Tipos da Atualidade – França Junior

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Comédia em três atos

PERSONAGENS

BARÃO DA CUTIA – 50 anos
GASPARINO DE MENDONÇA – 25 anos
DOUTOR CARLOS DE BRITO – 26 anos
DONA ANA DE LEMOS, mãe de – 40 anos
MARIQUINHAS – 17 anos
PORFÍRIA DE MENDONÇA – 70 anos

A ação passa-se no Rio de Janeiro.

Atualidade.

ATO PRIMEIRO

A cena representa urna sala mobilada com gosto: no fundo portas que dão
para um jardim; à esquerda uma janela, portas laterais, etc.

CENA I – MARIQUINHAS e DONA ANA DE LEMOS

MARIQUINHAS (Encostada à janela.) – Que bela tarde, mamãe.
E bem provável que o Senhor Carlos venha hoje fazer-nos uma visita.
Há tanto tempo que ele não aparece; talvez que esteja doente.

D. ANA – Tomas tanto interesse pelo Senhor Carlos, Mariquinhas.

MARIQUINHAS (Saindo da janela e sentando-se defronte de D. Ana.) – Engana-se,
mamãe: estimo-o apenas como se pode estimar um moço de belas
qualidades e de fina educação. O Senhor Carlos foi-nos apresentado
em uma das partidas do Clube, e estou bem certa que vosmecê não
lhe ofereceria a sua casa, se não visse nele um moço delicado
e da alta sociedade.

D. ANA – Não duvido, minha filha; porém seria melhor que te
ocupasses mais com os teus bordados, com as tuas músicas e os teus
desenhos, do que com o Senhor Carlos.

MARIQUINHAS – Pois bem, mamãe, não falarei mais nele.

D. ANA – Escuta, Mariquinhas; não te zangues, tu ainda estás
muito criança e pouca experiência tens do mundo; estás
numa idade em que te deixas levar mais pela paixão do que pela razão.
O Senhor Carlos tem transformado essa cabecinha: viste-o pela primeira vez
no Clube, e desde então tenho reparado que é ele o objeto constante
de tuas conversações. Tu já o amas, Mariquinhas; não
me negues. E sendo assim, pergunto-te eu agora: o que pretendes com esse namoro?
Casar com o Senhor Carlos? Esperas fazer a sua felicidade, unindo-te a um
doutorzinho em medicina, que agora começa a sua carreira, e cuja fortuna
consiste em um diploma?

MARIQUINHAS – Mas, minha mãe, o Senhor Carlos é um moço
inteligente e estudioso, e com o seu diploma poderá em breve sustentar
a dignidade de sua posição.

D. ANA – Dignidade de posição! Que posição tem
um doutor em medicina? Bem digo eu que a senhora está com essa cabecinha
virada. Diga-me, Senhora Dona Mariquinhas, quando eu me casei com seu pai,
que Deus tenha em sua Santa Glória, não era ele um homem respeitável
pela sua posição? e era porventura seu pai formado em medicina?
seu pai foi negociante na rua do Rosário, e negociante muito honrado.
Se veio para o Brasil sem posição, soube elevar-se com o suor
de seu trabalho, tanto que freqüentou depois as melhores sociedades,
e foi estimado de todos.

MARIQUINHAS – Mas, minha mãe, acredite vosmecê que, se meu pai
era estimado de todos, como acaba de dizer, não era unicamente pelos
seus belos olhos, mas sim por causa do dinheiro que tinha.

D. ANA – Justamente! chegou a senhora onde eu queria chegar. Seu pai tinha
dinheiro, e foi o dinheiro que lhe deu posição. Enquanto ele
era caixeiro, ninguém lhe deu importância; mas depois a senhora
bem sabe que o dinheiro granjeou-lhe uma comenda, que o dinheiro abriu-lhe
as portas das melhores sociedades, e que finalmente o dinheiro deu-lhe consideração
e importância. Eu não quero portanto namoro em minha casa: quando
for ocasião arranjar-lhe-ei um negociante honrado, ou algum homem sisudo
para fazer a sua felicidade. Deixe-se de doutorzinhos.

MARIQUINHAS – Pois bem, mamãe, não se amofine; sujeitar-me-ei
às suas vontades. (À parte.) Pobre Carlos!

D. ANA – Seria melhor que, em lugar de pensar em namoros, fosse tocar alguma
coisa ao piano para divertir sua mãe.

MARIQUINHAS (Depois de alguma pausa.) – Vosmecê pretende ir hoje ao
teatro? representa-se a Traviata e canta a de La Grange.

D. ANA – Hoje não posso: estou constipada, e o sereno há de
fazer-me mal.

MARIQUINHAS (À parte.) – Mais esta esperança perdida! (Alto.)
mas nós vamos de carro, e vosmecê podia ir bem agasalhada…
(Ouve-se o rodar de um carro: à parte.) – É ele! sinto o coração
bater, e o coração não me engana. É Carlos! (Vai
a uma das portas do fundo e encontra-se com Gasparino, que faz-lhe uma grande
cortesia.)

CENA II – AS MESMAS e GASPARINO

GASPARINO – É um humilde criado de Vossa Excelência.

MARIQUINHAS (À parte.) – Que maçante!

GASPARINO (Dirigindo-se a D. Ana faz-lhe outra cortesia.) – Tenho a honra
de fazer os meus sinceros cumprimentos à Senhora Dona Ana de Lemos.

D. ANA – Ora viva, Senhor Gasparino. Pensei que já se tivesse esquecido
de nós, e que não quisesse mais honrar esta sua casa.

GASPARINO (Sentando-se.) – Depois que Vossa Excelência mudou-se para
o Engenho Velho, raras são as tardes e noites de que tenho podido dispor.
Sócio dos Clubes Fluminense e de Botafogo, do Cassino, assinante de
uma cadeira do Ginásio, de outra no Lírico, freqüentador
de todas essas sociedades onde se reúne o grand monde faz-se necessária
a minha presença nesses lugares. Às tardes costumo dar o meu
passeio pelo Catete, Botafogo e São Clemente. Ultimamente mandei vir
uma égua de Meklemburg, oh! que linda égua, minha senhora! Comprei
um elegante faetonte… (Mudando de tom.) Com licença, (Indo à
janela.) James! vira o carrinho, e afasta o cavalo do trilho da Maxambomba.

MARIQUINHAS (À parte.) – Oh! que bobo, meu Deus! (Encosta-se pensativa
à janela.)

GASPARINO (Voltando-se para D. Ana.) – É necessário ter muito
cuidado com aquele animal: é muito fogoso e espanta-se de qualquer
coisa.

D. ANA – Se quiser pode mandar entrar o carrinho para a chácara.

GASPARINO – Não é preciso, minha senhora… Mas, como ia dizendo,
comprei este lindo faetonte e todas as tardes faço o meu tour de promenade
pelas ruas mais freqüentadas da capital. Hoje quis respirar os ares do
Engenho Velho, e ao mesmo tempo apreciar no campo microscópio do meu
pince-nez as belas ninfas deste arrabalde.

D. ANA – Não tenciona ir depois de amanhã à partida
do Clube, Senhor Gasparino?

GASPARINO – Se não estiver comprometido para outros lugares…

D. ANA – A sua ausência há de ser sentida, principalmente por
aquela linda menina de vestido branco que tanto ocupou sua atenção
no baile passado!

GASPARINO – Quer Vossa Excelência falar-me da pérola de São
Clemente? Oh! c’est ravissanté! tive, é verdade, um pequeno
namoro de dias, mas afinal deixei-a.

D. ANA (Rindo-se.) – Por quê, Senhor Gasparino?

GASPARINO – Soube que o pai era um negociante falido, e bem vê que
uma mulher sem dinheiro…

D. ANA – Entendo; o Senhor Gasparino anda à caça de um casamento
rico.

GASPARINO – Um casamento rico, minha senhora, é na minha opinião
um emprego mais vantajoso do que outros tantos que por aí há.
Devemos acompanhar as idéias do século; longe vão esses
tempos em que o cavaleiro de espada em punho combatia pela sua dama. Já
não há Romeu nem Julieta, e se ainda existe o amor platônico,
como o concebeu o filósofo da antiguidade, é tão somente
na cabeça desses loucos que se intitulam poetas. Hoje as teorias são
mais positivas.

D. ANA (Suspirando.) – Desgraçadamente nem todos pensam assim, Senhor
Gasparino. (Para Mariquinhas.) Menina, vai tocar alguma coisa para o Senhor
Gasparino ouvir.

MARIQUINHAS – O piano está muito desafinado, mamãe. (À
parte.) Este homem não nos deixará!

D. ANA – O Senhor Gasparino há de desculpar. (Mariquinhas dirige-se
ao piano para abri-lo.)

GASPARINO (Para Mariquinhas.) – Sans façón, minha senhora,
Vossa Excelência apreciava da janela o grato perfume das flores do seu
jardim, e a queda do astro brilhante que lá se atufa num oceano de
luz na horizonte. (Pondo a luneta.) Oh! c’est magnifique! É um quadro
digno do pincel o mais inspirado.

MARIQUINHAS – O Senhor Gasparino sabe desenhar?

GASPARINO – Alguma coisa, minha senhora, o meu pincel não é
lá dos melhores. (Ouve-se o toque da corneta da Maxambomba, e em seguida
um rumor surdo de carro.)

MARIQUINHAS (À parte.) – Oh! sem dúvida é Carlos. (Alto.
Dirige-se à janela.) Oh! mamãe, lá caiu um homem da Maxambomba;
está todo sujo de poeira, coitado; levantou-se e dirige-se para aqui.

D. ANA (Indo ao fundo.) – Machucar-se-ia? coitado!

GASPARINO (Pondo a luneta.) – É uma figura antediluviana!

CENA III – OS MESMOS e o BARÃO DA CUTIA

BARÃO (Entra todo sujo de poeira, sacudindo a roupa.) – É aqui
que mora a Senhora Dona Ana de Lemos?

D. ANA (Fazendo uma cortesia.) – É esta sua criada: queira ter a bondade
de sentar-se.

MARIQUINHAS (À parte.) – O que quererá este homem!

GASPARINO (À parte.) – É uma figura antediluviana, não
retiro a expressão. (Dirige-se ao espelho, torce o bigode e arranja
os colarinhos e a gravata.)

BARÃO (Sentando-se, fica por algum tempo atrapalhado com o chapéu
e a bengala, e um maço de cartas que tira do bolso.) – Trago esta carta
de São Paulo para Vossa Senhoria.

GASPARINO (À parte.) – Vossa Senhoria? Isto é coisa muito ordinária,
não tem dúvida.

D. ANA (Recebendo a carta.) – Com licença, (Abre-a lendo.) “Ilustríssima
e Excelentíssima Senhora Dona Ana de Lemos. São Paulo, etc.
A maneira obsequiosa e delicada com que Vossa Excelência se dignou tratar-me
durante o tempo que estive em sua amável companhia, animou-me a utilizar-me
ainda de seu valioso préstimo, apresentando a Vossa Excelência,
por meio desta, o meu sincero amigo e companheiro de infância, o Excelentíssimo
Senhor Barão da Cutia, um dos mais ricos fazendeiros desta Província…
(Procurando a assinatura.) Seu Venerador e Criado. – Prudêncio Augusto
de Villas-Boas”. – (Para o Barão.) Oh! Senhor Barão, dê-me
o seu chapéu e a sua bengala. (Para Mariquinhas) Menina, venha cumprimentar
o Excelentíssimo Senhor Barão da Cutia. (Mariquinhas faz uma
grande cortesia ao Barão.)

D. ANA – O Senhor Gasparino de Mendonça, 1o Oficial da Secretaria
da Justiça, moço delicado e distinto que dá-nos a honra
de freqüentar esta nossa casa. (Mudando de tom.) Vossa Excelência
deve estar bastante machucado com a queda que acaba de dar, e um cálice
de licor talvez lhe faça bem. Menina, manda trazer licor para o Senhor
Barão. (Mariquinhas sai pela direita.)

BARÃO – Não se incomode, minha senhora: sofri apenas um pequeno
abalo. Aqueles carros têm esse inconveniente; cada vez me convenço
mais de que não há nada como uma boa besta.

GASPARINO – Pois quando Vossa Excelência quiser utilizar-se da minha
égua de Meklemburgo, está muito a seu dispor.

BARÃO – Eu prefiro uma boa besta. Em São Paulo tenho uma burra
branca que é uma rede; foi um presente que deu-me no dia de meus anos
o Juiz de Paz da Cutia: custou-lhe na feira de Sorocaba 500$000 réis.
Oh! que lindo animal! é meter-se-lhe as esporas, e a mulinha sai pela
estrada que é um regalo.

D. ANA – Vossa Excelência é a primeira vez que vem ao Rio?

BARÃO – É verdade, minha senhora.

GASPARINO – E como tem achado Vossa Excelência o Rio de Janeiro?

BARÃO – Para falar com franqueza prefiro viver em São Paulo.
Aqui vive um homem constrangido, e constantemente a suar: olhe, ontem mudei
três camisas, e assim mesmo ainda suava como um alambique de engenho!
lá no meu sítio da Cutia, aquilo sim, é que era viver;
não andava metido numa casaca de pano preto, como estou agora: com
o meu chapéu de palha, o meu paletó branco, e as minhas calças
de enfiar, percorria aquilo tudo, como se estivesse em minha casa. Não
há nada que pague a minha comodidade. Não tinha distrações,
é verdade; mas quando queria divertir-me, montava na minha burra branca,
e ia a São Paulo. (Entra uma negra com um licoreiro e oferece ao Barão.)

D. ANA (Enche um cálice e oferece ao Barão.) – Beba deste licor,
Senhor Barão, que lhe há de fazer bem: é legítimo
Curaçáo.

BARÃO (Acabando de beber, dá um grande estalo com a boca.)
– Não é mau, minha senhora, Vossa Senhoria já bebeu garapa
de Santo Amaro?

GASPARINO (À parte.) – Garapa! Qu’est ce que c’est que ça!

D. ANA – Ainda não, Senhor Barão.

BARÃO – Pois é pena, minha senhora, é uma bebida muito
saborosa, principalmente quando está um pouco picada. Eu prefiro-a
ao licor.

D. ANA – Desculpando a minha indiscrição, Senhor Barão,
Vossa Excelência é casado?

BARÃO (Suspirando.) – Sou viúvo, minha senhora: há quatro
anos que morreu a minha cara Inês.

GASPARINO (À parte.) – Que formoso D. Pedro!

BARÃO – Deus a tenha em sua Santa Glória.

D. ANA (À parte.) – Um Barão… viúvo e um dos mais
ricos fazendeiros da Província… (Alto.) A fazenda de Vossa Excelência
é mesmo na Cutia?

BARÃO – Tenho duas, minha senhora, uma em Itu, e outra em Porto-Feliz,
e além do sítio da Cutia, tenho outra no Senhor Bom-Jesus de
Pirapora, onde vou todos os anos passar a festa. O lugar da minha residência
é na Cutia, onde sou o eleitor mais votado, e prefiro-o por ser mais
perto de São Paulo.

GASPARINO – Mesmo porque Vossa Excelência deve estar relacionado com
as pessoas mais gradas da Capital.

D. ANA (À parte.) – Duas fazendas! (Alto.) Mariquinhas? Mariquinhas?

CENA IV – OS MESMOS e MARIQUINHAS

MARIQUINHAS – Quer alguma coisa, mamãe?

D. ANA (Indicando uma cadeira.) – Sente-se aqui, e converse com o Senhor
Barão.

MARIQUINHAS (Sentando-se; à parte.) – Que maçada!

BARÃO (Fica algum tempo atrapalhado sem saber o que há de dizer.)
– Que idade tem, Sinhá? (Mariquinhas abaixa os olhos.)

D. ANA – Responda, menina; não se faça de tola; não
vê que o Senhor Barão pergunta que idade tem.

MARIQUINHAS – Dezessete anos.

BARÃO – É justamente a idade da minha… (À parte.)
Oh! que diabo de asneira ia eu dizer. (Alto.) Sim… quero dizer.

MARIQUINHAS (Á parte.) – Que malcriado!

GASPARINO (À parte.) – C’est trop fort!

D. ANA – Não é por ser minha filha, Senhor Barão; esta
menina é muito inteligente e muito prendada: saiu há dois anos
do Colégio, e tem tido uma educação completa; toca muito
bem piano, canta, desenha, fala o francês e o inglês… (Mudando
de tom.) Olhe, quer ver, Senhor Barão? (Para Mariquinhas.) Menina,
conversa um pouco em francês com o Senhor Gasparino para o Senhor Barão
ouvir. (Para Gasparino.) Faz favor, Senhor Gasparino.

GASPARINO – Pois não, minha senhora. (Refletindo.) Est ce que vouz
allez ao Théàtre aujourd’hui, mademoiselle?

D. ANA – Não responde, menina? (Para o Barão.) Tenho-me esmerado
com a sua educação, Senhor Barão, e no entretanto é
isto que vê!

BARÃO – Ela tem cara de ser espertinha; mas eu aprecio mais uma boa
dona de casa: a minha Inês! aquilo sim, é que era uma verdadeira
mulher: ela mesma assistia a deitar-se o milho de molho, a recolher o gado,
trazia a casa sempre com muita ordem… enfim, era uma verdadeira mulher!

GASPARINO (Á parte.) – O tal Barão ainda está um pouco
peludo: eu me encarregarei de civilizá-lo.

D. ANA – Mas isso não a impede de vir a ser uma boa dona de casa,
Senhor Barão.

BARÃO – Não duvido, minha senhora; mas a educação
moderna é muito mais perigosa.

D. ANA – Mudando de assunto, Senhor Barão, onde Vossa Excelência
está morando?

BARÃO – Na rua Direita, casa comercial de Azevedo & Cia.

D. ANA – Excusado é dizer a Vossa Excelência que esta casa está
sempre ao seu dispor e que tudo quanto estiver no limitado círculo
de minhas forças.

GASPARINO (Interrompendo.) – Quanto a mim, Senhor Barão, sou apenas
um simples Oficial de Secretaria, mas as minhas relações nesta
Capital, uma tal ou qual influência que exerço entre as famílias
as mais importantes, a longa experiência que tenho adquirido nos salões
da Corte, são considerações bastantes para a apresentação
de Vossa Excelência no grand monde.

BARÃO – O grão monde? É alguma sociedade de baile? Em
São Paulo também há uma chamada – Concórdia.

GASPARINO (Rindo-se.) – Vossa Excelência entendeu mal.

BARÃO – Pois, minha senhora, Vossa Senhoria há de consentir
que eu me retire. Ainda tenho que fazer algumas visitas.

D. ANA – Já, Senhor Barão? Não seria melhor darmos um
passeio pela chácara, enquanto eu mando aprontar o carro para conduzir
Vossa Excelência à cidade?

GASPARINO – Não se incomode, minha senhora, o Senhor Barão
há de dar-me a honra de ocupar por momentos a almofada esquerda do
meu faetonte. É um lindo carrinho, tout á fait chie, puxado
por uma das mais lindas éguas que têm vindo ao Brasil.

BARÃO (Levantando-se.) – Estou por tudo que quiserem.

D. ANA – Se não é incômodo para Vossa Excelência,
podemos dar o nosso passeio pela chácara. (Designando uma das portas
do fundo.) Quero ter o prazer de oferecer-lhe um ramalhete das mais belas
flores do meu jardim. (Saem todos pela porta do fundo, depois de ter Gasparino
instado com o Barão para que saia primeiro.)

CENA V – MARIQUINHAS, só

MARIQUINHAS – Graças a Deus que estou só. Minha mãe
há de estar sem dúvida enfadada, por não ter ido acompanhar
à chácara o tal Senhor Barão da Cutia, que, seja dito
entre parêntesis, é bem malcriado! Esta nossa casa está
se tornando presentemente um museu de raridades: até agora tínhamos
o Senhor Gasparino com os seus bigodes retorcidos, com o seu catálogo
de conquistas e ultimamente com a sua égua de Meklemburgo; dora em
diante teremos o Senhor Barão da Cutia; e que nome tão implicante
– Barão da Cutia -. (Indo à janela.) E Carlos há uma
semana que não aparece, ele que tão repetidas vezes freqüentava
a nossa casa; está sem dúvida ao lado de outra fazendo os mesmos
juramentos e protestos de amor, que tantas vezes me dirigiu. E acredite uma
moça em juramentos de amor! Também eu juro que a primeira vez
que ele por aqui aparecer, hei de recebê-lo com o maior indiferentismo.
Já estou quase achando razão em minha mãe. (Senta-se
pensativa.)

CENA VI – MARIQUINHAS e CARLOS

CARLOS (Entrando pelo fundo, à parte.) – Só! Seja-me ao menos
permitido depois de tantos dias de ausência, gozar de alguns momentos
da ventura. (Alto, dirige-se para Mariquinhas, e pára atrás
da cadeira.) Em que pensa? (Mariquinhas assusta-se e levanta-se.) Perdão
se vim cortar o doce fio dos seus pensamentos.

MARIQUINHAS (Cumprimentando-o.) – Senhor Doutor Carlos.

CARLOS – O título de Doutor, minha senhora, procurei-o unicamente
para satisfazer as vaidades e caprichos deste século em que vivemos:
é a primeira vez, depois de dois meses, dois meses que resumem toda
a minha existência, que o recebo de seus lábios: não sei
por que me trata assim!

MARIQUINHAS – Não faço mais do que dar-lhe o tratamento que
tem. (Senta-se, tira uma flor dos cabelos, e começa a desfolhá4a.)

CARLOS (Á parte.) – São arrufos. (Alto.) A senhora sua mãe
não está em casa?

MARIQUINHAS – Está passeando pela chácara com o Senhor Gasparino,
e um Barão que chegou de São Paulo.

CARLOS – Sem dúvida é o tal Barão a causa da indiferença
com que me recebe depois de tantos dias de ausência, não?

MARIQUINHAS – Dias talvez bem agradáveis para o senhor!

CARLOS – Há de permitir que lhe diga que não a compreendo.

MARIQUINHAS – Nem eu.

CARLOS – Minha senhora, em tudo isto há um mistério, filho
talvez de alguma intriga baixa e mesquinha. Em nome desse amor tão
puro e santo que lhe consagro, peço-lhe que mo explique. (Mariquinhas
continua a desfolhar a flor.) Oh! não responde. (Mudando de tom.) Eu
me retiro, minha senhora. Não quero importuná-la mais. Vossa
Excelência esqueceu o passado, e é justo que sufoque no peito
as esperanças que acalentei. Duas únicas ambições
tenho eu tido em minha vida: a primeira, o meu sonho dourado desde os mais
tenros anos, consegui realizá-lo à custa de sacrifícios
e de lágrimas de sangue: é esse o título que hoje me
enobrece; a segunda… oh! foi um sonho! (Mudando de tom.) Adeus, minha senhora.

MARIQUINHAS (Levantando-se.) – Escuta, Carlos: acusas-me de ingrata, quando
devia ser eu a primeira a fazê-lo. Já não és o
mesmo de outrora! Já não freqüentas a nossa casa como dantes,
e hoje tenho notado que já não procuras aquela que parecia ser
o único objeto de teus pensamentos! É justo: talvez outras ilusões…

CARLOS – Oh! não continues, Mariquinhas: não podes avaliar
o quanto me custa viver longe de ti. Amo-te muito, amo-te como se pode amar
pela primeira vez na vida, e é esse mesmo amor tão santo que
me aparta de ti. Sei das intenções de tua mãe, e é
preciso que eu mate esta paixão, já que não posso fazer
a tua felicidade! Além disso, se eu freqüentar a tua casa constantemente,
o que dirá o mundo?

MARIQUINHAS – Que nos amamos, Carlos; e o mundo respeitará nossas
crenças, porque elas são as crenças de um primeiro amor.

CARLOS – Mas infelizmente o mundo não as compreende. Ele calca aos
pés os sentimentos mais puros, e não duvida mesmo ferir-nos
no que temos de mais caro; Sabes o que por aí se diz? Que um homem,
a quem a sociedade respeita, porque infelizmente ela só olha para as
aparências, vai em breve alcançar a tua mão!

MARIQUINHAS – Quem, Carlos? Oh! dize-me, eu te peço, quem é
esse homem?

CARLOS – O Senhor Gasparino de Mendonça.

MARIQUINHAS – E tu acreditaste?!

CARLOS – Conheço-te bastante para te supor capaz de amar um tal homem!
Educada nos salões, sei que não te deixas levar por seu falso
e pomposo brilho: poderias amar uma fronte pálida, que trai um coração
ébrio de vida e de esperança, mas nunca uma caricatura da imagem
de Deus, um personagem ridículo de comédia, que consulta ao
espelho a melhor maneira de entrar em um salão.

MARIQUINHAS – Eu odeio esse homem, Carlos, e juro-te que, se alguma esperança
ele nutre por mim, há de por força odiar-me.

CARLOS – Creio-te, Mariquinhas, agora vê se te amo. (Ouve-se passos
de quem sobe a escada.)

MARIQUINHAS – Sinto passos: é minha mãe. (Sentam-se e fingem
conversar.)

CENA VII – OS MESMOS, BARÃO, D. ANA e GASPARINO

GASPARINO (Pondo uma cravina no peito.) – É uma bela chácara.

BARÃO (Com um ramo de flores.) – E está muito bem plantada.
Que excelente capim tem Vossa Senhoria nos fundos!

CARLOS (Para D. Ana.) – Minha senhora. (Faz um cumprimento.)

D. ANA – Como tem passado, Senhor Doutor Carlos?

GASPARINO (À parte.) – Mau, já não estou aqui muito
bem; a presença deste homem faz-me mal aos nervos; sabe-me da crônica,
e é o diabo.

D. ANA (Para o Barão.) – Apresento a Vossa Excelência o Senhor
Doutor Carlos de Brito, um dos moços que faz o favor de freqüentar
a nossa casa. (Para Carlos.) É o Excelentíssimo Senhor Barão
da Cutia, um dos mais importantes fazendeiros da Província de São
Paulo.

CARLOS (Cumprimentando-o.) – Tenho muita honra e prazer em conhecer a Vossa
Excelência.

GASPARINO (Que durante esse tempo passeia aflito, vê as horas.) – Senhor
Barão, quando Vossa Excelência quiser retirar-se, estou às
suas ordens.

BARÃO – Vamos, meu amigo, porque já estou alagado em suor,
e quero mudar a camisa. Que calor!

GASPARINO – C’est vrai, bien chaud.

BARÃO – Homem, diga-me uma coisa, naquele seu carrinho não
há perigo de cair-se? é tão pequenino! As rodas parecem
de piaçaba! Eu já estou escarmentado com o tal Puxa-bomba, Saca-bomba,
Mete-bomba, Vira-bomba, ou o diabo que o carregue.

GASPARINO – Vossa Excelência engana-se, aquilo é um carrinho
que reúne a elegância à consistência. E o que se
chama um verdadeiro faetonte.

BARÃO (Para D. Ana.) – Minha senhora, vou penhorado pelas maneiras
afáveis com que Vossa Senhoria tratou-me; se precisar de qualquer coisa,
lá estou na rua Direita no 54.

D. ANA (Fazendo uma cortesia.) – Só o que desejo, Senhor Barão,
é que Vossa Excelência continue a vir a esta sua casa, para que
eu possa ter o prazer de passar momentos tão agradáveis em sua
amável companhia.

GASPARINO (Indo ao fundo.) – James, volta o carrinho. (Voltando e dirigindo-se
ao Barão.) Vamos pela rua Nova do Imperador, o passeio é mais
poético. (À parte.) Quero ter a honra de pentear um Barão.
(Alto, para D. Ana.) Minha senhora. (Cumprimenta. Para Mariquinhas.) Minha
senhora. (Faz um cumprimento a Carlos e sai com o Barão.)

CENA VIII – OS MESMOS, menos GASPARINO e BARÃO

D. ANA – Tem estado incomodado, Senhor Doutor Carlos? há tanto tempo
que não aparece.

CARLOS – Já me desculpei com Dona Mariquinhas, minha senhora: os doentes
roubam-me a maior parte do tempo, e impedem-me muitas vezes de cumprir certos
deveres.

D. ANA – É o inconveniente de procurar-se uma profissão tão
trabalhosa, e sobre a qual pesa tão grande responsabilidade.

CARLOS – Fui levado pela vocação, minha senhora, mas infelizmente
o mundo não compreende as vocações. Vale mais aos olhos
da sociedade atual aquele que amontoa riquezas, embora tenha o coração
corrompido e o espírito coberto de misérias, do que aquele que,
pelo suor de seu trabalho e à custa de tantos sacrifícios, conquista
um título que o eleva. A glória é um sonho de loucos:
o mundo só olha para os fins e não atende aos meios. Voltemos
aos primitivos tempos do paganismo; levante-se um altar ao deus Mercúrio
e seja tudo o que o homem pode ter de mais caro e de mais sublime sacrificado
nesse altar.

MARIQUINHAS (À parte.) – E Carlos que me compromete, meu Deus!

D. ANA (À parte.) – A tal fingida já lhe disse tudo. (Alto.)
Não é tanto assim, Senhor Doutor Carlos: a sociedade não
está tão corrompida como julga e custa-me a crer que ainda tão
jovem, já esteja tão descrente.

CARLOS – Não é descrença, minha senhora; desgraçadamente
é a convicção da verdade.

D. ANA – Talvez o Senhor Doutor Carlos fale despeitado.

CARLOS – Talvez, minha senhora, o futuro mo dirá.

D. ANA – Apesar da sua descrença, crê ainda no futuro, doutor?

CARLOS (Vendo as horas.) – Sinto bastante não poder continuar a discussão,
minha senhora: é quase noite, e tenho ainda que ver dois doentes.

D. ANA – Pois não passa a noite conosco?

CARLOS – Se não fossem os doentes, com muito prazer. (Apertando a
mão de D. Ana.) Até breve, minha senhora. (Apertando a mão
de Mariquinhas.) Adeus, Dona Mariquinhas.

D. ANA – Não seja tão esquivo e continue a aparecer como dantes.
(Carlos sai.)

CENA IX – MARIQUINHAS e D. ANA

D. ANA – Agora nós, Senhora Dona Mariquinhas. Diga-me por que razão
esteve a senhora sozinha com esse moço, durante todo o tempo em que
estive na chácara? não podia levá-lo para onde eu estava?
É bonito que uma menina de sua idade converse só, horas esquecidas,
com um rapaz solteiro?

MARIQUINHAS – Ele tinha chegado há pouco, mamãe, e eu ia levá-lo
à chácara, quando vosmecê entrou.

D. ANA – Não minta, que eu bem vi quando ele chegou; assim como também
já sei que a senhora foi meter-lhe no bico tudo quanto lhe disse há
pouco relativamente ao seu futuro. Ele veio atirar-me indiretas e pedrinhas,
mas engana-se, que eu bem sei o que hei de fazer. Sou capaz de apostar que
a senhora não se agradou daquele homem respeitável e sisudo
que aqui esteve? Não é nenhum bonequinho de cheiro, nem qualquer
doutorzinho!

MARIQUINHAS – Quem, mamãe? o Barão da Cutia?

D. ANA – Sim, o Barão da Cutia, que é viúvo, e um dos
mais importantes fazendeiros da Província de São Paulo.

MARIQUINHAS (Rindo-se.) – Ora, mamãe…

D. ANA – O que quer dizer esse – ora mamãe?

MARIQUINHAS – Quer dizer que o Barão da Cutia poderá servir
para tudo neste mundo, menos para meu marido.

D. ANA – E quem é a senhora para dizer que este ou aquele não
pode ser meu marido? Quem manda aqui nesta casa, Senhora Dona Mariquinhas?
Uma vez por todas: a senhora há de fazer aquilo que eu quiser, e nunca
aquilo que bem lhe parecer; entendeu?

MARIQUINHAS – Farei tudo o que vosmecê quiser, mas desde já
previno-a, que com o tal Barão não me caso.

D. ANA – Ah! a senhora desafia-me? pois bem, veremos quem vence. Sente-se
ali, e vá estudar sua lição de piano.

(Cai o pano.)

ATO SEGUNDO

O teatro representa uma sala com portas ao fundo, duas portas laterais.
Um sofá, espelhos, etc. É noite.

CENA I – CARLOS e MARIQUINHAS

Ao subir do pano ouve-se a música dentro tocar uma quadrilha que continua
durante todo o diálogo. Carlos e Mariquinhas entram de braço
pelo fundo e passeiam pela cena.

MARIQUINHAS – Já sabes que o Senhor Gasparino casou-se, Carlos?

CARLOS – Não sabia.

MARIQUINHAS – Pois é exato: casou-se há dois meses com uma
velha muito rica.

CARLOS – São casamentos da época.

MARIQUINHAS – E talvez que eles sejam bem felizes.

CARLOS – Oh! não repitas, Mariquinhas: conheço bastante tua
alma para que te julgue capaz de partilhar de tais idéias. Pensas que
a felicidade consiste na suntuosidade e no luxo?

MARIQUINHAS – Não, Carlos. Mas minha mãe, infelizmente, assim
o entende e eu não sei o que sinto desde que esse maldito Barão
apareceu em nossa casa: o coração vaticina-me que esse homem
há de ser a causa da nossa desgraça; é viúvo,
rico e sem filhos; e minha mãe já me deu a entender que era
ele o único que poderia fazer a minha felicidade.

CARLOS – A tua felicidade!…

MARIQUINHAS – Sim, Carlos. Ultimamente o Senhor Gasparino tornou-se o seu
amigo inseparável e talvez insuflado por minha mãe representa
entre mim e esse homem o papel mais ridículo que pode representar um
moço de educação.

CARLOS – E falas de educação, Mariquinhas? Tens razão.
O Senhor Gasparino é um moço bem educado, que passa por ter
mesmo as mais belas qualidades: freqüenta os salões… intermedeia
nas conversações algumas frases estudadas do francês,
enfim… é um moço bem educado. Inculca-se 1o Oficial da Secretaria
da Justiça e só fala em grandezas quando não passa de
um simples praticante, cuja ocupação é fumar charutos
e copiar ofícios. Mora no Hotel dos Estrangeiros; janta e almoça
com diplomatas, diz ele, mas entretanto anda em contínua guerra com
os cabeleireiros e alfaiates da rua do Ouvidor. A sua vida é um mistério.
Mas a sociedade também pouco se importa com isso: acolhe-o com os braços
abertos em seu seio e considera-o mesmo um dos seus filhos prediletos.

MARIQUINHAS – Mas minha mãe o recebeu em sua casa na persuasão
de que ele era um moço distinto.

CARLOS – Oh! o que eu não contesto é que ele seja distinto,
até bem distinto!

MARIQUINHAS – Não conversemos sobre futilidades, Carlos; deixemos
o Senhor Gasparino. Estamos a sós. Estes momentos são preciosos:
falemos de nós só, de nós e do nosso futuro. (Senta-se
juntamente com Carlos.) Não ignoras que este baile foi dado por minha
mãe ao Barão da Cutia: minha mãe tem se desfeito em obséquios
para com esse homem, leva constantemente a falar na minha educação
e nas minhas prendas e é raro o dia em que não mande o carro
à cidade para que ele venha passar as tardes conosco. Eu conheço
perfeitamente as intenções e julgo que esta comédia,
onde, bem contra minha vontade, estou representando um papel tão importante,
vai terminar como todas pelo casamento. Assim pois, só tu me poderás
salvar antes que isso se realize. Jura-me, Carlos, em nome do nosso amor,
que hás de cumprir um pedido que vou fazer-te.

CARLOS – Em nome do nosso amor, Mariquinhas, não duvidarei fazer os
maiores sacrifícios. Dize.

MARIQUINHAS – Pois bem, pede-me quanto antes em casamento à minha
mãe.

CARLOS – E julgas que o meu pedido seria atendido! Queres matar a única
esperança que me acalenta, a única ilusão que me resta?

MARIQUINHAS – Eu juntarei os meus rogos aos teus, Carlos, e ela nos atenderá.

CARLOS – Acostumado desde criança aos revezes, este golpe seria o
mais doloroso para mim. Deixa-me portanto viver neste doce engano porque esta
ilusão é toda minha vida. Órfão de pai e mãe,
desde a infância fui confiado aos cuidados de um tio bastante rico,
que, incumbindo-se da minha educação, não poupou sacrifícios
para sustentar-me na carreira que hoje trilho: foi um pai carinhoso e desvelado
que a Providência me deparou e a quem devo tudo neste mundo. Até
aqui só tenho tido lágrimas e dores, Mariquinhas, poupa-me o
martírio: deixa-me viver nesta ilusão.

MARIQUINHAS – Mas, Carlos, teu tio é rico.. . (Mariquinhas levanta-se
e indo à direita encontra-se com Gasparino que entra com uma capa ao
braço ao lado de Porfíria.)

CENA II – OS MESMOS, GASPARINO e PORFÍRIA

MARIQUINHAS (Dando um abraço e um beijo em Porfíria.) – Chegaram
tão tarde…

GASPARINO (Tirando o relógio.) – São dez horas, é a
melhor hora de entrar-se num salão: além disso a menina esteve
arranjando o seu toalete. (Olhando para Carlos, diz à parte.) Sempre
este homem.

MARIQUINHAS – Não quer ir ao toalete arranjar os seus cabelos e os
seus enfeites, Dona Porfíria?

PORFÍRIA – Ai… Estou muito fatigada: os balanços do carro
incomodaram-me excessivamente; quero descansar um pouco. Trouxeste o meu vidrinho
de água de Colônia, Gasparino?

GASPARINO – Esqueci-me, deixei-o no boudoir.

PORFÍRIA – Fizeste mal, menino, tu sabes que sou achacada dos nervos
e a menor emoção incomoda-me.

MARIQUINHAS (À parte.) – E diz ela que tem emoções.

PORFÍRIA – Dá-me a capa, Gasparino; estou um pouco suada e
vem dali… daquela porta, uma correnteza de ar… que pode fazer-me mal.

GASPARINO – Não sejas criança, Porfíria, não
vês que é uma brisa fagueira e saudável que sopra? Eu
sou até de opinião que vás ao jardim respirar este ar,
que há de fazer-te bem.

CARLOS (À parte.) – Que par tão elegante!

GASPARINO – Vai arranjar o teu toalete, menina. A Senhora Dona Ana de Lemos
já deve estar à nossa espera. Aqui tens a tua capa. (Entrega
a capa.) Eu vou passar um golpe de vista pelo salão.

PORFÍRIA – Estou às suas ordens, Dona Mariquinhas. (Mariquinhas
e Porfíria saem pela esquerda.)

CENA III – CARLOS e depois o BARÃO

CARLOS – São na realidade bem originais esses quadros da sociedade
de hoje! Bem originais, palavra de honra. (Tira um charuto e vai acendê-lo.)

BARÃO (Entrando pelo fundo.) – Que calor, meu Deus! Se me demorasse
naquela sala morria sufocado! Além disso, por meu caiporismo, meti
os pés no vestido de uma moça e o reduzi a trapos: olhe que
sou mesmo um desastrado!

CARLOS (À parte.) – É o Barão: desfrutemo-lo.

BARÃO – Oh! Doutor, por aqui: não dança?

CARLOS – Gosto mais de apreciar, senhor Barão.

BARÃO – Pois olhe: eu já dancei duas quadrilhas, mas, meu amigo,
custaram-me caras, porque estou alagado em suor e com uma dor de cabeça…
Oh! Que dor de cabeça, doutor.

CARLOS – Padece da cabeça, senhor Barão?

BARÃO – Muito, doutor, desde o tempo de casado: parece-me que isto
já é crônico, é de família. Foi uma felicidade
encontrá-lo:

se pudesse dar-me um remédio…

CARLOS – As dores são periódicas?

BARÃO – Se eu tenho – periódicos? não senhor. Apenas
assinante do Correio Paulistano.

CARLOS (À parte.) – Que estúpido! (Alto.) Quero dizer: se essas
dores aparecem todos os dias a uma hora certa e determinada.

BARÃO – Não senhor, passo muitas vezes sem tê-las; quase
sempre aparecem quando faço um grande excesso; mas no meu tempo de
casado eram constantes.

CARLOS – Deixe-me ver o seu pulso. (Apalpa o pulso.) Tenha a bondade de pôr
a língua de fora. (Barão mostra a língua.) A sua língua
não está boa. (A orquestra toca urna valsa.) Com licença,
senhor Barão, vou ver se encontro um par de valsa. (Sai apressado pelo
fundo.)

BARÃO – Ó doutor! Doutor!… – A sua língua não
está boa! – E esta! Que diabo terá a minha língua. (Vai
ao espelho e examina a língua.)

CENA IV – OS MESMOS e GASPARINO

GASPARINO (Entrando pelo fundo.) – Quel domage! o par de valsa roeu-me a
corda. (Reparando para Barão.) O que está fazendo aí,
senhor Barão?

BARÃO (Mostrando a língua.) – Veja, (Pausa.) a minha língua
não está boa!

GASPARINO – O que quer dizer isso?

BARÃO – Disse-me o Doutor Carlos!

GASPARINO – E Vossa Excelência acredita no que dizem os médicos?

BARÃO – Oh! se acredito, meu amigo! Tenho medo desta cidade; todos
os dias leio o obituário no Jornal do Commercio e arrepio-me diante
de uma fileira de pessoas que morrem de gastrites, fistrites, ou coisa que
o valha; e de uma moléstia chamada idem, idem que eu não sei
o que seja. Estou vendo que se a tal moléstia – idem – continua, vou-me
embora quanto antes para São Paulo. Aquilo, sim, é que é
terra; aparece de vez em quando lá um ou outro caso de bexigas ou de
maletas, mas isso não quer dizer nada à vista do que por aqui
há.

GASPARINO – Não pense nisso, senhor Barão, Vossa Excelência
está sadio e robusto. Já andei à sua procura pela sala.
Saiba que ainda não pude realizar o seu negócio: trago a carta
aqui no bolso, mas ainda não me foi possível estar em um tête
a tête com a menina. Eu entendo que Vossa Excelência deve dirigir-se
a ela e declarar positivamente tudo o que sente; isto de cartas compromete;
as palavras convencem mais. Olhe: eu nunca escrevi à minha cara Porfíria;
pintei-lhe em uma ocasião a seus pés a paixão que me
devorava com as cores as mais vivas, cantei ao piano um romance cheio de inspiração
e de dor…

BARÃO – Então acha que eu devo… cantar!

GASPARINO – Não é de absoluta necessidade, senhor Barão;
basta somente dizer que a ama, que a adora, etc., etc.

CENA V – OS MESMOS e CARLOS

CARLOS (Aparecendo no fundo, à parte.) – Oh! O Barão e o Senhor
Gasparino! Ouçamos o que eles dizem.

BARÃO – Mas, meu amigo, eu não sou o senhor, o senhor sabe
essas palavras bonitas que eu não sei; ainda é moço,
e pode, com facilidade, fazer uma declaração de amor.

CARLOS (À parte.) – Uma declaração de amor!

GASPARINO – Mas acredite, senhor Barão, que não há nada
mais fácil do que uma declaração de amor.

BARÃO – Mas os meus cabelos brancos

GASPARINO – Oh! Mais ça n’est fait rien, quando ama-se loucamente
uma menina, como Vossa Excelência ama a Dona Mariquinhas.

BARÃO – Se ela ao menos já tivesse lido a carta. . . Oh! é
impossível que aquela carta que o senhor escreveu não lhe vá
fazer cócegas no coração; olhe que está muito
bem escrita! Aqueles dois versos do fim… não se lembra, Senhor Gasparino?

GASPARINO – Aquilo foi escrito ao correr da pena, senhor Barão: é
impossível reter. Eu entendo que Vossa Excelência deve aproveitar
esta noite para fazer a sua declaração. A Senhora Dona Ana de
Lemos leva muito a bem, e até estima este casamento, como ela mesmo
me deu a entender, e Vossa Excelência não deve perder esses momentos
preciosos. Parece-me que este doutorzinho em medicina que freqüenta a
casa faz a corte e pode tirar-lhe do lance.

BARÃO – Pois quê? esse pinga, esse pelintra que teve há
pouco o desaforo de dizer que a minha língua não estava boa,
arrasta a asa à menina?

CARLOS (À parte.) – São títulos que me honram, é
um Barão quem mos dá.

GASPARINO – Eu não sei com certeza. Não lhe posso afiançar,
mas pelo que tenho observado…

BARÃO – Então acha que eu devo fazer-lhe uma declaração?

GASPARINO – É minha opinião.

BARÃO – Mas é o diabo! O senhor não poderia ensinar-me
algumas frases, ao menos só para começar, sim, porque o mais
difícil é começar. Eu sou um pouco estúpido, reconheço.

GASPARINO – É modéstia de Vossa Excelência: faço
justiça à sua reconhecida inteligência.

CARLOS (À parte.) – Oh! pois não!

GASPARINO – E se o coração não lhe manda aos lábios
essas palavras fervorosas de paixão, é porque Vossa Excelência
ama com delírio e a presença dessa menina faz-lhe perder a razão.

BARÃO – Oh! bonito! meu amigo, bonito! E assim que devo começar?

GASPARINO – Não, senhor Barão. Vossa Excelência deve
começar, pintando esse fogo que o abrasa em segredo há três
meses, que a ama como um insensato, que, para merecer-lhe um olhar, não
duvidaria arriscar a sua glória e o seu futuro, que por um seu sorriso,
daria a vida, e que para alcançar a sua mão trocaria as harmonias
dos anjos e a mansão celeste pelas chamas e tormentos do inferno!

BARÃO – Bravo, meu amigo: bravíssimo! Continue, continue: eu
lhe peço.

GASPARINO – Aí, necessariamente, ela há de dizer que os homens
são uns perjuros, uns inconstantes…

BARÃO – Não é melhor fazermos isto ao vivo, Senhor Gasparino?

CARLOS (À parte.) – Ao vivo! O negócio complica-se.

BARÃO – Eu quero ficar com essas palavras bem gravadas na memória
e é preciso que nem uma só delas se perca. Suponha o meu amigo
que eu sou Dona Mariquinhas e que o senhor representa a minha pessoa.

GASPARINO – Está dito: como é para bem de Vossa Excelência…
Sente-se nesta cadeira. (Oferece uma cadeira ao Barão que senta-se.)
Eu fico deste lado. Lá vai: minha senhora. (Faz uma cortesia.) Aqui
faz Vossa Excelência uma cortesia. Vamos ensaiar outra vez.

CARLOS (À parte.) – Se eu contar esta cena ninguém me acreditará!

GASPARINO – Minha senhora… (Faz uma cortesia e o Barão levantando-se
corresponde.) Justamente: há três meses que um sentimento vago
e indeciso preenche um vácuo que existia em meu coração:
por toda a parte uma imagem de anjo, uma fada, uma visão de roupas
brancas me persegue e preocupa-me o pensamento; quer acordado, quer em sonhos
vejo esse anjo adejar sobre minha cabeça e apontar-me sorrindo para
um céu de venturas e prazer: esse anjo, essa mulher, essa visão
de roupas brancas (veja Vossa Excelência a expressão com que
eu digo isto), essa visão sois vós.

BARÃO – Agora eu passo para o seu lugar e o senhor passa para o meu.
(Trocam de lugares.) Mas eu não posso exprimir-me por outras palavras?
É impossível decorar em tão pouco tempo toda esta trapalhada.

GASPARINO – Vossa Excelência pode usar de outros termos: basta que
eles exprimam o que o seu coração sente. Cumpre porém
acabar de joelhos: isto é o mais essencial.

BARÃO – Lá vai: eu te amo Mariquinhas, tu és uma fada
de visões brancas; quero dizer, uma visão de fadas brancas…
Oh! diabo, também não é: ora, isto também não
é essencial! lá vai outra vez: amo-te, sim, amo-te e por que
não hei de amar-te? Amo-te como amava a minha cara Inês, (Possuído,
segura nas mãos de Gasparino e ajoelha a seus pés.) como a minha
cara Inês, que lá repousa no Jazigo de Itu. (Entra Dona Ana de
Lemos pela esquerda e pára admirada olhando para o Barão: Carlos
desaparece.) Amo-te e adoro-te. (Gasparino olha para Dona Ana de Lemos e levanta-se.)

CENA VI – OS MESMOS, D. ANA, menos CARLOS

D. ANA (À parte.) – O Barão aos pés do Senhor Gasparino!
Um homem aos pés do outro! (Alto.) O que fazia, senhor Barão?

BARÃO (Ainda de joelhos.) – Nem sei, minha senhora. (Levanta-se.)

GASPARINO (Perturbado.) – O senhor Barão perguntava-me… Sim. ..
(À parte.) Que escândalo! (Alto.) Com licença, minha senhora,
eu vou à sala ver a minha Porfíria que deve estar ansiosa por
mim. (Sai.)

CENA VII – D. ANA e BARÃO

BARÃO (Fica perturbado sem saber o que há de dizer: pausa longa.)
– Que tal tem achado Vossa Senhoria o baile?

D. ANA – A mim é que compete fazer essa pergunta, senhor Barão.

BARÃO (À parte.) – Bonito! já disse uma asneira.

D. ANA – Vossa Excelência tem-se divertido?

BARÃO – Alguma coisa, minha senhora, alguma coisa.

D. ANA – Tem dançado, já sei.

BARÃO – Duas quadrilhas, minha senhora.

D. ANA – Não valsa, senhor Barão?

BARÃO – Na minha idade, minha senhora! Já estou um pouco pesado;
já fiz época. Uma ocasião valsei no baile da Concórdia
em São Paulo com a filha do alferes Braga e ela deu a entender que
eu não valsava mal: mas hoje já não sou o mesmo.

D. ANA – Já dançou com Mariquinhas, senhor Barão? Ela
dança muito bem: é principalmente na dança onde ela prima.
Aprendeu três meses no colégio e dança com muita graça.

BARÃO (À parte.) – Oh! ela fala-me desse anjinho: vou declarar-lhe
tudo quanto sinto. (Alto.) A sua filha, minha senhora, a sua filha é…
Sim… a sua filha dança bem. Mas eu tenho a cabeça em febre,
sinto no peito.

D. ANA – Está incomodado, senhor Barão?

BARÃO (À parte.) – Lá vai tudo: ânimo e coragem.
(Alto.) Oh! minha senhora eu a amo, eu amo uma fada, uma roupa de visões
brancas, um anjo que me consome a existência. Esse anjo, essa mulher,
essa visão sois vos.

D. ANA – Ai! será possível, senhor Barão? Tanta felicidade!
tanta ventura! Oh! diga-me que tudo isto é um sonho! Tire-me desta
ilusão!

BARÃO – Oh! não, não é um sonho: eu amo, sim,
eu amo: por um seu sorriso daria as chamas do inferno e por um seu olhar as
alegrias dos anjos. A vossos pés deposito duas fazendas.

D. ANA – Ah!

BARÃO – O meu sítio da Cutia…

D. ANA – Oh!

BARÃO – O meu sítio do Senhor Bom-Jesus de Parapora.

D. ANA – Ah!

BARÃO – A minha burra branca e o meu título de Barão.
(D. Ana desmaia.) O que é isto, minha senhora? O que tem? (Tira um
lenço e abana-lhe o rosto.) Minha senhora! Minha senhora!

D. ANA – Estou melhor; o prazer, a emoção… Aceito com reconhecimento
tanto sacrifício, senhor Barão. Em troca de tudo isto só
posso dar-lhe a minha mão.

BARÃO (À parte.) – A sua mão! O diabo da velha não
me entendeu!

D. ANA (À parte.) – Oh! É um sonho! Eu o queria para genro
e ele quer dar-me o doce título de esposa.

BARÃO – A sua mão! Então Vossa Senhoria não me
compreendeu.

D. ANA – Pois não é da nossa união de que se trata,
senhor Barão?

BARÃO – Vossa Senhoria entendeu mal! É a mão de sua
filha, de Dona Mariquinhas que eu peço.

D. ANA – Oh! bem eu dizia que era um sonho; mas ainda sou muito feliz, senhor
Barão, muito feliz: não mereci o doce nome de esposa, mas posso
de ora em diante chamar-lhe meu adorado, meu idolatrado filho.

BARÃO – Oh! minha senhora, Vossa Senhoria enternece-me.

D. ANA (À parte.) – Duas fazendas! Um baronato! Realizou-se enfim
o meu sonho dourado. (Alto.) Vou para a sala, senhor Barão, quero dar
quanto antes a Mariquinhas esta agradável notícia.

BARÃO – Por ora nada lhe diga, minha senhora: ela pode desmaiar de
prazer.

D. ANA – Vou quanto antes, senhor Barão. (À parte.) Duas fazendas!
(Sai apressada pelo fundo.)

CENA VIII – O BARÃO, MARIQUINHAS e PORFÍRIA

BARÃO (Respirando.) – Parece-me que estou livre de uma carga! Ora
também o diabo não é tão feio como o pintam; pensei
que fosse mais difícil. (Entra Mariquinhas com Porfíria pela
esquerda.) Aí vem ela: que peixão!

PORFÍRIA (Cumprimentando o Barão.) – Senhor Barão…
ainda não tive o prazer de vê-lo hoje, mas já perguntei
por Vossa Excelência. (Senta-se juntamente com Mariquinhas depois desta
fazer uma cortesia ao Barão.)

BARÃO – Estou aqui tomando fresco.

MARIQUINHAS – Como tem achado esta nossa reunião, Dona Porfíria?

PORFÍRIA – Bem agradável, Dona Mariquinhas. Mas infelizmente
não a tenho apreciado como devia. Depois que me casei, qualquer coisinha
é bastante para chocar-me os nervos. O calor das luzes, a orquestra,
o murmúrio das salas, os balanços do carro, tudo isto incomoda-me
extraordinariamente. Estou casada há dois meses e Gasparino não
me tem deixado sossegar um só instante: leva-me a bailes, festas, teatros,
passeios… enfim, é um motu contínuo. Eu já lhe tenho
dito muitas vezes que não posso viver assim, mas ele sempre me responde
que não é bonito para um rapaz casado aparecer em público
sem a sua cara metade. Além disto obriga-me a andar todos os dias em
casa espartilhada.

MARIQUINHAS – Mas isso há de fazer-lhe mal?

PORFÍRIA – Já tenho um vergão na cintura e ultimamente
estou padecendo do estômago. Mas em compensação não
podia acertar melhor na escolha de um marido: faz-me todas as vontades e não
duvida mesmo sacrificar-se para realizar os meus menores caprichos. Foi um
pouco extravagante em solteiro, é verdade, mas doravante espero que
há de ser um bom pai de família.

BARÃO (À parte.) – Nem sequer olha para mim: olhem que é
mesmo um peixão!

MARIQUINHAS – Deve ser um estado bem feliz o casamento, quando se encontra
um bom marido.

BARÃO – Na verdade… bem feliz, minha senhora. Ao lado da minha Inês
eu gozava momentos de verdadeira felicidade! (À parte.) Não
me responde. Se aqui não estivesse esta maldita velha repetia-lhe a
declaração.

MARIQUINHAS – Esteve ontem no Clube, Dona Porfíria? Dizem que a partida
esteve muito concorrida.

PORFÍRIA – Estivemos no teatro – Gasparino quis ir ouvir a Norma.
(A orquestra toca uma polca.)

MARIQUINHAS – Não vai dançar, Dona Porfíria?

PORFÍRIA – Tenho par para a quarta, mas julgo que tocam uma polca.

BARÃO (À parte.) – Vou pedir-lhe uma quadrilha. Esta velha
empata-me as vasas. (Alto para Mariquinhas.) Tem par para esta quadrilha,
Sinhá?

MARIQUINHAS – Já tenho, senhor Barão.

BARÃO – E para a seguinte?

MARIQUINHAS – Também já tenho, senhor Barão.

BARÃO – E para a outra?

MARIQUINHAS – Já tenho par para todas, senhor Barão.

BARÃO (À parte.) – Se ao menos ela já tivesse recebido
a carta…

PORFÍRIA – Senhor Barão: dê-me o seu braço e vamos
dar um passeio pela sala.

BARÃO (À parte.) – Que maldita velha! (Alto.) Pois não,
minha senhora. (Dá o braço a Porfíria.)

PORFÍRIA – Não vem, Dona Mariquinhas?

MARIQUINHAS – Há de desculpar-me, Dona Porfíria. Tenho que
dar algumas ordens lá dentro. (Porfíria e Barão saem.)

CENA IX – MARIQUINHAS, só.

MARIQUINHAS – Não sei o que sinto quando estou ao pé deste
homem: a sua figura, os seus gestos e o seu ar aparvalhado só me inspiram
terror e repugnância. Para minha mãe talvez seja ele a felicidade
que entrou em casa; para mim é o anúncio terrível de
uma desgraça que pressinto. Paciência! Resta-me ao menos a esperança
de que Carlos me salvará. (Vai ao espelho e arranja as flores do cabelo.)

MARIQUINHAS – Não sei o que sinto quando estou ao pé deste
homem: a sua figura, os seus gestos e o seu ar aparvalhado só me inspiram
terror e repugnância. Para minha mãe talvez seja ele a felicidade
que entrou em casa; para mim é o anúncio terrível de
uma desgraça que pressinto. Paciência! Resta-me ao menos a esperança
de que Carlos me salvará. (Vai ao espelho e arranja as flores do cabelo.)

CENA X – A MESMA e GASPARINO

GASPARINO (Aparecendo no fundo, à parte.) – Afinal encontrei-a só.
(Dirige-se para a cena: Mariquinhas volta-se.) Minha senhora: aflito procurava
uma ocasião para dirigir-lhe a sós algumas palavras.

MARIQUINHAS – Sinto bastante não poder satisfazer-lhe, Senhor Gasparino:
vou dançar.

GASPARINO – Oh! conceda-me ao menos um só instante, eu lhe suplico.

MARIQUINHAS – Tenha a bondade de dizer o que deseja.

GASPARINO – Quero cumprir uma missão santa e sublime de que me encarregaram.

MARIQUINHAS – Já lhe disse que vou dançar. (Quer sair: Gasparino
toma-lhe a frente.)

GASPARINO – Eu lhe suplico, minha senhora: duas palavras apenas.

MARIQUINHAS – Pois bem, fale. (À parte.) Quero certificar-me de minhas
suspeitas.

GASPARINO – Minha senhora: há três meses que um homem a adora
como um insensato, que a idolatra, que fez de Vossa Excelência o único
sonho de seus pensamentos e que para alcançar um sorriso de seus lábios
seria capaz de dar a própria vida. Esse homem deposita aos pés
de Vossa Excelência uma fortuna de 500 contos e um título pomposo
e nobre que a colocará nos primeiros degraus da escala social.

MARIQUINHAS (Com altivez.) – E quem é esse homem?

GASPARINO – O Barão da Cutia, minha senhora.

MARIQUINHAS (À parte.) – Oh! bem me dizia o coração.
(Alto.) E o senhor não fez mais do que representar um papel que lhe
encomendaram? É na realidade um brilhante papel, Senhor Gasparino.

GASPARINO – É um serviço, minha senhora, que pode e até
deve prestar todo o amigo dedicado e fiel.

MARIQUINHAS – Estou ciente, Senhor Gasparino: está cumprida a sua
missão?

GASPARINO (Tirando uma carta do bolso.) – Pediu-me mais que lhe entregasse
este – párfumé – e que dissesse a Vossa Excelência que,
já que ele próprio não podia manifestar os seus sentimentos,
confiava ao papel os arcanos de sua alma, pede-lhe resposta. (Entrega a carta.)

MARIQUINHAS (Rasgando a carta.) – Diga-lhe que a melhor resposta que lhe
posso dar é esta.

GASPARINO – O que fez, minha senhora? Vossa Excelência rasgou uma página
cheia de inspiração e de sentimento! Uma página que encerra
as confissões de uma alma apaixonada! É preciso não ter
coração! O Barão ama-a como um louco, adora-a e em nome
de tudo que Vossa Excelência tem de mais caro e de mais santo, em nome
de sua mãe, eu peço-lhe, suplico-lhe de joelhos (Ajoelhando-se.)
que alimente essa paixão que pode levá-lo à sepultura.

CENA XI – OS MESMOS, o BARÃO e PORFÍRIA

PORFÍRIA (Entrando de braço com o Barão pelo fundo.)
– Ai… os meus nervos… eu morro… segure-me, senhor Barão. (Desmaia.)

BARÃO – Dona Porfíria! Dona Porfíria! (Sentando-a no
sofá.)

GASPARINO (À parte.) – Bonito!… por esta não esperava eu.

PORFÍRIA – Os meus nervos… eu morro… ai! senhor Barão,
não me desampare.

GASPARINO (Dirigindo-se a Porfíria sustém-lhe a cabeça.
Para o Barão.) – Vossa Excelência acaba de comprometer-me. (Para
Porfíria.) Menina, ó menina, o que tens? Olha, é o teu
Gasparino.

PORFÍRIA – Ah!… eu morro… eu morro… meu Deus.

MARIQUINHAS (Para Gasparino.) – Talvez que cheirando um pouco de água
de Colônia lhe passasse.

GASPARINO – Isto costuma dar-lhe quase sempre, não é nada,
minha senhora.

BARÃO – Ou então uma canja de galinha. (Indo ao fundo grita.)
Uma canja! Uma canja!

GASPARINO – Como, senhor Barão? Canja num baile!

BARÃO – Sim, senhor: lá para os meus lados em todos os bailes
há canja de galinha, isto é fraqueza e a canja sendo substancial
faz-lhe bem.

GASPARINO – Não é preciso, senhor Barão, traga-lhe antes
um sorvete, isto é proveniente do calor.

MARIQUINHAS (À parte.) – Um sorvete para uma vertigem!

GASPARINO – Porfíria! Porfíria! meu anjo! meu coração!
o que tens? Dize, eu te peço.

MARIQUINHAS – Não seria bom desatar o vestido, Senhor Gasparino?

GASPARINO – Não é necessário, minha senhora, a Gudin
faz-lhe os vestidos muito largos. (Para Porfíria.) Minha Porfíria!
Minha Porfíria! Comeste alguma coisa indigesta? (À parte.) Se
isto se espalha, que escândalo, meu Deus!

CENA XII – OS MESMOS, CARLOS e o BARÃO

BARÃO (Entrando pelo fundo com Carlos.) – Venha, doutor, venha, ali
está ela. (Carlos dirige-se para Porfíria.)

GASPARINO – Não é nada, doutor: é uma pequena vertigem.

BARÃO – Mas ela está muito pálida! (À parte.)
E a pequena nem sequer olha para mim!

CARLOS (Apalpando o pulso de Porfíria.) – O seu pulso está
agitado, mas julgo que é simplesmente uma síncope.

GASPARINO – Uma síncope, doutor?! É moléstia grave?…

CARLOS (Com riso irônico.) – Talvez seja, Senhor Gasparino. (Para Mariquinhas.)
Tenha a bondade de levar esta senhora ao toalete, Dona Mariquinhas, desatar
o colete e ministrar-lhe os socorros necessários.

GASPARINO (Baixo para o Barão.) – Já lhe disse tudo.

BARÃO – E então?…

CARLOS (Baixo para Mariquinhas.) – Tenho muito que dizer-te.

MARIQUINHAS – E eu também, Carlos. (Carlos ajuda a Mariquinhas a levar
Porfíria para a esquerda.)

(Cai o pano.)

(Fim do Ato 2)

ATO TERCEIRO

O teatro representa a mesma cena do primeiro ato.

CENA I – BARÃO, só.

BARÃO (Lendo o Jornal do Commercio.) – “Aluga-se… Vende-se…”
É célebre! Estas folhas do Rio de Janeiro não trazem
nada de importante! Em São Paulo lê-se o Correio Paulistano e
faz gosto ver as notícias curiosas que traz aquele jornal. (Virando
a folha do jornal, lê): “No dia 6 foram sepultados… Julião
Praxedes da Cunha, de fistrites, quistrites, entre coletes ou colites.”
Isto é erro de imprensa. “Antônio Gervásio de Araújo,
idem, Luciano Pimentel, idem… idem… idem…” Cá está
o tal implicante idem. É – a fantasma – que me persegue nesta maldita
terra! Noutro dia fui consultar um médico e ele disse-me que era moléstia
contagiosa! Os sintomas são terríveis: dilatação
do nariz… (Apalpando o nariz.) Felizmente o meu ainda está do mesmo
tamanho; afecção nervosa pela circunferência do crânio,
estremecimento de orelhas, terminando por cair o indivíduo de quatro
pés e entregar-se a um furor infrene. Oh! há de ser uma morte
horrível! Logo que sentir o primeiro estremecimento de orelhas, estou
marchando para São Paulo. (Virando a folha do jornal, lê): “O
Doutor Carlos de Brito dá consulta todos os dias úteis das 9
horas às 10 da manhã.” E o pelintra que anda fazendo roda
à pequena e que, segundo me disseram, está hoje senhor de boas
patacas. (Tirando o relógio e vendo as horas.) E esta! Há quase
meia hora que estou aqui e ainda ninguém veio falar-me! É célebre!
Tenho reparado que há um mês para cá esta gente já
não me recebe como dantes; a velha já não manda o carro
buscar-me todas as tardes e ultimamente sempre que aqui venho aparece-me de
nariz torcido, depois de meia hora de espera. Ontem falei-lhe para marcar
quanto antes o dia do casamento e a maldita respondeu-me que por ora nada
podia fazer, porque ainda se está preparando o enxoval. Maldito enxoval,
que demora-me o casório! (Suspirando.) Ai, ai; muito padece quem ama!

CENA II – O MESMO e GASPARINO

GASPARINO (Entrando vestido de luto, à parte.) – Oh! o Barão!
Que maçante! (Alto.) Bons dias, senhor Barão.

BARÃO – Oh! meu caro amigo, como vai? Há muito tempo que o
não vejo. Por onde tem andado? Já não quer aparecer por
aquela sua casa.

GASPARINO – Depois da morte da minha cara Porfíria… (Tirando o lenço
e levando-o aos olhos.) Oh! não posso lembrar-me daquele anjinho sem
derramar copiosas lágrimas. Foi uma fatalidade!

BARÃO (Também enxugando os olhos.) – Também a minha
burra branca morreu. São decretos da Providência!

GASPARINO – Ontem fui ao cemitério e depositei sobre a sua sepultura
uma capela de saudades.

BARÃO – A minha jaz na Cutia, dormindo o sono dos inocentes. Era mesmo
uma inocente criatura! Como marchava aquele animal, Senhor Gasparino, era
uma rede!

GASPARINO – Deixemos aqueles que repousam na mansão dos justos (Mudando
de tom.) Vossa Excelência já fixou o dia do seu casamento?

BARÃO – Até agora nada está decidido.

GASPARINO (À parte.) – E creio que nada arranjarás.

BARÃO – Se o senhor pudesse interceder por mim… Eu não tenho
jeito para essas coisas. Se não fosse o senhor talvez que a Senhora
Dona Ana ignorasse até as minhas intenções.

GASPARINO – Veremos, senhor Barão. Hei de fazer tudo que estiver no
círculo de minhas forças. (À parte.) Conta comigo, meu
lorpa.

BARÃO (Tirando o relógio, à parte.) – Cinco e meia:
há mais de meia hora que estou aqui e ainda ninguém! Que maçada!
(Alto) Ora diga-me cá, Senhor Gasparino: o senhor que é um moço
de inteligência e de saber, poderá explicar-me uma coisa extraordinária
que observo há perto de um mês?

GASPARINO – Já sei: quer falar-me do cometa que aparece as noites?

BARÃO – Não; não é isso. Em São Paulo
aparecem muitos, mesmo de dia; mas como não devo nada a ninguém,
não tenho medo dos cometas.

GASPARINO (À parte.) – Je ne le comprends pas, mais c’est la même
chose.

BARÃO – Quero que o senhor me explique a razão por que a Senhora
Dona Ana de Lemos trata-me presentemente com tanta frieza.

GASPARINO (À parte.) – Felizmente já reparou. (Alto.) Nada
mais fácil de explicar-se, senhor Barão. Outrora era Vossa Excelência
uma pessoa importante e de cerimônia, cujas relações era
preciso firmar com carinhos e um tratamento condigno com a sua posição;
hoje Vossa Excelência não é mais do que um filho da casa,
um amigo dedicado e fiel, para quem morrem essas regras banais e frívolas
da etiqueta.

BARÃO (Apertando a mão a Gasparino.) – Oh! meu amigo, obrigado.
Quando estou ao pé do senhor é que reconheço a minha
estupidez. Já não me lembrava que eu era um filho da casa e
que não devia reparar nessas coisas. E a pequena ainda consagra-me
aquele afeto?

GASPARINO – Oh! Ela ama-o como uma insensata!

BARÃO – Não me diga isso que enlouqueço.

GASPARINO (À parte.) – Este homem não se conhecerá?

BARÃO (Segurando no chapéu.) – Eu vou aqui à casa do
Comendador Lisboa fazer uma visita e depois virei cumprimentar a minha futura
costela. É um anjinho! Se falar com a Senhora Dona Ana de Lemos, não
se esqueça do meu pedido.

GASPARINO – Já disse a Vossa Excelência que hei de fazer tudo
o que puder.

BARÃO (Apertando a mão de Gasparino.) – Obrigado, meu amigo.
Até logo. (Sai pelo fundo.)

CENA III – GASPARINO, só.

GASPARINO – Quelle béte. Até agora ainda não compreendeu
que esta família o repele e pede-me que interceda por ele na fixação
do dia do casamento, quando a Senhora Dona Ana de Lemos, confiada na perspicácia
que me caracteriza suplicou-me que o despedisse quanto antes desta casa da
maneira a menos escandalosa. Na realidade a missão é um pouco
difícil, mas enfim é preciso cumpri-la porque tenho cá
meus cálculos. Concordo que a Senhora Dona Ana de Lemos, prometendo
a mão da menina a esse lorpa, ele tenha um justo motivo para revoltar-se,
sofrendo agora uma repulsa; mas também ninguém poderá
deixar de concordar que uma fortuna de mil contos não é uma
fortuna de quinhentos. Ora, o Senhor Doutor Carlos de Brito, que parecia ser
um mau moço, mas que hoje vejo que é um moço de excelentes
qualidades, possui com a morte de um tio uma fortuna de mil contos; logo,
deve ser preferido ao Barão da Cutia, que possui quinhentos. Isto é
lógico e não pode sofrer refutação. Uma fortuna
de mil contos! Parbleu que já é um belo capital. (Sentando-se
no sofá e suspirando.) Ai, ai! Se eu possuísse tanto dinheiro
não estava, decerto, crivado de dívidas. Logrado por aquela
velha, a quem o destino ligou-me por três meses, e que o mundo dizia
possuir as minas da Califórnia, poderia hoje fazer uma brilhante figura,
se a maldita não possuísse unicamente uns miseráveis
trinta contos, metade dos quais empreguei no pagamento de algumas dividas
minhas e se ela não tivesse a extravagante idéia de deixar a
sua terça a irmandades e obras pias. Mas em compensação
fiz-lhe também uma obra pia e de caridade, mandando-a para outro mundo
da maneira a mais fácil possível. (Levantando-se.) É
um meio pronto e eficaz que recomendo a todos aqueles que se casarem com velhas
ricas. Tornei-me sócio de todos os bailes que por aí há,
assinante de todos os teatros e por toda a parte levava a velha comigo sempre
apertada de colete e trajando os melhores vestidos que figuravam nas vidraças
do Wallerstein. Se estava suada oferecia-lhe um sorvete para refrescar-se;
se se queixava dos vestidos apertados, convencia-a de que era muito ridículo
andar uma menina de vestidos largos: ceias todas as noites para prevenir indigestões;
banhos de água fria depois de um passeio pelo campo para dar vigor
ao corpo; fogos de artifício etc., etc. Com tal receita pode qualquer
dar o passaporte a uma velha desta para a melhor dentro de três meses.
Oh! Se eu não tivesse sido logrado, poderia hoje ser o homem mais feliz
do mundo! (Pensando.) Mas enfim não convém desesperar. A Senhora
Dona Ana de Lemos tem alguma coisa… julga-me sem dúvida senhor de
uma boa fortuna com a morte da velha… a menina casa-se com mil contos…
fica este bolo em casa… Silêncio, minhas esperanças fagueiras!
Aí vem ela.

CENA IV – O MESMO e D. ANA

D. ANA (Entrando pela direita.) – Ansiosa esperava a sua chegada. Já
sei que esteve aqui com o Barão.

GASPARINO – É verdade.

D. ANA – Então?

GASPARINO – Por ora não lhe disse nada de positivo.

D. ANA – Senhor Gasparino, é um favor que lhe peço: veja se
me enxota quanto antes aqui de casa aquela bisca.

GASPARINO – Hei de empregar os meios, minha senhora, mas convém não
dar escândalo.

D. ANA – É um toleirão, um malcriado que vem todos os dias
aborrecer a menina e maçar-me a paciência contando-me histórias
da sua burra branca, falando-me das vantagens da garapa de Santo Amaro, da
farinha de milho, de sua fazenda e de tudo que lhe vem à boca. Não
acha, Senhor Gasparino, que é um homem sem polidez, sem educação?

GASPARINO – É minha opinião de há muito, minha senhora.
(À parte.) É preciso adular a velha.

D. ANA – Veja se pode haver comparação entre o Doutor Carlos
e aquela figura de jarro de louça: é um homem até feio,
noutro dia estive reparando.

GASPARINO – E além disso não está na posição
em que se acha o Doutor Carlos de Brito!

D. ANA – Justamente. O Senhor Carlos é um moço inteligente
e estudioso, que tem diante de si um futuro brilhante e se não é,
como o primeiro, um Barão, possui um título ainda mais nobre,
porque adquiriu-o à custa de sacrifícios e trabalhos. Além
disso os títulos hoje compram-se e com uma fortuna de mil contos não
há ninguém que deixe de ser Barão.

GASPARINO – Com mil contos eu seria até Imperador da China.

D. ANA – Demais, devemos respeitar as primeiras inclinações.
O Senhor Carlos foi o primeiro moço por quem palpitou o coração
de Mariquinhas: cortar a felicidade desses dois inocentes seria matá-los.

GASPARINO – A felicidade? E um sonho dourado que não se realiza na
terra.

D. ANA – Descrê da felicidade, Senhor Gasparino? Tem razão,
com a perda que acaba de sofrer…

GASPARINO – É uma perda irreparável, minha senhora!

D. ANA – Não descreia. Na posição em que está,
talvez encontre brevemente alguém que possa fazer a ventura de seus
dias.

GASPARINO (À parte.) – Esta mulher está me desafiando.

D. ANA – E se tiver de dar pela segunda vez esse passo, ouça os conselhos
de uma pessoa experiente e que o estima. Escolha uma mulher sisuda, já
gasta das ilusões do mundo e deixe as mocinhas da moda, essas cabecinhas
de avelã, em cujo seio só poderá encontrar a desgraça.

GASPARINO (À parte.) – Não há dúvida: é
mesmo uma provocação!

D. ANA – Essas nunca poderão ser boas consortes, nem tampouco boas
mães de família, porque, não tendo discernimento bastante
para compreender a força desta palavra santa e sublime: amor; falam
com o coração e o coração as atraiçoa!
Mas o que tem, Senhor Gasparino? Está incomodado? (À parte.)
Sem dúvida já compreendeu tudo.

GASPARINO – Não tenho nada, minha senhora. Vossa Excelência
fala-me em coisas tão tocantes, que é impossível deixar
de comover-me.

D. ANA – Feliz daquela que possuir um coração tão sensível!

GASPARINO (À parte.) – Isto já é muito positivo! Vou
declarar-me. (Alto.) Minha senhora, uma vez que Vossa Excelência pinta-me
com cores tão vivas a felicidade de um estado que tanto amei, e do
qual tão cedo vi-me privado, é justo que eu também abra
o meu coração a Vossa Excelência, manifestando um sentimento
que nele germina apenas há um mês, mas que é toda a minha
vida. (À parte.) Ainda não compreendeu?

D. ANA (À parte.) – Será possível?

GASPARINO – E se uma senhora, nas condições que Vossa Excelência
apresenta, quisesse preencher esse vácuo…

CENA V – OS MESMOS e CARLOS

CARLOS (Entrando pelo fundo vestido de luto.) – Desculpem se venho interromper
a conversação.

D. ANA Chegou muito a propósito, doutor; há pouco falávamos
na sua pessoa.

GASPARINO (Oferecendo urna cadeira a Carlos.) – Não quer sentar-se,
doutor?

CARLOS – Aceito: muito agradecido. (Sentam-se todos.)

D. ANA – Ontem tinha prometido vir jantar conosco e no entretanto logrou-nos.
Pois não sabe o que perdeu: jantou aqui o Senhor Gasparino e tivemos
um belo jantar.

CARLOS – Só o que sinto é não ter gozado duma tão
amável companhia.

GASPARINO – O doutor foi quem não quis proporcionar-nos este prazer.

D. ANA – Mariquinhas sentiu bastante a sua ausência. Ai vem ela. (Entra
Mariquinhas.)

CENA VI – OS MESMOS e MARIQUINHAS

CARLOS – Como tem passado, Dona Mariquinhas?

GASPARINO (Fazendo uma cortesia.) – Minha senhora…

D. ANA – Há duas horas que está-se vestindo, doutor. Quando
espera pelo senhor não quer sair do espelho. Veja como está
bonitinha!

MARIQUINHAS – Mamãe…

GASPARINO – Em compensação traz uma elegante toalete.

CARLOS – E muito natural que uma moça na idade de Dona Mariquinhas,
possuindo tantos encantos, ame aos espelhos.

MARIQUINHAS (Rindo-se.) – Mas o que não é natural é
que o Senhor Doutor Carlos seja tão lisonjeiro para comigo.

CARLOS – Lisonjeiro, porque disse a verdade.

D. ANA (Para Gasparino.) – Olhe como estão ternos! Nem ao menos respeitam
a presença de uma mãe para renderem-se finezas. Vamos dar um
passeio pelo jardim, Senhor Gasparino, para não perturbar a felicidade
destes dois anjinhos. Lá continuaremos aquela conversação
tão bela que foi interrompida.

GASPARINO (À parte.) – Está mesmo me desafiando. Vou acabar
a declaração. (Dá o braço a D. Ana.)

D. ANA – Vamos dar um passeio pelo jardim: até já. (Saem pelo
fundo.)

CENA VII – CARLOS e MARIQUINHAS

MARIQUINHAS – Realizou-se enfim toda a nossa ventura, Carlos!

CARLOS – E verdade, Mariquinhas, mas, se não te adorasse como um anjo,
nunca a aceitaria por um tal preço! Outrora eu era um simples doutorzinho
em medicina, cuja fortuna consistia em um diploma, um desgraçado que
freqüentava a tua casa, e se não era maltratado por tua mãe,
era muitas vezes recebido com indiferença. Hoje trocaram-se as cenas
e o Doutor Carlos de Brito toma o lugar do estúpido Barão pelos
motivos que tu bem sabes e que meus lábios não devem pronunciar.
Tua mãe especula com a tua mão, tua mãe calca aos pés
a virtude e a dedicação para ajoelhar-se diante do ídolo
da época, tua mãe é…

MARIQUINHAS – É minha mãe, Carlos.

CARLOS – Tens razão, é tua mãe. Perdoa este desvario.

MARIQUINHAS (Risonha.) – Está perdoado. Agora só o que te peço
é que não sejas tão mau e que freqüentes esta casa.

CARLOS – Para quem vem disposto a solicitar hoje mesmo tua mão, esse
pedido é inútil.

MARIQUINHAS – Oh! eu te agradeço, Carlos. O coração
vaticina-me que havemos de ser muito felizes. Mas o que me dói e que
mais me amofina, é ver minha mãe zombar assim desse pobre homem
a quem prometeu a minha mão sem consultar minha vontade e desprezando
todas as considerações, quando devia ser a primeira a desenganá-lo.
Tenho pena dele, Carlos.

CARLOS – Não te incomodes: tua mãe há de sair deste
embaraço da melhor maneira possível.

MARIQUINHAS – E é o Senhor Gasparino, o mesmo que lisonjeava o seu
amor próprio e que um papel tão indigno representou entre mim
e ele, que se incumbe de despedi-lo desta casa.

CARLOS – Não me dizias que o Senhor Gasparino era um moço de
educação? (Barão aparece no fundo.)

MARIQUINHAS – Julgava-o apenas uma cabeça leviana. mas nunca o tive
por um homem infame!

CENA VIII – OS MESMOS e BARÃO (No fundo.)

BARÃO (À parte.) – Ela chamou-o de infame!

CARLOS – É um homem da época.

MARIQUINHAS – Mas o que é verdade é que eu tenho pena do Barão,
porque vejo que é um pobre homem.

BARÃO (À parte.) – Oh! ela fala em meu nome! Vou livrá-la
das garras daquele malvado. (Avançando para a cena.) Ora viva!

CARLOS (Fazendo uma cortesia.) – Senhor Barão.

BARÃO – Deixemo-nos de cumprimentos. O senhor é um homem infame,
e eu não cumprimento a infames.

CARLOS – Como, senhor Barão? Tenha a bondade de repetir.

MARIQUINHAS (À parte.) – Este homem enlouqueceu!

BARÃO – Abusar da inocência de uma menina para fazer-lhe propostas
inconvenientes…

CARLOS – Senhor Barão…

MARIQUINHAS – Dê-me o seu braço, Senhor Carlos. Vamos chamar
minha mãe para vir cumprimentar o senhor Barão.

CARLOS (Dando o braço) – Se não estivesse ao pé de uma
senhora a quem respeito e a quem o senhor devia respeitar por todos os títulos,
dar-lhe-ia uma resposta conveniente. (Carlos e Mariquinhas saem conversando
baixo.)

CENA IX – BARÃO, só.

E esta! Querem-na mais clara, deitem-lhe água. Chama-o de infame e
sai de braço com ele a conversar muito amigavelmente! Os diabos levem
quem for capaz de entender uma mulher! Há três meses que gosto
desta menina e até ao presente não me disse coisa com coisa.
Ora não me vem logo falar porque está com dor de cabeça;
ora desculpa-se com trabalhos de costura; umas vezes recebe-me com muita alegria;
outras vezes trata-me mal… enfim o diabo que a entenda. Já estou
arrependido de me ter metido em semelhante alhada. Não podia estar
eu na Cutia muito à minha vontade! Vir a esta terra endiabrada cheia
de carros, de lama e de calor, para deixar-me apaixonar nesta idade por uma
menina que é um demônio de saia balão! Sou na verdade
bem desgraçado! (Senta-se.)

CENA X – O MESMO, D. ANA e GASPARINO

D. ANA (Entrando com Gasparino pelo braço.) – Oh! havemos de ser muito
felizes! Silêncio! Eis aí o Barão. E preciso desenganá-lo
de uma vez. Senhor Barão…

BARÃO – Até que afinal tenho o prazer de vê-la.

GASPARINO (Baixo para D. Ana.) – Vou desenganá-lo já. (Para
o Barão.) Saiba Vossa Excelência que…

D. ANA (Para Gasparino.) – Espere que eu o despeço em poucas palavras.
(Para o Barão.) Saiba Vossa Excelência que…

BARÃO (Interrompendo.) – Já sei: Vossa Senhoria quer desculpar-se
por não me ter aparecido há mais tempo. Eu sei o que são
essas coisas; a minha defunta Inês muitas vezes não aparecia
às visitas porque tinha de preparar garapa.

D. ANA – Ora, senhor Barão, essas conversações para
uma sala…

GASPARINO – Eu também acho-as impróprias.

BARÃO – Garapa não é coisa indecente.

D. ANA – Não duvido, senhor Barão: mas há certas conversações
que São impróprias de uma sala.

BARÃO (À parte.) – E esta!

D. ANA (Para Gasparino.) – Agora vai tudo de uma vez. Saiba Vossa Excelência
que a menina…

BARÃO (Interrompendo.) – Já sei, minha senhora, eu já
a vi: não pôde aparecer logo que eu cheguei, porque está
ocupada com o enxoval. Eu não reparo nestas coisas.

D. ANA (Para Gasparino.) – O homem faz-se de tolo.

GASPARINO (Baixo.) – Não senhora, é mesmo muito estúpido:
eu o conheço.

D. ANA – Pois senhor Barão, Vossa Excelência há de permitir…

BARÃO – Sem mais incômodo, minha senhora.

CENA XI – OS MESMOS, CARLOS e MARIQUINHAS

MARIQUINHAS (Entrando pelo fundo de braço com Carlos.) – Já
andei à sua procura pelo jardim, mamãe.

D. ANA – Eu passeava pela chácara com o Senhor Gasparino.

BARÃO (À parte.) – E ainda me aparece de braço com o
tal pelintra. Vou deslindar toda esta alhada. (Alto, para D. Ana.) Minha senhora,
desejava dirigir algumas palavras unicamente à senhora e à sua
filha.

D. ANA – Os nossos negócios foram sempre públicos, senhor Barão;
nunca tive segredos com Vossa Excelência.

BARÃO (À parte.) – E ela tem razão, porque o casamento
é um ato público. (Alto.) Então posso dizer aqui mesmo
na vista destes senhores?

D. ANA – Se não for alguma coisa que ofenda as regras da decência…

BARÃO – Nada, não senhora. Somente quero que Vossa Excelência
designe positivamente o dia do casamento.

D. ANA – Mariquinhas é quem poderá dizê-lo.

MARIQUINHAS (Baixo para Carlos.) – Vê em que apuros me põe mamãe,
Carlos.

BARÃO (Para Mariquinhas.) – O que decide, Sinhá? (À
parte.) Como palpita-me o coração.

MARIQUINHAS – Eu…

D. ANA – Esta menina há dias para cá…

GASPARINO – A Senhora Dona Mariquinhas, senhor Barão, ama a outra
pessoa e é impossível realizar-se este casamento.

BARÃO – Ama a outra pessoa!

MARIQUINHAS – Nunca o escolhi para intérprete de meus sentimentos,
Senhor Gasparino; agradeço-lhe o interesse que toma por mim, senhor
Barão: o meu coração nunca poderia pertencer a um homem
a quem sempre respeitei e tratei com toda a consideração, mas
que nunca me inspirou esse sentimento inexplicável, que deve fazer
a felicidade do estado conjugal. O Senhor Doutor Carlos de Brito já
solicitou a minha mão: é ele o único que pode tornar-me
feliz.

GASPARINO (À parte.) – Afinal está tudo decidido!

D. ANA – Já vê, portanto, senhor Barão, que não
posso ir de encontro à vontade de minha filha. Além disso, o
Senhor Doutor Carlos está em tal posição…

BARÃO – No que é que a posição do senhor aqui
é melhor que a minha? E o meu título de Barão? e as minhas
duas fazendas? e os meus dois sítios?

GASPARINO – Isso é nada em relação a uma fortuna de
mil contos!

BARÃO – Ah! agora tudo compreendo; e é por causa disso que
me desprezam? Eu já devia sabê-lo antes de pisar nesta terra!
(Para D. Ana.) A senhora é uma mulher falsa e fingida que põe
preço à mão de sua filha e que não duvida comprometer
a sua palavra só por causa do dinheiro.

MARIQUINHAS (Para Carlos.) – Ele insulta a minha mãe, Carlos.

CARLOS – E com razão, Mariquinhas.

BARÃO – A senhora será até mesmo capaz de saltar por
cima das considerações da honra e da dignidade…

D. ANA – Senhor Barão…

BARÃO – Não receio ameaças porque, se a minha linguagem
é de um homem estúpido e sem isso o que a senhora chama educação
e que eu chamarei antes a máscara que oculta uma alma corrompida, tenho
ao menos a franqueza e a lealdade que caracteriza um homem de província.
Antes me falasse com essa linguagem no dia em que pedi a mão de sua
filha do que obrigar-me a representar um papel tão indigno! A senhora
adulava-me e chegou mesmo a tomar para si uma declaração que
era para sua filha, porque tinha em vista lucrar com a minha entrada nesta
casa. Eu não encontro até mesmo palavras para dizer o que a
senhora é…

D. ANA – Senhor Barão, lembre-se que está no seio de uma família.

BARÃO – Onde estou sei eu: é no seio da corrupção
e da miséria!

GASPARINO – E melhor retirar-se, senhor Barão, para não dar
escândalos.

BARÃO – E é o senhor que fala em escândalos!

GASPARINO (À parte.) – Ei-lo comigo.

BARÃO – O senhor que é talvez a causa de tudo isto! O senhor
que especulou também com este negócio, servindo de correio de
meus amores, para exigir depois o pagamento de algumas dívidas que
sua mulher não quis pagar! O senhor, que pela entrega de uma carta
esfolou-me trezentos mil réis.

GASPARINO (À parte.) – Que escândalo!

BARÃO – O senhor é um homem vil, ordinário e infame!

GASPARINO – O silêncio é a arma de que me sirvo para responder
aos insultos.

BARÃO – Vou-me embora quanto antes. O ar que aqui se respira é
venenoso e eu quero entrar na Cutia tão puro e tão limpo como
de lá saí. (Para D. Ana e Gasparino.) Vivam! (Para Carlos e
Mariquinhas.) Que sejam muito felizes, é o que desejo. Vivam! (Sai
pelo fundo sem chapéu.)

CENA XII – GASPARINO, CARLOS, MARIQUINHAS, D. ANA e depois BARÃO

GASPARINO – O homem saiu vraiment furioso!

D. ANA – Agora posso respirar mais livremente.

CARLOS (Para D. Ana.) – Minha senhora, solicitando a mão de sua filha,
permita-me que faça-lhe uma pequena observação. Não
é o interesse, nem uma esperança de lucros que me liga a este
protótipo de virtudes, mas sim um sentimento que Vossa Excelência
desconhece e que na época atual desafia o epigrama. Como simples doutor
em medicina sei que a mão de sua filha me seria negada: Vossa Excelência
queria um título ainda mais nobre; esse título a fortuna mo
deparou. Não é o Doutor Carlos de Brito que hoje vem fazer parte
da sua família: é um milionário, um capitalista que vem
realizar as ambições de Vossa Excelência.

D. ANA – Não faça injustiça aos meus sentimentos, doutor.
Pode avaliar-se os feitos de uma paixão quando a sentimos também
no peito.

BARÃO (Entrando.) – O meu chapéu. (Procurando o chapéu.)

D. ANA – E para prova disso apresento-lhe o Senhor Gasparino de Mendonça,
que de hoje em diante fará parte da nossa família com o doce
nome de meu esposo.

BARÃO – Ah! Casam-se. Que boa peça lhe cai em casa! Já
estou vingado. Cá está o chapéu. (Sai pelo fundo.)

MARIQUINHAS (Para Carlos.) – Nunca consentiremos que nossa mãe case-se
com semelhante homem, Carlos.

CARLOS – É ainda uma ambição fatal que a cega: cumpra-se
o seu castigo na terra.

(Cai o pano.)

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