Dona Expedita

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– …

– Minha idade? Trinta e seis…

– Então, venha.

Sempre que dona Expedita se anunciava no jornal, dando um número de telefone, aquele diálogo se repetia. Seduzidas pelos termos do anúncio, as donas de casa telefonavam-lhe para “tratar” – e vinha inevitavelmente a pergunta sobre a idade, com a também inevitável resposta dos 36 anos. Isso desde antes da grande guerra. Veio o 1914 – ela continuou nos 36. Veio a batalha do Marne; veio o armistício – ela firme nos 36. Tratado de Versalhes – 36. Começos de Hitler e Mussolini – 36. Convenção de Munich – 36…

A futura guerra a reencontrará nos 36. O mais teimoso dos empaques! Dona Expedita já está “pendurada”, escorada de todos os lados, mas não tem ânimo de abandonar a casa dos 36 anos – tão simpática!

E como se tem 36 anos, veste-se à moda dessa idade um pouco mais vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de cores, rugas e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus famosos 36, era provável que desse a idéia duma bem aceitável matrona de 60…

Dona Expedita é “tia”. Amor só teve um, lá pela juventude, do qual às vezes, nos “momentos de primavera”, ainda fala. Ah, que lindo moço! Um príncipe. Passou um dia de cavalo pela janela. Passou na tarde seguinte e ousou um cumprimento. Passou e repassou durante duas semanas – e foram duas semanas de cumprimentos e olhares de fogo. E só. Não passou mais – desapareceu da cidade para sempre.

O coração da gentil Expedita pulsou intensamente naqueles maravilhosos quinze dias – e nunca mais. Nunca mais namorou ou amou alguém – por causa da casmurrice do pai.

Seu pai era caturra de barbas à Von Tirpitz, português irredutível, desses que fogem de certos romances de Camilo e reentram na vida. Feroz contra o sentimentalismo. Não admitia namoros em casa, e nem que se pronunciasse a palavra casamento. Como vivesse setenta anos, forçou as duas únicas filhas a se estiolarem ao pé de sua catarreira crônica. “filhas são para cuidar da casa e da gente”.

Morreu, afinal, e arruinado. As duas “tias” venderam a casa para pagamento das contas e tiveram de empregar-se. Sem educação técnica, os únicos empregos antolhados foram os de criada grave, dama de companhia ou “tomadeira de conta” – graus levemente superiores à crua profissão normal de criada comum. O fato de serem de “boa família” autorizava-as ao estacionamento nesse degrau um pouco acima do último.

Um dia a mais velha morreu. Dona Expedita ficou só no mundo. Quer fazer, senão viver? Foi vivendo e especializando-se em lidar com patroas. Por fim, distraía-se com isso. Mudar de empregos era mudar de ambiente – ver caras novas, coisas novas, tipos novos. Um cinema – o seu cinema! O ordenado, sempre mesquinho. O maior de que se lembrava fora de 150 mil réis. Caiu depois para 120; depois para 100; depois 80. Inexplicavelmente as patroas iam-lhe diminuindo a paga a despeito da sua permanência na linda idade dos 36 anos…

Dona Expedita colecionava patroas. Teve-se de todos os tipos e naipes – das que obrigam as criadas a comprar o açúcar com que adoçam o café, às que voltam para casa de manhã e nunca lançam os olhos sobre o caderno de compras. Se fosse escritora teria deixado o mais pitoresco dos livros. Bastava que fixasse metade do que viu e “padeceu”. O capítulo das pequeninas decepções seria dos melhores – como aquele caso dos 400 mil réis…

Foi vez que, saída de emprego, andava em procura de outro. Nessas ocasiões costumava encostar-se à casa de uma família que se dera com a sua, e lá ficava um mês ou dois até conseguir nova colocação. Pegava a hospedagem fazendo doces, no que era perita, sobretudo um certo bolo inglês que mudou de nome, passando a chamar-se o “bolo de cona Expedita”. Nesses interregnos comprava todos os dias um jornal especializado em anúncios domésticos, no qual lia atentamente a seção do “procura-se”. Com a velha experiência adquirida, adivinhava pela redação as condições reais do emprego.

– Porque “elas” publicam aqui uma coisa e querem outra – comentava filosoficamente, batendo no jornal. – para esconder o leite, não há como as patroas!

E ia lendo, de óculos na ponta do nariz: “precisa-se de uma senhora de meia idade para servicinhos leves”.

– Hum! Quem lê isto pensa que é assim mesmo – mas não é. O tal servicinho leve não passa de isca – é a minhoca do anzol. A mim é que não me enganam, as biscas…

Lia todos os “procura-se”, com um comentário para cada um, até que se detinha no que lhe cheirava melhor. “Precisa-se duma senhora de meia-idade para serciços leves em casa de fino tratamento”.

– Este, quem sabe? Se é casa de fino tratamento, pelo menos fartura há de aver. Vou telefonar.

E vinha a telefonada de costume com a eterna declaração dos 36 anos.

O hábito de lidar com patroas manhosas levou-a a lançar mão de vários recursos estratégicos; um deles: só “tratar” pelo telefone e não dar-se como ela mesma.

“Estou falando em nome duma amiga que procura emprego.” Desse modo tinha mais liberdade e jeito de sondar a “bisca.”

– Essa amiga é uma excelente criatura – e vinham bem dosados elogios. – Só que não gosta de serviços pesados.

– Que idade?

– Trinta e seis anos. Senhora de muito boa família – mais por menos de 150 mol réis nunca se empregou.

– É muito. Aqui o mais que pagamos é 110 – Sendo boa.

– Não sei se ela aceitará. Hei de ver. Mas qual é o serviço?

– Leve. Cuidar da casa, fiscalizar a cozinha, espanar – arrumar…

– Arrumar? Então é arrumadeira que a senhora quer?

E dona Expedita pendurava o fone, arrufada, murmurando: “Outro ofício!”

O caso dos 400 mil réis foi o seguinte. Ela andava sem emprego e a procurá-lo na seção do “precisa-se”. O súbito, esbarrou com esta maravilha: “Precisa-se duma senhora de meia-idade para fazer companhia a uma enferma; ordenado, 400 mil réis”.

Dona Expedita esfregou os olhos. Leu outra vez. Não acreditou. Foi em busca duns óculos novos adquiridos na véspera. Sim. Lá estava escrito 400 mil réis!…

A possibilidade de apanhar um emprego único no mundo fê-la pular. Correu a vestir-se, a pôr o chapeuzinho, a avivar as cores do rosto e voou pelas ruas afora.

Foi dar com os costados numa rua humilde; nem rua era – numa “avenida”. Defronte à casa indicada – casinha de porta e duas janelas – havia uma dúzia de pretendentes.

– Será possível? O jornal saiu agorinha e já tanta gente por aqui?

Notou que entre as postulantes predominavam senhoras bem-vestidas, como o aspecto de “damas envergonhadas”. Natural que assim fosse porque um emprego de 400 mil réis. Era positivamente um fenômeno. Nos seus… 36 anos de vida terrena jamais tivera notícia de nenhum. Quatrocentos por mês! Que mina! Mas com um emprego assim em casa tão modesta? “Já sei. O emprego não é aqui. Aqui é onde se trata – casa do jardineiro, com certeza…”

Dona Expedita observou que as postulantes entravam de cara risonha e saíam de cabeça baixa. Evidentemente a decepção da recusa. E o seu coração batia de gosto ao ver que todas iam sendo recusadas. Quem sabe? Quem sabe se o destino marcara justamente a ela como a eleita?

Chegou, por fim, a sua vez. Entrou. Foi recebida por uma velha na cama. Dona Expedita nem precisou falar. A velha foi logo dizendo:

“Houve erro no jornal. Mandei por 40 mil réis e puseram 400… Tinha graça eu pagar 400 a uma criada, eu que vivo à custa do meu filho, sargento da polícia, que nem isso ganha por mês…”

Dona Expedita retirou-se com cara exatamente igual à das outras.

O pior da luta entre criados e patroas é que estas são compelidas a exigir o máximo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo. Nunca jamais haverá acordo, por que é choque de totalitarismo com democracia.

Um dia, entretanto, dona Expedita teve a maior das surpresas: encontrou uma patroa absolutamente identificada com suas idéias quanto ao “mínimo ideal”- e, mais que isso, entusiasmada com esse minimalismo – a ajudá-la a minimizar o minimalismo!

Foi assim. Dona Expedita estava pela vigésima vez na tal família amiga, à espera de nova colocação. Lembrou-se de recorrer a uma agência, para a qual telefonou. “Quero uma colocação assim, de 200 mil réis, em casa de gente arranjada, fina e, se for possível, em fazenda. Serviços leves, bom quarto, banho. Aparecendo qualquer coisa deste gênero, peço que me telefone” – e deu o número do aparelho e de casa.

Horas depois retinia a campainha do portão.

– É aqui que mora madame Expedita? – perguntou, em língua atrapalhada, uma senhora alemã, cheia de corpo, e de bom aspecto.

A criadinha que atendeu disse que sim, fê-la entrar para o hall de espera e foi correndo avisar a dona Expedita. “Uma estrangeira gorda querendo falar c madame!”

– Que pressa meu Deus! – murmurou a solicitada, correndo ao espelho para os retoques.

– Nem três horas que telefonei. Agência boa, sim…

Dona Expedita apareceu no hall com um excessozinho de ruge nos beiços de múmia. Apareceu e conversou – e maravilhou-se, porque, pela primeira vez na vida, encontrava a patroa ideal. A mais sui-generis das patroas, de tão integrada no ponto de vista das “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

O diálogo travou-se num crescendo de animação.

– Muito boa tarde! – disse a alemã, com a maior cortesia. – Então foi madame quem telefonou para a agência?

0 “madame” causou espécie a dona Expedita.

– É verdade. Telefonei e dei as condições. A senhora gostou?

– Muito, mas muito mesmo! Era exatamente o que eu queria. Perfeito. Mas vim ver pessoalmente, porque o costume é anunciarem uma coisa e a realidade ser outra.

A observação encantou dona Expedita, cujos olhos brilharam.

– A senhora parece que está pensando com a minha cabeça. É justamente isso o que se dá, vivo eu dizendo. As patroas escondem o leite. Anunciam uma coisa e querem outra. Anunciam serviços leves e botam em cima das pobres criadas a maior trabalheira que podem. Eu falei, insisti com a agência: servicinhos leves…

– Isso mesmo! – concordou a alemã, cada vez mais encantada. – Serviços leves, porque afinal de contas uma criada é gente – não é burro de carroça.

– Claro! Mulheres de certa idade não podem fazer serviços de mocinhas, como arrumar, lavar, cozinhar quando a cozinheira não vem. Ótimo! Quanto à acomodação, falei à agência em “bom quarto”…

– Exatamente! – concordou a alemã. – Bom quarto – com janelas. Nunca pude conformar-me com isso das patroas meterem as criadas em desvão escuros, sem ar, como se fossem malas. E sem banheiro em que tomem banho.

Dona Expedita era toda risos e sorrisos. A coisa lhe estava saindo maravilhosa.

– E banho quente! – acrescentou com entusiasmo.

– Quentíssimo! – berrou a alemã, batendo palmas. – Isso para mim é ponto capital.

Como pode haver asseio numa casa onde nem banheiro há para criadas?

– Há, minha senhora, se todas as patroas pensassem assim! – exclamou dona Expedita, erguendo os olhos para o céu. – Que felicidade não seria o mundo! Mas no geral as patroas são más – e iludem as pobres criadas, para agarrálas e explorá-las.

– Isso mesmo! – apoiou a alemã. A senhora está falando como um livro de sabedoria. Para cem patroas haverá cinco ou seis que tenham coração – que compreendam as coisas…

– Se houver! – duvido dona Expedita.

O entendimento das duas era perfeito: uma parecia o Double da outra. Debateram o ponto dos “serviços leves” com tal mútua compreensão que os serviços foram levíssimos, quase-nulos – e dona Expedita viu erguer-se diante de si o grande sonho de sua vida: um emprego em que não fizesse nada, absolutamente nada…

– Quanto ao ordenado, disse ela (que sempre pedia 200 para deixar por 80), fixei-o em 200…

Avançou medrosamente e ficou à espera da inevitável repulsa. Mas a repulsa do costume pela primeira vez não veio. Bem ao contrário disso, a alemã concordou com entusiasmo.

– Perfeitamente! Duzentos por mês – e pagos no último dia de cada mês.

– Isso! – berrou dona Expedita, levantando-se da cadeira. – Ou no comecinho. Essa história de pagamento em dia incerto nunca foi comigo. Dinheiro de ordenado é sagrado.

– Sacratíssimo! – urrou a alemã, levantando-se também.

– Ótimo – exclamou dona Expedita. – Está tudo como eu queria.

– Sim, ótimo- repetiu a alemã. – Mas a senhora também falou em fazenda…

– Ah, sim fazenda. Uma fazenda bonita, toda frutas, leite e ovos, extasiou a alemã. Que maravilha…

Dona Expedita continuou:

– Gosto muito de lidar com pintinhos.

– Pintos! Ah, é o maior dos encantos! Adoro os pintos – as ninhadas… o nosso entendimento vai ser absoluto, madame…

O êxtase da ambas sobre a vida de fazenda foi subindo numa vertigem. Tudo quanto havia de sonhos incubados naquelas almas refloriu viçoso. Infelizmente, a alemã teve a idéia de perguntar:

– E onde fica a sua fazenda, madame?

– A minha fazenda? – repetiu dona Expedita, refranzindo a testa.

– Sim, a sua fazenda – fazenda para onde madame quer que eu vá…

– Fazenda para onde eu quero que a senhora vá? – tornou a repetir dona Expedita, sem entender coisa nenhuma. – Fazenda, eu? Pois se eu tivesse fazenda lá andava a procurar emprego?

Foi a vez da alemã arregalar os olhos, atrapalhadíssima. Também não estava entendendo coisa nenhuma. Ficou uns instantes no ar. Por fim:

– Pois madame não telefonou para a agência dizendo que tinha um emprego, assim, na sua fazenda?

– Minha fazenda uma ova! Nunca tive fazenda. Telefonei procurando emprego, se possível numa fazenda. Isso sim…

– Então, então, então… – e a lema enrusbeceu como uma papoula.

– Pois é – respondeu dona Expedita percebendo afinal o qüiproquó. – Estamos aqui feito duas idiotas, cada qual querendo emprego e pensando que a outra é a patroa…

O cômico da situação fê-las rirem-se – e gostosamente, já retornadas à posição de “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

– Esta foi muito boa! – murmurou a alemã, levantando-se para sair. – Nunca me aconteceu coisa assim. Que agência, hein?
Dona Expedita filosofou.

– Eu bem que estava desconfiada. A esmola era demais. A senhora ia concordando com tudo que eu dizia – até com os banhos quentes! Ora, isso nunca foi linguagem de patroa – dessas biscas. A agência errou, talves por causa do telefone, que estava danado hoje – além do que sou meia dura de ouvidos…

Nada mais havia a dizer. Despediram-se. Depois que a alemã bateu o portão, dona

Expedita fechou a porta, com um suspiro arrancado do fundo das tripas.

– Que pena, meu Deus! Que pena não existirem no mundo patroas que pensem como as criadas…

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