A Mortalha de Alzira – Aluísio de Azevedo

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I – Introdução

No ano de 17**, Paris então muito governado pela Pompadour e um pouco por
Luís XV, palpitava de entusiasmo com um escândalo original.

Por um instante, a grande cidade libertina distraía-se dos seus desregramentos
habituais e esquecia a ordem dos Aphrodites e dos Hermaphrodites, e esquecia
as picantes palhaçadas de Taconnet e o obsceno macaco de Nicolet e os expressivos
fogos de vista de Torré, e esquecia Ruggieri com a sua exibição de pernas
e colos importados da América, e esquecia les spetacles pyrrhiques e o Wauxhall,
e esquecia as velhacas e célebres representações do barão d’Esclapon e da
duquesa de Mazarin, e esquecia-se até de ouvir as pilhérias da magra, feia
e adorada Guimard, para só ter atenção para o novo escândalo que acabava de
surgir inesperadamente.

Era o caso que o famoso pregador La Rose tinha como todos os anos, de pregar
o seu sermão da quinta-feira santa na capela real, e fôra acometido por um
formidável ataque de asma, justamente na véspera dêsse dia. Escreveu logo
ao vigário-geral, seu amigo particular, dando-lhe parte do fato e pedindo-lhe
que, sem perda de tempo, tratasse de descobrir alguém que o substituísse.

Ora, o caso era deveras apertado! Quem teria a coragem de ir, à última hora
substituir La Rose no púlpito da capela real, num dos sermões mais importantes
da quaresma?. . .

Substituir La Rose!… La Rose, “o segundo Bossuet”, como lhe chamavam seus
inúmeros admiradores! La Rose, o amimado pregador da côrte, o protegido de
Antoinette Poison, o querido tanto por parte dos Molinistas como por parte
dos Jansenistas, o aclamado por todo o alto e baixo público de Paris! La Rose,
o indispensável! La Rose, o insubstituível!

E era preciso que êle com efeito estivesse deveras doente, para faltar ao
sermão de quinta-feira santa, porque La Rose prezava muito aos seus triunfos
na tribuna sacra, e não esperdiçaria fàcilmente uma boa ocasião de orar perante
o rei e tôda sua côrte de fidalgos e tôda a sua côrte de letrados.

Entretanto, sabia-se também que La Rose, desde que sentisse a menor alteração
na voz, não seria capaz de falar em público, nem à mão de Deus Padre, porque
era precisamente na maneira especial de jogar com a sua bela e sedutora voz,
que consistia o grande segrêdo dos seus incomparáveis triunfos.

É inútil dizer que, por melhores esforços empregados, nenhum pregador se
descobriu, bom ou mau, que quisesse ir tomar o lugar do querido mestre. Davam-se
todos por igualmente atacados da garganta, como se a asma de La Rose, à semelhança
do que sucedia com o seu estilo oratório, se estendesse de improviso por todos
êles, desde o mais pretensioso até ao mínimo dos numerosos pregadores sagrados,
que nesse piedoso e alegre tempo enchiam os púlpitos de Paris com as suas
frases retumbantes e com os seus eloqüentes e artísticos soluços.

O rei aborreceu-se e chegou a franzir as sobrancelhas. Luís XV, se era folgazão,
era também devoto. E se era devoto era também homem de gosto exigente; não
compreendia uma quinta-feira santa sem La Rose. Além disso, tinha na véspera
abusado da sua suntuosa adega, e a melhor água de Selters para as suas ressacas
era ainda La Rose.

Que diabo! O caso era sério.

Empregaram-se os últimos recursos para descobrir alguém que, sem grande escândalo,
fosse capaz de improvisar um sermão digno da real ressaca; ofereceram-se bonitas
somas, fizeram-se as mais lindas promessas. O cabido inteiro agitou-se, remexeu-se,
sorveu consecutivas pitadas, esfregou mil vezes o lenço encarnado no nariz,
mas ninguém teve coragem para aceitar a espinhosa missão.

As salas do palácio arquiepiscopal pareciam formigueiros; as batinas esfervilhavam
irrequietas, entrando e saindo, trazendo e levando recados. Cochichava-se
daqui, cochichava-se dali, bichanava-se por todos os cantos e recantos do
palácio, sem nada se resolver que aproveitasse.

E, no entanto o tempo fugia e era preciso tomar uma resolução.

O arcebispo, já desesperado, ia estender o braço para tomar ao acaso o primeiro
dos seus sufragâneos, e ordenar-lhe que subisse ao púlpito e despejasse, com
um milhão de raios! um sermão qualquer, quando de improviso rasgou-se o reposteiro
da sala, em que êle se achava entre uma negra nuvem de batinas, e viu-se surgir
a veneranda figura de frei Ozéas, com as suas grandes barbas brancas e a sua
enorme calva de profeta.

Encaminhou-se diretamente para o arcebispo e disse-lhe, depois das reverências
do estilo:

-Comprometo-me, se mo permitirem, a apresentar hoje no púlpito da capela
real alguém a que irá dignamente substituir o padre La Rose.

Fez-se em tôrno destas simples palavras um profundo silêncio de pasmo e de
desabafo.

Bastava só, porém, a presença do frei Ozéas naquela sala do paço arcebispal
para levantar a suprêsa do cabido inteiro, porque todos lhe conheciam a vida
obscura e solitária, e todos sabiam que era muito e muito raro vê-lo fora
do seu modesto convento a não ser para algum ato de caridade.

Frei Ozéas era um homem singularíssimo, como mais adiante apreciará o leitor.
Havia vinte e tantos anos que em tôrno dêle se formara, de dia para dia a
mais sólida reputação de virtude e santidade.

De quem disporia o singular frade para fazer substituir La Rose?…

E começou logo o sussurro dos comentários.

O arcebispo, entretanto, tomara-o àvidamente pelo braço, e desaparecera com
êle pela porta que conduzia ao interior do palácio.

Pouco depois, descia frei Ozéas as escadas do paço, metia-se no carro que
o esperava à entrada do jardim, dizia ao cocheiro que tocasse depressa para
o convento de S. Francisco de Paulo, e daí a meia hora, atravessava o longo
pátio ladrilhado de pedra e subia a pesada escada do claustro, em que ele
se havia condenado a viver para sempre em dura penitência.

Apesar do tremor dos seus setenta anos, venceu ligeiro os extensos corredores
abobadados, galgou uma estreita escada que conduzia a um sombrio mirante,
e, tendo várias vezes volvido os olhos para trás, como se temesse ser acompanhado
por alguém, chegou-se a uma pequena porta inteiriça, e bateu três pancadas
sêcas com as falanges dos seus dedos ossudos e pálidos.

A porta abriu-se sem ruído. Êle entrou, e a porta fechou-se de novo, silenciosamente.

O lugar em que o venerando religioso acabava de penetrar, era uma triste
cela, sombria e espaçosa, com uma janela gradeada e fechada, e apenas frouxamente
esclarecida por uma clarabóia do teto. As paredes, nuas de alto a baixo, tinham
uma côr sinistra de osso velho. Em uma delas havia um grande nicho com a imagem
da Virgem da Conceição, quase de tamanho natural; a um dos cantos, uma negra
estante tôscamente feita, pejada de grossos alfarrábios amarelecidos pelo
tempo; no centro, uma mesa de madeira escura com um breviário em cima, ao
lado de uma candeia de azeite, um pedaço de pão duro e um cilício cru; junto
à mesa, um banco de pau

Ozéas fora recebido à porta por um mancebo de uns vinte anos, muito pálido,
ainda imberbe, vestido com uma esfarrapada batina de seminarista.

Não havia mais ninguém na cela.

O mancebo beijou-lhe a mão. Ozéas abraçou-o e disse-lhe depois, tocando-lhe
carinhosamente no ombro:

-Meu filho, vais hoje pela primeira vez atravessar as ruas de Paris e entrar
na capela real.

-Para que, meu pai?

-Para pregar o sermão de quinta-feira santa.

-Eu? mas o que vou dizer?. . .

-Vais dizer pura e simplesmente o que sabes e o que sentes a respeito da
paixão de Jesus Cristo. . . Não te preocupes com a multidão que lá encontrares,
não te preocupes com o que vires. Fecha-te contigo mesmo e fala como se conversasses
com o teu anjo da guarda. Abre o teu coração, quando abrires os teus lábios,
e deixa dele sair, imperturbável e cristalina, a tua alma de bem-aventurado.

-Bem, meu pai.

-Daqui a pouco virá a roupa com que tens de ir. Dentro de uma hora virei
buscar-te.

-Estarei pronto e às suas ordens, meu pai.

-Reza a Nossa Senhora enquanto me esperas. Adeus.

-Sua bênção, meu pai.

-Deus te abençoe.

E frei Ozéas tornou a sair, fechando-se de novo sobre ele a porta, silenciosamente.

II – Frei Ozéas e o enjeitado

As máscaras de hipocrisia que escondiam a corrupção da corte de Luís XIV,
caíram com a morte desse príncipe. Os fidalgos e cortesãs pareciam impacientes
por sair da forçada e falsa compostura, em que se mantinham durante a velhice
devota do Rei Sol.

Até aí fingiu-se ainda; daí em diante ninguém mais procurou ocultar os seus
vícios.

A ferocidade e a perfídia dos tempos bárbaros, os crimes do feudalismo, todos
os erros, todos os abusos e todos os desregramentos de um governo cínico e
perverso e de uma magistratura e uma jurisprudência feitas de ignomínia e
adulação, eis do que se compunham os costumes desse infeliz começo de século.

A administração da polícia criava e dirigia casas de jogo e casas de prostituição.

Paris era policiado por malfeitores, vestidos de farda. Só uma cousa divertia
o público:-a crápula.

Mas o que caracterizava particularmente essa época, era o dourado verniz
de elegância, com que o escol da sociedade de então disfarçava a libertinagem
mais desenfreada e brutal.

A duquesa de Bourbon, apesar de casada, vivia publicamente com Du Chayla.
Law levava a sua amante à corte. A princesa de Conti, filha do rei, posto
que devota, já velhusca e cheia de aparentes escrúpulos, confessava não poder
dispensar a consolação de seu sobrinho La Vallière. A outra princesa de Conti,
a moça, essa, a despeito dos ciúmes que mantinha pelo marido, só deixou o
seu amante La Fare, quando o substituiu por Clermont; a irmã dela, M’le de
Charolais, dava os mais terríveis escândalos com o duque de Richelieu. As
filhas do duque de Orléans, então regente, levaram mais longe a sua depravação,
porque tinham no próprio pai 0 principal cúmplice das suas orgias. A irmã
da duquesa de Bourbon, Mlle de la Roche-surYon, célebre pela sua beleza, não
se separava de Marton, estivesse onde estivesse, e ameaçava de furar os olhos
com um punhal, que ela trazia sempre na liga, àquela que lho roubasse ainda
que por um instante. Mme du Maire, tendo aliás como amante vitalício o cardeal
de Polignac, íntimo de seu esposo, disfarçava-se freqüentemente em regateira,
para correr as ruas e vielas de Paris em busca de aventureiros de todo o gênero.

O pior no entanto, estava no que não se pode contar nestas páginas. Toute
chair étail détournée de sa voie, como disse Voltaire a esse respeito, e como
o provaram com os fatos mais indecorosos as próprias delfinas de Luís XIV
e Mme de Maintenon, e o chevalier de Vendôme, e o Sr. de Chambonas, e, mais
que todos e que todas, a formosa duquesa de Chartres, que se recolheu ainda
moça ao convento de Chelles, não para se penitenciar dos seus pecados contra
a natureza, porém, sim, para poder, ali, naquele doce e obscuro viveiro de
almas adolescentes, agravá-los mais à farta e mais à vontade.

Frei Ozéas tinha nessa época vinte e cinco anos.

Havia feito seus estudos e recebera as primeiras ordens no seminário de Borgonha,
sua província natal; depois atirou-se para Paris, onde se ordenou, justamente
no começo da regência do Duque de Orléans.

Dotado de temperamento bastante sensual para arrastá-lo, e sem força na sua
fé para poder resistir à corrente de perdições desse tempo ele, se não foi
tão ferozmente devasso como Dubois ou tão friamente libertino como Dorat,
acompanhou todavia o exemplo dos seus confrades e com eles arrastou a batina
pelos antros mais escorregadios do jogo, da embriaguez e da prostituição.

Chegou a fazer parte dessas ridículas e terríveis sociedades secretas, que
infestavam o reinado de Luís XV, centros criados com o fim exclusivo de exercer
o gozo, mas o gozo requintado, torturado, burilado a ponta de agulha; gozo
como só se inventou nesse tempo, gozo à Chambonas e à Pompadour, de quem ele
tirou 0 estilo complicado e extravagante. Vintimille, então arcebispo de Paris,
devasso como os demais parisienses dessa época, mas enfim arcebispo, esteve
a ponto de mandar Ozéas para a Bastilha, como sucedeu com o padre Tencin,
com Adrien Aubert, com Chegny, Pierre de Galon e outros muitos religiosos
de sangue quente.

Mas quando Ozéas chegou aos quarenta e cinco a cinqüenta anos, começou a
cair em si, e pela primeira vez pensou na perdição da sua alma, tão comprometida;
e, ou fosse que os requintados prazeres lhe desfibrassem as energias da carne,
ou fosse que uma grande e miraculosa transformação moral se operasse com efeito
em todo o seu ser, o fato é que ele, fulminado de súbito pela consciência
dos seus pecados sem remissão, desabou em fundo arrependimento e protestou
nunca mais, nunca mais cometer a menor ação que de longe pudesse envergonhar
a sua responsabilidade de sacerdote.

Era tarde. Nada mais hipotético do que apagar um passado. Por mais brilhante
e intensa que fosse a luz do seu arrependimento, lá estava o gigantesco espectro
dos crimes cometidos, para antepor-se entre eles, e encher de sombra o remorso
aquela consciência de sacerdote pecador. Por mais sincera e convicta que fosse
a

sua nova lei de conduta, por mais leal e verdadeira a sua nova linha de virtude,
sua alma chorava perdida para sempre, porque para sempre se sentia corrompida
e suja.

Então Ozéas começou a dar-se todo, de espírito e corpo, à sua reabilitação.

Cegava-o ardente desejo de conseguir o seu fim.

Principiou por deixar de ser padre, para meter-se na ordem dos missionários
de S. Francisco de Paulo, denominados-“Os mínimos”. Fez voto de pobreza absoluta
e abriu mão de tudo, tudo que possuía; o que, aliás, não era pouco, porque
além dos seus bens de família, Ozéas metera-se a especular no jogo feroz que
Law criara sob a regência, e chegara a acumular uma bonita soma de seis milhões
de francos.

Desde então, noite e dia, hora a hora, instante a instante, a sua única preocupação
era expurgar a alma das passadas conspurcações. E nunca ninguém se mostrou
tão empenhado em reabilitar-se do passado. Por mais escabroso que fosse o
ato de piedade, Ozéas não desdenhava afrontá-lo, como se a sua fé, por muito
tempo adormecida, acordasse de súbito, à vida de sacrifícios e provações.

Quer onde houvesse soluços e dores, chagas e lágrimas a suster, aflições
a reprimir, ali estava ele apresentando os ombros para todas as cruzes, que
os seus semelhantes não pudessem suster.

A sua velha túnica, de sarja grossa e sem dobras, não lhe pertencia mais
do que ao primeiro mendigo que sentisse frio; o seu pão só lhe chegava à boca,
depois de rejeitado pelos que já tinham matado a fome; a sua luz só alumiava
o seu covil de santo, quando nenhum gemido suspirava na treva.

Para esse arrependido egresso, criado nas orgias do começo do século passado;
para esse arrependido devasso, que se embriagava com os restos do incestuoso
prazer do duque de Orléans, a febre do arrependimento converteu-se em loucura,
converteu-se numa nevrose que o arrastava de joelhos, com o rosto na terra,
a todos os delírios da fé, a todos os heroísmos da abnegação.

A peste de Marselha foi um dos mais brilhantes teatros para 0 seu desespero
de ser santo. Como um verdadeiro revolucionário do bem, fez dos farrapos do
seu burel uma bandeira de caridade e agitou-a pelos alcouces abandonados,
em que era vergonha entrar, ainda que fosse para socorrer os que morriam.

À última e mais leprosa das perdidas não negava sua boca o beijo da consolação,
enviado por Deus aos desamparados pelos homens.

E assim, no fim de alguns anos de arrependimento, Ozéas ganhara reputação
de santo; e, com efeito, se nenhum religioso até antes fora mais culpado,
nenhum também levou tão longe o esforço da sua reabilitação.

Mas, apesar de tamanhas provações, Ozéas não se sentia purificado. Sua alma
sangrava ainda, pedindo mais sacrifícios, e ele caía de joelhos, arranhando
as carnes do peito com as unhas, e suplicando a Deus que lhe inspirasse um
meio de resgatar-se, completamente, aos olhos da sua própria consciência vergonhosa.

Que meio poderia ser esse que ele exigia de Deus?

Eis ao que nem o próprio Ozéas seria capaz de responder.

Todavia, não cessava de pedir ao senhor misericordioso que lhe mandasse dos
céus uma luz guiadora do caminho da completa salvação, certo de que Deus,
onipotente e compassivo, havia de achar, nos segredos de sua bondade, recursos
para apagar aquela dor incurável e profunda.

Foi nessa conjuntura que ele uma vez de madrugada, saindo do seu convento
para uma piedosa excursão, encontrou à porta do jardim uma pequena cesta,
de onde um fraco e quase imperceptível vagido partia como de um berço.

Abaixou-se logo, apoderou-se da cesta, e verificou que dentro dela havia
uma criança do sexo masculino.

Um enjeitado!

Tomou-o nos braços.

Mas um enjeitado de quem?. . . Por aquelas alturas não lhe apontava a memória
qualquer pessoa que fosse capaz desse crime.

Além disso, porque o depunham à porta de um mosteiro, frio lugar onde só
havia alguns pobres religiosos sem recursos para nada?. . .

Era como se o lançassem ao surdo portão de um cemitério!

Qual seria a mães tão néscia, que, procurando passar seu filho às mãos de
quem o pudesse fazer viver, fosse procurar um lugar onde eram crime a voz
e o choro desses anjinhos da terra?…

Então uma estranha idéia acudiu ao espírito sobressaltado do infeliz frade.

Quem sabe, pensou ele; se esta inocente criatura, será um enviado de Deus?.
. . Sim! Sim! bem pode ser o Senhor misericordioso, compenetrado da sinceridade
do meu arrependimento e da amargura da minha dor, me enviasse dos céus este
meio de resgate para minha alma! . . . Sim! Sim! eu, que não consegui ser
um padre digno e puro; eu, a quem faltaram amparo e forças para lutar com
as tentações mundanas, tenho aqui, nesta pequena porção de carne imaculada,
o cabedal para fazer um sacerdote casto e sagrado, como eu devia ter sido
e não fui!

E Ozéas como que se encontrava a si mesmo, encontrando aquela criatura angélica.

Era Deus, sem dúvida, que o restituía ao berço e ao seu supremo estado de
pureza, para que ele começasse de novo a viver, armado, entretanto, para todas
as lutas.

-Sim! Sim! exclamou ele erguendo nas mãos trêmulas a criancinha, e cobrindo-lhe
os pés de beijos e de lágrimas de alegria. Sim! Sim! Desta cera virgem poderia
fazer um sacerdote digno de Deus! Obrigado, obrigado, meu Pai de bondade,
que ouviste as minhas súplicas e me enviaste do teu peito de amor um meio
de salvação!

E louco de contentamento, despiu sem hesitar o seu velho capote, envolveu
nele a criança e correu à casa mais próxima, para pedir que a ela prestassem
os primeiros socorros.

Logo que pôde, levou-a à igreja, batizou-a com o nome de Ângelo; depois tratou
de descobrir uma mulher honesta, que se quisesse encarregar da aleitá-la até
a época competente.

E, quando o pequenino Ângelo pode enfim dispensar os cuidados da ama, Ozéas
carregou com ele para o seu convento, e encerrou-o misteriosamente numa cela
ignorada e sombria.

A bem poucos dos seus confrades confiou o segredo do que ele chamava “a criação
do Messias da sua alma”. E, desde essa época, Ângelo viveu sem nunca sair
do convento e nem sequer chegar a uma janela para ver a rua.

Ozéas foi o seu companheiro, e o seu guia, e o seu mestre, e o seu pai espiritual.
Só o confiava a algum dos outros religiosos ou a algum professor do seminário,
quando as exigências do ensino assim o determinavam.

O sigilo da existência e da criação de Ângelo no convento, não foi quebrado
por nenhum dos frades que o conheciam. Uma cadeia de respeitoso interesse
formou-se em torno dessa criança, que todos eles acreditavam predestinada,
pelos mistérios do céu, a cumprir na terra uma alta e sagrada missão.

Ângelo cresceu, pois, fechado na sua religiosa estufa, sem ter nem ao menos
desconfiança do que se passava lá fora, nessa cidade do prazer e do vício.
Cresceu casto como uma flor, que as abelhas e as borboletas não alcançam.

Apenas conhecia a religião e a Bíblia. Até aos vinte anos, fez todos os seus
estudos e recebeu as ordens ao lado do pai espiritual. Mas tal era a confiança
que o velho Ozéas tinha no seu discípulo, que não hesitou em apresentá-lo
para substituir La Rose no sermão de quinta-feira santa na capela real.

Ângelo ia sair à rua pela primeira vez.

III – Virgindade no homem

Logo que Ozéas deixara a sombria cela do convento de S. Francisco de Paulo
e a porta se fechara sobre ele silenciosamente, Ângelo, em obediência às suas
ordens, ajoelhara-se defronte do oratório e começara a rezar.

Na sua alma inocente não passava a idéia da responsabilidade que o esperava.
Sem nunca ter saído à rua, sem conhecer Paris e os parisienses, não podia
desconfiar sequer do que era nesse tempo um sermão pregado na capela real,
defronte do rei e da corte.

Não sabia que nesse tempo, piedoso e devasso, fazia-se da religião um prazer
requintado, e que o púlpito era, como o palco, ou como o livro, ou como o
salão e o álbum, um meio de exibições de talento esquisito e complicações
de arte. Não sabia, o pobre Ângelo, que o pregador do que menos precisava,
nesse bom tempo do estilo equilibrado em cinco palitos, era de ser sincero
e convicto, mas sim de ter originalidade na maneira, graça na exposição da
frase, elegância nos gestos e naturalidade galante nos soluços e nos gemidos
de pecador.

Essa mistura do sagrado áspero com o profano macio, do prazer aveludado com
a devoção capitosa, produziu as célebres festas híbridas, que então se organizavam
em uma das salas das Tulherias durante a quaresma, e as quais deram gamenhamente,
o nome de Concertos espirituais.

Luís XV gostava de presenciá-las, sentado a um canto entre algumas formosas
mulheres, e bebendo vinho da Síria, que era o seu vinho predileto. Pestanejava
e sorria para todos os lados. Liam-se versos ternos e religiosos, cantavam-se
o Miserere, o De profundis, o Stabat, e outras cousas tristes, mas tudo com
muita graça e requebros faceiros.

Era o amor temperado com óleo cheiroso de Santa Luzia.

Havia sempre para estrear, no púlpito desses concertos, um ou mais jovens
eclesiásticos, sempre moços bonitos, aos quais, durante o sermão, serviam
água rosada e licor de violetas. E o que deles se exigia, era apenas voz doce,
olhar meigo, dentes bem claros, lábios vermelhos, rendas alvíssimas na camisa,
e mãos brancas de unhas limpas. Às vezes criava-se uma bela reputação e fazia-se
uma bonita carreira, só com uma palavra feliz ou com um gemido suspirado com
chiste em ocasião oportuna. O caso era que as gentis devotas se impressionassem.
E só se falava à meia voz, só se namorava a meio sorriso e só se andava lentamente
aos pulinhos, abafando os passos nos arminhosos tapetes a que Pompadour deu
o seu nome.

Ângelo, coitado, nada conhecia disso nem por notícia sequer; como igualmente
não conhecia o outro gênero de pregadores, não menos comum nesse tempo, o
do pregador terrível, de pulso forte e cabeça dura, que ia para o púlpito
de cacete escondido debaixo do capote, e cujos sermões eram por via de regra
uma descarga política e uma tremenda descompostura, contra o partido dos Jansenistas
ou contra o partido dos Molinistas, conforme a filiação do orador, e que,
em geral, acabavam também por soluços e gemidos, mas estes agora bem sinceros
e bem reais, e grossa pancadaria no átrio da igreja.

Até certa idade, Ângelo chegou a acreditar que o mundo se resumia no seu
convento, e que a humanidade se compunha apenas daquela meia dúzia de frades,
ingênuos e quase santos, que ele conhecia. Ozéas, com um cuidado enorme, um
zelo de guarda do Paraíso, isolava-o dos seminaristas e dos empregados do
seminário, e lhe não deixava cair nas mãos a mais inofensiva página de qualquer
livro que não fosse religioso.

E, no entanto, Ângelo era dotado de um poderoso talento de assimilação e
devorava sofregamente tudo, bom ou mau, que lhe davam para ler. As matérias
religiosas que plantaram no fundo do seu espírito, desabrocharam logo, produzindo
uma intrincada floresta de filosofia teológica, que abismava aos próprios
seus professores.

Aquela criança, diziam estes, estava destinada a fazer o verdadeiro renascimento
da religião cristã.

E cresciam os desvelos em torno de Ângelo, orçando já pelo fanatismo. Não
lhe permitiam olhar para o pátio do convento, onde havia uma criação de galinhas
e coelhos. Receavam, e com razão, que o espetáculo dos instintos procriadores
dos inocentes bichos despertasse no outro inocente idéias que a igreja reprovava.
Escondiam-lhe o próprio sol em dias de grande calor, como se a exibição daquela
vida que se derramava sobre a terra para fecundar com a luz germinadora e
benéfica, fosse bastante para acordar na carne pálida do seminarista a revolucionária
centelha do amor.

Entretanto, Ângelo bem pouco se impressionava com essas cousas, e tinha para
todas essas lubrificações com que a natureza estimula a vida, um profundo
olhar de indiferença, como se todo ele estivesse

perenemente voltado para a fria religião ideal e azul, em que os anjos, únicos
que a povoam e habitam, não têm idade nem sexo.

Não era uma criatura humana, não era um moço que ia entrar na adolescência;
era a sombra incolor de um obscuro beijo que se fizera carne, e que o crepúsculo
da tarde, pedia-lhe que o não deixasse corromper-se à sensual e perturbadora
luz do sol.

As vezes, ao cair da noite, quando a natureza parece abrir o peito, para
chorar em gotas de orvalho as misteriosas dores do seu parto de todos os dias,
ele o pálido enjeitado, que vivia à sombra das paredes sonolentas e úmidas
de um claustro, saía a passear pelo maltratado jardim que havia nos fundos
do convento. E aí, entre as cheirosas moitas das rosas silvestres, tépidas
ainda do derradeiro sol que as dourara no último poente, o seu vulto triste
e meigo transparecia, como um sonho de poeta ou um fugitivo devaneio de donzela.

Pobre Ângelo! De tudo que sua alma podia conceber, só uma cousa lhe não esconderam-a
Bíblia. E era com o auxílio desse poema quente e cheiroso como os perfumes
de Cedar, que ele, o infeliz, enchia de estrelas os seus devaneios de sonhador
impúbere.

Nesses momentos, o canto que o seu coração cantava chorando, e chorando lhe
fazia agitar da boca as pétalas trementes, era o Cântico dos Cânticos, o livro
do poeta rei, amante de todas as mulheres formosas do Oriente.

Ironia dolorosa! Ângelo, o casto, arrebatava-se nas asas da inspiração do
poeta de mil amantes!

“Eu durmo e o meu coração vela; eis a voz do meu amado que bate, dizendo:-Abre-me,
irmã minha, amiga minha, pomba minha, imaculada minha; porque a minha cabeça
está cheia de orvalho, e me estão correndo pelos anéis do cabelo as gotas
da noite.”

“Eu abri a minha porta ao meu amado, mas ele já se tinha ido, era já passado
a outra parte. A minha alma se derreteu, assim que ele falou: busquei-o, mas
não o achei; chamei-o, e ele me não respondeu.”

E Ângelo, quando estes versetes lhe vinham ao espírito, misturados com os
suspiros da vaga saudade, que ele mal definia e em que mal acreditava, caía
em fundas cismas, para as quais só havia uma consolação: -escrever. Não versos,
desses que o público exige dos poetas mundanos, porque Ângelo não conhecia
regras de arte, mas lançava sobre o papel frases como as que lia no livro
de Salomão, ao correr da pena, e impregnados da quente virgindade de sua alma.

Quem roubasse da escura cela as tiras de papel, esquecidas sobre a tosca
mesa de pinho, leria nas trêmulas linhas, aí traçadas todas as noites com
mão nervosa, estranhos pensamentos como os que foram o capítulo a seguir.

IV – Vem! Que te chamo!

“Amado da minha alma, aponta-me onde é que apascentas o teu gado, onde te
encostas pelo meio-dia, para que não entre eu a andar feito uma vagabunda
atrás dos rebanhos dos teus companheiros.

“O meu amado é para mim como um ramilhete de mirra. Ele morrerá entre meus
peitos.

“Meu amado, vem comigo pelos campos, dá-me a tua mão; que eu perfume nela
os meus cabelos e que eu sorva tremente o cheiro da tua boca, como a cabra
montesa que morde os lírios da ladeira.

“Tu és belo e forte como o cedro, suave como a ribeira, e tua voz é como
o gemido das pombas.

“As tuas faces têm toda a maravilha de um prado iluminado por dois sóis,
e onde os meus beijos, como um rebanho, descansam à sombra dos teus cabelos.

“Vem, amado meu do meu coração, que eu por ti definho de amor e morro de
tristeza.

“O amado do meu coração é bonito que nem essa cabra arisca, que grimpa à
tardinha pelos escaldados outeiros sem relva, e que de noite e de manhã a
gente não bispa mais. ele é como o veadinho branco, que corre mais depressa
e se some, se lhe querem pôr a mão em cima. ele é como aquilo que nós mais
queremos, e que não está dentro dos nossos braços e junto dos nossos lábios.

“Mas não, alma minha mentirosa, ei-lo que ali está ele, todo amoroso e rubicundo,
posto de pé por detrás da parede do meu quarto, olhando o meu leito pelas
frestas da janela, chorando de amor e estendendo a vista dos seus olhos por
entre as gelosias.

“Lavei os meus pés assentada no meu leito. Como os hei de sujar agora?

“O sândalo e a murta estão recendendo.

“Vem, amado de minha alma, as vinhas já puseram o primeiro cacho de seus
frutos, e as moças de Jerusalém estão dormindo à sombra das parras, para sonhar
com aqueles que as querem para amar.

“Eu só, amado das minhas entranhas; eu só, a mais mesquinha entre filhas
de Jerusalém, não durmo o sono da noite, e estou à espera que a minha vinha
amadureça e tome cor, para te puxar para meu lado e repartir contigo a minha
uva doce.

“Virás, que te chamo com as minhas mãos, e te abro meus peitos.

“Tu és, amado de minha vida, o escolhido do meu coração. Tua cabeça é como
a espiga de ouro que o sol beija de manhã, pensando que beija a mesma cabeça
de seu filho, os teus cabelos são como as fibras que as palmeiras choram,
quando lhe arrancam as pencas dos seus frutos que elas produziram. São leves,
macios, correntes e ondulosos, são como os cabelos do milho doce, e mais doce
que o mel gostoso da flor da banana.

“Eu te amo, porque tu és formoso. Mira-te, tu, nos meus olhos amorosos, e
verás se te mentem minhas palavras. Não me fujas como a ave que deseja a irmã
sozinha no ninho, sem o companheiro para cobrir os ovos. Teu rebanho não se
perderá na montanha, enquanto tu dormires com a cabeça entre meus peitos de
amor.

“Vem, amado meu. As nossas noites serão como os regatos tranqüilos, em que
se abrem os nenúfares, brancos e perfumados como sonhos de amor. Teus lábios
serão dos meus lábios, teus cabelos serão dos meus cabelos, teu seio do meu
seio, como a raiz é da terra, como a flor é da abelha. Vem, põe a cabeça em
cima de mim e dorme o teu sono, que eu também dormirei, mas desfalecida de
amor. Dá o teu último pensamento vivo para os meus lábios, para que eu o guarde
dentro de mim, e te o restitua depois na tua boca. Fala-me para dentro, e
minha alma te ouvirá cativa e amorosa.

“Conjuro-te, amado meu, que desças da montanha pelo teu pé e venhas até a
mim, que te quero. Traze tu o teu rebanho branco, e iremos, nós juntos, apascentá-lo
muito longe pelas campinas, até que morra o sol e a noite chegue sacudindo
os cabelos orvalhados de estrelas.

“Junta-te comigo, que eu sou o mel de que teus lábios gostam. Bebe a doçura
da minha boca, e tu me pedirás o favo inteiro.

“A asa procura a flor, porque a flor esconde o mel doce nos seus seios. Vem;
vem e fecha nas tuas asas de sol as pétalas do meu desejo.

“Desce donde estiveres, vem, que te espero eu, sem poder fechar o meu tormento,
enquanto não chegares para me amar.

“Mas quem és tu, amado de minha alma, que meus olhos te não distinguem por
entre as sombras da minha vida, nem meu braço te alcança, quando de noite
te busco nos meus sonhos?. . . Quem és tu, amada visão, que eu busco e que
me acompanha?. . . Quem és tu, que te evoco e me não vales, quando todo meu
desejo é que me desejes e me tenhas?

“Minha porta dorme tão aberta como meu peito. Meu leito não tem muros, e
meus braços não se cruzarão para o teu encontro, posto sejas tu o senhor e
eu escrava que te espera.

“Tu me reconhecerás na sombra, se chegares; basta que ponhas a mão sobre
minha carne. E isso será um selo para que tu nunca mais me percas.

“Vem, amado do meu coração! Vem! Vem, que toda eu te quero!”

E, no entanto, Ângelo era um inocente, ou, pelo menos, nunca tinha visto
uma mulher.

V – TRIUNFO INCONSCIENTE

Dotado, como ficou dito, de grande atividade intelectual e poderoso talento
de assimilação, Ângelo aos quinze anos já embasbacada os seus ingênuos professores,
com as argúcias das suas réplicas e com os engenhosos comentários que fazia
do Velho e do Novo Testamento.

Ozéas, cada vez mais profundamente convencido da procedência divina do seu
pupilo, guardava-o e escondia-o afinal com o respeitoso carinho e desvelo
com que se guarda uma relíquia consagrada.

E a crença de que Ângelo era um inspirado por Deus, foi ganhando o espírito
de todos que com ele praticavam no convento.

Havia com efeito no ar daquele pobre adolescente prisioneiro de um claustro,
alguma cousa que impressionava a quem o observasse de perto. Os seus grandes
olhos azuis, muito escuros, quase negros, tinham uma híbrida expressão feita
de inocência e perspicácia; eram vivos como os da águia, mas transparentes
e doces como os de uma criança, e tinham, ao mesmo tempo que deixavam transluzir
toda a virgindade daquela alma imaculada, súbitos clarões, Inteligentes, que
denunciavam um espírito agudo e forte. Na suavidade das suas faces de moço,
havia a sombra das duras penitências e das grandes vigílias místicas sobre
as páginas do breviário, ou defronte do altar da Virgem Santíssima, mas havia
também uma juvenil frescura de flor, dessas misteriosas e pálidas, que só
à noite desabrocham e recendem. A sua boca imberbe era um conjunto fascinador
de graça e de tristeza, seus lábios, um tanto cheios e sangüíneos, pareciam
todavia talhados mais para os beijos de amor do que para o frouxo balbuciar
das orações. Seus cabelos negros, crescidos à nazarena, como então usavam
os religiosos de França, derramavam-se-lhe em fartos anéis sobre a brancura
do pescoço e caíam-lhe em trêmulas madeixas de lado a lado do rosto.

Devia ter sido um rapaz muito forte, se não fora a enervadora clausura a
que o condenara seu infeliz destino. Era de natural esbelto e airoso, tinha
os dentes brancos e rijos, o queixo enérgico, o nariz feito de uma só linha,
a fronte alta e severa.

As macerações dos jejuns e das ásperas disciplinas não conseguiram desfibrar-lhe
de todo a sólida compleição com que a natureza o dotara. Apesar de tudo, era
ainda, nos seus cândidos vinte anos, uma garbosa e gentil figura, que havia
fatalmente de impressionar às damas sensuais da corte de Luís XV.

Efetivamente assim foi.

Conduzido até ao púlpito por seu pai espiritual, Ângelo, mal se mostrou e
percorreu com os olhos inexperientes o auditório que o aguardava ansioso,
um súbito rumor de simpatia percorreu toda a igreja. As mulheres, instaladas
nas tribunas, alongaram o pescoço para o ver melhor. O rei sorriu interessado,
e logo toda a sua corte sorriu também.

A capela, completamente cheia, palpitava de curiosidade. Paris elegante estava
todo ali, entre aquelas bonitas paredes de mármore cor-de-rosa, guarnecida
de florões e filetes de ouro rebrilhante. Sentia-se o tilintar dos pingentes
de cristal dos imensos lustres de mil velas, e sentia-se por entre o farfalhar
dos veludos e das sedas, o fremir dos leques de tartaruga e madrepérola, suavemente
agitados contra os adereços preciosos. O cheiro sagrado da mirra e do incenso
confundia-se no espaço com os voluptuosos perfumes do toucador.

Ângelo, imóvel, de pé, mãos pousadas no retordo do púlpito, olhos postos
no alto e lábios entreabertos, fazia a sua oração preparadora, inteiramente
alheio a toda aquela luzida e refulgente corte que o cercava.

Compreendia-se que sua alma, arrebatada no enlevo da prece, vagava naquele
instante pelos infinitos páramos do céu.

Toda a sua fé, toda a sinceridade das suas crenças e toda a pureza do seu
corpo e do seu espírito, vieram-lhe ao semblante naquele momento de profundo
êxtase.

Parecia um arcanjo em dulcíssimo idílio com a Divindade. Dir-se-ia que ele,
de um instante para outro, ia desprender-se da terra e partir lentamente para
Deus, como a própria suplica que lhe agitava as rosas da boca e se evaporava
como um perfume.

Quando as suas primeiras palavras saíram-lhe do coração, num doce murmúrio
de voz angélica, houve em todas aquelas pobres criaturas, estafadas pelo vício
e pela libertinagem, uma inesperada comoção que lhes umedecia os olhos.

E ele, sempre arrebatado no vôo do seu enlevo religioso, continuava a falar,
como se estivesse sonhando, cercado de uma nuvem de anjos.

A sua voz, de cristal e ouro, virgem e sonora, enchia o recinto, produzindo
naquele extático e maravilhado auditório o efeito de uma estranha música desconhecida,
que baixasse dos céus para acordar-lhe, no corrompido e morto coração, uma
idéia generosa e consoladora.

Foi geral e profunda a comoção. As mulheres arfavam, sem despregar os olhos
da encantadora figura de Ângelo. O rei deixara pender a cabeça sobre o peito
e cismava, possuído de uma expressão de bondade, que até aí ninguém lhe tinha
jamais visto. A condessa de Pampadour, debruçada no seu genuflexório de veludo
carmesim, tinha a fisionomia paralisada e parecia orar contritamente.

Entretanto, Ângelo falava sempre, e sempre alheio ao que o cercava. Suas
frases vinham-lhe aos lábios naturalmente, sem que houvesse nele a mais ligeira
preocupação de agradar ao público ou armar ao efeito. Era nada mais do que
a confissão do seu entranhado amor pelo mártir do Gólgota, um descrever de
dores cruciantes, que ele sofria dizendo-as ali, como se naquela ocasião as
experimentasse possuído de uma revolta de arcanjo fiel e cheio de piedoso
entusiasmo por esse Deus humilde, que abandonou o seu trono celeste para vir
padecer, na terra ingrata, como o derradeiro dos homens.

Falava de Jesus como se falasse de um desgraçado companheiro, a quem arrancaram
de seus braços para levá-lo de rastos por essas ruas, cuspindo-lhe sobre as
feridas, rasgando-lhe as carnes nas pedras do caminho, e matando-o afinal
num poste infame, onde se justiçaram os ladrões e os assassinos.

A sua dor era sincera, e por isso se apoderava do coração de todos que o
escutavam; tanto que Ângelo, ao terminar a prédica, lançando o derradeiro
lamento de desespero pela morte do Redentor, e pedindo a Deus que o fulminasse
também naquele mesmo instante, para nunca mais ter olhos, nem boca, nem ouvidos
para este mundo de maldades, viu erguerem-se todos em volta dele e um grito
de entusiasmo acompanhar as suas últimas palavras, como se de repente acordassem
em sobressaltos, depois da embriaguez em que os lançara aquela estranha e
capitosa eloqüência.

Mas, antes que tivessem tempo de apoderar-se dele, e antes que as damas descessem
das tribunas para felicitá-lo, já frei Ozéas, cioso do seu tesouro, arrastava-o
pelos corredores da sacristia e metia-se com ele no carro, mandando tocar
a toda pressa para o convento.

Quando o rei lhe mandou dizer pelo seu primeiro criado particular, o Sr.
de Laborde, que viesse à sua presença para falar-lhe, já a sege de praça em
que ele ia com o frade, havia desaparecido muito tempo antes.

VI – Um homem paro discutido por mulheres

O sermão de Ângelo foi um verdadeiro acontecimento, que logo se apoderou
da curiosidade de Paris inteiro.

Por toda a parte se falava em tal, e se comentava aquele pálido e meigo seminarista,
que vinha, da sombra silenciosa de um pobre mosteiro, abalar o coração de
toda a corte de Luís XV.

Discutiam-lhe os olhos, a boca, os cabelos. Falava-se do seu ar angélico,
da sua encantadora expressão de santo inspirado, e da maravilhosa doçura da
sua voz.

Formaram-se logo mil lendas a respeito dele, e sabia-se que o rei, depois
de lhe oferecer um lagar na capela real, o que foi imediatamente recusado
pelo velho Ozéas, propôs-se a assistir à sua missa nova, graça que não tinha
até aí concedido a nenhum outro iniciado, e prometeu também presenteá-lo com
as vestes e paramentos que o seminarista tinha de pôr nesse dia, o que equivalia
a dizer que Ângelo iria ordenar-se cercado de todos os esplendores.

E começaram, tanto os que presenciaram o famoso sermão de quinta-feira santa,
como os que apenas ouviram falar dele com insistência, a esperar o dia da
iniciação de Ângelo, para ter, ao menos, o prazer de ver esse imberbe e afortunado
pregador, que assim abalava escandalosamente o alto e baixo público de Paris.

Ângelo era o assunto de todas as palestras da rua e das salas. No teatrinho
que o duque de Orléans tinha no seu palácio de Bagnolet, célebre pelas cenas
licenciosas que aí se representavam, tratava-se já de fazer subir à ribalta
uma peça com o nome dele, na qual o duque desempenharia um dos principais
papéis.

No salão teatral da duquesa de Villeroi, onde o rei da Dinamarca viera uma
vez para ouvir declamar o popularíssimo Le Kain e MºClairon, pensava-se também
em montar uma comédia de assunto sacro, cuja ação se passava na capela real,
e cujo protagonista era um pregador de vinte anos.

E, assim, no teatro do barão de Esclapon, no da duquesa de Mazarin, no do
Sr. de Magnaville, no do príncipe de Condé, no da Guimard, e nas salas alegres
de Sofia Arnoud, pontos esses de reunião em que melhor se fazia espírito e,
com mais graça e mais picante maldade, se discutiam as novidades e os escândalos
do dia, era ainda Ângelo o assunto da palestra e o objeto de mil epigramas,
sátiras e trocadilhos.

Mas onde incontestavelmente o assunto despertou maior escândalo, foi no salão
da condessa Alzira, bela, cínica e espirituosa cortesã, célebre por ser nessa
época a mulher mais insensível e mais fria de Paris. Juravam todos que a formosa
condessa jamais sentira por ninguém a menor partícula de amor, e que o seu
melhor momento de alegria era quando, por causa dela, algum dos seus inúmeros
apaixonados caía morto em duelo ou metia uma bala nos miolos.

Começando pelo rei, que fora o seu primeiro amante, pertencera ela depois
simultaneamente, ora mais ora menos tempo, a toda a gente da corte capaz de
manter mulheres caras.

Tinha uma virtude: a ninguém enganava, porque, não só confessava francamente
ao seu dono da ocasião toda a sua insensibilidade, fosse lá por quem fosse,
como não repartia com um segundo aquilo que um primeiro houvesse arrematado
já e pago à vista.

Esta sinceridade original em uma pessoa das suas condições, valeu-lhe a estima
de alguns homens de espírito. De sorte que as quintas-feiras de Alzira eram
freqüentadas por boa roda de rapazes, e a gente se não aborrecia entre as
quatro paredes das suas riquíssimas salas.

Como fiéis, reuniam-se lá todas as semanas suas amigas, a cantora Sofia Verriére,
Gabriela Vanguyon, Margarida Duclos, o conde de Saint-Malô, Artur Bouvier,
e, principal e invariavelmente, o seu velho amigo, o único homem para quem
Alzira tinha às vezes um sorriso de amizade, o Dr. Cobalt, médico de nomeada,
que fazia algum ruído em volta do próprio nome com os seus estudos sobre o
materialismo, então apenas nascente em França.

E as reuniões eram boas quase sempre. Na imediata ao sermão de quinta-feira
santa, era Ângelo o assunto forçado em todos os grupos.

-Um triunfo! exclamava Sofia; um verdadeiro triunfo! Em alguns dias o tal
discípulo do velho Ozéas tornou-se quase tão popular como a Pompadour!

-É exato! confirmou o conde de Saint-Malô; depois de Bossuet, não se ouviu
em Paris uma prédica tão notável. Nem as melhores de La Rose!

-Ah! interveio Artur Bouvier; o sermão de quinta-feira foi com efeito uma
obra-prima no seu gênero! Vi desfazerem-se em pranto criaturas, a quem eu
supunha fosse impossível arrancar uma lágrima!

-Pois se até a Guimard chorou!. . . disse Margarida, mostrando os seus dentes
grandes como os de uma inglesa.

Bouvier replicou:

-A Guimard não admira, é uma mulher! Feia é verdade; magríssima, não há dúvida;
sarapintado de marcas de bexiga, ninguém o nega; mas afinal é uma mulher!
Comover, porém, o duque de Fronsac e o marquês de Sade até à lágrima. . .
isso é que é verdadeiramente extraordinário!. . .

-Pois esses dois monstros choraram?… perguntou Gabriela, afetando grande
surpresa. Oh! como hoje em dia a lágrima está ao alcance de todas as bolsas!
. . .

-Pois choraram. . . insistiu Bouvier. Tanto que a propósito Sofia Arnoud
disse que o jovem pregador, fazendo brotar água de tais rochedos, conseguira
maior milagre do que o seu legendário colega Moisés.

-Ah! suspirou Margarida. Não há dúvida que o talento sabe fazer todos os
milagres!. . .

O Dr. Cobalt, que a um canto da sala conversava com Alzira, mas aplicava
meio ouvido à palestra dos outros, exclamou de lá:

-Não! não! perdão! não foi o talento que fez o milagre, minhas gentis amigas;
não foi o talento, nem tampouco a ilustração teológico do jovem seminarista,
o que tão profundamente impressionou Paris…

Estas palavras do médico abriram na sala um silêncio de surpresa e indignação.

-Como? Pois o Dr. Cobalt tinha a coragem de negar talento ao pregador de
quinta-feira santa? . . . Oh!

O conde de Saint-Malô aprumou-se ainda mais sob os bofes bordados da sua
camisa de rendas. Bouvier cerrara os lábios revoltado, e Gabriela assentara
sobre o doutor o seu lorgnon de tartaruga.

-Negar talento ao pobre moço!. . . Com efeito!

Cobalt sorriu, levantou-se, e, indo colocar-se entre eles, respondeu com
a sua fleuma habitual, afagando o ventre:

-Sim senhor, sim senhor; não foi o talento, nem foi a ilustração do seminarista,
o que impressionou Paris inteiro. Há por aqui milhares de teólogos, muito
mais fortes na matéria e mais oradores do que Ângelo, que não conseguem abalar
um só dos seus ouvintes.

-Então o que é que foi?… interrogou a formosa Gabriela, sem abaixar o lorgnon.

-Uma cousa muito simples, minha querida senhora, uma cousa extremamente simples.
. .

Todos se aproximaram dele, vencidos pela curiosidade.

-Que foi – Que foi?-Que foi então?. . .

-A sinceridade, respondeu o médico.

-A sinceridade?. . . exclamaram em coro.

-Sim, meus caros amigos. A verdadeira convicção nas suas crenças, o verdadeiro
sentimento do que ele afirmou no púlpito. Foi só daí que lhe veio aquela poderosa
e dominadora eloqüência. Ângelo falou mais com o coração do que com a cabeça,
e só por isso Paris o ouviu tão comovido.

E depois de uma pausa:-Sim, porque é preciso confessarmos uma cousa, meus
idolatrados amigos: os parisienses de hoje dispõem de muito espírito e de
muita enciclopédia, mas, em questão de sentimento e de sinceridade. . . são
de uma pobreza franciscana.

-Não é tanto assim!. . . arriscou Artur.

-Nós, os parisienses de hoje, prosseguiu o médico, somos muito corteses,
muito engraçados, sim senhor, mas. . . falsos e hipócritas como ninguém. .
.

-Ora essa, doutor!. . . resmungou o conde com um trejeito de ressentimento.

Cobalt acrescentou, torcendo para baixo a linha fria da sua boca barbeada:

– Paris admirou em Ângelo o que Paris já não possui e só por isso considera
extraordinário. Foi o assombro do homem desfibrado e gasto, produzido pelo
homem ainda forte e perfeito. Admirou a fresca e delicada flor do sentimento,
que ele supunha há muito tempo extinta; admirou esse estranho Ângelo como
se admirasse uma raridade preciosa, uma das nossas armaduras dos tempos gauleses
por exemplo.

-Não sou dessa opinião! opôs Gabriela, voltando o rosto.

Alzira, que não deixara o canto do seu divã, ia cada vez mais se mostrando
empenhada no que dizia o médico. Agora tinha o cotovelo fincado na almofada,
a mão amparando o rosto, e os olhos espetados no teto.

-Era muito natural, continuou aquele; muitíssimo natural que, em meio de
uma sociedade devassa, em meio da França da Pompadour, aquele verbo sincero,
ingênuo, convicto e apaixonado, a todos fulminasse, como se fora ele raios
de luz vingadora enviada diretamente por Deus. Paris, meio eletrizado de Champagne,
havia adormecido embalado por uma canção de Bouflers, guinchada por qualquer
espalier do teatro de Audinot, e acordou estremunhado no dia seguinte à voz
cristalina e matinal de uma criança, que vinha repetir em linguagem bíblica
o que há quase dezoito séculos apregoavam em Galiléla os discípulos de Cristo.
É natural que se comovesse… e foi isso justamente o que sucedeu. Paris,
que há tanto tempo só sabe fazer uma cousa bem feita e com graça,-a orgia,-ficou
embasbacado defronte da casta e simples palavra de um pobre seminarista sem
pretensões. Nada mais justo! Mas o que lhes afianço, meus amigos, é que, se
o simplório do padreca visasse a qualquer efeito; se desconfiasse, ao menos,
da impressão que ia produzir no público, a ninguém teria comovido. Se ele
conhecesse a sociedade que hoje o aclama; se ele tivesse tido a menor aspiração
de glória; se ele não fosse, enfim, coitado! mais inocente e mais puro do
que a menina mais inocente de Paris, juro-lhe que não conseguiria o triunfo
que obteve. O choque foi grande, porque foi inesperado. Os parisienses morrem
pelo imprevisto e pela novidade; e ninguém, hoje em dia, lhes poderia proporcionar
melhor novidade, do que o singularíssimo caso de um rapaz de vinte anos perfeitamente
imaculado e puro!

-Mas, doutor, ele será com efeito tão puro como se diz por aí?… perguntou
Gabriela em ar de riso. Não creio!

-O que há de mais puro, confirmou o médico.

-Um homem virgem em pleno século dezoito! . . . Qual! disse Sofia Verrière,
soltando uma risada. Também não acredito!

-Nem eu! reforçou Margarida, sem rir.

-O Dr. Cobalt exagera com certeza. . . observou Gabriela.

-Não exagero, tornou o materialista; e digo mais, que ele nenhum mérito revela
com semelhante raridade, porque tal pureza não é obra sua, mas sim de frei
Ozéas.

-Mas, afinal, perguntou Alzira, saindo da sua abstração e encaminhando-se
para o doutor; afinal, qual dessas mil e uma lendas, que correm por aí a respeito
de Ângelo, é a verdadeira?

-Quais sejam as mil e uma, não sei. . . disse o médico, sentando-se no meio
do grupo; mas a verdadeira é esta que vou contar:

-Pois venha a lenda!

-Venha a lenda!

-Atenção!

VII – Frágil como uma lágrima!

O Dr. Cobalt. com o espírito alegre de que era dotado e com a sua pitoresca
e original maneira de contar as cousas, narrou às damas e cavalheiros que
se achavam no palpitante salão da condessa Alzira, a curiosa e singela história
de Ângelo.

Foi escutado com o máximo interesse. A formosa e fria dona da casa, essa
mulher que diziam de coração surdo a todas as ternuras e de olhos secos e
fechados para todas as dores, era todavia a que se mostrava presa dos lábios
do narrador, e a que mais avidamente lhe bebia as palavras.

-Ozéas, disse o médico, concluindo, queria enfim fazer um padre perfeito,
para poder dar alguém por si, quando, despido da traiçoeira carne, tivesse,
como sacerdote, de prestar contas do que praticara nesta vida. Queria fazer
um grande coração, muito forte e muito amoroso; amoroso para Deus, forte para
o mundo. Queria que o seu discípulo amado fosse uma torre de cristal, invulnerável
e incorruptível, mas tão alta e tão sólida que ligasse a terra ao céu e o
homem a Deus!

Dito isto, calou-se por um instante; depois sorriu para o atento grupo que
o cercava silencioso, e acrescentou, pondo-se de pé e abrindo os braços, na
galante reverência de uma quase mesura:

– Ora aí tem, meus adoráveis amigos, tudo o que sei de fonte pura a respeito
do singular moço, que tão formidável impressão deixou sobre Paris na quinta-feira
santa.

Alzira quebrou o seu silencio para perguntar, com os olhos fitos no médico:

-E ele, antes de quinta-feira, nunca então havia saído à rua?. . .

-Nunca, afirmou aquele. Fez todos os seus estudos e recebeu as ordens sem
arredar pé do convento, ao qual o seminário é anexo. Seus dias, desde a mais
tenra idade, foram todos, dedicados de corpo e alma aos livros santos e aos
misteres da igreja.

-Então é um ente perfeitamente puro? interrogou ela.

-Puro como um anjo.

-É extraordinário! exclamou Margarida, sem poder conter o seu entusiasmo.

-É inacreditável! disse Sofia, meneando a cabeça com um gesto de incredulidade.

Gabriela Vanguyon soltou um suspiro e deixou escapar esta frase, que fez
rir a sociedade:

-Um homem puro em Paris! A dois passas de nós!. . .

E o Dr. Cobalt, que saboreava o efeito da notícia da castidade de Ângelo
sobre aquelas mulheres, cujo olfato já de há muito se tinha esquecido do delicioso
perfume da flor de laranjeira, acrescentou, para alfinetar-lhes as fibras
da admiração:

-Um homem puríssimo, virginal! Imaculado como a Virgem Santíssima! Um homem
completamente inocente, sem a menor idéia do que seja sociedade, nem paixões
mundanas, nem sexos, nem. . .

-Nem sexos?! inquiriu Gabriela, escancarando os olhos, sinceramente pasmada.

-Nem nada! nada! nada! respondeu o médico, sorrindo e apertando os lábios.
Nada, minhas adoráveis pecadoras! Mas o que se chama “nada”!

– Estudava e lia muito, não é verdade, Dr. Cobalt?. . . quis saber Margarida
Duclos.

-Sim, mas só cousas sagradas. . . biografias de santos, anedotas religiosas
e dissertações espirituais. . . Ora, sucedeu por acaso que essa mísera criança,
que o mesmo acaso atirou às mãos do padre Ozéas. dispusesse das mais valentes
faculdades mentais, e, não conhecendo ela outro meio além daquele em que vegetou,
e, não tendo outro pasto para seu espírito além da doutrina cristã e da manhosa
teologia, deu-se todo inteiro a estas duas estéreis e sedutores senhoras,
e no fim de contas apresentou escandalosamente aquele imprevisto tipo, que
fez as nossas delícias da corte na quinta-feira passada.

-Ah! disse o conde de Saint-Malô; não há dúvida, porém, de que ele tem muito
talento oratório; é uma capacidade em matéria de religião. . .

-Qual! desdisse o materialista em ar de pouca importância. Acho que aquele
pobre moço é mais uma inteligência aproveitável que se perde, e mais um infeliz
doente que ganham os hospitais!

-E por quê?… exclamou Alzira vivamente.

-Ora! desdenhou aquele. Porque toda a sua ciência, se é que ele a tem, baseia-se
nos mais falsos princípios. A sua filosofia é bonita, não há dúvida, mas completamente
inútil. Não passará nunca de um metafísico. Construiu o seu edifício intelectual
sobre areia movediça; e no dia em que o primeiro sopro quente de vida real
cair-lhe em cima, lá se irá por terra a igrejinha! No dia em que a natureza,
indefectível nas suas leis, o chamar friamente à verdade das cousas e exigir
que ele cumpra com o seu destino fisiológico de homem, o seu próprio talento
há de revolucionar-se com o seu sangue, e ele terá de abrir guerra aos falsos
e arbitrários princípios em que o educaram. E então, o desespero e a decepção
daquela pobre vítima do visionário Ozéas. serão tamanhos e tão fortes, que
o desgraçado talvez não tenha forças para resistir ao golpe!

Alzira estremeceu.

-Infeliz. . . balbuciou ela.

Artur Bouvier tinha-se aproximado do Dr. Cobalt, e disse-lhe pousando-lhe
a mão no ombro:

-Pode ficar tranqüilo, meu amigo, que o inocente Ângelo não conservará por
muito tempo as suas penugens de anjo. A questão foi pôr o nariz à primeira
vez fora do convento, ainda que para pregar sermão; respirou este ar de Paris,
está pronto! Um átomo desta complicada atmosfera, composta da exalação de
todos os luxos e de todas as misérias, de todas as febres e de todas as paixões,
é o bastante para revolucionar-lhe o espírito e corromper-lhe o corpo até
à medula. Além de que, o rei, com certeza, já o tem de olho, e não deixara
escapar uma jóia tão rara; é natural que a cobice para a sua corte. Não dou
muito tempo para vermos o tal santinho de olhos bonitos entrando para o quadro
da capela real, com uma boa sinecura e um bom ordenado que lhe chegue para
ter carruagem e para pagar uma gentil preceptora, encarregada de completar-lhe
a educação. E juro-lhe que essa terá tanta paciência e tanta solicitude, quanta
teve o santarrão do velho Ozéas. mas para lhe ensinar aquilo justamente que
este lhe não quis velar. . .

-E não será difícil encontrar quem se queira encarregar de completar-lhe
a educação.. observou Sofia; porque, segundo a opinião geral, o tal anjo de
pureza é notavelmente simpático. . .

-Sim, tornou Cobalt, mas para isso era preciso que o “Santarrão”, como disse
aqui o nosso Bouvier, não estivesse de olhos bem abertos.

-Ora! opôs Margarida por detrás do seu leque; o velho Ozéas tem mais de setenta
anos! Já deve estar com a vista curta. . .

-E as pernas trôpegas. . . acrescentou Gabriela.

-E não viverá eternamente. . . completou Sofia. Se o santinho não tiver por
si outra guarda, pode ir desde já rezando por alma da sua virginal capela!.
. .

-Sim! apoiou o conde. Não há dúvida que está aí, está cantando a primeira
missa e entrando logo em seguida para a capela real. E há de fazer carreira!

-Pois engana-se, caro conde, acudiu o doutor; engana-se redondamente. Ângelo
não entrará para o quadro da capela real, posto que o rei já o convidasse.
O velho Ozéas. tenciona carregar com ele para Roma, depois para Jerusalém,
com o fim de alargar-lhe quanto possível o cabedal das suas luzes; e, quando
o rapaz estiver bem homem, bem forte, completamente desenvolvido, então o
velho Ozéas o atirará sobre Paris, opondo o discípulo como um terrível protesto
vivo contra a grande e desenfreada decadência moral dos nossos tempos. Conta
que a luta se travará um dia afinal, tremenda e sem tréguas. De um lado, o
invencível apóstolo, fechado na armadura da sua virtude e armado até aos dentes
com a sua sabedoria divina; do outro lado, Paris, Paris friamente inabalável
nos seus vícios e na sua libertinagem, Paris crápula, Paris abjeção, Paris
lodo!

-Ah! essa luta há de ser fatal! disse Artur Bouvier no meio do silencio dos
outros.

-Não! acrescentou o materialista, perdendo por um instante a sua fleuma natural
e deixando escapar dos olhos uma estranha cintilação, que lhe transformou
o ar bondoso da fisionomia. Não há de ser com súplicas e sermões que a França
se resgatará, mas a metralha, a canhão e a ponta de baionetas!

-A sangue?! exclamou o conde.

-Sim, a sangue. . . confirmou o médico, sacudindo a cabeça.

E calaram-se.

O sorriso havia desaparecido de todos os lábios; as mulheres tinham desmaiado
de cor ligeiramente. Cobalt acrescentou em voz cava, como se falasse consigo
mesmo:

-O que talvez não esteja longe!. . .

E um indeciso sobressalto agitou-lhes o sangue e oprimiu-lhes vagamente o
coração, nem que naquele momento entrasse ali, como um sopro pressagio, agitando
as cortinas da sala e empalidecendo a luz das velas, um clarão vermelho vindo
das bandas setentrionais da América.

Era o anélito da revolução que se aproximava lentamente da França.

Se prestassem ouvidos, quem sabe? talvez escutassem um surdo ruído subterrâneo:
Diderot e d’Alembert abriram já a sua mina por debaixo da terra, para depois
Voltaire lançar-lhe fogo.

Só Alzira não parecia sobressaltada. Encaminhando-se para o Dr. Cobalt, tomou-o
pelo braço, afastou-o para um canto da sala e perguntou-lhe, reclinando no
ombro dele a sua formosa cabeça:

-Já sabe qual é o dia marcado para a missa nova do padre Ângelo?. . .

– Segunda-feira.

-Onde?

-Em Notre-Dame.

-Quer ir comigo?

– Com mil desejos, minha encantadora amiga.

– Obrigada. Iremos juntos.

VIII – Fulminação

No dia marcado para a missa nova de Ângelo, a catedral de Paris, onde devia
ela efetuar-se, começou desde muito cedo, a encher-se de gente de todas as
classes, desde a mais alta até à mais baixa camada social.

Iria o rei, e com ele lá estaria, sem dúvida, a corte em peso. A corte arrastaria
o que de mais brilhante houvesse no alegre círculo das loureiras; estas, por
sua vez, chamariam atrás de si um mundo de namorados, de poetas, de artistas
e folgazões, aos quais acompanharia espontâneo o povo, sempre curioso e ávido
de festas.

Num dos longos corredores laterais da sacristia, corredor abobadado e feito
todo de pedra, o Dr. Cobalt conversava tranqüilamente com um padre velho chamado
Azarias, e com um sacristão que se mostrava muito entusiasmado com a escandalosa
e original fortuna do seminarista.

O médico não tinha perdido a sua calma habitual; dir-se-ia que ele estava
ali mais para observar do que para se divertir. Com os seus frios lábios sempre
contraídos, parecia abstrato e afagava o queixo escanhoado, cheirando de vez
em quando uma pitada. O sacristão, esse não ficava quieto um só instante,
ia e vinha de carreira, furando por toda a parte, e procurando saber quem
estava na igreja.

-Chih! exclamava ele esfregando as mãos defronte o padre Azarias. Que furor!
Que furor! Não imaginam que de gente cada vez mais chega, para assistir à
missa nova do discípulo de frei Ozéas! Já vi a Sr.a marquesa de Vandenesse
e a sua encantadora irmã: a Sr.a De Conti, a Sr.a condessa de Laranguais,
de quem dizem que o rei. . .

E interrompeu-se para declarar, dando um salto e apontando para uma das portas
por onde se via quem chegava:

-Olhem! Olhem! ali vai o poeta Bouflers!. . . vai com o conde de Saint-Malo
e com o cavalheiro Artur Bouvier. Agora entrou a Sra. marquesa de Tourneles!

-Ora! disse Azarias. Pois se até a rainha, que agora pouco sai à rua, aposto
que há de vir!. . .

O sacristão, depois de novas carreiras e novo esfregar de mãos, veio segredar
quase ao ouvido do padre:

-E veio também, reverendo, o que há de mais espaventoso entre o mulherio
parisiense!. . .

-Ó maroto! resmungou o velho sacerdote. Alguém aqui te perguntou por isso?
Anda! Sai de junto de mim, tinhoso!

O sacristão voltou-se então para o médico, e disse, contando pelos dedos:

-Está aí a falada Dutê, com o seu eterno vestido cor-de-rosa e com o seu
atual amante, o duque de Durfort! Está aí Sofia Arnould com o seu cãozinho-
o duque de Chartres!

-Não te calarás?! bradou o padre velho, tornando-se vermelho.

O sacristão não fez caso e continuou, dirigindo-se ao médico, como se esse
lhe desse atenção:

-Vieram também as Barrière, com as quais confesso que embirro solenemente,
a Dervieux, de quem eu cada vez mais gosto, a Guimard, a Cleofile, e, mais
bela que todas, mais sedutora e mais diabólica, a célebre condessa Alzira,
a mulher mais insensível de Paris! veio com o seu amante destes últimos tempos,
o marquês de Florans!

-liste sacristão é entendido no gênero!… Observou o materialista a rir-se.

O padre resmungou, em resposta, coçando a calva:

-Ah! Paris! Paris das Pompadours!…

-Também acaba de chegar! exclamou o endemoninhado sacristão. Está na primeira
tribuna da esquerda, com o príncipe de Henin e o conde de Aranda.

O velho tornou a coçar a cabeça e disse com azedume.

-Não sei que tem a cheirar na casa de Deus semelhante gente!… Mas que quer?
Fizeram desta missa um divertimento! O culpado é o rei. Aposto que está aí
também o duque de Fronsac, esse maldito libertino, que herdou todos os vícios
de seu pai, o cardeal de Richelieu, sem herdar nenhuma das virtudes! Vem ao
faro das aventuras, o desavergonhado!

-E o que aí está de homens ilustres. . . observou Cobalt ao ouvido do padre.
Já avistei Favart, Gentil Bernard, Condorcet, Luchot, Fréron, d’Alembert,
Diderot, Beaumarchais, Mali, Lavoisier…

– Este seminarista, declarou o outro, é com efeito de uma fortuna inacreditável!
Creia, meu doutor Cobalt, que nunca vi tanta gente boa reunida numa igreja
para ouvir missa! E uma missa nova! É extraordinário!

Mas Ângelo nesse momento saltava do carro para entrar com Ozéas na porta
lateral da sacristia, e um rumor geral se levantava provocado pela sua chegada.

O Dr. Cobalt afastou-se de carreira, a ver se arranjava um lugar na capela,
em que devia ser a iniciação do adorado presbítero.

A capela, suntuosamente preparada para a cerimônia, refulgia, fulgurando
de luzes e de ouro, de alvas rendas preciosas, brilhantes colgaduras de damasco
e riquíssimas alfaias de mil cores.

Grande esplendor! Grande riqueza! Grande deslumbramento!

O altar-mor, onde Ângelo ia celebrar, parecia sair de dentro de um imenso
ramalhete, tão grande era a profusão de rosas, que as damas lançavam nos seus
degraus à medida que iam chegando.

As tribunas regurgitavam de mulheres luxuosamente vestidas, e venustamente
decotadas à moda caprichosa do tempo. Viam-se formidáveis penteados, em que
cintilavam diamantes por entre pérolas e plumas de cristal finíssimo.

Legros, então o mais querido entre os mil e duzentos cabeleireiros do bom-tom,
passara três noites em claro a aviar toucados, sem conceder mais de dez minutos
a nenhuma cabeça, e ocupando sob suas ordens, naqueles últimos dias, mais
de quinhentos ajudantes.

E toda aquela gamenha gente, com as suas fantasiosas roupas de sedas multicores;
as mulheres de saia e panier à Pompadour; os homens de casaca à la Ramponneau,
com as suas cabeleiras empoladas, de três e quatro canudos, à la Sartines,
grandes bofes de cambraia, chapéu de três bicos debaixo do braço e florete
à cinta; toda essa gente, aglomerada, sussurrante e irrequieta, apresentava,
no interior daquela austera e formosa catedral, o folião e brilhante aspecto
de um luxuoso carnaval da corte.

Conversava-se e ria-se.

Mas, de repente, calaram-se todos e todos se agitaram. Os que estavam assentados
puseram-se rápido de pé.

Era o rei que chegava, acompanhado por sua pomposa comitiva.

Com um gesto frio e distraído Luís XV fez um ligeiro cumprimento de cabeça,
e deixou-se cair na cadeira à frente da real tribuna, cruzando as pernas negligentemente
e bocejando de tédio.

O olhar que ele lançou para os sorrisos e para as reverências, que de todos
os lados 0 recebiam, foi um pálido olhar de desdém e cansaço. A ceia da véspera
devia ter sido prolongada.

Ouviram-se, então, do lado do coro, as primeiras notas, severas e plangentes,
do órgão.

Ia começar a missa.

Algumas pessoas preparavam-se já para a contrição. Muitos ajoelhavam, de
mãos postas e cabeça baixa. O silencio estendia-se respeitoso. Vieram do alto
vozes de cantores, e o vermelho cabido respondeu cá de baixo, também cantando,
junto às suas estreitas cadeiras de alto espaldar de madeira negra.

Ângelo, ricamente paramentado com as vestes talares com que o presenteara
o rei, tinha chegado ao altar, e, dentre uma nuvem de incenso, erguia-se no
êxtase da sua oração, com os braços abertos, os olhos postos na doce imagem
de Cristo crucificado. Estava belo como um jovem Deus!

Assim, nos seus suntuosos damascos bordados, parecia um anjo todo vestido
de ouro. E o seu formoso rosto era bem o rosto de marfim, de que falava na
Bíblia a triste e voluptuosa filha de Jerusalém, decantando o seu amado.

Ozéas servia-lhe de acólito. E a sua curva figura, detrás daquele moço, lembrava,
no trêmulo arrebatamento da contrição, o vulto de um velho rei louro, irmão
de Lear, guardando com os olhos ansiosos o seu lindo príncipe desejado por
todas as mulheres.

E, com efeito, sobre Ângelo, de todas as tribunas, desciam raios de tentação.

Alzira fitava-o como uma serpente paradisíaco.

A missa, entretanto, seguia o seu curso, inalteravelmente, por entre o vago
murmúrio dos colos que arfavam, não de piedade, mas de desejo e de amor.

Mas, quando Ângelo, terminado o divino sacrifício, erguia o olhar pela derradeira
vez, procurando o céu, seus olhos de repente se fecharam fulminados, e todo
o seu corpo estremeceu da cabeça aos pés.

Em vez do céu, seus olhos tinham encontrado o olhar de Alzira.

Ozéas, soltando um grito, correu para ele, tomou-o violentamente nos braços,
escondeu-lhe a cabeça entre as suas mãos trêmulas, tapando-lhe o rosto contra
seu peito.

E ficou por longo tempo a fitar, ameaçadoramente, a linda cortesã.

A multidão precipitou-se para junto dos dois eletrizada de curiosidade. Todos
queriam saber no mesmo instante o que havia acontecido.

Mas os sinos começaram a repicar alegremente; a orquestra tocava já uma música
profana; nuvens de incenso ergueram-se de novo. A missa estava terminada.

E Ângelo, sem levantar a cabeça do colo de seu pai, afastou-se do altar e
saiu da capela, vagarosamente, arrastando os pés como um cego.

Não se lhe ouviam os soluços, mas todo o seu corpo se agitava nas convulsões
do choro.

IX – UM OLHAR DE MULHER

Ângelo, de volta da igreja, assim que se achou no carro a sós com Ozéas,
abriu a soluçar, numa convulsa explosão de todo o seu ser.

Não podia, entretanto, determinar o que se passava em sua alma. Era uma agonia
estranha e dolorosa, que a revolucionava sem dizer porque; um íntimo martírio,
feito de vagas apreensões, que a atordoavam de terror por iminentes e desconhecidos
perigos.

Sem ter a menor idéia da vida comum, sem desconfiar sequer do maravilhoso
efeito que o seu sermão de quinta-feira santa produzira sobre o público, que
poderia o mísero compreender de todo aquele ruidoso entusiasmo que o cercara,
e de todos aqueles ávidos olhares feminis que o devoravam de curiosidade?

Seu próprio nome, ouvira-o ele repetido por tantas bocas ao mesmo tempo,
que agora lhe chegava à memória como o estribilho de uma singular canção,
falada em língua alheia.

Ozéas, ao seu lado, meditava sem erguer a cabeça, recolhido em profunda preocupação.

Não deram ambos uma só palavra durante a viagem, até chegar ao mosteiro.

Entraram na cela como duas sombras.

O presbítero foi direito ao altar da Virgem, caiu de joelhos defronte dela
e quedou-se a fitá-la, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, agora
silenciosamente.

Depois ergueu-se e começou a considerar, abstrato, tudo que o cercava ali,
como se visse aqueles objetos pela primeira vez.

E tudo aquilo nunca lhe pareceu tão miserável, tão ermo e turvo, como naquele
instante. Aquela dura prisão, onde surdamente se escoara a triste mocidade,
nunca lhe pareceu tão árida e tão mesquinha. Aquelas nuas paredes, empalidecidas
pelo tempo, nunca lhe pareceram tão apertadas, e aquele sombrio teto, tão
baixo e tão sufocante.

Olhou longamente para as suas velhas estantes carregadas de pesados livros
religiosos, olhou para a sua tosca e tranqüila mesa de estudo, para a sua
pobre enxerga de condenado, e ficou a considerar o cilício pendido da parede
junto ao altar da Virgem.

Ozéas observava-o, imóvel até ali, de braços cruzados, com uma inconsolável
e funda expressão de mágoa no olhar.

Afinal, foi ter com ele, e tocou-lhe no ombro.

Ângelo despertou sobressaltado.

-Então, meu filho, disse o velho com voz segura; continua a tua perturbação?.
. .

Ângelo não deu resposta.

-Vamos! Fala!

-Sim, meu pai, tartamudeou o pobre moço, volvendo para ele os olhos inocentes.
E peço-lhe que me deixe a sós; preciso concentrar-me, até voltar à minha primitiva
tranqüilidade. . .

O velho insistiu, segurando-lhe as mãos e fitando-o, como se procurasse arrancar-lhe
pelos olhos a confissão da revolta que lhe ia na alma.

-Mas como explicar semelhante perturbação?. . . exclamou ele. Pois então
justamente hoje, hoje que tua alma devia, melhor que nunca, resplandecer de
santo júbilo; hoje, que deste o teu último passo para chegar ao coração da
igreja; hoje, que deste o teu supremo voto; hoje é que te sentes conturbado
e aflito?!… Como explicar semelhante anomalia?!. ..

-Não sei. . . não sei. . . balbuciou Ângelo. Deixe-me ficar só, meu pai!
Deixe-me conversar com a minha pobre alma!. . .

-Mas tu nunca faltaste a nenhum dos teus deveres. . . tornou o frade. Tu
nunca pecaste, por palavras, nem por obras, nem por pensamentos. . . tu, que
foste por bem dizer educado pela mão de Deus, porque até hoje te não afastaste
uma linha do seu divino ritual. . . tu, que não tens sequer a idéia da culpa.
. . tu, és tão inocente e tão puro como no dia em que te trouxe em meu colo
para este convento. . . tu, que vieste das mãos de Deus para

as minhas, e das minhas tornaste hoje diretamente para as mãos de Deus…
porque tremes agora e por que me olhas desse modo, Ângelo?!

-Não sei, não sei, meu pai!

E Ângelo, como se receasse a traição dos próprios olhos, sentou-se no banco
e escondeu o rosto nas mãos.

Ozéas chegou-se mais para ele e disse, depois de contemplá-lo em silêncio
por algum tempo:

-Acaso estará o demônio a cercar-te, cobiçoso de tua alma tão branca e tenra?.
. . ou a tua perturbação será causada pelo eco profano dessa capital que te
admira e te aclama, e cuja multidão só hoje atravessaste pela primeira vez?.
. .

Ângelo ergueu-se e descobriu o rosto.

A sua fisionomia tinha-se transformado.

-Não sei! exclamou. Não posso explicar o que sinto, o efeito que me produz
o confuso rumor que ouço em torno de mim!. . . Não posso determinar qual é
o fato que me perturba, qual é o ponto de onde me vem esta agonia, mas sinto-me
espavorido e frio, como se estivesse abandonado sobre o píncaro de um rochedo
nu, em torno do qual se agitam todos os mares do globo. Sinto em derredor
do meu cérebro o terrível vozear desse interminável oceano… E no arruído
das suas vozes ameaçadoras, há como que a repercussão de um inferno sufocado
pelas águas! Afigura-se-me a cada instante que o oceano se vai abrir defronte
dos meus olhos, e que então o inferno aparecerá com as suas goelas de fogo,
pronto a devorar-me. Não compreendo, nem distingo uma só dessas vozes, não
consigo destacar uma palavra ou uma nota musical de todo esse murmurar de
espetros, não sei o que é que me preocupa e consterna, mas sinto a alma pequena
e transida de medo, como se em volta dela girasse rosnando um bando de leões
esfaimados!

E lançando os braços em torno do pescoço de Ozéas, terminou com uma explosão
de soluços, deixando cair a cabeça sobre o peito dele.

-Não sei o que me cerca! não sei o que me ameaça! Mas tenho medo, meu pai!
Tenho medo! Salve-me, por piedade!

-Tens medo! bradou Ozéas. Entretanto, hoje não devias ouvir, nem ver, nem
sentir outras vozes que não fossem as vozes do céu! Tua alma devia estar toda
voltada para ele e só a ele refletindo, como um grande lago quieto, cristalino
e límpido, cuja superfície não toldasse sequer a asa de uma abelha. . .

-Bem sei, bem sei, meu pai! soluçou Ângelo; mas, a despeito dos meus esforços,
outras vozes vinham ainda há pouco misturar-se às vozes celestiais, outros
perfumes perturbavam os aromas da igreja, outras idéias distraíam minha alma,
outro sangue me pulsava em todo o corpo! Afigurava-se-me até ter dentro do
peito outro coração que não o meu, dentro do cérebro pensamentos que me não
pertenciam!

Ozéas, ouvindo estas palavras, teve um forte sobressalto de terror, e apossou-se
de Ângelo como se o quisesse resguardar do mundo inteiro.

-Oh! bramiu ele, aterrorizado. É preciso que fujas, quanto antes, deste covil
de tentações diabólicas! É preciso deixar Paris, imediatamente, já! É preciso
que te refugies na paróquia mais humilde, mais pobre, mais miserável, e onde
só possas encontrar sacrifícios e dores a sofrer! E se aí mesmo, arredado
de tudo que for brilhante e fascinador, isolado das perdições mundanas, aproximar-se
outra vez de ti o demônio e fizer com que o sangue te volva ao cérebro, ameaçando
estrangular os teus votos sagrados, então agarra aquele cilício e fustiga
e martiriza com ele a tua carne, até que a faças calar para sempre!

E, chegando-lhe a boca ao ouvido, segredou-lhe misterioso, a tremer, a tremer,
convulsionadamente, como se naquele instante todo o seu passado se erguesse
de novo, para vir, ainda, como dantes, pedir mais punição para os desvarios
da sua juventude:

-E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas
venturas. . . bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas
carnes com as unhas até sangrares de todo o veneno da tua mocidade! Esmaga,
à força de penitência, toda a animalidade que em ti exista! aperta os teus
sentidos dentro do voto de ferro da tua castidade, até lhes espremeres toda
a seiva vital! Fecha-te, enfim, dentro do teu voto de castidade, como se te
fechasse dentro de um túmulo!

Ângelo soltou um grito e caiu de joelhos, balbuciando uma prece por entre
os seus soluços.

Ozéas acalmou-se e estendeu o braços abençoando-lhe a cabeça com a mão aberta.

-Sim, reza! disse; reza, meu filho, ao pai misericordioso o maior tempo que
puderes!

E depois acrescentou, inspirado por uma súbita idéia:

-O velho cura de Monteli acaba de sucumbir à peste que se manifestou nessa
pobre aldeia. Vou ter com o arcebispo e peço-lhe que te nomeie para lá. Em
Monteli não terás tentações!

E saiu vivamente, enquanto Ângelo, ajoelhado ao meio da cela, de braços e
olhos erguidos para o céu, em vão procurava alar-se como dantes no vôo dos
seus êxtases.

Era inútil. Seu pensamento caía por terra e ia arrastando-se até à esplêndida
catedral, à procura de um bem, em busca de uma ventura, que ele não sabia
qual era, mas tão doce e tão irresistível que lhe deixava alma e coração vagamente
enleados de desejo.

X – Acedo

Ângelo não conseguira concentrar-se.

-Mas que estranha perturbação será esta?… exclamou ele desistindo da súplica
e erguendo-se dos joelhos. Que teria eu feito para estar assim?. . . Que teria
eu cometido, sem consciência minha, para que a oração já não exerça no meu
espírito a eficácia consoladora que tinha dantes?. . .

E nada respondia às suas palavras ansiosas. E em torno da sua aflição era
tudo cada vez mais surdo, mais fechado e mais morto. Voz amiga não lhe acudia
nenhuma em seu socorro, quer viesse ela de dentro dele mesmo, quer baixasse
do céu para ampará-lo.

O mísero lançou em torno do seu abandono os olhos suplicantes, e deu com
a Bíblia.

Correu a buscá-la, tomou-a nas mãos sofregamente, levou-a aos lábios e beijou-a.

-Minha boa amiga! disse apertando-a contra o peito; minha fiel companheira
de tantos e tantos anos! foste tu a minha doce consolação, o meu refúgio carinhoso,
o meu confidente, o escrínio das minhas primeiras lágrimas e dos meus últimos
sorrisos; foste tu a discreta testemunha dos meus êxtases e o grande manancial
das minhas alegrias religiosas, vale-me também agora! vale-me tu, que me abrigaste
durante o longo tempo, em que vivemos os dois encerrados com as minhas mágoas
nesta prisão sombria! Ah! como eu era então feliz! . . . como tinha a alma
tranqüila e descuidosa!. . . Vale-me amada minha, que talvez consigas o que
a oração não pode!

E, sentando-se no banco, abriu a Bíblia sobre os joelhos e leu, ao acaso,
alguns versículos do primeiro capítulo que seus olhos encontraram.

Era o livro de Jó.

“A minha alma tem tédio à minha vida; soltarei a minha língua contra mim;
falarei na amargura de minha dor desconhecida.

“Direi a Deus: As tuas mãos me fizeram, e me formaram todo em roda, e assim
de repente me despenhas?

“Lembra-te, eu te peço, que com barro me formaste e que me hás de reduzir
a pó.

“Vida e misericórdia me concedeste, e a tua assistência conservou o meu espírito.

“Se eu pequei, tu me perdoaste na mesma hora; porque não permitiste tu que
eu esteja limpo da minha iniqüidade?

“Tu multiplicas contra mim a tua ira, e as penas combatem contra mim.

“Por que me tiraste tu do ventre de minha mãe? Oxalá que eu tivesse perecido,
para que nenhuns olhos me vissem. Que tivera sido como se não fora, desde
o ventre transladado para a sepultura.

“Deixa-me, pois, que eu chore um pouco a minha dor!

“Antes que vá para não tornar para aquela terra tenebrosa, e coberta da escuridade
da noite. Terra da miséria e do terror.”

Mas o seu espírito rebelado fugia da página da Bíblia, e punha-se a cantar-lhe
ao ouvido as palavras do velho Ozéas: “E, se apesar de tudo, encontrares alguma
mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas . . . ”

Ângelo estremecia, tornava à página e punha-se a ler. Mas aqueles lamentosos
versículos, que dantes o arrebatavam para Deus, agora nada mais conseguiam
do que deixá-lo num vago entorpecimento de desanimo.

E vinha-lhe uma frouxa vontade de morrer, ou pelo menos de envelhecer logo,
de repente, ali mesmo; um desejar que seu corpo se fizesse de súbito alquebrado
e frio, que seu cabelo, de preto e lustroso se tornasse branco e desbotado,
que os seus dentes amarelecessem, e que a sua fronte se despojasse naquele
mesmo instante, e abrisse toda em rugas.

Desejava refugiar-se covardemente na velhice, como dentro de um abrigo seguro
contra a feroz matilha que lhe rosnava no sangue. Mas a misteriosa frase de
seu pai, vinha-lhe de novo à superfície dos pensamentos furando e abrindo
caminho por entre todas as outras idéias.

“E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas
venturas, bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes
com as unhas, até sangrares de todo o veneno da tua mocidade!”

-Mas que estranhas venturas serão essas que as mulheres nos levam a sonhar?.
. . interrogou-se ele, erguendo o rosto e cruzando as mãos sobre a página
da Bíblia. Então a mulher não é também uma criatura de Deus?. . . um ente,
tão abençoado e protegido por ele, que até foi por ele escolhido para servir
de mãe a seu filho Jesus?. . . Pois tão grande honra se concederia a um ente
desprezível, posto neste mundo só para tentar os justos e desviá-los do caminho
da virtude?… Se a mulher é má, por que existe?. . . Se existe, por que Deus
a fez má e perigosa?.. . Por que me é vedado amá-la tanto quanto me cumpre
amar aos homens?. . . A ela ainda devia amar muito mais, porque é mais fraca,
mais mesquinha, mais amorosa e mais desamparada. Por que não devo amar as
mulheres?… Não serão minhas irmãs?… Não seremos todos filhos do mesmo
pai?. . .

Fechou os olhos, como se quisesse fugir a estes pensamentos; mas a idéia
da frase de Ozéas alastrava-se-lhe pelo cérebro, estrangulando todas as outras,
que nem a planta egoísta e daninha que não permite viver e crescer ao seu
lado nenhuma outra planta.

-Se a mulher é produto dos infernos. . . continuou ele a pensar; todos temos
em nós um pouco de Deus e um pouco do demônio, porque todo o homem nasce,
tanto do homem como da mulher. Não compreendo bem este fenômeno do nascimento.
.. nunca mo explicaram. . . Mas sei que o homem nasce da mulher, como Jesus
nasceu do ventre de Maria… Não mo explicaram, e todavia ensinaram-me a odiar
a mulher. . . Por que?

Nisto, entrou na sombria cela um alegre casal de borboletas brancas, e começou
a cruzar-se no ar, doudejando em volta da cabeça de Ângelo. Depois uma delas,
enquanto a outra a perseguia, foi pousar tranqüilamente na amarelenta página
da Bíblia, que ele conservava aberta e esquecida sobre os joelhos.

O presbítero pôs-se a fitá-la. A borboleta fugiu para o teto, à procura da
companheira, e ele a seguiu com a vista.

-Um casal de borboletas!… disse consigo. Duas!. . . Um par!. . . E por
que duas?. . . Por que andam juntas? Por que não veio uma só?. . .

Elas interromperam de novo o seu aéreo e irrequieto idílio, e foram pousar,
uma ao lado da outra, na pequena cruz latina que encimava o oratório da Virgem.

Ângelo continuava a pensar:

-Se o sexo é uma imundície condenada por Deus, por que Deus então fez as
suas criaturas aos pares, e por que fez o sexo?. . . Por que os homens não
continuam a nascer como Adão e Eva?… “Por castigo” diz a Escritura Sagrada…
Logo, a procriação não é um bem, é um mal; logo, o mundo inteiro é um purgatório,
e a vida um tormento!. . .

As borboletas começaram de novo a doudejar no espaço.

-E estas desgraçadinhas, interrogou Ângelo a si mesmo; estas também pecaram
no Paraíso, para que Deus as obrigasse a viver e procriar?. . .

As borboletas, redobrando de impaciência’ iam e vinham por toda a cela, à
procura de uma saída.

O padre compadeceu-se delas e quis dar-lhes o ar livre. Foi abrir a janela,
mas encontrou resistência; os gonzos oxidados não queriam acordar do seu ferruginoso
sono de vinte anos. Ângelo empregou toda a força e conseguiu afinal abri-la.

Um jacto de luz alegre e cantante inundou a fria prisão. Um mundo de vida
patenteou-se no ar, à doiradora claridade que vinha lá de fora.

O presbítero correu às grades da janela.

-Que belo! Que belo! exclamou ele, defrontando com extensa paisagem que se
descortinava aos seus olhos deslumbrados.

Estava a uns cem metros de altura. O ponto de vista era esplêndido. Primeiro,
o grande parque do convento, todo cercado de altos muros; depois, as ruas
da cidade, as praças e os jardins, e logo em seguida o Sena, coberto de barcos,
e afinal as longínquas árvores do campo, que se perdiam suavemente nas tintas
duvidosas do horizonte.

-Que belo! Que belo!

E vendo o casal de borboletas, que fugia espaço afora:

– Oh! Como vão ligeiras. . . Como brincam no espaço… Agora dizem um segredo…
Voam de novo… Desaparecem…

Abaixando o olhar, descobriu sobre um telhado um casal de pombos que arrulhava.

-Como são lindos! pensou. Como são brancos e amorosos! Agora se beijam! Que
belo! Que belo!

Na rua descobriu um homem de braço dado a uma mulher, levando ele um pequenito
pela mão.

– São casados!… A criança parece com ambos!… Oh! agora conversam… ele
tomou as mãos dela entre as suas; ela sorri, abaixa os olhos… São felizes!

Afastou-se bruscamente da janela. O espetáculo daquela tranqüila ventura
fazia-lhe mal, e quase o irritava.

Não sabia dizer por que, mas num íntimo e profundo malquerer, contra tudo
e contra todos, principiava a torturá-lo com uma dura e secreta agonia de
inveja.

– São felizes! são felizes! soluçou de punhos cerrados e com o coração oprimido.
E por que hão de eles rir e eu chorar! Qual é o meu crime?! Por que todos
nesta vida tem uma companheira e eu não a posso ter?! Por que hei de ser só,
eternamente só, quando a natureza deu um par a cada uma das suas criaturas?!.
. .

Mas caiu logo em si, e derramando pela cela um olhar de quem desperta de
traiçoeiro sonho, deu com a imagem da Virgem, que, de dentro do seu nicho
de pedra, parecia lançar-lhe um triste sorriso de ressentimento.

-Não! bradou ele, atirando-se de joelhos e arrastando-se até os pés da Santa.
Não estou só! nunca estarei só! Sou um padre e a minha esposa sois vós, Senhora
amorosíssima, lírio celeste, perfeição dos céus! Perdoai-me se por um instante
de delírio me esqueci do nosso amor!

E correndo à janela, bramiu, ameaçando lá fora, com a mão fechada:

-Oh! Bem te compreendo, natureza pérfida e sedutora! bem compreendo os teus
embustes! És pior ainda que a tua rival, a sociedade! Mas em vão te enfeitas
com as tuas galas e com os teus sorrisos de amor! Não me seduzirás, pântano
de lama coberto de flores! Não me corromperás, porque tenho na alma bastante
energia para governar os meus sentidos, e tenho o meu coração cercado por
uma muralha de fé! Atira-me aos pés o ouro do teu sol, atira-me o perfume
das tuas flores, o mel dos teus frutos, o mistério dos teus crepúsculos, a
música das tuas florestas, os deslumbramentos das tuas auroras! tudo será
baldado! Hei de resistir a todas as tuas provocações! hei de lutar contra
todos os inimigos da minha pureza, e, ou cairei morto, ou hei de suportá-los
a todos, um por um!

E sentindo-se arrebatado no delírio da sua fé, bradou como um louco:

-Venham! Venham filhos do inferno! Podem vir todos, que me encontrarão armado
e de pé firme!

Em seguida atirou-se de novo aos pés da Virgem e começou a rezar fervorosamente.

Quatro horas depois foi surpreendido pelo velho Ozéas, que lhe bateu no ombro.

Ângelo voltou para ele os olhos desvairados.

-Amanhã, disse aquele, partiremos de madrugada para Monteli.

-Estou às suas ordens, meu pai.

XI – Ângelo ameaçado

Era a antecâmara da formosa Alzira rigorosamente posta ao caprichoso gosto
da época.

Guarneciam-na móveis de madeira, esculpida e pintada de branco, com arabescos
de ouro, que variava entre o fusco e o luzente, formando torturados desenhos
de ornato. Pombas aos pares e anjinhos rechonchudos serviam de adorno às guarnições
das portas. Sobre peanhas e cantoneiras havia jarras de Sevres, com pinturas
assinadas, em que se viam pastores enfeitados de fitas azuis e cor-de-rosa,
na cinta, nos joelhos, no pescoço e nos tornozelos, tocando avena e flauta,
ao lado de roliças raparigas de saia curta listrada com sobre-saia de tufos
de seda clara, chapéu de palha, coberto de flores, uma corbelha enfiada no
braço, sapatinhos quase invisíveis, e um dos peitos à mostra, branco e levemente
rosado, como trêmula gota de leite sobre uma pétala de rosa.

As cortinas de estofo alvadio, adamascado de prata, eram arrepanhadas ao
meio por grandes florões de penas multicores.

Os espelhos tinham cercaduras de florinhas de porcelana, primorosamente acabadas
e coloridas com muita arte. Era uma recordação do luxo de Luís XIV.

Em cima do fogão, dourado quase todo, havia um grande relógio de Boule, tirado
por leões de ouro, entre várias lâmpadas e espevitadores também de ouro.

Nas paredes, forradas de uma tapeçaria azul celeste, destacavam-se suavemente,
por cima das portas e contornando os móveis, desenhos do mesmo azul um pouco
mais escuro, representando alegorias pastoris.

Prendiam a tapeçaria cordões de arame de prata entrançando, com grandes nós
de espaço a espaço, terminando em amplas borlas do mesmo metal, que afinavam
admiravelmente com os bordados das cortinas.

O tapete era felpudo e azul sombrio, à moda dos voluptuosos tapetes da Turquia.
Os batentes das portas eram forrados de veludo cor de pérola e fechavam como
tampas de estojo.

Alzira, ainda em penteador, estendida negligentemente num divã fofo e rasteiro,
fumava uma dourada cigarrilha oriental, e acompanhava distraída as espirais
do fumo com as pálpebras semicerradas.

O relógio marcava meio-dia. Ela acabava de levantar-se do leito, onde fizera
a sua refeição da manhã; uma pequena xícara de chocolate e dois biscoitos
de Reims.

Um rico dominó de seda negra, arremessado sabre uma cadeira, e uma meia máscara
caída sobre o tapete, diziam que nessa madrugada se recolhera ela depois de
um baile; e um pobre lenço de rendas preciosas, que jazia a um canto estraçalhado
em tiras, denunciava todo o frenesi de tédio com que a linda condessa, à volta
do baile, entrara nos seus aposentos.

Mas agora, sozinha no perfumado e tépido remanso da sua antecâmara, parecia
já esquecida dos aborrecimentos da véspera, alheia a tudo que a cercava, e
só entregue e abandonada, voluptuosamente, à memória do venturoso sonho dessa
manhã.

Pensava em Ângelo. Via o em meio dos esplendores da igreja, cercado de ávidos
olhares, surgindo, todo paramentado de ouro, dentre uma nuvem de incenso.
Via-o, formoso e cândido, de braços abertos, defronte do altar, com os olhos
virginais voltados para o céu. Via o trêmulo sorrir da sua boca de anjo, via
o melancólico balancear dos seus negros cabelos de meridional. Tinha-o todo
inteiro e todo vivo defronte da sua alma, pela primeira vez enamorada; tinha-o
ali, defronte dela, com a sua misteriosa palidez de flor de estufa; tinha-o
com aqueles lábios tão divinos e tão puros, com aqueles gestos donairosos
e tranqüilos, com aquela voz embriagadora, que parecia sair de uma garganta
de cristal e sândalo.

Tinha-o todo inteiro, e sentia-lhe até os perfumes do damasco da sua vestimenta,
o aroma do seu hábito e o bálsamo dos seus cabelos.

E Alzira espreguiçou-se com um profundo suspiro, de olhos fechados e lábios
entreabertos, dilatando o pescoço, como se procurasse alcançar com a boca
a sombra de uma outra boca fugitiva.

E deixou-se cair sobre a almofada do divã, suspirando de novo, inconsolável
na sua deliciosa mágoa de amor.

O que em Ângelo a fascinava daquele modo, o que a arrastava para ele tão
irresistivelmente não era, todavia, a singular formosura do pálido presbítero,
mas a sua fenomenal pureza de corpo e de alma; era aquela sedutora virgindade,
ligada a tão altiva e clara inteligência.

Ela, que vira rendida a seus pés a fina flor de espírito parisiense e a flor
brilhante de toda a fidalguia do seu tempo, e que nunca se deixara escravizar
pelo ouro dos nababos, nem pela vermelha glória dos heróis vitoriosos, ou
pela glória azul dos poetas endeusados; ela, que até aí jamais entregara os
pulsos, sequer por um instante, a uma dessas paixões, que fazem da pessoa
amada o dono e senhor exclusivo da nossa vida e dos nossos pensamentos; ela,
a insensível Alzira, a cortesã de mármore, sentia-se agora cativa de Ângelo,
o casto; e seria capaz de trocar, por um beijo daqueles lábios imaculados,
todos os seus tesouros, todas as suas jóias, todas as suas baixelas e todo
o valimento do seu corpo escultural.

Era a primeira vez que amava, era a primeira vez que todo o seu ser desejava
alguém; a primeira vez que ela se sentia pequena, humilde, miserável, defronte
de um homem; a primeira vez que se supunha capaz de ajoelhar-se aos pés do
seu amante e beijá-lo doida de amor, pedindo ternura como um cão pede carícias
aos pés do dono, suplicando-lhe que a fizesse morrer sufocada nos seus braços,
para que fosse dele a última vibração daquela frágil carne de mulher, e dele
fosse o extremo beijo daquela pobre alma apaixonada.

E começou a soluçar.

Era mulher pela primeira vez: pela primeira vez chorava.

Daí a instantes, agitou-se o reposteiro de uma das portas, e um negro, de
libré vermelha, entrou na antecâmara, com os braços cruzados e os olhos baixos.

-Que é, Amilcar?. . . perguntou Alzira sem tirar o lenço dos olhos.

-O Dr. Cobalt. .. respondeu o africano com a sua acentuação etíope.

-Cobalt, sim, pode entrar. . . E mais ninguém, ouviste? nem o marques!

O negro retirou-se. E o médico entrou pouco depois, risonho e prazenteiro
como sempre.

Foi logo beijar a mão da condessa e ficou a tomar-lhe o pulso.

-Então?… indagou, olhando-a no fundo dos olhos. O mal tem progredido?

Ela respondeu com um suspiro, e ofereceu-lhe um lugar a seu lado no divã.

Cobalt assentou-se e deu um estalo com a língua.

-Não estou nada contente com isto, sabe?… declarou ele, em ar de paternal
censura. No seu melindroso estado de sobreexcitação nervosa, produzida pelo
excesso dos prazeres, pode ser-lhe fatal este singular capricho da fantasia,
porque nunca poderá ser satisfeito. Ângelo, como homem, é um caso perdido.
. . não podemos contar com ele para nada E receio que esta circunstância traga
perigosas conseqüências. . . Ora, a condessa nunca amou, nunca sofreu esse
adorável gênero de loucura; o seu organismo não tem por conseguinte a menor
prática da moléstia de que agora se sente atacado, e aquilo que para outra
mulher nada valeria, pode nestas condições transformar-se em cousa muito séria!
. . .

-Mas que hei eu de fazer, meu amigo?

-Oh! Se fosse possível, receitava-lhe: “Ângelo em estado simples, duas doses
por dia, uma antes e outra depois do sono. E’ bom sacudir o remédio antes
de o tomar.” E pronto! Afianço que ficaria boa!

Alzira teve um gesto de impaciência, e o médico, percebendo-o, tomou-lhe
as mãos e disse, como se falasse com uma criança caprichosa e doente:

-O que há de fazer?. .. Ora essa! nada mais simples: evitar semelhante preocupação!.
. .

– É impossível!

-Viaje! Vá até à Itália! Corra o mundo inteiro, se for preciso; e leve o
marquês. . .

-Não me fale no marquês!

-Aqui é que não convém ficar, deixando-se consumir por um desejo, que naturalmente
nunca será satisfeito. .. Pelos seus olhos, percebe-se que já hoje chorou!
É muito bonito, não há dúvida!

-Não ralhe comigo, doutor!

-Ralho com razão! Sempre lhe perdoei as fantasias, mas. ..

-Sabe se é verdade o que disseram?

-A respeito de que?

-A respeito dele. Parte?

– Sim. É exato; parte para Monteli.

-Quando?

-Não sei. Por estes dias.

-Monteli! Irei também!

-Está sonhando, condessa?… Monteli é hoje o lugar de mais peste! Não irá,
que não consinto!

-Há de consentir e até há de acompanhar-me. . .

-Eu?! qual! -Nesse caso irei só. Vai ver! E foi ao tímpano e vibrou-o. Reapareceu
Amílcar.

-O marquês já está visível?… perguntou-lhe ela. Vai a ver, e, se estiver,
dize-lhe que faça o favor de vir cá.

Quando daí a pouco o marques, com a sua desafinada figura de homem muito
alto e muito gordo, entrou na perfumada antecâmara de Alzira, esta, antes
que ele tivesse tempo de apresentar-lhe uma galanteadora frase de saudação,
e antes que ele correspondesse ao cumprimento do Dr. Cobalt, disse-lhe sem
mais preâmbulos e no tom de quem dá uma ordem irrevogável.

-Meu amigo, de hoje até depois de amanhã o mais tardar, preciso de uma casa
de campo nas imediações de Monteli! Vá! não se descuide! É caso urgente!

O marques contentou-se, na sua surpresa, de fazer uma cara de assombrado.

E sorriu constrangidamente.

O médico também sorriu, mas sem nenhum constrangimento.

XII – Florans em telas de aranha

Na subseqüente quinta-feira achava-se no salão de Alzira a roda do costume,
e conversava-se ainda a respeito de Ângelo e da sua perturbação ao terminar
a missa em Notre-Dame, quando Amilcar apareceu para anunciar que a ceia estava
servida.

-Meus amigos, disse a condessa, não faço

Afastaram-se os comensais para a sala de jantar, e o Dr. Cobalt correu a
encontrar-se com a dona da casa.

-Sente alguma cousa, minha amiga?… perguntou-lhe solìcitadamente, apoderando-se
de uma das mãos dela.

-Não, doutor. E diga-me: sabe se ele partiu ontem, como estava previsto?

-Ainda não. Foi detido por uma febre.

-Moléstia grave?…

-Qual! Sobreexcitação nervosa, produzida naturalmente pelo fanatismo.

-E quando parte?

-Não sei, condessa, Logo que possa fazer a viagem. O marques já comprou a
casa?

-Já.

-Onde?

-Em Raismes.

-Bom.

E vendo que o marques se aproximava:

-Aí vem o seu verdugo. Vou tomar chá. . .

Afastou-se.

-Pensei que não nos deixassem um momento em liberdade!. . . disse o amante
de Alzira, encaminhando-se para ela.

-Ah! Estava aí, marques? Não vai à mesa?. . . perguntou a formosa mulher,
afetando um gesto de interesse.

Florans franziu a testa.

-Minha presença a incomoda, condessa, segredou ele, chegando-se mais. Impacientava-me
por me ver a seu lado. . . sozinhos. . .

-Está no seu direito…

-Não me fale em direito, minha flor. Não é por um direito que eu desejo privá-la
dos seus momentos de solidão . . .

-Então por que mais é?…

-Desejava que fosse por seu gosto, pelo prazer que a condessa, encontrasse
em conversar a sós comigo. . .

-Isso não é cousa que dependa só da vontade. . .

E como o marques fizesse um triste ar de ressentimento:-Não se pode queixar,
meu amigo, creio que, depois que estamos juntos, ainda não deixei uma só vez
transparecer má vontade em suportar a sua companhia . . .

-Suportar!. . . repetiu o pobre marques com um suspiro. Suportar!… eis
um termo que, só por si, patenteia toda a indiferença que a senhora tem por
minha pessoa. . .

-Suportá-lo é a minha obrigação, e faço por cumpri-la o melhor que me é possível.
. . Repito que o marques não tem o direito de queixar-se…

-Ah! suspirou ele de novo. Não! não tenho! Sou tão infeliz que nem esse direito
possuo. . . Juro-lhe, entretanto, que preferia menos zelo no que fala, e um
pouco mais de escrúpulo no que me diz às vezes. A franqueza, minha cara amiga,
em certos casos e usada de certo modo, é ofensa. . . e a senhora, creio eu.
. . não tem motivo algum para me ofender. . .

-Ah! que o senhor hoje está num dos seus maus dias! . . . respondeu ela,
meneando a cabeça com impaciência.

E, notando que ele se afastava, acrescentou a meia voz, como se receasse
detê-lo com as palavras:-Desculpe se o ofendi. . .

Mas o marques voltou, e ela então acudiu desabridamente: -Se a sua intenção
é dizer-me qualquer cousa, ou exigir de mim seja o que for, fale logo com
franqueza e por uma vez. Bem sabe que estou às suas ordens! . . .

-Às minhas ordens!… resmungou o infeliz. Às minhas ordens!. . . Tem graça!
Preferia estar eu às suas, como estou, mas que lhe não ouvisse a cada instante
palavras duras apoquentadoras. . .

Alzira perdeu a paciência.

-Oh! Basta! Exclamou. Que impertinência! Está sempre a queixar-se. . .

-Queixo-me com razão-retorquiu ele, por sua vez irritado, e fazendo-se vermelho.
A condessa bem sabe que a minha ligação com a senhora não foi um simples impulso
dos sentidos!…

-E que tenho eu com isso?… interrogou ela, apertando os olhos. Que tenho
eu com os motivos que o levaram a ligar-se comigo?. . .

O marquês, coitado! já se não podia conter, e prosseguiu com a voz trêmula:

-A senhora bem sabe que, para ficar a seu lado, tive de sacrificar tudo que
de melhor e mais sagrado possuía no mundo! Sabe que esse amor invencível que
a senhora me inspirou, foi a causa da morte de minha esposa e será a desgraça
de meus filhos.

-Mas o marquês também sabe e há de convir, replicou Alzira, que eu não tenho
culpa alguma em tudo isso! Há de convir que não dei o menor passo, nem empreguei
o menor esforço, para provocar esta união!. . . O marques viu-me um dia, apaixonou-se;
fez uma proposta, que eu aceitei porque me convinha. . . Nesse contrato não
me comprometi a amá-lo, comprometi-me apenas a não pertencer a outro, enquanto
estivesse na sua dependência. . . Ora, creio que até hoje ainda não faltei
com a minha palavra!. . .

-Tem razão, condessa… disse o marquês, já vencido. Tem toda a razão. Mas
tudo isso é porque a amo, muito, loucamente!

Quis tomar-lhe as mãos; ela não deixou, e respondeu virando-lhe as costas:

-Ama-me muito! Isso não diminui a impertinência de suas palavras! Não é a
primeira vez que o senhor me lança em rosto a morte de sua mulher e o futuro
de seus filhos!. . .

-Perdoe, Alzira…

– Se lhe não convenho, se lhe sou perniciosa, afaste-se de mim! Ninguém o
obriga a ficar a meu lado!

E arredou-se dele, para ir assentar-se em um divã. O marquês acompanhou-a.

-Se o traísse, vá! continuou ela; se lhe desse ocasião de ter ciúmes, ainda
vá; mas, que diabo, eu cumpro lealmente com o que prometi e, quando não estivesse
disposta a fazê-lo, di-lo-ia com franqueza, porque afinal sou livre! Como,
pois, admitir que me exprobre fatos, pelos quais não sou responsável O senhor,
se fez sacrifícios para obter-me, não foi sem dúvida com o intuito de praticar
uma boa ação, mas simplesmente para proporcionar a si mesmo um prazer que
lhe apetecia. Se fez sacrifícios, não foi por mim, foi pela sua própria pessoa;
e, se não tinha elementos para a empresa, por que a empreendeu?. . .

-Porque a amava!

-E amava-me, porque sou bela, sou moça e estou na moda! Ora, meu caro marquês,
há de convir que com isso não teve originalidade alguma!… (E soltou uma
risada de escárnio). Original seria se tivesse a

desvairada pretensão de ser, durante algum tempo, o amante exclusivo da condessa
Alzira, sem despender alguns milhões de francos!. . .

-A senhora bem sabe que não é o dinheiro despendido o que eu deploro. . .

-Pois eu com o resto nada tenho que ver!… São-me indiferentes a morte de
sua mulher e o futuro de seus filhos!. . . Quando o senhor se descuidou deles,
quanto mais eu! . . . O senhor que fosse melhor marido e melhor pai! Se há
um criminoso entre nós, não sou eu decerto: na minha qualidade de cortesã,
sou lógica, não me afasto uma linha do meu programa; o senhor é que se afastou
dos seus deveres, na qualidade de chefe de família. Queixe-se por conseguinte
de si mesmo e não me aborreça!

-E é a senhora quem me diz isto?!. . . exclamou o marques, abrolhando os
olhos.

-Certamente, respondeu Alzira, com toda a calma.

-No entanto, volveu ele, a condessa, sabe perfeitamente que eu a tudo me
resignaria, se a senhora fosse para mim um pouco mais amorosa… eu tudo perdoaria,
se. . .

-Perdoaria?. . . mas eu é que não quero o seu perdão para cousa alguma. .
. Não me sinto absolutamente culpada.

-Pois devia sentir-se! disparatou o fidalgo, fazendo-se outra vez vermelho.
Tenho o direito de ser tratado melhor nesta casa!

Alzira olhou para ele sem voltar o rosto.

-Minhas palavras são amargas?… disse. É o senhor quem as provoca. . . Quantos
aos meus atos- são irrepreensíveis!…

Esta última frase teve o encanto de transformar 0 marquês.

-Tudo isso, resmungou o queixoso, prova que a senhora nunca sentiu por mim
o menor vislumbre de amor . . .

Alzira soltou uma gargalhada sincera.

-Ora, marquês, não me faça rir! disse depois, cobrindo o rosto com o lenço.

-Não é debalde que todos a citam como a mulher mais insensível do mundo!

-Mas por que razão queria o marquês que o amasse? . . .

-Quando por mais não fosse, por gratidão. . .

A condessa, já séria, mediu-o de alto a baixo.

-Nunca lhe pedi obséquios! disse

-Mas aceitou-os. ..

-Engana-se!

-Com a senhora despendi o necessário para enriquecer cinco famílias!. . .

-Basta! (E ela desta vez bateu com o pé). Já me tardava que o senhor me lançasse
também em rosto esse dinheiro que supõe ter gasto comigo!

E encaminhou-se lentamente até ao tímpano e vibrou-o com força.

-A senhora vai pôr-me fora?… gaguejou o marques, fazendo-se pálido.

-Não, explicou ela, muito tranqüila. Vou ordenar ao criado que não o receba
quando o senhor voltar. Não tenho o direito de o mandar sair, mas tenho o
de nunca mais o receber!

Um raio não fulminaria tanto o marques como estas palavras. De pálido passou
novamente à cor de cereja. Hesitou um instante, limpou o suor da testa e,
afinal, foi ter com Alzira, e disse empregando todo o esforço para sorrir:

-A senhora dessa forma obriga-me a não voltar. .. (Ela sacudiu os ombros.)
E, para evitar que isso aconteça. . . só vejo um meio. . . é não sair mais
daqui . . .

Foram interrompidos pelo criado, que exclamou da porta, fazendo uma continência:

-O cavalheiro Bouflers!

-Bouflers?. . . repetiu Alzira.

-Bouflers aqui!… resmungou entredentes o marquês.

E acrescentou, dirigindo-se à condessa:

-Eis aí um. . . com quem a senhora não usaria da franqueza que usa comigo.
. .

-Por que não?

-Porque é moço, é belo e tem talento. . .

Alzira gritou para o pajem:

-Dizer-lhe que ainda desta vez o não recebo. . .

-Não lhe convém recebê-lo em minha presença condessa?. . .

-Ah! Sim?. . . disse ela.

E voltou-se de novo para o criado:

-Faze-o entrar.

O criado saiu.

-Mas eu, exigiu o marquês, quero ficar ali, por detrás daquela cortina. .
.

-Com uma condição, propôs a condessa, haja

o que houver, o senhor não se baterá com ele. . .

-Prometo, mas a senhora não lhe dirá que o ama. . .

-Ah! Não! Isso não direi com certeza. . .

-Pois então juro que me não baterei.

-Pode esconder-se.

O criado reapareceu, erguendo o reposteiro, para dar entrada ao satírico
e famoso poeta Bouflers.

XIII – AH, MULHERES! MULHERES

Bouflers entrou aos pulinhos. Estacou no meio do salão e fez a mais extraordinária
mesura que é possível imaginar, mesmo conhecendo os complicados e genuflexórios
salamaleques desse tempo galante. Os altos e empoados canudos da sua cabeleira
roçaram-lhe três vezes pelos joelhos, e o rabicho, guarnecido por um laço
de fita preta, três vezes se agitou no ar, como a irrequieta cauda de um cãozinho
fraldiqueiro.

Vinha vestido a rigor e com extrema elegância.

Trazia uma casaca de seda cor de pérola. forrada de branco e guarnecida de
botões de prata. Bofes de rendas de Veneza, nobremente salpicados de pó de
tabaco espanhol, saltavam-lhe do peito por entre um colete de veludo cor de
âmbar; tinha calções da mesma seda da casaca e meias bordadas a ouro, sapatos
de salto vermelho, e espada, não de barba de baleia, como então alguns usavam,
mas de bom e bem temperado aço de Toledo, com bainha de couro, forrada de
veludo branco, e guarda coberta de vistosa pedraria multicor.

Deu alguns passos para Alzira, e, assim que se viu defronte dela, perfilou-se
de novo e pôs a mão esquerda sobre o punho da espada, de modo a arrebitar
com a ponta desta a grande aba da sua casaca à la Ramponeau.

E, empertigado, conservou-se um instante com o chapéu de três bicos debaixo
do braço, e disse depois fazendo um passo de minuete:

“Ora graças a Cupido,

Neste empíreo da beleza

Enfim me foi permitido

Entrar, sem maior

despesa!…”

– Trazia a musa em sua companhia Bouflers?. . . Nesse caso devia ter pedido
licença para dois. . . -Descanse, formosa estrela; minha musa é rapariga discreta.
. . não contará ao marquês o que entre nós dois se passar aqui… -Discreta?…
-Não diz mal de ninguém. . . – Informe a pobre senhora de Dufort. . . -Uma
sátira inocente. . . -Oh! muito inocente! . . . – Tão inocente como o padre
Ângelo. -Ah! Já o conhece?. . . -Pudera!

E, armando de novo a sua coreográfica mesura, improvisou:

“Dizem que Paris

inteira,

Após o célebre sermão

Da sagrada quinta-feira,

Anda toda em

devoção…

Traz no peito as mãos cruzadas, Os olhos fitos no céu, Calça meias encarnadas,
Põe estola e solidéu!

Até consta que a

marquesa

De Pompadour vai além;

Quer obrigar sua alteza

A tomar ordens

também…”

E, chegando-se mais para Alzira, segredou intencionalmente:

“Que certa moça galante, Ouvindo a missa, fitou Por tal modo o celebrante,
Que o celebrante… corou!

E ficaria engasgado

Com o próprio corpo de

Deus,

Se não bebesse, coitado!

Duas gotas de Bordéus…”

-Isto é uma sensaboria de mau gosto!. . . declarou a condessa.

-Por que? Dar-se-á o caso de que a insensível e tirana condessa Alzira também
esteja com o peito ferido pelo casto pregador de quinta-feira?…

-Como “também”?… Há então muitas que o estejam?

– Oh! Oh!

“Foi o caso que o sujeito,

Tendo as damas convertido,

Tanto as fez bater no peito,

Que o peito lhes pós ferido!.. .”

-Fale antes em prosa Bouflers! O verso fatiga muito.

-Pois seja! exclamou ele, encaminhando-se para a condessa com um belo sorriso
de namorado, e disse tomando-lhe uma das mãos que levou aos lábios: Eu te
amo, Alzira, flor insensível! flor dos meus sonhos! flor das minhas desventuras!
e quero saber quando será o dia venturoso em que receba eu de tua formosa
boquinha . . .

-Um sorriso?…

-Não! Uma palavra de animação. . .

-Bravo!

-Bravo?!

-Não conheço melhor palavra de animação. . .

-Não zombe de mim, condessa!…

-Zombar de Bouflers!. . . Oh!. . . Se o conseguisse, vingaria meia humanidade,
tão ferozmente satirizada pelos seus versos maus e pelos seus maus versos!

-Conclua-se destes trocadilhos, que sairei daqui sem ouvir uma palavra de
esperança. . .

-Está falando sério, meu pobre amigo?. . .

-Juro-lhe que sim, condessa. Juro-lhe pelas musas, que a minha maior felicidade
seria merecer-lhe uma palavra de amor. . .

-E por que razão havia eu de amá-lo?. . .

-Ora essa! Por que razão é que os outros se amam? . . .

-Mulheres da minha espécie, caro poeta, só amam, quando as fascina qualquer
cousa extraordinária, muito extraordinária! Seja o que for, mas que seja-
extraordinária!

-Paciência!. . . Todavia, quero crer que o marquês de Florans nada tem em
si de extraordinário, e no entanto. . .

-É meu amante… Ah! O caso é outro! O marquês é muito rico… pode dar-se
a esse luxo!… Ama-me, daí porém a ser amado-vai um abismo!

-Se o marquês a ouvisse?. . .

Alzira sacudiu os ombros.

-Ele sabe disso tão bem como eu; a ninguém engano! . . .

-Nem ama, tampouco!

-Quem sabe lá?.. . Talvez…

-A condessa? Qual! Duvido! A senhora não é mulher! Não tem coração!. . .

-Então que sou eu?. . .

-E um lindo cofre de marfim rosado, com o competente orifício para receber
o ouro dos papalvos.

-E era para dizer-me semelhante galanteria, que o poeta há tanto tempo fazia
empenho de vir à minha casa?

-Não! Era na esperança de ser correspondido no meu amor. . .

-O cavalheiro às vezes não me parece um homem de espírito…

-Em questões de amor todos os homens são igualmente estúpidos!…

-Mas, valha-me Deus, Bouflers! por que razão havia eu de amá-lo?.. . O senhor
é um bonito rapaz, não há dúvida; está na flor da idade, não lhe falta talento,
mas. . . é só isso!. . .

-E acha pouco?. . . moço bonito e com talento. Tenho os encantos das três
graças-mocidade, amor e beleza, e ainda me sobra um!

-Não-dois-o talento e a vaidade.

-Ou isso!

-Mas falta-lhe o principal. . .

-O que não falta ao marquês. . . dinheiro?. . .

-Qual! O dinheiro não se conta. . .

-Não se conta?. . .

-Gasta-se!

-Então que me falta? Juízo, talvez. ..

-Ainda menos! O juízo é a negação do espírito! . . .

-Então não sei que me falta!…

-Sei-o eu! exclamou uma voz grossa.

E o marquês surgiu defronte de Bonflers, fulo e trêmulo de raiva.

-Oh! Oh! interjeicionou este, zombeteiramente e sem se alterar. Estava escondido,
senhor marquês?. . . Divertia-se a escutar-nos. . . Magnífico!

E voltando para Alzira:-Obrigado, condessa! Depois resmungou de si para si:

-Pagá-lo-ão bem caro!

O marques, sem poder domar a cólera que o sufocava, prosseguiu no tom em
que começou:

-A qualidade que lhe falta, senhor poeta, não é dinheiro, nem juízo; é prudência!
É grande temeridade dizer mal de quem quer que seja à própria amante dessa
pessoa!

-Não é só temeridade… respondeu Bouflers, pondo a mão na cintura e empinando
a cabeça: é insolência. Estou às suas ordens! Avie-se!

A condessa correra para junto de Florans.

-Lembre-se do que me prometeu!… disse-lhe ela rapidamente e em voz baixa.

-Só não me baterei. . . segredou o marquês ao ouvido da amante, se a senhora
não me fechar a sua porta. . .

-Não fecharei, marquês!

-Pois não me baterei, Alzira!

Bouflers, que durante este curto diálogo, media os dois com ar de desprezo,
entortando a cabeça e sacudindo a perna gritou para o marquês, como se falasse
ao seu cocheiro:

-Olá, senhor pregador de prudência, é esta que o aconselha a consultar a
sua amante, antes de pôr a limpo as injúrias que lhe fazem. . . Creio ter
dito bem alto que estou às suas ordens!

-Não me bato com o senhor… balbuciou o outro.

-Ah! Ah! escarneceu o poeta. Já o desconfiava! . . .

E calçando de novo a luva, que ele havia principiado a despir: – Pois chega-me
a vez de dar-lhe também um conselho: quando não se reconhecer com animo de
assumir dignamente a responsabilidade dos seus atos, meça melhor as palavras
e não se apresente como se apresentou defronte de mim!

-Insolente! bradou o marquês, avançando de punho fechado sobre Bouflers.

-Então!… interveio Alzira, metendo-se entre os dois.

-Mas este atrevido afronta-me! exclamou Florans.

-Pois é desafrontar-se! retorquiu o poeta. Para isso tem uma espada à cinta!

Alzira chegou os lábios ao ouvido do marquês.

– Se aceitar o duelo, disse-lhe; não ponha mais os pés aqui!

O fidalgo fez cor de cera e murmurou imperceptivelmente:

-Esta mulher despoja-me de tudo!. . .

Bouflers sorriu e acrescentou:

-Registre, condessa, mais esta qualidade a meu favor:-a coragem!

-Vale menos que as outras neste instante… desdenhou Alzira.

E tomando as mãos do marquês: -Em certos casos, o forte é aquele que resiste
à provocação. Obrigado, meu amigo! Poupou-me remorsos!… Ah! já os tenho
em demasia!. . . Creia que lhe estou grata!. . . Quanto ao senhor, cavalheiro.
. .

E voltou-se para Bouflers, fazendo-lhe um gesto de despedida.

-Obrigado! respondeu este. Antes, porém, de sair, permita que a felicite
pela bela escolha que fez para seu amante!… liste adorável palerma merece
bem uma cínica da sua ordem!

E pondo o chapéu na cabeça, encaminhou-se para a saída.

-Miserável! exclamou o marquês, correndo sobre ele.

-Infame! disse Alzira acompanhando-o.

Mas foram detidos pelo conde de Saint-Malô, Artur Bouvier, Cobalt e as damas
que acudiram lá de dentro em sobressalto.

-Que foi?!

– Que significa isto?!

-Bouflers!

-Um escândalo?!

-Que sucedeu?!

– Covarde! covarde! covarde! exclamou Alzira, procurando chegar até onde
estava Bouflers.

-Todos os teus insultos, respondeu este. armando a carreira para fugir, não
valem uma palavra, uma só, que qualquer homem tem o direito de atirar-te à
cara!

E rápido, chegando a boca ao rosto dela, segredou um termo que a fulminou.

E fugiu.

-Ah! gritou a cortesã, levando as mãos ao peito e cambaleando.

E correu ao marques para bradar-lhe, segurando-lhe o braço:

-Vá! Siga-o! Alcance-o ainda que no inferno! Não me volte aqui sem o haver
matado!

-Oh! Obrigado, condessa! exclamou Florans.

E, desembainhando a espada, desapareceu da sala e bateu pelas escadas, ligeiro
como um raio.

XIV – ERA O AMOR

Quando Bouflers chegou à rua, lançou para o palácio de Alzira um olhar de
indiferença e disse, cruzando a capa sobre os ombros:

-Ora! Não perdi grande cousa! Alzira e o marquês que vão para o diabo!

E depois cantarolou, seguindo em direção da tavolagem do conde de Charolais,
príncipe de sangue:

“Corramos ao

jogo,

Que o provérbio

diz:

Amor sem ventura,

-É jogo feliz!…”

Mas, ao dobrar a esquina, o marquês, que desgalgara a escada a quatro e quatro,
assomou à porta da rua e gritou-lhe, correndo:

-Olá! Ó poeta bêbado! Se não és um covarde, espera!

Bouflers voltou-se incontinenti e levou a mão aberta sobre os olhos.

-Quem é?!

Reconheceu o marquês, e perguntou com impaciência:

-Que queres de mim, basbaque?. . .

-Castigar-te, miserável, como se castiga um perro!

-Ah! Ah! Chegou-te afinal a indignação?. .. Ainda bem! (E desembainhou a
espada). Vá lá! Antes tarde do que nunca!. . . Já fizeste a tua oração, bruto?.
. . Não te quero despachar para a eternidade com a alma suja! Vamos! Dei-te
tempo de sobra!

-A rua é escura e deserta!… considerou o marquês. Não precisamos ir mais
longe. Aqui defronte da porta de Alzira, temos a claridade suficiente. . .

Aproximaram-se da porta, procurando colocar-se no foco da luz que vinha do
corredor.

-Vê lá onde queres que te fira, fanfarrão! exclamou Bonflers pondo-se em
guarda.

Artur Bouvier, o conde de Saint-Malô e o Dr. Cobalt tinham descido a escada
do palácio.

As damas o seguiram.

-Marquês, disse o conde, tem em mim uma testemunha.

-E eu por ti, Bouflers! exclamou Artur.

-E o médico, pronto! acrescentou Cobalt.

-Não é preciso!… faceciou Bouflers. De qualquer modo se mata o cão! . .
.

-Defende-te, poeta libertino! bramiu o marquês; porque a minha intenção é
matar-te!

O outro retrucou, aparando-lhe destramente os golpes:

-Antes guardasses tanto empenho para defender tua mulher, alma de Menelau!

E gritou, caindo-lhe em cheio:-Toma!

Florans desviou o tiro e fez-lhe pontaria de fundo. -Toma tu lá este. em
paga da tua insolência, bandido!

Mas Bouflers soltou uma risada, e, depois de um salto para trás, desferiu-lhe
um bote certeiro, que lhe atravessou o peito.

-Ai! gemeu o marquês

E caiu estatelado no chão.

-Já?… perguntou o poeta, inclinando-se. É

pena! Principiava a tomar interesse pela brincadeira!

E tirou do bolso o seu lenço de rendas, para limpar a lamina da espada que
escorria sangue.

Alzira acudira com um grito e lançara-se de joelhos ao lado do amante, beijando-lhe
a fronte.

-Meu bom amigo, dizia entre soluços; perdoe-me! perdoe-me! Oh! Quanto sou
desgraçada!

Bouvier, o conde e o médico aproximaram-se também e cercaram o ferido.

-Ai! Eu morro! gorgolejou o marquês, aflito virando a cabeça de uma banda
para outra.

-Agradece-o a esse demônio que aí tens a teu lado! . . . exclamou Bouflers,
lançando fora o lenço com que limpara a espada.

E voltando-se para as damas: -Boas noites, gentis mulheres!

Depois falou aos outros: – Cavalheiros, boas noites!

E bateu no ombro de Artur:-Obrigado, Bouvier!

Em seguida traçou a capa e perdeu-se na sombra da rua, cantarolando de novo:

Corramos ao jogo,

Que o provérbio

diz:

Amor sem ventura,

-É jogo feliz!…”

E desapareceu.

-Marquês! marques! chamava o conde de Saint-Malô, enquanto Alzira, desesperada,
levantava soluçando os braços para o céu.

-Ó meu Deus! ó meu Deus! lamentava-se ela. É mais um que me vai pesar na
consciência! É mais um que morre por minha causa!

Nesse instante, do lado contrário ao que Bouflers tomara, surgiam na treva
da noite dois vultos negros, que lentamente se aproximavam, silenciosos e
tristes como duas sombras.

Vinham envoltos, da cabeça aos pés, em grandes capas talares, que lhes davam
ao aspecto um tom sinistro.

-Anda, meu filho. . . dizia um deles ao companheiro. Tem resignação, e apresse
os passos, que precisamos alcançar a diligência de Raismes, para chegarmos
a Monteli antes de raiar o dia. . .

-Sim, meu pai. . .

-Ai! gemeu de novo o marquês, debatendo-se no seu estertor. Morro sem confissão!
Morro sem confissão! . . .

Ouvindo isto, um dos dois embuçados precipitou-se sobre o moribundo, exclamando
aflito:

– Que vejo?.. . Um corpo coberto de sangue!

E, arriando o capuz, para mostrar a sua veneranda cabeça de cabelos brancos,
interrogou ao grupo que o cercava:

-Quem feriu este homem?

-Um adversário em duelo. . . murmurou o próprio marquês. Ai! morro! morro!

O misterioso velho arrancou do seio um crucifixo, e levou-o com a mão trêmula
à boca do agonizante.

-Pede a Deus perdão das tuas culpas. . . segredou ele com a voz comovida.
Entrega-lhe a tua alma em plena confiança, porque eu rogarei por ela ao Senhor
misericordioso!

E ouviu-se o débil sussurro de um gemido de amor esvoaçar entre os lábios
do moribundo.

Era o nome de Alzira, que ele chamava pela última vez.

O médico abaixou-se para auscultar-lhe o coração.

-Está morto. . . disse.

Houve uma triste concentração em que se ouviram prantos abafados.

E o negro vulto de barbas brancas pôs-se a rezar, ao lado do cadáver, com
as mãos postas, o pálido rosto pendido sobre o seio.

Entretanto, Alzira, num transporte de aflição, correra a ter com a outra
sombra, que se quedava à distancia, de cabeça baixa e rosto escondido sob
o capuz, e exclamou entre soluços, estendendo-lhe os braços suplicantes:

-Meu padre! Meu padre! Sou eu a culpada de tudo isto! Sou muito, muito desgraçada!
Peça perdão a Deus por mim!

O vulto se agitou e tremeu todo, através do mistério da sua negra túnica.

Ouvia-se-lhe o ansioso arquejar do peito.

Depois, como se precisasse de ar, arremessou para traz o capelo do hábito
e recuou aterrado.

Alzira soltou um grito.

-Ele!

E teria caído no chão, desfalecida, se Ângelo a não amparasse nos braços.

Acudiram todos e se apoderaram dela.

O presbítero puxou de novo o seu capuz sobre o rosto, deu o braço à outra
sombra, e começaram os dois de novo a seguir o seu caminho.

Ângelo tinha afinal compreendido bem a verdadeira causa da sua perturbação.

A sua perturbação era o amor.

XV – Duas vezes enjeitado

Ângelo chegou a Monteli, acompanhado por Ozéas, às sete da manhã.

Veio recebê-lo à porta da casa uma velha chamada Salomé, antiga criada que
fora do falecido pároco do lugar.

-Então? então, meu filho?… perguntou-lhe o egresso. Que em ti significa
tamanha tristeza?… Pareces-me um vil criminoso sobrecarregado de remorsos!.
. . Vamos! Não te convém esse aspecto! Dize-me com franqueza o que sentes.
. .

-Nada! Nada, meu pai! São íntimas tristezas sem razão de ser!. . . são desgostos
só meus, que só eu mesmo compreendo! . . . A viagem fatigou-me. Preciso repousar…
Bem sabe que ainda não estou bom de todo . . .

-Pois sim, recolhe-te! Ali está o teu quarto. Já mandei pôr lá a imagem da
Virgem. Eu ficarei aqui. Até breve.

-Até breve, meu pai.

E Ângelo, arrastando a sua melancolia, entrou no pequeno aposento que lhe
era destinado.

Um triste quarto, em que a formosa imagem da Virgem se destacava, como na
outra cela do convento de S. Francisco de Paulo. Paredes nuas e velhas, teto
esborcinado e sem forro.

Ângelo sentou-se no catre que havia a um canto, e começou a soluçar, com
o rosto afogado nas mãos.

Chorava, e não sabia dizer por quê. Sofria e não se animava a confessar a
si mesmo de onde lhe vinha aquela dor, que assim lhe arrancava tão quentes
lágrimas do coração.

Mas seu desejo era poder naquele momento apertar nos braços alguém, cujo
nome seus lábios não se atreviam a balbuciar, receosos de magoarem a candidez
da sua alma virginal, branca noiva de Deus! O seu desejo era poder dizer o
que lhe ensinara a Bíblia, era poder cantar a capitosa música do Cântico dos
Cânticos, que nunca alma nenhuma jamais no mundo sonhou e repetiu sozinha.
O seu desejo era poder dizer: “Eu te amo!” e sentir a miragem desta doce palavra
refletida inteira nuns lábios de mulher, que lhe não falavam, porque já não
tinham voz senão para soluçar de amor.

O seu desejo era Alzira!

Era Alzira de carnes brancas e olhos negros! O seu desejo eram longos cabelos
nus, soltos no vendaval de todos os desejos. O seu desejo eram lábios trementes
e vermelhos, eram doces braços de veludo, eram a funda morte do supremo gozo,
bebido de barco sabre um níveo colo de Eva paradisíaco!

O seu desejo era o pecado.

E Ângelo chorava.

Mas, de repente, como se o espetro do dever lhe tocara no ombro, ele ergueu-se
estremunhado e trocou um olhar, ansioso e suplicante, com o triste e quieto
olhar da Virgem.

Correu para junto dela e ajoelhou-se a seus pés, mesquinho de remorso e trêmulo
de arrependimento.

-Valei-me! disse, erguendo para a imagem os olhos lacrimosos. Valei-me a
mim, a mais desgraçada de todas as vossas criaturas!

E soluçava.

-Maria! Maria puríssima! exclamou ele depois, como um desprezado amante aos
pés da sua cruel amada. Vede! Atendei, flor dos céus! Vede bem que sou eu
quem aqui vos fala e quem vos chama neste momento!

E arrastando-se de joelhos, com os lábios estendidos para alcançar-lhe a
fímbria do vestido:-Mãe casta! mãe sempre virgem, valei-me! Vós sois o meu
último recurso, a minha última salvação! Escondei dentro da urna de marfim
da vossa misericórdia a pureza da minha pobre alma, que a besta imunda a cerca,
farejando! Salvai-me, virgem mãe sem mácula; abrigai-me numa das dobras do
vosso manto azul, constelado de estrelas! Defendei-me contra mim próprio e
contra o meu sangue traiçoeiro! Vós, que sois o eterno prodígio da castidade,

protegei a minha castidade contra os meus íntimos inimigos! Não me deixeis
cair em pensamentos depravados! Exorcizai de dentro do meu corpo o demônio
que me morde as carnes e cospe fogo no meu sangue! Enxotai a luxúria, que
baba minha alma para sorvê-la depois!

Salvai-me! Salvai-me, rainha de bondade! Se quereis abandonar-me assim, à
mercê dos meus sentidos, por que pois me aninhastes carinhosa, durante tanto
tempo, sob as asas brancas da vossa divina graça?. . . Se a vossa intenção
era atirar-me assim às garras do pecado, por que pois, me ensinastes a amar-vos
tão castamente desde a minha infância mais inocente?. . . Dormi tão confiante
em vossa guarda, respirando as rosas místicas do vosso divino amor, e de repente
acordo, sobressaltado, entre uivos de fera que me cerca, para devorar-me!

“Onde estais vós, mãe puríssima, onde, que desde aqueles malditos olhos tão
formosos e tentadores, já me não ouvis as súplicas e já me não enxugais, com
o vosso alvo sudário cor de neve, as lágrimas deste desespero?

”Ó peito de amor! entranhas de piedade! como é que assim vos fechais para
quem vos ama?… Oh! volvei para mim os vossos lindos olhos misericordiosos!
Voltai a ter comigo, a sós, na minha cela, como dantes, quando eu era um dos
anjos rubicundos do vosso trono de nuvens!… Tornai a ter comigo, Maria,
cheia de graça!

“Se tínheis de abandonar-me e perder-me num segundo, para que então vos dei
toda a minha existência de vinte anos, mais brancos do que a torre de David?.
. . Se assim tinha de ser, amada minha, não valia a pena então conservar-me
tão puro e tão cândido!. . .

“Maria! Virgem amorosíssima! vida e doçura’ esperança nossa! se não quereis
vir em meu socorro, matai-me! eu aqui estou a vossos pés, e não me levanta
rei dos meus joelhos senão por um ar da vossa divina graça! . . . ”

E Ângelo, de olhos fitos na Virgem, esperava um milagre, esperava alguma
cousa que lhe restituísse a sua antiga tranqüilidade de espírito.

Nada! A imagem parecia surda ao seu desespero de salvação.

“Oh! por piedade! por piedade, minha mãe querida! envia-me do vosso peito
de amor a inspiração do meu resgate!”

Nada! Nada!

Ângelo deixou cair o rosto para a terra; abandonou os braços, com as mãos
entre os joelhos, e quedou-se pensativo.

Infeliz! infeliz!

Não era a primeira mãe que o enjeitada! . . .

E as lágrimas de abandonado correram-lhe tristes pelo mármore das faces,
e o mísero deixou-se levar de rastos pelas garras da sua dor imensa, para
o inferno da sua desesperança sem consolo.

Foi despertado pela velha criada, que, depois de bater várias vezes, resolveu-se
a entrar no quarto.

– Perdão, senhor vigário. Queira desculpar interromper as suas orações, mas.
. .

-Fale, minha irmã. . .

-É que está aí uma dama toda vestida de negro e coberta por um longo véu,
que deseja falar a vossa mercê. . .

— Uma mulher?. . . E não disse quem era?. . .

-Não quis dizer, senhor vigário.

-Bem, minha filha, faça-a entrar para a capela e diga a frei Ozéas que tenha
a bondade de vir cá.

A criada saiu e o egresso apareceu pouco depois.

-Há, aí, disse-lhe o presbítero, uma mulher que me procura. Devo escutá-la,
meu pai?. . .

-Que estranha pergunta, Ângelo!… Deves, decerto! É talvez alguma desgraçada
que precisa de quem a conduza ao arrependimento. A consciência pura e bem
apoiada na fé jamais teme as ciladas do inferno. Vai! Fala-lhe! E, se for
uma pecadora, suplica a Deus, noite e dia, até conseguires o perdão para sua
alma.

-Bem, meu pai. . .

E Ângelo afastou-se lentamente, tomando a direção da capela.

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