A Mandinga

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João Simão Lopes Neto

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Serafim Bemol, Sátiro Clemente e D. Salústio, em comandita
literária, que pretendem celebrar, nos anais da pilhéria pelotense,
escrevem uma novela, romance, narrativa ou cousa que melhor nome tenha, observando-se
o seguinte programa:

A obra não tem fio nem pavio, os autores são obrigados a continuá-la,
como entenderem, no ponto em que o associado anterior a tiver deixado.

Quando estiverem aborrecidos, ou o público começar a bocejar,
matam-se os personagens todos e… assunto concluído.

A sorte designou Serafim Bemol para principiar o trabalho, dar-lhe o título
e encaminhá-lo como entendesse. Seguir-se-ão com a palavra Sátiro
Clemente e D. Salústio.

A Mandinga é o lôbrego título do folhetim, e começa
hoje.

Arranjam-se os leitores e esperem pela volta todos os domingos e quintas-feiras
em que lhes servirem este pratinho, destinado a amenizar os seus dissabores.

Temos tempo de sobra para chorar.

Apresentação

Poema em prosa, trágico-cômico-burlesco, que não se sabe
bem como começou nem quando acabará — pela firma social
S & S & S — como tudo se verá com o andar do tempo, se
Deus quiser.

Não ride.

Existe — existe — abaixo de nós outros, que lemos jornais
— discutimos política e tratamos de negócios — o
mundo sombrio — rodeado de pouco caso — aparente — mas que
é tratado com respeito, quando alguém carece do seu serviço
— de ordem diversa — e que a geral hipocrisia social priva de
procurar em plena luz.

O mundo que passa à nossa beira — durante o dia em que não
atentamos — mas que espia o que fazemos — cospe no lugar onde
pousamos o pé — e que traça no ar — sobre as nossas
costas — grandes figuras fantásticas.

O tempo dos bruxedos — Não passou.

Apurai a memória e recordai-vos de mil frases soltas — sobre
casos sucedidos com pessoas das vossas relações.

Recordai — recordai — atróz a dor de cabeça de
um; a cólica súbita de outro; a congestão aqui, a febre
acolá! Por que? Como? Por outro lado — os desgostos — as
dissenções — a desconfiança — há cilada
de todo o gênero.

Procurai — procurai.

São as misteriosas consultas provocadas pelo despeito — pelo
ciúme — pela inveja e pela pequena ambição.

São as ignóbeis, beberagens; as representações
barbaramente teatrais de cenas caóticas; as invocações
— os gritos — os trejeitos — as contorções.

E o povo — por mais que ria — cá fora — lá
dentro — no santuário — prosta-se.

Porque, apesar de tudo — ele não fala no feiticeiro —
sem uma ponta — nem sempre oculta de um vago receio — como se
o bruxo — estivesse — aqui — ouvindo e pronto a saltar sobre
o imprudente e sufocá-lo com o laço invisível e todo
poderoso da sua aliança com o DEMÔNIO.

Capítulo I

No espesso nevoeiro daquela madrugada de junho — uma sexta-feira —
muito enrolado na sua capa, de gola alta — chapéu mole desabado
— e de sapatos de verniz — de laçarotes pretos —
ia — rápido o Elesbão Soares e ao que parecia —
único na rua solitária.

Amortecida na bruma — a luz dos lampiões formava uma como auréola
— avermelhada tristonha e baça — o que acrescentava o isolamento
do retardatário — que sem poder alongar o olhar — apenas
tinha e vagamente o consolo de distinguir — sem lhes perceber as particularidades
— alguns edifícios cuja arquitetura, cores, letreiros e até
números conhecia.

E evidentemente o homem ia preocupado, porque resmungava — resmungava
— sumido o rosto nas dobras da capa.

Quis fumar, puxou do bolso um cigarro; não encontrando fósforos
— atirou-o — longe de mau humor — de encontro a uma parede.

Tomando a calçada da praça — contornou uma parte do gradil,
e entrando por uma das ruas que descem para a Várzea, indo —
indo perdeu-se de todo no nevoeiro e na escuridão — fazendo apenas
ouvir — mais e mais enfraquecido — o bater compassado dos tacões
dos seus sapatos de verniz de laçarotes pretos.

Havia já nos anos que o Elesbão Soares era viúvo. Morrera-lhe
a mulher — de febre puerperal; a pobre filha — um entezinho raquítico
e cheio de manchas — poucos dias resistiu as faixas em que a comprimiam,
apesar dos chás e fomentações caseiras — finou-se
— justamente depois que o padre — chamado a toda pressa —
lhe impusera o nome de Agueda — a pedido da mãe, também
Agueda — sendo madrinha — de ocasião — a dona Demitildes
que já antes tinha lembrado o emprego da água de socorro como
meio eficaz de salvação cristã.

Dona Agueda, que da cama, onde ainda a prendia o resguardo — percebera
tudo — o pequeno caixão branco — o velório —
os convidados — os cheiros de alfazema queimados e de água Labarraque
— pôs-se tão desesperada, arrenego tanto de todos e de
tudo — chorou — entorceu-se — alvorotou de tal forma o seu
enfraquecido corpo — que em breve — acidentes diversos apareceram
— complicaram-se e apesar dos cuidados empregados — morrem sem
que o Elesbão — teimoso e embezerrado — aparecesse a consolar-lhe
os últimos arrancos — como também já nem ao menos
beijara a mirrada face morta da efêmera Agueda.

Alto, claro, de face chupada, grandes olhos azuis, casaram-se com a D. Agueda
Juliana Vieira, que trouxe-lhe em dote, uma faceirice perigosa e um preto
velho, o — Caboclo — grande conhecedor de ervas e raízes.

Por esse tempo, era seu caixeiro um tal Belmiro, um latagão robusto,
e com o rosto cheio de espinhas nada castas e grande amador de modinhas e
serenatas ao violão, e que depois de acompanhar a senhora algumas vezes
nos seus passeios fora rispidamente despedido, sem procurar sequer acertar
as suas contas e sem se saber bem porque, o que muito intrigou as vizinhas
amigas da faceira da D. Agueda, que aliás foram unânimes em descobrir
nisso, gato encerrado.

Meses depois sucedera a viuvez de Elesbão, que pôs em evidência
a sua oculta, porém tenaz repugnância em acariciar as duas Aguedas
— moribundas.

Depois de dar ao pesar — pelo tempo do estilo, as portas semi-cerradas
— refletiu lá à seu modo no que lhe conviria fazer: tanto
se vivia aqui, como além, e assim como assim — já agora
— que estava livre e sem cuidados, que era apenas a sua pessoa —
o verdadeiro era descansar durante algum tempo. Balanceou as suas mercadorias,
conferiu os seus livros, verificou o que havia de lucros, procurou um comprador,
encontro-o e passou-lhe todo o negócio, depois de regatear um pouco
de parte a parte.

Depois de algum tempo de ausência, reaparecera, atirado a uma elegância
pesada de dar nas vistas, ao longe, tantas as jóias, tanto o esplendor
das gravatas, tanto o abuso dos perfumes.

Bem observado, era ainda aquela mesma antiga massa bruta, porém falquejada,
aplainada, lixada.

Dado o período da satisfação à curiosidade de
seus antigos amigos, foi resvalando para a modorra do meio, tornou-se o tipo
vulgar um homem — um sujeito como os outros.

De uma feita — ao terminar uma grande festa na igreja matriz —
o Elesbão Soares entrou em ala — sem saber bem como — em
meio de uma porção de rapazes que esperavam na porta da sacristia
— a saída das famílias e que quase todos contavam amigos
-parentes ou conhecidos.

Ao enfrentar com ele — por mero acaso — caiu o leque a uma senhora
que passava.

Curvou-se rápido — apanhou-o do chão — e um pouco
turbado — entregou-o… não à dama — mas a um senhor,
velho, grande e com cara de poucos amigos, que a acompanhava — e que
nem sequer lhe disse — obrigado!…

Um dos rapazes não se conteve e disse-lhe por entre o borborinho da
multidão que se atropelava:

— O senhor não devia dar o leque àquele tipo: é
um grosseiro…

— Mas era o dono…

— História! Um urso! Ela, sim… um fazendão!

E deu-lhe as costas, indo na onda para fora da porta onde já estava
um grupo de conhecidos seus.

Aquele simplíssimo, trivial incidente — lançou-o em busca
de um antigo auxiliar — aquele quase deslembrado Caboclo cujo préstimo
ele conhecia…

Eis porque — como se saisse de um baile, ia o Elesbão Soares
— no denso nevoeiro daquela madrugada de junho — à Várzea
— resmungando — resmungando sumido, o rosto nas dobras da capa.

Capítulo II

Elesbão Soares, apesar de não ser criança, pois já
contava os seus cinqüenta bem passados, era muito amigo de mulheres novas
e de vinho velho.

Na suave e descuidade convivência destes dois elementos — mulher
e vinho — se lhe foram melando as pequenas economias — que constituiam
o seu cabedal.

A tristeza e a filosofia, que são a ciência do pobre, já
começavam a torturá-lo.

Ora, realmente, nesse nosso planeta sublunar só é verdadeiramente
ridículo o homem que não tem dinheiro. Para o alcançar
com limpeza sujeita-se um triste mortal a toda sorte de trabalhos e sacrifícios,
canseiras e privações. É um penar do corpo com a alma
sempre esmagada por um pensamento único, constante.

O meio mais fácil de chegar a ter dinheiro sem trabalho é um
casamento rico.

Muitos tem empregado esse processo com bom êxito. Os exemplos saltam
como camarões em terra seca.

Não me lembre quem disse que o homem que deseja casar rico sempre
consegue o seu intento.

A questão cifra-se apenas nos seguintes mandamentos:

Extirpar os escrúpulos da consciência, como quem extrai um dente
cariado ou corta um calo que doi.
Procurar a mulher através de todas as torpezas, como a galinha de Esopo
procurava pérolas nos monturos.
Suportar com paciência evangélica e cara alegre todas as desfeitas,
como se tal coisa não acontecesse.
Insistir no mesmo sistema com preserverança e sempre com a mesma cara,
bem escanhoada de toda a sombra de pundonor, até o dia do casório.

A falar a verdade, o nosso herói já trazia a sua ferrada, quando
apanhou o leque à porta da sacristia, o tal velhote muito sério,
com cara de poucos amigos, também já trazia a pedra no sapato.

O Elesbão não entregou o leque à senhora que o deixara
cair, para não dar nas vistas daquela troça de marmanjos, que
sempre acompanhavam, e que costumavam escolher a igreja para ostentar os primores
de educação.

Mas que o nosso homem já sentia as vísceras engalfinhadas pelos
atrativos daquela distinta dama, isso é que não padece dúvida.

Era a tal história da cobra e do sapo.

Elesbão Soares não era verdadeiramente um homem bonito, na
singela expressão desta palavra.

Antes pelo contrário.

O nariz parecia um promontório de tão largo e de rugoso que
era. A boca era tão rasgada que parecia querer devorar as orelhas.

Para disfarçar estes pequenos defeitos físicos e naturais o
nosso homem não poupava despesas.

Ele era a bela cartola de pele de seda.

Ele era a fina camisa engomada a capricho, bem alva, sem nenhuma nódoa.

Ele era a linda gravata de várias matizes, muito sarapintada, com
o seu laço artístico.

Ele era a bem esticada sobrecasaca, ornada na boutonniére de um raminho
composto de catinga de mulata, amor perfeito e alecrim cheiroso.

Ele era a fresca luva Jouvin cor de telha ou verde garrafa.

Ele era a bem talhada calça de casemira francesa.

Ele era as boas botinas de verniz, número 48, que lhe requeimavam
os calos e joanetes, nos dias de sol, daquelas toesas, a que ele, ingenuamente,
chamava pés e que vistos de longe pareciam as duas torres da igreja
Matriz deitadas no chão e cobertas de couro da Rússia.

O sapateiro que lhe fazia as botinas (só de encomenda) era o Taveira,
um ermitão que viveu, in illo tempore, que calçava a Humanidade
em virtude da sua profissão, e usava a língua calçada
de aço para melhor cortar nas vidas alheias, como quem corta em roupa
de francês.

Um belo dia, o Taveira vendeu aloja, bateu a bela plumagem, e se foi a outras
plagas, onde não houvesse Elesbão. Tal qual como as andorinhas,
com uma única diferença: — foi e não voltou.

E retirou-se a tempo, quando não entisicava.

Não era brincadeira, o ter de fazer botinas daquele calibre a dois
pospontos.

Aquilo que era um gastar de cerol, fio e sovela.

Junte-se a isso o trabalhinho de dar a língua constantemente, e me
digam se há bofes que resistam.

O nosso Elesbão era homem muito precavido no tamanho da vida.

Quando soube que o Taveira tencionava mudar de terra, e antevendo a dificuldade
de conseguir outro igual, tratou logo de comprar a forma de suas botinas,
a qual forma é um verdadeiro monumento, de que a nobre e muito distinta
diretoria da nossa Biblioteca Pública deve fazer aquisição,
ao seu tempo, como início de um museu anexo àquele utilíssimo
estabelecimento.

Dissemos que o Elesbão não era bonito, mas também não
era tão feio como alguns o queriam pintar.

Dizem que não há formosura sem senões e ele só
tinha três: — o nariz, a boca e os pés.

Há outros bípedes que tem muito mais mas como andam saturados
de muita petulância e pouca vergonha, ninguém faz o devido reparo.

Assim vai o mundo e o melhor é deixar correr o marfim.

O Caboclo………………………………………………………………………………………

O leitor, se és meu amigo, dispensa-me de te fazer o retrato do Caboclo.

Aquilo não era um preto velho; era um verdadeiro orangotango.

Parecia que tinha parte com o Belzebu.

Coçava-se, como um macaco, — e falava só, — como
um desesperado.

Conhecia as virtudes de quase todas as ervase raízes, fazia benzeduras
que encantavam muita gente boa e sabia de feitiços como um graúdo.

Era um portento, o raio do preto.

Ganhou fama e teve época.

Já contava com uma clientela bem regular, que lá o ia consultar
e pedir-lhe remédios para vencer as dificuldades da vida.

E ele a todos acudia com proficiência de um bruto que sabia muito.

Era de ver-se, quando alguma senhora — que ainda há deste gosto
— o ia consultar sobre a fidelidade do esposo, que andava arredio do
lar doméstico.

O preto ouvia, ouvia as lamentações da pobre mulher, com o
aprumo de um professor de ciências naturais, e com os ares de importância
que o assunto exigia.

Depois de fingir-se bem compenetrado da gravidade do caso, lançava
em um fogareiro com brasa três pedras de sal, três gotas de azeite,
três folhas de arruda e três palhinhas em cruzes, como manda a
liturgia, e todos estes movimentos acompanhados de tal engrolada de palavras
sem nexo, em um idioma completamente desconhecido, o que não parecia
linguagem de gente cristã.

Aquilo era com toda certeza a língua do inferno.

E aquela pobre senhora, queda e muda, toda entregue às suas dolorosas
suspeitas e amargos pensamentos ali esperava — entre receiosa e crente
— à profecia daquela Pitonisa de nova espécie.

Há quem não acredite em bruxedos e feitiços, nem as
artimanhas do Boi-Tatá.

Pois que não acreditem, e fazem muito bem. Cada doido com a sua mania.

Nisto as crenças, gostos e cores, não há discussão
possível.

Todos tem igual direito, ou as leis que nos regem são falsas, como
Judas.

Se não houvesse mau gosto, não se gastava o amarelo.

O nosso Elesbão não era desses. Extremamente chato do intelecto,
quando se tratava de ciências. Não via meia polegada adiante
do nariz.

Lápara ele as profecias do Caboclo era um evangelho.

Dir-se-ia que o preto velho lhe fizera coisa má, que lhe enguiçara
o juizo.

O Caboclo tivera a rara habilidade de comunicar-lhe ao cérebro, que
era de cera virgem e bem dura, as mais diabólicas sugestões.

Dizem que é a isto que os teólogos chamam: — possessão
demoníaca.

Depois que se encontrara, pela vez primeira, com aquela guapa mocetona da
porta da sacristia, o mafarrico tomara conta daquela alma invadida de feitiços
e visões.

Não tinha parança nem sossego.

O sono era-lhe sempre povoado de sonhos, umas vezes horrorosos como os fantasmas
de Cagliostro; outras, alegres e divertidas, em que ele via a felicidade com
todo o seu cortejo de ilusões e esperanças, amor e glória.

Naquela madrugada de junho, em que o deixamos caminho da Várzea, onde
morava o Caboclo, um minuano frio cortava que doía — exatamente
como as navalhas do meu barbeiro.

Ao dobrar uma esquina, Elesbão tropeçou num vulto que jazia
alí, estendido no chão.

O nosso homem deu um pulo para trás, como se estivesse pisado numa
serpente, e estacou estarrecido.

Os cabelos enriçavam-lhe, como as piaçavas de uma vassoura
usada.

O promontório, — quero dizer, — o nariz tomou proporções
desusadas e movimentos insólitos, como se fora abalado por um terremoto.

O sangue esteve — quase, quase, — vai, não vai, —
a coalhar-se-lhe nas veias.

Sentiu um nó na garganta, como se o estivessem enforcando pela parte
de dentro.

Os olhos esbugalhados saltados das órbitas, seus naturais esconderijos,
pareciam querer fugir-lhe da cara e apitar pela polícia.

Causa medo do homem que tem medo!

Imaginou estar adiante de um corpo morto, e já se sentia engasgalhado
pela justiça, por suspeita daquele crime.

Assim permaneceu o pobre diabo durante alguns momentos estáticos,
com as idéias embrulhadas, sem tomar uma resolução.

Por fim, recobrando o ânimo, fazendo das fraquezas, forças,
desceu cautelosamente à calçada, a fim de tomar o meio da rua
não tirando os olhos daquele vulto e experimentando na firmeza das
pernas, no caso de alguma necessidade imprevista. Quando, — já
do meio da rua, — enfrentou com a causa do susto que tivera, o corpo
que ele supinha inanimado, moveu-se e erguendo-se à custo dos cotovelos,
e uma voz muito sua conhecida lhe disse:

— Ah! É você, amiguinho? Pelas alminhas, dê-me uns
cobres para eu ir comer no Mercado, ainda hoje não comi nada, assim
Deus me salve. Só bebi um copo d’água e um pouco de café.

Era o Mutuca, devoto sincero e incorrigível ao deus Baco, que ali
acamara para ali cozinhar a mona mais pesada de que há memória,
e ali jazia naquele engano d’alma ledo e cego que a fortuna não deixa
durar muito.

Certamente a caninha era de boa qualidade, pois o tornara impermeável
à umidade e ao frio daquela agreste madrugada do mês de junho.

Mas, o que ia fazer Elesbão à casa do Caboclo aquela hora?

Quem era o velhote muito sério e com cara de poucos amigos?

Quem era aquela mocetona, airosa e bela, que deixara cair o leque, por quem
o Elesbão se sentira avassalado de cruel paixão?

Mau, amigos leitores se começam com perguntas, estamos arranjados.

Tenham paciência, porque temos pano para mangas.

Ainda agora estamos no princípio, azeitando as asas para o grande
vôo acrobático, cheio de muitas reviravoltas, que estamos ensaiando.

Isto vai ser um romance crônico, infindo, como a saudade daquele trovador
da Judia de Tomaz Ribeiro.

E, destarte, o leitor fará de conta que é a tal hebréia
linda a que se refere a poesia.

Se, tu, meu amigo, já estiveres dormindo, como aconteceu à
linda hebréia, o escrivinhador destas linhas se julgará em demasia
recompensado, porque elas serão de utilidade pública.

Nestes tempos calamitosos que estamos atravessando, quem pode dormir e cantar
é muito feliz.

Quem dorme, esquece; — quem canta, seus males espanta.

O enredo desta peça mágica há de ser tão enredado
que ninguém mais o desenredará, nem mesmo que baixe uma pastoral
do bispo, aconselhando que se desfaça semelhante embrulhada.

Daqui por diante é provável que comecem a ferver surpresas
de fazer arrepiar os cabelos.

Feitiços, bruxedos, incêndios, tempestades, furacões,
raios, coriscos, maravilhas, maravilhas, tudo aqui será representado
em notas alegres, saltitantes, petulantes, como a música de Offenbach.

De vez em quando, algumas cenas de horror, pintadas a roxo-terra e oca, para
não ser tão triste.

A tinta preta só será empregada nos tipos de imprensa, e isto
mesmo contra a nossa vontade.

Se pudéssemos, estes trincolhos literários seriam impressos
em cores vivas e variadas, como uma iluminação veneziana.

Está hoje muito em moda filiar-se o que se escreve a certas escolas,
tais como: realista, positivista, sentimentalista, etc., etc.

Este nosso modesto trabalho não pertence a nenhum destes sistemas.
Filia-se simplesmente ao grupo folhetinista, de que ninguém se importa,
por ser filho das ervas e do acaso.

Isto vai ser um quadro chinês, visto aos pedacinhos para não
cansar.

Adorado leitor, tem resignação e espera, Roma não se
fez num dia.

Destes pratinhos serve-se pouco de cada vez, exatamente como o paté
de foie gras.

Lembra-te que és pó, e que nós somos três e que
em pó te tornaremos a paciência, se tiveres a pachorra de nos
acompanhar nesta via láctea de acontecimentos espaventosos, pois já
deveis saber que a l&aacutaacute;ctea e a sacra, são as duas maiores vias
que se conhecem. Um trabalho de longo fôlego, como este, tem necessariamente
de enveredar por um desses caminhos.

Nós somos três.

É um impossível que desta tripeça não saia obra
fina e asseiada.

Capítulo III

Livre e refeito do valente susto que o trambolho do Mutuca lhe causara, o
Elesbão Soares estugou o passo, e, tomando uma rua escusa, na direção
dos potreiros da Várzea, ia murmurando.

— Ah! se eu pudesse, se eu pudesse!… Mas como?

Por fim, procurou orientar-se.

Neblinava sempre, e de tal modo, que quase não se distinguiam os vultos
a dois passos.

Em frente a um cercado de tábuas, dividido ao centro por um portão
pintado de verde escuro, o Elesbão parou e, tateando, passando a mão
espalmada, de cima para baixo e da direita para a esquerda, sobre as tábuas
encharcadas, descobriu a aldabra como a qual bateu três vezes.

— Quem bate? Perguntou-lhe uma voz enrouquecida, denunciando o mau
humor do locatário.

— Sou eu, o Elesbão da tia Maricota.

— Ahn! Está bom. Já aibro.

Seguiu-se o rumor de ferros a rangerem, de trancas retiradas, e o portão
abriu.

— Já não esperava, seu Elesbão. Tão tarde,
e com uma noite destas!

— Tive que fazer. Já começaram?

— Sim, senhor, há muito tempo.

— E tem muita gente?

— Pouquinha. Eh! Eh! polícia de seu João Afonso tem atrapalhado
muito papai Caboclo.

Raio de jorná anda sempre falando. Parece que não tem mais
que faze.

Enquanto falavam, o interlocutor de Elesbão, que não era outro
que o velho Jerônimo, uma espécie de cérebro da caverna
do Caboclo, tornou a fechar o portão, cautelosamente, e puseram-se
ambos a caminho para o interior da morada.

Fizeram alguns passos, por um terreno de pântano visguento, úmido,
que se pregava à sola das monumentais botinas do Elesbão, e
dois minutos depois achavam-se diante de uma cortina da aniagem, tendo ao
centro desenhada a carvão, uma grotesca cabeça de galo, e que
os separava da sala das sessões do Caboclo. Um pandemônio a tal
sala.

Imagine-se uma peça retangular, de três ou quatro metros de
lado, um assoalho, sem forro, com as paredes afumaradas, cheia de retábulos
esquisitos, figuras de monstros, nódoas de gorduras e cusparadas.

Tamboretes aqui e acolá carregadas de miçangas, cabeças
de galos pretos, penas de aves, pedaços de ossos, caudas de boi, bonzos,
relicários, corujas empalhadas, uma horrível miscelânea
de objetos misteriosos, que punham um arrepio no fio de lombo dos iniciados
de surpresas, nas tenebrosas práticas do Caboclo.

Ao fundo, uma mesa de pinho ensebada, mal tapada, com um jornal enxovalhado
e, sobre ela, um figurão de três pés de altura representando
o fetiche de que o Caboclo era, na terra, e fiel sacerdote. A beira, ao alcance
da mão do sacerdos, que se acocorava a um lado, sobre um mocho, ajaezado
com farrapos de cores faiscantes — uma cabeça de boi, seca, pelada,
muito branca, denunciando meticuloso cuidado no seu tratamento.

O quadro era iluminado por uma lâmpada de lata. Onde se queimava azeite
de peixe, presa a uma trave do teto. Três velas de cera de um amarelo
escuro, quase brônzeo, disposta triangularmente na mesa do oráculo,
de um modo que ao centro lhes ficava a cabeça de boi, completava esse
sumaríssimo processo iluminativo, aliás muito adequado às
circunstâncias e ao local.

O fumo que se desprendia da lâmpada e das velas tornava a atmosfera
baça, pesada, opaca, úmida e de um tão acre cheiro de
resinas, que nauseava.

Quando o Elesbão e o porteiro entraram na sala dos encantos, havia
alí uns seis indivíduos, entre eles, o Maximiliano, doceiro
afamado, de casaco curto e as calças muito esticadas, e um vulto de
mulher completamente embuçado e de pé, à distância,
como se lhe repugnasse a companhia de toda aquela gente tão hipoteticamente
limpa, tão oposta à sua condição social…

Elesbão, ao levantar a cortina, piscou muitas vezes os olhos para
habituá-los àquela luz de interior de mausoléo que cansava
e, entre o receio, o enfado e o desejo, pondo um pé adiante e logo
recuando, como quem quer mas não tem ânimo, aproximou-se da mesa.

Justamente, nesse momento, o Caboclo, resmungando palavras cabalísticas,
passava e repassava nas mãos uma madeixa de cabelos, que algumas vezes,
levava a altura de uma das velas.

Percebendo que se lhes aproximava um estranho, ergueu a cabeça e perguntou
desabridamente:

— Que qué pecadô?

— Vim aqui, pai Caboclo, disse-lhe Elesbão, como te mandei prevenir
para que faças uma consulta.

— Alguma pouca vergonha, não? remédio para paixão?

— Talvez.

— Pois, espere. Xererê está trabaiando noutra quiston.

E, sem cerimônia, entregou-se de novo à sua sobrenatural tarefa.

Elesbão conservou-se de pé, com as feições alteradas
e já com muita vontade de se mandar mudar sem dizer ao que ali tinha
ido.

Decorreu um quarto de hora ainda, e, por fim, o Caboclo, tendo terminado
a consulta, virou-se para o Maximiliano, dizendo-lhe secamente:

— Moço há de vortá. Xererê diz.

O Maximiliano deu um suspiro de satisfação e esticou mais as
calças.

Elesbão, após, contou o seu caso, narrando ao Caboclo as apreensões
que o minavam sobre o amor que tão rapidamente o invadira pela rapariga
da porta da igreja.

Fez-lhe o retrato da sua beleza, contou-lhe o incidente do leque, as disposições
em que estava de descobri-lá e apanhá-la, fosse ela solteira,
viúva ou casada.

O Caboclo, neste ponto atalhou logo, fazendo um gesto ao Elesbão que
lhe chegasse o ouvido aos lábios e segredou-lhe, tão claramente
como o se apreendido o Coruja.

— Se for casada, custa mais caro.

O Elesbão enfiou, vendo que o Caboclo, era um finório e se
fazia passar por cassange, mas engoliu.

Enquanto o Elesbão fizera a narrativa ao Caboclo a mulher embuçada
estremecera a miudo, abrira um pouco a manta para ouvir melhor, e não
raras vezes, um fino sorriso misterioso lhe enflorara os lábios.

— Aquele é o senhor do leque, murmurou. O que ele virá
aqui fazer, meu Deus?

— E eu que não posso sair agora!

O Caboclo, voltando ao seu papel de feiticeiro, engorolando as palavras,
e entremeando-as de frases misteriosas, ouviu o Elesbão e disse-lhe:

— Precisa pecadô traze quarque cosa dessa muié para Xererê
dize.

— Mas que coisa pai Caboclo?

Nesse momento, o Jerônimo levantando o reposteiro de aniagem, chamava:

— Nhan Pombinha! Carro está aí.

O Elesbão, naturalmente, voltou-se na direção ao gesto
de Jerônimo e fosse pelo que fosse, tornou-se pálido.

A Pombinha não respondeu, nem se ergueu logo do lugar.

Esperou alguns instantes para que os olhares, que se tinham voltado todos
para ela, se distraíssem.

Tinha um grande acanhamento em sair assim, diante de seis tipos que não
conhecia, ela a Pombinha, tão festeja cá fora, na sociedade
elegante.

De resto, podia estar sossegada. O esposo só poderia chegar no dia
seguinte, pelo trem da tarde, e pelos seus cálculos, deviam ter apenas
duas horas da manhã.

Está claro, e o leitor já percebeu que o que ela queria, sem
a si mesmo o confessar, era ouvir o desenlace da consulta do Elesbão.

O Elesbão repetia a pergunta:

— Mas que coisa? Pai Caboclo.

— Lenço, camisa, meia, cabelo, coisa assim chegada ao corpo.

— Homem! chegada ao corpo? Isso há de ser-nos difícil
arranjar.

— Pecadô não tem dinheiro?

— Sim, algunzinho.

— Pecadô dá dinheiro a papai Xererê (o Bonzo) e
Caboclo arranja.

Pombinha, ao ouvir isto, levantou-se, não sabendo bem se devia indignar-se
ou poupar ao Xererê o trabalho de fazer sugestões ao Caboclo,
oferecendo ao Elesbão… não, isso não!

Mas, não era certo que ela também ali fora consultar o Caboclo
sobre o seu encontro com o Elesbão? De que devia indignar-se ou de
admirar-se? Ela, em suma, achava-se mais culpada, pois não se pertencia.

Agora, segredavam o Caboclo e o Elesbão, fazendo grandes gestos de
entusiamos e calor. Que diriam eles? Inquiriu-se a Pombinha.

Em silêncio pesado, de subterrâneo, fez-se em seguida.

Desesperada, por não poder ouvir o que ciciavam Elesbão e o
Caboclo, Pombinha foi dirigindo-se para o lugar da saída, atabafando-se
ainda mais as mantas que a embuçavam. O Caboclo, interrompendo o colóquio
com o Elesbão, voltou-se surrateiramente para o lado que passava a
Pombinha.

— Já vai Nhanhã?

— Sim.

— Não esquece. Moço há de caí. Mande buscá
chinelo pé esquerdo dele, prá trazê a Papai Caboclo.

— Está bem.

E pos a mão na cortina, rasgada secamente, com um gesto de nojo, para
sair do antro.

Mas, nesse momento, um ruído estranho de vozes que altercavam em tom
irritado, de golpes metálicos desferidos na madeira do cercado, de
cães que acoavam ao longe, e cujos latidos acordavam os ecos, de apitos
que trilhavam como um exército de grilhos monstruosos, um ruído
confusamente feito de tudo isso chegou aos ouvidos da assembléia do
Caboclo, que com os demais se pos de pé, estarrecido, pálido,
de olhos esbugalhados.

Pombinha, gelada, deixou cair a cortina, que, naquele instante arregaçara…

O ruído crescia, avolumava-se, tornava-se, as vozes mais distintas,
percebiam-se mesmo algumas frases, como Hei de acabar com esse canalha! Vai
tudo para o buque! e outras, igualmente ameaçadoras.

Os fregueses do Caboclo parecaim fincados no chão como postes.

Por fim, uma massa informe de homens fardados e a paisana, alguns de chanfalhos
em punho, trazendo pela frente o Jerônimo já muito amassado a
soco, irrompeu na sala de sessões.

Só então o instinto de conservação, o desejo
veemente de evitar a caçada da polícia inspiraram aos fregueses
do Caboclo e a ele próprio a iniciativa de se porem a salvo.

Num abrir e fechar de olhos, os fregueses de Xererê — a Pombinha
primeira de todos, procuraram as duas únicas janelas que deitavam para
os fundos da casa, e de atropelo, embrulhados um com os outros, sem atinare
mais com que faziam, galgaram os peitoris, e correram em direção
aos casebres vazios que por ali havia.

Nem a escuridão plúmbea da noite, nem a neblina, nem a lama
do terreno, os impediu de procurar um abrigo.

A esse tempo, os policiais desabavam na sala das sessões, esquadrinhando
todos os cantos, apreendiam as miçangas, os enguiços, os bonzos,
a madeixa de cabelo, tudo, entre os gritos de Jerônimo: Vovô Xererê
me salve! Vovô Xererê me salve!

Não vendo ninguém na sala, os policiais se espalharam em várias
direções, procurando os fugitivos, por toda a parte.

O Maximiliano e outro sujeito sem saberem como, encontraram-se entalados
dentro de um quartinho ladrilhado de tijolo sem o menor resquício de
mobília. E acantoaram-se no lugar mais esconso, acontoaram-se mesmo
tanto, que Maximiliano exprobava o companheiro, fazendo sibilar muito os sss:

— Moço, não me amachuque asss calçasss. Meu Deus!
Esteja quieto! Ah! Minha Nossa Senhora!

Por outro lado, a Pombinha e o Elesbão, sem se conhecerem ainda bem,
como já mostramos, e azoinados pelo terror, atropelados pela perseguição
que lhes fazia um policial mais afoito e mais conhecedor do terreno, meteram-se
num grande caixão que servia para guardar milho, à cocheira
contígua.

Dona Pombinha entrou primeiro, apanhando os vestidos e as mantas enrolando
pudicamente com elas as pernas, Elesbão segui-a, encafuando-se como
poude, mas, como tinha os pés muito grandes, deixara-os entalados entre
a tampa e caixão de milho, bracejando lá dentro aos encontrões
com dona Pombinha.

Por desgraça, quando ambos tinham já arranjado o melhor meio
de se estirarem, o Elesbão tratava de puxar os pés das talas
em que se pusera, o policial chegava, trepava sobre o caixão, esmagando
as canelas do Elesbão, e batendo com os costados da espada sobre o
móvel, bradava:

— Ah! Ah! sempre os apanhei!!

Capítulo IV

Atraídos pelos gritos de dor do mísero Elesbão Soares,
trovejados numa verdadeira escala ascendente, e pelas bravatas e furibundos
panásicos do policial, e não tendo aliás encontrado já
os outros meliantes, o comandante e o resto da sua escolta dirigiram-se ao
telheiro da cocheira.

O comandante mandou buscar luz, e, fazendo cessar o fandango do soldado,
abriu a tampa do caixão e olhou curiosamente para dentro.

O Elesbão, que tinha ficado com os pés de fora e deitado de
costas sobre o milho, não tendo tido tempo de arrumar-se, e, tendo
ficado preso naquela posição, com as atrozes dores que sofrera,
rebolara-se tão doidamente, que a sua elegância estava totalmente
desfeita. Saltara o milho por todos os lados e o desgraçado tinha por
entre os cabelos, no rosto, na roupa, por dentro da camisa.

O gorgulho, que era abundante, começava a mover-se, o que afligia-o
em extremo.

Uma nuvem tênue porém abundante de pó, levantada nos
seus pulos, envolvia-o e Nhan Pombinha, num canto do caixão, muito
metida no meio, e quase sufocada pelo pé e pela manta que cobrira a
cabeça logo que sentira abrir-se o caixão. O comandante ao princípio
não distinguiu nada, depois de pouco a pouco, foi-se elevando o pé,
então mostrou-se-lhe o quadro descrito. Foi uma gargalhada geral que
o respeito não pode comprimir. O Elesbão, sentindo os gorgulhos
no rosto, quase a entrar-lhe pela boca e pelo nariz,pos-se a cuspir, assoprar,
a fungar forte.

Nham Pombinha, pelo seu lado, e na posição em que estava, sentia
também a bicharia a caminhar-lhe pelas pernas, e meter-se-lhes pelas
meias a dentro, e, metendo a mão por debaixo das saias, com a sua rara
habilidade de caçadora de pulgas, conseguia apanhá-los; mas
eram tantos, tantos, que era já um inferno atendê-los.

— Salte cá para fora, ordenou o comandante da polícia,
em tom ríspido.

O Elesbão moveu-se, moveu os pés, e um pouco desengonçado,
pouco firme nos tornozelos, sempre soprando e gemendo, conseguiu sair. Pos-se
de pé e sacudindo das suas belas roupas uma grande porção
de milho, gaguejou logo:

— Não me prenda! Não me prenda!

— Cale a boca. Responda só o que eu lhe perguntar.

E o comandante fez um breve interrogatório, passou-lhe um grande sabão
e fez-lhe saber que havia de dar um tanto para o Asilo de Mendigos, senão
iria dar com as costelas no xadrez.

— E aquela madama, quem é? perguntou.

O Elesbão aditou logo que não sabia, que nem nunca a tinha
visto mais gorda.

— Saia, saia, também.

Nham Pombinha bem percebeu que era com ela, mas fez-se desentendida.

— Não ouve? saia ou mando puxá-la por uma perna.

Levantou-se a dama, atabafada na sua capa e com o derradeiro gorgulho nas
unhas.

— Quem é? Como se chama?

E dando um pequeno puxão à capa, descobriu a cabeça
de Nham Pombinha.

O comandante estacou estupefato.

Conhecia, conhecia!

— A senhora! A senhora aqui?

O Elesbão quase caiu; abriu a boca de forma que quase se lhe via no
estômago os restos da ceia; o nariz quase arrebentou com a força
do sangue, e arrancando do fundo do peito um trêmulo sentimental, disse:

— É ela! Eu bem adivinhei aqui!

E querendo bater no coração, coçou desesperado o umbigo.

Nham Pombinha pediu ao comandante duas palavrinhas em particular.Concedido.
Tanto chorou,prometeu e jurou que o comandante, que era um cavalheiro gentil
com as damas, prometeu levá-la à casa e ser discreto sobre o
caso.

Olhou fito para o Elesbão, transfigurado, e disse-lhe:

— Se você amanhã não entregar 50$000 para o Asilo,
teremos que conversar.

E fazendo um sinal sairam os três.

Cá fora já a sua gente tinha metido para dentro do carro de
aluguel de Nham Pombinha, toda a mobília do culto.

Era um confusão de cabeças de boi e miçangas e molhos
de ervas, que enchia o carro.

O comandante, sem indagar, mandou tocar para casa da guarda, distribuiu a
patrulha, que não pudera encontrar os outros crentes, e, oferecendo
o braço à senhora, começou a andar, seguido do Elesbão.

Recaiu a pouco e pouco tudo no silêncio. Vinha rompendo o dia.

Começaram então a surdir os fugitivos: o Caboclo, o Jerônimo,
o Maximiliano e os outros. E apesar de assustados, puseram-se a rir.

Escapos! Escapos!

Capítulo V

Esta Nham Pombinha era uma verdadeira mulher — homem ilustrado. Que
termos seletos! Que pureza no frasear! Que elegância no dizer.

Apreciemo-la a um poucochincho na vida íntima. Ela mesmo o dizia:

Pela manhã, tomava sempre um frágil pires de elementos de mingau.

Tomava ao almoço, quentes e chupadinhos na casca, dois ou três
produtos espontâneos da esposa do galo!…

À noite, como o chá, roía uma ou duas tênues imponderáveis
como o sonho de uma virgem e a que o vulgo chama de torradas!…

De uma vez, estando o marido doente, ao médico que viera examiná-lo
disseraruborisando-se toda, no fogo da modéstia:

— Senhor doutor, o meu marido é muito superabundante; qualquer
invasão de orvalho matutino nauseabunda-lhe os intestinos; quando dorme,
fica incógnito e pode-se fazer dele o que for aplausivo!

Ajunte-se a isto que não cosia, porque o frio da agulha causava-lhe
tremuras, e quase teremos — pelo lado da moral — a sábia
Nham Pombinha, casada com Cirilo Pereira, velho, com bons bens de fortuna
e um ciúme Otélico da sua cara metade, que era uma gastadora
terrível.

Além disso — diga-se a verdade — Nham Pombinha era bonita
com a sua cutis morena, os seus olhos negros, os seus dentes brancos e um
impertinente de um buçozinho, que era mesmo uma tentação.
Muito dada a leituras românticas, depois de casar com o Cirilo velhusco,
cheio de tosses e reumatismos, gasta raiz para a exuberância daquela
árvore viçosa, Nham Pombinha, com a prática da vida,
começo a sentir que aquilo não devia ser aquilo assim como era,
e calculava que tinha sido roubada — no seu modo de entender —
porque, de fato, de nada tinha sido despojada, porque o Cirilo somente em
mente seria homem para aquela violência…

Moleirão! Pacóvio!

Cirilo Pereira, que em tempos idos fora da pá virada, acabrunhado
com os anos e com os infrutíferos esforços que o aniquilavam,
pra contentar Nham Pombinha, dava-se a perros com os freqüentes desastres,
de que a sua escalavradíssima organização o arrastava,
mas vaidoso, dava-se a uma esquisita sobranceiria, quando acompanhava a mulher
na rua, ao teatro, a uma festa qualquer, onde ambos, pelo contraste, deviam
atrair olhares.

Morava com seu pai e madastra o Hilário, um rapagão de maneiras
sacudidas, porém delicado, instruido e desembaraçado. Viajara
em tempo pelo Rio da Prata e por quase toda a costa do Brasil, e por fim acentara
o vôo, vivendo fartamente de uma agência de loterias, que já
tinha criado fama pela abundância de prêmios, que vendera à
freguesia.

O Hilário opusera-se ao casamento do pai. Mas, depois de consumado,
não mais relutou e deixou-se ficar em casa, vivendo sob o mesmo teto,
em contato com o novo casal.

O rapaz com seu rápido dicernimento conheceu logo na madrasta, tão
nova e bonita, um temperamento de por campainhas à cantela e notou
mais a sua mania dos romances, pois palavreado, soi distant, chique, e concluiu,
achando-a iminentemente frívola. Para o diante foram-se acentuando
umas tantas nuvens fugaces naquele rosto moço, que por fim, suportava,
bem se via, a contragosto, as carícias babosas de Cirilo.

A apreciação desse fato era então patente, quando o
velho, por causa das tosses ou reumatismos, não podia acompanhar a
jovem mulher e a espinhosa incumbência era dada a Hilário.

Madrasta e enteado! Era quase pateta se não fosse verdadeiro, este
modo de nomear aquelas duas criaturas, quase da mesma idade, que se falavam
de longe por pequenos gestos, que se compreendiam por simples olhares, quando
ao terminar um concerto, um baile, uma festa, que os tinha separado, eles
se procuravam por ntre confusão natural de um fim de reunião.

No entanto Hilário era sempre o mesmo rapaz, correto, respeitoso e
amável.

Ligados, na intimidade, ele julgando-a superior a si, em mútuas desconfianças
e reservas, Hilário, por vezes contava-lhe as suas estroinices, pândegas
furiosas, depois as ceias livres com amigos, em sala reservada de hotel; serenatas
a Marílias da cor jambo e que em geral terminavam em rolo provocada
por Otelos de trunfa encarapinhada e tamanco bordado; namoros alheios e seus;
os seus pares prediletos de valsas. Enfim, aquele rapagão senhor de
si, fazia a sua madrasta, um tanto, a sua confidente.

Mas não passava daí, se ve bem. Moralmente, considerava muito
inferior, pela sua posição, de mulher de seu pai, sua madrasta,
colocava-a num alto pedestal de respeito ou melhormente de respeitosa indiferença.

Notava, calculava mesmo, compreendia até, com a sua experiência
de rapaz calejado na vida, o que poderia haver de difícil na vida de
seu pai e de sua madrasta…

Começou a notar que esta, as vezes, envolvia-o em longos olhares,
apertava-lhe fortemente a mão; que ao sair punha-le sempre na lapela
uma flor qualquer; que quando ele voltava, ela arrancava a triste rosa murcha
e guardava-a no seio. No seio!

Por fim, uma noite em que estavam sós, depois do chá, depois
de animada palestra, quando se levantavam da mesa, quando se despediam, —
até amanhã — quando se afastavam… ela, Nham Pombinha,
sua madrasta, chamara-o… tornaram a aproximar-se… ele animado e ela, ela
excitada, nervosa, juvenil, a carne irritada… saltara-lhe ao pescoço
e beijou-o na boca… furiosamente, brutal até!

— Nham!… rugiu ele, convulso, aterrado.

Um pigarrear grosso no corredor chamou-os à realidade.

Cada um fugiu para o seu quarto. Cirilo Pereira entrava.

Hilário andava como apatetado. Que som a de cruéis raciocínios
se atropelava no círculo de análises da sua posição!
queria ficar, queria fugir, morrer, matar, dizer tudo, tudo ocultar! Que suplício!

Que! Pois uma mulherzinha daquela ordem, uma parvalhana, uma frívola,
uma pretenciosa, havia de mangar com ele, mais que com ele, com o seu pai!

E… e… no entanto a eterna congestão do sangue esmagava-lhe a razão,
enfreiava-lhe os brios, enlouquecia-o! De repente resolveu-se: foi passar
duas semanas em Porto Alegre, embarcou e seguiu, pretextando negócios.

Depois de dizer adeus a Cirilo, quando entrava no seu quarto para levar a
mala ao carro, que já estavam à porta esperando, lá encontrou
Nham Pombinha, muito atarefada, pondo em ordem o serviço do lavatório.

Não se falaram. Ele pegando a mala, sopesou-a e, na porta do quarto,
voltando-se, disse-lhe: — Minha senhora, até a volta!

— Hilário… olhe… quero abraçá-lo… eu…

— Até a volta!

E, rodando nos calcanhares, saiu rapidamente.

Foisó então que, roída por aquela paixão, que
era natural, mas que era descabelada, foi então que Nham Pombinha resolveu-se
ir ao Caboclo, o mágico conselheiro, para estas farofas intrincadas.

Contou-lhe o caso; pagou-lhe generosamente o silêncio e a consulta.
O bonzo disse-lhe que primeiro era preciso acabar o ciúme de Cirilo
e depois tratar do resto. Era preciso paciência. E deu-lhe um pequeno
frasco, contendo sabe Deus o que, e recomendando-lhe de arranjar meio de arrumar
com aquilo as colheres, no estômago do homem. Dito e feito. Nham Pombinha
começou a aplicar o seu remédio que produziu o salutar efeito
de provocar cólicas terríveis em Cirilo Pereira e uma sonolência
contínua.

O pobre homem estava ficando verde e nunca Nham Pombinha fora com ele mais
dengosa do que então.

Aconselheu a escrever a Hilário, dizendo-lhe que viesse, porque enfim,
doente como se achava sempre estaria mais acomapnhado.

Passaram-se mais dos quinze dias de que o Hilário avisara precisar.

Acabara-se a droga e Nham Pombinha dispunha-se a ir, novamente, ao Caboclo,
quando os jornais falaram de certo fracasso provocado por este, então
resolveu esperar.

Cirilo cada vez mais derreado resolveu-se a fazer uma pequena viagem provocada
por seus interesses de fora.

Nham Pombinha aproveitou a partida do marido e nessa mesma noite dirigiu-se
ao sacerdote do Xererê que deu-lhe mais remédio, e como já
se podia ir mexendo com o moço, requereu-lhe um chinelo deste, para
um certo encantamento.

Nessa noite, por obra do diabo, é que a polícia havia de lembrar-se
de cercar a casa do mandingueiro!

Ai amor, a quanto obrigas?

Saindo da casa do Caboclo, o comandante de braço com Nham Pombinha
e o Elesbão Soares atrás, ainda atormentados, ela e este, pelos
importunos gorgulhos, veio o grupo caminhando para o centro da cidade, silencioso
e mutuamente contrafeito.

Logo adiante, numa das esquinas foi o comandante abordado por uma patrulha,
que o chamou e deu-lhe parte da qualquer coisa de urgente, porque ele, voltando-se
para a senhora,pediu-lhe muitas desculpas de não poder acompanhá-la
mais além, porque tinha negócio importante que o chamava, e
que, como a circunstância da ocasião era delicada, rogava-lhe
deixar acompanhar por aquele senhor, (e apontou o Elesbão) porque enfim
sempre era um homem…

— Pois não! Pois não… atalhou logo este.

Despediram-se todos e cada grupo tomou rumo diferente.

Nham Pombinha e o Elesbão Soares!

Ele atormentado, pelo seu amor, aqui pelo seu braço, em carne e osso.

Ela revendo nma memória o Hilário, robusto, de ancas largas
e grandes ombros.

E ambos, iguais perante o gorgulho, parando a espaços, para tirar
algum mais impertinente, que dirigia a marcha muito imprudentemente…

Capítulo VI

— Pois sim senhora; minha senhora: Olhe que sempre escapamos de uma!…
Nham Pombinha olhou de revés para o seu companheiro e continuou calada
e apressando o passo.

Era esquisito até, se se pudesse, a difusa luz da madrugada, ver aquele
par que caminhava rápido e sem ter o tom de intimidade que aproximasse
os dois retardados.

— Minha senhora, olhe que, para lhe ser agradável, já
venho desde a outra quadra de cotovelo torto a espera de seu braço.

— Obrigado. Não se incomode, senhor…, como é a sua
graça?

— Elesbão.

— Só?

— Soares, seu criado, lesto e agudo para comer e para tudo.

— Ah!

— E a senhora?

— Ora eu… eu tenho um nome muito feio.

— Cuidado a sargeta. Dê-me a sua mão. Dê um pulinho.
Isso! Ai! Ai!

— Por quem suspira, seu Elesbão?

&#821#8212; Ainda pergunta, ingrata! E os gorgulhos? olhe que não me deixam
parar…

— E a mim também. Mas, seu Elesbão, o senhor vai ter
paciência, me de deixar antes de chegar à minha casa.

— Por quem me toma a senhora? Não, tenha paciência. Enquanto
não a entregar sã e salva não descanso.

— Mas lembre-se que alguém pode ver-nos juntos. E depois o que
não diria de mim o mundo?

— Ah! minha senhora. Mas eu gosto tanto de si! Desde que a vi, não
mais dormi, parece que nem comi; sinto aqui, no coração, um
coisa que me trepa e que me desce e que me deixa embasbacado.

Para que é que a senhora é tão mazinha! Pois não
tem reparado em mim? Não me conhece? Pois não me vê sempre
passar pela sua porta, quando a senhora está na janela, e voltar-me
duas e três para trás?

— Seu Elesbão! Silêncio! Eu sou uma pessoa séria:
o muito, o muito que lhe digo é que arranje um pretexto para poder
ser apresentado lá em casa.

— Quem será aquele que vem lá? É melhor nos escondermos
neste portão.

— Nem pense nisso! Vamos.

E assim foram Nham Pombinha e o Elesbão, discreteando até próximo
à casa de residência daquela.

Foram felizes, pois não tiveram mau encontro algum, algumas carroças
de verdura que passavam para o Mercado, alguns operários madrugadores
que iam para o serviço.

Contudo, o Elesbão procurou ser eloqüente e atirou-se a trechos
de discursos, com colorido onça, que a Nham Pombinha aparava com a
sua costumada retórica.

Isso ainda mais o embeiçava!

E Nham Pombinha, que só via o seu Hilário, defendia-se tanto
mais vigorosamente quanto lhe servia de escudo o seu derriço pelo enteado.

À porta da rua, então, o Elesbão foi patético,
tocou ao sublime, chegou além do… sublimado corrosivo: impetuoso
e ardente, arrancou da Pombinha o lenço, beijou-o, fremente, e disse
altivo:

— Ingrata! Já cá tenho uma lembrança!

O feio era que o triste lenço tinha num dos cantos, bem patente, em
letras garrafais, o nome — Cirilo Pereira — mas o Elesbão
nem reparou.

Nham Pombinha, com mil cautelas, abriu a porta de sua casa, e entrou e cerrou-a
novamente, de vagarinho, de vagarinho, só por atenção
com a criada e, sobretudo, por causa desta.

Sempre cautelosa, abafando o ruído dos passos, distinto o vulto na
semi-claridade que já entrava pela bandeira da porta, encaminhou-se
para o seu quarto. Aí a escuridão era profunda.

Com a infinita delicadeza, tateou o castiçal e os fósforos
acendeu a vela e começou a fazer a sua toilete de dormir, tendo previamente
guardado num canto da gaveta da cômoda o elixir dos milagres. Deitou-se.

Apagada a luz, nervosa da caminhada e das diversas sensações,
filhas das peripécias da noite, não podendo já dormir,
pôs-se a cismar.

O que faria o Hilário, a essa hora? Coitado. Passou talvez a noite,
pensando nela Nham Pombinha, e, todo amor, toda paixão, estava se consumindo,
o mísero. Quem sabe? Alguma patuscada como ele costumava fazer aqui…
Ingrato! Mais não, era impossível, só nela pensava.

E o Cirilo?

— Ora, para o Diabo que o leve. Não veio me apoquentar, ela
bem não queria. E então? Agora um velhadas daqueles, enrugado,
sem dentes, e todo a se derreter com a gente. Era até a caçoada
das outras. É… é… mas era sempre a mamãe a atazanar,
a martelar, porque era um bom partido… porque era rico… porque era isto,
porque era aquilo! Eu lá preciso da riqueza dele?!… Eu queria era
outra coisa…

Ah! mas o Caboclo tinha afirmado que o remédio era bom.

Nham Pombinha não era uma perversa; não se julgue que aplicava
a beberagem do mandingueiro com o fim criminoso.

Se ela julgasse que a droga era nociva, não a daria, com certeza;
somente acreditava que a bebida era encantada.

Aí está.

Não que pudesse dela resultar uma desordem no organismo, um lento
envenenamento, uma perturbação profunda.

Se qualquer caso deste aparecesse, seria originado doutra cousa, nunca do
remédio do Caboclo.

Dando as suas colheradas a Cirilo, que fora se tornando adoentado, nunca
julgou que ela é que provocava este estado; não: seria a idade,
achaques velhos, alguma imprudência — isto é, se provassem
que aquela droga era veneno, horrorizar-se-ia do seu procedimento; mas, como
só acreditava na mágica da mesma porque o feiticeiro é
quem tinha dado, aumentou até a dose inocentemente.

E embuida dos preconceitos das supertições, de mil babuseiras,
era uma crente cega e decidida.

E aliava em si os dois extremos: inocente criminosa, e ignorando que o era.

Estava já clareando o dia. A luz entrava, viva, pelas frestas das
janelas.

Nham Pombinha cismava ainda, jamais entorpecida, já quentinha nas
suas roupas, acariciada pelo silêncio: ia-se adormentando.

E aquele Elesbão? Quem seria? Ela bem o conhecia, já o tinha
notado mesmo na insistência, tanto que uma vez o Cirilo chegou a incomodar-se
e quis tomar-lhe uma satisfação. Depois na igreja, aquele dia,
aquela história atoa do leque.

A imaginação galopava.

Via-se viúva. Casava-se com o Hilário. Mas… mas não.
Ele não queria. Oh! com certeza. Ah! mas arranjava-se tudo. Era com
o Elesbão. Mas o Hilário zangava-se. Como seria? Como não
seria?

E abatida, vencida pelo sono no último resto do pensamento, via-se
numa sarabanda desesperada, todos de mãos dadas, no escuro: Hilário,
Elesbão, ela, o Cirilo, o Caboclo e os outros, na terra do encantamento,
vendo cousas nunca vistas.

Alto dia já. A criada batia à porta do aposento. Nham Pombinha,
acordando espantada, abriu a sua janela que deitava para a área e,
ao voltar para a cama, estacou: via a sua manta cheia de pó de milho
e alguns grãos ainda presos às franjas, as suas delicadas botinas,
à barra de seu vestido, com uma crosta grossa de barro, dois ou três
grandes pintos de sebo infecto. E tudo amarrotado.

Aprontou-se e saiu para o almoço, passando a chave na porta. Depois
arrumaria tudo…

Capítulo VII

Cirilo Pereira, o venturoso marido de Nham Pombinha, chegado, na tarde anterior,
do Rio Grande, lia comodamente repoltreado numa preguiçosa a folha
de sua predileção, enquanto a esposa, debruçada sobre
o peitoril da janela, regava, negligentemente, uns jarrões com viçosíssimas
flores.

Lindíssima, apesar de um pouco fria, aquela manhã de junho,
que Pombinha afrontava, toda contente, com as faces muito coradas, uns fiozinhos
de cabelo em desordem, na testa, aparentando grande preocupação
por aquela delicada tarefa.

Entrou um criado trazendo o café com leite do costume, lardeado de
biscoitos de soda, com os quais o estômago de Cirilo dava-se como Deus
com os anjos.

Cirilo tomou uma das xícaras, pondo-a sobre a mesinha ao lado da preguiçosa,
enquanto sua mulher, pousando o regador a um canto da janela, aceitava a outra
xícara, que o criado lhe oferecera, antes de sair por onde entrara.

Chegou ela aos lábios, delicadamente, à borda da xícara
que tinha entre os delgados dedos e sorveu alguns goles. O velhadas tomava
o seu quinhão sorvendo o líquido com estrondo, com os beiços
em bico, e atulhando a boca de biscoitos, como se eles o estivessem ameaçando
de fugir. Reatou, entretanto, a leitura da gazeta, balançando a cabeçorra
calva e escalavrada nas passagens em que o articulista falava mais de perto
às suas inclinações. Naturalmente, o nosso homem se estava
abarrotando de política, em algum artigalhão massudo, em que
o governo tomava a sua cossa e a oposição era guindada às
nuvens, ou vice-versa. O tema eterno, desde Adão e Eva, que mais felizes
do que nós, viveram num tempo em que não havia jornais.

Decorreram alguns minutos. O honrado casal acabava precisamente, de chupar
a última gota de café, quando, subitamente, Cirilo, arregalando
os olhos e limpando as migalhas de bolachinhas de soda, que lhe tinha agarrado
ao bigode, exclamou:

— Oh! Oh! Cá temos um novo caso de feitiçaria. E parece
que desta vez entraram na coisa pessoas de estadão.

Nham Pombinha estremeceu, levemente, mas dissimulando com muita arte as suas
apreensões, perguntou:

Feitiçaria? Onde?

— Ora, ouve lá:

Cirilo dobrou o jornal ao meio, alisando-o sobre a coxa, pô-lo em pé,
ajeitou à luz que entrava pela janela e leu.

O jornal fazia uma narração muito estirada dos acontecimentos
ocorridos, havia dois dias, em casa do Caboclo, não esquecendo de apimentá-los
com enxerto de episódios de um grotesco pantagruélico, principalmente,
nas cenas do do caixão de milho, em que figuravam o Maximiliano, o
Elesbão Soares e Nham Pombinha.

Esta fazia prodígios de dissimulação para conter-se,
sentindo, de quando em vez, desfalecimentos, passando a palidez à vermelhidão,
desta à palidez, e, sobretudo, experimentando, veementes desejos de
sair da varanda, sem dar a perceber ao marido, que o fazia para não
ouvir o resto daquela impertinente narrativa.

— Que te parece, hein? Isto é uma patifaria, bradava o Cirilo
indignado, é uma coisa para a qual todo o rigor da políria seria
pequeno! Coisa assim! Ora vejam: este diabo do Caboclo a dar sessões
de feitiçaria, a que horas da madrugada, para seduzir a gente honesta,
e quem sabe para dar cabo dela!

E quem será a figurona de que fala aquii a gazeta? Ah! mulheres! mulheres!
Ve tu, onde se foi esta meter. Olha, se fosse cá gente minha, amalgamava-lhe
as costelas, palavra de honra.Lá isso era com certeza. No século
XIX! É incrível!

A Pombinha calada, fora de novo à janela, e disfarçava remexendo
nas flores, ao acaso.

Estava muito quieta. Uma vez que não se citavam nomes, o negócio
era outro.

— E o negralhão? Ora dá-se! Quem lhe fizesse um feitiço!…
O diabo foi terem escapado todos, e não se sabe quem é a tal
figurona. Não entendo porque se dão dessas contemplações.
Se fosse uma pobre qualquer, a gazeta punha-lhe o nome comtodas as letras.
Não concordo. Cá comigo, era ali! O nomezinho todo, para escarmento.
Que achas?

— Sei lá! Não me meto nessas coisas. Se a figurona, como
tu dizes, foi a essa casa suspeita, talvez tivesse as suas razões.

— Razões! Razões de cabo de esquadra, com certeza! Não
há razões que legitimem a ida de uma mulher honesta à
casa de um feiticeiro. Pau é o que falta amuita gente boa! Pau é
o que é!

E o Cirilo remoeu o seu mau humor espetando um charuto na boca e acendendo-o
com a mão trêmula.

— Olha, vai lá dentro e manda-me trazer o conhaque. O diabo
da notícia fez-me suores frios.

Aquilo pareceu à Pombinha uma inspiração celestial.
Com rapidez do raio, seu cérebro abriu-se para colher este pensamento
tremendo:

E, se eu pusesse o licor do Caboclo dentro do conhaque…?

Era questão de dez gotas. Não precisava de mais para os primeiros
efeitos — mas, se sucedesse algum desastre? Se, em vez dos resultados
com que o feiticeiro contava, o Cirilo ficesse, como tantos outros, idiota
chapado, ou tivesse uma síncope, que o levasse para melhor mundo ou
ainda, fosse acometido de uma paralisia que a incomodaria, a ela Pombinha,
para o resto da existência?

Era preciso cautela.

Com essas idéias desconcentradas a tumultuarem-lhe no cérebro,
trêmula, agitada, sem saber bem o que fazer, Pombinha dirigiu-se para
o interior da casa afim de fazer servir ao marido o conhaque que pedira.

Mandou trazer o precioso licor da dispensa, encheu com ele um cálice,
e tirou do corpete do vestido o vidrinho misterioso que lhe fornecera o Caboclo,
e que até aí não deixara. Desarrolhou-o, e olhou em torno
para assegurar-se de que ninguém a espreitava.

Não havia nada suspeito. A casa estava toda entregue ao movimento
das primeiras horas da manhã, e cada criado ocupava o seu posto, na
faina de costume. Aos ouvidos de Nham Pombinha chegavam apenas o chilrear
da passarada no páteo e o batucar surdo dos bifes na cozinha.

Entretanto, a esposa de Cirilo hesitava ainda, temerosa dos resultados da
droga do Caboclo.

Eis, porém, que a voz do marido se fez ouvir da varanda.

— Oh! Pombinha! Não vem esse conhaque?

Então,ela resolveu-se. Curvou-se um pouco agachada, aproximou o vidrinho
à borda do cálice, vazou no conhaque dez gotas bem contadas
de um líquido cor de topázio.Muito parecido com o licor da predileção
do Cirilo, e que, ao contrário do que Pombinha esperava, não
mudou de cor.

Em seguida, tomando o cálice entre os dedos, sacudiu-o, circularmente,
para misturar bem as duas substâncias: po-lo sobre um pratinho de vidro
lavrado, e dirigiu-se à varanda.

O Cirilo estava já na página dos anúncios.

Pombinha acercou-se do marido, ainda não reposta das comoções
que, havia há poucos minutos, a tinham assaltado, de modo que o cálice
tilintava, levemente, sobre o pratinho de vidro.

Mas o Cirilo não reparou nisso, não por estar a cemléguas
de suspeitar das arteirices da esposa, como pelo interesse que lhe despertava
a leitura da folha.

E sem cerimônias, de um só jacto, atirou o conhaque às
guélas, engolindo-o com impassividade do habitué.

Deu uns estalinhos, chegando a ponta da língua ao céu da boca,
limpou o bigode, dobrou depois o jornal, e levantou-se, abrindo os braços
e esticando-os para os lados, num espreguiçamento deleitoso.

Por último, alisando com as pontas dos dedos as faces de Pombinha,
e aludindo ainda à notícia da sortida policial na casa do Caboclo,
disse-lhe:

— Tu, ao menos, não és capaz dessas tolices, hein? Sempre
ajuizadinha.

— Eu? Ora, que idéia extravagante?

E sairam ambos, cada um para o seu lado.

Ele, dirigindo-se ao escritório, onde ia trabalhar com o guarda-livros;
ela para o interior da casa, para ativar os preparos do almoço.

Davam as nove horas.

A passarada do páteo continuava a chilreae, sob a luz diáfana
de um sol puríssimo de inverno.

Um papagaio amestrado, no passadiço envidraçado, perguntava
pela décima vez, quem ia à caça; e da cozinha com um
perfume de quitutes bem adubados, vinha sempre o rumor surdo do batucar de
bife.

Capítulo VIII

Nessa mesma tarde — como o diabo as arma! nessa mesma tarde, assim
pela volta das cinco horas, depois de competentemente jantada e deixados em
casa à criada as recomendações para o dia seguinte, a
D. Claudina de Morais, acompanhada de sua jovem filha Doricélia, resolveu-se
a ir fazer uma visitinha à sua vizinha, a Nham Pombinha. Contos largos.

É bom saber-se que Doricélia era uma verdadeira pamonha, uma
verdadeira posta de carne ensacada em vestidos sempre de cores variegadas,
como um pano de teatro.

Mole, pesadona e um tudo nada de língua pesada, tinha uma paixão
formidanda pelo Hilário, e como o rapaz, amável sempre, cumprimentava-a
como vizinha, quando saindo ou entrando em casa, passava-lhe pela janela —
a menina foi cozinhando do gordo do coração — aquela constipação
amorosa, com um calor total, que a acreditar-se D. Claudina, mais um pouquinho
de fogo na máquina, era negócio para temer explosão.

D. Claudina, velhota, frescalhona e andeja, puladinha, uma como cobra mal
matada, assim que percebeu o derriço da pequena, aí língua
para que te quero! não mais descansou.

Via Hilários em todas as esquinas e todas as horas: bizarro, em toiletes
claras, sisudo, em vestuários pretos, sob desabados chapéus,
de botas russilhonas, e lá — longe — caminhando de pressa.

Com uma volubilidade espantosa, D. Claudina, variando, repetia seguidamente
o mesmo estribilho:

— Não sejas boba, menina; não deixes escapar> Olha,
logo jogamos o víspora, e se queres mandamos convidar o pássaro.
Aquilo sim, aquilo é que te convém… Aveza… e é um
homem… Eu to digo… Disso conheço eu… Não vez o teu pai?
quando mal se aprecatou… zas, traz, estava seguro! Repara bem, filho único,
pai velho, madrasta moça. Tu verás… Mas também tu ficas
aí como água morna. É preciso ser jeitosa. Vamos saindo
da concha.

— Mas, mamãe…

— Psiu! Psiu! Cala a boca. Mas eu sei um meio seguro que me ensinaram.
Não vês, como o teu pai é caseiro? Ah! Ah! é um
segredo, é um segredo… Eu sei bem quem já decidia isso enquanto
o diabo esfrega o olho: era o Caboclo, era, aí está. Te garanto.
Juro.

— Mas então, a gente vai se meter na casa de um Caboclo? Acudiu
com uns resquícios de bom senso e embatucada Doricélia.

— Vai, sim; por que não?

— Mas a mamãe já não disse que tinha uma figa
milagrosa de dente de jacaré?…

— Tenho, sim tenho. Mas de que serve, não dirás; seu
Hilário não vem cá em casa? É preciso que ele
venha para se fazer as três cruzes nas costas… Arranja, arranja-te!

— Mas como há de ser?

— Pois, vamos visitar o seu Cirilo.

— Mas nós nunca fomos lá.

— Não faz mal, vamos agora.

— Mas…

— Vamos! É o verdadeiro. Olha que daquilo não anda aos
ponta pés; mete-te a namorar algum bigorrilha que me há de vir
comer os olhos da cara… Queres? Vai te vestir!

— Mas, como há de ser?

— Muito simples. Fazemos a nossa visita, eles nos pagam; nós
voltamos lá, e eles tornam a vir cá; tu fazes compoteira de
doce de côco e mandas ao velho, ele te manda logo umas flores; quando
o rapaz passar, tu suspiras; damos um chá de garfo dançante;
eles vem; eu então preparo um bolo especial para o moço e faço
trabalhar a minha figa de dente de jacaré. Então, que tal?

— Mas, se papai…

— Quem manda aqui sou eu. Vai para a rua jogar o tal bilhar. Há
de ser assim, porque eu quero… — mas eu tenho vergonha, mamãe…

— Mas… e o casamento, rapariga?

Olha que tu já tens idade. E o Hilário até tem jeito
de bobo… podemos caçá-lo bem.

— Está bom, mas vamos amanhã…

— Pois sim, amanhã…

Estes diálogos eram freqüentes entre a gasguita D. Claudina e
a abundante Doricélia; mas como se vê, sempre concluiam pelo
adiamento da almejada visita, — para amanhã.

Tantas foram, porém, as investidas, que afinal chegou a resolução.
Durante o jantar tinham falado no assunto, porém o seu José
Pereira de Morais foi às nuvens e voltou com uma formal recusa.

— Nada! Não quero visitas. Já briguei com aquele Milorde
do tal Hilário por causa do Quatro-olhos, um cachorro de estimação!
Não dou o braço a torcer!

Mas que tem isso, criatura?

— Que tem? Pois só porque o cachorro esfregou-se por ele e sujou-lhe
as calças de barro, era um motivo para ele, aquele assassino, dar-lhe
uma porção de bengaladas! Perdi a cabeça…

— Ora, pois, havemos de ir.

— Não quero! Rugiu o Pereira de Morais, atirou o guardanapo
sobre a mesa, virando o resto do café de sua xícara, meteu um
palito entre os dentes, um cigarro entre os dedos, o chapéu na cabeça,
e abalou, abalou o José Pereira de Morais, disposto a não voltar
mais… aquele assunto.

— Pois, vamos. Havemos de ir, esganiçou D. Claudina. Menina
vai te aprontar.

Pum! fez-se à porta do meio batida pelo pulso embravecido de Morais.

Discretamente, vibrou a campainha da porta.

Nham Pombinha, que estava na sala de visita, relendo o jornal, bandido, que
trazia a notícia da busca policial, Nham Pombinha acudiu presurosa
à porta e abrindo-a mostrou o seu busco moreno tão animado por
aquele mágico par de olhos negros, e quase, quase recuou entre o admirada,
o curiosa e o aborrecido.

— Que massada! articulou entre dentes. E expandindo um largo sorriso,
abrindo de todo a porta, arredou-se um pouco e disse um tanto curvada: —
Façam o favor! Entre!

— Com sua licença, disse D. Claudina. E atropelou a frente.

Depois de entrarem, encostada à porta e antes de se sentarem, meneou
para o lado o corpito azougado e com um gesto soberbo de pose, garganteou
o prelúdio:

— Apresentou-lhe a minha Doricélia. É tão sua
amiga! Nem imagina, vizinha! Todos os dias fala na senhora.

— Sentem-se, sentem-se.

— Estimo muito. Que bonito nome, é um verdadeiro gorgeio das
avezinhas imbeles!

Nham Pombinha não se emendava: sempre sutil no primor das frases.

Houve um largo silêncio. E nem podia deixar de haver. Nham Pombinha
lembrava-se das cacetadas que o robusto braço do Hilário descambara
no Quatro-olhos, o mimoso cão do Morais. Dona Claudina agitava-se na
cadeira, alinhando os retalhos, para poder conduzir simpaticamente à
sua visita.

Doricéia olhava para o teto batendo com o leque no joelho e respirando
alto, opressa. Toda de branco, com uma larga faixa cor de rosa. — Que
candura!

Aquilo já estava se tornando ridículo, Nham Pombinha, em seus
livros, sempre lera que as visitas se fazem tagarelando.

Incitou os debates:

— O senhor seu marido, de saúde?!

— Bem, obrigado. Ele queria muito vir, mas as ocupações…
E depois tem andado com uma tosse tão forte…

— Ah! o Cirilo também não vai passando bem.

— É, ele parece padecer…

— Não; isto é de tempos para cá.

— E o sr., seu mano?

— Meu mano!

— Sim, aquele moço, que mora aqui.

A ladina D. Claudina bem sabia o que dizia, era só procurando ser
amável para com a Nham Pombinha.

— É o meu enteado, o Hilário, disse Nham Pombinha. Muito
bom moço.

— Ora vejam; pois eu jurava que eram, os dois, irmãos. São
tão parecidos, não é Doricélia?

— Não acho, mamãe.

— Pois eu acho. E a senhora?

— Eu! nem por eirrus, cumulus, respondeu Nham Pombinha, querendo dizer,
provavelmente, que nem por sombras.

Novo silêncio.

Agora, era Nham Pombinha em devaneio, batendo com o salto da chinelinha,
chique, cuja biqueira de verniz, aparecia, rápida, a furtos, se sob
a fimbria do seu roupão de bonita flanela cor de havana, uns grandes
ramos encarnados.

Depois, aos poucos foi se animando o grupo, e discreteando sobre vários
motivos esgotaram as damas umas puxadas horas sem que tivesse gasto dez movimentos
de palavras falada à graciosa Doricélia.

Este amorzinho só fazia largo dispêndio de palavras, era quando
encontrava chá frio ou sopa quente.

D. Claudina exibiu-se em toda a florescência da sua elétrica
pessoa.

Dava pequenos pulos na cadeira, gesticulava fogosamente e entremeava na conversa
umas risadas rápidas, apenas trinadas mas nítidas e irritantes
pela abundância.

Enfim, pouco colheu para o seu projeto, mas avançou um caminho imenso
quando com sua licença, ergue-se e beijocou muito chuchurribiadamente
as aveludadas faces da Nham Pombinha, e disparou o convite já de há
pocuo engatilhado:

— Agora, minha senhora, apareça; teremos muito gosto, o José
Pereira há de estimar muito, ele simpatiza muito com todos aqui.

Conto consigo. Adeus. Até outro dia.

— Passe bem, disse Doricélia a Nham Pombinha, que beijou-a nas
duas rubicundas bochechas.

E com vivo tiroteio — de passa bem, recomendações a todos,
apareça, volte, cá ficamos, — foram até os umbrais
da porta externa, como dizia a dona da casa.

Trocaram-se os últimos abanadinhos de mão, como quem diz: vem
cá Bilú, vem cá, e ainda não havia cinco passos
de distância, entre umas e outra e elas já se amalgavam:

— Que presumida! regougou D. Claudina.

— Cauila. Nem nos ofereceu nada, gemeu Doricélia.

— Mas senhores, esta velha, não se lembrara da briga que o marido
dela teve com o Hilário, por causa da sova que este deu no tal cachorro
Quatro-olhos, quindins deles todos? E a filha! Credo, que empada!

Lá adiante caíra o lenço de D. Claudina, que, abaixando-se
para apanhá-lo, voltou-se.

Trocaram-se novos e amistosos abanadinhos de mão.

Capítulo IX

Alguns dias depois das cenas que acabamos de narrar, conversavam plácida
e beatificamente, após um alegre jantar, na bela e bem iluminada varanda,
que já conhecemos, o Cirilo, sua mulher Nham Pombinha e seu enteado
Hilário.

Em verdade, dos três era o Cirilo quem tinha menos razão para
achar alegre o jantar. Nada se lhe alterara no físico exteriormente.
As cores não eram de todo más, os olhinhos brilhavam sempre
sobre as sobrancelhas copiosas e crespas, dormia bem e levantava-se cedo.

Todavia, ele não passava escorreito, precisamente como um abade.

Após a ingestão do cálice de conhaque, que lhe oferecera
Pombinha, naquela belíssima manhã, tão clara, tão
pura e tão fresca, o Cirilo sentira despertar nele um apetite de lobo
para a mesa.

Mas aquilo era uma coisa verdadeiramente sardanapalesca infernal, extraordinária.

O Cirilo comia muito, comia de tudo, comia sempre, não enjeitava qualquer
manjar dos que, variadamente, vinham à mesa, regava toda essa massa
bem mastigada com uma bojuda garrafa de vinho de Bourgogne em mistura com
Vichy do hábito. Mas nada o saciava.

Apenas levantando da mesa, a mastigar a ponta do charuto, após o café,
sentia-se logo apto para o novo sacrifício, à moda dos de Lucullo.
Por mais que enchesse o estômago, havia lá dentro uma sensação
de vácuo, que reclamava, imperiosamente, ser preenchido.

O fato era tanto mais extraordinário, quanto, até então
o Cirilo era um sujeito muito sóbrio à mesa, e em toda a sua
vida tivera apenas uma indigestão, verdade é que de conseqüências
um tanto tristes, pois, ocorrera no dia do casamento e prolongara-se, em seus
fatais efeitos, por oito a dez dias.

Nham Pombinha, por seu lado, a princípio, quando o viu atirar-se assim
tão denodamente aos chorumentos pratinhos que o cozinheiro Calixto
tão caprichosamente preparava, teve um sobressalto denunciador de pecaminosa
alegria.

Infelizmente, para ela, muito pouco viveram as suas esperanças, e
muito pronto emudeceram os seus lábios, em entoar hinos de louvor e
gratidão à misteriosa ciência do Caboclo.

A mandinga propinada ao Cirilo, em matéria de excitação
de apetites, tinha se limitado aos do estômago, e ainda assim, imperfeitamente,
porque o velho no crescendo em que, a esse respeito avançava, era muito
capaz devorar os trastes ou estourar, se antes uma doença prolongada
não o viesse amarrar ao leito ou à cadeira preguiçosa.

Em suma, para Nham Pombinha, nunca o marido fora tão velho. Havia
de ser bonito, se em vez de uma ressurreição, a sombra da qual,
o seu derriço com o Hilário poderia marchar em mar de leite,
lhe coubesse em sorte aturar muitos meses um inválido.

Era essa a única preocupação de Nham Pombinha, porque,
nem de leve, lhe passava pela mente que o que ela tinha praticado com o marido
era um crime, nem mais nem menos.

Nham Pombinha extenuava-se, improficuamente, em despertar qualquer fagulha
sob as cinzas.

Afinal, era uma consumição, e para acabar com aquilo tinha
resolvido, na manhã do dia seguinte, forçar a nota, juntando
ao conhaque matinal do Cirilo mais umas dez gotas do licor maravilhoso do
Caboclo. Em último caso, pensava ela, inocentemente, o velho morre
e… assunto concluído.

Afinal, ela tinha razão. O que estava sucedendo era fatal, e se alguém
tinha a responsabilidade do drama cujos primeiros quadros começavam
a delinear-se, na imaginação escaldada de Nham Pombinha, eram
aqueles que haviam amarrado as suas poucas e floridas primaveras à
carcaça do Cirilo, por causa do seu dinheiro.

O mundo está cheio disto.

Terminara, pois, o jantar. Cirilo, como de costume foi reclinar-se na preguiçosa
para terminar o charuto, enquanto Pombinha e Hilário, afastando as
cadeiras, tomavam cômoda posição para palestrar alguns
instantes.

O assnto escolhido foi a freqüencia e a franqueza das visitas que a
Doricélia, com a capa de vizinha, dera agora em fazer à casa
de Pombinha, às vezes até em horas impróprias.

— Aquilo era demais, exclamava Pombinha escandalizada. Não lhe
saía da porta. Era desde pela manhã até a noite um sair
e entrar que não tinha fim. Credo! A mulherzinha não teria o
que fazer em casa da mãe? E que modos? Mexia em tudo, entrava em todos
os quartos, queria meter o nariz em todas as gavetas. Que espevitamento! Pois
a gasguita não tivera a protuberância de pedir-lhe para mostrar
o quarto do seu Hilário? Queria ver como era um quarto de moço!
Ora dá-se? O Hilário se tinha alguma coisa com a espevitada,
bem podia arranjar-se para longe. Pois não!

O Hilário fazia-se muito grave, abarrotado de sisudez, olhando de
soslaio para o velho, que chupava pachorrentamente, o seu charuto, namorando
uma compoteira a transbordar de damascos em conserva.

— Que não, desculpava-se. Não era nada com ele, nem pensava
nisso. Era natural. Aquilo era amizade de raiz com a Nham Pombinha. Pois se
ela era tão boa, tão amável, e recebia todos tão
bem!…

Mas a Pombinha, insistia querendo, deixar o negócio bem aclarado para
saber a que ater-se. Citava certas circunstâncias, apurava a significação
de certas frases e olhares.

— Que eu, concluiu ela, com um largo gesto de desprendimento, não
tenha nada com os teus negócios com a Doricélia. Aqui é
que não.

O Cirilo estava aborrecido com a palestra.

— Que zanga Deixa o rapaz. Olha: se não for com a Doricélia
será com outra, é claro. Escuta lá: Manda servir-me meia
dúzia daqueles damascos. Estou com apetite.

Era aquilo, comer e mais comer. Daquela maneira, qualquer dia engulia um
boi.

Por fim, o Cirilo levantou-se resolvido a sair para esticar as pernas.

— Menina, vou dar um salto até a Ponte de Pedras.

E saiu, puxando o pigarro, encostado à bengala e meio pesado, como
quem leva linguados de chumbo aos pés.

Na varanda, faziam-se já as trevas.

O Hilário, porém, e Nham Pombinha não se mexeram. Continuaram
a palestrar, em coisas insignificantes, até que os criados vieram acender
os bicos de gás do lustre de cristal dependurado no teto de estuque.

Uma claridade crua inundou a sala de jantar, de cuja mesa do centro eram
levantados os pratos, a toalha, os mil acessórios do ato principal
da vida, como, gongoricamente, afirmava a Nham Pombinha, numa azáfama
de criados, que estão mortos por se mandarem mudar.

Depois, tudo caiu em silêncio.

O Hilário, afinal aborrecia-se.

— Agora que as coisas encaminhavam-se, é que a Doricélia
havia de meter-se-lhe ali pelos olhos como um trambolho.

O Hilário desconhecia ainda as artimanhas da madrasta, e esta, naquela
tarde, dispunha-se a contar-lhe tudo.

E, insensivelmente, como se houvesse ali coisa que os trai-se, que os pretendesse
empolgar, ambos dirigiam-se para o vão da janela próxima a a
qual Pombinha zelava os seus opulentos jarrões de flores exóticas.

E sentaram-se, um em frente ao outro, entre as pesadas cortinas de damasco
com pendurezas douradas, numa compostura de missa fúnebre, a ver quem
primeiro rompia o fogo.

— Enfadou-se? Nham Pombinha.

— Acha?

O Hilário enfiou mas não desistiu.

No fim de contas, era uma tolice. Que diabo! A Doricélia não
era nenhuma beldade por quem a gente deixasse apanhar assim sem mais nem menos.
E ele olhava para cima. Sim. Não queria nenhuma princesa, é
verdade, mas também não podia esperar coisa melhor.

E esbofava-se em apontar-lhe os defeitos, os modos, o espevitamento, que
não podia deixar de ser ensinado pela mamã. Aquilo via-se.

— E depois, concluiu, andadota, em anos. Não é o meu
ideal.

Nham Pombinha, remoia em silêncio.

— Então!

— Hilário. Tu entendeste mal. Já te disse que não
me ocupo dos teus negócios. Era o que me faltava. Mas é dos
meus. Irrita-me esta sem cerimôna da Doricélia, uma presumida
que nem ao menos sabe vestir. Não vês como ela anda sempre cheia
de fitas? E até me entra em casa sem bater. Já se viu uma coisa
assim?

— Entre moças…

Entre moças que se dão, sim, concedido. Mas eu conheço-a,apenas,
há uns vinte dias, Não. A coisa não pode ser comigo.
Isso entra pelos olhos.

— E continuaram a discutir: ele procurando dissuadí-la das suas
desconfianças, ela insistindo em atirar-lhe para os ombros a responsabilidade
dos avanços rápidos da intimidade de Doricélia.

Afinal, foram enervando-se,amolentando-se, engolfando-se naquele silêncio
feliz que os rodeava, que os comprimia, e ameaçava arrancar-lhe confissões
perigosas para o futuro sossego do Cirilo.

Por último, Nham Pombinha, já concidia que o Hilário
nada tivesse com o caso. Que, de resto, também pouco lhe importava.

E uma das mãos de Pombinha lá ficou esquecida sobre os joelhos,
muito rosadas, uns dedozitos finos, aguçados, terminando em unhas aparadas
em bico, muito vermelhas, brilhando aos reflexos ondulados do gaz tremeluzente…

E o Hilário tentado, muito cheio de preconceitos, de receios, e da
salada de pepinos que comera ao jantar, ia avançando com a sua mão
em busca da outra, como quem não quer a coisa, sorrateiramente…

As duas mãos já se tinham encontrado, e quem sabe se uma delas,
talvez mais áspera, teria levantado a outra, por descuido, à
altura dos lábios, se, nesse momento, a cabeça de Doricélia
não tivesse emergido das cortinas da porta do corredor da rua, e a
sua voz esganiçada não disparasse esta bombarda.

— Não te encomodes, Nham Pombinha eu sou de casa. Estejam ao
gosto

E foi puxando uma cadeira para o vão da janela.

Nham Pombinha mastigava a sua raiva batendo com a ponta da botina no chão,
freneticamente.

O Hilário apepinado deveras não sabia como sair da entaladela…

Doricélia, porém, com os modos francos e bruscos do costume,
excitada ainda pela evocação da cena que surpreendera, não
lhes deu tempo a pensarem num modo a encetar a palestra, estabelecendo uma
dispensável solução de continuidade entre a distração
inocente das mãos de Hilário e o seu imprevisto aparecimento
na varanda.

E foi logo disparando o morteiro das novidades do dia, as corridas do prado,
em que tinha havido um gancho escandaloso, a briga da senhora F. com a sua
modista, porque esta era uma besta, fazia tudo mal e cobrava sem calcular,
a prisão do N. que andava metido em barafundas políticas…
uma avalanche de coisas assim interessantes.

— Ah! É verdade! um escandolozinho. O marido da Zezinha deitou
casa à Marquesa. Sabes? Aquela figorona espanhola que traz pelo beiço
todos os homens casados, o que nós temos visto! E a Zezinha a se fazer
fina, querendo impigir-nos o marido como um abismo de santidade!

Que ela lastimava-lhe a sorte, e condenava o procedimento do doutor. Lá
isso condenava. Mas os homens são assim mesmo. É preciso manha
para domá-los.

E embora frustrava em largas considerações sob os projetos
que executaria, quando se casasse e fosse para a sua casa. Trataria o maridinho
como um alfinin, os seus ovinhos quentes, o seu vinhinho do Porto, o seu chocolate…
tudo.

— Que eles, menina, o que querem é mimo. E desculpa-me falar
assim. Mas estou em casa. Somos todos da família. Mas também,
fidelidade, a minha; lá isso de namoros e coquetismos com todo o mundo,
não: isso é que não.

E falava, falava sempre, sobretudo, de todos, atordoando o seu pequeno auditório,
impedindo-o de dar a réplica, olhando demoradamente para o Hilário,
pondo o pé muito fora do vestido.

Capítulo X

Não se admire a mudança no todo da Doricélia, que de
pachorrenta, passou assim a ser uma imitação viva da sua mamãe.
E que insistência de D. Claudina, vá afinal produzindo os seus
frutos. Água mole em pedra dura.

Quando o Hilário chegou de Porto Alegre, houve a repetição
e a amiudada, de visitinhas e recadinhos. Nham Pombinha mordia-se com isso,
mas sem energia, cedendo sempre, foi se deixando invadir pelas vizinhas, que
por fim tomaram-lhe conta da casa, já entravam sem se fazer anunciar,
mandavam os seus criados, espanavam os seus móveis, dirigiam a cozinha,
enfim, um assalto triunfante às suas prerrogativas de dona de casa.
O Hilário, que era o alvo cobiçado de toda a estratégia,
de princípios riu-se muito, depois incomodou-se seriamente. Aquilo
estava se tornando uma maçada.

Nham Pombinha que, como de casa, tinha escondido e mandado ao Caboclo, um
chinelo, de um belíssimo par de veludo bordado a ouro, do Hilário,
ficou um dia desapontadíssima quando deu pela falta do companheiro,
e guiada pela sua inspiração, disse logo que aquilo com certeza
era obra de D. Claudina. Era mesmo. Esta, que já tinha ensaiado um
bolo da rainha, com uma química à preceito, ficou um pouco de
cara à banda vendo o Cirilo Pereira comer dele com um apetite diabólico.
Nham Pombinha não lhe tocou.

Hilário achou-lhe um sabor levado da breca, e deixou no prato a fatia
apenas encetada.

De outra feita, o rapaz encontrou em um dos bolsos do casaco, um pequeno
embrulho, com cincoenta mil voltas de linha preta e branca, o que o deixou
admirado, sem saber como podia aquilo ter-lhe caído na algibeira. Curioso,
cortou a canivete o complicado atilho e, desembrulhando o papel, encontrou
dentro um pequeno saco de fazenda preta, tendo bordado a lã amarela,
de um lado, uma cruz, e do outro, uns pontos que davam a idéia de uma
caveira. Prosseguindo no exame, e aberto o saquitel, achou cabeças
de cravos de doce, um anel de cauda de lagarto, três lágrimas
de N. Senhora, passadas numa linha amarela, uma folha verde e tudo isso coberto
de uma camada de pó avermelhado, que ficou ainda no fundo do saco uma
regular porção de pitadas…

Esta porção de coisas estranhas fez cismar o Hilário,
que não gostou do que ele julgava caçoada.

Chamou Nham Pombinha, e mostrou-lhe aquela mandinga que tanto o intrigava,
pedindo-lhe explicações.

Nham Pombinha mal deu com os olhos naqueles apetrechos, empalideceu, e viu
que estava sendo roubada… e que senão tomasse já e já
as suas providências, a D. Claudina ganhava-lhe a partida.

Mastigou todas as suas respostas às instantes e variadas perguntas
de Hilário, que não sabia nada daquilo; não era mulher
para aquelas coisas, e que, se soubesse quem era a engraçada…

O Hilário, apesar de intrigado com aquilo, não insistiu mais,
e o fato foi esquecendo, quando Nham Pombinha deu pela falta do chinelo, cujo
companheiro já ela tinha enviado ao competente destino.

A Doricélia animada, ia se aventurando, e chegou até a pedir
ao Hilário que lhe trouxesse um bilhete de loteria, que ela pagava,
já se sabe; ao que o rapaz correspondeu, trazendo o bilhete, de mau
humor, a avisando-a secamente que aquele negócio ele só fazia
na agência. Com tal mau modo se houve, que quando a Doricélia,
entregou-lhe o dinheiro, elem sem contar, atirou-o longe, sobre o aparador
da sala de jantar, onde então se achavam todos.

Nham Pombinha resolvida naquele dia a liquidar a situação,
começou habilmente a excitar o Hilário, falando-lhe só
da Doricélia, na sua paixão por ela, nas provas que ele dava,
e que tanto era verdade que a pamonha, até estava pondo os manguitos
de fora, já entendia que era dona da casa. O Hilário aborrecido
e contrariado com aquela insistência, dava-se a perros para provar que
não, que não.

Ora, isto já cansava. Parecia que ambas as contendoras tinham tido
resposta à consulta do chinelo, porque, como se vê a tormenta
crescia.

Doricélia, depois de parlar muito, diante do silêncio obstinado
dos dois companheiros, interpolou diretamente o Hilário, sobre diversos
assuntos e perguntou-lhe pela lista do bilhete que ela tinha comprado.

— Não sei D. Doricélia. Quando chegar o vapor mande ver
o número lá no escritório.

— Estou com pé que o senhor nem calcula.

Nisto sente-se parar um carro, grande atropelo no corredor e tine desesperadamente
a campainha elétrica.

Hilário levantou-se prestes, abriu a porta e perguntou logo:

— O que é? O que é?

— Não sei. Deu-lhe isto de repente, respondeu uma voz que fez
corar Nham Pombinha.

Assomou entãoà porta, desfalecido, desfeito, cadavérico
o corpo do Cirilo Pereira, carregado nos braços do Elesbão e
de um outro sujeito desconhecido, e agora também do Hilário
convulso e pesaroso.

Acomodaram no sofá o Cirilo, desacordado enquanto Doricélia
com grande alarme, já dizia para se lhe dar um chá de erva cidreira
com grelos de laranjeira, e saiu para o preparar e dar a novidade a D. Claudina,
o tipo desconhecido, fez os seus cumprimentose retirou-se, desejando que não
fosse nada.

— Às suas ordens. Às suas ordens. E chamando o Hilário
um pouco à parte disse-lhe que o boleeiro estava esperando. E com sua
licença… se podia aproveitar o carro…

—Pois não,pois não. Muito obrigado.

Pagou o frete e tornou a entrar.

Nham Pombinha pálida, sentada junto da janela, e olhando de soslaio
para o seu marido desfalecido.

O Elesbão Soares, numa cadeira de braço, bem junto do doente,
olhando muito para ele e fumando, um tanto desconfiado sem se atrever a encarar
e nem com o Hilário, com quem já se dava, nem com Nham Pombinha,
por quem o seu amor era mais forte.

Cirilo, agora, ainda desacordado, tinha pequenas estremeções,
e umas pequenas manchas lividas lhe pareciam na face chupada.

Tinha respiração opressa, custosa.

Hilário mirou-o atentamente e perguntou:

— Mas, seu Elesbão, como foi isto?

— Nem eu sei. Só lhe digo que ia passando pelo seu escritório,
e parei na porta um momentinho para falar com um conhecido meu: seu pai estava
dentro, sentado, de repente, começou, ai! ai! ai!, a gemer, apertando
o estômago, assim como com engulhos e a suar frio… O caixeiro assustou-se
e disparou pela porta a fora, e já começou a gritar que o seu
Cirilo estava com o cólera… porque parecia mesmo. Veja como está
a roupa.

Enfim, eu como sou homem para as ocasiões, fiz das tripas o coração,
chamei um carro, pedi ao homem meu conhecido e ao boleeiro, para me ajudarem,
metemos o corpo, o corpo não, Deus me livre, o homem, sim, o senhor
seu pai Cirilo, no carro, e de caminho para cá, já passamos
pelo Dr. Eloi, que ficou de vir já. Nem há de demorar.

— Mas o senhor que acha que seja isso?

— Eu, a lhe falar a verdade, não sei bem mas pelo modo porque
ele apertava o estômago, isto deve ser coisa de flato do coração,
ou espinha caída…

— Nham Pombinha, meu pai nunca teve algum outro acesso como este?

— Não me lembro. Já há muito tempo que ele se
queixava…

— Mas, senhor, é estranho… Seu Elesbão, já agora
tenha paciência, ajude-nos. Vamos levar o doente para cama…

— Pois não, com todo o gosto.

E, enquanto o Hilário saiu um momento para desembaraçar o caminho,
o Elesbão afrontou-se, não teve medo, praticou um rasgo sublime
de audácia, virou-se para Nham Pombinha e um pouco risonho mas alvar
e insinuativo, disse a queima roupa:

— Hein minha senhora? E os gorgulhos, aquela célebre noite?
Quando me lembro!…

Foi o seu cumprimento a Nham Pombinha, sempre voltada, e que respondeu baixinho:

— É mesmo…

E não olhava, não olhava para o Cirilo; faziam-lhe medo aquela
cor macilenta, aquele arquejar, aquele sofrer…

Com alguma dificuldade, os dois homens transportaram o doente para a cama,
e acomodaram-no melhor que puseram, e sem saberem o que fazer, como usar de
qualquer recurso de momento, ficaram-se na expectativa até chegar o
médico que o Elesbão chamara.

Este não se fez demorar muito, e chegou muito azafamado e cumprimentador,
arregaçando as mangas e tomando informações, se bem que
incompletas, lá se foi encaminhando para o enfermo. Examinou-o, atentamente,
língua, pulso, as pupilas, a respiração.

Ouvia-se apenas o ranger abafado de suas botinas Louzada, de bico quadrado.
Os outros mudos e imóveis, acompanhavam o exame sem aventurar reflexões.

Nham Pombinha, cujos pensamentos turbilhavam, se acusava, intimamente, daquela
desgraça. A verdade é que ela nunca tinha medido bem o alcance
das suas funestas beberagens. Dava-as ao destinatário, com um fim muito
diversos daquele que ali se apresentava, ou com aquele mesmo fito mas realizado
por outra forma. Nem ela mesmo, sabia, no caos de raciocínios desencontrados
que aquele quadro provocava. Concordar, concordava, seria mesmo uma droga
ruim, aquela, mas ela não a tinha aplicado sabendo que o resultado
seria tão cruel.

O Elesbão, que tinha as suas razões, como conhecedor, para
calcular o que aquilo era, guardava-se bem de externar qualquer palavra. O
Hilário era o único, que sombrio, não atinava com coisa
alguma mas estranhava aquele aspecto horrível que apresentava seu pai.

O Dr. Eloi, tendo feito o seu exame, em consciência, não atinando
com a causa mórbida, se bem que estranhasse a manifestação
dos fenômenos, abanava a cabeça, nada satisfeito. E saindo do
quarto, chamou o Hilário e o Elesbão, tomando-o também
por gente de casa, e na sala, com uma fisionomia circunspecta, mostrou-lhes
a gravidade da situação, a ausência de dados seguros para
a escolha de medicação, insistiu no sério do caso, que
voltaria mais tarde, e concluiu dizendo, convicto, que ele, médico,
por si já não tinha esperanças, considerava o doente
perdido, mas que, contudo, devia-se lutar até o fim.

Aconselhou, dirigindo-se ao Elesbão, uma coisa qualquer, que ele tomou
muito pelo ar, e repetindo seus cumprimentos retirou-se.

Mal saiu, o Elesbão, cheio da missão de confiança. trocando
os nomes, esquecido da recomendação, sem saber, enfim o que
era, foi num pulo à farmácia e de lá voltou com um pequeno
rolo, que misteriosamente, no exercício das suas altas funções
de enfermeiro, levou para o aposento, e lá, fechado com o Hilário,
aplicou-a ao doente, no mesmo estado de apatia.

Deitaram-o, molemente, outra vez, notando uns rápidos estremeções
violentos, seguidos de imobilidade, cessassão de gemidos e ânsias.

O Elesbão ficou radiante; era com certeza o efeito do remédio.
O Hilário aliviado por ver o sossego do pai, mirou-o um momento e depois
sairam ambos do quarto, na ponta dos pés, cautelosamente, cerrando
a porta para evitar a luz em demasia.

Foram para a sala de jantar.

Nham Pombinha, abatida, estava atirada na preguiçosa. Caía-lhe
na sua plácida vida, aquele sucesso, com tal rapidez, com tal brutalidade,
com tal evidência, que ela se sentia sufocada. Queria reprimir as suas
íntimas sensações, queria mostrar-se solícita
com o doente mas, de um lado o semi-remorso, do outro as conveniências…

Olhava para o Hilário com um misto de prazer satisfeito e de receio.

O Elesbão já mais senhor de si, encheu um copo d’água,
sem pedir licença, e foi bebendo.

Estava o grupo sentado, entregue aos seus íntimos diversos pensamentos,
quando reapareceram a D. Claudina e Doricélia, trazendo um enorme bule
de folha abafado por uma coberta de lã. Era o chá paliativo
de Doricélia. Começou a tagarelice:

— Então melhorou? O médico veio? O que acha? Mandou tomar
alguma coisa?

Hilário respondeu soturnamente, e apesar da gana desesperada de dar
a língua, as vizinhas tiveram de sopitá-la até que foram
se chegando para o Elesbão e não o largaram mais.

Já noite fechada, tornou a vir o médico.

Apesar do bico do gás aceso, havia em torno da larga cama, ensombrada
por garrido cortinado uma penúmbra que mal deixava distinguir os objetos.
Deitado de lado, na mesma posição que ficara, estava ainda o
corpo do Cirilo, imóvel. O médico tateou-lhe a testa e abaixou-se
vivamente. Examinou-o um pouco mais. Estava inteirado.

— Não se lhe deu nada? perguntou sem se dirigir particularmente
a ninguém.

— Não, doutor, não tomou nada. Apenas botei-lhe na boca
do estômago o emplastro… disse o Elesbão.

— O que? Que emplastro? e levantando rapidamente as cobertas, abrindo
o peito do camisolão de Cirilo, viu mesmo sobre o peito, uma larga
faixa, do tamanho de uma folha de papel almaço, grudada e cheia de
rugas, meteu a unha sobre um dos cantos, levantou e conhecendo o que era,
voltou-se vivamente curioso.

— Esparadrapo? Para que?…

— Aguentei e botei. Foi santo remédio douotor. Foi como se tirasse
a dor com a mão, replicou ainda o Elesbão. Lá o nome
da história não me lembrei bem, mas parece que era isso, porque
o boticário me deu logo mal eu pedi.

— Está bem. Podemos ir.

E tornando a cobrir Cirilo, saiu do quarto sendo acompanhado pelo Hilário
e Elesbão, D. Claudina e Doricélia ficaram de pescoço
estendido olhando e de ouvido a escuta.

Na sala, o doutor pegou o Elesbão por um botão. E disse-lhe:

— Pois meu caro senhor é ter coragem…

— Este moço é que é o filho… atalhou logo escamado
o Elesbão.

— Pois então, disse o médico virando-se para o Hilário,
pois então, meu caro senhor, é ter coragem. Seu pai está
morto.

— Como?

— Morto, sim. Aquilo, não sei como foi… mas parece-me uma
paralisia rapidíssima do estômago e complicações
do coração.

Mas para que aplicaram aquele esparadrapo?

— Foi o seu Soares…

— Foi o doutor mesmo que me disse.

— Eu! Afinal, aquilo nada vem ao caso. Mas o senhor sabe o que é?

— Pois não é um cáustico?

— São pontos falsos, seu Soares!

— Pois eu botei pontos falsos no defunto?

E ficou estarrecido, assombrado.

O Dr. Eloi saiu, sem que ele o percebesse, dizendo a Hilário que de
manhã poderia mandar pelo atestado.

Capítulo XI

Estava tudo concluído. O nosso bom Cirilo fora acomodado da melhor
maneira possível em sua última morada por sinal puxadinha, porque
os funerais custavam a viúva os olhos da cara — a Nham Pombinha
empunhava sozinha o bastão do mando supremo da casa.

A pobre senhora começava apenas a voltar a si do que lhe parecia ainda
um pesadelo, e experimentava ao sair da câmara onde se abrigara, a mesma
sensação de quem está fechado numa casa inteiramente
vazia de gente, e desguarnecidade de trastes.

Era como um cego habituado, desde muito tempo, a andar pelas ruas acompanhado
por um bom menino caridoso, e que, de repente, se achasse só no meio
da rua, atirado a sorte, ludibrio da garotada sem alma.

Quem a ajudaria, agora? Naquelas vinte e quatro horas, o seu caráter
e os seus sentimentos tinham passado por uma transformação radical.

Aquele começo de flert com o Hilário, seu enteado, entrava-lhe
a parecer uma monstruosidade, uma coisa nojenta, e até admirava-se
como, como algum tempo, pudera alimentar esperança de levá-lo
por diante.

As preocupações de Hilário eram de outra ordem. Passara
as últimas horas muito triste e abatido, com aquele golpe inesperado
da fatalidade, que arrebatava o pai quando menos ele o podia pensar. De resto,
um como que remorso começava a invadir-lhe a alma, pelo seu namoro,
verdade é que, até ali inocente, com a madrasta.

Aquilo, pensava ele, era para envilecer.

Depois tinham chegado os armadores, os homens da igreja, toda aquela legião
de corvos esfaimados que se atiram de um jacto sobre os que morrem, e os vão
devorando sofregamente, olhando para os lados receiosos de competência,
até os deixarem em ossos.

Tudo um dinheirão!

Era tanto de aprestos funerários, uns trapos pretos esverdeados com
galões falsos a esfiaparem; tanto de encomendação e cera
e eça, outra pipeneira que tem dado para muita vadiação
e para muito regabofe; tanto de carro e catacumba, a Misericórdia que
tem o privilégio exclusivo de esfolar quanto pode a humanidade…

Um inferno!

Todos esses pensamentos e cuidados, que afluiram ao cérebro do Hilário
aos borbotões, tinham-no distraído um pouco da sua mágoa.

Agora, do que ele tinha necessidade era de movimento. Queria dar umas passadas
largas ao ar livre, pelas ruas, para sacudir aquela crosta de pesares e vergonheiras,
que lhe andavam pegadas ao lombo como sarna.

Ainda não vira Nham Pombinha e evitava-a. Tinha medo de encontrá-la.

Depois de umas meias palavras que ouvira aos criados, a ligação
de certos fatos, as entradas e saídas de Nham Pombinha, naqueles últimos
dias, a conversação em que a surpreendera com um indivíduo
desconhecido (que ele não sabia ser o Caboclo), tudo isso formava em
torno do Hilário uma atmosfera pesada de desconfiança e de dúvidas
que o abafavam.

Afinal, vieram chamá-lopara o almoço. Não havia remédio.
Foi Nham Pombinha não se demorou também em se lhe ir juntar
à mesa.

Mas não se olhavam.

Sentados à distância, tocavam apenas nos pratos, muito recolhidos,
graves, como se estivessem ainda mergulhados num oceano de dores cruciantes.

Triste, aquele quadro, se a convenção desta tristeza não
concorresse para lhe tirar todo o mérito, pela sua falta de sinceridade.

Quando já chegavam ao fim, e Nham Pombinha percebeu que o Hilário
ia levantar-se, acenou-lhe que esperasse.

Depois, tirou do bolso do vestido um papel dobrado em quatro e disse-lhe
com rispidez:

— Fique com isto. É a apólice de Amparo Mútuo.

O Hilário, admirado, como se acordasse, olhou, estranhando a frieza
da frase.

— É desnecessário, Nham Pombinha, porque a senhora mesma
é que tem de passar o recibo ao gerente.

E levantou-se para sair.

Mas, nesse momento, a porta do corredor, que dava para a rua, abriu-se em
grande estardalhaço e entraram de tropelão empurrando-se, querendo
um impedir que o outro falasse primeiro, a nossa Doric´wlia e o caixeiro
de agência do Hilário agitando um telegrama, gesticulando como
um danado, roxo, congestionado:

— Cincoenta mil pesos!

— Sim. Cin-co-enta…

— No bi…lhe…te que eu…

— Sim, no bilhe…te, que ela…

— Aqui! Aqui…

O Hilário e Nham Pombinha estacaram, pálidos, ofegantes também,
adivinhando…

Depois de gaguejarem muito, o caixeiro e a Doricélia sem atinarem
com o que diziam, metendo os pés pelas mãos, pisando e repisando
as palavras, chegaram sempre a contar o que ocorrera, e que, aliás,era
muito simples.

O Zambrano mandara mostrar à agência do Hilário o telegrama
da loteria última de Montevidéu, e dar-lhe parabéns por
haver vendido a taluda.

Como o Hilário, havia três dias, não ia ao escritório,
o caixeiro lá se batera para a casa da família, louco, desesperado,
e de caminho pela Doricélia, vendo-a à janela, atira-lhe com
o número feliz, o 17.300.

— Aí! Aí! É mesmo?

— É! Olhe…

E lá estava no telegrama o 17.300.

A Doricélia teve um delíquio… com vontade de tê-lo.
Mas dominou e correu com o caixeiro para a casa do Hilário.

— Pois foi assim.

O Hilário estava deslumbrado, e pensava — cincoenta mil pesos!
Já é uma continha. Ao câmbio quase duzentos e cincoenta
contos! Duzentos e cincoenta contos! Ora, quem diria?…

Em voz alta, muito cheio de zumbaias:

— Meus parabéns, D. Doricélia, meus parabéns.
Seja muito feliz.

A Doricélia requebrava-se toda, ameaçando derreter-se ali mesmo,
ao calor da cobreira que havia apanhado e do amor que tinha pelo Hilário.

— Mas quem sabe? Não vá ter havido engano no número…
Isso é que era uma… Meu Deus! Uma coisa assim até deixa a
gente meio tonta.

Mas o caixeiro obtemperou logo muito sacudido e muito cheio de ciscusntâncias
que não havia dúvida.

A agência do Zambrano era uma casa muito séria, e o telegrama
do correspondente já tinha sido reperguntado na estação…

E Doricélia transbordando de felicidade, foi abraçar Nham Pombinha,
com uns gestos largos de generosidade mal disfarçada.

Agora, sim. Quem fosse do peito não havia de ter necessidades…

Veio depois, a mamãe velhota D. Claudina toda cheia de nove horas,
aos pulinhos, esfregando as mãos, e já arrotando grandezas e
paparrotices.

E era um turbilhão de palavras, de cálculos de considerações
que afogavam Pombinha e a faziam crescer na sua raiva pela Doricélia
e nos seus projetos de rompimento com o Hilário…

— Quanto mais tolo mais peixe — pensou a Pombinha.

— O cobrezinho bem aplicado, menina, bem aplicado, hein?

Logo de vereda, depois de recebermos o dinheiro, vamos ali ao tabelião
da rua da Igreja, ver se ele nos indica uma casa boa para comprar.

— O seu Lima?

— Sim. É muito meu amigo.

E a D. Claudina, dizia estas palavras muito lambidas, lembrando-se sabe lá
que passadas alegrias celestiais entre os autos.

Lembrem-se logo o desconto do bilhete, mas não podia ser grande coisa
a despesa.

Que estas coisas, aconselhava a Claudina, querem-se logo liquidadas, para
tirar a gente de cuidados.

— Olhe. Assim como assim, insinuava ela a Doricélia toda afogada
em pudor, isso está aí, está nas mãos do Hilário.

É cá um palpite. Ele que se encarregue do negócio.

E todos concordaram.

O Hilário que, mais retirado do grupo das mulheres fazia, em mente
os seus planos para o futuro, concluiu:

— É uma cobra descascada, mas não há dúvida,
mas com duzentos e cincoenta contos, todo o mundo há de admirá-la.
Está dito:

Decididamente, caso com ela

Capítulo XII

Ninguém contara, porém, com o José Pereira de Moraes,
o pai de Doricélia.

O homenzinho, apesar das suas contínuas rusgas com D. Claudina, mal
chegou à casa e foi informado do que sucedera, de como cairam das nuvens
aqueles maços de pelegas, quis logo encarregar-se da liquidação
do bilhete e da gestão do dinheiro, lá segundo seus planos,
visto que a Doricélia era menor e a ele cabia esse direito.

As duas mulheres, se bem que não discortinassem muito bem argumentos
em contrário, viram-se em papos de aranha para retrucar, visto que
não eram o respeito e a confiança, a nota predominante naquela
trilogia familiar.

A Zé Pereira cabia o direito, cabia; mas havia de ser para fazer render
a fortuna e não para esbanjá-la.

Pois o diabo do homem não estava já fazendo planos!?

Comprar casa na cidade, carro, cavalos, chácara fora, para os verões,
uma viagem a "Europa" para irem todos ver os seus pais pais dele,
lá pela ffreguesia de Gouvea, Conselho de Baião, próximo
a real cidade do Peso da Regra.

Na volta, traria um carregamento de vinhos, depois compraria uma charqueada,
e depois uma estância, e depois…

— Um diabo que te carregue, rugiu D.Claudina, que, conhecedora das
aptidões do Moraes, já, com o seu bom tino previa que, a ser
assim, aquilo tudo dava em águas barrela.

E demais ela já estava farta da cozinha e da vassoura. Por três
meses em que tinha criado passava seis a fazer tudo pelas suas bentas mãos.
Eram camisas engomadas, para o milord José Pereira de MOraes se exibir
por aí além; tinha de bater os bifes e, às vezes, o pé
quando o homenzinho se dava muito à rabugem.

A Doricélia, que, honra lhe seja, não ligava a esta história
do dinheiro, o épico ardor dos dois velhotes, deixava-os discutir,
limitando-se a dizer que queria vestidos como Fulana, chapéus como
Sicrana e jóias como Beltrana.

— Pois é, concluiu José Pereira, pois é; foram
dar ao tal Hilário o bilhete, e agora ele lambe uma comissão
furiosa.

— Para pequena será… disse D. Claudina.

— Como, para pequena? redarguiu o Moraes.

— Eu cá me entendo.

— O que é? A senhora está me fazendo fosquinhas… Casamento?
Olhe: o Hilário nem pintado. Já se esqueceu da história
do Quatro-olhos? Agora que tenho fortuna é que não consinto
mesmo amizades com aquele bisbórria.

— Fortuna? Não é sua. E hão de se casar porque
eu quero, ele quer e ela há de querer, e Nham Pombinha também
quer. Há de ser… há de ser… há e… e há de…

E batia o pé, acompanhada pela Doricélia, esta resmungando,
por temor do pai.

Passados dias, quando Hilário depois de liquidar vantajosamente o
feliz bilhete, o tal 17.300, veio entregar a casa do Moraes, o saldo, foi
uma alegira enorme, quase uma alucinação.

O José Pereira, com grandes olhos esgazeados, ventas dilatadas, mão
adunca, armada em garras, atirou-se quase ao rapaz, esquecido da cena do Quatro-olhos,
perdoando por esquecido, ou antes, esquecendo por ganancioso…

— Afinal! Afinal! rouquejou ele, sem se lembrar até do que havia
de pouco delicado neste grito de expansão.

— Sim, afinal, cá está e pelo melhor, fique sabendo.
Arranjei um câmbio favorável.

— E a comissão, é muito alta? Ora lembre-se que deve
ser cordato. Faça alguma diferença.

— Perdão. Eu não tirei comissão alguma. Basta-me
a confiança das pessoas que me estimam.

E dardejou sobre a Doricélia um olhar leonino, colossal de eloqüencia
e paixão.

— Mamãe, segredou esta a D. Claudina, vá já buscar
o dente de jacaré…

É verdade, entretem conversa com o melro que eu já volto. E
saiu apressadinha para o inteior da casa.

Hilário, com naturalidade, puxou dos amplos bolsos do jaquetão
de flanela azul dois enormes pacotes de notas de banco apertadas em laços
de barbante, e tocando no ombro do Moraes, disse-lhe:

— Faça o favor de conferir. Como um gato esfaimado, achando
a jeito um gordo e inexperto camundongo, lança-lhe as unhas, sôfrego,
o José Pereira atirou-se aos maços de dinheiro e começou
a sua verificação.

Foi longa e penosa. O homem atrapalhava-se, misturava as cédulas,
errava a conta.

D. Claudina, tendo voltado, pusera-se às costas do Hilário
enquanto ele, um tanto curvado, tagarelava com Doricélia e com o dente
de jacaré, metido entre os dois dedos, como uma figa, fazia cruzes
sobre as espáduas dele, murmurando ao mesmo tempo palavras misteriosas.
Os seus olhinhos fúlvos, brilhantes, lançavam chispas de entusiamo.
Depois tornou a retirar-se sorrateiramente, voltando momentos depois, falando,
fazendo movimentos, como para mostrar que só então voltara à
sala. Sentou-se junto à filha e meteu-se também na conversa,
lançando a furta vistas investigadoras para o José Pereira,
ocupado lá na sua tarefa.

O Elesbão Soares, que tinha sido incansável durante os apuros
do primeiro compasso da viuvez de Nham Pombinha, considerava-se e procedia
como íntimo da casa.

Visitas freqüentes e mais do que devera ser razoável e a horas
em que geralmente o Hilário estava na agência. Fazia-se espirituoso,
tomava mais confiança no frasear, e de quando em quando lá trazia
à baila a cena dos gorgulhos.

Nham Pombinha, quando ele falava, lembrava-se dos motivos primeiros das suas
visitas ao Caboclo, e amuava-se.

Lembrava-se dos esforços feitos, das tentativas audaciosas da sua
imaginação e depois de analisar as particularidades do assédio,
enraivecia-se porque achava que tinha sido ludibriada com o Cirilo, e queria
ter a desforra com o Hilário.

Quanto ao mais, não lhe viesse, com argumentos.

Quando, porém, viúva, agora não que refletisse propriamente,
mas achando-se senhora do seu nariz, entendeu castigar o Hilário que
tivera o arrojo de fazer-se de tolo e desdenhá-la…

Foi justamente quando o Elesbão tocado por sublime inspiração
achou que devia tornar-se assíduo. Mais que nunca, tinham sido freqüentes
as suas conferências com o Caboclo, que tinha sabido da morte do Cirilo
e que, honra lhe seja, andava arisco… Nessas sessões, o Elesbão
aliviava as algibeiras, e os pesares. O pretalhão conduzia o papalvo
ao santuário dos encantamentos e repetia as suas invocações,
adicionando-lhe sempre novas esquisitices.

Nham Pombinha, com seu aguilhão de despeito forte e disfarçado,
ajudava as tentativas do Elesbão de modo que este, encontrando menor
resistência do que supusera, dava as honras de guerra ao mandingueiro.

Incompreensível catavento:

Nham Pombinha, que, se não escutava deleitada as tolices do Elesbão
Soares, ao menos tolerava-se muito às ocultas, redobrava os seus escondidos
trabalhos de enfeitamento para com o Hilário, a quem, tratando com
uma dureza e rispidez enorme, queria reduzir a cair-lhe aos pés, para
ela então poder, simples vingança, mandá-lo à
fava…

Correra o tempo.

A burguês vida desta gente, tinha declinado sem totáveis solavancos,
guardando-se todas as suas posições, e todos eles, ao seu modo,
pondo os manguitos de fora, o José Pereira de Morais, depois de dilacerantes
cenas em que tinha as suas tenções de apresentar-se ministro
da fazenda a Rui Barbosa, com largos planos financeiros, fora forçado
a atender a prudente D. Claudina e acomodara a sorte grande da Doricélia
de forma bem razoável, porém segura.

D. Claudina exibia afoitas toiletes espaventosas nas cores, e dos atavios
em contraste com a Doricélia, que tinha tomado a resolução
de só andar de branco…

O Hilário era até cacete nas suas relações com
essa família e nada decidia, com perigo para ele, porque a D. Claudina
já resmungava que, com mais de duzentos contos, os Hilários
andam aos ponta-pés, e que se aquele queria vender o peixe caro, estava
se ninando…

A Doricélia, que parece tinha de verdade a sua queda pelas espáduas,
do Hilário, ficou arrepiada.

Se a mãe fizesse alguma inconveniência, se maltratasse o Hilário,
agora que tem o calor do dinheiro ela se julgava uma potência?

Não se sabe como foi, mas passados dias, ao jantar, o Hilário
em vez de levantar-se logo, como costumava, esperou longamente sentado. E
Nham Pombinha também.

Ela pressentiu logo.

— Nham Pombinha, rompeu por fim o rapaz, eu desejava consultá-la
sobre o casamento meu com a Doricélia. O que acha?

— Eu…?

— Ela tem me dado provas de amor. Eu simpatizo com ela. E demais, tenho
mesmo vontade de me casar. Que diz?

— Faça o que quizer. Eu cá não tenho opiniões.

E levantou-se pálida e quase a chorar, mas senhoril, altaneira, recolhendo-se
ao seu quarto, enquanto o Hilário, depois de acompanhá-la com
os olhos, sem atinar com aquilo, também se levantou disposto já,
até com raiva, a mostrar de que pau era a canoa, e que não era
nenhum fedelho para ser governado pelas birras da madrasta.

E saiu para a casa de Doricélioa, a fazer o pedido oficial aos papás
da pequena.

Nham Pombinha, sufocada de raiva, de amor subjugado, de despeito, de ódio,
de vingança, desatou a chorar.

Anoiteceu.

Nham Pombinha, depois daquele grande acesso, ficou calma e com as faculdades
adormecidas. Não raciocinava. Estava ali, abafando suspiros.

O seu Elesbão está aí, minha senhora, disse à
porta a criada.

Capítulo XIII

Não se soube nunca que assunto de alta relevância ocupou, por
espaço de mais de duas horas, a atenção de Nham Pombinha
e do Elesbão.

Que resultado teriam dado as indispensáveis exumações
das cenas em casa do Caboclo, aquela prisão tão fora de propósito
dentro do caixão de milho, e por último a invasão avassaladora
dos gorgulhos importunos e nojentos?

Que lhe diria Nham Pombinha da mandinga ministrada ao Cirilo, e que resultado
tão fatal e imprevisto lhe trouxera?

Falar-lhe-ia, por seu turno, o Elesbão, nas suas contínuas
consultas ao Caboclo, a quem ainda na véspera comprara por um bom preço
uma droga destinada a aproximar o seu ardor juvenil de que, indiscutivelmente,
deveria ter a Nham Pombinha, e outra destinada a ativar nela os efeitos do
contágio, — na hipótese de um consórcio?

Nunca se averiguou com exatidão nada disso.

O que é verdade é que já tinham dado as nove horas da
noite, Nham Pombinha terminava o chiló recostada indolentemente na
chaise longue, em que, por vezes, vimos o Cirilo, e o Elesbão não
dava sinais de quem tinha pressa de retirar-se.

Com grande escândalo, mesmo, da mucama, uma mulatona de 18 anos a quem
por várias vezes o Hilário lançara olho cobiçoso
e aceso.

— Nham Pombinha mandou servir o chá mais cedo que o costume,
e o Elesbão lá ficara à mesa, beatificamente, sentado
à cabeceira, dando-se já uns ares de quem estava em sua casa.

Já haveria namoro, quatro meses depois da morte do primeiro?

— Irra! que mulherzinha!

E a criadinha não se conteve que não fosse à cozinha
dar a taramela e comentar aquele procedimento da ama em dar tão de
pronto substituto ao Cirilo… tão bom que era… coitado.

Mas o tempo voa. Os acontecimentos precipitam-se sem respeitar nem as conveniências,
nem os preconceitos, nem os cálculos.

Adormece-se hoje para despertar amanhã, e nesse meio tempo, ficamos
ricos ou miseráveis, transformando-nos em Júlio Cesar ou Isganarelo…
às vezes mesmo em Pedro Sem.

Estamos, pois, na casa do senhor José Pereira de Moraes, precisamente
na noite em que se casa o grandalhão do Hilário com a franzina
Doricélia.

Todos os compartimentos do prédio novo, que a menina comprara com
o auxílio da mamã Claudina e os conselhos do tabelião
Lima, muito entendido nessas cousas, — resplandeciam de convidados,
luzes, flores, música e mil adornos custosos.

Havia uma hora que se esperava o aparecimento da noiva, de cuja toilete se
contavam maravilhas.

Nas janelas, do lado exterior, apinhavam-se os curiosos, acotovelando-se
trepando uns aos ombros dos outros. As mulheres tinham até mandado
vir escadas e cadeiras para apreciarem melhor a cena.

Dentro, na sala principal, havia uma expectativa solene, como se tratasse
de abertura das câmaras legislativas.

A porta que dava para a alcova nupcial estava ainda fechada. Fora uma esquisitisse
de D. Claudina, que gostava muito de lances teatrais.

O juiz de casamento, respirando gravidade, muito teso, abotoado na casaca
preta atravessada pela faixa verde e amarela, esperava, puxando o pigarro
e conversando em reserva com o velho José Pereira, com uns acenozinhos
de cabeça protetores. O escrivão sobraçando o livro passava
em revista a boa roda, apreciando à socapa os namoriscos, e calculoando
a que soma teriam atingido os defits de certos papás para exibirem
ali as filhas cobertas de diamantes e a esmagar sedas…

Um sussurro discreto enchia a sala toda a trescalar perfumes fortes, que
subiam à cabeça, naquela atmosfera cálida, já
saturada dos eflúvios das flores e do suor humano.

O Juiz, consultado, achou prudente abrir um bocadinho das janelas.

E o José Pereira,muito obsequiso, limpando a testa, lá foi,
cheio de cerimônias — com licença — com licença,
abrir um bocadinho de cada folha, enquanto pudesse entrar um novo oxigênio.

Nesse momento, porém, abriam-se de par em par as portas do quarto
nupcial e o cortejo feminino entrava na sala, motivo pela qual toda a onda
que aguardava fora o melhor meio de bispar a cena, atirou-se como se a um
arroio tivessem de repente tirado a represa. Uns treparam descaradamente para
os peitoris, outros, como se estivessem pago entrada, arregaçavam as
cortinas pendentes, chegando-lhes a ponta da bengala e guarda-chuva…

E tudo isso, numa algazarra indecente, por entre ditinhos com pretensão
a espirituosos, analisando tudo, com uma ponta de malícia, de que até
as senhoras gostavam muito, abafando no lenço o risinho maldoso…

Quando a Doricélia, toda de branco, rendas, contas e flores de laranja,
apareceu na sala, seguida de mamã Claudina, radiante, num vestido verde
e rendas pretas, muito solene, da madrinha, a respeitável D. Miquelina
Cidade, de grenat e toda cheia de brilhantes, e de algumas conhecidas também
de branco, foi um deslumbramento…

Pela porta do corredor entrava o Hilário, muito mais alto e espadoado
ainda, por causa do traje de etiqueta que lhe cinzelava os contornos, pondo-os
em relevo seguido de Nham Pombinha, majestosa, muito pálida, num vestido
de gorgurão preto, sem o mínimo enfeite, e com uma estrela de
pérola no alto do penteado, desdenhosa, olhando para toda aquela gente
como para um mundo que não era o seu e não a entendera nunca.

— A madrinha mete a noiva num chinelo, casquinou a vozinha de uma rapariga
assentada à janela.

— Mais carnes tem ela, observou um atrevido ao lado.

— Cale a boca, seu indecente.

E já ia saindo um desaguisado.

Depois, vinha o Elesbão, que devia casar dali a três meses,
muito mesureiro, com ar de entendido, procurando sempre por o nariz a altura
do degote de Nham Pombina…

Eram os padrinhos do Hilário, triunfante de força e de seiva,
como Nham Pombinha, no meio daquela gente toda engelhada…

O José Pereira veio recebê-los e convergindo este para outro
grupo, como ele fundiu-se, caminhando todos para a mesa onde o Juiz de Casamentos,
esperava, mais teso, mais grave que ao começo.

Houve um silêncio geral. Depois começou a cerimônia civil,
que concluiu sem incidentes para dar lugar à religiosa, no altar armado
a um canto… tudo púrpura e dourados…

Vieram os abraços, as boquinhas, as lágrimas dissoradas ao
canto do olho, as felicitações:

— Seja feliz…

— Muitos anos e bons.

Nham Pombinha abraçou Doricélia, voltando o rosto, enquanto
chegou a vez do Hilário, apenas lhe pôs a mão no ombro.

D. Claudina abundava em muitas considerações sobre o casamento,
atormentando o Elesbão com conselhos de velha entendedora.

— Aquilo é mulherzinha para encher uma casa, conclui ela, ,
apontando para Nham Pombinha.

A conversação tornou-se então mais generalizada, e pouco
a pouco se foi acalorando, quando sairam o vigário e o juiz, com muitas
desculpas, por não poderem aceitar nada. Estavam indispostos. Ia ficar
tarde.

De repente, todos cairam numa moleza enervadora. Não tinham assunto.
Que diabo! Se já estava terminada a cerimônia, por que não
se despachava a gente?

Mas D. Claudina acudiu logo com a costumada exuberância palavrosa a
reanimar a assembléia convidando-a passar à sala de jantar…

E foi então uma algazarra. Perdeu-se a cerimônia — Ria-se
alto, de tropel, os que estavam mais perto da porta correram para o interior,
os homens deram o braço às senhoras graciosas, abanando-se com
os clacks, deitando flanância.

Esvaziou-se a sala, cujas janelas os criados, vieram, então cerrar
por cautela.

Os espectadores é que não se conformaram com semelhante decisão,
que tanto os contrariava no prosseguimento do seu exame.

E, então, zangaram-se, e vingaram-se cerzindo a pele dos noivos, dos
papás e dos convidados.

Foi uma razzia.

— Muita farofa. Afinal, a noiva é um canhas.

— Mas tem dinheiro.

— Também é a única coisa que ela tem.

Felizmente não estava ali o Hilário.

A bancada feminina passava em revista a noiva, a sua toilete e o mau gosto
de expor no quarto umas tantas coisas.

Aí acudiu uma velha solteirona, que a fealdade deixara na seção
do refugo, mas a quem rancores não saciados insuflavam a cólera
contra todos os noivos.

— Aquilo é uma imoralidade. Até os camisolões!
o melhor é logo chamar um fotógrafo!

— E como se fez esse casamento? Parece coisa de bruxedo. Uma gente
que nem podia se ver! Aí há coisa.

— E não viste como a espevitada da viúva do seu Cirilo
estava tão enfunada? Parece que tem o rei na barriga!

— Sim. Na barriga do marido é que pôs algum rei…

— Que é que me contas, menina?

— Ao menos dizem. Foi por causa do enteado!

— Que horror! Olhe que sempre vivemos numa terra…!

E era talho de alto a baixo, sem misericórdia, como quem corta no
que é seu.

Afinal, os grupos dissolveram-se.

Passamos por alto sobre o banquete… um jantar régio em que em casa
de Luculo, para qual o Hilário limitara-se a olhar, por cautela, ao
passo que a sua sogra cevava um apetite extraordinário.

Depois de muitos brindes, de novos cumprimentos e felicitações,
veio o chá e após, começou a dispersão, aceleradamente,
como quem tem pressa de sair dum lugar onde nada mais lhe resta a fazer.

Ficaram sós, a madrinha de Doricélia, os noivos e os papás.

Descei agora, oh fadas benfazejas protetoras do Amor, sobre o perfumado ninho
do novo casal, e fazei-o feliz, enquanto o Elesbão vai muito nervosamente
para a casa roendo as unhas, aguardando o seu dia, que não vem longe.

E Deus lhes de muito boa noite.

O famoso dente de jacaré não fora esquecido. Aquela poderosa
arma do arsenal do Caboclo, a qual, ao pensar de Doricélia e de D.
Claudina, tão bons resultados dela, lá fora colocado em baixo
do travesseiro pela cautelosa mamã, ao passo que, por sua vez, (e para
que a noite terminasse toda em mandigagens) o Elesbão ia imaginando
de que meio se valeria para arranjar com que a mucama de Nham Pombinha pusesse
no chá de sua ama, um pozinho branco e solúvel saído
do suprádito Caboclo.

Capítulo XIV

Que insofridos arrancos dava o maltratado orgulho de Nham Pombinha!

Que a lanceada tristeza escondia aquela capa rígida de altivez, que
manifestara na solenidade do casamento de Hilário!

Como era chato, pequenino, desprezado o Elesbão! Como ela fazia, de
si para si, ressaltar, sob o fogo ardente da sua pupila, a desempenada figura
do enteado, um latagão de rapaz, imponente, correto na sua toilete
de rigor, à vontade e desembaraço, e o seu noivo — dela
— aquela idiota, com uns pés colossais, uma bocarra profunda
e uma carregação de frases relés, que lhe causavam tristeza
— a ela — tão habituada a deitar fogo de artifício
nas suas palestras, à custa da grande enfiada a romances, que lera,
somente em expansão a um pouco da sua concentrada raiva, quando, depois
dos cumprimentos, após a benção, fingindo abraçar
Doricélia e perto do Hilário, entregou disfarçadamente
àquela um chinelo, aquele célebre pé de chinelo, que
a Doricélia, embatucada, recebeu dócil.

— Olhe: junte com o outro que talvez faça falta, segredou-lhe
Nham Pombinha.

— Mas que vem a ser isto? perguntou o Hilário, deveras intrigado.

— Sua mulher que lhe explique, retrucou Nham Pombinha, afastando-se.

Deixava-lhes o primeiro espinho.

Quando — meses mais tarde — celebrava-se o casamento do Elesbão
com Nham Pombinha, muito a capricho, como que envergonhado, Hilário
já estava inteirado…

Farto até das gorduras da Doricélia, que dia a dia mais e mais
engordava, da sua sonolência preguiçosa, da sua pretensão
a elegante, quando tendo de alcochetar o vestido, os cordões do colete
tinham de dar o máximo de sua resistência.

Fartíssimo da D. Claudina, com o seu inesgotável palavriado,
ôco, vazio, procurando fazer dele um baby delicado e mimoso, atabafando-o
em chales e panos quentes… fazendo-o engulir chazinhos caseiros, em que
ele encontrou sabores estranhos…

E, além de tudo, muitíssimo fartíssimo do absurdo José
Pereira de Moraes, que agora, e depois que o genro lhe encurtava as rédeas
aos gastos, voltara à baila com a história das cacetadas dadas
por Hilário no Quatro-olhos, um cachorro tanto da minha estima, dizia.
Se bem que Nham Pombinha nunca se tivesse furtado às visitas do novo
casal, contudo não as retribuia. Ao Hilário isso passava em
branco, nem notava; mas Doricélia e D. Claudina e até o Moraes
faziam disso um cavalo de batalha e azoinavam o rapaz.

E quando foi do casamento, que Nham Pombinha avisara, pedindo-lhes de comparecer
e que o Elesbão muito prazenteiro insistira tanto, quando foi para
se decidirem a ir ou não, é que estalou a tormenta.

D. Claudina abriu os diques à eloqüência e à hidrofobia
e descarregou em Nham Pombinha, ausente, pancada de criar bicho.

— Aquela emproada! Não precisamos dos favores dela e nem daquela
cara de bagre! Somos ricos, não precisamos das suas migalhas.Bem dizem
por aí que o pobre do Cirilo, um homem tão bom, não morreu
de moléstia cristã!…

— D. Claudina lembre-se que eu não posso ouvir o que a senhora
está aí a vociferar… atalhou o Hilário abespinhado.

— É mesmo como a mamãe disse. Já te esqueceste
do chinelo teu que ela me entregou na noite do nosso casamento? Aquela intrigante!
Só para te fazer desconfiar! Como se nós fossemos como ela para
andar com bruxarias! Estes, que a terra há de comer, viram, e estes
tem ouvido bem boas coisas da tal prendinha…

— É, é, é, e é… esfuziou a vozinha esganiçada
de D. Claudina. Pensa que não se sabe umas certas visitas que a tal
recatada fazia a um mandingueiro da várzea chamado Caboclo?… Pensa?
Pois bem que se sabe. Eu é que não sou dessas; até me
metem medo essas coisas; nunca teria coragem de fazer feitiçaria a
ninguém… Sou uma mulher séria, fique sabendo!

— Está bem, está bem. Não quero saber disso: quem
vai ao casamento sou eu.

— Não há de ir. O que parece o marido andar saracoteando
na pândega e a mulher…

— Que pândega, minha sogra! Pândega um ato tão sério…

— Que sério, que nada.

— Pois se ninguém quiser vir, vou eu. Pouco me importo, e é
a minha obrigação.

Houve destampatório cabeludo da parte de D. Claudina. Parecia que
vinha a casa abaixo com os guinchos e riso da mulherzinha.

Doricélia abriu as torneiras lacrimais e foi um deus nos acuda de
suspiros capazes de abalar alicerses, e soluços como bacias num tacho
de calda a ferver.

Mas o Hilário foi inabalável.

Havia de ir e ia.

— Que rosca! mastigava ele furioso.

Noite.

A casa de Nham Pombinha, iluminada, porém discretamente cerrada as
janelas, nãomostravam nada de excepcional a quem passava, a não
ser o notar alguns carros de praça postados juntos às calçadas,
e os boleeiros, em pequenos grupos, conversando, e dando por vezes umas gargalhadas
— sui generis — únicas, impregnadas de grossa brutalidade
com que são provocadas.

Seriam dez horas.

Tinham-se voltado há pouco da igreja, onde por casualidade muito pouca
gente havia, de modo que o casamento era quase ignorado até dos próprios
antigos amigos de Cirilo, que não deixariam de estranhar aquela nova
ligação da sua viúva com um quindam que não se
sabia bem quem era.

Os poucos convidados estavam na sala fumando e conversando e rindo, não
se atrevendo a falar mal de nada, porque o Hilário andava seguido de
grupo em grupo.

O Elesbão dando largas ao seu contentamento falava como nunca e encarecia,
cativado, os méritos de Nham Pombinha contra, até, certas pontinhas
de malícia com que seus amigos se atreviam a bordar os cumprimentos.

Pouco se demoraram à mesa, porque Nham Pombinha mesmo dona da casa,
viúva de Cirilo, mulher do Elesbão e ex-madrasta do Hilário,
segundo os preceitos dos seus romances, não era também de comezinhas
e glutonérias.

Tudo, realmente, muito fino, muito delicado e servido com parcimonha, não
tanto por mesquinharia, como por elegância, com grave desgosto dos amigos
e padrinhos do Elesbão, dispostos a forrar o estômago com sólidos
lastros e abundantes regas de vinho.

A mucama de Nham Pombinha, já certa dos seus hábitos, servi-a
habilmente e mais habilmente ao Elesbão, que, como sendo o festejado,
atirava-se vorazmente às pratazadas e abundantes repetições.

Era o felizardo, o privilegiado!

O Hilário, a esquerda da Nham Pombinha, macambúzio e inquieto,
não esquecia a cena que o esperava em casa, de chegada.

E, cruel desfeita ao seu sacrifício, Nham Pombinha não se dignava
a dirigir-lhe uma, uma única palavra!

Se bem que o Elesbão se desfizesse em alegrias e palavras de agradecimento
e isso até o aborrecia, dela, só dela, queria um olhar, uma
palavra, um sorriso, por nada, por nada, mas só para o não esmagar
diante dos argumentos da sogra e da nulher, a falta de uma amabilidade, que
Nham Pombinha parecia ferozmente esquecer: para dar o gostinho àquelas
duas senhoras, de encontrarem a consciência do Hilário, de acordo
com as prevenções.

Ele, ele, vir ali, e sair, e ter de confessar que realmente não se
fazia caso dele, que era dispensável, e que assim como ele compareceu,
não se lhe falou, se não tivesse vindo, não teria sido
lembrado.

E nesta disposição de espírito ainda mais triste ficou
por ver, alí, naquela mesa uma chusma de caras desconhecidas e imbecis,
e na cabeceira repaltreado, repleto, vermelho e indecoroso, no lugar do seu
falecido pai, como dono, o Elesbão!

E insensivelmente descambara-lhe o pensamento para Nham Pombinha.

— Como? Pois era possível?

Como é que aquela mulher, até ali cercada de uma certa auréola
de respeito, podendo satisfazer os seus caprichos, vivendo no meio do bem
estar e de relativo luxo, relacionada como era, que encantos encontrava naquela
grande casaca do Elesbão, para se lhe votar inteira, corpo, alma, liberdade,
mocidade, sonhos, pretensões?… Pois na verdade a mulher será
um tão estranho ser, que a aberração não a desgosta,
ao contrário, atrai-a? Fazia-lhe a justiça de julgá-la
infeliz por se casar com Cirilo, com seu pai, por já ser um velho,
gasto na vida, enferrujado em todas as molas, gougoento. Mas. Adeus! Mesmo
assim era infinitamente superior a Elesbão, que era uma sombra, um
idiota, um bagagem! Aquele Elesbão, aquele Elesbão!…

E um esfuziar de olhos animou a fisionomia de Hilário.

— Acabando isto, vou-me embora e nunca mais apareço! É
até ridículo!…

— Hilário, repare que vai virar esse copo, por cima do meu vestido!
Não enxerga já? disse sorrindo, porém secamente, Nham
Pombinha.

Realmente, Hilário, abstrato tinha o braço sobre a mesa, e,
encostado a uma taça de champanha, qualquer movimento para o lado fazia
virar o frágil cristal!

— Desculpe-me, não tinha reparado.

— O que tem você hoje? São saudades da sua Doricélia?
Causticou Nham Pombinha.

— Oh! deixe. Não me aflija mais, pediu ele.

Estava-se no fim da ceia. Um descompassado e ruidoso arrastar de cadeiras,
guardanapos atirados, abertos, enovelados sobre a mesa. Desordem inteira na
arrumação do serviço. Pigarrear. Arrastar de pés.
Rápido à luz de um fósforo, logo extinta. Pequenas pontas
de fogo nos charutos. Dispersão para a sala da frente, Elesbão
abrindo a marcha.

Nham Pombinha ficou-se um pouco, dando várias ordens aos criados.

O Hilário, vagaroso, foi-se afastando também do rosto baixo,
correto no seu traje preto, de casaca, o peito da camisa muito branco.

Nham Pombinha acompanhou-o com o olhar, opressa, ansiada, o seio opulento,
vibrante, enérgico, sobre o corpete do seu elegante vestido de surah
preto.

Nham Pombinha depois de dar uma volta pela sala, conversando, sendo festejada,
ao passar perto do Hilário, este adiantou-se e disse-lhe: — bem,
boa noite, Nham Pombinha. Eu me retiro, desejando-lhe mil venturas.

— Ah! Já vai? Tão cedo… olhe, leve umas balas para
a Doricélia…

E foi andando. Ele acompanhou-a, sentindo-se ridicularizado.

E ao passar pelo seu quarto, o seu grande quarto, catitamente arranjado,
Nham Pombinha entrou, e, sentindo-se seguida, voltou-se e disse ao Hilário:

— Entre. Tem medo?…

Ele deu um passo à frente e ela, audaciosa, fremente, palpitante,
atirou-se-lhe ao pescoço, enlaçou-lhe a cabeça com os
seus belos braços, e atirou-lhe à boca, colado lábio
contra lábio, um beijão, alucinado, longo, inexorável!…
E ele, aquele fervido respeitador daquele belo pedestal, levado na fervida
exaltação daquele minuto completo, esquecido de tudo, só
sentindo aquele contato, aquele perfume. Aquela pressão, retribuiu-lhe
a carícia.

O Elesbão, na porta, com os olhos desmedidamente abertos, a boca esfauceada
de orelha a orelha, a mão no ar, a voz no mais alto ponto da interrogação,
atirou esta frase piramidal:

— Homessa!

Capítulo XV

— Homessa, por quê? perguntou afoitamente Nham Pombinha, soberba,
no seu gesto de despreocupação pelas conveniências sociais,
e deixando Hilário de lado. Homessa, por quê? de que se admira?
Por ventura não é muito natural que uma madrasta, quase uma
segunda mãe, na noite em que desata o último vínculo
que a trazia presa a um antigo casal, em que canta a última estrofe
de um poema, por sinal bem pouco alegre, não é natural que ela
desabafe as mágoas e as recordações de sua mocidade,
no seio de um amigo íntimo, de um quase filho? O mundo está
muito corrompido! Aposto que o Sr. Elesbão, seu marido, já me
supunha capaz de traí-lo, justamente nas primeiras horas do nosso consórcio?

— Não. Mas é que…

— Sim, eu compreendo. O Sr. é como todo o mundo: julga pelas
aparências. Julga de toda a fazenda pela dobra de cima. Oh! Como isso
é mesquinho! Não se poder dar expansão às dores
íntimas sem ter necessidade de demarcar a compasso os nossos gestos,
de arranjar uma medida para as nossas interjeições de dor. Não,
Elesbão, o Sr. não é capaz de pensar isso de mim. Bem
dizia Semiramis…

— Mas menina, atalhou o Elesbão quase a chorar, e com o coração
derretido como rapadura, não precisas de andar com essas coisas comigo,
que eu n/ao sou de cerimônias. Eu respeito muito as tuas interjeições
e até acho-as bonitas. Se tens saudade de Semiramis, mandamo-la convidar
para almoçar conosco amanhã.

Vendo-te assim abraçada a um homem e a fazer-lhe meiguices, compreendes,
hein, fiquei meio apatetado. Mas lá, agora, pensar coisas esquisitas…
Deus nosso Senhor me salve que não.

Nham Pombinha compreendeu que estava tão senhora da situação,
quanto Hilário estava atacado de uma imbecilidade visguenta incapaz
de dar uma palavra.

Os homens são todos uns patetas para essas coisas de lances de apuro.
Se não os resolvem brutalmente a bala, fazem de Sancho Pança.

Nham Pombinha com aquele dilúvio palavroso, apanhado no último
romance que lera, atordoara o Elesbão, e deixara-o embasbacado a ouvir
como a mulherzinha falava bem.

— É de muita força, calculava o Hilário…

— Não desconfiaste de mim,não é, Elesbão?
Era a primeira vez que Pombinha o tratava na segunda pessoa, e o peor era
que, com a presença do Hilário, as coisas não podiam
tão depressa tomar o caminho desejado por um noivo.

Por fim, o Hilário compreendeu que tinha de dizer alguma coisa para
sair daquele embaraço.

— Meu amigo Elesbão, Nham Pombinha, antes que eu me retirasse,
quis despedir-se de mim sem testemunhas. Era natural. Eu represento para ela
um passado mais ou menos tranqüilo e relativamente feliz. Ninguém
se aparta de um teto velho sem lágrimas mas, ao mesmo tempo; nos olhos
de uma noiva não se toleram lágrimas que não sejam as
da emoção ou alegria. Então, eu, como seu enteado…

— Nâo há dúvida, menino, não há dúvida.
Ora, para que hás de estar aí com esse latim todo. Eu sei o
que são estas coisas.

E ia conduzindo o Hilário para fora do quarto, dando-lhe palmadinhas
à espalda, chamando-o familiarmente o meu grandumba, seu felizardo,
e outras coisas assim doces e amáveis.

À porta da rua, torcaram-se as últimas despedidas…

— Almooço ao meio-dia, em, querendo já sabes… é
com franqueza.

E voltou à alcova.

Nham Pombinha estava em outro apartamento contíguo trocando as roupas,
aborrecida, nervosa com aquela interrupção da sua conferência
com Hilário, com aquele acabamento de idílio ridículo
e desastrado.

E despia-se febriciante, atirando com tudo à cara da criada alemã,
tomada pelo Elesbão na colônia, a qual não entendia nada
e ia sofrendo tudo com uma pachorra toda tudesca.

Eram onze horas da noite.

— Então, minha mulherzinha, não acha que são horas
de nos acomodarmos?

Nham Pombinha, por detrás do reposteiro, que dividia os apartamentos,
respondeu em tom desabrido, nervoso, como quem está acostumada a fazer
e a dizer que o que lhe vem à cabeça.

— Olhe: Sabe que mais? Está muito calor e, quando faz calor,
eu gosto mais de dormir só. O meu primeiro já sabia.

Não era uma razão para que o Elesbão o soubesse, ele
que ia apenas voltar a primeira página de um livro que não conhecia,
e do qual só vira a capa.

— Mas Pombinha…

— Olhe: durma um sono quietinho. Lá pela madrugada, com a fresca,
falaremos.

E o Elesbão penalizado, submisso, admirado de quanto lhe sucedia de
extraordinário, exclamou, pela segunda vez, na noite de seu noivado:

— Homessa!

Conduzindo a vela e deixando tudo às escuras, passava a criada alemã,
gorda, corada, rochochuda, bem junto ao grande leito do Elesbão, feito
no Lopes, deixando após si um perfume de almíscar irritante.

Em casa do Hilário, ia tudo numa polvorosa.

Doricélia, ainda de pé, desperta, rasgando as rendas do penteador
de cetim azul celeste do segundo dia do consórcio, e falando muito
alto, atirava-se ao Hilário em invectivas, indignada com a desobediência
do marido indo ao casamento da madrasta, e com sua longa ausência.

Pois o Hilário não tivera o descoco de entrar-lhe em casa meia
hora depois da meia-noite?

— Isto é imoral, bradava ela, soprando as palavras ao nariz
do Hilário. É imoral, um homem casado, há pouco tempo,
entrar em casa estas horas!

Fora o caso que o Hilário, ao sair da casa do Elesbão, ficara
como que entontecido.

As sensações fortes, que lhe tinham produzido os abraços
de Nham Pombinha, magnífica, no seu traje de noiva, subitamente transformados
em diálogo de comédia, pelo aparecimento inesperado e intempestivo
do Elesbão, tinham-no deixado com a cabeça oca, sem saber o
que fazer. E o pior era que ele tinha ainda de aturar a birra da Doricélia,
quando voltasse para a casa.

Este pensamento, sobretudo, levara-o a, instintivamente, afastar-se da rua
de sua casa, como quem quer demorar o mais possível o aparecimento
de um perigo com o qual deve inevitavelmente, contar.

Para onde ir? Tudo estava fechado, aquela hora. Não havia um café,
ao menos, onde a gente se distraísse, um quarto de hora, a fumar um
charuto palestrando com um amigo.

E,como a noite estava calmae de luar, fora até o Santa Bárbara
pela Ponte de Pedra… Depois dera mais uma dúzia de voltas, aborrecendo-se
a valer, cabeceando algumas vezes de sono, ou fechando propositalmente os
olhos para não ver o quadro que na sua imaginação pintava:
Nham Pombinha nos braços do Elesbão.

Por fim, não teve remédio. Foi para casa…

Aí foi Tróia.

Doricélia não esteve com meias medidas.

O tema para palestra foi uma indiscreta pancada que o tímpano do relógio
fez ressoar, indicando meia hora depois da meia-noite.

— Então agora é que você vem da casa daquela delambida?
Pensei que ficasse a fazer companhia ao noivo ou estivesse ajudando nos arranjos!

E desandou a torrente:

Aquilo era uma pouca vergonha. Ir tirar uma moça donzela de casa de
seus pais, onde vivia feliz, para dar-lhe maus tratos, deixá-la abandonada
como uma trouxa. Ir ao casamento daquela mulher? Isso nunca. O mundo dizia
muita coisa, e além disso, o marido não deve ir onde a esposa
não vai. Todo mundo havia de ter reparado. Casados havia tão
pouco tempo!

O senhor não responde? É que a sua consciência o condena.
Se não fosse assim, havia de achar muito justo o que eu digo. Para
que casou comigo? Por causa do meu dinheiro? Maridos desses andam aos centos,
se eu quisesse. Não precisava que o senhor me aparecesse com essa cara
de sonso. Olhe, fique sabendo que eu não aturo desaforos comigo. Se
as cousas não entrarem nos eixos, não se queixe. Quem me avisa,
meu amigo é.

— Hilário calado.

A Doricélia passou das exprobações aos insultos, e a
tal ponto levou os ímpetos de sua cólera, que a velha Claudina
acudiu assarapantada, em saia branca e bata, esfregando os olhos e com uma
vela de carnaúba cor de rosa na mão.

— O que é isto? que destapatório é esse, meninos?

— Sua filha está doida, D. Claudina, não vê como
ela está a se rasgar a roupa toda.

— Doida, doida? Doido está você, seu pilantra. A mamãe
já me conhece. Eu sou uma pessoa decente, muito diversa da tal sua
madrasta, que tem andado com todo o mundo.

D. Claudina (não fora ela sogra!) aplaudiu a filha, logo que esta
a inteirou de tudo.

Aquilo não tinha jeito. Se sua mulher não queria que ele fosse
ao casamento, ficasse em casa. A gente de bem faz assim. Se não para
que se casou?

Olhe, concluiu a Claudina, a gente séria lava a roupa suja em casa.
O senhor sabe que, quando uma pessoa toma compromissos, deve cumpri-los, ou
passa por mau e por patife. Nham Pombinha não é melhor que a
minha filha, pelo contrário até é muito pior. O senhor
tem de acabar com essa amizade, se quiser viver em paz aqui.

Afinal, o Hilário, irritado, levantou-se da cadeira onde se tinha
atirado desde o princípio da conversa, foi ao bico de gás e
fechou.

— Sabe que mais, suas furias? — Boa noite.

E ia a caminho para o quarto de dormir, quando o ruído seco de um
objeto que lhe caira do bolso posterior da casaca fê-lo voltar, abaixou-se
e apanhou-o. Era o chinelo que lhe dera a Nham Pombinha, dizendo-lhe que perguntasse
à mulher o que significava.

Foi uma inspioração… o que é raro, porque nada é
menos próprio a inspirar-nos do que um chinelo.

Ergueu-se pronto e a luz tíbia da vela, mostrou o chinelo.

— As senhoras que são tão sabidas, tenham a bondade de
dizer-me: Onde está o outro pé deste calçado?

Foi um golpe de teatro.

Mãe e filha lançaram-se olhares assustados e vesgos, gritando
como possessas e fingindo um desmaio, sacudindo os membros, atiraram-se inteirissadas
ao chão…

— A mandinga, a mandinga…

Apagou-se a vela.

O Hilário desapontado, fora de si, sem atinar com o que fazia, atirou
com o chinelo a esmo, produzindo grande estrondo no vidro do aparador em que
ele fora bater, e resolveu sair de casa naquele instante…

— Desmaiem por aí. Estão bem livres de que eu vá
levantar, suas bruxas… Ah! temos mandinga? Pois quem com mandinga mata com
mandinga morre… Espere e verão… Também vou a casa do tal
Caboclo, conhecido de Nham Pombinha…

E saiu, mesmo de casaca e clack como estava, furioso, como um pé de
vento, levando tudo por diante, derrubando cadeiras, batendo com as portas,
com estrépito, mandando de presente ao diabo a hora em que tinha casado…,
enquanto que o José Pereira de Moraes, em ceroulas e camiseta, barrete
de dormir furado no tope, e com uma vela igual a de D. Claudina, aparecia
na sala de jantar, com uma baioneta velha e enferrujada, embrulhada em papel
pardo de venda, embaixo do braço, tropeçava no corpo da velha,
e saía de novo direito à porta da rua, bradando:

— Ladrões, ladrões! Pega ladrão!

Capítulo XVI

Hilário, saindo de casa, naquele desespero cego, pusera-se a andar
por aí além. Bem sabia ele onde ia, onde era a pocilga do Caboclo!…

Ignorando tudo, bradou que ia procurá-lo, só para meter medo
e fazer-se temer.

Afinal, cansado de andar trocando as pernas, pela madrugada voltou à
casa e acomodou-se no sofá da sala de visitas, muito caladinho, muito
silencioso, ansioso até por não ser visto e nem sentido.

De manhã deu-se papética cena: — explosão de desculpas,
explicações, carinhos e festinhas, de modo que serenou a tormenta,
dando-se tudo por esquecido e acabando em boa paz… aparente, aliás.

D. Claudina, porém, previdente, sabida e traquejada no mundo entendeu,
que não devia-se descuidar, e de combinação com a Doricélia
propôs-se de seguir uma regra de tratamento ao Hilário, pela
qual o rapaz se tornaria caseiro, amigo dos seus lenços e deslembrado
de más tenções. Por isso, daí em diante eram pitadinhas
de certo pó denegrido, no café de manhã e o chá
da noite, com bolos de magnífico aspecto, mas preparados no miolo com
raspas de unhas e o diabo a quatro…

O Hilário, ao cabo de certo tempo, sem desconfiar da medicina, sentia-se
de qualquer sofrimento vago, indeterminado, vertigentes, dores atrozes e rápidas
como punhaladas, no estômago, um contínuo salivar enjoado…

Nham Pombinha, pelo seu lado, em crescente aumento de asco pelo Elesbão,
a quem não queria senão para dar-lhe o gracioso papel de editor
responsável, Nham Pombinha não descansava.

Tendo achado meios de afastar o marido, uma noite, conseguiu falar ao Caboclo
e explicar-lhe pelo miúdo a sua posição e os seus projetos.

O preto velho, se bem que calejado na prática dessas falcatruas, admirou
— não se sabe se mais se o cinismo da ex-viúva, referindo-se
cruamente, sem tintas e nuas palavras — os seus desejos, se mais a pouca
mossa que lhe fizera o arrastamento da vida do Cirilo, sucesso — que
diabo — ao menos um pouco de remorso havia de provocar!

Mas como a paga era boa, a freguesa crédula e constante, o mandingueiro
deu-lhe fórmulas especiais para o caso do Elesbão e iguais as
que já fornecera a D. Claudina, para o caso do Hilário, de modo
que este é que era o mais sacrificado, porque ingeria tudo em dose
dupla.

Desde que o Elesbão tinha começado a absorção
das coisas aplicadas por Nham Pombinha, esta não andou mais com meias
medidas. Convidou insistentemente o Hilário a visitá-la, e foi,
de dia, apertando mais o cerco ao já tão desvairado rapaz.

Oh! furiosas contorsões de uma ligação medonha, que
tinha de permeio a lembrança vivaz do ludibriado morto, pai de Hilário,
pai deste filho, que esquecia tudo, o que quebrava aos pés daquela
mulher ardente as homenagens do respeito, da veneração, do culto
devido à sua memória! Monstruoso a reviravolta de sentimentos,
monstruoso amor, medonha expansão da carne, da carne exigente e intransigente,
sepulcro de bons e são raciocínios, assassina da pureza de coração!

Passava-se o tempo, crescia furiosa ânsia de saciar aquela voragem.
E como o Hilário resistia àqueles embates capazes de acachapar
outro qualquer!

— Não Realmente este Caboclo vale tudo! dizia contentem Nham
Pombinha.

O Elesbão, por seu lado, atristado e sonolento, decrescia, mirrava-se,
acabava-se. Afinal, num dia, caiu na rua, nas mesmas condições
em que o Cirilo já tombara, e morreu da mesma morte inesperada, estúpida
e não esclarecida. Este sucesso foi como se não se tivesse dado,
em nada alterou as relações do ex-enteado com a madrinha. Ao
contrário, incendiou-se-lhes a vontade, vontade absurda de quebrarem
todas as leis do decoro social e viverem, sob o mesmo teto, desse no que desse.
E assim fizeram, depois de atirarem o cadáver do mísero Elesbão
para o cemitério, com um mal escondido do assanho de alegria e de liberdade.

Dias volvidos sobre este arrojado procedimento, foi o Hilário chamado
instantemente à sua casa, visto que se tratava de uma coisa muito séria.
Foi, era o José Pereira de Moraes, que tinha sido cruelmente mordido
pelo Quatro-olhos que havia ficado hidrófobo na véspera. O homem
estava assustadíssimo, queimou as feridas com ferro em brasa, até
nem se podia com o cheiro de carne tostada, e como lhe tinham ensinado que
azeite de potro era muito bom para expelir os humores, o bárbaro tinha
lhe bebido como três garrafas e ansiava agora, arrastando no esvaecimento
da mais atroz desinteria, triunfalmente resistente às libras de polvilho,
caldos de marmelo e folhas de araçá e aos frascos de bismuto,
com que lhe atulhavam o enfraquecido estômago. Por fim, já sem
forças, cadavérico, asqueroso até no horror visível
do seu esgotamento, morreu sem um gemido.

Morreu com um passarinho! dizia soluçante D. Claudina.

O Hilário, coitado, estonteado, sentindo cada vezmais forte a sua
dor de estranhas, procurou manter-se firme, e lá como pode assumiu
o seu cargo de chefe da casa, mandando enterrar decentemente o José
Pereira, dizer-lhe as respectivas missas, o seu agradecimentozinho pelos jornais,
e fazendo-se logo enforcar o danado Quatro-olhos, no fundo do quintal, procedendo-se
as operações fúnebres com grande luxo de precauções
e alaridos.

Doricélia, disfarçadamente, punha em prática a sua tática
de seduções…e uma noite, quando o Hilário, cada vez
mais alquebrado, foi insistentemente chamado por um perfumado bilhetezinho
de Nham Pombinha, ganhou a parada, porque o Hilário aliás sem
grandes reservas pelo pudor de sua sogra e da sua mulher — respondeu
que não poderia ir, porque se achava muito incomodado.

E mais, se vitória houve, a Doricélia confirmou-a logo na manhã
seguinte, porque levantou-se risonha, esperta, cantarolando, fazendo enfim,
contraste vivo com as últimas manhãs.

D. Claudina também já fora da cama, deu logo pelo júbilo
da filha e dava-se parabéns pelo bom sucesso da última dose
ao genro na véspera.

Tomavam as duas senhoras o seu matutino café com leite.

Depois de beberem uma grande xícara, acompanhada de duas respeitáveis
fatias de pão, a Doricélia como que lembrou-se, e vivaz, jubilosa,
levantando-se, disse à mãe:

— Vou tomar um banho no tanque!

— Espere um pouco, menina; tomaste agora café tão quente…
Vai te fazer mal. Deixa descer, primeiro…

— Qual! Não acontece nada.

— Se fosse eu, não ia. Pode te dar algum pasmo!

— Não dá nada. Histórias.

— Vou!…

E foi.

Foi, arrumou as suas roupas, correu os olhos pelas faces visíveis
das suas abundâncias corporais, anediou a sua macia e rosada pele e…
catapruz! meteu-se de jacto no grande tanque e afundou-se na água fria
e clara.

Por efeito natural de fenômenos patológicos, o café quente
de inda agora, com a água fria,certamente, não se acertaram
amigavelmente e quase repentinamente a mísera sentiu-se tonta, sem
ouvido, tomada de imobilidade, abafada, muda, caiu prostada, músculos
flácidos, boiando as suas banhas, na água tranqüila.

Em vista já da larga demora, D. Claudina estranhou o caso e foi averiguá-lo.

Chegou-se a porta do quarto de banho, chamou, chamou, bateu e nada. Espiou
pelo buraco da fechadura. Horror! Pulou como uma louca, gritou pelo cozinheiro,
pelo Hilário, pela alemã, fez um sarilho enorme, obrigou arrombar-se
a porta, e ficou apatetada, imóvel sem chorar e repetindo apenas:

— Encarangada! Morreu encarangada!

Repentinamente D. Claudina, agitando os braços no ar, sem apoio, caiu
de costas; esfolando profundamente o nariz; e aí morreu, deitando pela
boca porção de sangue escuro e espumoso.

Feliz! Ao menos morreu de morte morrida!

Rebentara-lhe um maduro aneurisma.

Hilário e o cozinheiro, ali ficaram, estupefactos.

O cozinheiro, crioulo, moço ainda, vagabundo chapado, já muito
conhecedor das desavenças daquela gente,com quem vivia, sem arredar
o pé para a rua, por medo ao recrutamento, estático, perante
a nudez morta daquele corpo, branco, cujas curvas lambia com um olhar velhado,
foi rudemente arrancado à sua curiosidade pela voz impiedosa e áspera
do Hilário, que lhe gritou rápido:

— Já daqui prá fora! E mais calmo acrescentou depois:
Chama um carro e vai buscar-me o Dr. Eloi. Passa por casa de Nham Pombinha
e dize-lhe de vir cá, já, já.

— Mas podem me pegar…

— Toma um carro, já te disse. Safa-te!

Saiu o mensageiro.

Hilário ali ficou um momento, relanceou um rápido olhar pelo
quarto e depois abriu a válvula do tanque por onde começou a
jorrar forte a água, um tudo nada aquecido pela permanencia do corpo
de Doricélia, nela. Depois, chamando a criada alemã, aterrorizada
com aqueles sucessos, com regular trabalho e esforço, conseguiu envolver
o corpo da mulher no largo e felpudo lenço de banho, conduzindo-a para
o seu quarto de dormir.

Volveu pelo mesmo fim a D. Claudina, inteiriçada e conduziu ao seu
aposento, ficando nos assoalhos um trilho de largas gotas de sangue.

A alemã, tranzida de medo, logo que viu-se livre de tal fardo, saiu
porta a fora e foi bater língua pela vizinhança, pálida
trocando as palavras e jurando que ia logo no dia seguinte para a colônia,
para perto de seu pai, na carroça de seu tio!

De modo, que daí há pouco a casa era invadida pelo mulherio
da vizinhança ávida de curiosidade, caras compungidas e olhos
perscrutadores. Hilário, atônito, começou a notar aquilo
e não poude mais conter a onda. Contou o caso reunindo-as duas ou três
velhuscas mais cheias de oferecimentos, entregou-lhe os molhos de chaves,
indicou-lhes as gavetas onde julgava estarem as roupas, e meteu-se na sala
onde estava mais à vontade. Redobravam aí suas dolorosas cólicas.

Chegou Nham Pombinha. Perguntou pelo Hilário e foi entrando afoitamente
até onde estava. Por demais notara aquele ar de novidades, aquele rebuliço,
que enchia a casa, mas ignorava por completo o sucedido.

Deu com os olhos em Hilário, recostado no sofá e pálido,
desfeito, abatido, gemendo, com as mãos contraídas, comprimindo
o estômago.

— Ai! ai! que dor, que dor atroz! gemeu o mísero.

— Mas o que é? O que sentes? indagou, aflita, Nham Pombinha.

— Aqui, aqui! Aí! Que fogo! Que dor!…

— Espere um momento, já te passa isso, eu volto.

Foi dentro, rápida, correndo quase, trouxe um copo d’água,
vasou-lhe dentro uma porção de mandinga milagrosa do Caboclo.
Misturou a beberagem deu-a a Hilário que enguliu avidamente, sem querer
abrir os olhos, confiando e dócil, esperando pronto alívio ao
seu sofrimento.

Foi golpe de graça.

Aquele organismo minado, corroído pelo efeito nocivo de tanta droga
perigosa, daquele envenenamento lento, porém asqueroso persistente,
não pode resistir e cedeu, desfibrou-se sob a ação rápida
da poção de Nham Pombinha. Sacudiu-se convulsivamente, ameaçou
um arranco violento, de olhos vítreos e ferozes, a boca aberta, narinas
dilatadas, as mãos em garrasm crispadas sobre o estômago, deu
um prolongado e doloroso gemido, e ficou-se, ficou-se, descaindo lentamente,
inerte, frouxo, do sofá para o chão, onde parou, a face no tapete,
um braço preso em cima, a roupa repuxada, silencioso, imóvel,
morto!

Nham Pombinha, atônita, sem ter nunca imaginado aquele desfecho, adivinhou-o
e fugiu, alucinada e cortada de medo, de piedade, de remorso e de angústia.

O Dr. Eloi, de chegada, ouvido o relatório, abriu imensamente os olhos.
Quê? Em vez de um, em vez de dois, três, três cadáveres?
Mas aquilo era uma matança, um acaba tudo, era o fim do mundo? Não
andaria aí gato encerrado?!…

Mas não houve que dizer Doricélia, uma apoplexia, legal. D.
Claudina, ruptura de aneurisma, legal. Na véspera ainda a desinteria
de azeite de potro. No Moraes, legal também. Aquilo com Hilário
é que era o diabo. Mas, enfim, não assistira o doente, nada
lhe prescrevera, parecia coisa de estragos do coração, legal
também, sem assistência médica, nota de barbas de molhor
por causa das dúvidas. E deu os atestados. E vieram os caixões
fúnebres e os outros aprestos dos defuntos. Alguns vizinhos, maridos
das vizinhas, vieram também lançar a sua vista d’olhos, e deram
os passos precisos para os enterros e avisos aos parentes, o principal, enfim.

Nham Pombinha, embezerrada, mandou dizer que positivamente não queria
saber de nada e que se arranjassem.

As línguas então, trabalharam a valer. Parecia no Boato!

Concentrada nas suas recordações e no seu mordente remorso,
só, ré perante a consciência, sacudida pelo terror, batida
na sua defesa de ignorância, Nham Pombinha, fechada no seu quarto, passou
uma noite medonha.

Pesadelos ou visões?

Revia, perpassavam-lhe diante dos olhos esgazeados, imagens vagamente desenhadas,
com clarões fosforecentes; na meia luz da lamparina, via, via a cara
boçal e esquisita do mandingueiro, com os dentes pretos, o branco dos
olhos muito brilhante; assistia, jurava que assistia a uma sessão de
bonzos, as invocações ao Xererê milagroso, dançando,
sob o altar grotesco o corpo alquebrado do Cirilo, e coisa mais horrorosa,
o pescoço desse corpo, que saracoteava, sustentava três cabeas:
a do Hilário, a do Elesbão e a do Cirilo, rindo as três
bocas, ferozes os três pares de olhos!

Aumentava o quadro, pulava a Claudina, pulava a Doricélia, o José
Pereira, o Quatro-olhos, o cão estimado!… De repente, todos esses
fantasmas acercavam-se-lhe, enganavam-a, mordiam-na, puchavam-lhe os cabelos,
vasavam-lhe os olhos.

Então, levantou-se sem resolução, porém como
fascinada, tirou do bolso vestido o vidrinho da última droga que acabara
o Hilário, e bebeu-a de um só trago, sem uma visagem, sem repugnância.
Atirou o vidro contra o espelho que refletia o seu corpo gentil, e de repente,
às gargalhadas, atirou-se a pular, fazendo roda, dando às mãso
a imaginários companheiros. às furiosas gargalhadas, sucederam
gritos roucos, ofegantes e ela caiu, em cheio no chão, sem alento.
Ou tinha enlouquecido de verdade, ou então ia criar macaquinhos no
sótão. Em todo o caso uma lástima.

E acabou-se a Mandinga.

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