cobrindo as pernas que, com o tombo, ficaram algum tanto descobertas) – É
isto, este velho! Pois não querem ver só a cara dele? Parece-me
o diabo em figura humana! Estou tonta.. Nunca mais, nunca mais hei de aturar
este carneiro velho, e já sem guampas! (Ambos levantaram-se muito devagar;
a muito custo; e sempre praguejando um contra o outro. Mateusa, fazendo menção
ou dando no ar ora com uma, ora com outra mão: ) Hei de ir-me embora;
hei de ir; hei de ir!

MATEUS – Não há de ir; não há de ir; não
há de ir porque eu não quero que vá! Você é
minha mulher; e pelas leis tanto civis como canônicas, tem obrigação
de me amar e de me aturar; de comigo viver, até eu me aborrecer! (Bate
com um pé.) Há de! Há de! Há de!

MATEUSA – Não hei de! Não hei de! Não hei de! Quem sabe
se eu sou sua escrava!? É muito gracioso, e até atrevido! querer
cercear a minha liberdade! E ainda me fala em Leis da Igreja e civis, como
se alguém fizesse caso de papéis borrados! Quem é que
se importa hoje com Leis ( atirando-lhe com o ‘Código Criminal’)
, Sr. banana! Bem mostra que é filho dum lavrador de Viana! Pegue lá
o Código Criminal, – traste velho em que os Doutores cospem e escarram
todos os dias, como se fosse uma nojenta escarradeira!

MATEUS (espremendo-se todo, abaixa-se levanta o livro e diz à mulher)
– Obrigado pelo presente: adivinhou ser cousa de que eu muito necessitava!
(Mete-o na algibeira. À parte: ) Ao menos servirá para algumas
vezes servir-me de suas folhas, uma em cada dia que estas tripas (pondo a
mão na barriga) me revelarem a necessidade de ir à latrina.

MATEUSA – Ah! já sabe que isso não vale cousa alguma; e principalmente
para as Autoridades – para que tem dinheiro! Estimo muito; muito; e muito!
(Pega em um outro – a "Constituição do Império"
e atira-lhe na cara.)

MATEUS (gritando) – Ai! cuidado quando atirar, Sra. D. Mateusa! Não
continuo a aceitar seus presentes, se com eles me quiser quebrar o nariz!
(Apalpa este, e diz: ) Não partiu, não quebrou, não entortou!
( E como o nariz tem parte de cera, fica com ele assaz torto. Ainda não
acaba de endireitá-lo, Mateusa atira-lhe com outro de ‘História
Sagrada’, que lhe bate numa orelha postiça, e que por isso com
a pancada cai; dizendo-lhe: ) Eis o terceiro e último que lhe dou para…
os fins que o Sr. quiser aplicar!

MATEUS (ao sentir a pancada, grita) – Ai que fiquei sem orelha! Ai! Ai! Ai!
Onde cairia? (Atirando os livros na velha e com raiva. ) Por mais que recomendasse
a esta endemoninhada que não queria presentes caros, este demônio
havia de quebrar-me o nariz e pôr-me fora uma orelha! Ó Mateusa
do diabo! Com quê, partes desta casa sem eu ir amanhã ao baile
masquê, visitar as Pavoas!? e…

MATEUSA (batendo o pé) – Cachorro! Ainda me fala em pavoas, e em baile
masquê!? Traste! Ordinário! Já… rua, seu maroto!

MATEUS (voltando-se para o público) – Já se viu que escaler
velho mais impertinente! Esperem que eu lhe boto cavernas novas! (Procurando
uma bengala. ) Achei! ( Com a bengala em punho) Já que a Sra. não
faz caso da lei escrita! falada! e jurada! há de fazer da lei cacetada!
paulada! ou bengalada! (Bate com a bengala no chão.)

MATEUSA – Ah! dessa lei, sim, tenho medo. (À parte.) Mas ele não
pode comigo, porque eu sou mais leve que ele; tenho melhor vista ; e pulo
mais. (Pega em uma cadeira e dá-lhe com ela, dizendo: ) Ora tome lá!
(Ele apara a pancada com a bengala, encolhendo-se todo; enfia esta na cadeira;
empurram para lá, empurram para cá.)

CATARINA, PÊDRA E SILVESTRA (aparecendo na porta dos fundos; umas para
as outras) – Vai lá! (Empurrando. Outra: ) Vai tu apartar! (Outra:
) Eu, não; quando eles estão assim, eu tenho medo, porque sou
pequenina!

MATEUS – Ai! eu caio! Quem me acode! Perdi o queixo!

MATEUSA (gritando e correndo) – Ai! eu esfolei um braço, mas deixo-lhe
a cadeira enfiada na cabeça! (Quer assim fazer e fugir, mas Mateus
atira-lhe a cadeira às pernas; ela tropeça e cai; ele vai acudi-la;
quer correr; as filhas convidam-se a fugir; ele cai aos pés da velha).

BARRIÔS (o criado) – Eis, Srs., as conseqüências funestas
que aos administrados ou como tais considerados, traz o desrespeito das Autoridades
aos direitos destes; e com tal proceder aos seus próprios direitos:
– A descrença das mais sábias instituições, em
vez de só a terem nesta ou naquela autoridade que as não cumpre,
nem faz cumprir! – A luta do mais forte contra o mais fraco! Finalmente, –
a destruição em vez da edificação! O regresso,
em vez do progresso!

FIM DA COMÉDIA

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