Casa de Pensão – Aluísio de Azevedo

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VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

XV

 

I

Desconfia de todo aquele que se arreceia da verdade.

Seriam onze horas da manhã. O Campos, segundo o costume, acabava de descer
do almoço e, a pena atrás da orelha, o lenço por dentro do colarinho, dispunha-se
a prosseguir no trabalho interrompido pouco antes. Entrou no seu escritório
e foi sentar-se à secretária. Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se
grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um
copo d água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de
madeira preta, muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par
em par. Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava
começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra,
desenhada e grande, quando foi interrompido por um rapaz, que da porta do
escritório lhe perguntou se podia falar com o Sr. Luís Batista de Campos.
– Tenha a bondade de entrar, disse este. O rapaz aproximou-se das grades de
cedro polido, que o separavam do comerciante. Era de vinte anos, tipo do Norte,
franzino, amornado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes,
se bem que alterados por um leve estrabismo. Vestia casimira clara, tinha
um alfinete de esmeralda na camisa, um brilhante na mão esquerda e um grossa
cadeia de ouro sobre o ventre. Ao pés, coagidos em apertados sapatinhos de
verniz, desapareciam-lhe casquilhamente nas amplas bainhas da calça. – Que
deseja o senhor, perguntou o Campos, metendo de novo a pena atrás da orelha
e pousando um pedaço de papel mata-borrão sobre o trabalho. O moço avançou
dois passos, com ar muito acanhado; o chapéu. de pêlo seguro por ambas as
mãos; a bengala debaixo do braço. – Desejo entregar esta carta, disse, cada
vez mais atrapalhado com o seu chapéu e a sua bengala, sem conseguir tirar
da algibeira um grosso maço de papéis que levava. Não havia onde pôr o maldito
chapéu, e a bengala tinha-lhe já caído no chão, quando o Campos foi em seu
socorro. – Cheguei hoje do Maranhão, acrescentou o provinciano, sacando as
cartas finalmente. As últimas palavras do moço pareciam interessar deveras
o negociante, porque este, logo que as ouviu, passou a considerá-lo da cabeça
aos pés, e exclamou depois: – Ora espere…O senhor é o Amâncio !

O outro sorriu, e , entregando-lhe a carta, pediu-lhe com um gesto que a
lesse. Não foi preciso romper o sobrescrito, porque vinha aberta. – É de meu
pai…disse Amâncio. – Ah! é do velho Vasconcelos ?…Como vai ele ? – Assim,
assim…O que o atrapalha mais é o reumatismo. Agora está em uso da Salça-e-caroba
, do Holanda. – Coitado! lamentou o Campos com um suspiro. – Ele sofre há
tanto tempo!… E passou a ler a carta, depois de dar uma cadeira a Amâncio,
que já estava para dentro das grades. – Pois , sim, senhor ! disse ao terminar
a leitura . – Está o meu amigo na Corte, e homem ! Como corre o tempo !…
Amâncio tornou a sorrir. – Parece que ainda foi outro dia que o vi, deste
tamanho, a brincar no armazém do seu pai. E mostrou com a mão aberta o tamanho
de Amâncio naquela época. – Foi há seis anos, observou o moço, limpando o
suor que lhe corria abundantemente pelo rosto. Fez-se uma pequena pausa e
em seguida o Campos falou do muito que devia ao falecido irmão e sócio do
velho Vasconcelos; citou os obséquios que lhe merecera; disse que encontrara
nele “um segundo pai “e terminou perguntando quais eram as intenções de Amâncio
na Corte. – Se vinha estudar ou empregar-se. – Estudar ! acudiu o provinciano.
Queria ver se era possível matricular-se esse ano na Escola de Medicina .Não
negava que se havia demorado um pouquito nos preparatórios…mas seria dele
a culpa ?… Só com umas sezões que apanhara na fazenda da avó, perdera três
anos. Campos escutava-o com atenção. Depois lhe perguntou, se já havia almoçado.
Amâncio disse que sim, por cerimônia. – Venha então jantar conosco; precisamos
conversar mais à vontade .Quero apresentá-lo à minha gente. O rapaz concordou,
mas ainda tinha que entregar várias cartas e varias encomendas que trouxera.
O Campos talvez conhecesse os destinatários. Mostrou-lhe as cartas ; eram
quase todas de recomendação. – O melhor é tomar um carro, aconselhou o negociante.
– Olhe, vou dar-lhe um moço, aí de casa, para o guiar. E, pelo acústico ,
que havia a um canto do escritório, chamou um caixeiro. Daí a pouco, Amâncio
saía, acompanhado por este, prometendo voltar para o jantar. A casa de Luís
Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e
sem gosto, cujo ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores
do velho comércio português. Compunha-se do vasto armazém ao rés-do-chão,
e mais dois andares ; no primeiro dos quais estava o escritório e à noite
aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com a mulher
– D. Maria Hortênsia, e uma cunhada- D. Carlotinha. A mesa era no andar de
cima .Faziam-se duas : uma para o dono da casa ,a família, o guarda-livros
e hóspedes, se os havia, o que era freqüente ;e a outra só para os caixeiros,
que subiam ao número de cinco ou seis. Apesar de inteligente e de brasileiro,
Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À
mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva ;não havia
risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os hóspedes, pobre
gente de província, faziam uma cerimônia espessa ; o guarda-livros poucas
vezes arriscava a sua anedota e, só se determinava a isso, tendo de antemão
escolhido um assunto discreto e conveniente. Campos não apertava a bolsa em
questões de comida :queria mesa farta ;quatro pratos ao almoço, café e leite
à discrição ; ao jantar seis , sopa e vinho .Os caixeiros falavam com orgulho
dessa generosidade e faziam em geral boa ausência do patrão, que, entretanto,
fora sempre de uma sobriedade rara :comia pouco, bebia ainda menos e não conhecia
os vícios senão de nome. Aos domingos, e às vezes mesmo em dias de semana,
aparecia para o jantar um ou outro estudante comprovinciano do Campos ou algum
freguês do interior, que estivesse de passagem na Corte e a quem lhe convinha
agradar. Luís Campos era homem ativo, caprichoso no serviço de que ser encarregava
e extremamente suscetível em pontos de honra ; quer se tratasse de sua individualidade
privada, que de sua responsabilidade comercial. Não descia nunca ao armazém,
ou simplesmente ao escritório, sem estar bem limpo e preparado. Caprichava
no asseio do corpo :as unhas, os cabelos e os dentes mereciam-lhe bons desvelos
e atenções.

Entre os companheiros, passava por homem de vistas largas e espírito adiantado
; nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier, ao Flammarion e ao Júlio Verne,
outras vezes, poucas, atirava-se à literatura ; mas os verdadeiros mestres
aborreciam-no e entreturbavam-no com os rigorismos da forma. – È um bom tipo
! diziam os estudantes à volta do jantar, e seguinte domingo lá estavam de
novo. O “bom tipo” tratava-os muito bem, levava-os com a família para a sala,
oferecia-lhes charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe restituíssem os livros
que lhes emprestava. Quanto à sua vida comercial, pouco se tem a dizer. Até
aos dezoito anos, Campos estivera no Maranhão, para onde fora em pequeno de
sua província natal, o Ceará. No Maranhão fez os primeiros estudos e deu os
primeiros passos no comércio, pela mão de um velho negociante, amigo de seu
pai. Esse velho foi seu protetor e o seu guia ;só com a morte dele se passou
o Campos para o Rio de Janeiro, onde, graças ainda a certas relações da família
de seu benfeitor, consegui arranjar-se logo, como ajudante de guarda-livros,
em uma casa de comissões. Desta saiu para outra, melhorando sempre de fortuna,
até que afinal o admitiram, como gerente, no armazém de uns tais Garcia, Costa
& Cia. O Garcia morreu, Campos passou a ser interessado na casa ;depois
morreu o Costa, e Campos chamou um sócio de fora, um capitalista, e ficou
sendo a principal figura da firma. Por esse tempo encontrou D. Maria Hortênsia,
menina de boa família, sofrivelmente ajuizada e com dote. Pouco levou a pedi-la
e a casar-se. Nunca se arrependera de semelhante passo. Hortênsia saíra uma
excelente dona -de- casa, muito arranjadinha, muito amiga de poupar, muito
presa aos interesses de seu marido, e limpa, “limpa ,que fazia gosto!” O segundo
andar vivia, pois, num brinco ; nem um escarro seco no chão. Os móveis luziam,
como se tivessem chegado na véspera da casa do marceneiro ;as roupas da cama
eram de uma brancura fresca e cheirosa ;não havia teias de aranha nos tetos
ou nos candeeiros e os globos de vidro não apresentavam sequer a nódoa de
uma mosca. E Campos sentia-se bem no meio dessa ordem, desse método. Procurava
todos os dias enriquecer os trens de sua casa, já comprando umas jardineiras,
que lhe chamaram a atenção em tal rua ; já trazendo uma estatueta, um quadro,
uma nova máquina de fazer sorvetes , ou um sistema aperfeiçoado para esta
ou aquela utilidade doméstica. Gostava que em sua casa houvesse um pouco de
tudo. Não aparecia por aí qualquer novidade ,qualquer novo aparelho de bater
ovos, gelar vinho, regar plantas, que o Campos não fosse um dos primeiros
a experimentar. A mulher, às vezes, já se ria, quando ele entrava da rua abraçado
a um embrulho. – Que foi que se inventou ?…perguntava com uma pontinha de
mofa.
O marido não fazia esperar a justificação do seu novo aparelho, e, tal interesse
punha em jogo ,que parecia tratar de uma obra própria, de cujo sucesso dependesse
a sua felicidade. E, logo que encontrasse algum amigo, não deixava de falar
nisso ;gabava-se da compra que fizera, encarecia a utilidade do objeto e aconselhava
a todos que comprassem um igual. Campos, depois do casamento, principiou a
prosperar de um modo assombroso ;dentro de três anos era, o que vimos, – rico,
muito acreditado e seguro na praça. E, contudo, não tinha mais do que trinta
e seis anos de idade. – É um felizardo ! resmungavam os colegas, com olhar
fito. – É um felizardo !Quem o viu, como eu, há tão pouco tempo !… – Mas
sempre teve boa cabeça !… – São fortunas, homem !Outros há por aí , que
fazem o dobro e não conseguem a metade ! – Não ! ele merece, coitado ! É muito
bom moço, muito expedito e trabalhador ! – Homem! Todos nós somos bons !…O
que lhe afianço é que nunca em minha vida consegui pôr de parte um bocado
de dinheiro ! E o caso era que o Campos ,ou devido à fortuna ou ao bom tino
para ao negócios, prosperava sempre.

* * *

Às quatro da tarde apareceu de novo Amâncio. Vinha esbaforido. O dia estava
horrível de calor. Campos foi recebê-lo com muito agrado. – Então ?disse-lhe.
Está livre das cartas ? – Qual ! respondeu o moço. – tenho ainda cinco para
entregar…Uma estafa ! No Maranhão nunca senti tanto calor !… – Falta de
hábito ! observou o outro. Daqui a dias verá que isto é muito mais fresco
!

– Estou desta forma !…queixava-se Amâncio, quase sem fôlego, a mostrar
o colarinho desfeito e os punhos encardidos. – Suba, volveu o Campos, empurrando-o
brandamente .- tome qualquer coisa. Vá entrando sem cerimônia. E, já na escada
do segundo andar, perguntou de súbito :- É verdade !e a sua bagagem ?… –
Está tudo na Coroa de Ouro. Hospedei-me lá. – Bem. E subiram. Amâncio deixou-se
ficar na sala de visita; o outro correu a prevenir a mulher. – Neném !disse
ele. Sabes ? hoje temos ao jantar um moço que chegou do Norte, um estudante.
É preciso oferecer-lhe a casa. Hortênsia respondeu com um gesto de má vontade.
– Não ! replicou o negociante. É uma questão de gratidão !…Devo muitos obséquios
à família deste rapaz ! Lembras-te daquele velho, de que te falei, aquele
que foi que me deu a mão lá no Norte ?…Pois este é o sobrinho, é filho do
Vasconcelos. Não nos ficaria bem recebê-lo assim ,sem mais nem menos !…
– Mas, Lulu, isto de meter estudantes em casa é o diabo !Dizem que é uma gente
tão esbodegada ! – Ora ,coitado !ele até me parece meio tolo ! Além disso,
não seria o primeiro hóspede!… – Queres agora comparar um estudante com
aqueles tipos de Minas que se hospedam aqui !… – Mas se estou dizendo que
o rapaz até parece tolo… – Manhas, homem ! Todos eles parecem muito inocentes,
e depois…Enfim, tu farás o que entenderes !… Só te previno de que esta
gente é muito reparadeira ! – Não há de ser tanto assim!… E Campos voltou
à sala. Amâncio soprava, estendido em uma cadeira de balanço, a abanar-se
com o lenço. – Muito calor, hein? perguntou o Campos, entrando. – Está horroroso,
disse aquele. E resfolegou com mais força. – Venha antes para este lado. Aqui
para a sala de jantar é mais fresco. Venha ! Eu vou dar-lhe um paletó de brim.
Amâncio esquivava-se, fazendo cerimônia ; mas o outro, com o segredo da hospitalidade
que em geral possui o cearense, obrigou-o a entrar para um quarto e mudar
de roupa. O jantar, como sempre, correu frio e contrafeito. Amâncio não tinha
apetite, porque pouco antes comera mães-bentas em um café ;Campos, porém,
desfazia-se e empregava todos os meios de lhe ser agradável. – Vá, mais uma
fatia de pudim, insistia ele a tentá-lo. – Não, não é possível, respondia
o hóspede, limpando sempre o rosto com o lenço. À sobremesa falou-se no velho
Vasconcelos e mais no irmão. O negociante lembrou ainda as obrigações que
devia à família de Amâncio, citou pormenores de sua vida no Maranhão ; elogiou
muito a província ;disse que havia lá mais sociabilidade que no Rio de Janeiro
, e acabou brindando a memória de seu benfeitor , de seu segundo pai. Maria
Hortênsia parecia tomar parte no reconhecimento do marido e, sempre que se
dirigia ao estudante, tinha nos lábios um sorriso de amabilidade. Carlotinha
não dera uma palavra durante o jantar. Comia vergada sobre o seu prato e só
ergueu a cabeça na ocasião de deixar a mesa. Amâncio, todavia, não a perdera
de vista. Às sete horas da tarde, quando se despediu, estava já combinado
que no dia seguinte ele voltaria com as malas, para hospedar-se em casa do
Campos. – É melhor…disse este – é muito melhor !Ali o senhor não pode estar
bem ;sempre é vida de hotel ! Venha para cá ;faça de conta que minha família
é a sua. Amâncio prometeu, e saiu, reconsiderando pelo caminho todas as impressões
desse dia. Mais tarde, deitado na cama do Coroa de Ouro, com o corpo moído,
o espírito saturado de sensações, procurava recapitular o que tinha a fazer
no dia seguinte ; e, bocejando, via de olhos fechados, o vulto amoroso de
Hortênsia a sorrir para ele, estendendo-lhe no ar os belos braços, palpitantes
e carnudos .

II

No dia seguinte mudava-se Amâncio para a casa do Campos. Seria por pouco
tempo, – até que descobrisse um “cômodo definitivo”. Deixou com algum pesar
o hotel. Aquela vida boêmia, com os seus almoços em mesa-redonda, o seu quartinho,
uma janela sobre os telhados, e a plena liberdade de estar como bem entendesse,
tinha para ele um sedutor encanto de novidade. Nunca saíra do Maranhão ;vira
de longe a Corte através do prisma fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de
Janeiro afigurava-se-lhe um Paris de Alexandre Dumas ou de Paulo de Kock,
um Paris cheio de canções de amor, um Paris de estudantes e costureiras, no
qual podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como
no diabo da província. Há muito tempo ardia de impaciência por tal viagem
: pensara nisso todos os dias; fizera cálculos, imaginara futuras felicidades.
Queria teatros bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas, passeios fora de
horas, a carro, pelos arrabaldes. Seu espírito, excessivamente romântico,
como o de todo maranhense nessas condições, pedia uma grande cidade, velha,
cheia ruas tenebrosas, cheia de mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de
lugares suspeitos e de mulheres caprichosas :fidalgas encantadoras e libertinas,
capazes de tudo, por um momento de gozo. E Amâncio sentia necessidade de dar
começo àquela existência que encontrara nas páginas de mil romances. Todo
ele reclamava amores perigosos, segredos de alcova e loucuras de paixão. Entretanto,
o seu tipo franzino, meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente o contrário.
Ninguém, contemplando aquele insignificante rosto moreno, um tanto chupado,
aqueles pômulos salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade quase infantil,
aquela boca estreita, guarnecida de bons dentes, claros e alinhados, ninguém
acreditaria que ali estivesse um sonhador , um sensual um louco. Sua pequena
testa, curta e sem espinhas, margeada de cabelos crespos, não denunciava o
que naquela cabeça havia de voluptuoso e ruim. Seu todo acanhado, fraco e
modesto não deixava transparecer a brutalidade daquele temperamento cálido
e desensofrido. Amâncio fora muito mal-educado pelo pai, português antigo
e austero, desses que confundem o respeito com o terror. Em pequeno levou
muita bordoada ; tinha um medo horroroso de Vasconcelos; fugia dele como de
um inimigo, e ficava todo frio e a tremer quando lhe ouvia a voz ou lhe sentia
os passos. Se acaso algumas vezes se mostrava dócil e amoroso, era sempre
por conveniência : habituou-se a fingir desde esse tempo. Sua mãe, D. Ângela,
uma santa de cabelos brancos e rosto de moça, não raro se voltava contra o
marido e apadrinhava o filho. Amâncio agarrava-se-lhe à saias, fora de si,
sufocado de soluços. Aos sete anos entrou para a escola. Que horror ! O mestre,
um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro,
batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a
berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera,
a catadura selvagem ; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava
pior. Amâncio, já na Corte, só de pensar no bruto, ainda sentia os calafrios
dos outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio
invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia-os
no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável. Todos os pequenos
da aula tinham birra do Pires. Nele enxergavam o carrasco, o tirano, o inimigo
e não o mestre ; mas, visto que qualquer manifestação de antipatia redundava
fatalmente em castigo, as pobres crianças fingiam-se satisfeitas ;riam muito
quando o beberrão dizia alguma chalaça e afinal, coitadas ! iam-se habitualmente
ao servilismo e à mentira. Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros
do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele
animal era o único professor capaz de “endireitar os filhos”. Elogiavam-lhe
a rispidez, recomendavam-lhe sempre que “não passasse a mão” pela cabeça dos
rapazes e que, quando fosse preciso, “dobrasse por conta dele a dose de bolos”.
Ângela, porém, não era dessa opinião :não podia admitir que seu querido filho,
aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de graça, um anjinho,
que ela afagara com tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer criada
com os seus beijos – fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão daquela
ordem “Ora ! isso não tinha jeito ! ” Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo em
cima : Que deixasse lá o pequeno com o mestre!… Mais tarde ele havia de
agradecer aquelas palmatoadas ! Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre
contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância. Verdade é que também fora
sempre tido e havido pelo pior dos meninos da aula, pelo mais atrevido e insubordinado.
Adquiriu tal fama com o seguinte fato :

Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se assentava
ao lado dele e com quem vivia sempre de turra. Um dia pegaram-se mais seriamente
.Amâncio teria então oito anos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrou
o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes lugares.
Fez-se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com afetação.
Mas, de repente, ouviu-se o estalo de uma bofetada. Houve rumor. O Pires levantou-se,
tocou uma campainha, que usava para esses casos, e sindicou do fato. Amâncio
foi o único acusado. – Sr. Vasconcelos !- gritou o mestre – porque espancou
o senhor aquele menino ? Amâncio respondera humildemente que o menino insultara
sua mãe . – É mentira ! protestou o novo acusado. Amâncio repetiu o insulto
que recebera. Toda a escola rebentou em gargalhadas. – Cale-se, atrevido !berrou
o professor encolerizado, a tocar a campainha.- Mariola! Dizer tal coisa em
pleno recinto de aula ! E, puxando a pura força o delinqüente para junto de
si, ferrou-lhe meias dúzia de palmatoadas. Amâncio, logo que se viu livre,
fez um gesto de raiva. – Ah ! ele é isso?! Exclamou o professor. – Tens gênio,
tratante ?! Ora espera ! isso tira-se ! E voltando-se para o rapazito que
levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas
palmatoadas em Amâncio. Este declarou fortemente que se não submetia ao castigo.
O professor quis submetê-lo à força; Amâncio não abriu as mãos. Os dedos pareciam
colados contra a palma. O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade,
muito nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo
aquilo. Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na
cara do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo. Um ” Oh “formidável
encheu a sala . O Pires, rubro de cólera, ordenou que prendessem o atrevido.
A aula ergueu-se em peso, com grande desordem. Caíram bancos e derramaram-se
tinteiros. Todos os meninos abraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Amâncio
foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua. Mas, quatro pontapés puseram
em fugida os dois primeiros rapazes que lhe lançaram os dedos. Dois outros
acudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais três, mais oito, vinte,
até que todos os quarenta ou cinqüenta estudantes o levaram à presença do
Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se houvessem alcançado uma glória.
Amâncio sofreu novo castigo ;serviu de escárnio aos seus condiscípulos e,
quando chegou à casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu-lhe
ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e
ao menino da bofetada Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e
de honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus
semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens. – Pois se até seu próprio
pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa do mais forte!….
Só Ângela, sua adorada, sua santa mãe, à noite, ao beijá-lo antes de dormir,
depois de lhe perguntar se ficara muito magoado com o castigo, segredara-lhe
entre lágrimas que “ele fizera muito bem …” Como aquele ,outros fatos se
deram na meninice de Amâncio. Todas as vezes que lhe aparecia um ímpeto de
coragem, sempre que lhe assistia um assomo de dignidade, sempre que pretendia
repelir uma afronta ,castigar um insulto, o pai ou o professor caía-lhe em
cima, abafando-lhe os impulsos pundonorosos. Ficou medroso e descarado. No
fim de algum tempo já podiam na escola , insultar a mãe quantas vezes quisessem,
que ele não se abalaria ;podiam lançar-lhe em rosto as ofensas que entendessem
porque ele se conservaria impassível. Temia as conseqüências de desafronta.
” Estava domesticado” ,segundo a frase do Pires. Todavia, esses pequenos episódios
da infância, tão insignificantes na aparência, decretaram a direção que devia
tomar o caráter de Amâncio. Desde logo habituou-se a fazer uma falsa idéia
dos seus semelhantes ;julgou os homens por seu pai, seu professor e seus condiscípulos.
– E abominou-os. Principiou a aborrecê-los secretamente, por uma fatalidade
do ressentimento; principiou a desconfiar de todos, a prevenir-se contra tudo,
a disfarçar, a fingir que era o que exigiam brutalmente que ele fosse. Nunca
lhe deram liberdade de espécie alguma :Se lhe vinha uma idéia própria e desejava
pô-la em prática, perguntavam-lhe “a quem vira ele fazer semelhante asneira
?

Convenceram-no de que só devemos praticar aquilo que os outros já praticaram.
Opunham-lhe sempre o exemplo das pessoas mais velhas ;exigiam que ele procedesse
com o mesmo discernimento de que dispunham seus pais. E os rebentões da individualidade,
e o que pudesse haver de original no seu caráter e na sua inteligência , tudo
se foi mirrando e falecendo, como os renovos de uma planta, que regassem diariamente
com água morna. À mesa devia ter a sisudez de um homem. Se lhe apetecia rir,
cantar, conversar, gritavam-lhe logo : “Tenha modo, menino! Esteja quieto
! comporte-se!” E Amâncio, com medo da bordoada, fazia-se grave, e cada vez
ia-se tornando mais hipócrita e reservado. Sabia afetar seriedade, quando
tinha vontade de rir; sabia mostrar-se alegre, quando estava triste; calar-se,
tendo alguma recriminação a fazer; e , na igreja, ao lado da família, sabia
fingir que rezava e sabia agüentar por mais de uma hora a máscara de um devoto.
Como o pai o queria inocente e dócil, ele afetava grande toleima, fazia-se
muito ingênuo, muito admirado das cosas mais simples. – É uma menina!…dizia
a mãe ,convicta – Amancinho tem já dez anos e conserva a candura de um anjo
! Vasconcelos nunca o puxava para junto de si, nem conversava com ele, nem
o interrogava ;e, quando a infeliz criança, justamente na idade em que a inteligência
se desabotoa, ávida de fecundação, fazia qualquer pergunta, respondiam-lhe
com um berro : ” Não seja bisbilhoteiro, menino!” Amâncio emudecia e abaixava
os olhos, mas, logo que o perdiam de vista, ia escutar e espreitar pelas portas.
Com semelhante esterco, não podia desabrochar e melhor no seu temperamento
o leite escravo, que lhe deu a mamar uma preta da casa. Diziam que era uma
excelente escrava : tinha muito boas maneiras ;não respingava aos brancos,
não era respondona :aturava o maior castigo, sem dizer uma palavra mais áspera,
sem fazer um gesto mais desabrido. Enquanto o chicote lhe cantava nas costas,
ela gemia apenas e deixava que as lágrimas lhe corressem silenciosamente pelas
faces. Além disso – forte, rija para o trabalho. Poderia nesse tempo valer
bem um conto de réis. Vasconcelos a comprara , todavia, muito em conta, ”
uma verdadeira pechincha !” porque o demônio da negra estava então que não
valia duas patacas ;mas o senhor a metera em casa, dera-lhe algumas garrafadas
de laranja-da-terra, e a preta em breve começou a deitar corpo e a indireitar,
que era aquilo que se podia ver ! O médico, porém, não ia muito em que a deixassem
amamentar o pequeno. – Esta mulher tem reuma no sangue …dizia ele – e o
menino pode vir a sofrer no futuro. Vasconcelos sacudiu os ombros e não quis
outra ama. – O doutor que se deixasse de partes ! A negra tomou muita afeição
à cria. Desvelava por elas noites consecutivas e, tão carinhosa, tão solícita
se mostrou, que o senhor, quando o filho deixou a mama, consentiu em passar-lhe
a carta de alforria por seiscentos mil-réis, que ela ajuntara durante quinze
anos. Mas a preta não abandonou a casa de seus brancos e continuou a servir,
como dantes ;menos ,está claro, no que dizia respeito aos castigos, porque
a desgraçada, além de forra ia já caindo na idade. Amâncio dera-lhe bastante
que fazer. Fora um menino levado da breca ;só não chorava enquanto dormia
e, quando se punha a espernear, não havia meio de contê-lo. Era muito feio
em pequeno. Um nariz disforme, uma boca sem lábios e dois rasgões no lugar
dos olhos. Não tinha um fio de cabelo e estava sempre a fazer caretas. A princípio
– muito achacado de feridas, coitadinho! Os pés frios, o ventre duro constantemente.
Levou muito para andar e custou-lhe a balbuciar as primeiras palavras :Ângela
adorava-o com entusiasmo do primeiro parto ;por duas vezes supôs vê-lo morto
e deu promessas aos santos da sua devoção. Conseguiram fazê-lo viver, mas
sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos.
Quando acabou as primeiras letras, não era, entretanto, dos rapazes mais débeis
da aula do Pires. Para isso contribuíram em grande parte uns passeios que
costumava dar, pelas férias ,à fazenda de sua avó materna, em São Bento. Esses
passeios representavam para Amâncio a melhor época do ano. A avó, uma velha
quase analfabeta, supersticiosa e devota, permitia-lhe todas as vontades e
babava-se de amores por ele. O rapaz escondia-lhe o cachimbo, pisava-lhe os
canteiros da horta, divertia-se em quebrar a pedradas as lamparinas dos santos,
suspensas na capela, e, à vezes, quando não estava de boa maré, atirava com
os pratos nos escravos que serviam à mesa.

A avó ralhava , mas não podia conter o riso .O netinho era o seu encanto,
o fraco de sua velhice; só um pedido daquele diabrete faria suspender o castigo
dos negros e desviar do serviço da roças algum dos moleques – para ir brincar
com Nhozinho. Estava sempre a dizer que se queixava ao genro e que o devolvia
para a cidade ;mas, no ano seguinte, se Amâncio não aparecia logo no começo
das férias, choviam os recados da velha em casa de Vasconcelos, rogando que
lhe mandassem o neto. – Mande ! mande o pequeno !aconselhava o médico. E lá
ia Amâncio. Só aos doze anos fez o seu exame de português na aula do Pires.
Houve muita formalidade. A congregação era presidida pelo Sotero dos Reis
;havia vinte e tantos examinandos. Amâncio tremia naqueles apuros. Não tinha
em si a menor confiança. Foi, contudo, ” aprovado plenamente” .Mas não sabia
nada, quase que não sabia ler. Da gramática apenas lhe ficaram de cor algumas
regras, sem que ele compreendesse patavina do que elas definiam. O Pires nunca
explicava :- se o pequeno tinha a lição de memória, passava outra, e, se não
tinha, dava-lhe algumas palmatoadas e dizia-lhe que trouxesse a mesma para
o dia seguinte. Mas, enfim, estava habilitado a entrar para o Liceu onde iria
cursar as aulas de francês e geografia. O Liceu, que bom !- Oh ! Aí não havia
castigos, não havia as pequenas misérias aterradoras da escola !Não poderia
faltar às aulas , é certo ! mas, em todo o caso, estudaria quando bem entendesse
e, lá uma vez por outra, havia de “fazer a sua parede”. E, só com pensar nisso,
só com se lembrar de que já não estava ao alcance das garras do maldito Pires,
o coração lhe saltava por dentro, tomado de uma alegria nervosa.

* * *

O Vasconcelos quis festejar o exame do filho, com um jantar oferecido aos
senhores examinadores e aos velhos amigos da família. À noite houve dança.
Amâncio convidou os companheiros do ano ;compareceram somente os pobres, –
os que não tinham em casa também a sua festa. O pai, por instâncias de Ângela,
fizera-lhe presente de um relógio com a competente cadeia tudo de ouro. A
avó, que se abalara da fazenda pra assistir ao regozijo do seu querido mimalho
, trouxera-lhe um moleque , o Sabino. Amâncio, todo cheio de si, a rever-se
na sua corrente e a consultar as horas de vez em quando, foi nesse dia o alvo
de mil felicitações, de mil brindes e de mil abraços. Alguns amigo do pai
profetizavam nele uma glória da pátria e diziam que o João Lisboa, o Galvão
e outros não tinham tido melhor princípio. Lembraram-se todas as partidas
engraçadas de Amâncio, vieram à baila os repentes felizes que o diabrete tivera
até aí. Na cozinha, a mãe preta , a ama, contava às parceiras as travessuras
do menino e, com olhos embaciados de ternura, com uma espécie de orgulho amoroso,
referia sorrindo os trabalhos que lhe dera ele, as noites que ela desvelara.
– Já em pequeno, diziam – era muito sabido, muito esperto !enganava os mais
velhos ;tinha lábias, como ninguém, para conseguir as coisas, e sabia empregar
mil artimanhas para obter o que desejava! – Não !definitivamente não havia
outro ! Ângela, a um canto da varanda, assentada entre as suas visitas, seguia
o filho com um olhar temperado de mágoa e doçura. – O que lhe estaria reservado?…o
que o esperaria no futuro ?…cismava a boa senhora, meneando tristemente
a cabeça – Oh! Às vezes cria-se um filho com tanto amor, com tantas lágrima
, para depois vê-lo andar por aí aos trambolhões, nesse mundo de Cristo !…E
a idéia de que, talvez, nem sempre o teria perto de si, que nem sempre o poderia
obrigar a mudar a camisa, quando estivesse suado ;obrigá-lo a tomar o remédio,
quando estivesse doente ;obrigá-lo a comer, a dormir com regularidade ;a evitar,
enfim tudo que pudesse-lhe prejudicar a saúde ;oh ! a idéia de tudo isso lhe
ent6rava no coração, como um sopro gelado, e fazia tremer a pobre mãe. – Ai
! ai ! disse ela. – Que suspiros são esses, D. Ângela? perguntou o Dr. Silveira,
que estava ao seu lado. Homem íntimo da casa e figura conhecida na política
da terra. – Malucando cá comigo,. respondeu a senhora .E como o outro estranhasse
a resposta:- Quem tem filho, tem cuidados ,senhor doutor !…

– Oh ! Oh! Exclamou este, com um gesto autorizado, abrindo muito a boca e
os olhos. – A quem o diz, Sra. D. Ângela, a quem o diz !…Só eu sei o que
me custam esses quatro pecados que aí tenho!…
E para provar que dizia a verdade, teria falado nos seus cabelos brancos,
se não os pintasse. – Quando Ângela se afligia daquele modo, sendo rica ;quanto
mais ele- pobre jurisconsulto, com pequenos vencimentos e uma família enorme
!… – Ah! Os tempos vão muito maus… Puseram-se logo a falar na ruindade
dos tempos. ” Estava tudo pela hora da morte! – Comia-se dinheiro ! ” Mas
o Silveira voltara-se rapidamente, para dar atenção a Amâncio, que acabava
de aproximar-se, em silêncio, com ar presumido de quem tinha consciência de
que toda aquela festa lhe pertencia. – Então, meu estudante !- disse o jurisconsulto,
empinando a cabeça – Já escolheu a carreira que deseja seguir ? – Marinha,
respondeu Amâncio secamente. A farda seduzia-o. Nada conhecia ” tão bonito”
como um oficial de marinha. A mãe riu-se com aquela resposta, e olhou em torno
de si, chamando a atenção dos mais para o desembaraço do filho.
À meia-noite foram todos de novo para a mesa. O Vasconcelos era muito rigoroso
quando recebia gente em casa ;queria que houvesse toda a fartura de vinhos
e comida. Os brindes reapareceram. Abriram-se as garrafas de Moscato d’Asti,
Chateau Yquem e Champagne. Conversou-se a respeito dos vinhos de Vasconcelos.
” O Maranhão era incontestavelmente uma das províncias onde melhor se bebia
!” Do meio para o fim da ceia, Amâncio sentiu-se outro. Em uma ocasião, que
o pai se afastara da mesa, ele pediu um brinde e cumprimentou as “pessoas
presentes”. Este fato causou delírios. O próprio pai não se pôde conter e
disse entredentes, a rir : – Ora o rapaz saiu-me vivo ! Ângela abraçou o filho,
chorando de comovida. – Que lhe disse eu ?…resmungou delicadamente o Silveira
ao ouvido dela – Este menino promete !Dêem-lhe asas e hão de ver …dêem-lhe
asas !… Amâncio foi coberto de ovações. Batiam-lhe no copo, faziam-lhe saúdes.
Ele a todos respondia, rindo e bebendo. Daí a uma hora recolheram-no à cama
da mãe, porque lhe aparecera uma aflição na boca do estômago ;mas vomitou
logo e adormeceu depois , completamente aliviado. Foi a sua primeira bebedeira.

Aos quatorze anos prestou exame de francês e geografia e matriculo-se nas
aulas de gramática geral e inglês. Já eram válidos, felizmente, os exames
do Liceu do Maranhão, e com as cartas que daí houvesse, podia entrar nas academias
da Corte. Amâncio, de[pois da escola do Pires, nunca mais voltou a passar
férias na fazenda da avó. Preferia ficar na cidade :tinha namoros, gostava
loucamente de dançar, já fumava, e já fazia pândegas grossas com os colegas
do Liceu. Como o pai não lhe dava liberdade , nem dinheiro, e como exigia
que ele às nove horas da noite se recolhesse a casa, Amâncio arranjava com
a mãe os cobres que podia e, quando a família já estava dormindo, evadia-se
pelos fundos do quintal. Era Sabino quem lhe abria e fechava o portão. O moleque
gostava muito dessas patuscadas. O senhor – moço levava-o à vezes em sua companhia.
Amigos esperavam por eles lá fora, reuniam-se ; tinham um farnel de sardinhas,
pão, queijo, charutos e vinho. Era pagodear até pela madrugada ! Se havia
chinfrim – entravam, ou então iam tomar banho no Apicum ou cear ao Caminho
Grande. Em noites de luar faziam serenatas ;aparecia sempre alguém que tocasse
violão ou flauta ou soubesse cantar chulas e modinhas. Aos sábados o passeio
era maior; no dia seguinte Amâncio estava a cair de cansaço, aborrecido, necessitando
de repouso. Mas não deixava de ir. – Era tão bom passear pela rua , quando
toda a população dormia; fumar, quando tinha certeza de que nenhum dos amigos
de seu pai o pilharia com o charuto no queixo ;era tão bom beber pela

garrafa, comer ao relento e perseguir ima ou outra mulher, que encontrassem
desgarrada, a vagar pelos becos mal iluminados da cidade ! Tudo isso lhe sorria
por um prisma voluptuoso e romanesco. Às vezes entrava em casa ao amanhecer.
Não podia dormir logo ;vinha excitado, sacudido pelas impressões e pela bebedeira
da noite. Atirava-se à rede, com uma vertigem impotente de conceber poesias
byronianas, escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias,
extravagâncias, delírios. E afinal adormecia, lendo Mademoiselle de Maupuin,
Olympia de Clèves ou Confession d’un enfant du siècle. Não penetrava bem na
intenção deste último livro, mas tinha-o em grande conta e, visto conhecer
a biografia de Musset, embriagava-se com essa leitura; ficava a sonhar fantasias
estranhas, amores céticos, viagens misteriosas e paixões indefinidas. As criadas
da casa ou as mulatinhas da vizinhança já o enfaravam :era preciso descobrir
amores mais finos, mais dignos, que, nem só lhe contentassem a carne, como
igualmente lhe socorressem as ânsias da imaginação. Por esse tempo leu a Graziella
e o Raphael de Lamartine .Ficou possuído de uma grande tristeza ;as lágrimas
saltaram-lhe sobre as páginas do livro. Sentiu necessidade de amar por aquele
processo, mergulhar na poesia ,esquecer-se de tudo o que o cercava, para viver
mentalmente nas praias de Nápoles, ou nas ilhas adoráveis da Sicília, cujos
nomes sonoros e musicais lhe chegavam ao coração como o efeito de uma saudade
,amarga e doce, de uma nostalgia inefável, profunda, sem contornos, que o
atraía para outro mundo desconhecido, para uma existência , que lhe acenava
de longe, a puxá-lo com todos os tentáculos de seu mistério e da sua irresistível
melancolia. Uma ocasião, deitado ao pé da janela de seu quarto, pensava em
“Graziella”. A tarde precipitava-se no crepúsculo e enchia a natureza de tons
plangentes e doloridos. A um canto da rua um italiano tocava uma peça no seu
realejo. Era a Marselhesa. Amâncio conhecia algumas passagens da revolução
de França :lera os Girondinos de Lamartine. E a reminiscência do sentimentalismo
enfático dessa obra, coada pela retórica poderosa da música de Lisle , trouxe-lhe
aos nervos um sobressalto muito mais veemente que das outras vezes. Julgou-se
infeliz, sacrificado nas suas aspirações, no seu ideal. Precisava viver, gozar
sem limites!…Não ali, perto da família, estudando miseráveis lições do Liceu,
mas além, muito além, onde não fosse conhecido , onde tudo para ele apresentasse
surpresas de que sua imaginação mal podia delinear. Por isto estimou deveras
ter de seguir para o Rio de Janeiro. A Corte era “um Paris”, diziam na província,
e ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas aventuras, cenas imprevistas,
impressões novas, e amores, – oh ! amores principalmente ! E, com efeito,
desde que pôs o pé a bordo, principiou a gozar de novidade, produzida no seu
espírito pela viagem. A circunstância de achar-se em um paquete, sozinho,
ouvindo o ronrom monótono da máquina e sentindo, como nos romances, as vozes
misteriosa dos elementos sussurrarem à volta de seus ouvidos – encantava-o
.Prestava muita atenção aos mais pequeninos episódios de bordo :olhava interessado
para a grossa figura dos marinheiros que baldeavam pela manhã o tombadilho,
a dançar com a vassoura aos pés; estudava o tipo dos outros passageiros, procurando
descobrir em cada qual um personagem de seus livros favoritos; ao abrir e
fechar das portas dos camarotes, espiava sempre, e às vezes lobrigava de relance,
ao fundo do beliche, uma figura pálida , ofegante, toda descomposta na imprudência
do enjôo. Ele é que nunca enjoava. À noite ia fumar para a tolda, estendido
sobre um banco, as pernas cruzadas, os olhos perdidos pelo oceano. Vinham-lhe
então as nostalgias da província; o coração dilatava-se por um sentimento
morno de saudade. Via defronte de si o vulto carinhoso de sua mãe, a chorar,
com o rosto escondido no lenço, o corpo sacudido pelos soluços. Quanto não
custou à pobre mulher separar-se do filho ?…Que violência não foi preciso
para lho arrancarem dos braços !foi como se pela Segunda vez lho tirassem
a ferro das entranhas. Antes mesmo da partida de Amâncio, muito sofrera a
mísera com a idéia daquela separação. Pensava nisso a todo instante, sem se
poder capacitar de que ele devia ir, atirado a bordo de um vapor, tão sozinho,
tão em risco de perigos. “Oh ! era muito duro !Era muito duro ! …” Mas Vasconcelos
opunha-lhe argumentos terríveis : – O rapaz precisava fazer carreira, Ter
uma posição ! Não seria agarrado às saias da mãe que iria pra diante !Há muito
mais tempo devia Ter seguido – o filho de fulano fora aos quinze anos ; o
de beltrano com vinte e três , e Amâncio já tinha vinte. Ia tarde ! Ângela
que se deixasse de pieguices. Justamente por estimá-lo é que devia ser a

primeira a querer que ele fosse, que se instruísse, que se fizesse homem
! Além disso o rapaz a poderia visitar pelas férias, nem sempre, mas de doeis
em dois anos. Ângela parecia resignar-se com as palavras de Vasconcelos ;fazia-se
forte :jurava que ” não era egoísta ” que ” não seria capaz de cortar a carreira
de seu filho” ; mal, porém o marido lhe dava as costas, voltava-lhe a fraqueza
:vinham-lhe as lágrimas, tornavam as agonias. Por vezes, no meio do jantar,
enquanto os outros riam e conversavam, ela, que até aí estivera a pensar,
abria numa explosão de soluços e retirava-se para o quarto, aflita, envergonhada
de não poder dominar aquele desespero. Outras vezes acordava por alta noite,
a gritar, a debater-se, a reclamar o filho, a disputá-lo contra os fantasmas
do pesadelo. No dia da viagem não se pôde levantar da cama, tinha febre, vertigens
; a cabeça andava-lhe à roda. E não queria mais ninguém perto de si, além
do filho, só ele ! “Não a privassem de Amâncio ao menos naquele dia ! “E tomava-o
nos braços, procurava agasalhá-lo ao colo, como fazia dantes, quando ele era
pequenino. Afagava-lhe a cabeça beijava-lhe de novo as mãos, os olhos, o pescoço,
envolvia-o todo em mimos, como, se, na santa loucura de seu amor, imaginasse
que eles lhe preservariam o filho contra os escolhos da jornada e contra os
futuros perigos que o ameaçavam. – Minha pobre mãe !…suspirava Amâncio no
tombadilho, derramando o olhar lacrimoso pela inconstante planície das águas.
– Minha pobre mãe!… E vinham-lhe então fundas saudades de sua terra, de
sua casa e de seus parentes. As palavras de Ângela palpitavam-lhe em torno
da cabeça, com uma expressão de beijos estalados. Lembrava-se dos últimos
conselhos que ela lhe dera, das suas recomendações, das suas pequeninas previdências;
de tudo isso, porém, o que mais lhe ficara grudado à memória foi o que lhe
disse a boa velha muito em particular, a respeito de dinheiro. “Se não te
chegar a mesada, ou se te vierem a faltar os recursos, escreve-me logo duas
linhas, que eu te mandarei o que precisares. Mas não convém que teu pai saiba
disso…” Para as primeiras despesas na Corte e para os gastos nas províncias,
juntou ao que dera Vasconcelos ao filho, mais quinhentos mil-réis ;não achava
bom, entretanto, que Amâncio saltasse em todos os portos. ” Era muito arriscado
!Ele não se deveria expor de semelhante forma !” E a lembrança do dinheiro
puxou logo outros consigo e arremessou-o no frívolo terreno de seus devaneios
tolos e voluptuosos. Vieram as recordações ;começou a desenfiar mentalmente
o rosário dos amores que acumulara dos quinze anos até ali. Era um rosário
extravagante ;havia contas de todos os matizes e de todos os feitios. Entre
elas, porém, só três se destacavam, três belas contas de marfim :- a filha
mais velha do Costa Lobo, a mulher de um comendador , amigo de seu pai, e
uma viúva de um oficial do Exército. E só. Todas as outras suas conquistas
não valiam nada ;de algumas tinha, contudo, bem boas recordações: a Francisca
de Vila do Paço. Por exemplo, – uma caboclinha, que se apaixonou por ele e
vinha persegui-lo até a cidade ;uma espanhola, mulher de um tipo barbado e
calvo, que andava a mostrar figuras de cera pelas províncias do Norte, uma
senhora gorda, Amasiada com um boticário, da qual elogiavam muito as virtudes,
mas que um dia atirou-se brutalmente sobre Amâncio , dizendo que o amava e
trincando-lhe os beiços. E como estas, outras e outras recordações foram-se
enfiando e desenfiando pelo espírito sensual e mesquinho do vaidoso, até deixá-lo
mergulhado na apatia dos entes sem ideais e sem aspirações. Mas, já não queria
pensar nesses amores da província ;tudo isso agora se lhe afigurava ridículo
e acanhado. A Corte , sim! é que lhe havia de proporcionar boas conquistas.
” Ia principiar a vida!” E, nessa disposição chegou ao Rio de Janeiro.

III

Estava hospedado há dois dias em casa do Campos; esse tempo levara ele a
entregar cartas e encomendas. À noite, fatigado e entorpecido pelo calor,
mal tinha ânimo para dar uma vista de olhos pelas ruas da cidade. Entretanto,
a vida externa o atraía de um modo desabrido; estalava por cair no meio desse
formigueiro, desse bulício vertiginoso, cuja vibração lhe chegava aos ouvidos,
como os ecos longínquos de uma saturnal. Queria ver de perto o que vinha a
ser essa grande Corte, de que tanto lhe falavam ;ouvira contar maravilhas
a respeito das cortesãs cínicas e formosas, ceias pela madrugada, passeios
ao Jardim Botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro
bêbado; – e tudo isso o atraía em silêncio, e tudo isso o fascinava, o visgava
com o domínio secreto de um vício antigo.

– Mas, por onde havia de principiar ?…Não tinha relações, não tinha amigos
que o encaminhassem ! Além disso, o Campos estava sempre a lhe moer o juízo
com as matrículas, com a entrada na academia, com o inferno de obrigações
a cumprir, cada qual mais pesada, mais antipática, mais insuportável ! – Olhe
, seu Amâncio, que o tempo não espicha – encolhe !…É bom ir cuidando disso!…
Repetia-lhe negociante, fazendo ar sério e comprometido. – Veja agora se vai
perder o ano ! Veja se quer arranjar por aí um par de botas !… Amâncio fingia-se
logo muito preocupado com os estudos e falava calorosamente na matrícula.
Mexa-se então, homem de Deus! Bradava o outro. – Os dias estão correndo. Afinal,
graças aos esforços de Campos, consegui matricular-se na academia, duas semanas
depois de Ter chegado ao Rio de Janeiro. O medo às matemáticas levara-o a
desistir da Marinha e agarrar-se à Medicina, como quem se agarra a uma tábua
de salvação ; pois o Direito, se bem que, para ele, fosse de todas a mais
risonha, não lhe servia igualmente, visto que Amâncio não estava disposto
a deixar a Corte e ir ser estudante na província. A medicina, contudo longe
de seduzi-lo, causava-lhe um tédio atroz. Seu temperamento aventuroso e frívolo
não se conciliava com as frias verdades da cirurgia e com as pacientes investigações
da terapêutica. Pressentia claramente que nunca daria um bom médico, que jamais
teria amor às sua profissão. Esteve a desistir logo nos primeiros dias de
aula : o cheiro nauseabundo do anfiteatro da escola, o aspecto nojento dos
cadáveres, as maçantes lições de Química, Física e Botânica, as troças dos
veteranos, a descrição minuciosa e fatigante da osteologia, a cara insociável
dos explicadores; tudo isso o fazia vacilar ;tudo isso lhe punha no coração
um duro sentimento de má vontade, uma antipatia angustiosa, um não querer
doloroso e taciturno. Às vezes, no entanto, pretendia reagir :atirava-se ao
Baunis Bouchard e ao Vale, disposto a ler durante horas consecutivas ,disposto
a prestar atenção, a compreender ; mal, porém, ele se entregava aos compêndios,
o pensamento, pé ante pé, ia-se escapando da leitura, fugia sorrateiramente
pela janela, ganhava a rua, e prendia-se ao primeiro frufru da saia que encontrasse.
E Amâncio continuava a ler a estranha tecnologia da ciência, a repetir maquinalmente,
de cor, os caracteres distintivos das vértebras, ou a cismar abstrato nas
propriedades do cloro e do bromo, sem todavia conseguir que patavina daquilo
lhe ficasse na cabeça. – Não haver uma academia de Direito no Rio de Janeiro
!lamentava ele, bocejando, a olhar vagamente a sua enfiada de vértebras, que
havia comprado no dia anterior. Porque, no fim de contas, tudo que cheirasse
a ciência de observação o enfastiava : “Deixassem lá , que a tal osteologia
e a tal Química nada ficavam a dever às matemáticas !…” Ah ! o Direito,
o Direito é que , incontestavelmente, devia ser a sua carreia. Preferia-o
por achá-lo menos áspero, mais tangível, mais dócil, que outra qualquer matéria.
E esse mesmo…Valha-me Deus ! tinha ainda contra si o diabo do latim, que
era bastante para o tornar difícil. E lembrar-se Amâncio de que havia por
aí criaturas tão dotadas de paciência, tão resignadas, tão perseverantes,
que se votavam de corpo e alma ao cultivo das artes !…das artes, que, segundo
várias opiniões, exigiam ainda mais constância e mais firmeza do que as ciências
!…Com efeito,! Era preciso Ter muita coragem, muito heroísmo, porque as
tais belas-artes, no Brasil, nem sequer ofereciam posição social, nem davam
sequer um titulozinho de doutor ! – Qual! Não seria com ele !…Fosse gastando
quem melhor quisesse a existência na concepção de um bom quadro, de uma boa
estátua, de uma ópera genial ou de um bom livro de literatura, que ele ficava
cá de fora – para apreciar. O mais que podia fazer, era – aplaudir; aplaudir
e pagar ! – E já não fazia pouco !… Isso justamente ouviu, por mais de uma
vez, da boca de seu pai .O velho .Vasconcelos nunca tomou a sério os artistas
“Uns pedaço-d’asnos!” qualificava ele, e, de uma feita em que o Franco de
Sá lhe comunicou os seus projetos de estudar pintura na Europa, o negociante
fez uma careta e exclamou, batendo-lhe no ombro: “Homem, seu Sazinho !não
seria eu que lhe aconselhasse semelhante cabeçada. .porque, meu amigo, isto
de artes é uma cadelagem! Procure meios de obter cobres, e o senhor terá à
sua disposição os artistas que quiser !” – E nisto tinha o velho toda a razão,
pensava Amâncio. Acho apenas que devia estender a sua teoria até o estudo
de certas ciências…como a Medicina…Sim ! porque , afinal, com o dinheiro
também obtemos os médicos de que precisamos, e não vale a pena, por conseguinte,
gramar seis anos de academia e curtir as maçadas que estou suportando, sabe
Deus como ! – Mas ,neste caso, a questão muda muito de figura !dizia-lhe em
resposta uma voz que vinha de dentro de seu próprio raciocínio Não se trata
aqui de fazer um “médico”, trata-se de fazer um “doutor”, seja ele do que
bem quiser !Não se trata de ganhar uma “profissão”, trata-se de obter um “título”.
Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade.

– Visto isso, porém, objetava Amâncio, – quero crer que o mais acertado seria
comprar uma carta na Bélgica ou na Alemanha ,e mandar ao diabo, uma vez por
todas, aquela peste de Medicina ! Ora, Medicina, Medicina servia para algum
moço pobre que precisasse viver da clínica; ele não estava nessa circunstâncias.
Era rico ! só com o que lhe tocava por parte materna, podia passar o resto
da vida sem se fatigar !…Por que, pois, sofrer aquelas apoquentações do
estudo ? Por que razão havia de ficar preso aos livros, entre quatro paredes,
quando dispunha de todos os elementos para estar lá fora , em liberdade, a
se divertir e a gozar ?!… Mais uma idéia sustinha-lhe o vôo do pensamento
;o vulto angélico de sua mãe vinha colocar-se defronte dele, abrindo os braços,
como se o quisesse proteger de um abismo. Ah! quanto empenho não fazia a pobre
velha em vê-lo formado às direitas, numa faculdade do Brasil ! … Vê-lo doutor
!… – Doutor, hein?! repetia Amâncio, meio animado com o prestígio que ao
nome lhe daria o título. E ligava-os mentalmente, para ver o efeito que juntos
produziam : – Doutor Amâncio ! Doutor Amâncio de Vasconcelos ! Não fica mal
! não fica !A mãe tinha razão : – Era preciso ser doutor !… E quanto ao
gosto, que prazer, não sentiria nisso a querida velha !…Oh ! ele agora pensava
em Ângela com muito mais ternura ;nela resumia toda a família e tudo que houvesse
de bom no seu passado. Só com a ausência pôde avaliar o muito que a respeitava
e o muito que a estremecia. Ele, que não chorara ao despedir-se da mãe; ele,
que, algumas vezes chegou até a se aborrecer de seus desvelos e da insistência
de seus carinhos – agora não a podia ter na memória, sem ficar com coração
opresso e os olhos relentados de pranto. Pungia-lhe a consciência uma espécie
de remorso por não se ter mostrado mais afetuoso e mais amigo, enquanto a
possuiu perto de si, por não ter melhor aproveitado essa ocasião para deixar
bem patente que sabia ser “bom filho”. E punha-se então a mentalizar planos
de melhor conduta para quando voltasse ao lado de Ângela; considerava os mimos
que teria com ela, os afagos que lhe havia de dispensar, os beijos que lhe
havia de pedir. – Ah ! Se naquele momento ele a tivesse ali , o que não lhe
diria ! E, por uma necessidade urgente de expansão, levantou-se da cadeira
em que estava e correu à secretária , disposto a escrever uma carta, longa,
a sua mãe. Precisava queixar-se do isolamento em que vivia, contar-lhe as
suas tristezas; as suas contrariedades, justamente com o fazia dantes, em
pequeno, ao voltar da aula do Pires. Sua alma tornava atrás , fazia-se infantil,
muito criança, muito ingênua e carecida de amparo. A mãe, enquanto esteve
ao lado dele, foi sempre um coração aberto para lhe receber as lágrimas e
os queixumes. Também , só elas, só as mães, podem servir a tão delicado mister.
O que se lança ao peito da amante desde logo arde e se evapora, porque aí
o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto
na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração
materno – brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore,
nem, frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a trepidez
de um seio intumescido e ressumbrante de leite. E escreveu : “Mamãe ” Hesitou
logo. Aquele modo de tratar não lhe pareceu conveniente; queria uma carta
de efeito, com estilo, uma carta a primor, que desse idéia de seu talento
e ao mesmo tempo de sua afeição : “Minha querida mãe. Eis-me na grande Corte,
que aliás me parece estúpida e acanhada por achar-me longe de vossemecê…”
Vinham, em seguida, muitos protestos de amor filial e depois uma extensa descrição
da cidade, a qual ocupava duas laudas da carta . Na terceira escreveu o seguinte:
” Desde que vim daí, o Sabino só me tem dado maçadas; a bordo vivia a brigar
com os outros criados; aqui nunca me aparece; sai pela manhã e já faz muito
quando volta à noite. Pilhou-se sem castigo e abusa desse modo. Ainda não
lhe consegui arranjar a matrícula no Tesouro e nem sei como isso se obtém;
o Campos é que há de ver. ” Como sabe, há mês e meio que me acho hospedado
em cada deste. Aqui nada me falta, é certo, mas igualmente nada me satisfaz,
porque estou muito isolado e aborrecido. A família é atenciosa o quanto pode
ser comigo; eu, porém , apesar disso , não deixo de ser para eles um estranho
e , como tal, apenas recebo cortesias e hospitalidade. D. Maria Hortênsia
é amável, mas por uma simples questão de delicadeza; da irmã, D. Carlotinha,
nem é bom falar !Esta, se já me dispensou duas palavras, foi o máximo, parece
até que tem medo de olhar para mim ;talvez com receio de desagradar ao guarda-livros,
que, pelos modos, é lá o seu namorado. Do que não resta dúvida é que o tal
guarda-livros é de todos o mais antipático e difícil de suportar. Um hipócrita
!Está sempre com a carinha n’ água e já, por várias vezes, se tem querido
meter a espirituoso cá para o meu lado. – São ditinhos,

indiretas de instante a instante. Eu, qualquer dia destes, o chamo à ordem!
Ainda não há uma semana, veja isto! fui a um espetáculo dramático no São Pedro
de Alcântara e à volta, quando cheguei à casa, quis acender a vela para estudar.
Quem disse?…o fogo não se comunicava ao pavio. Verifico :- no lugar da torcida
haviam posto um prego ;fiquei com os dedos queimados. E esta graça não foi
de outro senão o tal cara de mono ! ” Já me lembrou mudar-me ;o Campos, porém,
acha que o não devo fazer enquanto não descobrir por aí um bom cômodo, em
alguma casa de pensão.” E no mesmo teor ia por diante , até encher duas folhas
de papel marca pequena. Amâncio narrava à mãe todos os seus passos e todos
os seus desgostos, sem lhe confessar, todavia, que o principal motivo daquele
descontentamento estavas em não poder recolher de noite às horas que entendesse;
em Ter por único companheiro de passeios o Luís Campos, cuja sobriedade nos
gestos e costumes, discrição nos termos, cujo aspecto repreensivo e pedagógico,
de mentor, faziam-no já perfeitamente insuportável aos olhos do estudante.
– Ora adeus !considerava este, deveras enfiado. – Não foi para a me fazer
santo, que vim ao Rio de Janeiro ! Boas !Podia lá estar disposto a sofrer
aquele ele maçante do Campos !…Mas também não seria muito divertido andar
sozinho pela cidade, a trocar pernas, sem um companheiro, sem um amigo. Além
disso temia do seu provincialismo, receava “fazer figura triste”; ainda não
conhecia o preço das coisa e o nome das ruas. No Maranhão falavam com tanto
assombro dos gatunos da Corte! _os tais capoeiras! E Amâncio sobressaltava-se
pensando num encontro desagradável, em que lhe cambiassem o dinheiro e as
jóias por uma navalhada. Seu maior desejo era Ter ali um dos amigos da província,
a quem confiasse as impressões recebidas e com quem pudesse conversar livremente,
à franca , sem medir palavras, nem tomar as enfadonhas reservas e composturas,
que lhe impunha a censória presença do negociante. Por isso, numa ocasião
, em que atravessava pela manhã o Beco do Cotovelo, sentiu grande alegria
ao dar cara a cara com o Paiva Rocha. O Paiva era seu comprovinciano e fora
seu condiscípulo; pertenceram à mesma turma de exames na aula do Pires e matricularam-se
juntos no Liceu. Mas, enquanto o filho do Vasconcelos estudou as três primeiras
matérias, o outro fez todos os preparatórios. Abraçaram-se. Houve exclamações
de parte a parte. – Ora o Paiva !disse Amâncio afinal, encarando o amigo com
um olhar muito satisfeito. – Não te fazia aqui na Corte ! – Estou na Politécnica.
– Ah! exclamou Amâncio ,com interesse. – Que ano ? – Terceiro. – Bom. Estás
quase livre !- – Qual! resmungou o Paiva, mascando o cigarro. – tenho ainda
muito que aturar! E passaram então a falar de estudos. Amâncio fazia recriminações:
“Só encontrara dificuldades”. Disse a sua antipatia pelas ciências práticas
;queixou-se de alguns veteranos, que por serem mais antigos na escola, se
julgavam com direito de maltratar os outros. “Era estúpido! simplesmente estúpido!”
– Tradições ! respondeu o Paiva, com a indiferença de quem não preocupam tais
bagatelas. – Isso há de acabar…A natureza não dá saltos ! Amâncio, como
qualquer provinciano que ainda não tivesse ocasião de apreciar o Rio de Janeiro,,
julgava-se tão desiludido a respeito dele, quanto a respeito de estudos. –
Sempre imaginei que fosse outra coisa !…disse. – A tal Rua do Ouvidor, por
exemplo!… Paiva já não o ouvia, era todo atenção para um cartaz de teatro,
que um sujeito pregava na parede defronte. Amâncio prosseguiu, declarando
que, até ali, nada encontrara de extraordinário na Corte. – Com franqueza
– _antes o Maranhão ! Com franqueza que antes ! Não achas?…perguntou. –
É ! respondeu o outro, distraído. Mas Amâncio precisava desabafar e não se
contentou com aquela resposta. Insistiu na pergunta; chamou a atenção do Paiva,
agarrando-se-lhe à gola esgarçada do fraque. – Não, filho, deixa-te disso,
retorquiu o interrogado. – A Corte sempre é Corte!… – Ora qual ! – É porque
ainda não estás acostumado, ainda não conheces o Rio! Hás de ver depois !…
Amâncio duvidava. – Verás ! repetia o Paiva.- Daqui a um ou dois anos é que
te quero ouvir. E passaram de novo a falar de estudos, matrícula e de exames.
Paiva bocejou; o outro estava “caceteando” .Quis safar-se. – Espera ! implorou
Amâncio, apoderando-se-lhe de novo da gola do fraque – Espera!

Onde vais tu ?… Conversa mais um pouco! suplicava ele com a voz infeliz
de quem pede uma esmola. Não te vás ainda ! Que pressa ! Paiva tinha de ir
almoçar com um amigo. Estava muito ocupado! “Naquele dia não dispunha de um
momento seu” Depois ,depois se encontrariam ! – Não! Vem cá! Espera! O Paiva
levantou as sobrancelhas, impacientando-se. – Mas, vem cá, dize-me uma coisa:
o que é que tanto tens hoje a fazer?…inquiriu o outro. – Filho, questões
de interesse! respondeu aquele, procurando abreviar explicações. Veio-lhe,
porém, um ímpeto de raiva e começou a falar alto sobre dinheiro; havia brigado
na véspera com o seu correspondente. – Um burro! exclamava,- um vinagre! Imagina
tu que o malvado sabe perfeitamente que não tenho ninguém por mim aqui no
Rio, e põe-se com dúvidas para me dar a mesada! …Como se aquele dinheiro
lhe saísse do bolso! Diabo da peste! – Ele então não te quis dar a mesada
?…perguntou Amâncio muito espantado. – É o costume aqui !retrucou o Paiva
desabridamente.- Eles julgam que nos fazem grande obséquio em dar-nos aquilo
que nos pertence! E, olhando para Amâncio com os olhos apertados: – Mas também,
filho, disse-lhe meia dúzia de desaforos, como ele nunca ouviu em sua vida!
Cão! E expôs a descompostura por inteiro, na qual as palavras galego ,ladrão,
cachorro entravam repetidas vezes. – De sorte que, terminou o estudante mais
tranqüilo, como se houvesse despejado um peso nas costas,- não tenho lá ido
! Questão de capricho, sabes ? olha, estou assim ! E bateu nas algibeiras.
– Isso arranja-se …disse Amâncio timidamente, receoso de humilhar o colega.
E depois, com um vislumbre: Vamos almoçar a um hotel ?! O Paiva concordou,
sacudindo os ombros. E, como Amâncio perguntasse onde deviam ir, começou a
citar os melhores hotéis; já sem deixar transparecer o menor indício de pressa.
Fazia-se grande conhecedor da Corte, muito carioca, saboreando muito voluptuosamente
o efeito de pasmaceira, que a sua superioridade causava no amigo. Deu-se logo
ares de cicerone ; mostrou-se habituadíssimo com tudo aquilo que pudesse causar
admiração a um provinciano recém-chegado; fingiu desdém por umas tantas coisas,
que à primeira vista pareciam boas e falou de outras, menos conhecidas, com
entusiasmo, com interesse pessoal e com orgulho. Amâncio escutava-o em recolhido
silêncio, mas, como estivesse a cair de apetite, voltou logo à idéia do almoço:
lembrou que poderiam ir ao Coroa de Ouro. Paiva fitou-o espantado, e espocou
depois uma risada falsa: – Aquela era mesma de quem vinha do Norte! Almoçar
no Coroa de Ouro Vade retro ! Amâncio não teve ânimo de defender a sua proposta,
e seguiu o companheiro que pusera a andar com ímpeto. Entram na Rua do Carmo,
atravessaram a de São José e, ao caírem na da Assembléia, Paiva, que ia a
pensar, voltou-se de súbito para Amâncio e perguntou-lhe decisivamente : –
Tu queres almoçar bem ?! E feriu a última palavra. – É ! respondeu o outro.
– Pois então vamos ao Hotel dos Príncipes ! E seguiram pela Rua Sete de Setembro
até o Rocio.

* * *

Ao penetrarem no largo, uma menina italiana, de alguns dez anos de idade,
toda vestida de luto, morena, o ar suplicantemente risonho e cheio de miséria
,abraçou-se às pernas de Amâncio, pedindo-lhe dinheiro – para levar à mãe
que estava em casa morrendo de fome. – Sai ! gritou-lhe o Paiva, procurando
arredá-la. Mas a pequena ajoelhou-se, sem largar as pernas do calouro, de
uma de cujas mãos já se tinha apoderado e cobria de beijos – Então, papai!
papaizinho bonito ! uma esmolinha, sim?…dizia ela, voltando para o moço
seus belos olhos de crianças, rindo com uns dentes muito brancos que se lhe
destacavam vivamente da cor morena do rosto.

– Coitadinha ! lamentou Amâncio, fazendo-lhe uma festa no queixo e procurando
dinheiro na algibeira das calças.. Puxou um maço grosso de cédulas. – Não
sejas tolo! gritou-lhe o companheiro. – Isto é especulação de algum vadio!
Vestem por aí essas bichinhas de luto e mandam-nas perseguir a humanidade!
É uma esperteza, não sejas tolo ! A pequena lançou ao Paiva um gesto de raiva
e sorriu para Amâncio, suplicando. – Em todo o caso faz dó, coitada! murmurou
este, dando-lhe uma cédula de dois mil-réis. A italianinha agarrou-se ao dinheiro
e olhou surpresa para o calouro. Depois beijou-lhe novamente as mãos, e fugiu,
atirando-lhe beijos. – Coitada ! repetiu ele. – Ainda está muito peludo! resmungou
o Paiva.- Olha que isto por cá não é o Maranhão! E pôs-se logo a falar nas
especulações do Rio de Janeiro. Contou fatos horrorosos de cinismo e gatunagem.
“Amâncio que se acautelasse: no caminho em que ia, lhe haviam de arrancar
até os olhos.- Ali, a ciência de cada um consistia em fazer com que o dinheiro
passasse das algibeiras dos outros para as próprias algibeiras”. Estava indignado
! “Não podia, a sangue -frio, ver assim se atirar à rua – dois mil-réis !Ah!
se o outro soubesse quanto o dinheiro custava a ganhar, não teria as mãos
tão rotas !” E mostrava-se extremamente empenhado nos interesses do colega
: dava-lhe conselhos ; havia de abrir-lhe os olhos, indicar-lhe o verdadeiro
caminho a segui. ” Não !Que ele não era desses, que só querem desfrutar !…
Quando simpatizava com um rapaz, sabia ser amigo ! Amâncio o veria no futuro!…
– Olha ! segredou-lhe ,passando-lhe um braço nas costas, – Hás de encontrar
por aí muito artista !Acautela-te, filho !acautela-te, que os cabras sabem
levar água ao seu moinho !Digo-te isto, porque te estimo, porque sou teu amigo,
percebes ? Amâncio percebia e jurava ser muito grato àquela dedicação. Tiveram
. porém, de interromper o diálogo :dois outros estudantes acabavam de parar
defronte deles. Eram amigos do Paiva. Houve logo novas exclamações e cumprimentos
rasgados. – Meus senhores, exclamou aquele. apresentando Amâncio. O nosso
colega, Amâncio de Vasconcelos, estudante de medicina. Escuso dizer que é
muito talentoso e um caráter excelente. Os dois apertaram a mão de Amâncio
com solenidade, e afiançaram que tinham imenso gosto em conhecê-lo. – João
Coqueiro e Salustiano Simões !nomeou o Paiva, indicando os dois. – São ambos
da Politécnica E acrescentou em voz baixa, ao ouvido de Amâncio, mas de modo
que fosse ouvido por todos: – Muito distintos !… O Coqueiro observava em
silêncio o novo colega ;enquanto o Paiva e o Salustiano reatavam um velho
colóquio, interrompido à última vez que estiveram juntos; saiu do seu recolhimento
para indagar de que província era Amâncio, como ia-se dando nos estudos e
onde estava hospedado. Entretanto, o Simões afrouxava lentamente na conversa
com o outro e caía aos poucos na sua habitual concentração; já respondia apenas
por monossílabos e só despregava o cigarro dos dentes para bocejar. Afinal,
sem conter a impaciência, quis dissolver o grupo; mas Amâncio tolheu-lhe a
idéia perguntando-lhe e mais ao Coqueiro se já tinham almoçado e, visto que
não, pediu-lhes que lhe fizessem companhia. Aceitaram, depois de alguma resistência
por parte do último; e os quatro rapazes seguiram imediatamente caminho do
hotel, a rir e dar de língua, como se fossem todos amigos de muito tempo.
Paiva Rocha pediu um gabinete particular e aí se instalou com os outros. Amâncio
estava maravilhado. O aspecto daquelas salas afestoadas, cheias de espelhos,
de cortinas e douraduras , no gênero pretensioso dos hotéis, ar parisiense
dos criados, vestidos de preto e avental branco; a cor estridente do gabinete;
o perfume das flores que guarneciam jarras de proporções luxuosas; o alvoroço
palavroso e alegre dos que faziam a sobremesa; o crepitar do riso das mulheres,
cujos penteadores branquejavam sobre o escuro dos tapetes; a reverberação
dos cristais; a expectativa de um bom almoço, que seria devorado com apetite,
e finalmente a circunstância de que Amâncio, havia muito não gozava uma pândega;
tudo isso lhe refrescava o humor e o fazia feliz naquele momento – Garçon!
Gritou o Paiva, entrando no gabinete com um ar sem – cerimônia.- La carte
! O criado disparou. – Tu falas francês ?…inquiriu Amâncio, já com admiração
na voz.

– Ora ! respondeu o Paiva, levantando os ombros. Aqui na Corte será difícil
encontrar alguém que não fale francês!… – Pois eu ainda não sei…disse
aquele tristemente.. – Questão de prática! observou o outro. Coqueiro, que
acabava nesse momento de entrar no gabinete, conversando com Simões, propôs
que se despissem os paletós. Principiaram a comer. O Paiva encarregara-se
do menu. Estava radiante; parecia empenhado na direção do almoço, como se
tratasse de um trabalho difícil e glorioso. Escolhia pratos esquisitos e determinava
os vinhos que os deviam acompanhar. – Este Paiva é terrível para um menu!
observou o Simões em ar de troças. – Não! disse aquele. – Não admito que ninguém
dirija um almoço melhor do que eu! – Sim, considerou o Coqueiro – mas vais
ver por que preço sai tudo isso !… – Não faz mal !…apressou-se Amâncio
a declarar.- Sinto-me tão bem entre os senhores…há tanto tempo não tinha
um momento livre, que… – Bem, de acordo, respondeu Coqueiro – mas é preciso
deixar esse tratamento de “senhor”. Entre rapazes não deve haver cerimônias,
mal-entendidos; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos
desde já por “tu “! Não és da mesma opinião, ó Paiva ? – In totum! respondeu
este, abraçando Amâncio pela cintura. – Nós cá somos camaradas velhos! vem
de longe! E parecia querer provar que seus direitos sobre o comprovinciano
eram muito mais legítimos que os dos outros dois; que Amâncio lhe pertencia
quase exclusivamente, como um tesouro, como uma fortuna que se traz do berço.
E, para deixar isso bem patente, fazia-se muito íntimo com ele: batia-lhe
nas pernas; evocava recordações; lembrava-lhes as correrias das província:
– Ah ! Nós éramos muito camaradas ! Lembras-te Amâncio daquele passeio que
fizemos ao Portinho ?… – Em que o Malheiros tomou uma bebedeira de charuto,
perguntou o interrogado a rir. – Naquele dia do barulho no Liceu; quando o
Chico moleque foi expulso !… – É verdade! que fim levou esse rapaz! Quis
saber o Paiva. – Era um bom tipo. Inteligente! – Morreu, coitado! de bexigas.
Ultimamente estava no comércio. – E aquele pequeno, o … – Qual ? – Aquele
bonito, de cabelos grandes …ora, como se chamava ele? … o … – Ah ! exclamou
Amâncio, soltando uma risada – o Dominguinhos ? – Isso ! isso! Dominguinhos
justamente ! Que fim levou ? – Não sei, não! Creio que seguiu para Manaus
com a família. Um bobo ! Lembras-te da troça que lhe fizemos no convento?…
E os dois riram-se muito com a mesma idéia.

Simões, que até ali parecia pouco disposto à pândega, foi-se animando na
proporção das garrafas que se enxugavam. O almoço aquecia. João Coqueiro propôs
um brinde a Amâncio e declarou, depois de lhe fazer muitos elogios, que folgaria
imenso com ser recebido no rol de seus amigos. Amâncio abraçou-o e prometeu
que o iria visitar no primeiro Domingo. – Vá feito ! sustentou o Coqueiro.
Ali não há cerimônia, minha família é muito despida dessa coisas. – Ah ! mora
com a família ? interrogou o provinciano. – Sou casado, respondeu o outro.-
Isso, porém ,nada quer dizer. Apareça. Ficou decidido que Amâncio iria sem
falta no próximo Domingo. Simões principiou então a falar sobre o casamento
;daí passou às mulheres: descreveu a sua indiferença por elas. Só lhes conhecia
dois gêneros : “a mulher cínica e a mulher hipócrita”. Paiva Rocha protestava:
– Havia muita mulher honesta, verdadeiros anjos de virtude ! E que deixassem
de falar ! em certas ocasiões uma boa rapariga tinha o seu cabimento ! Sim
!Quem não gostava da estética ?… Amâncio era da mesma opinião, e queixou-se
de sua infelicidade no Rio a esse respeito. – Ainda é cedo ! elucidou o Salustiano
.- Quando te começarem as aventuras, hás de ver o quer vai por essa sociedade
! – Não é tanto assim! opôs o Coqueiro.- Vocês são todos homens dos extremos!
E voltando-se confidencialmente para Amâncio :

– O doutor, decerto, encontrará uma mulher perigosa, de quem deve fugir como
o diabo da cruz; mas terá também ocasião de ver algumas raparigas bem educadas,
honestas e inteligentes. Não as vá procurar na alta sociedade, não ,que aí
se escondem as piores! mas indague-as por baixo, na mediocracia, que as há
de descobrir. E olhe, se quer aceitar um conselho de amigo, case-se! Não há
melhor vidinha! Estou casado há três anos e ainda não tive um segundo de arrependimento
!…Ao menos conserva-se a saúde, desenvolve-se o espírito e trabalha-se mais
…O método, homem ! o método é o segredo da existência ! E, puxando a cadeira
par mais perto de Amâncio, falou-lhe em voz baixa. Que no Rio de Janeiro era
preciso ter um amigo sincero, não que “primasse nos menus “, mas que fosse
capaz, que tivesse imputabilidade moral ! – Amâncio estava defronte de duas
estradas; uma que conduzia à verdadeira felicidade e outra que conduzia à
desordem, ao vício e à completa desmoralização! Que se não deixasse levar
pelos pândegos !… (E olhava à esconsa os dois outros companheiros. ) Aquilo
era gente sem nada a perder!… Amâncio, enfim, que aparecesse no Domingo
e teriam ocasião de falar mais de espaço. Não deixasse de ir: havia muito
que dizer e conversar. Amâncio prometeu de novo. O almoço chegara ao ponto
em que todos os comensais falam todos ao mesmo tempo e em voz alta. Havia
agitação; afogueavam-se as faces ao reflexo vermelho das paredes do gabinete.
Simões discutia com o Paiva a incompetência dos professores da Politécnica.
– Uma súcia ! uma cambada ! sintetizava ele. – Se fosse preciso despedir dali
os que não prestam, não ficaria nenhum! O outro protestava, gritando e batendo
punhadas sobre a mesa. Havia já dois copos quebrados. O criado trouxera a
sobremesa, – uma salada russa. Paiva pediu gelados e quis que lhe dessem uma
omelette au rhum. “Não podia passar sem isso ao almoço!” Suavam. Amâncio tornava-se
expansivo: falou de seus amores na província; contou as suas intenções a respeito
da mulher do Campos. – Ela parece que o que tem é medo. dizia.- Mas eu sou
perseverante ! Espero ! – Menino, segredou-lhe o Paiva. – Vai aproveitando,
porque é isso o que se leva deste mundo! – E o mais são histórias !…concluiu
o filho de Vasconcelos. E fazia-se muito fino, perigoso, e continuava a parolar
com embófia, loquaz um pouco sacudido pelo almoço. Coqueiro estudava-o de
socapa, a seguir-lhe os gestos, a fariscar-lhe as intenções. Dos quatro era
o único que não estava tonto: seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam
a mesma penetração e a mesma fixidez incisiva de ave de rapina; sua boca estreita,
bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro
e frio, de quem escuta e observa. Era de altura regular, compleição ética,
rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro , nariz
agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto,
entre castanho e fulvo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quando muito,
vinte e dois. O Paiva erguera-se para fazer um bestialógico, e soltava de
enfiada frases sonoras e ocas de sentido: ouvia-se falar em “gazofiláceos,
camelos da Patagônia e constelações híbridas do mapa-múndi”. Simões, o macambúzio,
derreara a cadeira contra a parede e jazia a palitar a boca, estendido para
trás, em uma posição de homem farto: barriga ao vento, braços moles e um olhar
muito pando, que se lhe entornava por todo o rosto em sorrisos de preguiça.
Amâncio reatava a sua conversa com o Coqueiro – É como lhe digo, recapitulava
este. – Aquilo não é um hotel, é uma – casa de família !Não temos hóspedes,
temos amigos! Minha mulher é quem toma conta de tudo!…E dando à voz um tom
grave :- Ela é muito asseada, muito exigente em questões de comida! Você não
imagina !…Ao almoço temos três pratos, a escolher, leite, chá ou café, e
vinho ;pelo almoço pode calcular o que não será o jantar !- E depois é preciso
observar a qualidade dos gêneros !…enfim, só mesmo você indo ver ! Amâncio
reprometia. – Fica-se muito melhor em uma casa de família, continuava o outro.
A vida em hotel ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo, – o estômago,
o caráter, a bolsa ;ao passo que ali você tem o seu banho frio pela manhã,
torradas à noite e, se cair doente ( o que lhe não desejo ), há quem o trate,
quem lhe prepare um remédio, um caldo, um suadouro, um escalda-pés…Olhe
! até, se você quiser eu… Mas a porta abriu-se com violento empuxão , e
uma mulher loura, gorda, vestida de seda amarela, precipitou-se no gabinete,
espavorida, a soltar gritos. Vinha-lhe no encalço um sujeito idoso, cheio
de corpo, o chapéu a ré, o olhar desvairado e convulso.

– Podes ir para onde quiseres, que eu não te deixo ! berrava ele em fúria,
a dardejar o guarda-chuva sobre as costas da perseguida; esta corria de um
lado para outro, procurando escapar-lhe, mas o sujeito agarrou-a pelos cabelos
e consegui trazê-la contra si, levando os dois aos trambolhões tudo o que
encontravam no caminho. Em menos de um segundo era completa a desordem no
gabinete. Caíram cadeiras; a mesa estremeceu com um encontrão, e a saleira
e duas garrafas perderam o equilíbrio e tombaram, varrendo copos e esmagando
pratos. O tal guarda -chuva havia num dos golpes espatifado os globos do candeeiro,
e um dos fragmentos do vidro fora de encontro ao espelho e o fizera em pedaços.
– Isto não tem jeito !Gritou o Paiva ao homem. – O senhor faz mal em invadir
desta forma um gabinete ocupado! Mas o invasor já não ouvia coisa alguma e
acabava de sair aos pescoções com a sujeita. Paiva atirou-se-lhe à pista,
armado de uma garrafa. O gerente do hotel apareceu, porém, cortando-lhe o
passo e pedindo-lhe, por amor de Deus que não fizesse caso, que deixasse lá
os dois se esbordoarem à vontade ! – Era o costume ! Acabariam por entender-se
perfeitamente!. – O senhor então acha que isto é razoável ?! perguntou o Paiva
furioso. – Não, decerto ! E o gerente dava aos rapazes toda a razão: Deviam
estar maçados, mas que tivessem paciência! que desculpassem! Não fora possível
evitar tão grande sensaboria: O Brás, em questões de mulheres, perdia sempre
a cabeças! E ele não sabia que diabo de rabicho tinha o basbaque pelo demônio
da Rita Baiana, que, de vez em quando, era aquilo ! – Pois que se vá enrabichar
para o diabo que o carregue ! – Decerto, decerto ! apoiava o gerente , procurando
acalmar o estudante. – Ajuste as contas onde quiser, menos nos gabinetes ocupados
pelos outros ! Arre ! – É exato ! Os senhores têm todo o direito, mas por
quem são, não façam caso ! Não façam caso. – E esta ! insistia o Paiva.- Pois
se a gente paga muito mais para ficar em liberdade, como diabo há de se admitir
isto ?!… – Tem toda a razão !Tem toda a razão !…repetia o gerente, erguendo
as cadeiras e apanhando do tapete os cacos de vidro. Só então intervieram
os outros rapazes. Amâncio, até aí, parecia colado à cadeira .Estava lívido
e as pernas tremiam-lhe. O gerente ia responder a todos, quando a porta se
tornou a abrir, e o Brás, ainda transformado pela comoção da briga, ofegante
e pálido, quase sem poder falar, entrou, dizendo, – que ia pedir desculpa
da grosseria por ele praticada há pouco. – Mas estava possesso! justificava-se
ele. – Aquela não-sei-que-diga lhe fazia perder as estribeiras ! Que o desculpassem,
porque um homem em certas ocasiões nem se podia conter! Uma mulher, com quem
já havia gasto para mais de dez contos de réis!…exclamava ele fora de si.
Uma mulher que erguera da lama podia assim dizer! Uma desgraçada que antes
de o conhecer, não podia ir a parte alguma por não Ter um vestido capaz!…Uma
miserável, que dantes, para matar a fome, precisava aviar encomendas de costura
e se andar alugando na casa de modistas!…Era duro! Pois não achavam ?! Os
estudantes meneavam a cabeça ,afirmativamente. – Ah ! continuou o Brás.- Aquelas
contas tinham-se de ajustar na primeira ocasião em que ele a encontrasse com
o tal troca-tintas ! Ah ! Já não podia ! Era demais ! U ! E passeava no gabinete,
a empurrar com o pé os cacos esquecidos no chão, e a sorver o ar em grandes
haustos, consoladamente, como se acabasse de alijar um peso da consciências.
As palavras do Brás tranqüilizaram os rapazes, cuja embriaguez parecia ter
fugido com o susto. O Simões chegou mesmo a rir do fato, jactando-se mais
uma vez da sua eterna indiferença pelas mulheres. – Com ele é que nunca haveria
de suceder semelhante coisa!…afirmava. Amâncio convidou o Brás a beber,
e vazou-lhe vinho num copo. – Aquela descarada! resmungava o ciumento, examinando
uma arranhadura que vinha de descobrir na mão direita. – Ela, porém, comigo
está iludida !- ou me anda muito direitinha ou há de me ficar debaixo dos
pés ! Pedaço de uma ingrata ! E, voltando-se para o gerente que acabava de
entrar; – O sujeitinho foi-se, hein ? – Ora !…respondeu aquele com um riso
servil. – Ganhou logo a rua e…por aqui é o caminho! Ela é que pelos modos,
ficou bem convidada! Meteu-se no quarto a chorar. – Pois que chore na cama
que é lugar quente! Não fosse ordinária! Faça lá o que bem entender, mas,
com os diabos! não enquanto estiver comigo! Vá divertir-se com o boi ! Sebo!

E passado logo em seguida pra um tom de voz calma e amiga. disse baixo ao
gerente : – Veja de quanto foi o prejuízo e faça uma conta a parte. Pediu
ainda uma vez desculpa aos rapazes, afiançou que eles tinham um criado na
Ladeira da Glória, número tantos, e saiu, sempre às voltas com a sua arranhadura
da mão direita. Amâncio quis condenar o fato, mas o Paiva observou-lhe que
aquilo se dava todos os dias no Rio de Janeiro. – Eu já não estranho ! disse.
– Falta de educação !… – Bem, meus senhores, são horas de eu me ir também
chegando, advertiu Coqueiro, erguendo-se enfiando o paletó. O Simões fez igual
movimento e declarou que o acompanhava. – Então, que é isto já? Exclamou Amâncio,
querendo detê-los. – É. Está se fazendo tarde, respondeu Coqueiro, a consultar
o relógio. – Três horas. – Impossível !negou Amâncio. – Era exato. E Coqueiro,
já de chapéu na cabeça e guarda-chuva debaixo do braço, apertou-lhe a mão
com as duas, dizendo que folgava em extremo haver travado relações com ele
e que o esperava, sem falta, no Domingo. Simões fez igualmente as suas despedidas,
e os dois saíram a conversar sobre o quanto poderia custar a Amâncio aquele
almoço. – Também, que diabo, ficamos nós fazendo aqui? lembrou o Paiva, quando
se viu a sós com o amigo. – Paga isso e vamo-nos embora. Queres tu ir até
lá a casa ?… – Mas eu já estou a tanto tempo na rua …considerou Amâncio.
– E o que tem isso ?!…Deves contas de ti a alguém ?!Ora essa ! – É que o
Campos pode reparar !… – Pois que repare! Manda plantar batatas ao tal de
Campos! Tu não és nenhum caixeiro dele…Eu, no teu caso, nem ficava ali mais
um dia !Que necessidade tens agora de passar às sopas de um negociante, e
sujeitares-te a regulamentos comerciais ? É de mau gosto estar hospedado em
casa de negócio! Olha! Se quiseres, muda-te lá para a república. Sempre é
outra coisa morar com rapazes! Aprende-se! O criado, a quem já tinham pedido
a conta, entrou com uma pequena salva na mão e foi, instintivamente, depô-la
em frente de Amâncio. – Espere, disse este, tirando dinheiro do bolso. E entregou-lhe
uma nota de cem mil -réis. O moço saiu correndo. – Quanto foi ? desejou saber
o Paiva. Oitenta e cinco mil-réis, respondeu o outro. – Oitenta e cinco mil-réis
! Oh! Que grande ladroeira ! E logo que o criado voltou com o troco: – Homem,
faça o favor de dizer em que se gastou aqui oitenta e cinco mil-réis !…Salvo
se vossemecês metem também na conta o que quebrou o Brás ! – Não senhor! Eu
só cobrei os copos, que já estavam partidos antes do rolo. – Que enorme ladroeira
! insistia o Paiva, a sacudir a cabeça. – Deixa lá ! aconselhou Amâncio, puxando-o
para fora. Precisava andar e tomar fresco . Aquele gabinete era um forno –
sentia-se mal. – É que não posso ver extorquir desta forma o dinheiro a ninguém!
disse o Paiva indignado. E principiou a fazer as contas pelo que se lembrava
de ter vindo à mesa. Amâncio o puxou de novo : – Deixa lá isso ,homem ! –
Nada ! Pelo menos hei de vingar-me aqui em alguma coisa ! O criado havia saído.
Paiva Rocha principiou a derramar o resto das garrafas no açucareiro, a emporcalhar
o damasco da cortina e a cuspir dentro das chávenas. Amâncio ria-se formalmente,
mas, no íntimo aborrecido: – Agora podemos ir ! disse afinal o outro. – Ao
menos deixo-lhe um prejuízo ! E ainda meteu no bolso um paliteiro e duas colheres.
– Lá na república, precisava-se daqueles objetos ! acrescentou rindo. Já na
rua, Amâncio reparou que a cabeça lhe estava muito pesada e queixou-se de
suores frios. Paiva chamou um carro , e, uma vez dentro com o colega, mandou
tocar par a Rua de Mata- Cavalos.

– Esqueceste aquilo de que falamos? perguntou em viagem ao companheiro. Amâncio
já não se lembrava. Paiva respondeu, fazendo um sinal com os dedos . – Ah
! Quanto Queres ? – Dá cá uns cinqüenta ou sessenta…depois tos pagarei.
– Pois não! gaguejou Amâncio, passando-lhe três notas de vinte mil-réis.

IV

Amâncio chegou à república muito indisposto. Quase que não dava conta dos
quatro lances de escada, que a precediam. Também foi só chegar e atirar-se
à primeira cama, gemendo e resbunando ao peso de uma grande aflição. Estava
mais branco do que a cal da parede; o suor escorria-lhe por todo o corpo;
respirava com dificuldade; a abrir a boca e a retorcer os olhos. – Então!
disse o Paiva, batendo-lhe no ombro. – Mal! respondeu Amâncio , sem levantar
a cabeça, que deixara cair sobre o peito. E com um gesto pediu água. – Isso
passa! afiançou o colega, entregando-lhe o púcaro cheio. Estás é com um formidável
pifão. E riu-se. – Eu quero vomitar ! exclamou Vasconcelos, apressado pela
agonia, e mal teve tempo de erguer o rosto. – És um fracalhão! Ponderou o
companheiro, amparando-o pela testa. – Que diabo! Quem não pode com o tempo
não inventa modas! – Amâncio não respondia: Os engulhos vinham-lhe uns sobre
os outros. – Ai! ai! gemia oprimido . – Ora que tipo! disse o Paiva , atirando-o
sobre os travesseiros.- Vê se consegues dormir! Isto não é nada! E narrou
um caso idêntico, que experimentara. Amâncio sentia-se um pouco mais aliviado,
continuava, porém, a suar frio; tinha a cabeça completamente ensopada e não
dispunha de forças para coisa alguma. Os olhos fechavam-se-lhe com um entorpecimento
pesado de sono. Pediu mais água. E, depois de a tomar , deu a entender que
era preciso que o despissem e descalçassem . Paiva entrou a tirar-lhe a roupa,
safou-lhe com dificuldade as botinas , porque as meias estavam suadas. Amâncio,
muito prostrado, mole, a virar-se de uma para outra banda, aiava sempre. A
final sossegou, parecia adormecido; mas, ergueu-se logo, com ímpeto, e começou
a vomitar de novo, sem dizer palavras. – Que pifão! reconsiderava o colega,
encarando-o com as mãos cruzadas atrás. – Homem! Vê -se lhe dás um pouco de
amônia! lembrou do fundo do quarto uma voz arrastada e um pouco fanhosa. Só
então Amâncio percebeu que ali, a seis ou sete passos distante dele, estava
um rapaz magro , muito amarelo, em ceroulas e corpo nu, estendido numa cama,
a ler, todo preocupado, um grosso volume que tinha sobre o estômago. Parecia
deveras ferrado no seu estudo, porque até aí não dera fé do que se lhe passava
em derredor. – Olha! disse ao Paiva.- Creio que está acolá , sobre a banca,
por detrás do Comte. É um frasquinho quadrado, com rolha de vidro. Dito isto,
recolheu-se de novo à leitura, como se nada houvesse sucedido. Amâncio serenou
de todo com algumas gotas de amoníaco em um copo d’água , e afinal pegou no
sono profundamente. Só acordou no dia seguinte, quando o sol já entrava pela
única janela do quarto. Sentia a boca amarga e o corpo moído. Assentou-se
na cama e circunvagou em torno os olhos assombrados, com a estranheza de um
doido ao recuperar o entendimento. O sujeito magro da véspera lá estava no
mesmo sítio; agora , porém dormia, amortalhado a custo num insuficiente pedaço
de chita vermelha. Do lado oposto, no chão, sobre um lençol encardido e cheio
de nódoas, a cabeça pousada num jogo de dicionários latinos, jazia o Paiva,
a sono solto, apenas resguardado por um colete de flanela. Mais adiante, em
uma cama estreita de lona, viam-se dois moços, ressonando de costas um para
o outro, com as nucas unidas, a disputarem silenciosamente o mesmo travesseiro.
O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão
estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando a ambiente; a louça,
que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura

coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida
de ferrugem. Uma banquinha , encostada à parede, dizia com o seu frio aspecto
desarranjado que alguém estivera aí a trabalhar durante a noite, até que se
extinguira a vela, cujas últimas gotas de estearina se derramavam melancolicamente
pelas bordas de um frasco vazio de xarope Larose, que lhe fizera as vezes
de castiçal. Num dos cantos amontoava-se roupa suja; em outro repousava uma
máquina de fazer café, ao lado de uma garrafa de espírito de vinho. Nas cabeceiras
das três camas e ao comprido das paredes, sobre jornais velhos e desbotados,
dependuravam-se calças e fraques de casimira: em uma das ombreiras da janela
havia umas lunetas de ouro, cuidadosamente suspensas de um prego. Por aqui
e por ali pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas ressequidas. No meio do
soalho, com o gargalo decepado, luzia uma garrafa. A luz franca e penetrante
da manhã dava a tudo isso um relevo ainda mais duro e repulsivo: o coração
de Amâncio ficou vexado e corrido, como se todos os ângulos daquela imundície
o espetassem a um só tempo. Ergueu -se cautelosamente, para não acordar os
outros, e foi à janela. O vasto panorama lá de fora estremulhou-lhe os sentidos
com o seu aspecto. A república era muito no alto, sobre três andares, dominando
uma grande extensão. Viam-se de cima as casa acavaladas uma pelas outras,
formando ruas, contornando praças. As chaminés principiavam a fumar; deslizavam
as carrocinhas multicores dos padeiros; as vacas de leite caminhavam com o
seu passo vagaroso, parando à porta dos fregueses, tilintando o chocalho ;
os quiosques vendiam café a homens de jaqueta e chapéu desabado; cruzavam-se
na rua os libertinos retardios com os operários que se levantavam para a obrigação;
ouvia-se o ruído estalado dos carros d’água, o rodar monótono dos bondes.
Mais para além pressentiam-se cordilheiras, graduando planos esfumados de
neblina. O horizonte rasgava-se à luz do sol, num deslumbramento de cores
siderais. E lá muito ao longe, quase a perder de vista , reverbava a baía,
laminando as águas na praia. Embaixo, na área da casa, uma ilhoa, de braços
nus, a cabeça embrulhada em um lenço de ramagens, lavava a um tanque de cimento
romano; um homem, em mangas de camisa, varria as pedras do chão, cantarolando
com os dentes cerrados, para não deixar cair a ponta do cigarro. Numa janela,
um sujeito, de óculos azuis, areava os dentes e com a boca atirava duchas
sobre um papagaio, cuja gaiola pousava no balcão. Dentro de um cercado cacarejavam
galinhas, mariscando na terra; e o homem do lixo entrava e saia, familiarmente,
com o seu gigo às costas. Um relógio da vizinhança bateu seis horas. Amâncio
reparou que estava com muita sede, mas não descobria a talha d’água. Afinal
encontrou-a, num sótão que havia ao lado do quarto e onde só se entrava vergando
o corpo. Bebeu até à saciedade. Depois lavou o rosto e a boca. E, com a idéia
de sair antes que os mais acordassem, vestiu-se apressado, contou o dinheiro
que lhe restava, lamentando interiormente o que na véspera esbanjara; viu
no chão uma escova de fato, apanhou-a, escovou a roupa, e, todo cautela e
ponta de pé, abriu a porta e ganhou a escada. Entre o primeiro e o segundo
andar encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos, que subia com dois
copos de leite, um em cada mão, fazendo mil esforços para não os entornar.
Ao ver Amâncio ela emperrou, cosendo -se à parede, a fim de lhe dar passagem,
e olhou-o de esguelha, com medo de afastar a vista dos copos. Era bonitinha,
corada, os cabelos castanhos apanhados na nuca. Parecia portuguesa. Amâncio
ao passar por ela, estacou também, à fitá-la. De repente lançou-lhe as mãos.
A pequena, muito contrariada fez uma cara de raiva e gritou- que a soltasse!
que não fosse atrevido! E desviava o corpo, querendo defender-se mas sem se
descuidar dos copos. – Mau ! mau ! siga o seu caminho e deixe os outros em
paz! Amâncio não fez caso e conseguiu beijá-la à pura força. Derramaram-se
algumas gotas de leite. – Maus raios te partam! clamou a rapariga, assim que
o viu pelas costas.- Peste ruim de um estudante!

* * *

A peste ruim do estudante saiu, e só interrompeu a caminhada para entrar
num botequim, onde pediu café. Então, defronte do espelho, pôde admirar o
belo estado em que se achava. – Como diabo havia de apresentar-se naquele
gosto em casa do Campos?… Também que triste idéia a sua – de se enterrar
numa casa comercial? Não! Com certeza estava mal hospedado… nem lhe convinha
permanecer ali ! – Oh ! Bastava já de ser governado, de ser vigiado a todo
instante ! – Já era tempo de gozar um pouco de liberdade. E, enquanto sorvia
compassadamente o café, recapitulava na memória todo o seu passado de terror
e submissão: – Antes de entrar para a escola de primeiras letras, nunca lhe
deixaram transpor a porta da rua ou a porta do quintal; os outros meninos
de sua idade tinham licença para empinar papagaios, brincar entrudo,

queimar fogos pelo tempo de São Pedro; – ele não! depois caiu nas garras
do professor, – aquela fera! Nunca saia de casa, sem levar atrás de si um
escravo para o vigiar, para impedi-lo de fazer travessuras e obrigá-lo a caminhar
com modo, direito, sério como homem. Afinal escapou ao professor, sim! mas
continuou sob a dura vigilância do pai, do tio e das tias; todos rondavam;
todos o traziam “num cortado”. Só na fazenda da avó conseguia desfrutar alguma
liberdade, mas essa mesma não era completa e, ai! durava tão pouco tempo!…
Agora compreendia a razão pela qual, no mês de férias que passava aí, se tornava
tão maligno, – é que naturalmente queria desforrar o resto do ano, que levava
coagido em casado pai. De sua infância eram aqueles meses privilegiados a
coisa única que lhe merecia verdadeira saudade; ao mais estrangulavam tristes
reminiscências de castigos, de sustos, apoquentações de todo o gênero. A própria
idéias de sua mãe nunca lhe vinha só; havia sempre ao lado da venerada imagem
alguma recordação enfadonha e constrangedora.- As poucas vezes em que estavam
juntos, o pai chegava no melhor da intimidade e Ângela se retraía, cortando
em meio as carícias do filho, como se as recebera de um amante, em plena ilegalidade
do adultério. E a memória desses beijos a furto e medrosos, a memória desses
carinhos cheios de sobressalto, relembravam-lhe as vezes que ele em pequeno
se metia no quarto dos engomados, de camaradagem com as mulatas da casa que
aí trabalhavam conjuntamente. Era quase sempre pelo intervalo das aulas, ao
meio-dia, quando o calor quebrava o corpo e punha nos sentidos uma pasmaceira
voluptuosa. Em casa do velho Vasconcelos havia, segundo o costume da província,
grande número de criadas; só no “quarto da goma”, como lá se diz, reuniam-se
quatro ou cinco. Umas costuravam; outras faziam renda, assentadas no chão,
defronte da almofadas de bilros; outras, vergadas sobre a “tábua de engomar”,
passavam roupa a ferro. Amâncio ,quando criança, gostava de se meter com elas,
participar de suas conversas picadas de brejeirice, e deixar correr o tempo,
deitado sobre saias, amolentando-se ao calor penetrante das raparigas, a ouvir,
num êxtase mofino, o que elas entre si cochichavam com risadinhas estaladas
à socapa. Por outro lado, as mulatas folgavam em tê-lo perto de si, achavam-no
vivo e atilado, provocavam-lhe ditos de graça, mexiam com ele, faziam-lhe
perguntas maliciosas, só para ” ver o que o demônio do menino respondia” .E,
logo que Amâncio dava a réplica, piscando os olhos e mostrando a ponta da
língua, caíam todas num ataque de riso , a olharem umas para as outras com
intenção. De resto, ninguém melhor do que ele para subtrair da despensa um
punhado de açúcar ou de farinha, sem que Ângela desse por isso. – O demoninho
era levado! E assim se foi tornando mulherengo, fraldeiro, amigo de saias.
A mãe, quando ouvia da varanda as risadas da criadagem, gritava jogo pelo
filho. – Já vou mamãe ! respondia Amâncio. Lá estava o diabrete do menino
às voltas com as raparigas no quarto da goma! Oh! que birra tinha ela disso!…
Mas Amâncio não se corrigia. É que ali ao menos não chegaria o pai. As vezes
,quando ia passear à casa de alguma família conhecida, arranjava-se com as
moças, gostava de acompanha-las por toda parte, fazendo-se muito dócil e amigo
de servir. Como era ainda perfeitamente criança e bonitinho, elas lhe faziam
festa e davam-lhe doces, figurinos de papel recortado e caixinhas vazias.
Algumas lhe perguntavam brincando se ele as queria para mulher, se queria
“ser seu noivo”. Amâncio respondia que sim com um arrepio. E daí a pouco ficavam
as moças muito surpreendidas quando o demônio do menino lhes saltava ao colo
e principiava a beijar-lhes sofregamente o pescoço e os cabelos ou a meter-lhes
a língua pelos ouvidos. – Credo ! disse uma delas em situação idêntica..-
Que menino ! Vá para longe com as suas brincadeiras. ! Outras, porém, lhe
achavam muita graça e eram as primeira s a puxar por ele. De todos os brinquedos
o que Amâncio mais estimava era o de “fazer casa”. A casa fazia-se sempre
debaixo de uma mesa, com um lençol em volta, figurando as paredes. Uma de
suas primas, filha do protetor de Campos, ou alguma menina que estivesse passando
o dia com ele, representava de mulher; Amâncio de marido. A menina ficava
debaixo da mesa, enquanto ele andava por fora, “a ganhar a vida ” até que
se recolhia também a casa, levando compras e preparos para o almoço. Amarravam
um lenço em duas pernas da mesa, fingindo rede, e aí metiam uma boneca, que
era o filho. Gostava infinitamente dessa brincadeira. Mas um belo dia veio
abaixo o lençol que servia de parede, e desde então Ângela não consentiu que
o filho se divertisse a fazer casa.

Muitos anos depois, aos quinze anos, notou-se incomodado por um padecimento
estranho. Não disse nada à família e procurou um homem que havia na província
com grande habilidade para curar moléstias, viessem elas até do mau-olhado
e do feitiço. Santo homem ! O mal do nosso estudante desapareceu como por
milagre; o que, aliás, não impediu que tivesse daí a pouco de voltar à cama,
debaixo de um novo e mais formidável carregamento que o ia varrendo ao cemitério..
Foram esses três anos de sezões a que se referia, quando pela primeira vez
falou ao Campos. E Amâncio ,quanto mais rememorava tudo isso, quanto mais
remexia no cinzeiro do passado, tanto mais impacientes lhe rosnavam os sentidos
e tanto mais desabrida lhe vinha a necessidade de gozar, de viver em liberdade,
de recuperar o tempo que levou sopeado e preso. – Enfim ! concluiu ele, erguendo-se
distraído e abandonando o café – a casa do Campos não me convém ! não me convém
de forma alguma! Mas a idéia de Hortênsia, que, para se apresentar, só esperava
o termo daquelas considerações, invadiu-lhe o espírito e foi a pouco e pouco
se estendendo e se esticando por todo ele, até ocupá-lo inteiramente com a
sua imagem branca e palpitante, como uma bela mulher que desperta e, entre
voluptuosos espreguiçamentos , alonga pela cama os seus membros entorpecidos
de sono. E ele, quando deu por si, estava a fazer conjeturas sobre o amor
de Hortênsia : – Seria ardente ou calmo? Meigo ou arrebatado? Que atitude
tomaria a bela mulher nos momentos supremos de ventura? Quais seriam as suas
palavras, as frases do seu delírio?… E, aguilhoado pelos sentidos, perdia-se
em cálculos infames, em degradantes suposições; tentando, embalde, adivinhar-lhe
os pensamentos, penetrar-lhe nos escaninhos do coração e devassar-lhe todos
os segredos do corpo. – Oh! Como seria ?… E seu desejo vil começava a despi-la,
peça por peça, até deixá-la completamente nua. – Mas não! não havia possibilidade!
contrapunha-lhe a razão.- Tudo aquilo era loucura, simples loucura! Hortênsia
não podia ser mais séria, mais amiga do marido! Qual fora a palavra, o gesto,
que lhe dera a ele o direito de pensar em semelhante coisa?… Sim! que fizera
a pobre senhora para autorizá-lo a tanto ?… Onde estava o fundamento daqueles
sonhos, pelos quais queria trocar a sua liberdade, os seus prazeres, tudo,
e ficar encurralado em uma casa comercial, com obrigação de entrar às tantas,
comer às tantas e guardar todas as conveniências ao lado de uma gente impossível
?!…Ora ! que se deixasse de asneiras! Não fosse tolo! Hortênsia Campos aparecia-lhe
então como em verdade o era: carinhosa e altiva, afável para todos igualmente,
sem dar a nenhum o direito de supor uma preferência. Amâncio já não a tinha
descompostas defronte dos olhos mas respeitosamente restituída ao seu vestidinho
de chita, à suas botinas de duraque, quase sem salto, e às tranças honestamente
penteadas. – Mudava-se !Que dúvida !Sim !Uma vez que Hortênsia nada mais era
do que uma senhora virtuosa, que diabo ficava ele fazendo ali ?…Não seria
decerto pelos bonitos olhos do Campos !

* * *

As oito horas, quando entrou em casa tinha já resolvido não ficar ali nem
mais um dia. – Era fazer as malas e bater quanto antes a bela plumagem ! Mas
também, se por um lado não lhe convinha ficar em companhia do Campos: por
outro , a idéia de se meter na república do Paiva não o seduzia absolutamente.
Aquela miséria e aquela desordem lhe causavam repugnância. Queria liberdade,
a boêmia ,a pândega- sim senhor ! tudo isso, porém, com um certo ar , com
uma certa distinção aristocrática. Não admitia uma cama sem travesseiros,
um almoço sem talheres e uma alcova sem espelhos. Desejava a bela crápula,-
por Deus que desejava !mas não bebendo pela garrafa e dormindo pelo chão de
águas – furtadas ! – Que diabo !- não podia ser tão difícil conciliar as duas
coisas!… Pensando deste modo, subiu ao quarto. Sobre a cômoda estava uma
carta que lhe era dirigida; abriu-a logo : “Querido Amâncio. Desculpe tratá-lo
com esta liberdade; como, porém, já sou seu amigo, não encontro jeito de lhe
falar doutro modo. Ontem, quando combinamos no Hotel dos Príncipes a sua visita
para Domingo, não me passava pela cabeça que hoje era dia santo e fazíamos
melhor em aproveitá-lo; por conseguinte, se o amigo não tem compromisso, venha
passar a tarde conosco, que nos dará com isso grande prazer. Minha família,
depois que lhe falei a seu respeito, está impaciente para conhecê-lo e desde
já fica à sua espera.” Assinava “João Coqueiro” e havia o seguinte post-scriptum
: “Se não puder vir, previna-mo por duas palavrinhas; mas venha. Resende n…”

Amâncio hesitou em se devia ir ou não. O Coqueiro ,com a sua figurinha de
tísico, o seu rosto chupado e quase verde, os seus olhos pequenos e penetrantes,
de uma mobilidade de olho de pássaro, com a sua boca fria, o seu nariz agudo,
o seu todo seco egoísta, desenganado da vida, não era das coisa que, mais
o atraíssem. No entanto, bem podia ser que ali estivesse o que ele procurava,
– um cômodo limpo, confortável, um pouquinho de luxo, e plena liberdade. Talvez
aceitasse o convite. – Esta gente onde está ?perguntou ,indicando o andar
de cima a um caixeiro que lhe apareceu no corredor, com a sua calça domingueira,
cor de alecrim, o charuto ao canto da boca. – Foram passear ao Jardim Botânico,
respondeu aquele, descendo as escadas. – Todos? Ainda interrogou Amâncio.
– Sim, disse o outro entre os dentes, sem voltar o rosto. E saiu. – Está resolvido
!pensou o estudante. – Vou à casa do Coqueiro. Ao menos estarei entretido
durante esse tempo ! E voltando ao quarto : – Não! É que tudo ali em casa
do Campos já lhe cheirava mal !..Olhassem para o ar impertinente com que aquele
galeguinho lhe havia falado !…Em tudo o mais era pelo mesmo teor. – Uma
súcia d’ asnos ! Começou a vestir-se de mau humor, arremessando a roupa, atirando
com as gavetas. O jarro vazio causou-lhe febre, sentiu venetas de arrojá-lo
pela janela ;ao tomar uma toalha do cabide, porque ela se não desprendesse
logo, deu-lhe tal empuxão que a fez em tiras. – Um horror! Resmungava, a vestir-se
furioso, sem saber de quê. – Um horror ! E ,quando passou pela porta da rua,
teve ímpetos de esbordoar o caixeiro, que nesse dia estava de plantão.

V

João Coqueiro era fluminense e fluminense da gema. Nascera na Rua do Parto
em uma das casas de seus pais, quando estes eram ricos. Que o foram. Viera-lhes
a fortuna do avô materno, um português ambicioso e econômico, que a conquistara
no tráfico dos negros africanos; ao morrer legou à filha, ainda criança, para
cima de quinhentos contos de réis. Esta, mais tarde, foi solicitada em casamento
pelo homem a que pertenceu para sempre, – Lourenço Coqueiro, os maiores bigodes
que nesse tempo negrejavam na Corte do Império. Lourenço, todavia, era já
um destroço quando casou. Do que fora e do que possuíra, apenas lhe restava,
além do bigode, o hábito de não fazer coisa alguma; nos melhores grupos citava-se,
entretanto, o seu ar distinto de fidalgo e falava-se Dom boa vontade de seus
dotes pessoais e do seu belo espírito eternamente galhofeiro. O casamento
representou para ele uma tábua de salvação. A mulher adorava-o; tinha-o na
conta de um ente superior; jamais vira homem tão lindo de rosto, tão insinuante
no falar, tão delicado de maneiras. Mas, pouco depois de casado, Lourenço
começou a desgostá-la: era um nunca terminar de festas; a casa vivia num rebuliço
constante; os intervalos das pândegas não davam sequer para a trazer arrumada
e limpa. Quando não fossem bailes, eram passeios, piqueniques , manhãs no
campo, dias passados na Tijuca ou no Jardim Botânico. Lourenço, às vezes,
voltava ébrio, a cachimbar no fundo do carro, e a fazer carícias piegas à
mulher, que, ao lado, chorava silenciosamente. Ela, coitada! Tinha muito medo
sempre que o via nesse gosto, porque o demônio do homem dava então para brigar,
mexia com quem passava, metia a bengala nos cocheiros e quebrava com os pés
tudo que encontrasse no caminho. Tiveram o primeiro filho – Janjão. Criancinha
feia, dessangrada, cheia de asma. Até aos cinco anos parecia idiota; passava
os dias a babar-se debaixo da mesa de jantar, ao pé de um moleque encarregado
de vigiá-lo. A mão desfazia-se em mil cuidadozinhos com a criança; era esta
o seu enlevo, a sua vida. Mas o pai não estava por isso: – temia que o rapaz
lhe saísse um maricas. Desejava-o – forte, decidido! E, com enormes sobressaltos
da mulher, tomava-o pelas perninhas magras e suspendia-o no ar. – Os homens
assim é que se fazem, minha filha! Dizia ele a rolar o pequeno entre as mãos.
E não admitia igualmente que o menino tivesse outra cama que não fosse um
enxergão. Não o queria calçado, nem vestido e, em vez de estar ali a babar-se
defronte do moleque, seria muito melhor que fosse correr para a chácara. –
Ele pode se machucar, Lourenço , cair! Observava a esposa timidamente. – Pois
deixa-o cair! Deixa-o machucar-se! Quanto mais trambolhões levar em pequeno,
melhor depois se agüentará nas pernas ! – Mas ele é tão fraquito, coitadinho!

– Por isso mesmo! Por isso mesmo precisamos torná-lo forte! E previno-te
de que já é mais que tempo de acabar com esse insuportável tratamento de “Janjão”!
Aqui não há janjões! Meu filho chama-se – João! Tem o nome do avô, um herói,
um fidalgo! Não desses que hoje se fazem aí a três por dois, mas dos legítimos,
dos bons! Entendes tu? – dos bons! E inflamava-se, como sempre que se referia
à sua procedência. Vinha, com efeito, de fidalgos: era sobrinho bastardo de
um conde português. À mesa exigia que o filho lhe ficasse ao lado e obrigava-o
a comer bifes sangrentos e tomar vinho sem água. Um dias a esposa revoltou-se:
– Pois tu vais dar conhaque ao menino, Lourenço? ! exclamou ela escandalizada.
– Deixa-o cá comigo , senhora! Eu sei o que faço! – Olha que isso pode sufocá-lo,
homem de Deus ! – Qual sufocar o quê ! Por essas e outras é que, para os estrangeiros,
não passamos de “uns macacos”! A mulher que se desse ao trabalho de saber
como se fazia na Europa a educação física das crianças ! Queria que ela visse
a criação que tiveram D. Pedro e D. Miguel ! E eram príncipes ! – Entendia
? – eram príncipes legítimos ! E voltando-se para o filho, gritou, arregalando
os olhos e soprando os bigodes, que já então se faziam cinzentos: – Tu não
queres ser um homem forte, João ? ! Queres ser um descendente degenerado de
teus avós ?! Janjão olhou o pai com medo, e abriu a chorar. – Aí tens o que
procuravas ! disse a mulher, correndo para junto do filho. – Assustar desse
modo a pobre criança ! Janjão chorava mais. – Isso ! Isso é que o há de pôr
pra diante! Berrou Lourenço encolerizando-se. Beba já esse conhaque, menino!
– Deixa a criança ! …suplicava a mãe. – Olha como treme o pobrezinho!…
o coração parece que lhe quer saltar! … – E tomou-o no colo. – É melhor
mesmo que leves daí esse mono ! Rira-mo dos olhos ! Já estou vendo a boa lesma
que isso há de dar! – Mães ignorantes !.. Quando Janjão principiou a crescer,
o pai levava-o a toda a parte, dava-lhe charutos, obrigava-o a tomar cerveja
nos cafés. Foi, porém, uma campanha conseguir uma vez que o pequeno se assentasse
por dois minutos na dela de um cavalo em que Lourenço havia chegado do seu
passeio favorito a Botafogo. Janjão, trêmulo da cabeça aos pés, agarrava-se
com ambas as mãos nas crinas do animal e berrava pela mãe com toda a força
de que era capaz. Tiveram de desmontá-lo para não o verem rebentar ali mesmo
. – Ora, como diabo me havia de sair este mono! Lamentava o pai desesperado.
– Ninguém acreditaria que aquele choramingas era seu filho ! Não foram mais
felizes com as primeiras tentativas de natação ou as primeiras experiências
de atirar ao alvo: Janjão , só com a vista do mar ou a presença de um revólver
, desatava a soluçar e a berrar pela mãe. – Não ! Isso agora hás de Ter paciência!
resmungava Lourenço. – Tu ao menos ficarás sabendo dar um tiro ! Sou eu quem
to assegura! E, com muita sutileza, comprou para o filho uma bela pistolinha
de brinquedo, que estalava fulminantes, e depois uma outra, mais séria, que
admitia carga de pólvora. Janjão era, porém, cada vez mais refratário a tudo
isso. Preferia ficar a um canto da sala, entretido a vestir os seus bonecos
ou a fazer de cozinheiro. A mãe por esse tempo dava-lhe uma irmãzinha, que
se ficou chamada Amélia, e desde aí o maior encanto do menino era tomar conta
do caixão em que estava a pequerrucha toda envolvida em panos, e não consentir
que as moscas lhe pousassem na moleira. Um dia, o pai, descendo ao quintal,
encontrou-o muito empenhado com o moleque a armar um oratório. Iam fazer procissão:
o andor e o santo estavam prontos; uma sombrinha, enfeitada de franjas, faria
as vezes de pálio. Lourenço ficou desesperado, e com dois pontapés reduziu
tudo aquilo a frangalhos. – Era o que lhe faltava ! – que o basbaque do filho,
além de tudo, lhe saísse carola! E, quando subiu, disse terminantemente à
mulher que não admitia que o filho corrompesse o espírito com patacoadas daquela
ordem.

– Se me constar, bradou ele ao pequeno,- que me tornas a fazer igrejinhas,
racho-te de meio a meio, pedaço de uma lesma! Ora vamos a ver! Cai noutra,
e terás uma sapeca que te deixe a paninhos de sal! Experimenta e verás! Ele
queria lá filhos devotos! Era só o que lhe faltava! Era só! Aquele menino
parecia o seu castigo! Parecia a sua maldição! Aos doze anos Janjão entrou
para o internato de Pedro II. A princípio custou-lhe bastante compreender
as lições, mas, como era muito estudioso e muito paciente, os professores
em breve o elogiavam. Tinham – no em boa estima pelo seu espírito católico,
pela docilidade de seu gênio e pelo irrepreensível de sua conduta. João Coqueiro,
de fato, fora sempre um menino sossegado, metido consigo, respeitador dos
mestres e dos preceitos estabelecidos, devoto e extremamente cuidadoso de
seus livros e de suas obrigações. Ninguém lhe ouvia palavra mais áspera ou
gesto menos conveniente, e às vezes entrava pela hora do recreio grudado aos
livros sem os querer deixar. O pai via-o então com orgulho. Profetizava já
que ali estivesse um sábio. Tirou distinção nos primeiros exames. A mãe quase
morre de alegria. Lourenço quis solenizar o acontecimento com um banquete
correlativo; mas as suas condições de fortuna já não eram as mesmas; o dinheiro
ia minguando de um modo assustador. Se lhe viesse a falhar uma especulação,
em que se havia lançado ultimamente, como recurso extremo – Adeus! estaria
tudo perdido! A ruína seria inevitável! Fez-se a festa, não obstante, e o
menino voltou aos estudos. Mas Lourenço principiava a sofrer gravemente de
uma lesão cardíaca. Tinha ataques nervosos, sufocações, e caía de vez em quando
em fundas melancolias, durante as quais se enterrava no quarto, sem poder
suportar a presença de ninguém, muito frenético, cheio de apreensões, com
grande medo de morrer. A mulher assustava-se: o marido não lhe parecia o mesmo
homem. Estava acabado; crescera-lhe o ventre, o nariz tomara uma vermelhidão
gordurosa, o cabelo encanecera totalmente, a cabeça despira-se, a pele do
rosto fizera-se opada e suja. Comprazia-se, agora, a ir à noite pelas igrejas,
embrulhado na sua sobrecasaca russa, apoiando-se à grossa bengala de cana
da Índia, os pés à vontade em sapatos rasos. Ajoelhava-se a um canto da nave,
em cima das pedras, e aí permanecia longamente, a ouvir os sons lamentosos
do órgão, com o rosto descansado sobre as mãos que se cruzavam no castão da
bengala. Às vezes chorava. Seu estômago irritado já não queria os alimentos
; era preciso enganá-lo de instante a instante com um pouco de noz-vômica
ou carbonato de magnésia. Não se lhe podia suportar o hálito. Quando recebeu
a notícia de que a sua especulação falhara, estava no quarto, não conseguiu
sair do lugar em que se achava. Uma onda vermelha subira-lhe à cabeça :os
objetos principiaram a dançar-lhe em torno dos olhos; o chão fugia-lhe debaixo
dos pés. Tentou ainda dar alguns passos, mas cambaleou e caiu afinal sobre
as pernas embambecidas, – como uma trouxa. Morreu no dia seguinte.

* * *

A família ficou pobre. Foi preciso vender o melhor de dois prédios que restavam,
para saldar as dívidas do defunto. A viúva principiou então a tomar encomendas
de costura e de engomagem. Isso, porém não bastava; era necessário, a todo
o transe, que o menino continuasse nos estudos. Em tal aperto, lembrou-se
a pobre mãe de admitir hóspedes; a casa que ficou tinha bastante cômodos e
prestava-se admiravelmente para a coisa. Vieram os primeiros inquilinos; arranjaram-se
fregueses para o almoço e o jantar, e o órfão prosseguiu nas sua aulas. Dentro
de pouco tempo, o sobrado da viúva de Lourenço era a mais estimada e popular
casa de pensão do Rio de Janeiro. Foi nela que Janjão se fez homem. Aí o viram
bacharelar-se e aí se matriculou na Escola Central. A irmão respeitava-o como
a um pai. Amélia, por conseguinte, cresceu em uma casa de pensão. Cresceu
no meio da egoística indiferença de vários hóspedes, vendo e ouvindo todos
os dias novas caras e novas opiniões, absorvendo o que apanhava da conversa
de caixeiros e estudantes irresponsáveis; afeita a comer em mesa-redonda,
a sentir perto de si , ao seu lado, na intimidade doméstica, – homens estranhos,
que se não preocupavam com lhe aparecer em mangas de camisa, chinelas e peito
nu.

Ainda assim deram-lhe mestres. Aprendera a ler e a escrever, tocava já o
seu bocado de piano e, – se Deus não mandasse o contrário- havia de ir muito
mais longe. Um novo desastre veio, porém, alterar todos esses planos: a viúva
de Lourenço, depois de dois meses de cama , sucumbiu a uma pneumonia. João
Coqueiro estava então no segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-se mulher
por um daqueles dias; parentes – não os tinham … capitais – ainda menos…Como
pois sustentar a casa de pensão? …Oh! Era preciso despedir os hóspedes,
alugar o prédio, abandonar estudos e obter um emprego. Arranjou-o de fato
– na estrada de ferro de Pedro II. Coqueiro dissolveu logo a casa de pensão
e foi mais a irmã residir em companhia de uma francesa, muito antiga no Brasil
e que durante longo tempo se mostrou amiga íntima da defunta. Chamava-se Mme.
Brizard. Era mulher de cinqüenta anos, viúva de um afamado hoteleiro, que
lhe deixara muitas saudades e dúzia e meia de apólices da dívida publica.

* * *

Estava ainda bem disposta, apesar da idade. Gorda, mas elegante e com uns
vestígios assaz pronunciados de antigas formosura, .Tinha os olhos azuis e
os cabelos pretos, no tipo peculiar ao meio-dia da França. Carne opulenta
e quadril vigoroso. Notava-se-lhe a boca, com um desses lábios superiores
que formam como que duas camadas; o que aliás não obstava a que Mme. Brizard
tivesse um sorriso gracioso, e ainda tirasse partido da brancura privilegiada
de seus dentes. Mas a sua riqueza e a sua vaidade era o pescoço, um grande
pescoço pálido, cheio de ondulações macias e fartas. Nascera em Marselha.
Depois de certa idade tornara-se muito caída para o romantismo; desde então
apreciava uma noite de luar; dava-se à leitura prolongada de poetas tristes;
fazia-se mais infeliz do que era de fato, e contava a todos a sua história.
– _Um romance! “Aos quinze anos saíra da família pelo braço de um diplomata
russo, que a idolatrava;- ia casada. O russo tresandava a genebra e rescendia
a sarro de cachimbo; ela abominou-o logo, abominou-o entre uma enorme corte
de adoradores fascinados por sua beleza e sequiosos por um de seus sorrisos;
era, porém, honesta: – conservou-se pura e fiel ao marido.” Mme. Brizard,
quando chegava a este ponto do romance, abaixava os olhos, levando lentamente
o leque à boca para disfarçar um suspiro. “Enviuvou aos vinte anos; o russo
não lhe deixara filhos;- voltou à família. Aí lhe apareceu então Mr. Brizard,
homem de talento, político e escritor, grande republicano. A subida de Luís
Felipe ao trono atirou com ele ao Brasil, onde se fez hoteleiro. Tiveram aqui
três filhos: duas mulheres e um homem. Este era o último e muito se distanciava
das irmãs em idade; quando lhe faltou o pai tinha apenas sete anos. A filha
mais velha representava a glória da família: unira-se a um ministro plenipotenciário;
a outra, coitada, não casou mal, porém com a morte do marido, e de um filhinho
que lhe ficara, tornou-se muito nervosa, histérica, e até, meio pateta; agora
vivia e mais o irmão em companhia da mãe”

* * *

Nessas condições, a proposta de João Coqueiro pareceu vantajosa a Mme. Brizard.
– Ele que trouxesse a irmã a bela Amelita, e tudo se arranjaria prelo melhor.
Juntaram-se Mme. Brizard revelou pronto interesse pelos dois hóspedes, principalmente
pelo “Coqueirinho” como lhe chamavam em família. Fazia-se mito carinhosa com
ele, queria ser a sua “segunda mãe”, apreciava-lhe o talento, e andava a mostrar
os versos do rapaz a todas as pessoas que apareciam à noite, para as torradas.
Reuniam-se em volta da mesa de jantar; iam buscar o loto e jogavam. Coqueiro
lia a um canto, ou ficava no quarto, a cachimbar soturnamente, olhando o fumo
e cismando na vida.

Mme. Brizard fazia perfeitamente as honras da casa; dava-se por mulher de
muito espírito e de uma educação peregrina. Se havia então alguém que a visitasse
pela primeira vez – a coisa ia mais longe. Desenfiava os seus melhores ditos,
contava como por incidente, as suas anedotas de mais efeito, falava gravemente
de sua filha casada com o ministro e exibia todos os seus conhecimentos literários.
Que os tina, inegavelmente. Lamartine lá estava no quarto dela ,sobre o velador,
encadernado com esmero. Mas não desdenhava os poetas brasileiros e lia Camões.
Uma sua amiga, muito chegada, dizia que lhe ouvira páginas inéditas de um
livro sobre o Brasil, – livro para fazer “sensação”! Mme. Brizard confirmava
este boato, sorrindo com modéstia. João Coqueiro, esse, não sorria,. Ao contrário,
parecia cada vez mais triste; passava tempos sem aparecer a ninguém, depois
que largava o trabalho. Por mais de uma vez houver que lhe visse lágrimas
nos olhos. A francesa, que se achava então no seu período mais agudo de sentimentalismo,
respeitava muito as melancolias do pobre moço, falava a respeito dele com
a voz baixa, cheia de um acatamento religioso. Só lhe passava pelo quarto
na pontinha dos pés, e, quando o triste hóspede saía para o emprego, ela corria
a lhe arrumar a mesa, com desvelo, ordenando os livros, reunindo os papéis
esparsos, lendo, sobre a pasta, os versos começados na véspera. Uma tarde,
acharam-se os dois um defronte do outro, assentados sozinhos na varanda da
sala de jantar, que dava para um lugar plantado de bananeiras. O sol descia
lentamente no horizonte por uma escadaria de fogo; as cigarras estridulavam
no fundo da chácara; a noite ia emanando. Coqueiro olhava à toa para isso,
absorto e mudo; depois suspirou e escondeu o rosto nas mãos. Mme. Brizard
passou-lhe um braço no ombro. – Coqueirinho! que é isso?… Queria saber o
motivos daquelas tristezas. Começou a interrogá-lo, com a voz untuosa, cheia
de amor. Ele então falou abertamente de suas aspirações, de seus estudos interrompidos,
de sua incompatibilidade com o emprego que exercia. – Sou muito caipora! Exclamava.
– Sou muito caipora! E chorava. Mme. Brizard procurou consolá-lo, falou do
futuro,, lembrou a idade de coqueiro e aconselhou-o a que não desanimasse.
Foi daí que lhes veio a idéia de casamento. Mme. Brizard era muito mais velha
do que ele, mas, talvez, por isso mesmo, fosse a esposa que melhor lhe convinha.
– Ah! ela estava no caso de fazê-lo feliz, porque o amava! Oh! Se o amava!
Seria talvez uma loucura; talvez viessem a censurá-la; – ela mesma não sabia
explicar o que aquilo era, como aquilo acontecera! Mas, dava a sua palavra
de honra, jurava pela memória de seu pai- em como nunca sentira por ninguém
o que então sentia por Coqueiro! Ah! sabia perfeitamente que bem poucos compreenderiam
a sua paixão! Sabia que muitos haveriam de ridicularizá-la, haveriam de escarnece-la;
ela própria, até ali, nunca imaginara que se pudesse amar tanto!… Durante
a sua vida , nunca se sentiu possuída por uma idéia , tão escrava, tão vencida,
como naquele instante! Contudo, se desejava o casamento não era decerto pelo
fato de possuir um homem. – _ Oh, não !- deixava isso para as almas grosseiras…
e Coqueiro bem sabia o quanto seu coração tinha de espiritual e de puro!…
Desejava aquele enlace para licitamente [pode aplicar todo o seu esforço,
toda a sua coragem, todas as sua diligências, na conquista de um bom futuro
para o esposo. Queria casar-se, porque entendia que isso se tornava necessário
à felicidade de Coqueiro. Toda a sua vida, todos os seus recursos dela, seriam
empregados para o mesmo fim: – facultar ao marido os meios de estudar, os
meios de crescer, desenvolver-se, luzir. Alcançasse ele um nome, uma posição
brilhante, uma atitude gloriosa, e tudo o mais lhe seria indiferente. Que
lhe importava o resto?… Se ela, porventura, fosse esquecida, fosse desprezada,
se viesse mesmo a falecer daí a pouco tempo – que valia tudo isso, se o objeto
de seus extremos era ditoso e vivia cercado de admiração e aplauso?… E Mme.
Brizard , depois de lhe falar na posteridade e depois de convencer ao Coqueiro
de que aquele casamento era um dever sagrado, pois que não realizá-lo eqüivalia
a privar o Brasil de uma de suas glórias futuras e ao século um de seus vultos
talvez mais grandiosos, Mme. Brizard, depois disso, entrou nos pormenores
de seu plano. – Uma vez casados, ressuscitariam a antiga casa de pensão. Ela
dispunha de algum dinheiro; o outro dispunha de um prédio: – era restaurá-lo
e dar começo à vida! Coqueiro abandonaria o emprego e voltava de novo aos
estudos;” ela encarregava-se da gerência da casa e, nesse ponto, deitando
de parte a modéstia, supunha-se mais habilitada que ninguém. Até já tinha
projetos, já tinha asa suas idéias sobre a instalação da casa!…Sentia-se
de disposta a trabalhar por vinte!…Coqueiro havia de ver! Seu estabelecimento
seria uma casa de pensão modelo! Coisa para dar “uma

fortuna e render à Amelinha um bom casamento._ Um casamentão!” Ah! Ela ,
a francesa, sabia perfeitamente como tudo isso se arranjava no Brasil. E concluiu
, jurando inda uma vez, que- para si não queria nada! Que só desejava a felicidade
do Coqueiro e de sua irmã dele. Era assim que entendia o amor! Três meses
depois estavam casados. Boquejou-se alegremente sobre isso na Escola Politécnica
. Os amigos do Coqueiro acharam ocasião de rir, e a tal mulher do ministro
plenipotenciário, a gloria da família, escreveu à mãe uma carta carregada
de recriminações, declarando que nunca lhe perdoaria semelhante loucura.-
Loucura , de que para o futuro haveria Mme. Brizard de se arrepender muito
seriamente. Os recém-casados fecharem , porém ,ouvidos a tais palavras e cuidaram
de ir pondo em prática os seus novos planos de vida Meteram mãos à obra. Coqueiro
deixou o emprego, contratou um empreiteiro para restaurar o seu velho prédio
da Rua do Resende, e a casa de pensão de Mme. Brizard ( como teimosamente
insistiam em lhe chamar a mulher ) surgiu ameaçadora, escancarando para a
população do Rio de Janeiro a sua boca de monstro.

VI

Foi justamente três anos depois disso que Amâncio chegou ao Rio de Janeiro.
A casa de Mme. Brizard estava então no seu apogeu; de todos os lados choviam
hóspedes, entre os quais se notavam pessoas de importância. Pelo tempo das
câmaras reuniam-se ali alguns deputados da província, homens sérios, em geral
gordos, o ar discreto, um sorriso infantil à superfície dos lábios e um fraseado
imaginoso, cheio de poesia. Fazia-se política no salão, depois da comida,
em chinelas de tapete, ao remansado soprar do fumo da Bahia. A dona da casa
gozava para eles de muita consideração; só um ou outro, mais atirado à pilhéria,
ousava atribuir a algum dos seus “nobres colegas “os sorrisos de Mme. Brizard.
Outros entusiasmavam-se por ela. – Não! diziam. – Aquela mulher devia ter
sido um pancadão no seu tempo! Tudo que era pescoço e ombros ainda se podia
ver! Quem dera a muitas novas um colo daqueles! De uma feita , um deputado
de Minas, criatura baixa, socada, rosto curto, poucas palavras e muita barba,
empalmou-lhe a cintura, quando a pilhou sozinha na sala de jantar. A francesa
abaixou os olhos, afastou-se dignamente e foi logo dizer ao marido que era
necessário pôr aquele homem na rua. – O Moura! Por quê ? – Não te posso dizer
por que…mas afianço que o Moura não nos convém!… – Fez-te alguma? – Faltou-me
ao respeito! – Hein?! – Agarrou-me a cintura e ter-me-ia beijado o pescoço
,se eu lho permitisse. Esta última parte da queixa fazia mais honra ao espírito
inventivo de Mme. Brizard do que ao seu espírito de verdade; ela, porém, não
resistia ao gostinho de falar no seu rico pescoço, sempre que se oferecia
a ocasião. E o Moura teria posto os ossos na rua, se a própria Mme. Brizard
não intercedesse por ele no dia seguinte, alegando que o pobre homem havia
na véspera carregado um pouco mais no virgem. Também foi só. Nunca mais, que
constasse palpitou ali sombra de escândalo, e a famosa casa de pensão continuava
a sustentar a melhor aparência deste mundo. Até se dizia à boca cheia que,
por mais de uma vez, já se hospedaram verdadeiras celebridades, e eram todos
de acordo que no Rio de Janeiro ninguém fazia espetadas de camarão tão saborosas
como as da simpática irmãzinha do João Coqueiro, a Amelita. Uma verdadeira
especialidade. Constava até que vinha gente de longe ao cheiro daqueles camarões.
A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de visitas era
no primeiro. – Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre
de cristal, coberto de filó amarelo; três largas janelas de sacada, guarnecida
de cortinas brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de
moldura dourada e gasta inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas;
em uma das paredes laterais, um detestável retrato em óleo de Mme. Brizard,
vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava
fronteiro; por cima dos consolos vasos bonitos de louça da Índia, cheios de
areia até à boca. Imediato à sala, com uma janela igual àquelas outras, havia
uma gabinete, comprido e muito estreito, onde Coqueiro tinha a sua biblioteca
e a sua banca de estudo. Via-se aí uma pasta cheia de papéis, um tinteiro
e

um depósito de fumo, representando o busto de um barbadinho; ao fundo, uma
conversadeira de palhinha, encostada à parede, por debaixo de um pequeno caixilho
de madeira com o retrato de Victor Hugo em gravura. Seguia-se o aposento de
Mme. Brizard e mais do marido, onde também dormia o menino César, que teria
então doze anos; logo depois estava o quarto de Amelinha e da tal viúva histérica,
Leonie, a quem a família só tratava por “Nini”. Vinha depois a grande sala
de jantar, forrada de papel alegre; nas paredes distanciavam-se pequenos cromos
amarelados, representando marujos de chapéu- de- palha, tomando genebra, e
assuntos de conventos, – frades muito nédios e vermelhos refestelados à mesa
ou a brincarem com mulheres suspeitas. Um guarda-louça expunha, por detrás
das vidraças, os aparelhos de porcelana e os cristais; defronte – um aparador
cheio de garrafas, ao lado de outro em que estavam os moringues. Ainda havia
um corredor, a despensa, a cozinha, uma escada que conduzia ‘a chácara, outra
ao segundo andar, e mais três alcovas para hóspedes, todas do mesmo tamanho
e numeradas. A numeração dos quartos principiava aí nesses três par continuar
em cima. Em cima é que estava o grande recurso da casa, porque Mme. Brizard
dividira todo o segundo pavimento em oito cubículos iguais; ficando quatro
de cada lado e o corredor no centro. Os da frente davam janelas para a rua
e os do fundo para a chácara. As paredes divisórias eram de madeira e forradas
de papel nacional.

* * *

João Coqueiro, quando saiu do Hotel dos Príncipes na manhã do almoço, ia
preocupado; o Simões, que caminhava à sua esquerda um pouco sacudido pelos
vinhos, em vão tentou, repetidas vezes, puxá-lo à palestra; o outro respondia
apenas por monossílabos e, na primeira esquina, despediu-se e correu logo
para casa. Ao chegar foi direito à mulher, dizendo-lhe em voz baixa, antes
de mais nada: – Olha cá, Loló… E encaminhou-se para o quarto. Mme. Brizard
largou o que tinha entre as mãos e segui-o atentamente. – Sabes? Disse ele,
sem transição, assentando-se ao rebordo da cama. – É preciso arranjarmos cômodo
para um rapaz que há de vir por aí Domingo. – Um rapaz! Mas tu sabes perfeitamente
que os quartos acham-se todos ocupados. Se tivesses prevenido… o n°
2 ainda ontem estava vazio…Mas quem é? – Há de se arranjar, seja lá como
for! Disse o Coqueiro. – Mas quem é?…insistiu Mme. Brizard. – É um achado
precioso! Ainda não há dois meses que chegou do Norte, anda às apalpadelas!
Estivemos a conversar por muito tempo: – é filho único e tem a herdar uma
fortuna! Ah! Não imaginas: só pela morte da avó, que é muito velha, creio
que a coisa vai para além de quatrocentos contos!… Mme. Brizard escutava,
sem despregar os olhos de um ponto, os pés cruzados e com uma das mãos apoiando-se
no espaldar da cama. – Ora , continuou o outro gravemente. – Nós temos de
pensar no futuro de Amelinha… ela entrou já nos vinte e três !… se não
abrirmos os olhos… adeus casamento! – Mas daí … perguntou a mulher, fugindo
a participar da confiança que o marido revelava naquele plano. – Daí – é que
tenho cá um palpite! explicou ele. – Não conheces o Amâncio!… A gente leva-o
para onde quiser!… Um simplório , mas o que se pode chamar um simplório!
Mme Brizard fez um gesto de dúvida. – Afianço-te , volveu Coqueiro, – que
, se o metermos em casa e se conduzirmos o negócio com um certo jeito, não
lhe dou três meses de solteiro!

VII

Nessa mesma tarde Mme Brizard entendeu-se com a cunhada. Falou-lhe sutilmente
no “futuro”, disse-lhe que “uma menina pobre, fosse quanto fosse bonita, só
com muita habilidade e alguma esperteza poderia apanhar um marido rico”. E
tocando lhe intencionalmente no queixo: – Anda lá , minha sonsa, que sabes
disso tão bem como eu!…

Amélia riu, concentrou-se um instante e prometeu fazer o que estivesse no
seu alcance, para agradar ao tal sujeitinho. Ardia, com efeito por achar marido,
por se tornar dona de casa. A posição subordinada de menina solteira não se
compadecia com a sua idade e com as desenvolturas do seu espírito. Graças
ao meio em que se desenvolveu, sabia perfeitamente o que era pão e o que era
queijo; por conseguinte as precauções e as reservas, que o irmão tomava para
com ela, faziam-na sorrir. Às vezes tinha vontade de acabar com isso. “Que
diabo significavam tais cautelas?…Se a supunham uma toleirona, enganavam-se
– ela era muito capaz de os enfiar a todos pelo ouvido de uma agulha!” – Agora,
por exemplo, neste caso do tal Amâncio, que custava ao Coqueiro explicar-se
com ela francamente?…Por que razão, se ele precisava de seu auxílio, não
a procurou e não lhe disse às claras: “Fulana, Domingo vem aqui um rapaz,
nestas e nestas condições; vê se o cativas, porque ali está o noivo que te
convém!” Mas, não senhor! – meteu-se nas encolhas e entregou tudo nas mãos
da mulher! – Ora! Disse consigo a rapariga. – Isto até nem sei que me parece!
Ou bem que somos, ou bem que não somos!…Se Janjão queria alguma coisa de
mim, era falar com franqueza e deixar-se de recadinhos por detrás da cortina!
E Amélia, quanto mais refletia no caso, tanto mais se revoltava contra a reserva
do irmão: – Ele já a devia conhecer melhor! Pelo menos já devia saber que
aquela que ali estava era incapaz de cair em qualquer asneira; aquela não
“dava ponto sem nó “.Outra que fosse, quanto mais – ela, que conhecia os homens,
como quem conhece a palma das próprias mãos ! – Ela, que viu de perto, com
os seus olhos de virgem, toda a sorte de tipos!- ela, que lhes conhecia as
manhas, que sabia das lábias empregadas pelos velhacos para obter o que desejavam
e o modo pelo qual ser portam depois de servidos!_ Ela! tinha graça! – Ela,
que até ali dera as melhores provas de sagacidade e de esperteza; já “convencendo”
tal freguês remisso que não queria pagar, nem a mão de Deus Padre, o aluguel
do quarto pelo preço cobrado; já respondendo a tal credor, que, em tal época,
veio receber tal conta; já sofismando tal compromisso; já resolvendo tal aperto,
uma vez em que nem a própria Mme. Brizard sabia que fazer! E ainda a suporiam
criança?…ainda teriam medo de qualquer asneira sua parte?…Pois então que
se lembrassem da questão do Pereirinha! O Pereirinha foi um dos primeiros
hóspedes do Coqueiro. Rapaz bonito, perfumado, muito prosa. Amélia representava
para ele a mesma inocência em pessoa, só lhe falava de olhos baixos, voz sumida,
o ar todo candura e vexame. Pereirinha jurava-lhe uma paixão sem bordas, fazia-lhe
versos, tocava-lhe nos pés por baixo da mesa, e, depois do jantar, quando
os mais se alheavam no egoísmo da saciedade, ele a fitava tristemente, pedindo,
com os olhos fosse lá o que fosse. Pois bem, ela a tudo isso correspondia
com muito agrado, submetia-se resignadamente a todos esses requisitos do namoro
vulgar, mas…um belo dia em que o pedaço de asno do Pereirinha quis ir adiante,
Amélia aconselhou-o sorrindo a que primeiro a fosse pedir em casamento ao
irmão. E, quando se convenceu de que o tipo não queria casar, disse-lhe abertamente:
” Ora, meu amigo, outro ofício!” E Coqueiro sabia de tudo isso, tão bem como
a própria Amélia – para que pois aqueles escrúpulos ridículos e amoladores?.

* * *

Só à noite,, à acostumada palestra em torno da mesa de jantar, lembraram-se
de que o dia seguinte era de grande gala. – Ó diabo! considerou Coqueiro.-
E eu que podia Ter dito ao Amâncio para vir amanhã! Escusávamos de esperar
até domingo. – Ora, senhores! Onde diabo tinha a cabeça!… – Queres saber
de uma coisa? Disse, tomando a mulher de parte. – Vai tu e mais Amelinha arranjar
o gabinete, que eu escrevo uma carta ao nosso homem; pode ser que amanhã mesmo
o tenhamos por cá. Anda, vai! O segredo das grandes coisas está às vezes nesta
pequenas deliberações! E, enquanto Mme. Brizard aprontava com Amélia o gabinete,
escreveu ele a carta que Amâncio encontrou sobre a cômoda. Não descansaram
mais um instante. Desde pela manhã do dia seguinte andava a casa em grande
alvoroço. Foi preciso varrer, escovar, remover do gabinete os móveis que o
atravancavam. Preparou-se uma bela caminha, coberta de lençóis claros e cheirosos;
estendeu-se um tapete no chão; colocou-se a um canto o lavatório, encheu-se
o jarro que ficou dentro da bacia, ao lado das toalha. E feito isto, puseram-se
todos à espera de Amâncio. Ele, até aquelas horas, não havia declarado por
escrito se iria ou não, logo – era provável que fosse.

E com efeito, pela volta do meio-dia, um tílburi parou à porta, e Amâncio,
muito intrigado com a numeração das casa, entrou no corredor, a olhar para
todos os lados. Um moleque, que ficara de alcatéia à espera dele, correu logo
ao primeiro andar, gritando que “o moço já estava aí” – Cala a boca, diabo!
Respondeu Mme. Brizard em voz abafada e discreta. Coqueiro ergueu-se prontamente
do lugar onde se achava e atirou-se com espalhafato para o corredor, alegre
e expansivo, como se recebera, depois de longa ausência, um velho amigo da
infância. – Bravo! Exclamava, sacudindo os braços e correndo ao encontro de
Amâncio. – Bravo! Assim é que entendo os amigos! Não te perdoaria se faltasses!
E com muita festa ,a apressá-lo: – Vem entrando para a sala de jantar! Estás
em tua casa! Entra! Entra! Amâncio deixava-se conduzir, em silêncio. Já não
tinha o mesmo tipo mal ajeitado com que se apresentara ao Campos; agora, um
terno de casimira cinzenta, comprado nessa mesma manhã a um alfaiate da Rua
do Ouvidor. Dava-lhe ares domingueiros de janotismo. Vinha de barba feita,
as unhas limpas, os dentes cintilantes, o cabelo dividido ao meio, formando
sobre a testa duas grandes pastas lustrosas e do feitio de uma borboleta de
asas abertas. Os olhos não denunciavam os incômodos da véspera, e de todo
ele respirava um cheiro ativo de sândalo – Estimei bem que me escrevesses…
disse atravessando o corredor, ao lado do Coqueiro. Não tinha para onde ir
hoje. O Campos está de passeio com a família lá para o tal Jardim Botânico..
– Pois eu estimei ainda mais que viesses. Entra! Penetraram na sala de jantar.
Estava tudo bem arrumado e muito limpo; não se podia desejar melhor aspecto
de felicidade caseira; em tudo – a mesma aparência austera e calma de uma
velha paz inquebrantável e honesta. Mme. Brizard, assentada à cabeceira da
mesa, parecia ler atentamente um livro que tinha aberto defronte dos olhos;
mais adiante trabalhava Amelinha em uma máquina de costura, a cabeça vergada,
os olhos baixos, numa expressão tranqüila de inocência. Logo que Amâncio apareceu
na varanda, Mme. Brizard desviou os olhos do livro, deixou cair as lunetas
do nariz e foi recebê-lo solicitamente; a outra limitou-se a cumprimentá-lo
com um modesto e gracioso movimento de cabeça. – O Dr. Amâncio de Vasconcelos!
Gritou o Coqueiro, empurrando o colega para junto das senhoras. E acrescentou,
designando-as: – Minha mulher e minha irmã…O amigo já sabe que são duas
criadas que aqui tem às suas ordens! Amâncio agradecia, desfazendo-se em reverências
e apertando as mãos de ambas, todo vergado para a frente, as faces incendiadas
pela comoção daquela primeira visita. – Põe-te à vontade, filho! Disse-lhe
o Coqueiro, em ar quase de censura. – Olha uma cadeira. Senta-te! E tirando-lhe
a bengala e o chapéu : – Aqui estás em tua casa! Minha gente não é de cerimônias!
Entretanto Mme. Brizard o tomava a si com perguntas: – Há quanto tempo havia
chegado; de que província era filho; se tinha saudades da família; se gostava
do Rio de Janeiro; que tal achava as fluminenses, e se já estava embeiçado
por alguma. E vinham os risos exagerados e sem pretexto, de quando se deseja
agradar as visitas. O provinciano respondia a tudo, inclinando a cabeça, procurando
armar bem a frase e fazendo esforços para se mostrar de boa educação. Ia-lhe
já fugindo o primitivo acanhamento e as palavras acudiam-lhe à ponta da língua,
sonoras e fáceis. – Não tenho desgostado da Corte, dizia a brincar com a sua
medalha da corrente, – mas, confesso, esperava melhor…Lá de fora, sabe V.
Ex.ª a coisa parece outra! Fala-se tanto do Rio!…Pintam-no tão grande, tão
bonito, que o pobre provinciano, ao chegar aqui, logo sofre uma terrível decepção!…Pelo
menos comigo foi assim! – O Sr. Vasconcelos já visitou os arrabaldes?…perguntou
Mme. Brizard muito delicadamente. – Ainda não, minha senhora. Apenas fui a
Botafogo, de passagem, para entregar uma carta; mas tenciono percorrê-los
todos, na primeira ocasião.

A sala iluminada tinha um caráter imponente. O gentleman encaminhou a conversa
geral para a música, aconselhou a Amâncio que solicitasse da Sr.ª D. Lúcia
um pouco do Guarani, que ela tocava admiravelmente.

Lúcia queixou-se de que ultimamente sofria de certa fraqueza nos dedos e
não tocava com a mesma expressão , mas sempre foi pelo braço de Lambertosa
tomar ao piano o lugar que Amélia deixara nesse instante. E logo as primeiras
notas da introdução do Guarani encheram a sala com a sua corajosa e dominadora
solenidade. Fizeram silêncio. Ela tocava bem, com muita energia e destreza.
Amâncio encostara-se sozinho ao canto de uma janela e sentia-se ir a pouco
e pouco arrastando pela irresistível corrente daquelas frases musicais Seu
estômago, perfeitamente confortado, dava-lhe ao corpo um bem-estar beatífico
e predispunha-lhe o espírito para as vagas concentrações e para os místicos
arrebatamentos da fantasia. Um profundo langor, muito voluptuoso, apoderava-se
de todo ele, e os vapores duvidosos de um princípio de embriaguez, acamavam-se
em torno de sua cabeça, anuviando-lhe os objetos exteriores. E ali, da janela
suspenso ainda pelas novas impressões que lhe deparavam os novos aspectos
de sua existência, abstrato e perdido em cismas indefinidas, enxergava, por
entre as névoas do seu enlevo, o vulto melancólico de Lúcia, assentada defronte
do piano, a picar o teclado com os dedos, num frenesi delicioso. Depois da
música principiou a simpatizar com ela; já gostava de a ver, misteriosa e
pálida, arrastando a vida com a languidez de uma convalescente. Estava todo
embevecido a pensar nesta simpatia, quando voltou por acaso o rosto e deu
com os olhos de Nini, que o fitavam sem pestanejar. – É birra, não tem que
ver! Pensou ele aborrecido..

* * *

Duas horas depois tornavam à sala de jantar. Serviam-se as torradas. Pereira,
com o César adormecido sobre as pernas, ressonava profundamente na mesma preguiçosa
em que o tinham deixado. Mme. Brizard chamou o copeiro e ordenou-lhe que recolhesse
o menino. Pereira espreguiçou-se, abriu vagarosamente os olhos , mas tornou
a fechá-los, bocejando. Já estavam à mesa, quando os hóspedes principiaram
a chegar. Veio o Paula Mendes e mais a mulher. Ele de pequena estatura, grosso,
os movimentos acanhados, a voz branda e a fisionomia triste; ela muito alta,
cheia de corpo, despejada de maneiras e com feições de homem. Chamava-se Catarina,
estava sempre a implicar com as coisas e tinha muita força de gênio. Entrou
como uma fúria; o marido atrás. Cumprimentou a todos com um – “boas-noites”
terrível, e, atirando-se a uma cadeira, declarou , a bater com a mão na mesa,
que vinha desesperada! – Pois, se em vez de piano, lhe haviam dado um tacho,
um verdadeiro tacho, para executar um noturno de Chopin! Dificílimo! – Pouca
vergonha! Exclamava ela, rangendo os dentes. – canalhas! E voltando-se para
o marido com um furor crescente: – Mas o culpado foste tu, lesma de uma figa!-
já devias conhecer melhor aquela súcia! – Mas… ia responder o marido. Cale-se,
berrou ela. – Não me dê uma palavra, que não estou disposta a lhe ouvir a
voz! Diabo do basbaque Fez uma pausa, estava arquejante, mas continuou logo:
– Também ali, acabou-se! Cruz na porta! Nunca mais! Nunca mais! Nem admito
que me falem na rua! Corja! E, levantando-se com ímpeto, cumprimentou a todos
com um arremesso, e subiu para o segundo andar, levando o marido na frente,
aos empurrões Safa, disse Amâncio consigo. O Dr. Tavares é que vinha satisfeito.
Estivera em casa de um amigo, pessoa de muita consideração, onde se reunia
a mais fina sociedade. E, necessitado de expandir o seu bom humor, entabulou
conversa com Amâncio. Falou-lhe a um só tempo de mil coisas diferentes; tratou
muito de si; das suas pretensões na Corte que apenas conhecia de alguns meses;
das suas esperanças de obter o que desejava; do que lhe dissera tal ministro;
do que prometera tal conselheiro ,e, afinal , da sua profissão de advogado,
profissão que ele exercia com entusiasmo, com delírio, porque, desde pequeno,
toda a sua queda fora sempre para falar em público, para dominar as massas.
E, esquentando-se ao calor de suas próprias palavras, discursava, como se
já estivesse no tribunal. Armava posições; recorria aos efeitos da tribuna,
vergava para trás. a cabeça, ameaçando espetar o auditório com a ponta de
sua barba triangular. Sentia-se radiante por ver que todos os mais não abriam
a boca, enquanto ele estivesse com a palavra.

Seu tipo indeciso, de cearense do interior, uma dessas fisionomias confusas
e duvidosas, nas quais o fulvo castanho dos cabelos quase que não se distingue
do moreno da pele e do pardo verdoengo dos olhos, seu tipo transformava-se
na febre da eloqüência e parecia acentuar-se por instantes. E, já de pé, com
uma das mãos apoiada nas costas da cadeira, jogava freneticamente com a outra,
ora espalmando-a em cheio sobre o peito, ora apontando terrível para o teto
, ora indicando o chão , horrorizado, como se ai estivesse um abismo, ora
dando com o indicador ligeiras e repetidas facadinhas no ar; ao passo que
a voz, pelo contrário, se lhe arrastava em trêmulos prolongados, como as notas
graves de um harmonium. Enquanto ele parolava, outros hóspedes se recolhiam
aos competentes quartos, atravessando a varanda pelo fundo na ponta dos pés,
com medo da “caceteação”. Aquele homem era o terror da casa. Às vezes,, depois
do jantar, quando ele abria as torneiras da loquacidade,, iam todos, um por
um, fugindo sorrateiramente, até deixá-lo a sós com o Pereira que, afinal,
adormecia. Amâncio principiava a sentir cansaço. Quis retirar-se; não lho
consentiram. – Passava já de meia-noite; a casa do Campos devia estar fechada
àquela hora.- O melhor seria ficar, observou a francesa. – Que diabo, acudiu
Coqueiro. – Fica, não incomodarás ninguém…Estás tudo providenciado; a cama
feita…Além disso, olha! E mostrando o céu pela janela:- Vamos ter chuva!
Com efeito sopravam os ventos do sul. Amâncio ainda opôs algumas razões, mas
finalmente cedeu.

* * *

Era mais de uma hora quando se dispersou a roda e cada um, depois de novos
protestos e oferecimentos se recolheu à competente alcova. Mme. Brizard recomendou
muito a Amâncio que ficasse à vontade; que não tivesse escrúpulos em reclamar
qualquer coisa de eu sentisse falta. Supunha, porém , não haver ocasião disso,
porque fora ela própria e mais a Amelinha quem lhe arranjara o quarto. Coqueiro
acompanhou-o até a cama, examinou rapidamente se estava tudo no seu lugar
e depois, dando mais luz aso bico de gás, e tirando um folheto da algibeira
disse-lhe com um sorriso: Sempre te vou mostrar os versos… Amâncio, já meio
despido, estremeceu, mas não opôs a menor consideração, e meteu-se debaixo
dos lençóis. O outro em pé ao lado da cama, folheava amorosamente o seu caderno
de versos, à procura do que deveria ler em, primeiro lugar Descobriu afinal
e, com a voz clara e sonora , principiou: ” Estamos em plena Roma. Os Césares
devassos…”

VIII

Amâncio sentiu um grande alívio, quando se achou afinal inteiramente só;
a porta do quarto bem fechada e a luz do bico de gás quase extinta. Estava
morto de fadiga. As enfadonhas conversas de Coqueiro e Mme. Brizard, o jugo
inquisitorial das cerimônias, a pândega da véspera, tudo isso dava àquela
caminha fresca, de lençóis limpos, um encanto superior ao que houvesse de
melhor no mundo. Seu corpo quebrado de impressões diversas e na maior parte
consumidoras e lascivas, bebia aquele repouso por todos os poros, voluptuosamente,
como um sequioso que se metesse dentro da água.. Aninhou-se , encolheu-se,
abraçado aos travesseiros, ouvindo com uma certa delícia esfuziar o vento
nas portas e, lá fora, desencadear-se o temporal, arremessando água aos punhados
contra telhas e paredes. E deixava-se arrebatar pelo sono, como se deslizasse
por uma ladeira interminável de algodão em rama. Os acontecimentos d dia começaram
a desfilar em torno de sua cabeça, em procissões fantásticas de sombras duvidosas
e fugitivas. Dentre estas, era o vulto de Lúcia o que melhor se destacava,
com o seu andar quebrado e voluptuoso, a remexer os quadris, atirando a barriga
para frente. Chegava a distinguir-lhe perfeitamente os grandes olhos amortecidos
e a sentir-lhe o perfume que ela trazia essa tarde no lenço e nos cabelos.
Em seguida, vinha a outra, a Amelinha, mas não com a lucidez da primeira.
E logo depois Mme. Brizard, com o seu todo pretensioso; Nini, a fitá-lo, muito
aflita, as mãos inchadas e sem tato, o cabelo escorrido sobre a

cabeça, cheirando a pomada alvíssima, bata elã, escura e sinistra como um
burel. E, depois, numa confusão vertiginosa, – o Coqueiro a berrar versos,
dançando no ar e a sacudir em uma das mãos um punhado de feijões pretos; e
o Paula Mendes a jogar os murros com a mulher; e o Dr. Tavares a discursar
com os braços erguidos para ao ar; e o César, o menino prodígio, a esgarafunchar
o nariz freneticamente; e o Pereira, de olhos fechados, a andar como sonâmbulo;
e o … Mas os vultos de todos se confundiam e desfibravam, como nuvens que
o vento enxota. Amâncio já os não distinguia. Acordou às oito horas do dia
seguinte, meio inconsciente do lugar onde se achava. Logo, porém, que caiu
em si, levantou-se de um pulo e abriu a janela de par em par. Um jato de luz
dourada invadiu-lhe a alcova. Olhou a ,manhã, que estava de uma transparência
admirável. A chuva da véspera limpara a atmosfera; corria fresco. Os bondes
passavam cheios de empregados públicos; viam-se amas-de-leite acompanhando
os bebês; senhoras que voltavam do banho de mar, o cabelo solto, uma toalha
no ombro. Aquele movimento era comunicativo. Amâncio sentiu vontade de sair
e andar à toa pelas ruas. Todo ele reclamava longos passeios ao campo, por
debaixo de árvores, em companhia de amigos. Foi para o lavatório cantarolando;
o sono completo da noite fazia-o bem disposto e animado. Mal acabara de se
preparar quando bateram de leve na porta. Era uma mucamazinha, que já na véspera
lhe chamara por várias vezes a atenção durante o jantar. Teria quinze anos,
forte, cheia de corpo, um sorriso alvar mostrando dentes largos e curtos,
de uma brancura sem brilho. Vinha saber se o Dr. Amâncio queria o café antes
ou depois do banho. Amâncio, em vez de responder, agarrou-lhe o braço com
um agrado violento e grosseiro. Ela pôs-se a rir aparvalhadamente.

* * *

Às dez horas, ao terminar o almoço, estava já resolvido que o rapaz, naquele
mesmo dia, se mudava definitivamente para a casa de pensão. Com efeito, pouco
depois, no escritório do Campos, dizia a este, cheio de maneiras de pessoa
ajuizada, “que afinal descobrira em casa da família de um amigo o cômodo que
procurava”. Agradeceu muito os obséquios recebidos das mãos do negociante,
desculpou-se pelas maçadas que causara naturalmente e pediu licença para despedir-se
de D. Maria Hortênsia. O Campos, logo que soube qual era a casa de pensão
de que se tratava, aprovou a escolha, citou pessoas distintas que lá estiveram
morando por muito tempo, e recomendou ao estudante – que lhe aparecesse de
vez em quando; que não se acanhasse de bater àquela porta nas ocasiões de
apuro, porque seria atendido, e, afinal, perguntou se Amâncio queria receber
a mesada, já ou mais tarde. – Como quiser… respondeu o provinciano, sem
ter aliás a menor necessidade de dinheiro. E foi embolsando a quantia. D.
Maria Hortênsia recebeu-o com muito agrado. A irmã não estava em casa. Conversaram.
Ela sentia que Amâncio se retirasse assim tão depressa; – mas, quem sabe?
Talvez não se desse bem ali; não fosse tratado como merecia… O estudante
protestava, jurando que não podia ambicionar melhor tratamento do que lhe
dispensaram; reconhecia, porém, que já causava muito incômodo, e por conseguinte
devia retirar-se. Não queria abusar. Hortênsia afiançava e repetia que ele
não dera incômodo de espécie alguma.- Tudo aquilo era feito com muito gosto!
Agora parecia mais familiarizada com o provinciano. Chegou a dirigir-lhe gracejos;
disse, com um sorriso de intenção, que “sabia perfeitamente o que aquilo era!…
O que eram rapazes! – Não se queriam sujeitar a certo regime; só lhes servia
pagodear à solta ! Enfim!…tinham lá a sua razão… Se ela fosse rapaz faria
o mesmo, naturalmente!” Amâncio estranhou que tais palavras viessem de quem
vinham, e, não querendo perder a vaza, retorquiu com febre: “Que Hortênsia
estava enganada a respeito dele, que não o conhecia! Se, à primeira vista
ele parecia um pândego ou um sujeito mau, não o era todavia no fundo! Ninguém
amava tanto a família; ninguém desejava o lar com tanto ardor e com tanto
desespero! Oh! Que inveja não tinha do Campos!…que inveja não tinha de todo
homem, a cujo lado enxergava uma esposa bonita e carinhosa!…” Hortênsia
agradeceu com um sorriso. – Oh! Quanto fora injusta!…prosseguiu Amâncio,
como rosto esfogueado de comoção. – Quanto fora injusta! O seu ideal, dele,
era justamente o casamento; era possuir uma mulherzinha, cheirosa e meiga,
com quem

passasse a existência, ditosos e obscuros no seu canto, vivendo um para o
outro, ignorados, egoístas, não cedendo nenhum dos dois, a mais ninguém a
menor particularzinha de si,- um sorriso que fosse, um olhar amigo, um aperto
de mão! – Que rigor! Exclamou Hortênsia, tomando certo interesse pelo que
dizia o estudante.- Que rigor! Não o supunha assim, seu Amâncio!… – Oh!
Era assim que ele entendia o verdadeiro amor!… E, cada vez mais quente:
– Era assim que ele amaria! Era assim que ele cercaria de beijos o anjo estremecido
que o quisesse recolher à tepidez consoladora de suas asas! Era assim que
sonhava a existência de duas almas gêmeas, soltas no azul, gozando a voluptuosidade
do mesmo vôo!… – Pois é casar-se, meu amigo… aconselhou a mulher do Campos,
pasmada de ouvir Amâncio falar daquele modo.- Não o fazia tão prosa!… E,
como era preciso dizer qualquer coisa, acrescentou muito amável: – Quem sabe
se alguma fluminense já não lhe voltou o miolo!… Ele confessou que sim,
sacudindo tristemente a cabeça . E, de tal modo exprimiu o seu amor por “essa
fluminense”, tão ardente e tão apaixonado se mostrou, que Hortênsia instintivamente
se ergueu, a olhar para os lados, sobressaltada como se tivesse cometido uma
falta. Não quis saber de quem se tratava. Deu uma volta pela sala, foi ao
aparador, tomou alguns goles de água e, procurando mudar de conversa, falou
do baile que havia essa noite em casa do Melo. – Devia ser muito bom, constava
que havia quinze dias se preparavam para a festa. Era em Botafogo. O Campos,
logo que recebeu o convite, lembrou-se de levar Amâncio consigo, este, porém,
tão raramente aparecia em casa, e agora, com esta mudança… – Não. O Campos
falou-me, disse o estudante. – Ah! sempre chegou a lhe falar? – Há três ou
quatro dias; mas eu não tencionava ir… – Por quê? O senhor é moço, deve
divertir-se. – A senhora vai? – Sim, vou. – Nesse caso irei também. E Amâncio
ligou tão expressiva entonação àquelas palavras, que Hortênsia abaixou os
olhos, já impaciente, sem mais vontade de conversar. – Seria possível, pensava
ela – que aquele estudante lhe quisesse fazer a corte?… Não! não seria capaz
disso, e, se fosse , ela saberia desenganá-lo! Ah! com certeza que o desenganava!
Campos subiu daí a um instante, e Amâncio, depois de combinar com ele que
voltaria à noite para irem juntos à casa do Melo, entregou as suas malas a
um carregador e saiu. Sentia-se alegre; a nova atitude de Hortênsia dava-lhe
um vago antegosto de prazeres; previa com delícia os bons momentos que o esperavam.
– E agora é que vou deixar a casa!…pensava ele já na rua .- Que tolo fui!
Abandonar a empresa, justamente quando me sorri a primeira esperança! “Mas
pedaço de asno, argumentava com seus botões – não calculaste logo que aquela
mulher mais dia menos dia, havia de escorregar? Porque diabo então não esperaste
um pouco?…”Ora! mas que caiporismo o meu! Sair nesta ocasião! Perder uma
conquista tão boa! Agora também que remédio lhe ei de dar? O que está feito,
está feito! A este momento minhas malas talvez já tenham chegado à casa do
Coqueiro! E com este nome assaltaram-lhe logo o espírito as imagens de Lúcia
e Amelinha. Bem me dizia o Simões, pensou ele. – Bem me dizia o Simões: “Quando
te começarem as aventuras, hás de ver o que vai por esta sociedade!” E Amâncio,
que não conseguia reter na cabeça as palavras dos seus professores, Amâncio,
que era incapaz de guardar na memória um fato, um algarismo, uma fórmula científica,
conservava, entretanto, com toda a inteireza aquela frase banal, pronunciada
por um pândego em um almoço de hotel, depois de meia dúzia de garrafas de
vinho. – O Simões tinha toda a razão… principiavam as aventuras! Diabo era
aquela asneira de abandonar tão intempestivamente a casa do Campos! Fora uma
triste idéias, que dúvida! Mas, ele também não podias adivinhar quais seriam
as intenções de Hortênsia!… O melhor por conseguinte era não se apoquentar
– o que lhe estivesse destinado havia de chegar-lhe às mãos!… E já nem pensava
nisso quando subiu as escadas da casa de pensão. Sorrisos amáveis de Amelinha
e Mme.Brizard o receberam desde a entrada. Coqueiro estava na rua.

Veio a conversa do baile dessa noite. Amâncio, pela primeira vez, ia conhecer
uma sala da Corte. As duas senhoras profetizavam que ele voltaria cativo por
alguma carioca. – Duvido! Respondeu o estudante, a rir. – É! Disse a francesa
– vocês do Norte são todos uns santinhos! Eu já os conheço! Nunca vi gente
tão assanhada. Amelinha abaixou os olhos, depois de lançar à outra um gesto
repreensivo. Mme. Brizard não fez caso e acrescentou: – Os demônios não podem
ver um rabo-de-saia! – Loló! Censurou Amelinha em voz baixa. – Também não
é tanto assim!…contradisse o provinciano. Mme. Brizard citou logo os exemplos
de casa, até ali entre todos os seus hóspedes, só os nortistas davam sorte
em questão de amor. – Um deles, um tal Benfica Duarte, chegara a raptar com
escândalo uma crioula, e crioula feia! Amelinha, bem contra a vontade, soltou
uma risada, que lhe desfez por instantes o ar inocente da fisionomia; mas
recuperou-o logo, e lembrou à cunhada “que não deviam estar ali a roubar o
tempo a seu Amâncio. Ele tinha que cuidar das malas que já o esperavam no
quarto!” – Nós podemos ajudá-lo nesse trabalho, acudiu a velha.- Certas coisas
só ficam bem feitas por mão de mulher! O estudante aceitou oferecimento, e
os três seguiram para o gabinete, sempre a rir e a conversar. Amelinha, enquanto
Amâncio estrava no quarto, observou, em voz baixa a Mme. Brizard, que não
achava conveniente que esta arriscasse em sua presença pilhérias como as de
ainda há pouco. – O rapaz, por muito ingênuo que fosse, podia desconfiar com
aquilo e persuadir-se de que ela, Amelinha, não daria uma noiva bastante séria
e digna dele! Que, às vezes, por estas e outras indiscrições, desmanchavam-se
casamentos! – Como te enganas! Respondeu a velha- já compreendi bem esse sujeito:
a sua corda sensível são as mulheres! Gosta que lhe falem nisso! Tu, do que
precisas, é opor-lhe dificuldades, sem que o desenganes por uma vez; nega,
mas promete, que obterás a vitória. Quando ele te pedir um beijo, dá-lhe um
sorriso; e, quando quiser muito mais, dá-lhe então o beijo, contando que te
mostres logo arrependida, envergonhada, chorosa, inconsolável, disposta a
não lhe ceder mais nada, e disposta a nunca lhe pertenceres, a nunca lhe perdoares
aquele atrevimento. E, se ele insistir, repele-o, insulta-o, jura que o desprezas
e fá-lo acreditar que amas a outro. – É dessa forma que o hás de agarrar,
percebes? Lá quando às minhas chalaças de ainda há pouco, descansa que por
aí não irá o gato às filhoses. Nesse momento, o rapaz acabava de abrir as
malas. As duas senhoras apareceram no quarto. Ele tinha muita roupa branca,
e tudo bom. Camisas finas de linho, ricas toalhas de renda marcadas cuidadosamente
por sua mãe, fronhas bordadas, mostrando o seu nome entre labirintos e desenhos
caprichosos. Sentia-se o amor, o desvelo, com que tudo aquilo fora arrumado;
cada objeto parecia conservar ainda a marca da mão carinhosa que o acondicionara
a um canto da arca. Alguns denunciavam o trabalho paciente de longos tempos,
traziam à idéia calmos serões à luz do candeeiro. Adivinhava-se, pelo completo
daquele enxoval, a providência de um coração materno; nada faltava. À proporção
que se iam tirando as peças de roupa, uma tepidez embalsamada respirava dentre
elas; parecia que um perfume ideal de beijos se exalava ao desdobrar dos brancos
lençóis de linhos ; percebia-se que muita lágrima e muito soluço ficaram abafados
no fundo daquelas arcas. Vieram ao provinciano novas e mais vivas saudades
de Ângela. Uma vaga tristeza apoderou-se dele, ficou distraído, a olhar silenciosamente
para as roupas que as duas mulheres empilhava no chão e sobre a cama. Sentiu,
compreendeu, que ele próprio, à semelhança daquelas arcas, havia também de
ir perdendo, pouco a pouco, todas as ilusões, todos os perfumes, com que saíra
impregnado dos braços de sua mãe. E afastou-se do quarto para limpar as lágrimas.
As lágrimas, sim, que o fato de sua primeira viagem, as impressões da Corte,
a saudade, as aventuras amorosas, as ceatas pelos hotéis, davam-lhe ultimamente
uma sensibilidade muito nervosa e feminil. Elas acudiam-lhe agora com extrema
facilidade; chorava sempre que se comovia. Às vezes no teatro, assistindo
à representação De qualquer drama de efeitos, ficava envergonhado por não
poder impedir que os olhos se lhe enchessem de água; a simples descrição de
uma desgraça perturbava-o todo; a música italiana o entristecia; a idéia de
um feito erótico ou de um rasgo de perversidade era o bastante para lhe agitar
a circulação do sangue e formar-lhe godilhões na garganta. Quando voltou ao
quarto, já os baús estavam despejados.

Mme. Brizard não se fartava de elogiar a boa qualidade das fazendas, o bem
cosido das roupas, a pachorra e asseio com que tudo fora feiro. Apreciava
o trabalho das marcas; chamava a tenção de Amélia para os bordados, para os
labirintos e para as rendas. – Olha! Disse-lhe, mostrando um pano de crochê,
– o desenho é justamente como aquele da toalha do oratório. Só faltam aqui
as duas borboletas do canto. E arrumava tudo, com muito cuidado, nas gavetas
da cômoda. Tomava religiosamente sobre os braços os pesados lençóis, os maços
de ceroulas em folha, os pacotes intactos de meias listradas, os de lenços
barrados de seda, os colarinhos de todos os feitios, as gravatas de todas
as cores. E não acondicionava uma peça sem afagá-la, sem lhe passar por cima
as mãos abertas. – O rapaz estava provido de tudo! Disse em voz baixa. E,
depois acrescentou alto, rindo: – Podia até se casar se quisesse! – Falta
o principal… respondeu ele. – Que é? Acudiu logo Amélia. – A noiva! Explicou
o moço, olhando intencionalmente para a rapariga. – Deve estar à sua espera
no Maranhão… volveu ela. E abaixou os olhos com um movimento de inocência,
muito bem feito. – Não vê! Exclamou a velha. – Então um rapaz desta ordem
deixava as meninas da Corte para amarrar-se a uma provinciana?… Seria de
mau gosto! – Não sei por que, retorquiu Amâncio, ligeiramente escandalizado.
– Na província há senhoras bem educadas, muito chiques! – Sei, sei, perfeitamente,
disse Mme. Brizard, evitando contrariá-lo. Sei que as há … mas é que o Sr.
Vasconcelos tem elementos para desejar muito melhor! Seria pena que um rapaz
tão perfeito não escolhesse uma noivinha comme il faut.- Bonita, instruída,
que soubesse entrar e sair numa sala, conversar, fazer música, recitar, servir
um almoço, dirigir uma soirée. Além de que, meu caro senhor, as provincianas,
em geral, saem muito mais exigentes do que as filhas da Corte. E, como Amâncio
fizesse um ar de espanto: – Sim, porque a fluminense, habituada como está
na capital e familiarizada com os bailes, com os espetáculos do lírico, com
os passeios, já se não se preocupa com essas coisas e, uma vez casada, dedica-se
exclusivamente ao lar, ao marido e aos filhinhos; ao passo que com as outras,
as provincianas, sucede justamente o contrário, visto que ainda não conhecem
aqueles gozos e só desejam o casamento para conhecê-los. Daí as suas exigências;
nada as satisfaz, porque tudo fica muito aquém dos seus sonhos da província;
o que para as outras é tudo, para elas não é nada. Bailes e teatros toda a
noite, carruagens, lacaios, vestidos de seda, dez ou vinte criados, nada as
contenta, nada corresponde ao que elas ambicionam. E o marido, o pobre marido
de semelhante gente, depois de arruinado e depois de passar uma existência
sem amor e sem aconchegos de família, ainda terá de suportar as queixas e
os ressentimentos de uma mulher desiludida e blasé. – Perdão! Replicou o estudante.
– Isso prova simplesmente que toda a mulher, seja da província ou da Corte,
apresenta sempre certa dose de ambições. Com a diferença, porém, de que a
provinciana, por isso mesmo que o Rio de Janeiro é o seu ideal, é o seu sonho
dourado, contenta-se com ele; enquanto que a outra, visto que o supradito
Rio de Janeiro para ela nada mais é que o comum, estende naturalmente a sua
ambição – e quer Paris. O Passeio Público já não a satisfaz, é preciso dar-lhe
Bois de Boulogne; já não lhe chegam carruagens, criados e teatros; quer tudo
isso e mais um título, de baronesa pelo menos! E, encantado com a clareza
do seu argumento, continuou a discutir, chegando à conclusão de que seria
loucura desejar uma mulher isenta de ambições e caprichos, e que ele já se
daria por muito satisfeito se encontrasse alguma, cujo ideal não fosse além
do Rio de Janeiro. Amélia era precisamente dessa opinião, mas entendia que,
mesmo na Corte, se encontravam meninas bem educadas e aliás muito modestas.
Amâncio declarou que não argumentava com exceções.- Sabia perfeitamente que
nem todas as fluminenses calçavam pela mesma forma, e não tinha a pretensão
de dizer “desta água não beberei, deste pão não comerei!” apenas não admitia
aquela razão, que apresentava Mme. Brizard, para provar que as provincianas
eram mais dispendiosas do que as filhas da Corte. Isso não! que o desculpassem,
mas não podia admitir! Sempre queria vê-lo casado com uma provinciana!…
observou a francesa, tomando a roupa que lhe passava a outra. – Então sim!
Aposto que não teria a mesma opinião! Amâncio não respondeu logo, porque estava
muito ocupado a apanhar do chão uma grande pilha de camisas engomadas, que
Amelinha deixara cair. Mme. Brizard acudiu também a ajudá-los, e, na precipitação
com que todos três, agachados um defronte dos outros, queriam ao mesmo tempo
recolher a roupa espalhada no soalho, as mãos do estudante encontraram-se
com umas mãozinhas finas que não eram certamente as de Mme. Brizard.

Mas todas as vezes que ele tentou retê-las entre as suas, as tais mãozinhas
fugiam tão ligeiras, como se lhes houvessem chegado uma brasa.

IX

O baile em casa do Melo esteve bom. Este, muito magro, de suíças negras,
olhos fundos e movimentos rápidos, não descansava um instante; tão depressa
o viam conduzindo senhoras pela escada, como a receber apresentações na sala
de jantar, como a formar quadrilhas; voltando-se para todos os lados e atendendo
a todas as pessoas. O Melo tinha boas relações e alguns bens adquiridos no
comércio; nunca se envolveu diretamente com a política, mas prezava o monarca
e esperava , com resignação, um hábito que há dez anos lhe haviam prometido
pingar sobre a lapela da casaca. A mulher, que já não era criança, ainda metia
muita vista e passava por bonita; homens, que envelheceram com ela, citavam-na
como um tipo de formosura. Amâncio foi recebido com especial agrado, graças
a Luís Campos que era íntimo do dono da casa. A circunstância de que ali se
achava só, no meio de tanta gente estranha, como que apertava o círculo de
suas relações com a família do correspondente. Fazia-se muito deles, muito
aparentado; não dispunha de mais ninguém para desabafar as suas impressões
e para conversar um pouco mais à vontade. Assim, quando saltamos num porto
pela primeira vez, sentimos estreitarem-se de repente nossas relações com
os companheiros de bordo, ainda mesmo que os conheçamos de poucos dias. Até
Carlotinha parecia mais expansiva, principalmente depois que Amâncio se revelou
insigne dançador de valsa. Ela era louca pela dança. Maria Hortênsia notara
igualmente que o provinciano tinha um certo talento coreográfico muito peculiar,
e não ficou isolada nesse juízo, porque várias senhoras se declararam a mesma
opinião. Não tardou muito a que semelhante julgamento se estendesse pelas
outras salas ,. E em breve estavam todas as damas de acordo em que Amâncio
era o melhor par daquela noite. Com efeito, se ele em outra qualquer coisas
não conseguiu a perfeição , na dança ao menos nada se lhe tinha a desejar;
dançava admiravelmente, por vocação, por índole, por um jeito especial do
corpo, e com um amaneirado gracioso que sabia dar aos braços, à cabeça e às
pernas. Pode-se dizer que na valsa dispunha de um estilo próprio, original.
Quando, sacudido pela música, os olhos meio cerrados, a boca meio aberta,
arremessava-se com a dama no turbilhão da sala, tinha alguma coisa de pássaro
que desprende o vôo. Ficava até mais bonito; os cabelos crespos tremiam-lhe
romanticamente sobre a testa; o cansaço dava ao moreno de suas faces uma palidez
misteriosa e doce. E, com o braço direito engranzado à cintura do par, o esquerdo
repuxando nervosamente a mão que a dama estendia sobre a sua, ele empertigava-se
todo com delícia, a fechar os olhos e a rodar extasiado, embevecido como se
fora arrebatado por entre nuvens de arminho. No seu temperamento, excessivamente
lascivo, gozava com sentir ligado ao corpo precioso de uma mulher de estimação;
comprazia-se em beber-lhe o hálito acelerado pela dança, embebedava-se com
respirar-lhe os perfumes agudos do cabelo e o infiltrante cheiro animal da
carne. Afinal, depois de uma valsa, estonteado e ofegante, atirou-se ao canto
do divã em que estava Hortênsia. Confessava-se prostrado, a limpar o suor
do pescoço e da fronte. Fora imensa a valsa e ele cansara três pares, que
se abateram inúteis, como as espadas de Ney na batalha de Waterloo. – Apre!
Disse. As senhoras olhavam-no já com respeito, acompanhavam-lhe os menores
movimentos com enorme interesse. – Muito bem! Muito bem! Cochichou-lhe a mulher
do Campos. – Ignorava que o senhor fosse tão forte na valsa! E começaram a
conversar sobre o mal que se dançava ultimamente. Ela declarou que uma das
coisas que mais apreciava era uma boa valsa. Isso desde criança; no colégio,
às vezes, as meninas passavam a hora do recreio dançando umas com as outras.
– Ninguém o diria…considerou Amâncio, fazendo-se muito seu camarada.- A
senhora hoje só tem querido dançar quadrilhas. Ela respondeu com um risinho
significativo. – Quer uma valsa comigo?.. perguntou o rapaz, em segredo, requebrando
os olhos. Não posso! Disse ela, quase com um suspiro. – Aceitaria de bom grado,
mas não posso… – Valha-me Deus! Por quê? Porque…

Hortênsia sorriu de novo, sem ânimo de confessar a verdade. – o marido não
gostava de a ver valsar. Também não se podia desculpar, dizendo que não sabia,
porque ainda há pouco dissera justamente o contrário; afinal sem fazer empenho
de ser acreditada acrescentou gracejando. – Porque… porque me faz mal…
Amâncio prometeu que a conduziria devagar e que não dançaria longo tempo seguido;
aceitava todas as condições, contanto que desfrutasse a suprema ventura de
lhe merecer uma valsa. Hortênsia não respondeu; tinha o olhar esquecido sobre
um grande quadro que lhe ficava defronte suspenso da parede. E abanava-se,
lentamente, como seguindo o vôo de um vago pensamento voluptuoso. O quadro
representava uma cena de Fausto e Margarida, no jardim ( um longo beijo apaixonado
que parecia soluçar entre a folhagem do painel. O encantado filósofo tomava
nas mãos brancas a loura cabeça de sua amante, e sorvia-lhe alma pelos lábios.
O sol morria ao longe, dourando a paisagem, e um casal de pombos arrulhava
à sombra azulada de uma planta). Hortênsia olhava para isso, enquanto, ao
gemer das rabecas, cruzavam-se na sala os pares, marcando contradanças. O
aroma das flores, que se fanavam em grandes vasos japoneses, misturava-se
ao cheiro das mulheres, e penetrava a carne com a sutilidade de um veneno
lento e delicioso como o fumo do charuto. Os ombros lácteos das senhoras,
expunha-se nus à grande claridade artificial do gás; as jóias faiscavam; os
olhos desfaleciam, e um calor gostoso ia infirmando os sentidos e entorpecendo
a alma. – Então?…pediu Amâncio, pondo doçura na voz,- dance comigo, sim?…Faça-me
a vontade. Eu sentiria nisso tanto gosto… E todo ele suplicava aquele obséquio,
com o empenho apaixonado de que pede uma concessão de amor. Ela dizia que
não, meneando a cabeça; mas, um sorriso que se lhe escapava dos lábios, dizia
o contrário. – Então!…sim?…sim? um bocadinho só! Insistia o estudante,
a devorá-la com os olhos. Estava ainda cansado; a voz não lhe vinha inteira,
mas quebrada, como por um espasmo; os olhos dele arqueavam-se luxuriosamente;
as pernas principiavam-lhe a tremer – O que lhe custa à senhora dançar um
pouquinho comigo? E, vendo que ela não respondia, balbuciou em tom magoado,
de criança ressentida: – Bem, bem, não lhe peço mais nada, não a importunarei
de hoje em diante. Desculpe! Hortênsia voltou-se para ele, ia talvez desenganá-lo;
mas a orquestra, que havia emudecido depois da quadrilha, deu sinal par a
“valsa”. Era o Danúbio de Strauss. O rapaz ergueu-se como um soldado que ouvisse
tocar a rebate. Ela não resistiu, levantou-se de um salto e entregou-lhe a
cintura. Dançaram. A princípio vagarosamente: depois, como a música se acelerasse,
Amâncio arrebatou-a. Ela deixou-se levar, a cabeça descansada nos ombros dele,
as mãos frias, a respiração doida. A música redobrou de carreira. Foi então
um rodar convulso, frenético: a casa, os móveis, as paredes, tudo girava em
torno deles. Hortênsia dançava tão bem como o rapaz. Os dois pareciam não
tocar no chão; os passos casavam-se como por encanto; as pernas gravitavam
em volta uma das outras com precisão mecânica. Encheu-se a sala de pares.
Amâncio fugiu com Hortênsia, sem interromper a valsa; pareciam empenhados
numa conjuntura amorosa. Ela arfava sacudindo o colo com a respiração; os
seus braços nus tinham uma frescura úmida; os olhos amorteciam-se defronte
dos dele; não podia fechar a boca, e seu hálito misturava-se ao hálito fogoso
do estudante. De repente, Amâncio parou exausto. Ouvia-se-lhe de longe as
respiração. – Não! não! balbuciava ela, quase sem poder falar. – Ainda! Mais
um pouco! E abraçaram-se e novo, freneticamente. Quando parou a música Hortênsia
caiu sobre um divã pelos braços de Amâncio. Não podia dar uma palavra; não
podia abrir os olhos. Sua respiração parecia longos suspiros contínuos e estalados.
Vários cavalheiros se aproximaram. – Ficou muito fatigada?…Perguntou Amâncio,
inclinando-se sobre ela, a mão apoiada nas costas do divã. Hortênsia não respondeu.
Cobriu o rosto com o lenço de rendas e continuou recostada. Foi a voz do marido
que a despertou. – Que loucura e esta, Neném?…Perguntou ele sorrindo com
o seu bom ar de homem honesto. Ela sorriu também, e pediu desculpas com o
olhar. – Sabes que te faz mal, para que valsas?… Hortênsia soltou uma risadinha
de intenção e disse baixo: – Não é o mal que me faz que te dá cuidado… –
Como assim?…

– Ora, é que tu não gostas muito de me ver valsar… – Porque te faz mal,
filha!… – É só por isso? Afianças que não tens outro motivo? Campos respondeu
com um movimento de ombros. – Olha lá!…ameaçou a bonita senhora, sacudindo
um dedinho da mão direita..- Olha que sou capaz de ,hoje em diante, não perder
uma só valsa!… Ele repetiu o movimento de ombros, e acrescentou: – Isto
é lá contigo, filha; a saúde é tua, faze o que entenderes, ora essa! Algumas
pessoas perceberam o seu mal humor e riram com disfarce. Nessa ocasião, Amâncio
encostado ao bufete, pedia que lhe servissem um grogue à americana

* * *

– Está retemperando a fibra? Perguntou-lhe um sujeito magrinho, elegante,
meio calvo, a bater-lhe amigavelmente no ombro. O estudante voltou-se apressado
e, logo que viu o outro, exclamou: – Oh! O Dr. Freitas? Como passou? Não sabia
que estava também por cá! Freitas respondeu com a sua voz gasta- que chegara
havia pouco; não lhe fora possível vir antes; tivera que acompanhar o enterro
de um parente.- Coitado! cacete até depois de morto, três necrológios de hora
e meia cada um!…Ah! os parentes! Os parentes eram uma desgraçada invenção,
principalmente se não deixavam alguma coisa! E, depois de retesar o peito
e puxar a gola da casaca:- Mas então como ia o Sr. Amâncio de Vasconcelos?…Pela
fisionomia jurava-se que tinha saúde para dar e vender, e, pelos atos, não
parecia menos disposto, porque o Freitas presenciara a conversa do amigo com
Hortênsia. E rindo: – Homem, faz você muito bem! Aproveite enquanto está no
tempo! Se eu tivesse a sua idade, com a experiência de que disponho hoje,
não havia de proceder como procedi! Oh! Aquele aforismo tem muito fundo! “Si
Jeunesse savait…” E a olhar para os pés, com um gesto cheio de tédio:- Gostei
de o ver na valsa, gostei seriamente! Ah! Eu é que já não sou homem para estas
coisas! Aceito tudo, menos o que me obrigue à fadiga!.. Amâncio fez-se modesto;
negava que dançasse bem; mas o outro, em vez de insistir nos elogios, como
esperava ele, perguntou-lhe muito descansadamente por que razão não lhe apareceu
depois da primeira visita? O estudante desculpou-se com a falta de empo e
o excesso de estudo. Havia ,porém, de aparecer, mais tarde. As suas relações
com o Dr. Freitas procediam de uma carta de recomendação, que um amigo do
velho Vasconcelos lhe arranjara. Freitas era uma excelente amizade para qualquer
estudante pouco escrupuloso; dispunha de ótimas relações, que podiam servir
de empenho nas épocas apertadas de exame. Tinha alguma coisas, gostava de
ir à Europa de vez em quando, e o seus quarenta não espantavam a ninguém;
ao contrário, ainda havia muito olho esperto de mulher que se arregalava para
o ver. Isso sem falar nas senhoras que se foram aposentando, enquanto ele
parecia eternamente empalhado nos seus fraques irrepreensíveis, nos seus chapéus
à moda e nos seus enormes sapatos à inglesa, de um elegantismo feroz. Em consciência,
ninguém o poderia qualificar senão de rapaz. As mulheres eram o seu fraco,
o seu vício mais acentuado; várias anedotas suas, inspiradas neste assunto,
corriam de boca em bocas há vinte anos. Amâncio ficou muito seu camarada,
desde a primeira visita. Em menos de uma horas de conversação, falavam já
sobre as cocotes mais conhecidas na Corte; e , alguns dias depois, quando
se encontraram na Fênix, o Freitas apresentou-lhe uma espanholona de buço
louro, a qual nessa ocasião passava pelo corpo mais bonito do mundo equívoco.
– Pois você já está um fluminense acabado! Disse o elegante, a medir Amâncio
de alto a baixo. – Não imaginei que andasse tão depressa… E, porque voltasse
à conversa sobre mulheres, continuou o que dizia há pouco: – Infelizmente
só chegamos a conhecê-las quando vamos caindo na idade; de sorte que é preciso
aproveitar o espaço que medeia dos trinta aos quarenta anos; antes disso –
não sabemos, depois- não podemos. Ah! se aos vinte já se conhecesse a mulher…
se então já se soubesse quais são os seus gostos e suas preferências…se
tal acontecesse, nem uma só se conservaria virtuosa!…Mas, nesse período
doas sonhos e das ilusões, no período em que está o senhor, meu amigo,

ninguém é capaz de ma audácia! Para chegar a fazer qualquer coisa é preciso
ser provocado, mas muito provocado! Amâncio protestava com um sorriso pretensioso.
– Oh! Oh! Exclamou o outro, cheio de experiência, a calcar o monóculo sobre
o olho. – Já tive a sua idade, meu amigo, já tive a sua idade Pensava então
que , para agradar mulheres , era indispensável fazer-me bonito, meigo, romântico,
atencioso, que sei eu!…Engano! puro engano! Elas aborrecem tudo isso, e
só exigem três coisas num homem: A primeira – muita audácia; a Segunda – um
pouco de inteligência; a terceira – algumas relações na boa sociedade! E…
ainda temos uma de que me esquecia e que entretanto é a base de todas as outras:
– Não ser seu marido!…Com estas quatro habilidades, desde que se tenha mocidade
e boa disposição, não há mulher que resista! Quanto à beleza, boas maneiras
e bom caráter – histórias, homem! histórias! Elas, ao contrário, detestam
os tipos afeminados e não morrem de amores pelos sujeitos rigorosamente honestos,
e bem comportados. Qual! Querem o seu bocado de vício; o belo do deboche de
vez em quando, para variar!… E, metendo as mãos nos bolsos da calça, e jogando
o corpo com ar canalha: Lá para a seriedade basta-lhe o marido! É boa! Amâncio
ria-se, abarrotado de intenções. O Freitinhas foi nesse momento apreendido
pelo dono da casa: “As damas reclamavam as sua presença, dele, nas salas!
Era preciso não se meter pelos cantos!” O Dr. Freitas deixou-se levar, sempre
muito enfastiado; mas, antes de ir, bateu no ombro de Amâncio e segredou-lhe
com a sua voz de tuberculoso: Aproveita, menino, aproveita! Não mandes nada
ao bispo!

* * *

Iam já desaparecendo os convidados. Os pais de família toscanejavam encostados
às ombreiras das portas, esperando, com os braços carregados de capas e mantas,
que as mulheres e as filhas se resolvessem a seguir para casa. Havia um vago
tom de cansaço nas fisionomias; entretanto, alguns cavalheiros jogavam ainda,
em um quarto próximo, à luz trêmula das velas de estearina. O melo conduzia
senhoras pelo braço à porta da rua, agradecendo-lhes muito o obséquio de aceitarem
o seu convite. Foi Amâncio que ajudou Hortênsia a entrar na carruagem. O Campos
parecia contrariado com a demora. – há duas horas que desejava se retirar.
Encurtaram-se as despedidas. O horizonte principiava a franjar-se com os galões
prateados da aurora, e , do lado das montanhas desciam tons matutinos da natureza
que desperta. Hortênsia, muito embrulhada na sua capa de casimira branca e
guarnecida de arminhos, atirou-se com impaciência sobre as almofadas do carro,
levantando um luxuoso farfalhar de sedas que se amarrotam. Logo, porém, que
o cocheiro sacudiu as rédeas, ela chegou o rosto à portinhola, e gritou para
fora: – Aparece Domingo! Vá jantar conosco. Adeus! Amâncio, perfilado na calçada,
o chapéu suspenso na mão direita, em atitude de quem faz um cumprimento respeitoso,
disse, agitando o braço:- Adeus , minha senhora. Hei de ir. O carro do Campos
tomou a direção da Praia de Botafogo; o rapaz ainda o acompanhou com a vista;
depois, levantando os ombros e abotoando melhor o sobretudo, meteu-se num
tílburi que se aproximava lentamente e mandou tocar para a casa de pensão.
O animal disparou, sacudindo as crinas ao vento fresco da manhã.

* * *

Amâncio acendeu um charuto e, com os olhos meio cerrados, derreou-se para
p fundo do tïlburi. Naquele momento fazia gosto em se fazer muito farto, muito
cansado de amores. Sua últimas impressões enchiam-lhe o cérebro de uma espécie
da vapor azotado, que asfixiava todos os outros pensamentos. – A continuarem
as coisas daquele modo, dizia ele consigo, chupando o charuto aos solavancos
do carro, – em breve o tempo será pouco para tratar só dos namoros! A cada
passo que dera na sua inútil existência, rasgara com o pé uma página do livro
das ilusões. Mas, a presença deste raciocínio, longe de afligi-lo, dava-lhe
à vaidade um certo prazer doentio e picante. – Como poderia acreditar agora
nas tais virtudes femininas?…Pois se até falhara a própria mulher do Campos!…

Quando poderia ele imaginar que Hortênsia, tão severa e tão grave ainda há
pouco, uma criatura por quem todos ” metiam a mão no fogo”, fosse assim leviana
e fácil, com as outras?… E Amâncio saboreava esta convicção, porque, a despeito
do que dissera aos amigos no Hotel dos Príncipes , sua consciência, por conta
própria, tomara sempre a defesa de Hortênsia e insistia em mostrá-la cercada
de um grande prestígio venerando e respeitável. – A consciência agora que
falasse! E refocilava-se todo com o seu triunfo. – Agora é que ele queria
saber quem tinha razão; sim, porque enquanto procurava se convencer de que
deveria esperar de Hortênsia aquilo mesmo, a rezingueira da consciência saltava-lhe
em cima com um nunca terminar de razões e apresentava-lhe a “excelente senhora”
cada vez mais pura e menos acessível! E eis que , de supetão, quando menos
se esperava, os fatos se erguiam brutalmente para desmentir a impostura. E
ele sorria ,vendo as asas do anjo baquearem a seus pés, murchas e retraídas
, como os galhos de uma árvore arrancados pelo nordeste. – Bem dizia o Simões:
“Quando te começarem as aventuras…”E melhor ainda o Dr. Freitas: “Para conquistar
as mulheres são apenas quatro coisas necessárias: audácia, boas relações,
um pouco de inteligência e não ser seu marido!” E os fatos, como disciplinados
por estas palavras, formavam ala e começavam a cantar as vitórias do estudante..
Na sua lógica indiscutível afirmavam eles que Hortênsia, o tal modelo de severidade
e pureza, morria de amores por Amâncio, que o desejava ardentemente, que se
entregaria na primeira ocasião, fazendo loucuras, dando escândalos, que nem
uma heroína de romance! – Está segura! Exclamou o rapaz, sacudido por estas
idéias. O sangue saltava-lhe no corpo; aquela aventura se lhe afigurava a
melhor de sua vida; seu orgulho pueril, de namorador vulgar, espinoteava qual
potro que se pilha às soltas no prado verdejante e proibido. As outras conquistas
vinham logo chamadas por aquela, e todas as vítimas de sua sensualidade, ou
as cúmplices de seu temperamento e da sua má educação, enfileiravam-se defronte
dele, como um submisso batalhão de prisioneiros. Chegou a casa ao amanhecer
e não dormiu logo. Os pensamentos revoavam-lhe no cérebro com o frenesi de
folhas secas, redemoinhadas pelo vento.

X

Dormiu mal ; os sonhos não o deixaram em paz. A princípio, todavia, foram
agradáveis: ternos episódios de amores fáceis que se encadeavam confusamente,
e nos quais a sensações vinham e fugiam de um modo incerto e deleitoso; depois
chegavam os sonhos maus, os pesadelos. Neste, as mulheres entravam por incidente,
sempre duvidosas; vultos sinistros, e cabelos desgrenhados, rostos lívidos,
surgiam em torno dele e iam-se aproximando, até lhe ficarem cara a cara, num
contato frio e incômodo de carne morta.. Depois sonhava-se em casa da família,
voltando, porém , justamente do bile do Melo; tinha muita necessidade de repouso,
queria continuar a dormir, mas a voz ríspida do pai berrava por ele da porta
do quarto: “Anda daí, mandrião!, Basta de cama! Vê se queres que eu te vá
buscar!” E aquela voz terrível dava-lhe a todo o corpo tremor de medo, e,
ao estrondo que ela fazia, vultos cor- de -rosa, de cabelos louros, fugiam
espavoridos, como rãs que se atiram n’água , assustadas pela presença de um
boi. Amâncio queria também fugir, mas suas pernas pareciam troncos de árvores
seguros ao chão; queria gritar, mas a língua inchava-lhe na boca. Acordou
muito fatigado e aborrecido às duas horas da tarde. Logo que apareceu na sala
de jantar, Mme. Brizard fez-lhe entrega de um belo ramilhete, que lhe haviam
remetido, a ele, com um cartão. Amâncio apressou-se a ler. O escrito dizia
simplesmente: “Ao Dr. Vasconcelos – uma sua amiga”. Cruzaram-se os penetrantes
risos adequados ao fato. O rapaz, intimamente lisonjeado, fingiu não se impressionar
com aquela manifestação; leu, porém, o bilhete mais duas, três, quatro vezes.
Era letra de mulher, de Hortênsia sem dúvida. Estava ali a sua alma, o fogo
de seus olhos. Ele cheirou o pequeno pedaço de papel, e pensou sentir o mesmo
perfume que, na véspera, durante a valsa, o tinha penetrado até à medula.
Achavam-se presentes o Dr. Tavares, o Pereira, o gentleman e Lúcia. Disseram
alguma coisa sobre aquelas flores, menos a última, que, junto à janela, parecia
preocupada com um livro da capa roxa. O gentleman falou de Botânica a propósito
de uma dália vermelha que havia no ramo. Afiançou que esta flor possuía em
si tantas outras flores quantas eram as pétalas de que constava. – Flores
perfeitas, com todos os órgãos, Sr. Amâncio – estames, cálice, tudo!

Amâncio, enquanto o Lambertosa discorria sobre a dália, leu ainda uma vez
o cartão, e, ao levantara vista, reparou que Nini o fixava, cada vez mais
insistente. Amélia dera-se por incomodada e não vira à mesa. O jantar correu,
pois, muito frio e constrangido ao princípio; pouco se conversava e quase
ninguém tinha vontade de rir. Dir-se-ia que só Amâncio a todos comunicava
o seu fastio e o seu cansaço. Só pela sobremesa o Dr. Tavares narrou, como
de costume, algumas anedotas jurídicas que presenciara na província. Uma delas
tinha referência a ma certa velha que fora aos tribunais por haver desancado
as costelas do genro. Mme. Brizard tomou a defesa das sogras, e aproveitou
a ocasião para falar no marido de sua filha mais velha. Vai muito da educação
e também um pouco do costume em que a gente os põe!…acrescentou ela autoritariamente.
– Mas, genro, não queria que houvesse outro como o defunto marido de Nini..
– Era um perfeito cavalheiro! Mme. Brizard nunca lhe vira a cara fechada,
nem lhe surpreendera um gesto mais arrevesado. Ele só a chamava, a ela, de
“mãezinha”; sempre lhe trazia guloseimas da rua, e, aos domingos, pela manhã,
dava-lhe um beijo na testa , impreterivelmente! – Ah! Era uma santa criatura!
Nini suspirou e pôs-se a chorar em silêncio. – Agora temos choro!…pensou
Amâncio com tédio. Nini, como se adivinhara tal pensamento, olhou para ele
e pediu perdão com um sorriso, ainda mais triste que o choro – Eu sou aqui
da opinião do Ser. Amâncio de Vasconcelos…disse o gentleman a Mme. Brizard,
em tom discreto. Mme. Brizard não sabia, porém, do que tratava o Lambertosa.
– Ah! volveu este. – Refiro-me ao que avançou anteontem o nosso ilustre companheiro,
e indicou Amâncio com um gesto, _que avançou a respeito da vantagem que um
novo casamento traria, sem dúvida ,à senhora sua filha. – Ah! fez Mme. Brizard
já não me lembrava disso. O Sr…. – Lambertosa, minha senhora, Lambertosa…
O Sr. Lambertosa é então de opinião que o casamento convém às enfermidades
nervosas?… O gentleman concentrou a fisionomia, limpou o bigode ao guardanapo,
ergueu uma faca, e principiou a emitir o seu judicioso e meditado parecer.
Surgiram logo as contendas. Lúcia marcou a página do livro de capa roxa e
olhou muito séria para os outros, pronta a dar a sua réplica. Mme. Brizard,
enquanto os mais discutiam, tamborilava com os dedos sobre a mesa, afitar
um queijo de Minas, com um gesto profundo e repassado de filosofismo. O Pereira
comia consecutivos pedaços de pão, sem abrir os olhos, e Amâncio procurava
uma evasiva para se escafeder. Afinal, o Coqueiro, que havia já formado um
grupo à parte com o Dr. Tavares, quis fechar a discussão; mas o advogado ergueu-se
de súbito, segurou as costas da cadeira, arregalou os olhos, e desencadeou
a sua eloqüência . Em pouco, só ele falava, esquecido, como de costume, do
lugar e da situação. Imaginava-se já num tribunal, em pleno exercício de suas
funções. Pintou floreadamente o lamentável estado de Nini. Qualificou-a de
“vítima inocente dos impenetráveis caprichos de Deus”; descreveu a dolorosa
expressão do semblante da “‘infeliz moça”; disse que os olhos dela falavam
a misteriosa linguagem do amor, e, quando se dispunha a dar afinal a sua esperada
opinião sobre o casamento, a pobre enferma, muito vendida com o que vociferava
o tagarela a seu respeito, abriu a soluçar estrepitosamente. A francesa ergueu-se,
de mau humor, para pedir ao Dr. Tavares que se deixasse daquilo, “por amor
de Deus!” Doutro lado o Coqueiro também lhe suplicava que se calasse. Mas
o demônio do homem já se não podia conter. As palavras borbotavam-lhe da língua,
como o sangue de uma facada. Fez imagens poéticas sobre o casamento , citou
nomes históricos, e jurou, à fé de suas convicções,, “que aquela desventurada
criatura precisava de um esposo, mais do que as flores carecem do orvalho,
mais do que as aves carecem do ar; mais do que os cérebros carecem de luz!”
E, erguendo as mãos trêmulas, recuou dos passos e foi dar de encontro ao copeiro
que, por detrás dele, embasbacado, o escutava atentamente, com a bandeja do
café nos braços, à espera de uma ocasião para apresentar as xícaras. Mme.
Brizard assustou-se , o gentleman deu um salto para não sujar as calças; rolou
ao chão uma garrafa, e César, o menino sublime, vendo que os mais velhos faziam
tanta bulha, também se pôs a berrar. Coqueiro gritava que se acomodassem por
piedade.

– Aquilo não tinha jeito! Parecia haver ali uma súcia de doidos! Oh! A mucama
acudiu da cozinha, e Amélia, com um lenço amarrado na cabeça, apareceu na
porta de seu quarto, muito intrigada com o motim. Só o Pereira continuava,
inalteravelmente, a comer pedaços de pão; é verdade que abriu os olhos duas
vezes. Mas tornou logo a fechá-los e, segundo todas as probabilidades, adormeceu.
Amâncio tratou de aproveitar a confusão para fugir da varanda. – Que espécie
de gente tão esquisita!… dizia ele em caminho do quarto. – Nada! Aqui ainda
estou pior do que na casa do Campos! Antes de chegar ao gabinete, percebeu
que alguém o seguia com dificuldade. A sala de visitas estava já totalmente
às escuras. Voltou-se, e, sem ter tempo de dizer palavra, sentiu cair sobre
ele um corpo gordo e mole. Era Nini. Amâncio, surpreso e contrariado, quis
arredá-la, mas a histérica passou-lhe os braços em volta do pescoço e desatou
a chorar, com o rosto escondido no seu colo. – Hein?! Disse Amâncio. – Que
história é esta?! Mas lembrou-se logo das recomendações de Mme. Brizard: “qualquer
contrariedade poderia provocar à infeliz rapariga uma crise perigosa!” – Ora
esta!… pensou ele aborrecido.- Ora esta!… e procurou afastar Nini, brandamente.
E, como a teimosa não quisesse obedecer e continuasse a chorar, ele disse-lhe
palavras amigas, pediu-lhe, quase com ternura, que voltasse à varanda; lembrou
que não era prudente ficarem ali, sozinhos e no escuro. – Podiam ser surpreendidos!
Esta idéias o aterrava mais pelo ridículo do que pela responsabilidade daquela
situação. Nini, entretanto, parecia não ouvir coisa alguma e continuava a
abraça-lo freneticamente, com ímpetos nervosos. Amâncio perdeu de todo a paciência
e arrancou-se violentamente dos braços dela. – Deixe-me! Gritou, e correu
para o quarto. Nini acompanhou-o chorando, e conseguiu agarrá-lo de novo,
pelo paletó. Estava muito nervosa e dispunha agora de uma força extraordinária.
– Isto não será um inferno?!… exclamou o rapaz, puxando a roupa das mãos
de Nini. E, vendo que ela não o largava: – Solte-me, com a breca! Ora essa!
Que diabo quer a senhora de mim?! Solte-me! Arre! A enferma não fez caso e
apertou-lhe os pulsos; seus dedos pareciam tenazes. Amâncio debatia-se brutalmente,
ouvindo-a bufar, muito agoniada, e sentindo-lhe de vez em quando o suor do
pescoço e do rosto. Na sala de jantar serenara a discussão; só a voz do Tavares
ainda se destacava. De repente puseram-se todos a chamar por Nini. – Olhe,
disse-lhe Amâncio. – Lá dentro a estão chamando! Vá! Vá! Ela, nem assim. –
Ora pílulas! Resmungou o estudante, desprendendo-se com um empurrão. E ganhou
o quarto, puxando a porta sobre si. Ouviu-se então o baque surdo do corpo
pesado de Nini, que foi por terra; em seguida gritos muito agudos. Correram
todos par a sala de visitas; acenderam-se os candeeiros. Nini escabujava no
chão, a gritar, esfrangalhando as roupas e mordendo os punhos. Coqueiro e
Mme. Brizard apoderaram-se logo da infeliz. Amâncio apareceu com o seu frasquinho
de vinagre; o Lambertosa receitou uma dose homeopática e correu ao quarto
em busca da botica (a homeopatia era uma de suas paixões); Lúcia voltou para
a varanda. “Que a desculpassem, mas não podia assistir, a sangue-frio, cenas
daquela ordem… Não estava mais em suas mãos!”

* * *

O Pereira já se havia levantado da mesa e ressonava na costumada preguiçosa.
Lúcia, ao passar por ele, atirou-lhe um olhar de tédio e disse consigo: –
Olha que estafermo!… ela às vezes tomava-lhe grande nojo, não o podia ver
com aquele ar mole, de mulher grávida, com aquelas pálpebras descaídas, a
comerem-lhe os olhos, com aquele sorriso apalermado, aquela voz derramada
pelos cantos da boca , que nem um caldo frio e seboso.

De quando em quando sofria de insônias, e, justamente nessas ocasiões, nas
horas compridas da noite em claro, é que mais detestava o Pereira. Punha-se
a contemplá-lo longamente, com asco, fartando-se de olhar para aquele “pamonha”,
aquele “coisa inútil”, que ali, ao seu lado, dormia todo encolhido, com as
mãos entre as coxas. Vinham-lhe frenesis de enchê-lo de pescoções. Já lhe
não podia suportar o cheiro doentio do corpo; não lhe podia sentir a umidade
pegajosa do suor e a morna fedentina do hálito. A sua ligação àquele mono
era uma história muito triste e muito sensaborona. Poucos, bem poucos a sabiam,
porque Lúcia se esforçava quanto lhe era possível por escondê-la, como quem
esconde uma chaga vergonhosa. Ela “a mísera senhora”, vinha, entretanto, de
gente honesta e bem conceituada, se bem que muito pouco escrupulosa em pontos
de educação. deram-lhe professores de francês, de música, de desenho; entregaram-lhe
enfiadas de romances banais e livros de maus versos; e, todavia, não lhe deram
moral, nem trataram de lhe formar o caráter. A desgraçada percorreu bailes
desde pequena; ouviu o primeiro galanteio aos dez anos de idade; teve a primeira
paixão aos doze; aos quinze julgava-se desiludida e sonhava com o túmulo;
aos vinte, como é natural, sucumbiu ao palavreado de um primo em segundo grau
e bacharel pelo Pedro II. O primo, assim que a viu pejada, azulou para o Rio
Grande do Sul, onde tinha a família, e nunca mais lhe deu sinal de si. Foi
então que surgiu em Lúcia a idéias de utilizar-se do Pereira. Entre as pessoas
que freqüentavam a casa de seus pais, era ele o único aproveitável para casamento.
Nesse tempo vivia o dorminhoco às sopas de um tio suspeito de riqueza aferrolhada,
e de quem mais tarde, diziam, havia de herdar o dinheiro. Lúcia meteu as mãos
à obra, mas, por pouco que não desanimou; Pereira não dava de si coisa alguma,
parecia não compreender as provocações. Era quase impossível tirar algum partido
daquele animalejo! Ela, porém, não se quis dar como vencida, e lutou. Lutou,
empregando os meios mais ardilosos, para injetar nos nervos daquele sonâmbulo
uma faísca magnética de amor. Trabalho inútil! Afinal, vendo que o pedaço
de asno era incapaz de qualquer ação ou reação, tomou ela a parte agressiva;
e a coisa resolveu-se no mesmo instante. Depois, como não havia tempo a perder
e porque já conhecia bem a pachorra do seu homem, foi pessoalmente ao encontro
dele, meteu-se-lhe em casa e protestou que faria um escândalo dos diabos,
se o “sedutor” não tratasse, quanto antes, de tomar uma resolução muito séria
a respeito de casamento. Pereira não tratou de tomar coisa alguma desta vida
e nem se abalou com a presença de Lúcia. Aceitou-a, como aceitaria outra qualquer
imposição, porque ele era dos tais que, às maçadas da cura, preferem os incômodos
da moléstia. Só no fim de quatro dias de lua-de-mel, como Lúcia insistisse
nas suas idéias matrimoniais, o pachorrento declarou, com toda a calma, que
lhe não podia fazer a vontade nesse ponto, em virtude de que, desde os dezoito
anos, o haviam casado com uma velha, um fúria, que o Pereira não sabia, nem
queria saber, por onde andava. Lúcia perdeu os sentidos; esteve à morte. Os
pais, envergonhados com o procedimento indigno da filha, tinham-se ido refugiar
na cidade de Campos. Foi o tio do Pereira, o tal das riquezas aferrolhadas,
que a salvou; era um velho ainda bem forte e muito mais esperto que o sobrinho.
Deu -lhe casa, comida, roupa e dinheiro. Uma irmã dele, senhora de inveterado
amor a crianças, solteirona, de quarenta a cinqüenta anos e que, com o olho
no testamento, desejava a todo o transe ser agradável ao mano, encarregou-se
do filho do bacharel. Correram quatro anos. Lúcia não viu mais a família,
apenas visitava o filho, de quando em quando. O Pereira continuava às sopas
do tio, indiferentemente, como se tudo aquilo não lhe dissesse respeito. Acordava,
quer dizer. Levantava-se às dez horas, tomava no quarto o seu banho morno,
depois um copo de leite fervido, almoçava às onze, fazia as digestão estendido
no sofá da sala; às duas horas dormia, depois passeava pela chácara à espera
do jantar, cujo quilo era de rigor ser feito a sono solto em uma rede que
ele tinha no quarto. À noite, quando conseguia levantar-se, jogava o gamão
com o tio. Cochilavam ambos, até que se servia o chá , e cada um se retirava
para a cama. – A noite fez-se para dormir! Sentenciava um deles. – E o dia
para se descansar, resmungava o outro espreguiçando-se. E recolhiam-se. O
velho morreu de repente; uma congestão que lhe sobreveio ao encontrar Lúcia
no fundo do jardim às voltas com um estudante da vizinhança. – Bom! Dissera
Lúcia, alijada afinal daquela obrigação que já lhe ia pesando demais. E fariscou
o testamento. Mas o velhaco apenas deixava algumas dívidas à praça e dois
terrenos hipotecados ao Banco Predial. A coisa única que ela aproveitou foi
Cora, mulatinha de criação, cuja matrícula e cuja escritura de compra estavam
em seu nome.

Era preciso, pois, deixar a casa; os credores reclamavam tudo que pudesse
dar dinheiro. Pereira sacudia os ombros; dir-se-ia que não houvera a menor
alteração na sua vida. Continuava a dormir tranqüilamente, como se as sopas
do tio ainda o fossem procurar às horas da refeição. Lúcia compreendeu que
não devia contar com ele, e tratou em pessoa em cômodo para os dois, num hotel
de arrabalde,. Sentia-se resoluta e forte; era ela agora o cabeça do casal;
tinha belos projetos de trabalho: daria lições de piano, de desenho e de francês,
até que aparecesse um homem para substituir o estafermo do Pereira. O homem,
porém, não aparecia, como não apareciam os discípulos. Principiou então para
eles um viver perfeitamente de boêmios. Sem trates, nem dinheiro, nem futuro,
nem relações constituídas, andavam aquelas duas almas perdidas e mais a Cora,
que andava a senhora, a percorrer as casa de pensão: sempre sobressaltados,
sempre perseguidos pelos credores que iam deixando atrás de si. Em cada lugar
se demoravam o maior tempo que podiam, dois, três, quando muito quatro meses;
até que lhe suspendiam o crédito e dos dois levantavam novamente o vôo, deixando
a dívida em aberto e o dono da casa lívido, colérico, sem saber ao menos que
direção tomavam os vagabundos. Nesse peregrinar, Lúcia teve uma contrariedade
mais profunda – achou-se grávida de novo. Cora deu-lhe conselho, trouxe-lhe
remédios para fazer abortar; nada, entretanto, produziu efeito. O demônio
da criança parecia disputar o seu quinhão de vida com uma persistência desesperadora.

Nasceu afinal, no quarto de um português na Fábrica de Chitas, entre os cuidados
mercenários do locandeiro e o obséquio de alguns amigos, que Lúcia fora conquistando
com as simpatias de seu talento musical,. O diabinho pouco durou, felizmente.
Desapareceu uns trinta dias depois de ter vindo ao mundo. Morreu mesmo na
rua, quando os pais, dentro de um carro de aluguel, fugiam aflitos da Fábrica
de Chitas para uma casa de pensão na Rua do Catete. Cora encarregou-se de
atirá-lo ao mar. Ninguém viu. Seriam duas horas da madrugada e as brisas marinhas
pulverizavam no ar um chuvisco miúdo, de fevereiro. O menino fora muito franzino
e muito mole; saíra ao pai, o Pereira. Durante o seu pobre mês de vida só
abriu os olhos uma vez, ao expirar. A casa de pensão era a Sexta que Lúcia
percorria com o suposto marido. Apresentavam-se sempre como casados; ele muito
tranqüilo de sua vida, feliz; ela inquieta, sôfrega pelo tal sujeito, que
com tanto empenho procurava. Quando constou a Lúcia que Amâncio era rico e
atoleimado, uma nova esperança radiou-lhe no coração. – É agora!… disse.
E preparou-se para o combate.

* * *

Foi por isso que o estudante recebeu , no dia seguinte ao baile do Melo,
aquele ramilhete, tão falsamente atribuído a Hortênsia., e porque, uma semana
depois, outro ramo, bastante parecido com o primeiro, se achava às onze horas
da noite no do rapaz, sobre a cômoda. – Olé!, disse ele. E, satisfeito com
a intriga, principiou a fazer conjeturas. – De quem viriam aquelas flores!…Ah!
exclamou, descobrindo um bilhetinho, escondido entre duas rosas. E leu: “Não
saibam nunca espíritos indiferentes, nem mesmo tu, adorado fantasista, quem
te envia essas pobres flores. Não o procures descobrir; deixa que o meu segredo
viceje e cresça na tepidez do mistério, ‘semelhança das plantas melancólicas
que reverdecem nas sombras ignoradas dos rochedos. Eu te amo!” – Seria de
Amélia, seria de Lúcia, ou seria de Hortênsia? De Nini é que não poderia ser,
porque a desgraçada, com certeza, não sabia escrever coisas daquela ordem!
Não dormiu essa noite; as palavras do ramilhete voejavam-lhe dentro da cabeça,
como um bando de mariposas. – De quem seria?…De Amélia não, não era de supor;
pois que a bonita menina, longe de o provocar, fugia sempre que ele tentava
se abrir com ela em questões de amor; de Hortênsia também não, não era natural
que fosse, porque, em tal caso, Mme. Brizard, ou qualquer outra pessoa de
casa, teria visto o portador. Além disso, a mulher do Campos não seria capaz
daquilo; estava caidinha – é certo! Mas não levaria a leviandade ao ponto
de lhe

escrever e enviar semelhante declaração. O que , porém, não sofria dúvida
é que os ramos tinham a mesma procedência. E Lúcia?…É verdade! E Lúcia?
Com certeza não era de outra! Sim! Tudo estava a dizer que o tal bilhetinho
saíra de suas mãos!…aquelas frases poéticas, aquele mistério, aquela franqueza
de confessar o seu amor em duas palavras…Não tinha que ver! Era da mulher
do Pereira! E um palpite brutal, inadiável, substituiu logo a calma simpatia
que lhe inspirara Lúcia. Desde que se capacitou de que eram dela os ramilhetes,
desejou-a com urgência; queria que ela surgisse ali, naquele mesmo instante,
na silenciosa escuridão daquele quarto. E voltava-se de um para outro lado
da cama, sem conseguir pegar no sono. Esperar até o dia seguinte o momento
de estar com ela afigurava-se-lhe um sacrifício enorme, quase invencível.
Como podia lá descansar, dormir, com semelhante preocupação a remexer-se-lhe
por dentro, como um feto doido que lhe mordesse as entranhas? Definitivamente
não conseguia adormecer. Levantou-se, acendeu um cigarro, abriu a janela,
e pôs-se a olhar para a lua que estava boa essa noite. Vieram-lhe logo as
conjeturas sobre o como seria a situação, no caso que Lúcia aparecesse ali,
naquele instante “Que sucederia?…Que fariam eles?…” Duas horas bateram
na sala de jantar. – Diabo! Resmungou Amâncio, sentindo arrepios por todo
o corpo. – Desta forma perco a noite inteira, e amanhã estou impossibilitado
de ir à academia!… A idéia do estudo apresentava-se-lhe sempre com um sabor
muito amargo de sacrifício. Lembrou-se, todavia, de aproveitar a insônia para
correr uma vista de olhos pela lição; acendeu a vela, corajosamente, assentou-se
à mesinha que havia no quarto e abriu um compêndio. Mas não conseguia prestar
atenção à leitura; percorreu distraído duas ou três páginas e ficou a olhar
a chama trêmula da vela, cada vez mais abstrato e mais febril. Sentiu vontade
de beber.- Se não estava enganado – a garrafa de conhaque ficara sobre o aparador,
na varanda. Ergueu-se, enfiou o sobretudo e saiu da alcova. O sangue não lhe
queria ficar quieto. A continuar daquele modo, o remédio que tinha era pôr-se
ao fresco e vagar pelas ruas, até encontrar sossego. O conhaque não estava
no aparador. Amâncio, contrariado, desceu à chácara, e foi assentar-se a um
banco de pedra. – Naquele momento comeria alguma coisa, se houvesse, pensou
ele, resolvido a organizar no dia seguinte um bufete no seu próprio quarto.
A lua escondia-se agora entre nuvens; as árvores rumorejavam; tudo parecia
concentrado e adormecido. Debaixo viam-se as janelas dos quatro cômodos do
segundo andar, que davam para a chácara. Lá estava o n.° 8, o 9 o 10 e
o 11. Começou a pensar nos hóspedes daqueles quartos: o 11 era do tal Correia
o médico que só aparecia ali de quando em quando, “para fazer uns trabalhos
que os filhos não lhe permitiam em casa da família”; o 10 era do gentleman
– Bom maçante! Amâncio lembrou-se de que lhe prometera acompanhá-lo uma qualquer
noite ao Passeio Público. – Havia de ir, disseram-lhe que às vezes se encontravam
aí bem boas coisas!… O 9 é que ele não se lembrava a quem pertencia…Ah!
era do tal Melinho, ” a pérola”, como o qualificava João Coqueiro constantemente.
E o 8 de Lúcia! da misteriosa Lúcia! Ela estava ali!… fazendo o quê?…pensando
nele talvez…talvez dormindo…talvez até nem dela fossem o bilhetinho amoroso
e os dois ramilhetes!…Quem sabia lá!… E esta dúvida o apoquentava. – Ora
adeus! disse. – A ocasião havia de chegar!… Veio-lhe, porém uma tentação
aguda de subir ao n.° 8 _Que mal podia vir daí?…O marido com certeza
estava dormindo!…Que poderia acontecer?… Levantou-se resolvido; mas as
vidraças do quarto do tal médico, que só aparecia de quando em quando, acabavam
de se iluminar. – Olá !… considerou Amâncio, detendo-se. Ë o n. °11!
Por detrás dos vidros havia cortinas de cassa; nada se podia ver para dentro,
apenas duas sombras difusas projetavam-se na cambraia, ora aumentando, ora
diminuindo. Amâncio deixou-se ficar onde estava , mordido já de curiosidade.
Daí a uns dez minutos, pela escadinha do fundo, desciam cautelosamente, um
sujeito alto, todo de escuro, e mais uma mulher gorda, de enorme chapéu, cujas
abas lhe caíam sobre os olhos, ensombrando-lhe o rosto. Vinha um atrás do
outro, porque a escada era estreita. Atravessaram a chácara, falando em voz
baixa, e entraram no corredor.

Amâncio acompanhou-os, de longe, e tripetrepe. A porta da rua estava aberta,
como de costume; um carro esperava pelos dois lá fora; o cocheiro dormia na
boléia. O sujeito do n.° 11 deu a mão à mulher das grandes abas, ajudou-a
a entrar na carruagem e, seguida, entrou também. O cocheiro fechou sobre eles
a portinhola, sem lhes dar palavra, depois saltou para o se posto e tocou
os animais. – E que tal?…interrogou Amâncio de si para si, quando os viu
partir. Lembrou-se então do que lhe dissera o velhaco do Coqueiro por ocasião
de mostrar-lhe a casa: “Quanto a certas visitas…isso tem paciência… lá
fora o que quiseres, mas, daquela porta para dentro…” – Hipócritas! pluralizou
o estudante. E encaminhou-se para o segundo andar.

* * *

Subiu pela escadinha do fundo, não a do médico, mas pela outra do lado oposto;
porque havia duas. O primeiro andar continuava em completo silêncio; no segundo
apenas se ouvia, de espaço a espaço, um tossir seco e agoniado, que vinha
naturalmente do n.° 7 onde morava o tal moço doente. O pobre-diabo piorava
à falta absoluta de meios. Amâncio entrou às apalpadelas no corredor que dividia
os oito quartos. O luar filtrava-se a custo pelas venezianas e pelas vidraças
da janela e sarapintava o chão de pequeninos pontos brancos. O n. ° 5,
onde residia o Paula Mendes com a mulher, era o único que tinha luz; uma forte
claridade rebentava por cima da porta fechada e ia projetar-se na parede do
n.°10 que lhe ficava fronteiro. Mas ainda assim o corredor estava bem
escuro. Amâncio parou defronte do n.° 8 .- Era ali! Encostou o ouvido
à fechadura; nem sinal de vida – Lúcia com certeza dormia profundamente. –
Dormia! Pensou o estudante. – Dormia , sem preocupações nem cuidados; ao passo
que ele, por não encontrar descanso, errava pelos corredores desertos, como
uma alma penada!. – Para que então se lembrara aquela mulher de ir mexer com
ele?!… Se a sua intenção era dormir, para que o foi provocar? Para que lhe
foi bulir com o sangue? Oh! Aquele silêncio do n.° 8 o irritava! Aquela
indiferença afigurava-se-lhe uma afronta ao seu amor-próprio, um atentado
contra o seu orgulho E, quanto mais se convencia da impossibilidade de falar
essa noite a Lúcia, mais e mais osd seus sentidos se assanhavam! Afinal, já
não fazia grande questão de ser com ela própria; aceitaria qualquer outra
que o arrancasse daquela ansiedade em que se via entalado, como se estivesse
dentro de uma armadura em brasa. – Que inferno! Dizia ele consigo, rangendo
os dentes.- Que inferno! E, sem ânimo de ir embora, permanecia encostado à
porta do n.° 8, deixando -se comer aos bocadinhos pela febre do seu desejo;
ao passo que o corpo inteiro arfava com o resfolegar aflitivo dos pulmões.
– Todavia, pensou ele – quantas mulheres não o desejariam Ter junto de si
naquele momento?…Donzelas até, quantas, naquele instante, não se estorceriam
no leito e não morderiam os travesseiros, desvairadas pela isolação? E saborosas
lembranças de amores extintos, que o tempo e a ausência tornavam, mais perfeitos
e mais desejáveis, acudiam-lhe simultaneamente ao espírito, para lhe aumentar
as torturas da carne. As suas amantes do passado eram agora ainda mais atraentes
e formosas; em todas elas não havia um lábio sem sorriso, um olhar sem fogo;
era tudo opulento de graças e de meiguices, era tudo encantador e completo
Pôs-se a arranhar devagarinho a porta, dizendo quase em segredo o nome de
Lúcia. Nada, porém respondia; o mesmo silêncio compacto enchia as trevas do
corredor. Seu desejo, estimulado e tonto, evocava então todos os meios de
saciar-se; descobria hipóteses absurdas, inventava possibilidades que não
existiam. Amâncio chegou a pensar em Amélia, em Mme. Brizard, na mucama, e
até, que horror! Em Nini!. – Ai , meu Deus, gemeu nesse instante o doente
do n. ° 7. O estudante deixou a porta de Lúcia e segui em ponta de pés
pelo corredor. Ao passar defronte do quarto do Paula Mendes, suspendeu o passo;
a luz continuava com a mesma intensidade; o curioso não resistiu a uma tentação
e espiou pela fechadura. O pobre homem trabalhava, vergado sobre ma mesinha
estreita e todas coberta de papéis de música. Ao lado, pelas cadeiras e sobre
um sofá de couro negro encostado a um biombo havia folhas esparsas e cadernetas
empilhadas.

Recebera nessa tarde a encomenda de organizar uma sinfonia, que tinha de
ser executada daí a quatro dias em uma festa fora da cidade. O Imperador prometeu
que iria. Mendes estava ainda organizando as partes cavadas. Ouviam-se o ranger
da pena no papel grosso de Holanda, o tique-taque de um despertador de metal
branco, pousado sobre a cômoda, e o grosso ressonar da mulher, que dormia
por detrás do biombo. O rabequista parecia menos triste naquela ocasião do
que nas outras em que o vira Amâncio. – É porque a mulher está dormindo, calculou
este, lembrando-se do mal gênio de Catarina. E considerou sobre a existência
ordinária que levariam ali, encurraladas no mesmo cubículo, aquelas criaturas
tão opostas. O Mendes, sem desprender a pena do papel, começou a solfejar
em voz baixa o que escrevia; mas, como lá dentro cessaram os roncos da mulher
e esta remexeu na cama, resmungando, ele incontinenti calou a boca e prosseguiu
em silêncio no seu trabalho – Ainda estás com isto?! Perguntou ela, afinal,
depois de uma pausa. O marido respondeu afirmativamente. – Pois, homem, vê
se acabas com essa porcaria! Bem sabes que, enquanto houver luz no quarto,
não posso pregar olho! E, fazendo ranger as tábuas da cama, virou-se de um
lado para outro; acrescentando com a sua voz de homem: – Deixa isso! Anda!
E apaga o diabo dessa luz! – Não , filha, respondeu o artista brandamente.
– É preciso que este serviço fique pronto amanhã… E, depois de um muxoxo
da mulher: – Sabes o quanto precisamos deste dinheiro…A diretora do colégio
ainda ontem protestou que despediria a pequena, se seu não lhe arranjasse
alguma coisas por conta do que devemos; o Joãozinho, coitado, há quase dois
meses pediu-me que lhe levasse um sobretudo, porque lá no trapiche onde ele
agora está trabalhando, faz pela manhã um frio de rachar; Mme Brizard, você
não ignora, tem-nos apoquentado e… – Ë isto! interrompeu a mulher.
– Ë sempre a mesma cantiga!- De tudo você se lembra, menos do que eu
preciso! – Ah! se me lembro , filha! Mas é que nem sempre a gente pode fazer
o que deseja…Descansa, porém, que as coisa hão de endireitar e tu possuirás
de novo o teu piano de cauda! Tem um pouco de paciência… – Já me tardava
essa música! Já me tardava a “paciência”! A paciência inventou-se para consolar
os tolos! Farte-se você com ela! De conselhos estou cheia, meu amigo! Quero
obras e não palavras! Mendes não respondeu e continuou a trabalhar meneando
a cabeça resignadamente. Catarina remexeu-se com mais agitação e rangidos
da cama e, daí a pouco levantou-se de um salto, gritando: – Arre, com os diabos!
Que nem se pode dormir! – Olha os vizinhos, filha!…arriscou o marido. –
Lembra-te de que são três horas da madrugada… – Os vizinhos que se fomentem!
Berrou ela, embrulhando-se na colcha e fazendo tremer o soalho com seus passos
de granadeiro. – Não como em casa deles, não preciso deles para nada! E, depois
de ir beber um copo d’água ao fundo do quarto: – Tinha graça! Que eu, além
de tudo, não pudesse falar à minha vontade! Melhor seria, nesse caso, que
me amarrassem uma bala aos pés e mandassem, atirar comigo ao mar! – Estás
de mau humor, filha! Vê se descansas. – Não é de espantar, levando a vida
que eu levo! Sempre numas porcarias de quartos! Se se precisa de qualquer
coisa, é um “ai Jesus” Nunca há dinheiro! O almoço é aquilo que se sabe; o
jantar pior um pouco! Se fico doente, se tenho uma debilidade, não há quem
me traga um caldo! não há quem me dê um remédio! Arrenego de tal vidas, diabo!
– Ö Catarina!…disse o Mendes ressentindo-se – Pois eu não estou aqui?…Algum
dia já me afastei de teu lado, ao te sentires incomodada? – E antes se afastasse,
creia! Porque já me custa a suportá-lo quando estou de saúde, quanto mais
doente! Casca! – atirar-me em roto uns miseráveis serviços que qualquer um
faria!…Pois não os faça!, que até é favor! Passo muito melhor sem eles!
– Está bom, senhora, está bom! Não precisa se arreliar! Veja se descansa,
que eu agora tenho que fazer! – Descansada queria você me ver, mas era no
Caju, por uma vez, seu malvado! Pensa que encontraria o demônio de alguma
tola que caísse na asneira em que eu caí de se amarrar a um homem de sua laia?
Um pingas! Que anda sempre com a sela na barriga! E, avançando para o marido
de olhos arregalados e um punho no ar: – Mas, podes perder as esperanças,
que eu não morro antes de ti, Mané Bocó! Primeiro hás de ir tu, entendeste?!
– Ah! Supunhas que eu levaria a roer uma vida de chifre e depois rebentava
pra aí, enquanto ficavas

por cá a te lamberes de contente! – Um sebo! Hei de ir, sim, mas depois de
te haver feito amargar também um bocado, meu burro velho! – Ó mulher! cala
essa boca do diabo! Gritou, afinal, o Mendes, arrojando a pena e empurrando
os papéis que tinha defronte de si. – Arre! Ë muito! Arre! O moço do
n.° 7 expectorou com mais força e pôs-se a gemer. Ora, com um milhão de
demônios! Gritou o guarda-livros, morava no n.° 6 – Não é possível sossegar
neste inferno! Quando não é a tosse e o gemido da direita, é a rezinga e a
briga da esquerda! Apre! Antes morar num hospital de doidos! Mendes levantou-se
,segurando a cabeça com uma das mãos, e começou a passear agitado pelo quarto
. Catarina continuava a serrazinar, atirando com os pés o que topava no meio
das casa. O marido parou de súbito, sacudiu a cabeça, depois foi-se chegando
para a mulher e correu-lhe a mão pela espádua nua e lustrosa, timidamente,
como se afagasse anca de uma égua bravia – Então, filha?…disse com ternura.-
Vai deitar, vai!…Estamos aqui a incomodar os outros… Anda, vai! – Os incomodados
são os que se mudam! gritou ela. – E é o que vou tratar de fazer amanhã mesmo!
Berrou o guarda-livros. – Estou farto! Quem trabalha durante o dia, precisa
da noite para descansar! Arre! – Não faça caso, senhor!…Disse o Mendes,
e encaminhou-se para a porta. Amâncio, assim que o sentiu aproximar-se, fugiu
pé ante pé, com ligeireza. Nesse momento, o Campelo, o tal esquisitão do n.°
4, que até aí não dera sinal de si, levantou-se tranqüilamente, tomou o seu
clarinete, e começou por acinte, a tirar do instrumento as notas mais estranhas
e atormentadoras que se podem imaginar. O guarda -livros respondeu-lhe batendo
com a bengala nas paredes de tabique e berrando, como um doido, o Zé Pereira.
– Ai, meu Deus!, ai, meu Deus!, continuava a gemer arrastadamente o pobre
sujeito do n.° 7. Já pelas escadas, Amâncio ouviu as vozes do gentleman
, do Melinho e de Lúcia, que acordaram espantados, e em gritos reclamavam
contra semelhante abuso. No andar de baixo, o Piloto, o Dr. Tavares, o Fontes,
e a mulher, abriam as portas dos competentes quartos, para indagar que diabo
queria aquilo dizer. Só o dorminhoco do Pereira não se deu por achado. Amâncio
já estava enter os lençóis, quando o Coqueiro percorreu toda a casa, de robe-de-chambre
e um castiçal na mão.

XI

O guarda-livros, no dia seguinte pela manhã, declarou a Mme. Brizard que
se retirava da casa de pensão. – Oh! Disse. – Não estava disposto a suportar
por mais tempo aquele zungu! Os seus vizinhos eram uma gente impossível! –
Não se passava uma noite em que não houvesse chinfrinada!…Não! definitivamente
não podia ficar! De mais – O tísico do n.° 7 não lhe dava um momento de
descanso com o diabo de uma tosse, que parecia aumentar todos os dias! Nada!
Antes tomar um quarto no inferno! Mme. Brizard e o marido procuravam dissuadi-lo
de tal resolução. Não lhes convinha perder um hóspede tão bom. O guarda-livros,
com efeito, era muito pontual nos pagamentos e não incomodava pessoa alguma,
porque só queria o quarto para dormir; verdade é que não fazia o gasto da
comida, mas em compensação estava sempre a encomendar ceiatas e jantares que
deixavam bem bom lucro. A Ter por conseguinte, de sair alguém, antes fosse
o tal rabequista, o tal Paula Mendes, que, sobre possuir uma mulher insuportável,
achava-se já atrasado nas suas contas, e os donos da casa não viam muito certo
o recebimento. Catarina, assim que soube de semelhantes considerações, desceu
em três pulos ao primeiro andar e, atravessando-se defronte do Coqueiro, com
as mãos nas ilhargas, gritou-lhe, refilando as presas: – Repita você o que
teve o atrevimento de dizer a meu respeito e a respeito de meu marido! Repita
aí, se for capaz, que lhe mostro já para quanto presto, seu cara de fome!
João Coqueiro, muito pálido e com o lábio superior a tremer, exclamou que
“sua casa não era Praia do Peixe”; que ele não estava habituado “àqueles banzés”!
Quem quisesse dar escândalos que fosse lá para o meio da rua, que se fosse
entender com as regateiras! – Regateiras e regateiros são vocês, corja de
gatunos! Replicou a outra. Mme. Brizard, que por essa ocasião, ainda no quarto,
enfiava as botinas, acudiu logo, um pé calçado e outro não, e, com tal fúria
avançou contra a mulher do Paula Mendes, que Amélia, o Coqueiro e Nini não
a puderam conter

As duas atracaram-se. Os hóspedes, que estavam em casa, acudiram todos igualmente.
Houve bordoada, gritos, palavrões. Nini teve um ataque de nervos. O ilustre
Lambertosa teve vários empurrões e caiu contra uma cesta de ovos, que o copeiro
acabava de pousar no chão, para socorrer as senhoras E, no meio de toda esta
desordem, destacava-se a voz sibilante do advogado Tavares. – Calma, senhores!
Calma! Bradava ele. – Calma por quem sois! Esquecei-vos de que a única arma
do homem civilizado deve ser a palavra, escrita ou falada, a idéia, enfim?!
Esquecei-vos de que cada um de vós possui um cérebro, onde reside uma partícula
da sabedoria divina, e que só com esse cabedal podeis cruzar as vossa opiniões,
sem que seja necessário vos agatanhardes como animais selvagens ferozes?!…Virgílio,
meus senhores, o imortal Virgílio, o verdadeiro fundador da eloqüência, diz
muito acertadamente na sua Eneida, Livro IV, com referência à desditosa Dido
– Pendet que iteram narrantis ab ore ! Se podemos, pois, convencer com palavras,
para que havemos de recorrer aos murros?!. E , loco do costumado . entusiasmo,
dava punhadas frenéticas na mesa e perguntava em torno com os olhos enviesados
e as cordoveias intumescidas: – E o que dizia Salomão?! E o que dizia Salomão,
na sua inquebrantável sabedoria?! Salomão, meus senhores… Mas o orador foi
interrompido violentamente pelo Coqueiro, que desejava saber se ele podia
dispensar o seu quarto ao guarda -livros e mudar-se para o n.° 6 do segundo
andar. Haviam combinado essa mudança enquanto o tagarela discursava. – Salomão!
Sr. Dr. Coqueiro, Salomão foi um prodígio! – Pois bem, já sabemos disso, e
agora o que nos convém saber é se V. S.a cede ou não cede o seu quarto…
Mas não foi necessário tal assentimento, porque Amâncio, depois de um sinal
de Lúcia, declarou que cederia o seu gabinete por qualquer um dos quartos
do segundo andar. Coqueiro espantou-se. – Querer trocar o gabinete por um
quarto do segundo andar!…Ora, seu Amâncio! – Faz-me conta, respondeu secamente
o provinciano. E, chegando-se para o locandeiro, acrescentou-lhe ao ouvido:
– Logo mais te direi a razão por que… Ficou resolvido que o guarda -livros
passaria a ocupar o gabinete de Amâncio; este iria para o n.° 6, e o Paula
Mendes e mais mulher deixariam de comer à mesa de Mme. Brizard, continuando,
porém no n.° 5, até que liquidassem as suas contas.

* * *

Na tarde desse mesmo dia, como fizesse bom tempo, as senhoras combinaram
em tomar o café na chácara. Mme. Brizard, Amelinha, Lúcia e Nini, mal acabaram
de jantar, desceram ao terraço. Coqueiro e Amâncio já iriam também para o
cavaco. – Tinham primeiro que dar dois dedos de conversa. Os dois rapazes
meteram-se no vão de uma janela da sala de visitas, e Amâncio, com acentuações
de quem detesta imoralidades, disse ao outro , sem transição: – Coqueiro,
estou aqui há pouco tempo, mas estimo tua família, como se fosse a minha própria,
e, por conseguinte, entendo que é do meu dever me abrir contigo, sempre que
nesta casa descobrir qualquer coisa que possa Ter conseqüências graves…
– Mas que há? Perguntou o outro a fitá-lo, com muito empenho. – Trata-se de
Nini, disse o provinciano em voz soturna. Coqueiro remexeu-se no canto da
janela. – Sabes, continuou aquele, – que a pobre menina sofre horrivelmente
dos nervos, e creio até que tem qualquer desarranjo na cabeça… – Sim, por
quê? – Ë uma enferma, que, e não tivermos muito cuidado com ela, pode
vir a dar sérios desgostos a ti e tua família… Mas, desembucha, o que é
que houve?… – Ë que ela, naturalmente em conseqüência da moléstia,
coitada, às vezes faz certas coisas que…para mim ou qualquer outro rapaz
de bons princípios não valem nada, mas que, se caírem nas mãos de um desalmado…sim!
Tu sabes que hás homens para tudo neste mundo!… E, Amâncio, inflamado pelos
princípios morais que ele só cultivava teoricamente, parecia mais que ninguém
preocupado com a pureza dos costumes.

– Mas, afinal, que fez ela? Perguntou o Coqueiro, impacientando-se. – Ora,
disse o colega , desgostosamente, – tem feito o diabo…Ainda ontem, quando
me levantei da mesa , segui-me até à sala e… – E… – Principiou a fazer
tolices. A pobrezinha estava como não calculas!…Tive que recorrer à violência
para contê-la; o resultado foi aquele ataque!… E, vendo o ar de espanto
que fazia o Coqueiro:: – Digo-te isto, porque me parece que tenho obrigação
de to dizer se, porém faço mal, desculpa!… – Mal? Ao contrário! Decerto
que ao contrário! Fico-te muito grato! E abraçando-o: – Acabas de provar que
és um homem de bem! A tua ação é de um verdadeiro amigo: não imaginas o quanto
eu a aprecio. – Cumpri com o meu dever…observou o provinciano modestamente.
– Obrigado! Muito obrigado! Fico prevenido. De hoje em diante não acontecerá
outra! – E agora, compreendes por que não me convinha ficar embaixo, no gabinete?…concluiu
Amâncio. – Oh!…Isso , porém, não era motivo para que deixasses o teu gabinetezinho…
Eu daria as providências necessárias!… – Não, filho, nesta questões de família
sou muito rigoroso. E agora, o que está feito, está feito! Vou para o segundo
andar; é até mais fresco!… E, depois de algumas ligeiras considerações sobre
o mesmo assunto, os dois rapazes trocaram comovidos um enérgico aperto de
mão e desceram juntos à chácara, onde, debaixo das latadas de maracujá, os
esperavam as senhoras, palestrando em familiar camaradagem.

* * *

Dias depois, quando Amâncio já estava transferido para o n.° 6 do segundo
andar, chegaram-lhe às mãos duas cartas; uma de sua mãe, outra de seu pai.
Era a primeira vez que o velho Vasconcelos se dirigia ao filho em carta especial.
Abriu logo a de Ângela, sofregamente, e a imagem da santa, que as últimas
agitações da vida do rapaz haviam nublado por instantes, como nuvens que escondem
uma estrela guiadora, mal começou a leitura, ressurgiu inteira e lúcida à
memória dele. A boa mãe queixava-se de que o filho, ultimamente, já lhe não
escrevia com a mesma assiduidade e com a mesma expansão: “Que significava
semelhante mudança? Donde vinha aquela reserva? Por que aqueles bilhetes tão
apressados, quase telegráficos?…”perguntava ela com a sua letra redonda
e um pouco trêmula. “Por que não me escreves mais amiúde e mais extensamente?”
insistia a carta, “por que, meu querido filho, não me contas toda a tua vida;
não me dizes como passas, e em que te ocupas? Desejo saber se o Campos continua
a ser teu amigo, se na casa dele continuas tratado como dantes. Quero que
me relates tudo, que te diga respeito, meu Amâncio. Se soubesses a falta que
tu me fazes, os cuidados que me dá a tua ausência, com certeza serias melhor
para tua mãe.” E, sempre a mesma, sempre extremosa, sempre com o filho na
idéia, enviava-lhe conselhos, recomendava-lhe certas precauçõezinhas; as medidas
que devia tomar contra tais e tais perigos; o modo pelo qual devia proceder
em tais e tais perigos; o modo pelo qual devia proceder em tais e tais situações.
Amâncio releu várias vezes o que lhe dizia Ângela, e respirou largamente,
como quem sai de um quarto apertado para um grande ar livre. Mas, se a carta
materna o impressionou, a outra o surpreendeu, porque, de tão afável e condescendente,
não parecia derivar daquele terrível Vasconcelos, que até em sonhos o aterrava,
e sim das mãos amigas de um velho camarada dos bons tempos da infância. Estranhou-o
logo, desde as primeiras palavras. “Meu filho”. Até então, nunca recebera
de seu pai esse carinhoso tratamento. O Vasconcelos nem ao menos o tratara
por tu; nunca lhe dera a beijar a mão ou a face, nunca lhe abrira, enfim o
coração, quando este se achava ainda brando e maleável, para depor aí as sementes
de ternura, que desabrochariam mais tarde produzindo os bons sedimentos do
homem.. Como exigir de Amâncio que tivesse agora as virtudes que, em estação
propícia, lhe não plantaram na alma? Como exigir-lhe dedicação, heroísmo,
coragem, energia, entusiasmo e honra, se de nenhuma dessas coisas lhe inocularam
em tempo o germe necessário?

Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde, e traiçoeiro. Na ramificação
de seu caráter a sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado,
porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores. Vasconcelos,
por conseguinte, chegou tarde; encontrou já enrijado e duro o coração do filho.
E, no entanto, toda a sus carta, fazia o que, por inépcia nunca fizera de
perto, – dirigia-se amorosamente ao rapaz. Contava-lhe novidades da província,
comentava certos fatos escandalosos, falava sem reservas de umas tantas coisas,
das quais até aí nunca se permitira tratar na presença de Amâncio. O tópico
seguinte levou o provinciano ao cúmulo da admiração: “Não digo que te faças
um santo, mas também não te afogues no torvelinho dos prazeres. Goza, meu
filho, por isso que és moço, goza, porém, com prudência e com juízo; diverte-te,
mas evitando sempre tudo aquilo que te possa prejudicar. Lembra-te de que
saúde só tens uma, e moléstias há muitas. O mundo não se acaba! Adeus. Nunca
deixes de me escrever e, quando te vires aí em qualquer apuro, fala-me com
franqueza.” Tudo isso vinha tarde. Muita coisa, à semelhança do leite materno,
só nos aproveitam até certa época. Depois, em vez de fazerem bem, fazem mal.
As palavras de Vasconcelos que, aplicadas no tempo competente, dariam ótimos
resultados em benefício do filho, eram agora para este um simples pretexto
de galhofa. Amâncio sorriu da aparente transformação de seu pai. – Ora para
que havia de dar o velho!… Não obstante, um vago sentimento, ao mesmo tempo
amargo e agradável, apoderou-se dele. Desfrutava um certo gosto em merecer
aquela intimidade paterna; mas, por outro lado, doía-lhe a consciência por
não Ter sido melhor filho; como se o pobre rapaz de qualquer forma contribuíra
para semelhante falta. E, então, acudiu-lhe à memória uma circunstância de
que jamais se havia lembrado, – a despedida do pai. Vasconcelos estava bastante
comovido nesse momento e abraçava-o chorando. Amâncio nunca lhe tinha visto
o rosto com aquela simpática expressão de sofrimento; mas, bem pouco se impressionou
na ocasião; os olhos conservavam-se-lhe enxutos e o coração quase alegre com
a idéia da liberdade que ia principiar Só agora, depois da carta, depois que
soube que era amado pelo velho, uma grande tristeza invadiu-o todo, e as lágrimas
rebentaram-lhe com explosão. Assim sucede sempre aos filhos educados à portuguesa,
cujos pais como que sentem vexame de lhes patentear o seu amor. Pobres pais!
Quantas vezes não estarão morrendo por afagar o filho e, todavia, em vez de
lhe darem um sorriso carinhoso, um beijo, uma palavra de doçura, fingem-se
indiferentes e afastam-se para que o pequeno não lhes perceba a comoção. Néscios!
Julgam que com isso estabelecem uma corrente de respeito entre eles e os filhos;
julgam que isso é indispensável para o bom êxito da educação; quando toda
essa anomalia só pode servir para lhes roubar a confiança e a estima dos entes
predestinados a dedicar-lhes todas as primícias de sua ternura. Os pais dessa
espécie levam a tal exagero a sua convencional rispidez, que, se acham graça
em alguma coisa feita pelo filho, sufocam o riso, medrosos de que qualquer
expansão acarrete uma quebra ao respeito filial. Foi tudo isso, ao justo,
que se deu com Vasconcelos a respeito de Amâncio. Amou-o, mas com disfarce;
fingiu-se diretor inflexível, quando era simplesmente um pai como qualquer
outro. Muita vez chorou de ternura, mas sempre às escondidas; muita vez sentiu
o coração saltar para o filho, mas sempre se conteve, receoso de cair no ridículo.
E não se lembrava, o imprudente, de que o amor de pai é bem contrário ao amor
de filho; não se lembrava de que aquele nasce e subsiste por si e que este
precisa ser criado; que aquele é um princípio e que este é uma conseqüência;
que um vem de dentro para fora e que o outro vem de fora para dentro. Não
se lembrava, o infeliz, de que o primeiro existirá fatalmente, por uma lei
indefectível da natureza; ao passo que o segundo só aparecerá se lhe derem
elementos da vida. Foi desses elementos que Amâncio nunca dispôs para poder
amar o pai

* * *

O fato é que , depois da leitura da carta, o estudante sentiu, pela primeira
vez, algum desejo de dar notícias suas a Vasconcelos; até aí só o fazia por
honra da firma. Campos, que lhe apareceu em seguida, veio transformar esse
desejo em vontade, falando-lhe da correspondência extraordinária que, pelo
mesmo paquete, recebera do Maranhão. O velho Vasconcelos também

lhe havia escrito, e, com tanto interesse lhe falara de Amâncio, tão inconsolável
se mostrara e tão saudoso pelo filho, e com tal insistência pedira ao negociante
para olhar pelo rapaz, que o bom homem não hesitou em correr logo à casa de
pensão de Mme. Brizard. O estudante carregou com ele para o quarto. – Aí conversariam
mais à vontade. – Pois, meu nobre amigo, disse o marido de Hortênsia, assentando-se
defronte de Amâncio , e batendo-lhe uma palmada na coxa, – seu pai não se
cansa de falar a seu respeito. São as saudades, coitado! E tirando uma carta
do bolso para entregar ao outro: – Leia, leia e veja como está triste o pobre
velho! Ah! meu amigo, acredite que – possuir um pai é a maior fortuna que
se pode ambicionar neste mundo! Amâncio, entre outras coisas, leu o seguinte:
“Não imagina o Sr. Campos os cuidados em que eu e a minha boa Ângela nos temos
visto por cá com a ausência do rapaz. Nunca pensei que nos fizesse tanta falta.
Ela, coitada, leva a chorar desde que amanhece, e à noite é aquela certeza
dos sonhos ruins a mais não ser! Acho-a muito magra e abatida de tempos a
esta parte. Então quando não recebe cartas do filho, o que já se observa há
três vapores consecutivos, fica prostrada de tal modo que se não pode levantar
da cama. “Veja, por conseguinte, se alcança que o nosso estudante nunca nos
deixe de escrever; duas palavras que sejam , dizendo como está de saúde e
que vai bem nos seus estudos. Isso, que a ele não custará muito, poupa todavia
cá por casa muitas horas de sofrimento e de desgosto. “Até já me lembrou providenciar
no sentido de fazê-lo vir no fim do ano passar as férias conosco, não sei,
porém, se tal coisa será conveniente ainda tão no princípio da carreira. O
amigo dispensar-me-á o obséquio de escrever a esse respeito.

“Em todo o caso, a idéia de que o senhor está aí, perto dele, e que , pelo
que tem mostrado, é deveras nosso amigo, tranqüiliza-nos em grande parte.
Conto, pois , que olhará sempre por Amâncio. Tenha paciência, sei que o importuno
com estas coisas , mas que hei de fazer? Dizem tanto dessa Corte; falam de
tal forma do clima e dos mil perigos a que aí esta sujeita a mocidade, que,
só a lembrança de uma tísica galopante ou de um desses desvios, uma dessas
loucuras que às vezes acometem aos rapazes e inutiliza-os para o resto da
vida; uma dessas desgraças, Sr. Campos, que lhes sucedem facilmente, quando
eles não dispõem de um bom amigo que os encaminhe e aconselhe; só a lembrança
de tudo isso, meu caro senhor, é o bastante para me tirar o sossego do espírito.
“Tenha a bondade, sempre que falar ao meu rapaz, de lembrar-lhe as obrigações
e dizer-lhe com franqueza a responsabilidade que agora lhe assiste. Ele está
se fazendo homem e precisa prepara futuro. Sirva-lhe de pai; acompanhe-o e
proteja-o com o mesmo desvelo de que usou meu irmão para guiar a sua mocidade.”
– Vê, disse o Campos, abalado com as palavras do irmão de seu protetor.- São
estes os desejos de seu pai; ao senhor compete agora, como bom filho, fazer-lhe
o gosto, e dar-lhe a felicidade de que ele precisa para o resto da vida. O
que estiver em minhas forças está à sua disposição mas o senhor também deve
fazer por si, já não é tão criança para não ver o que lhe fica bem e o que
lhe fica mal! Enfim, tenho toda a confiança no senhor, seu Amâncio, e estou
convencido de que não me desmentirá! Amâncio, que até aí ouvia o Campos em
silêncio e com os olhos presos a um ponto, agradeceu-lhe muito aquele interesse
e jurou que todo o seu empenho era corresponder à expectativa de seus pais
e ser agradável o mais possível aos verdadeiros amigos de sua família. E a
conversa, tomando novas direções, ,descaiu em assuntos menos circunspectos.
Veio então à bulha o baile do Melo, e Campos se queixou de que Amâncio, depois
disso, nunca mais lhe aparecera em casa. – Já tinha a intenção de lá ir domingo.
– Não, contradisse o negociante.- Vá antes sábado, amanhã, que é aniversário
de meu casamento. Não há festa, mas reúnem-se alguns camaradas e toca-se um
bocado de piano. Adeus. Não deixe de ir. Olhe, se quiser pode levar seus amigos.
Adeusinho. Amâncio acompanhou-o até a porta da rua e voltou ao quarto. Estava
preocupado; não mais com as cartas da família, mas com a deliciosa intenção
de reatar no dia seguinte o namoro de Hortênsia. Só uma pequena circunstância
lhe mareava o antegozo desses sonhados momento s de ventura: era a idéia dos
seus compromissos como estudante; sentia-os agravados perante a confiança
que lhe depositavam, e agora, mais que nunca, a consciência do seu relaxamento,
a lembrança da haver faltado às aulas tantas vezes e de não Ter aberto livro
durante a última semana, agonizavam-no desabridamente. – Oh! Os estudos! Os
estudos eram o ponto negro de sua vida, o seu desgosto, o terrível espectro
de todos os seus sonhos! As regalias que daí viessem mais tarde, fossem elas
quais fossem, nunca poderiam compensar aquela profunda tristeza, aquele aborrecimento
invencível, que o devoravam.

Semelhante preocupação tirava-lhe o gosto para tudo, azedava-lhe todos os
melhores instantes de sua vida. Cada minuto, que se escoava na ociosidade,
era mais uma gota de remorso caída no sombrio pélago de seu tédio. E, contudo,
os minutos, os dias e as semanas iam escapando, sem que Amâncio lograsse vencer
a sua antipatia pelo trabalho. Olhava com repugnância para os melancólicos
compêndios da faculdade, e, quando teimavam muito em os conservar abertos
defronte dos olhos, quase sempre adormecia. Um verdadeiro tormento!

* * *

Amâncio obteve de João Coqueiro que o acompanhasse à soirée do Campos. Foi
uma noite cheia para ambos; se bem que Hortênsia ,de tão preocupada com os
arranjos da casa, muito pouco se dera às visitas. Carlotinha, sim, mostrava-se
alegre e comunicativa que nem parecia a mesma. Chegou-se muito para Amâncio,
meteu-se com ele de palestra,, a fazer pilhéria, a criticar das outras senhoras,
com visagens disfarçadas e pequeninos risos estalados por detrás do leque.
O estudante ficou pasmo, quando descobriu que toda essa intimidade procedia
do namoro dele com Hortênsia. À primeira indireta da rapariga, o rapaz corou
e respondeu titubeando. Carlotinha, porém, o tranqüilizou, dando a entender
que era discreta e interessada nos segredos da irmã. E, já sem indícios de
gracejo, aconselhou-o a que freqüentasse a casa com mais assiduidade; um Domingo
sim, outro não, para jantar. Seria muito bem recebido, alguém fazia questão
dessas visitas… Amâncio, no seu papel de inocente, quis saber quem era esse
alguém , mas a rapariga negou os esclarecimentos e pediu-lhe em segredo que
se calasse, piscando o olho para o lado esquerdo, onde acabava de se assentar
um sujeito gordo, de barba toda raspada. – É o Costa ! Nada lhe escapa!…
soprou ao estudante por debaixo do leque. E depois em voz alta, disfarçando:
– Pois o baile do Melo esteve muito bom!… – _Muito…confirmou Amâncio.
– Há longo tempo não me divirto assim!…Mas, para a senhora creio que ainda
seria melhor, as lá estivesse certa pessoa!… – Quem? O guarda-livros?…Ora!…
E, com ar desdenhoso, declarou que há quinze dias ficara tudo acabado. – Seriamente?
perguntou o estudante. – Sério! E não me sinto com isso, até estimo! No fim
de contas aquilo é um tipo impossível; tão depressa está para o norte como
para o sul! – Mas a senhora parecia gostar dele tanto… – Pensei que fosse
outra coisa…respondeu Carlotinha, franzindo os lábios. – Quando, porém descobri
o que ali estava, dei tudo por acabado! Foi muito bom; antes assim do que
depois do casamento!… E, para mostrar a sinceridade daquela indiferença,
ria com exagero e dava a sua palavra de honra em como não tinha paixão por
homem nenhum deste mundo. Havia de casar sim, porque isso era necessário,
mas não que preferisse este ou aquele. Todos eles eram a mesma coisas _uns
tipos! Amâncio defendia o seu sexo, experimentando já pela rapariga uma nascente
repugnância instintiva. Quando, às três horas da madrugada, os dois estudantes
se despediram, Campos, entre muitos oferecimentos, pediu ao “Sr. Dr. João
Coqueiro” que voltasse qualquer dia, mas com a família. Ele tinha nisso muito
bom gosto. Coqueiro prometeu fazer-lhe a vontade e retirou-se com o amigo.

* * *

Quase nada conversaram pelo caminho. Amâncio parecia aflito por se meter
na cama; uma vez, porém , recolhido ao seu novo quartinho do segundo andar,
não sentia as menor disposição para dormir. A circunstância de saber que Lúcia
estava ali tão perto, a quatro ou cinco passos, mas inteiramente fora do seu
alcance, o indispunha como se fosse uma pirraça levantada com o fim único
de o afligir. Não resistiu ao desejo de ir, como da outra vez, espreitar pela
fechadura do quarto em que ela morava, e encaminhou-se sorrateiramente para
o n.° 8. Nesta tentativa, porém, foi ainda mais infeliz do que da primeira,
porque a janela do corredor ficara aberta, e Amâncio principiou a espirrar
, constipado.

O doente do n.° 7 tossicava, de vez em quando. Amâncio voltou ao quarto,
muito aborrecido. Abriu um livro, mas repeliu-o logo, com tédio. Lembrou-se
de fazer café. (Na véspera comprara uma maquinazinha e os apetrechos necessários
para isso.)- O melhor, porém, seria melhor tomar o café depois de um banho
Deu lume à máquina e desceu ao primeiro andar, já despido e rebuçado no lençol.
Queria passar pelo quarto da mucama, que ele agora sabia ao certo onde era;
mas, na ocasião em que entrara na sala de jantar, deteve-se cautelosamente
com a presença de um vulto que acabava de aparecer do lado oposto. A custo
reconheceu Coqueiro; do lugar onde se achava podia observar sem ser visto.
O dono da casa atravessou a pé a varanda e, encaminhando-se para o fundo do
corredor, sumiu-se no tal sítio, por onde justamente queria passar o outro.
– Será possível?…considerou Amâncio, que se adiantara precatamente para
certificar-se do que vira. – Que grande velhaco! E era aquele tipo que, “por
moralidade não admitia em casa certas visitas!…” – Ah!, meu pulha! Pensou
o estudante. – Como podia agora tomar a sério a casa de Mme. Brizard?…Que
juízo devia fazer de toda aquela gente? E Amelinha ? o que vinha a ser aquela
Amelinha?… Dois espirros cortaram-lhe a teia dos raciocínios, e em seguida
um calafrio muito penetrante lhe percorreu o lombo. Sentiu-se indisposto;
não obstante, desceu ao banheiro. – Aquilo desapareceria com um pouco d’água
pela cabeça. Mas, quando voltou ao quarto, já lhe doía o corpo e tinha as
pernas entorpecidas levemente. Tomou uma chávena de café, bebeu um gole de
conhaque, e meteu-se na cama, tiritando. Não se pôde erguer no dia seguinte.
Coqueiro apresentou-se-lhe no quarto, logo pela manhã, muito sobressaltado
com os incômodos do querido hóspede. Estava mais inquieto do que se tratasse
de salvar a vida de um parente insubstituível. Perguntou se Amâncio queria
médico; se precisava de alguma coisa. – Que diabo! Dispusesse com franqueza.
Ele estava ali às suas ordens!… O doente apenas desejava que o amigo desse
um pulo à agência dos vapores e trouxesse o constante de um conhecimento ,
que lhe pediu para procurar nas algibeiras do fraque. Coqueiro obedeceu prontamente.
Era um pacote de doces que lhe enviava a mãe. Havia frasco de bacuris em calda.
Muricis, cajus cristalizados e buritis em massa para refresco. Amâncio , logo
que o colega voltou com o presente, fez acondicionar tudo sobre a mesa, defronte
de sua cama. Nesse instante, Mme. Brizard e Amelinha invadiam-lhe o quarto,
ávidas de informações. – Que tinha o Sr. Vasconcelos? – Que sentia? Como lhe
aparecera febre? E a francesa, depois de consultar o pulso ao rapaz, afiançou
que aquilo não valia nada. Ele que tomasse um suadouro, que se deixasse ficar
na cama e havia dever que no dia seguinte estava pronto. Lambertosa, chegando
logo em seguida, pediu ao doente que aceitasse uma dose de acônito e deixasse
o resto por sua conta. Mas a febre recrudesceu depois do almoço. Amâncio queixava-se
de dores na cabeça, na espinha e nos quadris. – Tudo isto é ar! Afirmou o
gentleman autoritariamente. – Acônito! Dê-lhe com o acônito! Foi Amelinha
a encarregada de ministrar ao doente, de hora em hora , uma colher do remédio.
Mme. Brizard falou muito da inconstância do clima do Rio de Janeiro, das precauções
que se deviam tomar contra as umidades; do risco que havia em comer certas
frutas e, afinal, retirou-se, tendo apalpado ainda uma vez o pulso e a testa
do hóspede. Amelinha revelava-se extremamente solícita. Andava no bico dos
pés, a borboletear pelo quarto, arrumando os livros sobre a mesa, apanhando
a roupa espalhada pelo chão, acudindo a qualquer movimento do estudante, que
dormia entanguecido de baixo dos lençóis. Ele, coitado, parecia cada vez pior.
Ardiam-lhe os olhos desabridamente; o hálito queimava; não podia suportar
o cheiro do fumo e queixava-se de muita sede e comichão pelo corpo. Amelinha,
sempre irrequieta e passarinheira, preparava-lhe copos d’água com açúcar.
Agachava-se à borda da cama, mexia e remexia com a colher o sacarífero calmante
e, depois de o provar com a pontinha da língua, passava-o às mãos de Amâncio.
Este, porém, mal bebia, voltava-se de novo para a parede, gemendo de olhos
fechados. Pelas duas horas da tarde, Lúcia pediu licença para lhe fazer uma
visita. Entrou cheia de cerimônia, e assentou-se gravemente em uma cadeira,
à cabeceira do leito.

O doente voltou-se logo e agradeceu aquela fineza com um olhar muito triste
e injetado de sangue. Ela mostrava-se interessada; pedia informações a respeito
da moléstia. Amâncio respostava com dificuldade. Parecia moribundo. Mas, quando
Amélia saiu e desceu ao primeiro andar, ele tomou rapidamente as mãos da outra
e cobriu-as de beijos que a febre tornava mais ardentes e mais queimosos.
– Eu te amo! Eu te amo! dizia ele. – Bem, mas fique quieto! Isso lhe pode
fazer mal! Retrucava a suposta mulher do Pereira. – Nada de tolices! Deite-se!
Deite-se! Amâncio libertou os braços do cobertor, apoderou-se da cabeça de
Lúcia , e começou a beijar-lhe os olhos, a boca e os cabelos, numa sofreguidão
irracional. As lunetas da “ilustrada senhora” haviam caído, e ela encarava
o rapaz , sem dizer palavra, a lhe cravar os seus grandes olhos de míope,
alterados pelo abuso do vidro de graduação. Tiveram de disfarçar, porque alguém
se aproximava. O enfermo voltou logo aos lençóis e pôs-se novamente a gemer.
Era o Coqueiro quem vinha. Desde a entrada mostrou-se contrariado com a presença
de Lúcia. Transpareciam-lhe no rosto os sintomas da desconfiança. Dir-se-ia
um ciumento a penetrar de chofre nas recâmaras da amante. – Aquela mulher
não podia estar ali com boas intenções!… E foi de mau humor que o Coqueiro
respondeu a uma pergunta dirigida por ela a respeito da moléstia. Lúcia, também
não deu mais palavra e, logo depois saiu muito enfiada.

* * *

À noite apresentou-se o Campos, a quem o Coqueiro , de passagem, prevenira
dos incômodos de Amâncio; trazia consigo um médico. Este declarou incontinenti
que o rapaz tinha bexigas; mas antes que fizessem espalhafato, afiançou que
eram benignas. “Bexigas doídas, cataporas, como vulgarmente chamavam por aí.
Ficassem tranqüilos , que o caso não era grave; convinha , porém, ter algum
cuidado com o doente: – evitar a ação do vento e muita limpeza com a roupa
da cama.” Receitou e saiu, prometendo voltar no dia seguinte. Campos seguiu-o
até à escada do e tornou ao segundo andar. A mulher do Paula Mendes, que abrira
a porta do quarto para escutar o que dizia o médico, rompeu logo a falar dobre
o abuso de consentirem ali “um bexigoso!” Daquela forma, em breve a casa se
transformava num hospital! Já lá tinham um tísico, que à noite não a deixava
dormir com o gogo; agora era um bexiguento; amanhã seria a febre amarela e
depois a lepra! – Arre! Em chegando o marido havia de mostrar o que faria!
Lambertosa, a pretexto de que sentia muito calor, empacotou o que tinha no
quarto e lá se foi moscando à francesa. – Nada! segredou ele embaixo ao Fontes,
que jogava o dominó com a mulher na sala de jantar. – Tenho medo disto que
me pélo; em pequeno vi morrer três sujeitos de pancada com as tais cataporas!
Vou para a chácara de um amigo nas Laranjeiras! E, se a madame não tratar
de pôr fora o doente, eu também aqui não porei mais os pés! E, vendo que o
Fontes parecia impressionado com as suas palavras: – Pois não acha o amigo
que não tenho razão?…Pode-se lá admitir um varioloso dentro de uma casa
como esta, cheia de hóspedes?… – ‘Stá claro! Disse a mulher do Fontes, empurrando
as pedras do dominó. – Eu também aqui não fico! Ou o doente se mudas ou então
mudo-me eu! E logo o quê! – bexigas! Deus nos defenda! Até parece que já sinto
um formigueiro por todo o corpo…Credo! – Sim, disse o marido, – mas não
acredito que Mme. Brizard esteja disposta a ficar com ele dentro de casa!
O gentleman havia desaparecido, como se levasse uma fera atrás de si; os dois
outros ergueram-se conversavam assustados sobre o grande fato; enquanto Nini,
que, desde às cinco horas jazia estendida em uma cadeira ao canto da varanda,
com um lenço amarrado na cabeça, escutava-os silenciosamente, os olhos pendurados
no vago

Depois daquela cena violenta com Amâncio, a pobre criatura se quedara mais
apreensiva e mais triste. Eram suspiros sobre suspiros e nem uma palavra durante
o dia inteiro; às vezes dava-lhe para chorar e não havia meio de a conter.
Em cima o Campos tomou o chapéu e o guarda-chuva, mas, antes de sair, consultou
a opinião do Coqueiro e de Mme. Brizard sobre o que melhor convinha fazer
a respeito do varioloso. “Talvez fosse mais acertado levá-lo para uma boa
casa de saúde!… – Eles que se não constrangessem: se era inconveniente ficar
ali o rapaz, falassem com franqueza, porque tudo se podia arranjar perfeitamente.
Mas os locandeiros protestaram logo, com energia: – Longe de ficarem constrangidos,
tinham muito gosto em ser úteis ao Dr. Amâncio.- Que o já estimavam tanto,
que não teriam ânimo de o desamparar, justamente quando o pobre moço, longe
da família, mais precisava de cuidados! – Verdade é que as bexigas não são
das más…considerou o negociante, alisando o pêlo de seu chapéu alto. – Mas
os outros hóspedes talvez não pensem como a senhora e seu marido…E daí,
quem sabe?…queiram deixar a casa e… Mme. Brizard declarou que por esse
lado estava sossegada. “Os bons hóspedes não desertariam por tão pouco, e
quanto aos maus, se fossem não fariam falta.” Campos agradeceu pelo recomendado
aquela boa vontade; tornou a dizer que não poupassem despesas com a moléstia
e, quando porventura houvesse alguma dívida ou alguma dificuldade, era mandar
imediatamente um recadinho à Rua Direita, que ele lá estava sempre às ordens.
E ainda voltou ao quarto do rapaz para lhe rogar mis uma vez que não tivesse
receio de importuná-lo em qualquer ocasião e, outrossim, para saber se, por
enquanto, ele não precisava de mais alguma coisa. Amâncio desejava unicamente
que o amigo procurasse por onde andava o Sabino, que agora lhe fazia falta;
e, caso o encontrasse, tivesse a bondade de remeter-lho; pois seria um grande
favor. Veio à questão o quanto madraceavam os escravos ultimamente. Mme. Brizard
jurou que não havia melhor vida do que a deles; disse que Amâncio fizera mal;
em consentir que um negro de sua propriedade andasse por aí tanto tempo, sem
lhe prestar contas; quando, alugado, lhe podia dar de rendimento pelo menos
quarenta mil-réis mensais. E, de sua parte recomendou de Campos que fizesse
diligências para descobrir o tratante e o deixasse ali, que ela mostraria
se punha ou não a bom caminho. O negociante retirou-se afinal, entre novos
protestos e novos oferecimentos. Mme. Brizard, o Coqueiro e Amelinha não abandonaram
o quarto do doente até mais de meia-noite; ora um, ora outro, acompanhavam-no
sempre. Lúcia também aparecia de quando em quando; ao passo que o marido,
sem jamais acordar completamente, nem dera pelo reboliço em que ia a casa.
Por toda a parte sentia-se já o cheiro de alfazema queimada. O esquisitão
do n.° 4, muito comprido no seu poncho de brim pardo, que lhe batia desairosamente
nas tíbias mal compostas, espaceava no corredor, cantarolando , em voz soturna
o De Profundis . Olha que agouro! Resmungou a mulher do Paula Mendes ao vê-lo
passar e, já encolerizada pela demora do marido, fechou a porta do quarto
com um pontapé. – Logo aquela noite é que o diabo do homem entendia de se
demorara mais tempo na rua! Raios o partissem, diabo! O Melinho, a pérola
do n.° 9 , também aparecera; e o Piloto, a saber ,ainda na porta da rua,
que havia um bexigoso no segundo andar, fez uma careta, benzeu-se comicamente,
desgalgou pelo mesmo caminho que trazia, afetando trejeitos exagerado de medo.
O guarda-livros é que bem pouco se incomodou com a notícia, tinha lá o seu
gabinete ao lado da sala de visitas, e aí com certeza não chegariam os miasmas.
Estava em cima o Coqueiro a discutir com a família sobre quem devia acompanhar
o enfermo durante o resto das noite, quando entro o Paula Mendes, estranhamente
alegre, a cantar em voz alta. O dono da casa correu logo ao seu encontro e
lhe pediu que não fizesse bulha. – O hóspede do n.° 6 estava de cama!
Mendes respondeu com descostumada grosseria, arrastando a voz. Catarina ao
vê-lo naquele estado, fechou bruscamente a porta do quarto, que nesse mesmo
instante havia aberto, e gritou-lhe de dentro “Que fosse cozinhar para longe
a bebedeira! Que voltasse para onde se tinha emborrachado! Era só também o
que faltava! – que, além de tudo, tivesse de aturar bêbados! Estavam bem servidos!”
E, todos, com grande espanto , se convenceram de que efetivamente o Paula
Mendes vinha ébrio, logo que o viram principiar a bater, como um possesso,
na porta do quarto, berrando pela mulher, sem se poder agüentar nas pernas.
– Pois senhores, disse Mme. Brizard, que acudira com o barulho, – estou pasma!
Desde que o rabequista mora aqui é a primeira vez que o vejo assim!… – Naturalmente
isto foi coisa que lhe fizeram… opinou Coqueiro. – Ele, coitado, é até homem
de bons costumes!…

Todos concordaram nesse ponto, e o hoteleiro, uma vez capacitado de que a
peste da Catarina não abria a porta ao marido, carregou com este para o quarto
que o Lambertosa acabava de despejar. – Diabo! Resmungou, deixando-o cair
sobre a cama. – Hóspedes que só dão de lucro estas maçadas! Resolveu-se que
seria o copeiro quem acompanharia o enfermo durante o resto da noite. O médico
recomendara que dessem o remédio de três em três horas. Lúcia lamentou que,
justamente nessa ocasião, a sua Cora estivesse em Cascadura ajudando a uma
amiga a morrer, porque ao contrário Amâncio não teria outra enfermeira. “Ah!
não havia como aquela mulata para tratar de um doente!…” Mas o copeiro assumiu
o posto que lhe designaram, e cada um se recolheu ao competente dormitório.
Catarina ainda rabujou sozinha por algum tempo; o Paula Mendes caiu num sono
de chumbo, e a casa foi a pouco e pouco se atufando nas brumas silenciosas
da noite. Só então , de tão fracos que eram , ouviam-se os bufidos cavernosos
do tísico que, no triste abandono de sua miséria, continuava a gemer, sufocado
pela dispnéia. O desgraçado já não tinha forças par sair à rua. A sua moléstia
entrara no segundo período; cresciam-lhe as dores do peito e apareciam-lhe
agora, pela madrugada, acessos febris, acompanhados de suores frios e gordurosos.
A magreza desnudara-lhe os ossos, e o alimentos faziam-lhe repugnância. Como
era muito pobre, ninguém se interessava por ele; os criados serviam-no mal
e a más horas. Traziam-lhe a comida e depunham-na sobre o velador.” bodega
lá que se arranjasse!” Mme. Brizard, por mais de uma vez dissera: – Também
aquele estafermo não ata nem desata!…

* * *

Por volta das quatro da madrugada, Amâncio sentiu passarem-lhe brandamente
a mão pela testa, e despertou estremunhado. Um candeeiro de azeite derramava
no quarto a sua meia claridade trêmula e duvidosa. Era tudo silêncio e quietação.
– Lúcia! disse ele, reconhecendo-a e tentando passar-lhe o braço na cintura.
– Psiu! Fez a ilustrada senhora com um dedo nos lábios.- Tenha modo! O copeiro
está dormindo e, como o médico recomendou que não deixassem de lhe dar de
hora em hora uma colherada do remédio, eu … – Meu amor! – Nada de bulha!
Tome o remédio e trate de dormir, que você está doente. Amâncio bebeu a tisana
e com um gemido arrastado pousou de novo a cabeça nos travesseiros. – Como
se acha ensopada esta camisa! Observou Lúcia, apalpando-lhe as costas solicitamente.
E perguntou logo onde estava a roupa branca. O rapaz apontou com dificuldade
para a gaveta inferior da cômoda, e acrescentou careteando: – No fundo, ao
esquerdo. Ela foi abrir o gavetão, muito de mansinho, para não acordar o copeiro
que dormia a sono solto sobre um enxergão no soalho, e reveio, toda desvelos,
com uma camisa aberta nos braços. – Vamos ! mude essa roupa. O remédio está
produzindo efeito. É preciso não resfriar. O estudante despiu a camisa suada
e vestiu a outra. – Agora, sente-se melhor? Perguntou a mulher do Pereira.
Estava assim, assim… Ainda lhe doía o corpo, e a comichão não tinha diminuído.
Parecia que lhe passeavam formigas pelas pernas. – Trate de repousar. Adeus.
Eu voltarei de manhã, para lhe dar outra dose do remédio. Até logo. Amâncio
pediu-lhe que se demorasse mais um pouco, que se assentasse um instante ao
seu lado; ela, porém, muito senhora de si, negou-se formalmente, dizendo com
a cabeça que não e recomendando-lhe com um gesto que se acomodasse. – Ao menos
um beijinho… pediu ele. A outra não respondeu e saiu na ponta dos pés. Voltou
pela manhã, como prometera, mas o copeiro já havia dado o remédio ao doente.
– Então! Como passou? Perguntou ela, indo apertar-lhe a mão. – Ora, mais incomodado
com a sua ausência do que com a minha moléstia… respondeu o moço, fazendo
um ar infeliz.

– Impressões de momento… retorquiu Lúcia, sorrindo. – Daqui a pouco não
se lembrará mais de mim… E logo, que viu sair o preto: – Para só pensar
na Amelinha… Amâncio fez um gesto de repugnância. – Tem toda a razão!…
prosseguiu ela – toda! Amelinha é moça, é bonita, e pode casar! – Comigo,
nunca!… afirmou o rapaz. – Não poria a mão no fogo… insistiu Lúcia. –
Agora eu, sim, já sou papel queimado, e estou velha… – Velha? Dê-me então
a sua bênção… Lúcia sorriu e estendeu-lhe a mão, que ele beijou avidamente,
ficando depois a examiná-la, como se contemplasse uma obra de arte. – É feia…
disse a senhora – é comprida demais e magra. – É adorável! Desmentiu o estudante.
E tornou a beijar, com exagerado transporte, a mãozinha que conservava entre
as suas. – Está bom. Chega! Para bênção já basta! E ela puxou o braço. – Deve
estar a surgir o batalhão de seus enfermeiros! Adeus. – Eu os trocaria a todos
por ti, minha santa! – Isso é o que havemos de ver! Replicou ela intencionalmente.
E saiu do quarto. O Coqueiro, que chegou logo depois, percebeu que Lúcia acabava
de estar ali, mas não deixou transparecer a sua contrariedade. – Então?! perguntou.
O doente fez uma careta de desânimo. – Tiveste alguma novidade durante a noite?
– Nenhuma, respondeu Amâncio. – O remédio, tomaste-o? – Tomei. Coqueiro deu
uma volta pelo quarto, para demorar um pouco mais a visita, e disse frouxamente:
– Bem, tenho que ir pras aulas. Até já! – Loló e Amelinha não tardam por aí.
E retirou-se, a gritar desde cima pela mucama: – Que viesse arrumar o quarto
do Sr. Dr. Amâncio! Mme. Brizard e Amelinha , com efeito, não tardaram a aparecer,
falando muito sobre o terror que a moléstia de Amâncio produzia nos outros
hóspedes, confessando as maçadas que tiveram as duas na véspera; e, por fim,
a mais velha desceu para cuidar da casa e a menina ficou para tratar do enfermo.

* * *

João Coqueiro, à volta da academia, chamou a mulher ao quarto e perguntou-lhe,
cruzando os braços e sacudindo a cabeça: – E o que me dizes tu da Sr.ª D.
Lúcia?… Mme. Brizard respondeu com um movimento de ombros. – Bem desconfiava
eu!…Ajuntou o especulador, depois de uma pausa. Acredita, Loló, que desde
a chegada do Amâncio, tive cá um palpite de que aquela mulher seria um estorvo
para os nossos projetos! A francesa fez um esgar de dúvida. E o esposo acrescentou
com raiva: – Pois se ela não o larga um só instante! Leva a escorá-lo, o demônio!
– Não credites que Amelinha se deixe codilhar assim só !…observou a esperta
locandeira. – Ora qual! Volveu o outro zangado. – Ninguém me tira da cabeça
que esta mudança do rapaz para o segundo andar, foi coisa arranjada por aquela
sirigaita! E, tendo percorrido três vezes o quarto, parou de repente, muito
agitado: – Mas comigo, bradou – Está enganada! Tenho a faca e o queijo na
mão! Posso despachá-los, quando bem entender, a ela mais o bolas do tal marido!
E nem preciso inventar pretextos para os pôr na rua, porque eles já devem
aí perto de dois meses! – Pois nós havemos de perder esse dinheiro?! Interrogou
Mme. Brizard assustando-se. – Sim, mas é que eu não os deixo ir, sem ficar
garantido! E se quiserem fazer de espertos, confisco-lhes a mulatinha! Não!
Aqui para o meu lado é que não se arranjam! E, recaindo nos projetos a respeito
de Amâncio: – Uma ocasião tão boa para a Amelinha o cativar, se o diabo da
intrusa não se metesse entre eles no melhor da coisa! Ah! peste!

Mme. Brizard, que se havia assentado, meditava de cabeça baixa. – Eu até
o acho agora mais reservado e mais frio! … prosseguiu o hoteleiro-estudante.
– Já não me consulta quando quer dar algum passo … já não se abre comigo!
E aproximando-se da mulher, exemplificou em voz de mistério: – Sabes, aquele
doce que ele recebeu do Maranhão? Foi quase todo para ela! A mim deu unicamente
um frasco do tal bacuri (por sinal que não lhe acho graça); para si, creio
que guardou uma latinha de geleia, e tudo mais lambeu a gata arrepiada! –
Que! Pois ele lhe fez presente de todo o doce que recebeu do Norte?… – Ora!
Se te estou a dizer! – Não! exclamou a Brizard escandalizada.- Isso agora
não lhe perdôo! A gente aqui a se matar, a desfazer-se em carinhos, e ele
a socar no bandulho daquela bicha os mimos que recebe da família! Não! Isto
não se faz! – Pois fez! Sustentou Coqueiro. – E, se não abrirmos os olhos,
ela é capaz de arrancar-lhe até a última camisa! – Dar todo o doce àquela
criatura!… repisava a francesa. – É quanto pose ser!… – Pois deu! – Sempre
o supunha outra espécie de gente!… – Não é pelo doce, explanou o marido
– mas sim pelo alcance do fato! Nós, o que devemos fazer e, quanto antes,
tomar medida muito seria a respeito de tudo isto! E, fitando a mulher com
resolução: – Vamos a saber! Achas que os devemos pôr no olho da rua ?! – Mas,
filho, sem pagarem?! … – Ainda que não paguem, ora essa! Dos males o menor!
Lembra-te de que o Amâncio não inventou a pólvora e pode, muito bem, ser visgado
por aquela lambisgóia!… A cabra não tem nada de tola!… Que achas tu?!
– Sim, mas também par deixá-los ir com o nosso cobre… – Fica-se com um documento
selado e podemos perseguí-los a todo o tempo! – Isso é asneiras! – Asneiras
é perdermos o futuro de Amelinha por causa de alguns mil-réis Mme. Brizard
ainda hesitou. – Então? insistiu Coqueiro. – A termos de tomar esta resolução,
deve ser já e já, que a oportunidade é magnífica; talvez até nunca mais pilhemos
um ensejo tão favorável! – Minha filha, nem sempre há cataporas!… A outra,
afinal, consentiu, e ficou deliberado que o Pereira e Lúcia seriam postos
na rua, se não saldassem imediatamente as suas contas. – Estão ali, estão
fora!… profetizou o locandeiro, esfregando as mãos.

* * *

Algumas horas depois, quando o Pereira descrevia tropegamente a sua órbita
consuetudinária entre a mesa do jantar e a preguiçosa, Coqueiro, entrepondo-se-lhe
no caminho, meteu-lhe na mão uma folha de papel dobrada sobre o comprido,
e disse-lhe em tom seguro e repassado de urgências: – É uma nova continha
de suas despesas. O amigo desculpe, mas, se me pudesse pagar isto até amanhã,
não seria nada mau, porque tenho de satisfazer os fornecedores. – Havemos
de ver… balbuciou o hóspede, correndo pelo papel os olhos meio fechados.
O credor advertiu-o em voz baixa de que havia já esperado muito e que o Se.
Pereira, pelos modos, não se lembrara dele. – Tem toda a razão… concordou
o dorminhoco. – Juro-lhe, porém, que me não esqueci do senhor. Ainda não recebi
dinheiro, sabe? Sim , retorquiu o outro – mas o senhor também sabe que eu
preciso fazer face aos gastos da casa e … – Tenha paciência … bocejou
o Pereira. – Tenha um pouco de paciência. Hei de cuidar disso. – Mas é que
não posso esperar mais, Sr. Pereira! – Não há novidade ! Pode ficar descansado,
que não há novidade, respondeu aquele espreguiçando-se, já importunado com
o transtorno de não se poder estirar na cadeira. E entregou a conta a Lúcia,
que se aproximava em ar de curiosidade. Feiro isto, deixou-se cair na preguiçosa,
inalteravelmente, com nos outros dias. Daí a pouco ressonava. A mulher leu
a conta de princípio a fim, sem um gesto, nem uma palavra; depois, ainda em
silêncio, dobrou-a de novo e meteu-a no seio.

No dia seguinte pela manhã o copeiro, apresentava-se-lhe no quarto, exigindo,
em nome do patrão, a resposta do pedido que este na véspera fizera ao Sr.
Pereira. Lúcia, molestada com semelhante pressa, respondeu de mau humor que
– mais tarde daria uma resposta… O marido ia sair para buscar dinheiro!
O criado retirou-se, e ela foi logo, muito zangada, despertar o Pereira com
um violento empuxão. – Você é uma lesma! Exclamou. – Põe-se a dormir desse
modo, e cá fico eu para me haver com as contas! – Que contas?… perguntou
o homem, esfregando os olhos pachorrentamente e escancarando a boca. – Que
contas! Você sempre é um traste muito inútil! – Deixa disso, nhanhã… – Que
contas! A conta da casa! A conta do que você e eu comemos! – Havemos de ver
isso… – Havemos de ver, não! que é preciso resolver qualquer coisa! O homem
quer dinheiro; não me larga a porta! E, puxando-o por um braço: – Ande! Mexa-se!
Pereira não fez caso e tornou aninhar-se na cama, encolhendo as pernas e os
braços. – Você não ouve?! Berrou a mulher, desfechando-lhe um murro nas costas.
– Ë preciso que lhe dê com os pés para o acordar, seu burro?! – Não me
amole! Tartamudeou ele, sem voltar o rosto. Lúcia, que já se não podia conter,
saltou-lhe ao gasganete e encheu-lhe a cara de bofetões. – Pereira ergueu-se
num pulo, e, muito estremunhado, olhou sério para a mulher: – Ora , vamos
lá!… disse, e começou a espreguiçar-se, retesando os braços. – Diabo do
sem-préstimo! Resmungou a outra com desprezo, enviesando a boca e cuspindo
o olhar por cima do ombro. – Não têm um vislumbre de brio naquela cara ! –
Já trouxeram o café?… perguntou o sem-préstimo, cuidando de lavar o rosto
e os dentes. Lúcia respondeu-lhe com uma injúria e saiu do quarto arremessando
a porta; mas reveio logo e gritou em tom de ordem: – Vista-se já e ponha-se
em caminho, que é preciso arranjar dinheiro! Pereira vestiu-se demoradamente,
sempre abrir a boca, depois seguiu para o primeiro andar no seu passo miúdo,
os braços a jogarem-lhe num movimento pendular, como se os tivesse seguros
à omoplata apenas por um atilho. Tomou o seu café com leite e o seu pão com
manteiga e foi espaçar para a chácara, à espera do almoço. A mulher segui-o
e, logo que o alcançou, bateu-lhe no ombro: – Então você não se avia, criatura?!
Você não vê que o homem quer dinheiro e que estamos ameaçados de ir para o
olho da rua, seu Pereira?! – Mas, que hei de eu fazer, nhanhã?… – Ponha-se
em movimento! Vá aos seus parentes, vá aos seus amigos, vá ao inferno! Contanto
que arranje alguma coisa para tapar a boca daquele judeu! Não me volte de
mãos abanando, porque não lhe abro a porta do quarto, percebe?! Você bem sabe
que, se bem o digo, melhor o faço! E, vendo que Pereira não se mexia: – Então!
– Mas eu hei de sair sem almoçar, nhanhã?… – Pois vá lá! Almoce. Mas é engolir
e pôr-se a andar! – E dinheiro para o bonde? – Que? Você já gastou os cinco
mil-réis que lhe dei anteontem?! Pereira explicou que os havia gasto contra
a vontade, porque uns sujeitos o obrigaram a pagar cerveja e doces numa confeitaria.

– Você é um palerma! Disse a mulher. – Tome lá mil e quinhentos. Mas veja
agora se também os vais comer de doce!

* * *

Desde a véspera, entretanto, que Amelinha não se despregava do lado de Amâncio,
senão quando este dormia ou quando precisava ficar só; levou a costura para
o segundo andar, e pôs-se a coser no corredor, assentada à porta do quarto
do seu doente.

Uma esposa não se mostraria mais afetuosa; ao menor gemido do enfermo, corria
logo para ele, sempre meiga, sempre desvelada. Procurava ajudá-lo a suportar
a monotonia da moléstia; procurava animá-lo, distraí-lo, fazendo por Ter graça,
recorrendo, para o entreter, ao que sabia de mais espírito. Seu pézinho, leve
e calçado de duraque, parecia não tocar no chão; seu rostinho, mimoso e fresco
como um jambo, não se contraía ao fartum insalubre das variolóides.
E dir-se-ia que tudo aquilo não visava ouro interesse que não fora a mesma
caridade e a mesma dedicação. Nem uma queixa, nem um suspiro, nem um olhar,
nem um gesto, que traíssem a esperança de recompensas futuras, era o bem pelo
bem.
O provinciano, muito desvigorizado com a moléstia, sentia perfeitamente que
os lúbricos impulsos, que dantes lhe inspirava a graciosa rapariga, iam-se
agora destecendo e dissipando à luz de um novo sentimento de gratidão e respeito.
A primitiva Amélia desaparecia aos poucos, para dar lugar àquela extremosa
criança, àquela irmãzinha venerável, que lhe enchia o quarto com o frescor
balsâmico de sua virgindade e rociava-lhe o coração com a trêfega mimalhice
de sua ternura.
Nos momentos da comida é que se podia ver. Amâncio tinha grande inapetência
e torcia o nariz aos alimentos; mas a pequena metia-o em brios, chamando-lhe
piegas , fracalhão, dizendo que ele “parecia um neném e que precisava levar
uns petelecos para tomar juízo”.
E atava-lhe ao pescoço o guardanapo, esfriava-lhe a canja, soprando amorosamente
as colheradas, e, para lhe provar o apetite, paparicava também o que vinha
e, com estalinhos de língua, dizia e repetia que estava tudo muito bom e muito
gostoso.
Ele, às vezes, já se fazia mais doente e mais carecido de cuidados, só para
desfrutar os mimos da enfermeira.

XII

Dias depois, o médico declarou que Amâncio estava livre do maior perigo.
– As bexigas foram boas e secariam prontamente, sem quase deixar sinal na
pele.
Dentre em pouco abria-se a janela do n.o 6 , recolhia-se a ultima roupa que
servira à moléstia, defumava-se o quarto pela última vez, e o mimalho entrava
afinal na convalescença.
Logo porém, que deixou a cama , apareceram-lhe dores reumáticas na caixa do
peito e nas articulações de uma das pernas. Era o sangue de sua ama – de-
leite de leite que principiava a rabear. Bem dizia outrora o médico a seu
pai, quando este a encarregou de amamentar o filho.
E, pois, vieram os remédios para a nova enfermidade, e Amâncio, a despeito
de sua impaciência para ganhar a rua, continuou encurralado na casa de pensão
e submetido a uma dieta rigorosa. Sabino, que o Campos lhe remetera na véspera,
tomou conta do lugar que o copeiro exercia durante a noite.
Nesses dias , Lúcia muito pouco se chegou para o estudante, receava com isso
provocar. da parte do Coqueiro alguma violência contra si.- Ah! ela bem sabia
que era guardada à vista; toda aquela família já nem ao menos disfarçava a
vigilância em que a trazia; andavam todos eles, desde a velha até ao pequeno,
a lhe fariscar os passos, descaradamente empenhados em afastá-la o mais possível
de Amâncio. – Súcia de bandidos!
Com efeito, nunca mais lhe foi possível até aí fazer ao rapaz uma ou outra
visita noturna. Mas, justamente no dia em que se arejou o quarto, estava Amâncio
estendido na cama, a reler um esfacelado volume do Alencar, quando de repente
se abriu a porta e Lúcia surgiu , aflita e apressada, correndo para ele num
formidável alvoroço.
Seriam mais de onze horas da noite e a família do Coqueiro estava já recolhida.

Amâncio assustou-se com a visita, mas nem por isso a estimou menos.
Quis, antes de tudo, saber que terrores eram aqueles.
– Que diabo havia acontecido? – Mas se alguma coisas ruim acabava de suceder
a Lúcia, era, com certeza, por castigo, que ela estava uma ingrata muito grande;
já não aparecia aos pobres; naturalmente tinha medo das bexigas!…
– Oh! não! não! vozeou a ilustrada senhora, agarrando-lhe ambas a mãos com
transporte. – Não! Tudo que vier de ti, Amâncio, tudo que te pertence e diz
respeito é bom e sublime para mim!
E correu de novo à porta, certificou-se de que a casa estava bem sossegada,
e tornou para junto do estudante, apalpando dos lados e circunvagando olhares
inquietos.

Sabino já se havia esgueirado discretamente pelo corredor; enquanto o senhor-moço,,
ainda meio aturdido com a agressão melodramática de que fora vítima, apanhava,
uma por uma, as folhas do Alencar, que se tinham espalhado aos pés da cama.

– Pois olhe, ninguém o acreditaria!… disse ele voltando afinal, do seu espanto
e pousando o livro sobre o velador.
– Porquê? Interrogou Lúcia muito séria e muito dura defronte do rapaz.
– Ora, Porquê!…Porque já não há quem a veja! Porque a senhora arribou deste
quarto, como se aqui alguém lhe quisesse fazer mal!
Ela respondeu com um sorriso de tristeza e um resignado sacudimento da cabeça.

– Os fatos, pelo menos, assim o acrescentou o doente.
– Mas, valha-me Deus! Tornou a outra. – Pois não vês a perseguição que sofro
aqui por tua causa? Não vês que sou espiada, seguida e vigiada a todos os
instantes?! Não vês o ciúme que Mme. Brizard, o Coqueiro, a tal Amélia, Nini,
o diabo! Afetam por ti?!
– O ciúme?…perguntou Amâncio , deveras espantado. – Mas o ciúme, como? Por
quê?
– Criança!…disse ela. E passou a mão na testa.- Estás na aldeia e não vês
as casas!
– Eu?!
– Sim, tu!
E, assentando-se à beira da cama, para lhe ficar mais perto, continuou, diminuindo
o tom da voz:
– Pois não percebes, filho, que toda esta gente quer fazer de ti uma propriedade
sua; que esta gente te considera um tesouro precioso e teme que lho furtem?
Não percebes, meu Amâncio, que há aqui um plano velho, tramado para te fazer
casar com Amelinha, isso porque és rico e, na tua qualidade de homem de espirito,
pouca importância ligas ao dinheiro?!…
– Não! Dou-te a minha palavra em como, até aqui nada percebia de tudo isto!…

– Pois fica, então sabendo que há uma grande conspiração contra ti ou, por
outra, contra os teus bens!
– Ora essa! disse ele em voz baixa.
– Todos esses carinhos que eles ostentam, todos esses cuidados e desvelos
artísticos, são laços armados à tua ingenuidade!
– Estão bem arranjados!…respondeu Amâncio, – se esperam que eu case com
Amelinha!
– Não sejas hipócrita!…acudiu a outra. – Tu gostas dela; não negues.
– Ah! gosto, não nego. Mas gosto, sem intenção de espécie alguma; gosto, coitada,
porque ela nunca me fez mal, porque até lhe sou grato aos seus obséquios!
Mas daí para casar!…
E, depois de um assovio de grande esperteza:
– Não é o meu tipo, o meu ideal! Demais, ainda não penso em casamento, nem
sei se algum dia pensarei nisso!
– Por quê?
– Ora, respondeu ele – não vale a pena a gente se casar! Há por aí tanta desgraça,
tanta decepção que, para falar com franqueza, não tenho ânimo…
– Julgas assim tão mal as mulheres?…
– Com franqueza é exato, filha! Não digo que não haja mulheres virtuosas;
isto, porém, é raro!…Prefiro não arriscar!…
– Desconfio de tanto ceticismo na tua idade!
Ele agitou os ombros.
– Um homem com esses princípios é incapaz de amar…ajuntou ela.
– Tens em mim a prova do contrário…retorquiu Amâncio sorrindo.
– Em ti?…
– Sim, e sabes disso perfeitamente!
– Disso, o quê?
– Que te amo…
– Não creio…
– Nesse caso, o cético não sou eu!
– Se me amasses, já mo terias provado…
– Provado?
– Está claro. Não acredito nesse amor cauteloso e metódico, que de tudo se
arreceia, que se não quer expor, que tem calma para medir todas as conveniências,
que teme os olhares, os ditos, as considerações de todo o mundo, quer vem
finalmente muito mais da cabeça que do coração!
– Não acreditas, então , que eu te ame?…

– Não, decerto! Nem te crimino por isso!…És ainda muito criança, para sentires
o verdadeiro amor, a verdadeira paixão. Essa que não conhece obstáculos; que
tudo pode e tudo vence; que é capaz de todos os sacrifícios, sejam do bem
ou sejam do mal; essa que levanta os grandes crimes ou os grandes heroísmos!
Amar, tu! E porventura saberás ao menos o que é o amor?! Algum dia experimentaste,
por acaso, o ciúme, o desespero, a loucura, a que nos conduz o objeto amado?
Não! Não queiras amesquinhar o único sentimento que até hoje se tem conservado
puro! Não queiras amesquinhar a coisa única respeitável que resta sobre a
terra! Para que possas falar a esse respeito, primeiro é necessário que ames!
É preciso que dês alma, vida , futuro, esperanças, tudo , a uma mulher! é
preciso primeiro que te esqueças de teus sonhos mais queridos, de tuas melhores
aspirações, para só cuidares nelas, viveres delas e para ela! Então, sim!
eu acreditaria em ti!
E Lúcia apoderou-se novamente das mãos de Amâncio, e as palavras borbulharam-lhe
com mais febre:
– Amor é o que sinto por ti, entendes?! Amor é o que me faz esquecer a minha
responsabilidade, o meu destino, o meu dever, para estar aqui a teus pés,
alheia a tudo, esquecida do passado, descuidosa do futuro; só para te ver
, só para te ouvir, só para me saturar toda de tua presença!..
Entretanto… disse Amâncio, procurando afinar a voz pelo tom enfático com
que falava a outra, – entretanto, nunca me permitiste fruir contigo os verdadeiros
e mais saborosos proveitos do amor! Tiveste a cruel habilidade de transformar
um manancial de gozos em fonte perene de tormentos e dissabores! Se me amas,
digo-te eu agora, por que evitas a todo transe que eu vá além dos nossos beijos?…
Se me amas, por que impões o suplício do teu rigor? Ah! eu só acreditaria
na sinceridade de tais protestos se fosses generosa comigo….
– Não! não! contrapôs ela abraçando-o_ Nunca faltarei aos meus deveres! Nunca
trairei meu marido! Serei capaz de uma loucura; não, porém de uma infâmia!
Seria capaz de fugir contigo, abandonar tudo por tua causa; mas introduzir-te
covardemente na minha alcova, nunca! Aceitaria um crime, sim! mas havia de
aceitá-lo sob todas as responsabilidades, com todas as conseqüências que ele
viesse a produzir! Seria tua, mas não enganando a um outro; seria tua, mas
toda, inteira, lealmente! Abandonaria por tua causa meu marido; antes, porém
de o fazer, dir-lhe-ia com franqueza: “Fulano! Amo um outro Não posso continuar
ao teu lado, sem que te engane todo os dias e a todos os instantes! Por isso-
vou! Amaldiçoa-me , se quiseres, mas não te perturbes a minha felicidade”
Deixaria de ser esposa, para ser concubina! Trocaria meu nome, minha posição,
por algumas horas de delírio, por algumas horas de sonho; mas, em todo o caso,
a consciência nunca me acusaria, o coração jamais se teria de maldizer!
– Vês?! Disse ela, esfolegando cansada de falar. – É por isso que até hoje
me tenho portado deste modo contigo; é por isso que domo os meus impulsos
e os meus arrebatamentos! – Sou de outro, não me possuo, não posso dispor
disto!
E sacudia todo o corpo, com uma obstinação provocadora e canalha.
Amâncio olhava para ela , mordendo os beiços.
– Se é verdade que me queres possuir…disse a intransigente, depois de uma
pausa em que se ouvia a respiração dos dois. – Arranca-me das mãos de meu
marido e leva-me para onde bem quiseres, faze de mim o que entenderes! Serei
tua amante, tua companheira, tua escrava; serei tudo que ordenares, contanto
que eu já não pertença a nenhum outro, contanto que eu tenha comprado com
o risco de minha vida a felicidade de nós ambos!
E Lúcia, agitando romanticamente os cabelos, que ela por cálculo trazia soltos
essa noite, perguntou com ímpeto:
– Compreendes agora a minha reserva?! Compreendes que , apesar de minhas recusas,
eu te adoro, meu Amâncio, meu amor, minha vida?!
Entretanto, acrescentou ela, quando se convenceu de que Amâncio não queria
cair no laço – tenho fatalmente de abafar todos os meus sentimentos, tenho
de calcar todos os meus desejos, porque amanhã nos separamos.
Amâncio ergueu-se, pasmado.
– Como nos separamos?…interrogou.
– Eu amanhã me retiro desta casa…esclareceu Lúcia, sem erguer os olhos.
– Vou, e ainda nem sei para onde! Mas, não poso deixa de ir: manda-me a dignidade
que aqui não fique nem mais um instante!
– Como assim? Explica-te!
– Oh! não me perguntes nada! Não me perguntes nada, porque, só o que te posso
afirmar é que esta súcia…E indicava o andar de baixo com um gesto trágico.
– Esta súcia, receosa de que eu te dispute a Amelinha, obriga-me a sair, obriga-me
a separa-me de ti! Ah! os miseráveis sabem o quanto eu te amo, meu Amâncio!
Temem que eu seja um estorvo ao teu casamento com ela.
– Mas, filha, como te podem eles constranger a sair?…
– Não me obrigues a falar, por amor de Deus! Eu não quero, não devo dizer
mais nada!

– Ora1 Isso não é generoso de tua parte! Se não podes usar de franqueza,
para que então me excitas deste modo a curiosidade?
– Não! Não te poso dizer mais nada! Repele-me, se assim entendes, manda-me
embora, mas, por piedade, não me obrigues a corar em tua presença!..
– Corar em minha presença?…Não te entendo , filha! Fala por uma vez. Abre
o coração!
– Nunca! Nunca!
– Mas é que tu me torturas Lúcia!
E acariciando-a:
– Vamos! Não sejas criança, fala com franqueza…Dize o que te fizeram! Não
acreditas então que sou teu amigo? teu amiguinho? Não crês que representas
em minha vida uma preocupação constante, um sonho, uma esperança?…
– Sim, sim, acredito, meu amor, mas não me obrigues a tratar de coisas, nas
quais ainda não tenho o direito de falar!…
– Ora! Que segredo pode ser esse, tão negro, tão repugnante, que não mo queiras
dizer?…É preciso que eu mereça muito pouco a tua confiança!..
– Não, não é isso, mas é eu me falta o ânimo para confessá-lo…Mudemos de
conversa….
– Não queres dizer? Bem! Acabou-se!
– Oh! não me fales desse modo, meu querido!
– Então dize o que é.
– E prometes que não me acharás ridícula?…prometes que a revelação do que
te vou dizer não me amesquinhará aos teus olhos?…
– Juro!
Lúcia tirou uma carta do seio e entregou-a ao estudante
Logo que este principiou a leitura, ela cobriu o rosto com as mãos, como para
esconder a vergonha.
Amâncio leu o seguinte em voz baixa:
” Sr.ª D. Lúcia Pereira.. Há quatro dia que entreguei a seu marido uma Segunda
conta do mês passado e deste mês, e, visto que até agora não tenho recebido
senão desculpas e promessas, tomo a liberdade de participa-lhes que, de hoje
em diante, não posso continuar a lhes fornecer comida e que preciso urgentemente
do cômodo ocupado pela senhora e seu marido. Espero, pois, que até amanhã
esteja o quarto n.º 8 desembaraçado e a minha conta selada e assinada pelo
Sr. Pereira; sem o que, pesa-me dizê-lo, não consinto que V.S.as levem consigo
a sua mulata, que é o único bem de que posso lançar mão para garantir a dívida

Estava assinado por extenso o nome de João Coqueiro.
Amâncio dobrou a carta silenciosamente, ao passo que Lúcia continuava a esconder
o rosto.
– Em quanto importa?…perguntou ele depois.
Ela, conservando uma das mãos nos olhos, tirou com a outra a conta do seio,
e passou-lha, sem dizer nada.
– “Quatrocentos e sessenta mil-réis”, leu o moço para si. E fez um trejeito
com os olhos.
Lúcia, ao lado, soluçava, sempre com o rosto coberto.
Amâncio pensou um instante, e disse:
– Não te aflijas…Eu poso, se quiseres, arranjar o dinheiro para amanhã…

Ela, então , descobriu a cara e, sem uma palavra, abraçou-se ao rapaz e começou
a chorar.
– E hoje, perguntou ele, quando Lúcia já se dispunha a sair – hoje mereço
um beijo?…
Ela correu para Amâncio, sorrindo, e com os olhos fechados, estendeu-lhe os
lábios.
O estudante, com as duas mãos abertas, segurou-lhe a nuca e principiou a sorver
o “seu beijo”, demoradamente, voluptuosamente, como se estivesse bebendo por
um canjirão.
Lúcia, porém, ao perceber que a coisa se demorava muito, arrancou a cabeça
das mãos do rapaz e fugiu.

* * *

As nove horas da manhã subseqüente, voltava o Sabino da casa do Campos com
a resposta de uma carta em que o senhor-moço pedia o dinheiro necessário para
satisfazer as dívidas de Lúcia.
João Coqueiro ficou assombrado quando recebeu a quantia; correu logo em busca
da mulher.

– Sabes? Disse assim que a viu. – Pagaram ?
– Hein?! Fez Mme. Brizard, com espanto. – Pagaram?! Tudo ?!…
– Integralmente! Cá está o cobre!
E, depois do silêncio da admiração:
– E que te parece, a ti, hein, Loló?!..
– Parece-me bom… a metade está feito; agora já não se trata de receber-lhe
a conta, é só de os pôr fora de casa?
– Sim … mastigou o marido.- mas agora também é mais difícil fazê-lo desarvorar!
Já não temos um pretexto para isso!…
– Pretextos não faltarão… respondeu a francesa, e acrescentou: – O que me
faz cismar é este dinheiro arranjado assim à última hora… porque eles, ainda
ontem, estavam bem apertados e o Pereira não arredou o pé de casa durante
o dia!
O marido refletiu um instante, e depois exclamou, com vislumbres de quem se
sente roubado:
– Ora, querem ver que aquela raposa arrancou estes cobres ao Amâncio?!…

Mme Brizard confirmou alvitre com um gesto de cabeça.
– E olha que não é outra coisa! Repetiu o Coqueiro. – Que hoje o Sabino, desde
muito cedo, tinha já que fazer à rua!
– Ora essa!… resmungou a Brizard, indignada e ressentida, como se aquele
desfalque na carteira do estudante lhe trouxesse um prejuízo imediato.- Ora
essa!… sempre se vêem coisas neste mundo !…
– Mas deixa estar que hei de saber de tudo!… Prometeu o locandeiro.
E , com efeito, daí a pouco o próprio Sabino lhe confessava que fora pela
manhã à casa do Campos levar uma carta e que voltara com outra, recheadinha
de dinheiro em papel.
O locandeiro revoltou-se, mas a usa indignação subiu verdadeiramente ao cúmulo,
foi quando lhe constou que o bom do Amâncio para ter ocasião de estar mais
tempo com Lúcia recorria a todos os meio e modos de afastar Amélia do quarto.

– Diz que não quer ser importuno ,contou a rapariga, – Que já basta os incômodos
que me tem dado, que não se acha com o direito de fazer de mim uma irmã de
caridade, e de obrigar-me a suportar as suas amolações! E que eu viesse aqui
para baixo rir e conversar com os outro, que ele teria nisso muito mais prazer.

– E tu, que lhe disseste? Perguntou o irmão.
– Eu disse que sentia o maior gosto em prestar ao Sr. Amâncio aquelas insignificâncias
de serviços; que, se os fazia, era por motu próprio!
– E ele?
– Ele disse que não, que não admitia, e que ficava até muito contrariado,
se eu não viesse embora!
– Vês?! Perguntou João Coqueiro à esposa, apontando para a irmã.- Vês?! Tudo
isso é obra da Sra. Lúcia!.
E, depois de uma pausa aflita:
– Aquela mulher não nos pode ficar em casa! Haja o que houver é preciso que
ela se vá daqui quanto antes!
E deu a sua palavra de honra em como havia de pôr cobro a semelhante patifaria.

Não sossegou essa noite. Enquanto os mais dormiam, andava ele lá por cima,
a farejar nas trevas, grudando-se contra as paredes e escondendo-se pelos
cantos.
Passou assim algumas horas; mas afinal, viu Lúcia sair do quarto, pé ante
pé, atravessar a medo o corredor e sumir-se às apalpadelas, na porta do n.º
6 .
A sua primeira idéia foi a de chamar o Pereira e mostrar-lhe a mulher no latíbulo
do amante, mas considerou que o homem seria capaz de romper com ela e, nesse
caso, a ligação de Lúcia com o provinciano tornar-se-ia inevitável. – Nada!
pensou ele .Deixemo-nos disso.
Mas, também, não convinha esperdiçar uma ocasião tão boa para desmascarar
a tal sujeira.
Encaminhou-se, pois , na direção do quarto do estudante. Lúcia, ao sentir
que alguém se aproximava, correu a fechar a porta por dentro, e fez sinal
de silêncio ao enfermo.
Coqueiro parou defronte do n.º 6 e bateu.
– Quem é? Perguntou Amâncio, no fim de pequena pausa, com a voz levemente
alterada.
– Sou eu, disse o outro. Precisava dar-te duas palavras… como vi luz no
quarto…
– Desculpa ! respondeu o doente. – Mas agora não me posso levantar. Até logo!

– Boa noite! Resmungou o dono da casa, e afastou-se.
Lúcia fingiu-se muito assustada com aquilo: – O Coqueiro, se veio ali, foi
para mostrar que sabia de tudo! Naturalmente espiara pela fechadura!

E pendurou logo uma toalha na chave.
– É o que se chama ter fama sem proveito!… Observou Amâncio, a quem as negaças
da mulher do Pereira já impacientavam.
– Está em tuas mãos!… Volveu ela. – Já expus com franqueza as circunstâncias…

– Tirar-te do marido…
– Está claro!
– Isso por ora é impossível!… Mais tarde, não digo que não, mas por enquanto…

– É porque não me amas, disse a ilustrada senhora, abaixando os olhos.
– Se te amo, minha vida! Se te amo!…
E ameigava-a, procurando beijá-la.
Ela fugia com o rosto, dizendo aflitivamente que preferia nunca o ter visto.
“Antes de conhecê-lo, ainda conseguia suportar o marido abominável a que a
prendera o destino, mas, depois que fantasiara a possibilidade de viver com
Amâncio, de possuí-lo, todo, sem que outra o disputasse, não mais podia entestar
com a miserável existência que levava e com os dilacerantes sacrifícios que
lhe cumpriam!”
Dito este fraseado, foi-se do quarto , como das outras vezes, a fazer-se rogada,
a medir os beijos que dava, a prometer que não voltaria mais, se Amâncio persistisse
nas costumadas exigências.
– Ora bolas!… praguejou este, quando se achou só. – Desta forma é melhor
mesmo que não venha! Põe-me neste estado e afinal musca-se, ainda por cima
emburrada! Gaitas!
Mas a idéia de que aquela resistência talvez não durasse mais do que o tempo
da moléstia o consolava em parte.- Sim, porque, em ficando bom, as coisas
seriam de outro feitio! Tinha graça que ele estivesse a pagar contas de quatrocentos
e tantos mil-réis, só para desfrutar a certeza de que a Sra. D. Lúcia o amava
com todo ardor de que é capaz uma alma pura e apaixonada! Qual! Por semelhante
preço preferia não ser amado!
E adormeceu, impaciente por sair da moléstia, e entrar no gozo da felicidade
que ele acabava de pagar adiantado, como se abrisse para todo o ano uma assinatura
de amor.
A ilustrada senhora conseguira o que esperava: as suas negaças faziam-na mais
desejada pelo rapaz e davam-lhe, aos olhos deste irresistíveis fascinações
de coisas proibida.
Certas mulheres, quando se negam, estão recuando para melhor armar o salto
sobre a presa.

* * *

Logo pela manhã do dia seguinte, já o Coqueiro se apresentava no quarto do
provinciano, mas com o aspecto muito ressentido, os gestos duros, o olhar
cheio de recriminações.
– Então, ontem à noite, tinhas aqui a Lúcia?…inquiriu de chofre, depois
de cumprimentar Amâncio secamente.
O interrogado fez uma cara de espanto.
– Não podes negar! Eu a vi sair!…
– Ë exato, respondeu o doente, franzindo as sobrancelhas.
– Hás , porém de permitir que eu te diga que andaste muito mal!…repontou
o Coqueiro. – Tens de concordar que eu não posso, nem devo consentir em casa
semelhante coisa!
E foi até a janela, olhou a rua pelas vidraças. Amâncio não dava uma palavra

O outro voltou, muito comprometido.:
– Isto aqui é uma casa de família! Sabes perfeitamente que temos conosco uma
menina solteira, – uma virgem! Não é por mim, nem por ti, nem tampouco pela
Lúcia; mas é por ela, sebo! por – minha irmã! – a quem sirvo de pai! É por
minha mulher, é por minha enteada e pelo menino, é pelos hóspedes, enfim!…

– Pois acredita que não houve nada demais!…balbuciou Amâncio.
– Não, filho, tem paciência! Lá fora o que quiseres, mas daquela porta para
dentro, não admito, nem posso admitir!…E passeando pelo quarto com as mãos
nas algibeiras: – Que diabo! Eu te preveni!…
– Ora o quê! Resmungou Amâncio , indignado com a hipocrisia do colega, mas
sem coragem para dizer o que sabia a respeito dele e dos costumes da casa.
– Não abro o exemplo!…acrescentou.
– O que queres dizer com isso?
– Quero dizer que sei, tão bem como tu, que aqui nem todos são santos!…

– Não te percebo…-
– E é melhor mesmo justamente que não percebas

Mas , como o outro ainda se quisesse fazer de desentendido, ele declarou,
frisando as palavras, que nem sempre ficava a dormir no quarto durante a noite
e que então enxergava, às vezes…,melhor do que mesmo de dia…E falou indiretamente
nas entrevistas do médico do n.º 11 e no que sabia do próprio Coqueiro com
referência à mucama.
– Olha! Concluiu: – O que te posso afiançar é que a mulher do Pereira só vem
aqui ao quarto depois que me acho doente, e, longe de ser com mau fim, coitada,
é até com muito boa intenção! – Entra, cavaqueia um pouco, dá-me a tomar o
remédio e assim como veio se vai embora, entendes tu?!
– Não há dúvida…gaguejou o hoteleiro, cuja fúria se esvaziara de repente
às bicadas do outro, que nem um balãozinho de borracha. – Não há dúvida que
tu és incapaz de cometer qualquer leviandade dentro de uma casa de família;
mas, a questão são as aparências, são as más línguas, são os outros hóspedes!
Não os conheces, filho! Nenhum deles acreditará que Lúcia venha ao teu quarto
só para te dar o remédio e meio dedo da palestra!…Sei perfeitamente que
isso é exato, basta que o digas; eles , porém, não terão a mesma boa – fé!
Muito mais sabendo, como sabem, de quanto é capaz aquela sujeita! Logo quem!…

– Oh! interjeicionou Amâncio. – Uma senhora casada!…
– Casada o quê!…Da missa não sabes nem a metade!
– Então ela não é casada com o pereira?…
– Nunca o foi! Com ele, nem com pessoa alguma! Conheço até a mulher do Pereira,
a legítima, – uma velhusca, de óculos, gorda, com um olho agachado, cheio
d ‘água. Mora na Rua da Pedreira.
Amâncio estava tão pasmo quanto indignado; aquela denúncia do colega produzia-lhe
o mau efeito que experimentamos ao dar por falta do relógio. – Pois o demônio
da mulher nem ao menos era casada?!…Ele, então, que diabo de papel representara?!…

– Cínica! Disse em voz alta.
– Ora! Fez o outro. – Não trates de abrir os olhos e dir-me-ás depois as conseqüências!…

No Rio de Janeiro, prossegui- havia muito artista daquela força! Amâncio precisava
acautelar-se, se não queria ser esfolado completamente. Lúcia o que desejava
era agarrá-lo para amante: farejava-lhe os cobres! Ele, porém, que não fosse
tolo! Que se não deixasse visgar por uma tipa de tão baixa espécie!
O provinciano jurava que , até ali, jamais conseguira coisa alguma das mãos
dela.
– Isso sei eu!…Tornou o Coqueiro, com um riso de velha experiência, – isso
não é necessário que me digas, porque já conheço a tática das Lúcias! Negam-se,
fingem-se difíceis, para valer mais! Quer obrigar-te a cair, toleirão!
– Está bem aviada! Exclamou Amâncio, justamente como ainda na véspera havia
respondido à Lúcia, quando esta lhe falou a respeito de Amélia.
Ainda nesse dia o Coqueiro aproveitou a ocasião em que o Pereira fazia a sesta
e foi se entender com a Lúcia.
Disse-lhe o que sabia a respeito das visitas noturnas ao quarto de Amâncio
e declarou terminantemente que não estava disposto a consentir em casa semelhantes
escândalos. Ela que tivesse paciência, mas fosse tratando de fazer as malas
e cuidando de pôr-se ao fresco, se não queria sofrer alguma decepção maior!

A ilustrada senhora ficou lívida, e disparou sobre o locandeiro o mais terrível
dos seus olhares. Uma cólera massuda principiou a entupir-lhe a garganta.
– Não queria acreditar em tamanho atrevimento!
– Ë, gritou por fim, trincando as palavras. – Você põe-me fora de casa,
porque tem medo que eu lhe tome o amante da irmã!
– Insolente! Bradou o Coqueiro, avançando um passo.
– Não te tenho medo, ordinário! Retrucou Lúcia empinando o peito contra ele.
– Sairei daqui se bem quiser! Não te devo nada, entendes tu?! Nada!
– Ah! Não deve porque ele pagou!
– E que tem você com isso?! Que tem você com o dinheiro dos outros?! Ou, quem
sabe se a donzela da irmã passou-lhe procuração!…
Seja lá pelo que for! Eu é que não a quero aqui, nem mais um instante. É fazer
a trouxa e – rua!
– Também não preciso ficar nesse bordel! Exclamou ela, e rabanou com direção
ao segundo andar.
– Que diz você, sua aquela?! Assistiu Mme. Brizard, cortando-lhe o caminho.

– É isso mesmo! Respondeu Lúcia, escarrando no chão com desdém. E as duas
mulheres ficaram alguns segundos a olhar em silêncio uma para a outra, de
mãos nas cadeiras.
Coqueiro e Dr. Tavares meteram-se entre elas.
Lúcia subiu ao n.º 8, aprontou as malas num abrir e fechar de olhos, em seguida
vestiu-se para sair, e já de chapéu, a sombrinha na mão, o indispensável enfiado
no braço, correu ao quarto de Amâncio.

– Sabes? Bradou logo ao entrar, empurrando a porta com fúria. – Aquela bêbada
e o marido acabam de me enxotar daqui por tua causa! Têm medo que eu te coma!
Não posso ficar nem mais um instante! Desejo que me emprestes o Sabino!
– O Sabino estava às ordens, mas para onde se atirava ela com tanta precipitação?

– Não sabia! Havia, porém , de encontrar um canto, onde se metesse! Havia
de descobrir um buraco, ainda que fosse no cemitério!
E Lúcia levantou os punhos até às fontes como para se esmurrar, mas cobriu
o rosto com as mãos e abriu num pranto muito nervoso. Era a reação que chegava.

Amâncio saltou da cama e correu para ela. Desembaraçou-a do chapéu, da bolsa
e da sombrinha e puxou-a depois sobre si.
– Não te consumas…disse – não te mortifiques desse modo.
– Sou uma desgraçada! respondeu a mulher, assoando as lágrimas . – Nada se
cumpre do que eu desejo! Nada! O melhor é dar cabo desta vida miserável!
E soluçava com o rosto escondido no peito do rapaz.
Na febre daquele choro agitado, os seus movimentos transformavam-se em carícias.
Amâncio sentia-lhe as lágrimas quentes e o contacto carnal dos lábios, que
elas ensopavam. Os desejos assanhavam-se-lhe de novo pelo corpo, como insetos
que voltam com o calor.
– E tornava a cobiça-la com os mesmos ardores primitivos.
Não me queria separar de ti…queixou-se ela, afinal, virgulando as sua frases
com soluços suspirados. – Em ti havia firmado todas as minhas esperanças de
ventura, todos os sonhos de minha vida! Amava agora a existência, só porque
alguma coisa me fazia acreditar que ainda um dia seríamos felizes!
– E porque não havemos de ser?…perguntou Amâncio condolentemente.
– Ora!…prosseguiu ela, – tudo me persegue, tudo me sai contrário…Foi bastante
que eu te amasse, foi bastante pensar que poderíamos ser um do outro, para
que aqui se levantassem todos contra mim e ferissem a guerra que tens visto!

E, desagarrando-se de Amâncio, para segurar de novo a cabeça, num movimento
de embaraço doloroso:
Mas, imagina tu, que estou inteiramente sem recursos!…Tenho que fazer a
mudança e ainda não sei como pagar o carreto das malas!…Vê tu que situação!

Amâncio beijou-a na boca e perguntou se ela não lhe dava uma esperançazinha
para depois que se mudasse.
Lúcia respondeu que dava, não uma esperança, mas uma certeza”. E sem desprender
os lábios dos lábios do rapaz, afiançou – que lhe mandaria dizer por escrito
o lugar onde seria encontrada; e que ele fosse por lá as vezes que entendesse.
– Aí ao menos estariam livres do Coqueiro e das outras pestes!
– prometes então?…insistiu ele , procurando garantir o compromisso.
– Prometo, prometo o que quiseres, tudo! Disse ela, ainda chorosa.
Amâncio foi à algibeira do fraque, abriu a carteira. Havia trezentos mil-réis,
tomou uma nota de cem e entregou-a a Lúcia, dizendo com pesar que era o único
dinheiro que possuía na ocasião.
– Talvez te façam falta…considerou ela escrupulosamente, sem querer tocar
na cédula.
– Não! não! apressou-se a declarar o rapaz. – Desculpa não te poder ser mais
agradável.
Lúcia beijou-o de novo, e desceu enfim ao primeiro andar, acompanhada pelo
Sabino que já estava à sua disposição.
Ordenou ao moleque de buscar, num pulo, uma carrocinha, e logo que esta chegou
fez embarcar as malas e mandou chamar uma carruagem.
Enquanto esperava, reclamou a sua conta, atirou com o dinheiro sem olhar para
quem o recebia, embolsou o troco e, em seguida, foi acordar o Pereira.
– Onde vamos? Perguntou este entre dois bocejos, assim que a viu em trajes
de sair.
– Venha daí, homem! E deixe-se de perguntas!
Pereira levantou-se espreguiçando-se e acompanhou a mulher.
Esta o fez entrar na carruagem que já havia chegado, assentou-se junto dele
e disse ao cocheiro que tocasse par a Tijuca. Deu-lhe o número.
Era o número de uma outra hospedaria nas mesmas condições da que deixavam.
Lúcia, que já pressupunha aquelas rápidas mudanças, tinha, por cautela, uma
lista das principais casa de pensão da Corte e, à medida que se servia de
cada uma, riscava-a da coleção. A do Coqueiro era no rol a Sexta inutilizada
com o traço enérgico de seu lápis.
Entretanto, ia o Pereira silenciosamente se atufando nas almofadas e, aos
balanços monótonos do carro, procurava reatar o sono interrompido

XIII

A casa de pensão de Mme. Brizard sofreu muito com as variolóides de Amâncio.
Desmanavam-se hóspedes que era uma coisa por demais. O gentleman, o Piloto
e a pérola do n.º 9, “o estimável Melinho”, desde a fatal noite das cataporas,
não davam notícias suas; Fontes e a mulher sumiram-se logo no dia imediato,
e, por conseguinte, não metendo o tal médico do n.º 11, que já não aparecia
há bastante tempo, apenas seis hóspedes restavam dos quatorze primitivos.
E ainda mesmo destes seis nem todos eram aproveitáveis; porque o Paula Mendes
e mais a mulher levantariam o vôo, assim que lhes chegasse uma aragenzinha
de dinheiro, e o estafermo do n.º 7 também estava a se despedir por um daqueles
dias, não da casa, mas do mundo. Certos, só Amâncio, o guarda-livros, e o
esquisitão do Campelo que, fugindo ao pigarro do tísico, mudara-se para o
andar de baixo, mal pilhara um cômodo desocupado. Mme. Brizard estava, pois,
inconsolável. – Em sua vida de hospedeira jamais tivera um mês tão ruim! E
azoinada por essas contrariedades e já de natureza um tanto supersticiosa,
agora em tudo descobria sinais de agouro e motivos para desconfiança. – Pois
se até o ilustre Sr. Lambertosa, “o respeitável gentleman, a flor dos homens
finos, uma criatura tão cheia de circunspeção”, quem diria?…aproveitar ao
ensejo das bexigas para lhe passar a perna! E o Melinho? “estimável Melinho!
A pérola do n.º 9, o homem das frutas cristalizadas!” também não deixara as
suas contas em aberto?… Só o Piloto, o estúrdio, aquele de quem menos se
esperava, aparecera três dias depois da fugas, perguntando, ainda muito escabreado,
de quanto era a sua dívida. – É mesmo caiporismo! Gemia a francesa. O marido,
porém, soprava-lhe a coragem: _Ela que não desanimasse por tão pouco! Nem
tudo se perdera! Enquanto tivessem o Amâncio não se podiam queixar da sorte;
este valia por todos os outros! Mas o precioso Amâncio não estava também muito
satisfeito com a casa, talvez desconfiado que a esta coubesse em parte a responsabilidade
daquele maldito reumatismo que, ora parecia extinto e ora o obrigava a guardara
cama, tolhido de dores. A noite, quando lho permitiam as pernas, descia a
cavaquear na varanda com os senhorios. Agora os serões tinham um caráter mais
íntimo e eram freqüentemente animados com a presença de uma família, que voltara
às relações de Mme. Brizard depois de seis meses de inimizade. Tocava-se de
piano, jogava-se a víspora quase todos os dias e, às vezes, se dançava A casa
de pensão nunca ofereceu aos seus hóspedes um aspecto tão divertido; menos
para o rabequista, o Paula Mendes, que parecia cada vez mais triste e apoquentado
da vida. A circunstância de já não comer à mesa do Coqueiro obrigava-o a desperdiçar
muito tempo com o restaurante e dificultava-lhe a subsistência da mulher,
cujo mau humor ia azedando ao peso da tanta necessidade e de tanta humilhação.
O infeliz marido conseguiu afinal que ela fosse passar alguns meses na companhia
dos parentes em Niterói. Mme. Brizard, ao vê-la partir, receou a premeditação
de uma fuga e exigiu logo que o Mendes, para garantir a dívida, hipotecasse
o piano que tinha no quarto O pobre homem consentiu, sem dizer palavra, mas,
de envergonhado, deixou de aparecer nos serões da sala de jantar. E desde
então, por alta noite, quando toda a casa era silêncio, Amâncio ouvia no corredor
o som de passos trôpegos e um vozear confuso de alguém quer monologava..

* * *

A casa de pensão, definitivamente, ia se tornando insuportável ao estudante.
Não podia sair à rua; o médico, havia quase um mês, jurara pô-lo pronto em
quatro dias, se Amâncio não fizesse alguma extravagância; as conversa de toda
a família Coqueiro, à exceção de Amelinha, o enfastiava; a leitura muito pouco
o distraía, e, para complemento do enjôo, o maldito tossegoso do n.º 7, o
qual por caridade entregara ele ultimamente ao seu médico, parecia morrer
de cinco em cinco minutos e não lhe dava um momento de sossego.

Mas a causa principal desse tédio era, sem dúvida, a ausência de Lúcia. Desde
que ela se foi, o coração do rapaz turgia de saudade; longe de esquecê-la,
cada vez a desejava com mais sofreguidão. AS trevas da ausência faziam-na
destacar melhor e mais linda, como um fundo negro a uma estátua de mármore.
Sentiu sobressaltos deliciosos quando recebeu a primeira carta das mãos dela.
Era extensa, cheia de imagens poéticas e figuras de grande alcance amoroso;
terminava dizendo que” Amâncio, logo que pusesse os pés na rua, a fosse procurar”.
O endereço vinha à parte, num pedacinho de papel. E não poder ir quanto antes!…Que
espiga!, considerou ele, sinceramente penalizado. E cresciam-lhe os enjôos.
Só Amélia, com os estiletes da sua perceptibilidade feminina, consegui penetrar
no âmago daquelas tristezas, mas não se deu por achada e redobrou de desvelos
e meiguices para com ele. Amâncio, por mais de uma vez, beijou-lhe as mãos
suspirando que ela era o seu bom anjo, a sua consolação única no meio de “tantos
dissabores”! Assim se passaram quinze dias. O apaixonado já a tratava por
tu, por você e raras vezes por senhora. Era a piedosas Amelinha quem lhe arrumava
o quarto, quem lhe cuidava da roupa, e, já por fim,. Era até quem lhe levava
o cafezinho pela manhã. Mas não entrava, apenas metia o braço pela abertura
da porta que ficava sempre encostada, depunha cautelosamente a xícara sobre
soalho, e, se Amâncio ainda dormia, gritava-lhe no seu falsete aprazível:
– Preguiçoso, acorde! São horas! Depois, apanhava novamente as saias e descia
a escada, ligeira e sem rumor. Outras vezes, ao anoitecer, subia para lhe
pedir um livro emprestado, para saber se ele queria chá no quarto ou se preferia
descer à sala de jantar. Sempre havia um pretexto para lá ir e, depois de
lá estar, sempre arranjava um motivo de demora. Entretinha-se a ver o que
se achava sobre a mesas; examinava tudo; lia a lombada dos livros, e brincava
com um esqueleto que jazia pendurado a um canto do quarto. Amâncio, de uma
feita, não pôde deixar de rir, quando a encontrou muito espantada a examinar
as gravuras de um tratado fisiológico de Vernier. Estava ,porém , mais e mais
convencido de que toda aquela familiaridade e toda aquela confiança da rapariga
procediam do modo e das maneiras respeitosas e fraternais com que ele, até
ali, a tratara. E então fazia por domar os seus impulsos luxuriosos, receoso
de cair-lhe em desagrado. Verdade é que , em grande parte, contribuía para
esse estranho heroísmo do garanhão, não só a moléstia, como a ilimitada confiança
que, muito propositalmente depositavam nele o Coqueiro e a mulher. Se Amélia
e Lúcia trocassem os papéis, isto é, se aquela se negasse e esta se oferecesse,
é de supor que Amâncio desdenhasse a última e ambicionasse a primeira. Mas
o Sr. João Coqueiro, apesar de tão fino, não calculou que, em naturezas viciadas
como a de Amâncio, o mais forte estímulo para o amor é a proibição. Embalde
deixavam o rapaz horas e horas no salão, às voltas com a menina; embalde Mme.
Brizard lhe dava a perceber o quanto era ele amado pela cunhada; embalde lhe
chamava “coração de gelo”; embalde lhe preparava todos os laços. – Nada produzia
o efeito desejado; Amâncio tornava-se cada vez mais respeitoso e mais frio
em presença de Amélia. Era para desesperar! Uma ocasião, todavia, estava ele
no quarto, de costas para a porta e muito entretido a ler defronte o gás,
quando Amélia, pé ante pé, entrou sem ser sentida e, encaminhando-se contra
o moço, tomou-lhe a cabeça nas mãos e cobriu-lhe o rosto de beijos. Amâncio
quis prendê-la, mas a rapariga não se deixou enlear, e fugiu, como um pássaro
assustado.

* * *

O rapaz, então, nunca mais receou lhe cair em desagrado. Mas o demônio do
reumatismo lá estava erguido entre ele e a provocadora menina. A despeito
do tratamento, as dores recrudesciam-lhe de vez em quando e assanhavam-lhe
a bílis. Amâncio principiou a emagrecer, tomado de uma estranha prostração,
muito assustadora. O médico aconselhou-o, logo a que se mudasse para um arrabalde
de bons ares, como Santa Tereza, por exemplo, e esta notícia produziu enormes
sobressaltos na família dos locandeiros. Mme. Brizard parecia ter um filho
em risco de vida; Coqueiro declarou, cheio de dedicação, que não deixaria
o “pobre amigo ” ir assim desamparado para uma casa de saúde ou para um hotel;
Amelinha choramingava ao lado da cama do enfermo, e, quando se achava a com
este, beijava-lhe as mãos, afagava-lhe os cabelos e soluçava palavras de ternura.

Nesses dias Amâncio era o assunto obrigado das conversas da casa. À mesa
e durante os serões não se falava noutra coisa. Lembravam-se todos os expedientes:
– uma mudança geral da família; alugar fora uma casinha e levá-lo de passeio
até que se restabelecesse; abandonar a casa de pensão ou entregá-la aos cuidados
de alguma pessoa de confiança. Nada, porém, ficava resolvido. A conversa turbinava
em volta do mesmo assunto, sem descobrir uma saída. Nini era a única que parecia
não se importar com tudo aquilo; de olhos muito abertos, sonâmbula, ouvia
em silêncio as conversas da família, apenas suspirando de espaço a espaço.
Não obstante, já uma noite estava a casa recolhida, quando despertaram alarmados
com o baque de um corpo que, entre medonhos gritos , rolava pela escada do
segundo andar. Acudiram todos, num levante. – _Que acontecera?! Que acontecera?!
Nini, coberta de sangue, jazia estendida sem sentidos ao sopé da escada. Rolara
vinte degraus e partira a cabeça em dois lugares. Ia fazer uma visita ao seu
esquivoso enfermo, mas no patamar da maldita escada, perdera o equilíbrio
e baqueara desastradamente. Tomaram-lhe as feridas a pontos falsos, friccionaram-lhe
o corpo inteiro com aguardente canforada e deram-lhe a beber cerveja preta.
Supunham, todavia, que amanhecesse morta. Foi o contrário: Nini melhorou muito
de seus antigos padecimentos e apresentou uma inesperada lucidez de idéias,
como há muito não possuía. – O choque fizera-lhe bem e não menos o sangue
que derramou da cabeça, afiançou o médico. Aquele trambolhão era uma providência!
À noite, conversou-se bastante a esse respeito; vieram as amigas de Mme. Brizard;
choveram os comentários sobre Nini; citaram-se as anedotas correlativas ao
fato, e Amâncio, que se achava então mais desembaraçado das pernas, entendeu
de sua obrigação fazer uma visita à pobre criatura. Nini estava melhor que
nunca, tranqüila; havia comido regularmente e mostrava-se até mais satisfeita
e mais comunicativa; ao dar, porém, com Amâncio, que entrara no quarto com
o seu risinho de boa amizade, abriu de repente a estrebuchar na cama, bramindo
impropérios e atassalhando as roupas. Para sossegar um pouco foi preciso que
o rapaz fugisse o mais depressa de sua presença. E, desde então, a desgraçada
não o podia ver, que lhe não voltassem logo as insânias e os frenesis Estabeleceu-se
um cuidado enorme para evitar que os dois se encontrassem. Já não era permitido
a Amâncio dar um passo fora do quarto, sem se precaver e indagar se Nini estava
por ali perto. O médico declarou que um novo encontro exacerbaria os padecimentos
da enferma e talvez lhe produzisse a loucura absoluta. Mme. Brizard pranteava-se
toda, quando lhe falavam na filha. – Era uma desgraçada, dizia, com os olhos
epispados pelo esforço que faziam – era uma grande desgraça! Antes Deus a
levasse logo para si, coitada! Um encontro, que Amâncio não pudera evitar,
a despeito de suas precauções, deixou Nini em tal excitação nervosa, que o
doutor proibiu que a consentissem fora do quarto. Ficou presa desde esse dia.
Malgrado a felicidade prevista ao lado de Amélia, o provinciano sentia já
bastante desejo de se tirar dali. – Assim estivesse bom! Campos, em uma visita
que lhe fez por essa ocasião, falou muito na generosidade com que se portara
a família do Coqueiro durante a moléstia do rapaz. – Que aquilo era uma fortuna
que nem todos abichavam! Citou principalmente as canseiras de Amelinha e concluiu
declarando que, segundo o seu fraco modo de pensar, Amâncio tinha obrigação
de fazer à menina um qualquer presente de valor. Sim! porque, no fim de contas.
Era muito difícil encontrar daquilo nas casa de pensão ! Outros foram eles,
que Amâncio teria de Pôr os quartos na rua! – Não. Inquestionavelmente, era
preciso dar o presente! E, depois de se concentrar numa pausa: – Aí uma jóia
de uns cem mil-réis…Que diabo! Esse dinheiro não o faria pobre… Mas o
estudante, em voz discreta e abafada, confessou ao Campos que a brincadeira
não lhe havia saído tão de graça, como parecia à primeira vista: Só no mês
passado gastara perto de seiscentos mil-réis, sem contar que o Sabino vivia
numa dobadoura, de casa para a botica e da botica para a casa, e eram remédios
para Nini, remédios para o tísico do n.º 7, água de flor de laranja para Mme.
Brizard, xaropes para o Coqueiro; um inferno!…E que toda essa droga caía
na sua conta! – E os dinheiros emprestados?…E as fitas, os botões, as linha,
as tiras bordadas, que Amelinha estava sempre a lhe pedir que mandasse buscar
nos armarinhos sem nunca dar dinheiro para isso?…Não! O Sr. Luís Campos
não lhe podia calcular o que havia! – Hoje cinco mil-réis, amanhã vinte! E,
no tirar

das contas, parecia que tudo isso, em vez de ser descontado, era aumentado
nas suas despesas!…Que tal?!- Recebera obséquios, sim senhor! mas também
puxara muito pela bolsa! Campos ignorava aquelas particularidades!…Mas entendia
que Amâncio, nem menos por isso devia menos obrigações à família do Coqueiro.
E ofereceu a “sua modesta choupana”, caso o estudante não quisesse continuar
ali. Amâncio rejeitou, um tanto por se lembrar das esperanças que embalava
a respeito de Amélia, um tanto por se não querer sujeitar ao regime do negociante
e um tanto por mera cerimônia. – Enfim, disse o marido de Hortênsia, despedindo-se-
acho que o senhor deve fazer o presente e tratar logo de sair daqui; já não
digo pela questão da despesa, mas porque lhe convém à saúde. Escolha um arrabalde
de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis; o médico afiançou-me que
o senhor tem ameaços de uma febre paludosa, e isso é o diabo na época que
atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é brinquedo!

* * *

Logo que constaram as novas disposições de Amâncio a respeito de mudança,
houve uma grande consternação por toda a casa. – Deixar-nos?! Exclamou Mme.
Brizard em sobressalto. – Não consentimos! Se para o seu completo restabelecimento
é necessário um arrabalde, vamos todos para o arrabalde! Só – isso é que não!
Seria até uma falta de humanidade, coitado! E formou-se um zunzum de opiniões.
Cochichava-se pelos cantos, em magotes, discreteando-se projetos em voz de
mistério, como se se tratasse de um moribundo. O Coqueiro andava de um para
outro lado, coçando desesperadamente a cabeça, gesticulando, à procura de
um meio de conciliar os seus interesses. Amélia, afinal, subiu ao quarto do
doente, e, com uma aflição a quebrar-lhe a voz, toda a tremer, os olhos úmidos,
perguntou se ele tencionava deixar a casa. Amâncio, ignorando o que ia por
baixo a seu respeito, trejeitou uns momos de indiferença e respondeu: “que
não sabia ainda ao certo…havia de ver!…mas o médico lhe ordenara que fosse…”
Como se só esperasse por aquelas palavras, o pranto da menina irrompeu violentamente.
Ele, meio surpreso, a tomou nos braços, indagando com ternura “o que significava
aquilo?…” Amélia não respondeu logo, mas depois, levantando a cabeça, que
lhe havia pousado no colo, exclamou entre soluços angustiados: – Não! não!
não hás de ir ! peço-te que não vás! O provinciano quis saber por quê. – Eu
te amo! disse ela, escondendo de novo o rosto. – Eu te amo e não posso me
separar de ti! Vejo a sua indiferença ! percebo que me detesta, mas que hei
de eu fazer?! Adoro-te, meu amor! – Ah! se eu não estivesse tão doente!…suspirou
Amâncio.

XIV

O tísico do n.º 7 há dias esperava o seu momento de morrer, estendido na
cama, os olhos cravados no ar, a boca muito aberta , porque já lhe ia faltando
o fôlego. Não tossia; apenas, de quando em quando, o esforço convulsivo para
atravessar os pulmões desfeitos sacudia-lhe todo o corpo e arrancava-lhe da
garganta um a ronqueira lúgubre, que lembrava o arrulhar ominoso dos pombos.
Contavam que expirasse a todo o instante. Amâncio cedera o seu moleque para
lhe fazer companhia, e dos brancos da casa era o único que lhe aparecia lá
uma vez por outra. Não é que o espetáculo daquele aniquilamento lhe tocasse
o coração, mas porque lhe mordiscava a curiosidade com esse frívolo interesse
de pavor, que nos espíritos românticos provocam os loucos e os defuntos. Uma
noite, seriam duas horas da madrugada, o tísico gemeu com tal insistência
que acordou o estudante. Amâncio levantou-se, tomou uma vela e foi até o quarto
dele. Ficou impressionado. O homem estava muito aflito, debatendo-se contra
os lençóis, no desespero da sua ortopnéia A cabeça vergada para trás, o magro
pescoço estirado em curva, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto;
sentiam-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira;
acusavam-se-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e
esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e,
pelo esvazamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de
papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas de dentadura.

Não podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético,
virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementícias, a porejar
um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele,
cor de osso velho, um brilho repugnante. Faltava-lhe o ar e, todavia, pela
janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite entravam impregnados
da música de um baile distante, e punham no triste abandono daquele quarto
uma melancolia dura, um áspero sentimento de egoísmo; alguma coisa da indiferença
dos que vivem pelos que se vão meter silenciosamente dentro da terra. O médico
recomendara que lhe dessem todo o ar possível e lhe fizessem beber de espaço
a espaço uma porção do calmante que lhe receitara. Uma lamparina de azeite
fazia tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente. Havia um cheiro
enjoativo de moléstia e desasseio. Sabino dormia a sono solto no corredor.
Amâncio acordou-o com o pé. – É dessa forma que velas pelo homem? perguntou.
O moleque ergueu-se estremunhado e deu alguns passos, esbarrando pelas paredes,
sem cair em si. – Vamos! Desperta por uma vez e dá-lhe o remédio! Ele parece
que tem sede! O tísico, ao ouvir a voz de Amâncio, principiou a agitar os
braços, como se o chamasse, grugulejando sons roucos e ininteligíveis. O estudante
não quis atender, mas o doente insistia com tamanho desespero, que ele, afinal,
vencendo a repugnância, se aproximou, a conchear a mão contra a língua trêmula
da vela. Apesar de seus fracos estudos de medicina, fazia-lhe mal aos nervos
aquela figura descarnada, que se exinania na impudência aterradora da morte;
faziam-lhe mal aqueles membros despojados em vida, aquele esqueleto animado,
que, na sua distanasia, parecia convidá-lo para um passeio no cemitério. E
o tísico rouquejava sempre, agitando os braços. O moleque, ao lado, derramava-lhe
colheradas de remédio na boca; mas o líquido voltava em fios pelo canto dos
lábios do moribundo e escorria-lhe ao comprido do pescoço e pela aridez escalavrada
do peito. Amâncio tomou-lhe um dos pulsos. O contacto pegajoso e úmido fez-lhe
retirar-lhe logo a mão com um arrepio. – Creio que não deita esta noite! Disse
ao moleque, afetando tranqüilidade, mas com a voz sumida e alterada. – Qual,
nhô, ele está assim a um ror de dias! Leva nisto e não decide!… – Não! Creio
que agora está morrendo… E olhou para o doente. Este espichou a cabeça e
respondeu que não, com um movimento demorado. – Ele ouviu?…Perguntou Amâncio,
impressionado com a intervenção inesperada do moribundo. A caveira tornou
a agitar-se nos travesseiros para dizer que sim. – Olha!…fez o estudante
arregalando os olhos. E aproximou-se da porta, recomendando ao Sabino que
se não descuidasse da pobre criatura; que se não pusesse a dormir como ainda
há pouco! O tísico, que havia serenado alguma coisa com a presença do rapaz,
principiou de novo a espolinhar-se, rilhando os dentes e agitando os braços
e as pernas. Amâncio, porém, não atendeu desta vez e saiu. O tísico rosnou
com mais ânsia, procurando lançar-se fora do leito, numa aflição crescente.
– Fica quieto! Gritou Sabino, obrigando-o a deitar-se.

* * *

Logo que o estudante se afastou com a vela, o quarto recaiu na sua dúbia
claridade modorrenta. Os ventos frios da madrugada continuavam a soprar. O
moleque foi até a janela, olhou a rua em silêncio, acendeu um cigarro e, quando
viu que o seu homem parecia serenado, tratou de reassumir o sono. O senhor
é que não podia sossegar, com a idéia naquele pobre rapaz, que ali morria
aos poucos, sem família, nem carinhos de espécie alguma; sem Ter ao menos
quem o tratasse, nem dispor de um amigo que se compadecesse dele. – Infeliz
criatura! Pensava .- Além do mais, longe da pátria, longe de tudo que lhe
podia ser caro! E, sacudido de estanhas condolências, imaginava o pobre desterrado
saindo de sua aldeia em Portugal, atravessando os mares, atirado no convés
de um navio, afinal no Brasil, neste país-sonho, a trabalhar dia a dia

durante uma mocidade, e economizar, e sofrer privações; depois – falir, perder
tudo de repente, achar-se em plena miséria e com a ladra da tísica a comer-lhe
os pulmões! Oh! cortava a alma! Não se podia esquecer do desespero com que
o desgraçado o chamava, como se lhe quisesse pedir alguma coisa, fazer alguma
revelação: – Talvez, quem sabe? Até o tomasse, no seu delírio, por algum amigo:
porque Amâncio se se não enganava, chegara a distinguir-lhe balbuciar o nome
de alguém. – Não podia ser outra coisa, o mísero chama v apor um amigo! –
Mas, também, que idéia, a sua, de andar por aquelas horas a visitar moribundos!
Que diabo tinhas ele, no fim de contas, com o tal tísico?…Ora essa! O vulto
esquelético não lhe saía. porém, de defronte dos olhos, com a sua ronqueira
lúgubre, sempre a lhe estender os longos braços sem músculos e a rolar nas
órbitas, convulsivamente, aqueles dois bugalhos luminosos. Fechou a porta
do quarto, despiu o sobretudo que havia enfiado, apagou a vela e recolheu-se
à cama.

* * *

Era inútil; o sono não vinha; o quarto às escuras fazia-lhe mal aos nervos.
No fim de meia hora, ergueu-se novamente, tentou acender um bico de gás, haviam
fechado no registro; recorreu à vela e assentou-se à mesinha diante de um
livro. O tísico gemia. – Que maçada! resmungou Amâncio, sem se poder safar
da impressão que trouxera do quarto “daquele diabo”! E cansava os olhos contra
as páginas do livro, lendo sem compreender. Vinham-lhe bocejos repetidos,
ardiam-lhe os olhos.- Agora talvez dormisse. O importuno parecia sossegado,
pelo menos não se lhe ouvia gemer. Amâncio voltou à cama, sem ânimo de apagar
a vela. Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o despertaram
em sobressalto e uma pancada em cheio na porta fê-lo erguer-se de pulo e precipitar-se
para ela. Sabino e o tísico vieram-lhe à memória. Ouriçaram-se-lhe os cabelos,
enlixou-se-lhe a pele, e o coração bateu-lhe com mais força. – Que teria sucedido?
A mão tremia-lhe ao forçar o trinco. A porta afinal cedeu, e Amâncio sentiu
cair desamparadamente no chão o corpo comprido e nu do héctico. Estava horrível.
Queria erguer-se, e em vão agitava as pernas e os braços. Amâncio tentou ajudá-lo,
gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tísico pareciam quebrar-se-lhe
nas mãos, que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas
de umidade desenhavam-lhe já o feitio do corpo. O estudante desejava chamar
por alguém. – O Sabino dormia com certeza! – Peste! Fez um movimento para
sair; mas o esqueleto agarrou-lhe violentamente os pulsos e pediu-lhe com
uns vagidos dolorosos que ficasse. De seus olhos corriam duas lágrimas compridas.
Depois de um esforço terrível, conseguiu falar. Eram sons apenas murmurados,
fracos, quase imperceptíveis Amâncio tinha razão: O desgraçado, no delírio
de sua fraqueza, o tomara por algum bom amigo. Suas palavras vinham-lhe aos
lábios roxos impregnadas de confiança e de amor. Falava de coisas estranhas
ao outro; perguntava-lhe por indivíduos desconhecidos para Amâncio e reprochava-lhe
a culpa de não ter vindo mais cedo. Depois referiu-se dolentemente à sua terra;
tratou da infância, rindo, com os olhos cheios d’água. Pediu que Amâncio,
logo que lá voltasse, fosse à procura do senhor padre, e encomendasse-lhe
três missas. Em seguida, fez um esforço para chegar ao ouvido do rapaz e começou,
em ar de mistério, a ensinar-lhe um caminho longo, muito longo… Explicava-lhe
ruas, as voltas que era necessário fazer para chegar lá; afinal, dava-se com
uma choupana. Uma velhinha entrevada fazia meia a um canto da casa. Amâncio
que se aproximasse dela e lhe dissesse em segredo que o João, o seu querido
filho… Uma agonia violenta tolheu-lhe a fala. Ele ainda tentou dizer alguma
coisa, mas o sangue purulento já lhe golfeava da boca e caía-lhe um jorro
pelo corpo. Estirou-se todo, dobrou a cabeça para trás e, depois de entesar
num estremecimento os membros rechupados, foi pouco a pouco cerrando os lábios
e empenando o corpo com um gemido longo e sentidíssimo. Lá fora, a música
duvidosa continuava, ao longe, entristecendo. Amâncio teve um assomo de cólera;
seu temperamento nervoso e egoísta revolucionava-se com o choque daquele incidente
desagradável, que lhe não dizia respeito e vinha-lhe todavia roubar despoticamente
o sossego.

Logo que o tísico expirou, correu a acordar Sabino com um murro. O moleque
levantou-se, como da primeira vez, e correu à cama do tísico. A lamparina
bruxuleava sobre o velador, projetando em volta, pelas paredes, sombras que
se iam dobrar no teto. Sabino abismou-se ao dar com o leito vazio, olhou em
torno, muito pasmo, chegou a levantar a colcha e a espiar para debaixo da
cama; depois correu à janela e interrogou a solidão fria da rua. – Ué! disse
. – És uma peste! Gritou-lhe Amâncio. – Por tua causa o tísico foi morrer
no meu quarto! Ande! Vá chamar o Dr. Coqueiro ou alguém que trate do corpo!
Aqui em cima, creio que não há ninguém, nem sequer o Paula Mendes. O rabequista,
com efeito, havia ficado essa noite em companhia da mulher em Niterói . A
notícia levantou embaixo um rebuliço. À exceção do Campelo e do guarda-livros,
ninguém mais se conservou na cama. Mme. Brizard arrepelava-se, praguejando
contra o maldito caiporismo que a perseguia ultimamente. – Até já lhe vinham
os tísicos morrer em casa! Era demais! Causou grande impressão a narrativa
de Amâncio sobre os últimos momentos do homem. O Dr. Tavares desfez-se em
altas considerações a esse respeito. Coqueiro proibiu à irmã que subisse ao
segundo andar, enquanto o cadáver não estivesse convenientemente amortalhado
e deposto no sofá que às pressas se carregou para cima. Por toda a casa distribuíram-se
fogareiros de incenso e alfazema. Sabino fora, de um pulo, buscar à botica
uma garrafa de labarraque , e o copeiro saíra para lançar à primeira praia
o colchão, os lençóis e os travesseiros que serviam ao defunto. Descarregou-se
o quarto. A francesa quis abrir um velho baú de folha, que jazia a um canto
e que era o único objeto deixado pelo morto; mas o Dr. Tavares opôs-se-lhe
energicamente, citando artigos do código criminal e dizendo em tom de autoridade
que o falecido era um súdito português e, por conseguinte, só ao cônsul de
sua nação competia fazer-lhe o espólio dos bens! – E o que nos ficou ele a
dever?! E mais a despesa dos lençóis, do colchão e do diabo?! Perguntou Mme.
Brizard. – Recebe-se do consulado português ou não se recebe de pessoa alguma,
apressou-se a explicar o Coqueiro, que já sabia perfeitamente não haver dentro
do tal baú coisa alguma de valor.

* * *

O corpo saiu no dia seguinte, em um carro da misericórdia. E Amâncio declarou
positivamente que não estava disposto a ficar na casa de pensão em mais um
dia. – Pois então vamos todos para um arrabalde! – deliberou Mme. Brizard
, em conseqüência dos repetidos conchavos que fizera com o marido. Diabo era
o estado de Nini, a pobrezita achava-se agora completamente desarranjada.
Comia encostando a boca ao prato, como um bicho; não trocava palavra com pessoa
alguma e nem mais podia ficar em liberdade , porque de vez em quando lhe acometiam
frenesis, que lhe davam para morder os outros e espatifar as roupas, até ficar
nua. O médico entendia, porém, que, com um bom regime hidroterápico, ela ainda
podia se restabelecer. Citou exemplos animadores, “bonitos casos”, disse os
belos resultados que ultimamente se obtinham por meio das duchas de água fria
no tratamento das enfermidades nervosas, e terminou declarando que, só por
esse meio, havia esperança de uma cura radical. E o doutor, logo que esteve
a sós com Amâncio, confidenciou-lhe, rindo: – Já toquei à velha sobre aquilo
que falamos; creio que desta vez fica o senhor livre da histérica! Venceram-se,
com efeito, os escrúpulos de Mme. Brizard, e Nini foi para a casa de saúde
do Dr. Eiras. A mãe teria notícias dela todos os dias e havia de lhe aparecer
em pessoa duas vezes por semana. – Aquela rapariga era o tormento de sua vida!
Antes Deus a tivesse chamado para si! Agora, o que não seria necessário gastar
com a tal casa de saúde?… talvez uns vinte mil-réis diários, se não foram
mais! Onde iria tudo aquilo parar? Era caiporismo, definitivamente! Como desejavam,
descobrir-se uma casa em Santa Teresa. O Dr. Tavares e o guarda-livros acompanhariam
a família; Campelo, o esquisitão, é que não estava pela mudança. Logo que
lhe falaram nisso, pediu secamente a nota de suas despesas, pagou-a, e retirou-se
muito calmo, assoviando, de mão no bolso, cabeça erguida, na mesma fleuma
inalterável com que costumava sair todas as manhãs para o trabalho.

Todo ele ia como a dizer no seu silêncio indiferente e egoísta: “A mim tanto
se me dá seis como meia dúzia …morar com Pedro ou morar com Paulo, tudo
para mim é a mesma coisa, desde que, em troca do – meu dinheiro – , me apresentem
um quarto limpo e a comida a horas certas. Se dez anos continuasse aqui Mme.
Brizard, dez anos ficaria eu na Rua do Resende; mas, uma vez que se muda para
Santa Teresa – Adeus! vou bater a outra freguesia… o que por aí não faltam
são casas de pensão.” O Paula Mendes, ao entra pouco depois, recebeu em cheio
a notícia de a família Coqueiro ia deixar a casa e que por conseguinte era
preciso que ele saldasse as suas contas. Mas o rabequista não tinha dinheiro
na ocasião. – Logo que o tivesse havia de pagar integralmente. Os locandeiros
não estavam por isso, já lhes bastavam os calos do gentleman e do Melinho!
E , depois de uma troca agitada de palavras, Mendes propôs deixar o piano,
ficando-lhe o direito de resgatá-lo mais tarde com a devida importância. Mme.
Brizard queria do dinheiro e não instrumentos de música! O Sr. Paula Mendes
que vendesse o piano e liquidasse depois as suas contas! Assim foi. O rabequista
saiu, e, quando à tarde voltou à casa de pensão, trazia consigo um homenzinho
de barbas compridas, que fechou o negócio por quatrocentos mil réis. Mendes
pagou o que devia, fez tristemente as suas malas, e afinal se retirou de cabeça
baixa e mãos cruzadas par trás. César, que o fora espreitar ao corredor, voltou
à varanda, dizendo espantado que ele chorava ao descer as escadas. – Deixa-o
lá, menino! Resmungou a locandeira, e tocou a sineta, chamando para a mesa.

* * *

O jantar já não tinha o caráter de uma refeição de hotel, em mesa-redonda.
Agora compareciam apenas cinco pessoas: Amâncio, Amelinha, Mme. Brizard, Coqueiro,
César e o Dr. Tavares. O guarda-livros, esse continuava a não comer em casa.
Mme. Brizard suspirava à vista dos lugares vazios. – Oh! que aperto de coração
lhe fazia aquilo! Não podia resistir a tanta contrariedade ao mesmo tempo!…
Pelo corredor do jantar, falou a respeito de Nini, queixou-se de saudades.
Já à sobremesa, recrudesceram-lhe as ternuras maternais, vieram-lhe nostalgias,
uma lágrima saltou-lhe do olho esquerdo. Chamou César para junto de si, abraçou-o
e beijou-o repetidas vezes e ficou a passar-lhe a mão pela cabeça. Um silencioso
constrangimento se apoderou das pessoas presentes; depois, ainda com a voz
quebrada de comoção, ela pediu ao Coqueiro que se não descuidasse de cobrar
o que o Lambertosa e o Melinho ficaram a dever. – Agora precisavam muito e
muito de dinheiro!… Mudaram-se no dia seguinte. Amâncio ia muito incomodado,
amanhecera pior, quase que não podia mexer com as pernas; todos lhe profetizavam,
entretanto, rápidas melhoras em Santa Teresa. O cômodo que lhe destinaram
era da casa o mais espaçoso e arejado. Amelinha não o desamparava, já não
escondia até os seus carinhos, chegava-se abertamente para o rapaz, como se
fora casada com ele. Às vezes dizia-lhe segredos na presença do irmão ou da
francesa; prestava-lhe pequeninos serviços amorosos: levantar-lhe, por exemplo,
a gola do fraque, se fazia frio; abotoar-lhe o colarinho, se estava desabotoado;
atar-lhe a gravata, se o laço se desmanchava; chegar-lhe para junto a escarradeira
se Amâncio queria fumar. Em Santa Teresa esses desvelos multiplicaram-se .
aí já era a menina quem lhe metia os botões na camisa e as fivelas no colete,
quem lhe escovava a roupa e o chapéu, quem lhe punha o perfume no lenço e
lhe dava corda ao relógio, e, quando fazia bom tempo e o rapaz tentava um
passeio pelo morro, era ela quem corria a lhe trazer a bengala ou o chapéu-de-sol,
perguntando muito solícita se ele não se esquecera dos charutos e dos fósforos,
sem já tinha lenço, se levava dinheiro. Mas, às vezes, rezingava, quase que
ralhava com o estudante. Fazia-lhe censuras, tomava-lhe contas de umas muitas
coisas: se Amâncio passara por tal rua, se estivera durante a ausência a passear
sempre ou se encontrara alguém porventura em alguma parte; quando lhe sentia
cheiro de álcool queria saber o que o rapaz bebera. Amélia, enfim, se derramava
por todo ele, sem Amâncio dar por isso; invadia-o sutilmente, como um bicho
que entra na carne. A nova residência punha-os muito mais juntos, muito mais
unidos do que a da Rua do Resende. Os quartos eram pequenos, chegados uns
dos outros; havia um sótão com escadaria para a sala de jantar. Amâncio morava
aí, sozinho.

Tinha de seu uma alcova e um pequeno gabinete de trabalho; janelas para o
nascente e para o ocaso, despejando sobre o jardim. Embaixo, então, era a
sala de visitas, a de jantar e mais quatro cômodos, sem meter os quartos da
criadagem, a cozinha, a despensa e o banheiro. Num daqueles cômodos ficou
o João Coqueiro com a mulher; noutro Amelinha; noutro o guarda-livros, e o
Dr. Tavares no último. A respeito de mobília, só se carregou da Rua do Resende
a que era de todo indispensável. Não se vendeu sequer um objeto; o casarão
renderia muito mais com os trastes e, além disso, Mme. Brizard contava, mais
dia, menos dia, reabilitar a sua antiga e afamada casa de pensão. – Porque,
dizia ela – era impossível que as coisas não voltassem ao estado primitivo!…
Coqueiro é que parecia, como nunca, satisfeito de sua vida. Cuidava da nova
casa com muito interesse; falava em melhoramentos e aconselhava a Amâncio
a que comprasse uma mobiliazinha catita para ver como “ficava então naquele
sótão melhor que um príncipe no seu castelo”. A casa, de fato, convidava às
fantasias do gosto, porque era perfeitamente nova e bem feita; o papel das
paredes estava imaculado, o chão limpo e os tetos virgens ainda de moscaria
Amâncio experimentou rápidas melhoras; quis logo descer à cidade, mas o Coqueiro
não lhe permitiu ir só. Aproveitaram o passeio par comprar a mobília. O provinciano
recebera nesse mês dinheiro do Norte e retirara mais algum da casa do Campos;
João Coqueiro levou-o a uma loja de trastes e escolheu ele próprio o que podia
convir ao outro; isto é, uma cômoda, um lavatório, uma boa cama de casados,
uma secretária, duas estantes, um velador, e seis cadeiras; tudo de mogno
e trabalhado a gosto moderno. Estes arranjos pediam outras coisas; escolheram-se
também dois quadros para o intervalo das portas, um belo espelho de parede,
um relógio de pêndulo, tapetes, capachos e escarradeiras.

* * *

O Coqueiro, muito empenhado na condução dos trastes, havia-se afastado alguns
passos de Amâncio, quando este sentiu baterem-lhe no ombro. Era o Paiva Rocha.
– Oh! exclamou, satisfeito com o encontro.- Como vais tu? Há quanto tempo
não nos vemos!… Que é feito de ti? – Ai, filho apoquentado! Respondeu o
Paiva. Ultimamente tem sido uma enfiada de coisas más!…Há dois meses que
não recebo dinheiro do correspondente; tinha aí um lugar de revisor numa folha
e os ladrões passaram-me a perna em mais de duzentos mil-réis; além de que,
a besta do diretor lá da escola lembrou-se agora do exigir uma infinidade
de maçadas e obrigar-nos a despesas impossíveis! O diabo! E, mudando de tom,
perguntou como ia Amâncio; onde se metera, que ninguém o via? O outro prestou
contas de sua vida, expôs os pormenores de sua moléstia, falou nos incômodos
que dera à família do Coqueiro, principalmente a D. Amélia, que, por sinal,
era uma excelente menina. – Maganão!… disse o comprovinciano, esbarrando-lhe
intencionalmente no braço. Amâncio repeliu com febre aquela insinuação. O
colega fazia uma tremenda injustiça, tanto a ele, Amâncio, como à pobre rapariga!
– Ora, filho! Queres tu agora dizer a mim o que é a gente do Coqueiro!…
Amâncio abriu grandes olhos. – Morde aqui! Acrescentou o outro, apresentando-lhe
o dedo. E em troca de um gesto negativo do amigo: – Não queres falar por ora,
e fazes tu muito bem! Mas é impossível que a tua ingenuidade chegue ao ponto
de tomares a sério a irmão do Coqueiro, – a Amélia dos camarões!… – Juro-te
que, até aqui, só a tenho tratado com todo o respeito! O outro soltou uma
risada. – É fato! Insistiu Amâncio, aborrecido já com aquela troça do companheiro,
mas ao mesmo tempo feliz por imaginar que as suas esperanças sobre a rapariga
eram perfeitamente justificáveis. – Pois, se é fato, acredita que tens representado
um papel de tolo! Fazem-te a barba, filho! Amâncio, então, para provar a pureza
de sua conduta, pintou o estado em que se achara ultimamente, – entrevecido
de reumatismo, sem préstimo para nada. E contou o que sofrera com as bexigas.
– Ora, dize-me cá…volveu o outro em tom de segredo. – O Coqueiro já te não
tem dado algumas facadinhas…Confessa…

Amâncio, nem só confessou, como disse até o dinheiro que por várias vezes
emprestara ao senhorio. – Hein?! Bradou o Paiva, fazendo-se muito fino. –
Queres mais claro?…E ainda tens escrúpulos, criança! Pois olha que te não
fazem nenhum favor – tu pagas, filho, e pagas bem! E lembrou que não seria
mau tomarem alguma coisa num botequim próximo. O outro declarou que estava
ali à espera do Coqueiro. – Deixa lá o Coqueiro, homem! Tens medo de ir só
para casa ?… – Mas é que não sei se me fará mal beber alguma coisa. Ainda
estou em uso de remédios. – Não sejas idiota! Exclamou o Paiva, puxando-o
pelo braço. Amâncio deixou-se levar, não tanto pelo prazer da companhia, como
pela circunstância de se livrar do Coqueiro, o que lhe dava esperanças de
ver Lúcia ainda essa tarde. No café, defronte dos copos, a conversa voltou
de novo à gente de Mme. Brizard. – Gentinha! qualificou o Paiva, atirando
a palavra com o desprezo de quem lança fora o sobejo de um copo. E, depois,
entornando os lábios, numa obstinação torpe: – A questão está no pagamento!
Amâncio riu. Sentia-se feliz; aquele dia de liberdade, depois de tamanho recolhimento,
os cálices de xerez, as palavras degotadas do Rocha; tudo isso lhe picava
o espírito com uma pontinha de alegria devassa. Seus gostos, suas tendências
luxuriosas, volviam-lhe em revoada, como pássaro de arribação. Ficou expansivo,
disposto aos desabafamentos da vaidade. Em breve, contava tudo o que se passara
com ele na casa de Mme. Brizard, descrevia as maneiras de Amelinha com sua
pessoa, os pequenos cuidados amorosos, as pequeninas frases significativas;
narrou minuciosamente as cenas com Lúcia e disse que, ao sair do café, iria
visitá-la à Tijuca. – Está claro! Trejeitou o outro, cuspilhando a areia branca
do chão de pedra e batendo com a ponta da bengala sobre os pés cruzados. –
Eu, no teu caso, já teria desforrado melhor os cobres! – Achas então que eu
devo?… – Ora, filho, é o que se leva deste mundo! A respeito de virtudes
temos conversado! Eu cá só acredito numa castidade – a da velhice!… tirando
daí… e concluiu a sua idéia com um gesto feio. Amâncio já recorria à moléstia
para justificar aos olhos do amigo a atitude respeitosa que ocupara ao lado
de Amélia – o colega que não o julgasse um tolo!… Mas que diabo havia ele
de fazer, tolhido de dores, como estava, numa cama?… Quando se despediram,
o Paiva deu a entender que precisava de dinheiro; mas Amâncio negou-o, apesar
de bem provido, dizendo com voz triste que “sentia muito não poder servir
naquela ocasião”. O outro, sem mais querer ouvir coisa alguma, retirou-se
logo.

* * *

Amâncio, assim que se viu livre, correu a tomar um tílburi e bateu para a
casa de pensão, onde estava Lúcia. Era um palacete, com magnífica aparência.
Janelas de sacada, grande corredor ladrilhado de mármore e velhas escadarias
encentradas de tapete de oleado, preso a cada degrau por um fio de metal amarelo.
Foi recebido cerimoniosamente no salão por uma mulheraça muito gorda, de luneta,
extremamente degotada, mostrando entre as almofadas do peito ramificações
de veiazinhas escarlates, que pareciam miniaturas de árvores secas desenhadas
a bico de pena. Em um dos braços luzia-lhe uma jóia e, por debaixo do vestido
de cambraia, aparecia-lhe o pé quase redondo e empantufado de veludo azul.
Tinha a voz grossa, cheia de uu, e o lóbulo do queixo coberto de penugem negra.
Ai saber que Amâncio não ia com a intenção de tomar algum cômodo, mas sim
para falar com Lúcia, retirou-se sacudindo os rins; e da sala o estudante
lhe ouviu gritar ao criado “que fosse prevenir à senhora do Sr. Pereira de
que aí estava um cavalheiro que lhe desejava falar”. Lúcia mostrou-se no fim
de meia hora, a pedir mil perdões por se haver demorado mais um pouco. Fizera
toilette especial para recebê-lo e parecia muito lisonjeada com a visita.
Declarou, logo, que o achava mais gordo, de melhor fisionomia. – Abençoada
moléstia, a dele! E, em resposta ao que o rapaz lhe perguntava sobre aquela
nova residência , elogiou muito a casa, o serviço. “Sempre era outra coisa!
Nem havia termo de comparação entre esta e a de Mme. Brizard!” Amâncio voltou-se
todo na cadeira, considerando a sala. Uma rica sala, apesar de velha, – grande
, espelhada, cortinas de ramagem, consolos cobertos de jarras com flores artificiais
de pena. A um dos cantos um

piano antigo e no centro do teto de estuque, no lugar donde espipava o lustre,
um grande escudo de cores, rebentando em cabecinhas de anjos. Falaram logo
sobre as novidades da casa de pensão do Coqueiro: a saída dos hóspedes, a
morte do tísico, a mudança para Santa Teresa. – Você ali está seguro!… disse
Lúcia. O estudante protestou com um gesto, em que já havia alguma coisa das
revelações que pouco antes lhe fizera o Paiva Rocha. E, discutindo os amores
de Amelinha, foram pouco e pouco empurrando a conversa para o verdadeiro motivo
da visita, até que Amâncio conseguiu tratar de si, das suas saudades do quanto
desejava Lúcia, do quanto sofria por causa daquela ingrata que ali estava!
– Mais baixo! Olha que te podem ouvir!… ele então chegou-se mais para a
ilustrada senhora, tomando-lhe as mãos que cobria de beijos, e, no seu ardor,
com a voz abafada, os olhos acendidos, procurava arrancar-lhe uma resposta
definitiva, uma palavra qualquer que o restituísse por uma vez à tranqüilidade.
– Está quieto! Respondeu a tirana. – Está quieto! E, vendo que o demônio não
a escutava, em risco de comprometê-la aos olhos de quem por acaso entrasse
na sala, propôs mostrar-lhe a chácara enquanto esperavam pelo jantar. – Que
ela já o não deixava sair sem ter jantado!… Havia duas descidas; uma pelo
corredor e outra pela varanda. Tomaram por resta. Lúcia, muito disfarçada,
ia-lhe apontando os cômodos e as benfeitorias da casa, com tanto empenho e
gosto como se fora mesma a proprietária; mostrou-lhe o banheiro, os tanques
para a lavagem de roupa, o coradouro, o cercado das galinhas e por último
o jardim. Colheu logo uma rosa e, por suas próprias mãos enfiou-a na gola
do fraque de Amâncio. Em seguida atravessaram a hora. Canteiros grandes, cobertos
de verdura, saturavam o ar de um cheiro de hortaliças. As alfaces brilhavam
ao sol dourado de julho. Mais para adiante havia um sombrejar melancólico
e deliciosos de árvores grandes; era a chácara; viam-se no ar as folhas largas
e recortadas da fruta-pão faiscarem, como lâminas de metal brunido; ao passo
que as bojudas mangueiras se debruçavam sobre a terra numa concentração pesada
de sono. Os dois prosseguiram de braço dado por entre o murmurejar tristonho
daquelas sombras. E lentamente, e sem trocarem uma palavra, se deixaram ir
até a espalda de um morro, que servia de limite à chácara. Havia um grosseiro
banco de pau meio escondido entre bambus e trepadeira. Assentaram-se. Um fio
de água corria da montanha e os passarinhos remigiavam trilando na mole embalsamada
das estevas. Amâncio passou um braço na cintura de Lúcia e chamou-lhe o corpo
para junto do seu. Ela deixou-se arrebatar, bambeando a cabeça, num encontro
apaixonado de lábios. O rapaz parecia louco no seu desejo. – Não! Isso não!
dizia a outra. – Mostra que é um homem de espírito! Não se queira confundir
com esses materialões que há por aí! Ele opunha as razões que lhe vinham à
cabeça para justificar os seus rogos: “Lúcia que não quisesse desvirtuar o
amor, o verdadeiro amor, fazendo de um sentimento real e fecundo uma pieguice
romântica e desenxabida”. Lembrou-lhe o que ela própria dissera, quando pela
primeira vez estiveram juntos. E, num esfolegar febril e ruidoso, suplicava-lhe
um pouco de compaixão, ao menos; que não o torturasse daquele modo; que não
o obrigasse a sucumbir ao desespero de sua paixão! Lúcia não entendeu. – Ele
que deixasse a casa de Mme. Brizard e viesse tomar um cômodo ali na Tijuca.
Assim … bem! Mas, naquele momento e naquelas circunstâncias… Não! não!
e não! Apesar de enérgica recusa, Amâncio insistia sempre. – Não seja teimoso,
repreendeu ela, arrancando-lhe as saias da mão. – Oh! ele, porem, não se desenganava
e até já recorria à violência. – Pior! Disse a mulher, notando que o estudante
lhe desgrenhava os cabelos e machucava-lhe as roupas. – Já não vou gostando
muito da brincadeira! E, a um movimento desabrido do rapaz: – Ora pílulas!
Isso agora também já é estupidez! Amâncio ao lado bufava, imóvel, emitindo
sobre ela olhares de cólera. – O senhor faz-se desentendido! Exclamou Lúcia,
afinal, endireitando o penteado e armando as lunetas. – Há muito devia compreender
que nada alcançará de mim, enquanto eu estiver com meu marido! – Marido o
quê! Desmentiu o provinciano, com a voz sufocada. – Tão marido como eu! Lúcia
olhou para ele, apertando os olhos.

– É isso! Sustentou aquele. – Sei de tudo! A senhora quer fazer de mim um
tolo, pois fique sabendo que não faz! Trate de arranjar outro, porque comigo
perde o seu tempo! Ela o mediu de alto a baixo, levantou desdenhosamente o
lábio superior, e afastou-se com um grande ar emproado e senhoril, murmurando
entredentes. – Ordinário! Amâncio calcou o chapéu sobre os olhos, e, de cabeça
baixa e passos lentos, retomou pelo caminho andando, a fustigar com a bengala
as ervínculas da estrada. Saiu pelo portão da chácara. Já na rua, sacudia
os ombros e disse a meia voz: – Que a leve o diabo!

XV

O rapaz acordou muito bem disposto no outro dia, estava, ou pelo menos parecia,
restabelecido completamente. Os ares tonificantes da Santa Teresa produziram-lhe
efeitos miraculosos. – Até que enfim podia mandar ao diabo os xaropes e as
tisanas que, de tempos a essa parte, lhe melancolizavam a vida e relaxavam
o estômago. E, ainda, metido entre os lençóis, na matinal preguiça das sete
e meia, dispunha-se a filosofar sobre o ridículo episódio da véspera, quando
um leve rumor na porta do quarto lhe desviou o curso das idéias. Era a menina
que trazia o café. Viu-lhe a pálida mãozinha medrosamente surdir por entre
a fisga da porta mal cerrada, para depor no chão, como era de costume, a chávena
de porcelana. Amâncio. porém, desta vez saltou da cama e, correndo da gatinhas,
a empolgou nas suas. A mãozinha quis fugir, ele não consentiu, e com ela veio
um braço que as folhas da porta arremangavam. Começou a beijá-lo sofregamente,
desde a ponta dos dedos até os bíceps; enquanto Amélia, sempre escondida ia
consentindo, toda ela arrepiada em cócegas. – Um beijinho…pediu ele mostrando
o rosto. – Logo! – Com certeza?… – Com certeza! E a pequena desapareceu
muito ligeira, – tique, tique, tique, pela escada. Pouco depois combinaram
a primeira entrevista. Ela subiria ao sótão, logo que a casa estivesse completamente
recolhida. Amâncio que a esperasse no escuro e com a porta do quarto apenas
cerrada. O rapaz não pôde ficar tranqüilo mais um instante. As horas nunca
lhe pareceram tão longas e as conversas tão intermináveis. Um sobressalto
feliz perturbava-o todo, tirava-lhe o apetite e não lhe permitia um pensamento
que não fosse cair aos pés de Amélia. Por maior caiporismo, o Dr. Tavares
tinha essa noite uma visita que parecia disposta a não largá-lo. Era um velho
de sua província, muito falador de política, apaixonado pelas eleições, pelos
conservadores, mas que, nem à mão de Deus Padre, pronunciava os rr e os ss
e dizia: “Os partido liberá, os senadô”, e outras barbaridades. – Quando se
irá este cacete?…pensava Amâncio, trêmulo de impaciência. E o Tavares a
puxar pelo demônio do homem, a fazer-lhe perguntas sobre perguntas e a despejar
contra ele a sua retórica inexaurível. Até o guarda-livros que às vezes passava
dias e dias sem dar uma palavra, estava essa noite disposto a falar pelos
cotovelos. Ainda pilhara o chá e, repimpando na cadeira, com um brilhante
a luzir num dedo, o ar satisfeito, os punhos bem engomados, taramelava a respeito
dos seus projetos de casamento. “Sim, que ele, havia coisas de ano e meio,
estava para desposar uma linda menina e de educação esmeradíssima. Já há tempos
a pedira!… Só esperava que a casa, onde trabalhava desde os seus quinze
anos, lhe desse sociedade, como aliás, havia já prometido. – Ah! Toda a sua
ambição era fazer família! Que vidinha melhor que a do casado?…o matrimônio
era um complemento do homem…A gente enquanto moça não sentia a falta da
esposa, mas depois?…quando chegasse a velhice?…Aí é que seriam elas! Não!
não podia admitir um eterno celibato!…A vida do solteiro tinha seus encantos,
tinha, para que negar?…os espinhos, porém, eram em maior número; se eram!…
E citava os casos. Amâncio retirou-se da varanda, sufocado de raiva. Preferia
esperar no quarto. Deram onze horas. Amelinha pediu licença e também se recolheu.
Mme. Brizard, à cabeceira da mesa, já bocejava, entretendo os dedos, a fazer
pílulas das migalhas de pão que ficaram do chá; o marido, ao lado dela, estudava
mecânica racional.

Veio finalmente o copeiro levantar a mesa e buscar o César para a cama. O
guarda-livros apertou as mãos de todos e sumiu-se; o sujeito dos partido liberá
, a despeito das insistências do amigo, despediu-se igualmente e, quando o
advogado, que o fora acompanhar até o portão da chácara voltou à varanda,
já não encontrou ninguém. Em pouco a casa era todo silêncio e trevas. Então,
Amelinha, deixou o quarto sorrateiramente, tirou as botinas, apanhou as saias
e galgou a escada do sótão. Amâncio, que a esperava na porta, logo que a teve
ao alcance da mão, puxou-a para dentro, e deu uma volta à fechadura.

* * *

Desde esse momento, a vida em casa de Mme Brizard tornou-se para ele uma
coisa muito agradável. Ninguém mostrava desconfiar, ao menos, de suas intimidades
com Amélia, que pelo seu lado parecia satisfeita com o estado de coisas. Só
uma ligeira circunstâncias covardemente o arreceava: É que a pequena não lhe
exibira em quarta ou quinta edição, como dizia o Paiva, mas em comprometedoras
primícias, com todos os cruentos requisitos de uma estréia. Fugiu o primeiro
mês de lua-de-mel, sem o menor eclipse. Contudo, ele agora puxava um pouco
mais pela bolsa: a família estava em crise; a pensão de Nini absorvia os proventos
que se obtinham do Tavares e do guarda-livros; o casarão da Rua do Resende
apenas se conseguira alugar em parte; os gêneros de primeira necessidade eram
mais caros em Santa Teresa. Mas que valia tudo isso posto em confronto aos
gozos que lhe proporcionava a deliciosa rapariga? Ela parecia viver exclusivamente
para lhe dar carinhos e afagos. Era como se fora sua esposa; deixava tudo
de mão para só cuidar do amante. – Ele estava em primeiro lugar! Agora a pequena
lhe fazia a cama; levava-lhe ao quarto o moringue d’água, penteava-lhe os
cabelos, e exigia que o rapaz lhe dissesse os passos que dava, por onde estivera,
com quem falara e o dinheiro que gastara. Revistava-lhe conjugalmente as algibeiras,
lia-lhe as cartas e, sempre desconfiada, cheirava-lhe as roupas. Amâncio sorria
de tais ciúmes, com o ar seguro de quem desfruta em paz uma felicidade legítima
e abençoada por todos. Já não furtava beijinhos assustados por detrás das
portas; não roçavam os joelhos por debaixo da mesa, e não se serviam das mãos
como instrumentos de amor; guardavam-se para as liberdades da noite, para
a independência do quarto. Na ocasião, porém, em que ele saia para as aulas
ou à noite para o passeio, beijocavam-se, sempre, como dois bons casados.
Entretanto, as épocas de exame batiam à porta. Amâncio vivia em desassossego
com os seus estudos tão mal apercebidos; mas o Coqueiro dava-lhe coragem,
ensinando-lhe como devia proceder, dizendo-lhe o que devia estudar de preferencia,
aconselhando-o a que não tivesse medo. “Amâncio que se apresentasse de cabeça
erguida: o bom êxito nos exames dependia quase sempre do desembaraço mais
ou menos atrevido do concorrente!” E citava exemplos: “Fulano que apenas conhecia
dois pontos de tal matéria, chimpara distinção, só porque era de um descaramento
imperturbável; ao passo que sicrano, apesar de muito bem preparado, não conseguira
passar com a sua vozinha trêmula e o seu todo raquítico e assustado!” Um novo
acontecimento veio, porém, desviar Amâncio daquela preocupação: por telegrama
de sua província, constou-lhe que o velho Vasconcelos morrera de beribéri
fulminante. Os pormenores chegaram no primeiro vapor: “Vasconcelos fora atacado
como hoje e morrera como depois de amanhã. Ia pela rua, muito senhor de si,
quando, de repente, sentiu afrouxarem-se-lhe as pernas e teria desabado no
chão, se dois homens que passavam não o socorressem prontamente. “Foi recolhido
à primeira casa, que era felizmente de um amigo. Meia hora depois já lhe principiava
a faltar a respiração: a moléstia subia, ameaçando-lhe o estômago. Fez-se
uma junta de médicos; ficou resolvido que o doente devia seguir, sem perda
de tempo, para qualquer parte, – Caxias, Rosário, mesmo Alcântara, a Vila
do Paço, que fosse; contanto que saísse da cidade, quanto antes, até aparecer
um vapor que o levasse para mais longe. “Partiu nesse mesmo dia, dentro de
uma rede, com direção à Vila do Paço. Mas o terrível beribéri subia sempre;
os membros por onde ele atravessava iam ficando paralisado e frios como membros
de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica, Vasconcelos
não pôde respirar de todo e morreu”. Amélia, ao receber a inesperada notícia,
rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de luto fechado. O irmão também
se vestiu de preto, fez cerrar as portas e as janelas da casa por sete dias
e, durante esse tempo, andou tristonho e anojado.

* * *

Amâncio perturbou-se deveras com a morte do pai. Há bastante tempo mentalizava
projetos de , em voltando à província, tratá-lo de modo tão carinhoso e tão
amigo, que sua consciência ficasse, por uma vez, tranqüila a esse respeito.
Havia no segredo de tal intenção o sabor inefável de um voto religioso. E
seus planos, assim malogrado de repente, enchiam-lhe agora o coração de tristeza
e as noites de sonhos tormentosos. Mas Amelinha lá estava para o consolar,
para lhe reprimir os gemidos com a polpa vermelha de seus lábios, e espantar-lhe
os negrumes do desgosto com a luz voluptuosa de seus olhos e com a doçura
cristalina de suas palavras. Veio o Campos. Trataram longamente do “triste
acontecimento”: Amâncio queria dar um pulo ao Norte: a mãe com certeza precisava
dele as seu lado, quando mais não fosse para tratar do inventário. O negociante
já não compreendia assim: ” Estavam a chegar os exames; Amâncio, ase saísse
da Corte naquele momento, perderia o ano; o melhor, por conseguinte, seria
esperar pelas férias. Pois então! eram mais alguns dias de demora que não
prejudicavam a ninguém!…” Coqueiro pensava do mesmo modo. “Nem o colega
encontraria alguém com um bocadinho de juízo que lhe aconselhasse uma semelhante
viagem antes do ato. Era até loucura pensar nisso!” Cruzaram-se cartas entre
o Rio de Janeiro e Maranhão. Amâncio foi considerado maior pelo Juiz de órfãos,
podia receber o que lhe tocavas na herança. Mas a firma liquidante ofereceu-lhe
sociedade em comandita; ele aceitou, a conselho de Campos, e insti5tuiu na
província um advogado de confiança para lhe curar os bens. Escolheu-se o Dr.Silveira,
o dos cabelos pintados, aquele mesmo que, no dia do exame de português, se
mostrara tão entusiasmado pelo rapaz. Até que enfim estava Amâncio livre e
senhor de sua bolsa; podia gastar à farta, sem sofrer daí em diante as peias
da mesada. E não o amedrontava igualmente o risco de cair na penúria, porque
ainda havia para reserva o que tinha a herdar da mãe e da avó. Os carinhos
e as solicitudes da família Coqueiro inflamaram-se, já se vê, com os últimos
acontecimentos. O estudante era cada vez mais adulado e em compensação mais
explorado. Agora, o irmão de Amélia não punha o menor escrúpulo lhe aceitar
os obséquios e a casa ia ficando a pouco e pouco às costas do provinciano.
Era sempre por intermédio de Amélia que ele sofria a cardadura. Hoje tratava-se
do aluguel da casa, amanhã seria a conta do Eiras, depois a dos fornecedores;
se entrava um barril de vinho para a despensa, ou um saco de feijão; se aparecia
um novo aparelho de porcelana à mesa do almoço ou do jantar, Amâncio ficava
à espera da fatura que, à noite, impreterivelmente, passava as mãos da rapariga
para as suas. Amelinha, essa então, já não procurava rodeios para lhe arranjar
as coisas. Quando precisava de um vestido, de uma jóia, de um chapéu, dizia-lhe
secamente:” Deixe-me tanto, que amanhã tenho de fazer compras”. E as despesas
das casa recrudesciam, à proporção que minguavam os lucros. O guarda-livros
despedira-se, porque afinal chegara a época do seu casamento, e ninguém o
substituiu; só ficou advogado que deixaria por mês, quando muito, uns duzentos
mil-réis. Amâncio ia suportando a carga silenciosamente, certo de que não
encontraria dificuldade em despejá-la, assim que a coisa lhe cheirasse mal.
Todavia, o dinheiro era já o único recurso de que dispunha para fazer calar
a amante, quando esta lhe falava em casamento. Em tais ocasiões, a rapariga
chorava quase sempre; dizia-se infeliz; queixava-se da sorte. “Que Amâncio
fora a sua perdição! Que ela cedera aos rogos dele na persuasão de que era
amada e de que mais tarde seria sua esposa!” – Ora, filha! Nós, antes de cairmos
na asneira em que caímos, não tocamos uma só vez em casamento! E , se queres
que te diga com franqueza, eu até nem supunha ser o primeiro com quem tivesses
relações!… Ela irritava-se ao ponto de ameaçá-lo com um escândalo. Amâncio
que se não enganasse, pois que havia um João Coqueiro sobre a terra! Ele que
não caísse no descoco de querer desampará-la, porque então as coisas lhe sairiam
mais atravessadas! Estas rezingas terminavam sempre por uma nova exigência
de Amélia. E já não se contentava com um chapéu ou com um par de botinas,
queria vestidos de seda, jóias de valor e dinheiro para gastar. Uma noite,
Amâncio ficou abismado por lhe ouvir falar na compra de um chalé nas Laranjeiras.
– Sim! reforçou ela, ao perceber que o rapaz não tomava a sério suas palavras.
– Despedia-se o Tavares e ficaríamos à vontade por uma vez! Eu não estou satisfeita
aqui!… Ele tornou a sorrir. – Amélia com certeza estava gracejando…

Mas a rapariga jurou que não, recorrendo a todos os segredos de sua ternura.
Afinal, vendo que o amante não cedia, zangou-se como de costume. – Tu assim
o queres; disse arrancando-se dos braços dele,- pois bem, tu assim o terás!
Amanhã hás de ver o que sai nesta casa! Amâncio encolheu os ombros. – Não
te importas?! Pois veremos quem tem razão!! E limpando os olhos: – Ingrato!
Por que sabe que a gente o estima, abusa deste modo! Tola fui eu em me deixar
seduzir!… – Eu não a seduzi! Ora essa! – Até fez mais, replicou ela – Desonrou-me!
– Pois desonrada ou seduzida, não tenho dinheiro para comprar casas! Amélia
saiu essas noite do quarto do estudante ameaçando fazer estourar a bomba no
dia seguinte. E, pela manhã, quando Amâncio , ao seguir para as aulas, lhe
foi dar o beijo favorito, . ela muito amuada, voltou o rosto, resmungando
“que a deixasse”. O rapaz prometeu que “ia pensar” e à noite daria uma resposta.
Mas nessa noite, Amélia, pela primeira vez, depois do seu novo estado, não
se apresentou às horas habituais no quarto do estudante. Amâncio, sem perder
as esperanças de a ver surgir de um momento para outro e precipitar-se-lhe
nos braços, não conseguira ficar tranqüilo. Aquele procedimento, vindo de
quem vinha, o revoltava como a mais infame das ingratidões! Ouviu dar três
horas, quatro, cinco. Não se conteve, levantou-se, pisando forte, desceu à
varanda e foi bater à porta de Amélia. Nada. Bateu mais rijo. – Que é?! Perguntou
ela asperamente. – Preciso falar-lhe. – Não são horas para isso! – Ouça! Quero
dizer-lhe uma coisa… – Não tenho negócios! Entenda-se com meu irmão! Amâncio
voltou ao quarto, desesperado. Não que o acovardassem as ameaças da rapariga,
bem percebia que as suas relações com ela não eram em casa nenhum segredo
e, além disso, desde que aceitavam o pagamento, – ora adeus! nada podiam dizer!
Mas apoquentava-se com a falta que já fazia o diabrete da pequena. Habituara-se
a dormir ao calor perfumado daquele corpinho branco, ajeitara-se ao cômodo
amor daquela mulherzinha nova e palpitante e, agora, não podia voltar, assim
sem mais nem menos, às suas tristes noites desacompanhadas do outro tempo.
Acordou muito tarde no dia seguinte. Amélia , quando ele saiu do quarto, não
lhe deu palavra; estava arrumando uma caixa de retalhos, e arrumando ficou.
Mme. Brizard havia saído para ver Nini. – O Coqueiro e os hóspedes se achavam
também na rua. – Então o senhora não me quer falar? Perguntou Amâncio, fitando-lhe
as costas. Ela interrompeu o que cantarolava e, sem se voltar, disse friamente:
– A culpa é sua … E continuou a cantarejar, muito embebida nos seus retalhos
de fazenda. Aquele desdém, namorado e artístico, a tornava ainda mis desejável
aos olhos do rapaz. Parecia-lhe até mais vela esse dia; como se os seus encantos,
intervindo na perrice, florejassem caprichosamente durante aquela noite de
soledade. Amâncio nunca lhe achou a pele tão fina, os dentes tão brancos,
os olhos tão vivos e tão formosos. O pálido e ondulante pescoço da menina
jamais lhe pareceu tão misterioso: a sua garganta, macia e doce, jamais o
cativara tão despoticamente. Ele, enfim, nunca a sentira tão necessária, tão
indispensável. E as cenas venturosas dos seus primeiros dias de amor lhe perpassaram
vertiginosamente diante dos olhos, derramando-lhe por todo o corpo um apetite
brutal de readquirir, no mesmo instante, aquela riqueza, que lhe fugia por
entre os dedos, como um vinho precioso que se derrama. – Então a culpa é minha?…disse
ele, afinal, apalpando com a vista a carne esperta dos quadris e dos braços
da amante. – Pois você não vê, respondeu ela, voltando-se espevitada – que
as coisas não podem continuar como até aqui?! É uma canseira insuportável!
Quase que já não durmo! Preciso esperar de olho aberto que toda a casa ser
recolha e recolher-me ao quarto antes que os mais se levantem! O resultado
é que não descanso; ando tresnoitada;

estou enfraquecendo! Já tenho até uma dor do lado. Quem pode com esta vida?!
Ah! você não sente, bem certo! Porque muita vez o encontro a dormir, e dormindo
o deixo quando saio! Mas eu?! Se quero que não aconteça como outro dia (que
nem sei como não deram pela coisa !) o remédio que tenho é ficar alerta e
não deixar que o dia me surpreenda a dormir no seu quarto! Vê você?! – Mas
daí?…perguntou Amâncio, no fundo compenetrado de que “a pobre menina” não
deixava de ter o seu bocadinho de razão. – Daí…esclareceu Amélia, – é que
nessa tal casa de que lhe falei, e que está para se vender muito em conta,
há, além dos cômodos necessários para Loló e Janjão, dois quartos magníficos,
com entradas independentes e comunicáveis entre si por uma pequena alcova.
Ora, um dos quartos dá para a sala de visitas e o outro para a sala de jantar;
no caso de que arranjássemos o negócio, você ficaria com um e eu ficaria com
o outro, e dessa forma acabavam-se os sustos e as canseiras; porque durante
o dia abriam-se as portas do lado de fora e fecham-se as de dentro, mas à
noite praticava-se justamente o contrário, e ficávamos nos em completa liberdade!
Compreende você agora?… – Sim, Amâncio compreendia e até achava o plano
muito bem lembrado, mas a questão é que não via necessidade d comprar a casa,
era bastante alugá-la… – Sim, sim! mas é que o dono não a aluga, quer vendê-la.
E onde ia você encontrar outra casa nessas condições?… – Hei de passar por
lá… – Não. Vamos hoje mesmo, à tarde. Loló já prometeu que nos acompanha.
– Pois sim. E Amâncio puxou Amélia pelo braço, para lhe dar um beijo. – Deixe-me…rezingou
ela, ainda com um restinho do arrufo. Você só cuida de si e das suas comodidades…Egoísta!
– Não digas isso, meu bem! – Pois não é assim?! Qual foi a vontade séria que
você já me fez? É bastante que eu mostre gosto numa coisa, para você fazer
justamente o contrário…Entretanto, eu, por sua causa, sacrifiquei tudo que
possuía! E começou a chorar, muito infeliz, a dizer que Amâncio tinha razão!
– Ninguém lhe mandara ser tola! Ela nunca deveria ter-se entregado senão depois
do casamento! E as suas lágrimas enxugavam-se nos lábios dele. E assim ficaram
alguns minutos, até que Amélia, de repente, se lhe tirou dos braços e, abrindo
distancias, declarou de longe, em plena atração de seus encantos, que “não
faria nenhum caso de Amâncio enquanto não possuísse o chalé”. Nessa mesma
noite ficou assentado que o rapaz, em nome da amante, compraria a casa das
Laranjeiras.

* * *

Com efeito, umas semana depois, tratava-se da escritura de compra. O negócio
correu a galope, visto que a propriedade era de um pândego sequioso por dinheiro.
Podiam cuidar logo da nova mudança; Amélia, porém, não consentiu em tal, sem
que se realizassem umas tantas benfeitorias que a “sua” casa reclamava; substituir,
por exemplo, o papel da sala de visitas, que era de mau gosto; meter-lhe água,
que não havia, e fazer esteirar os aposentos destinados para si junto com
seu homem. Mas Amâncio não podia distrais tempo com essas coisas: andava muito
absorvido pela idéia dos exames que se aproximavam. Ultimamente viera-lhe
uma febre de formatura, queria a todo o custo “passar “no primeiro ano. –
Também era só do que fazia questão, “passar no primeiro”, porque, quanto aos
outros, tinha certeza de se preparar melhor e com mais antecedência. agora,
lamentava o tempo perdido na preguiça e na moléstia; dava ao diabo os seus
amores, e vivia numa dobadoura a arranjar empenhos e cartas de proteção. Agarrou-se
ao Campos; agarrou-se àquele Dr. Freitinhas (do baile do Melo ) que era unha
com carne de um dos examinadores. E furou, e virou, e percorreu amigos e desconhecidos,
até se julgar “garantido'” . Então, pagou a Segunda matrícula e entregou-se
de olhos fechados a destino. “Seria o que Deus quisesse!” Era ,pois, o Coqueiro
quem dirigia as obras da casa da irmã. O metódico rapaz sempre tivera paixão
por esse gênero de trabalho. – Se fosse rico, afirmava ele, – muito prédio
havia de fazer, só pelo gostinho de acompanhar as obras!

XVI

Chegou, finalmente a véspera do amaldiçoado exame. Que ansiedade! Que de
angústias para o pobre Amâncio! que noite, a sua! – Não descansou um segundo;
apenas, já quase ao amanhecer, conseguiu passar pelo sono; antes, porém, não
dormisse, tais eram os pesadelos e bárbaros sonhos que o perseguiam. Via-se
entalado num enorme rosário de vértebras que se enroscava por ele, como uma
cobra de ossos; grandes tíbias dançavam-lhe em derredor, atirando-lhe pancadas
nas pernas; as fórmulas mais difíceis da química e da físicas individualizavam-se
para o torturar com a sua presença; os examinadores surgiam-lhe terríveis,
ríspidos, armados de palmatória, todos com aquela feia catadura do seu ex-professor
de português no Maranhão. Pelo incoerente prisma do sonho, o concurso acadêmico
amesquinhava-se às ridículas proporções do exame de primeiras letras. Era
a mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca de paparaúba manchada de tinta,
o mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa, João Coqueiro, o Paiva
e o Simões, vestidos de menino, fitavam o examinando com um petulante riso
de escárnio. Amâncio sentia corre-lhe o suor por todo o corpo e agulhas invisíveis
penetrarem-no até à medula. O professor, transformado em juiz e ostentando
as feições do falecido Vasconcelos, inquiria-o com asperezas de senhor; mas
as suas perguntas, em vez de concernirem às matérias do ato, só se referiam
a Amélia. – Por que matou você a pobre menina?! Bramia o pai cravando-lhe
olhares de fogo: – Responda, seu canalha! Responda! Ah! Pensa que ainda não
sei de que você, para melhor a seduzir, lhe havia prometido casamento e jurado
olhar sempre para ela, seu cachorro?! O Coqueiro ,lá do canto, sacudia a cabeça
afirmativamente e enviava a Amâncio caretas de vingança. Ao lado deste, o
cadáver de Amélia fazia-se todo vermelho com o sangue que lhe gotejava golpeava
de golpejava de um dos seios rasgados de alto a baixo O réu queria responder,
justificar-se, expor a verdade; eram, porém, baldados os seus esforços: não
consegui articular uma palavra; gelatinava-se-lhe a voz. na garganta ,empacando-lhe
a fala. – Bem! Gritou o velho Vasconcelos à meia dúzia de soldados que escoltavam
Amâncio. – Conduzam esse miserável ao cepo e cortem-lhe a cabeça! O estudante
atirou-se de joelhos, com as mãos postas, chorando, suplicando que o não matassem.
mas os soldados apoderaram-se dele com violência e ataram-lhe os braços. O
Juiz, Coqueiro, Simões, o Paiva, sumiram-se de repente, soltando gargalhadas.
Amâncio foi conduzido por um corredor muito escuro e apertado; os soldados,
quando o percebiam vacilar, batiam-lhe no ombro com a coronha das espingardas.
Chegou a um pátio lajeado e úmido, onde milhares de homens armados formavam
alas; no centro, sobre um toro de madeira conspurcada de sangue, reluzia um
machado à sua espera; e, de joelhos, abraçado a um crucifixo, um padre velho,
de longos cabelos brancos, engrolava latins Fizeram silêncio. No meio das
respirações abafadas, só se ouviam os passos trôpegos e o aflitivo resfolegar
do condenado que, à ponta de baioneta, subia os degraus do cadafalso. Veio
o carrasco, despiu-lhe a camisa, tosou-lhe os cabelos, e empunhou o ferro.
Amâncio não se resolvia a entregar o pescoço, mas o velho Vasconcelos, que
surgira por detrás dele, atirou-lhe um murro à nuca e fê-lo cair de bruços
contra o cepo. Então, para lhe abafar os gemidos, romperam todos os soldados
num rufo estridente de tambores. Amâncio sentiu o aço frio entrar-lhe na carne
do toutiço, espipar o sangue, e o corpo, de um salto, arrojar-se às lajes.

* * *

Havia saltado, com efeito, mas da cama. E o despertador , que ficara de véspera
com toda a corda para as seis da manhã, continuava o rufo penetrante dos tambores.
O estudante abriu os olhos e passou em sobressalto a mão pela testa; os dedos
voltaram ensopados de suor. Com a perceptibilidade das coisas foi aos poucos
saindo daquele estado de excitação, mas voltando lentamente à taciturna agonia
da véspera. Vestiu-se quase sem consciência do que fazia; esqueceu-se até
de escovar os dentes, porque, mal voltou a si, correu aos livros, sem aliás,
conseguir firmar a atenção sobre coisa alguma.

E Amâncio tremia todo só com a idéia de sua inabilidade. À medida que as
horas se esgotavam e o momento fatal se lhe antepunha, um langor covarde e
mulheril crescia dentro dele, produzindo-lhe arrepios que principiavam na
ponta dos pés e iam-se estendendo pela espinha dorsal, até lhe interessar
a cabeça, depois de percorrer as regiões abdominais. Mas embaixo, na varanda,
em presença de Amélia e Mme. Brizard, fazia-se forte, a despeito da palidez
que lhe alterava as feições. Nem de leve falou nos sonhos dessa noite, e o
Coqueiro, a título de metê-lo em brios, contou várias anedotas de examinandos
ridículos. Os dois tomaram café e por fim saíram. O trajeto de casa à escola
foi um martírio para Amâncio, afigurava-se-lhe, como no sonho, que se dirigia
ao patíbulo. Chegou às dez horas. Alguns companheiros de ato já lá estacionavam
em magotes de quatro e cinco pelos corredores ou à porta da secretaria; fumavam-se
cigarros consecutivos, discreteavam-se os assuntos da ocasião. Amâncio cumprimentou
os conhecidos, parando aqui e ali falando sobre os pontos do exame; – qual
preferia que saísse, em qual se presumia menos fraco e capaz de fazer figura.
Agora, sim, estava mais animado; a presença dos colegas o robustecia com um
vago espírito de coletividade. Sentia-se maios forte e resoluto ao lado dos
companheiros de perigo, como se a vitória dependesse do número de combatentes.
Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de
exames, em torno da sua mesa forrada de pano verde. Amâncio lobrigava-os pela
frincha da porta entreaberta e ouvia-lhes o murmurar descuidoso da conversa,
intercaladas de risotas e baforadas de charuto À vista daqueles homens resfriaram-lhe
de novo as mãos e voltaram-lhe os calafrios do terror, algum resto de confiança,
que ainda teria em si, evaporou-se de todo. E, para não sucumbir, procurava
acreditar na eficácia dos empenhos que arranjara; seu espírito, como o náufrago
que braceja nas agonias da morte, já não escolhia os pontos a que se agarrava;
tudo ser ia naqueles apuros, tudo era pretexto de esperança; mas a consciência
da verdadeira situação vinha meter-se-lhe de permeio, arrancando, uma por
uma, todas as tábuas de salvação. E Amâncio arquejava, desorientado, perdido.
– Que diabo viera fazer ali?! Para que se apresentara? por que não se guardou
para o ano seguinte ou, quando menos para março? Antes não tivesse pago a
Segunda matrícula! Oh! se o arrependimento salvasse!… E, `proporção que
se avizinhava o momento supremo, mais e mais imprudente lhe parecia a sua
temeridade. – Naquela ocasião, pensava ele, – bem podia estar na província,
à testa dos seus negócios, ao lado de sua querida mãe, passeando, rindo, gozando,
como nos outros tempos!…Era rico, era já tão estimado antes da academia,
para que então sofrer semelhantes torturas, passar por aqueles maus quartos
de hora, que ali estava curtindo?… E vinham-lhe venetas de fugir, abandonar
tudo aquilo, sem dar satisfações a ninguém, correr à casa do Campos, encher-se
de dinheiro e arribar para a Europa, para o inferno! Contanto que se livrasse
da obrigação de expor uma ciência que não tinha, escrever idéias de que não
dispunha! Mas o bedel havia surgido e principiava a “chamada”, e, a cada nome,
recitado pausadamente, o seu olhar mórbido, de funcionário público no cumprimento
de um velho dever enfadonho, consultava a multidão de estudantes, que em sussurros
se apinhava pelo esvazamento das portas, empurrando-se uns aos outros, impacientes,
curiosos, o pescoço espichado, a boca aberta, o calcanhar suspenso. – Amâncio
da Silva Bastos e Vasconcelos, disse aquele arrastando a voz. Amâncio sentiu
uma pontada no coração e tartamudeou: – Presente. Os companheiros, que lhe
ficavam por diante, arredaram-se logo, dando-lhe passagem, e ele foi ocupar
uma das banquinhas que havia na sala. A chamada ainda durou algum tempo, porque
Amâncio era dos primeiros; afinal, o bedel mastigou o último nome; fecho-se
a porta da sala; e um silêncio formalista espalhou-se entre a turma dos estudantes
e o grupo dos examinadores. O presidente da mesa tomou a lista dos examinandos,
arranjou os óculos, tossicou e, com um bocejo, chamou pelo que estava em primeiro
lugar.

Um rapazote louro, de buço, ergueu-se e foi ter com ele. O presidente, com um
segundo bocejo e um gesto de cabeça, ordenou-lhe que tomasse um dos pontos da
urna. Amâncio ofegava. – Ia decretar-se o ponto! – Qual seria?… E se, por
caiporismo, fosse justamente um dos mais crus? E o sangue trepava-lhe à cabeças,
pondo-lhe latejos nas fontes.

O rapazote louro meteu enfim a mão na urna e tirou com a ponta dos dedos
trêmulos uma pequena torcida de papel, que passou ao presidente Este desenrolou-a
e leu: “Hidrogênio”. Amâncio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele
do que era! Talvez fosse até entre todos o menos mal sabido; ainda essa manhã
lhe passara uma vista de olhos. Contudo, uma vez imposto o Hidrogênio, quis
lhe parecer vagamente que havia outros pontos preferíveis.. Estava mais tranqüilo,
que era o principal; já quase nada lhe tremia a mão ao receber das do bedel
uma folhas de papel almaço, rubricada pelos lentes, das que ia aquele distribuindo
por todas banquinhas dos examinandos. – Ali, naqueles miseráveis dois vinténs
der papel, tinha ele de determinar o seu futuro, a sua posição na sociedade,
talvez a própria vida de sua mãe, dizendo o que sabia a respeito do tal Hidrogênio!…
Experimentou a pena, endireitou-se na cadeira, e escreveu, caprichando na
letra e procurando obter estilo. A areia da ampulheta esgotava-se defronte
da calva e dos bocejos do senhor presidente. Correu meia hora; Amâncio ergueu-se
afinal, entregou a sua prova e saiu das sala, a esfregar, muito preocupado,
os dedos das mão direita contra a palma da esquerda. À porta, mal acendera
sofregamente o cigarro, contava já aos seus amigos o que havia exposto pouco
mais ou menos. – Ah! com certeza pilhava uma – nota boa! – Não era por querer
falar, mas a sua prova saíra limpa. “Assim não fosse o ponto tão ingrato!…”
E ficaria a prosar sobre o caso, se o Coqueiro, aguilhoado pela ausência do
almoço, não o arrancasse dali.

* * *

A nota foi boa, efetivamente. Soube-o Amâncio no dia seguinte, logo que correu
à secretaria. Não contava, porém ficar tranqüilo, senão depois do resultado
de sua provas oral. Novos sobressaltos foram se agravando durante os dias
que era preciso esperar. Votavam-lhe as aflições; no fim de algum tempo já
não podia comer, não podia ligar duas idéias sobre qualquer coisa e não conseguia
repousar duas horas seguidas. Ficou ainda mais desnorteado que da primeira
vez. Amelinha, então, o estimulava com as suas garrulices e pomba que já fez
ninho. Puxava por ele, tentando arrancá-lo daquele estado, mas não conseguia
lhe despertar um só dos antigos momentos de bom humor, nem lhe merecer uma
de suas primitivas caricias O rapaz andava tonto, cheio de pressentimentos
e de sustos. Tornou-se até supersticioso. – Não podia ver entrar no quarto
uma borboleta de cor mais escura; não podia suportar o grunhir dos cães, nem
queria que a amante prognosticasse “um bom resultado nos exames” – É melhor
não falar!…dizia ele, muito esmalmado. Mas que prazer o seu ao voltar pronto
da escola! Jamais tivera um contentamento tão agudo. Ria sem motivo, sentia
ímpetos de abraçar a toda gente, pulava, cantava, parecia doido.. Soubera
do resultado no mesmo dia da prova oral, por intermédio de um dos professores.
– Saíra aprovado plenamente. Vencera! Colegas o acompanharam até a casa. Lá
ia o Paiva, sempre com o seu olhinho irrequieto e mexeriqueiro, o seu todo
enfrenesiado e farto “desta porcaria de mundo”. Lá ia o triste Salustiano
Simões, encasmurrado no seu ar incrédulo e bamba, a mascar o cigarro, a aba
do chapéu encostada à gola sebosa do fraque Abriram-se garrafas de champanha;
fizeram-se brindes. João Coqueiro desmanchava-se em sorrisos, como se partilhasse
diretamente de todas aquelas manifestações. Foi muito elogiado o exame de
Amâncio, tocaram-se os copos, entre fervorosas palavras de animação; falou-se
em “filhos diletos da ciência”, em “liberdade”. Em “geração nova”, em “mineiros
do progresso”. Todavia, Amâncio, em ar feliz e pretensioso, confessava o pouco
que estudara e gabava-se de sua fortuna. – Podia dar a palavra de honra em
como mal havia tocado nos livros durante o ano. – O Coqueiro e a família estavam
ali, que dissessem!… E basofiava a respeito de sua presença de espírito
particularizando circunstâncias comprobativas de uma sagacidade a toda prova.
– Cá o menino não se aperta! Dizia ele, muito satisfeito consigo.

Expediu-se um telegrama para o Maranhão, dando noticia do grande “acontecimento”.
O Simões e o Paiva ficaram para jantar. Já estavam todos à mesa, quando apareceu
o copeiro com uma carta que um portuguesito acabava de trazer. Era do Campos.
O bom negociante queria festejar o êxito feliz do – jovem acadêmico – com
“uma pequena reunião familiar. Pena era que o Dr. Amâncio estivesse de luto”.
“Não há festa”, explanava a carta, “apenas se reúnem alguns amigos para lhe
beber à saúde; e o doutor bem pode trazer em sua companhia mais alguns”. Amâncio
declarou logo que não dispensava o Simões e o Paiva Rocha e exigiu que o Coqueiro
levasse consigo a família. Pois iriam, iriam todos, até o César. Mas o festejado
teve de franquear o seu guarda-roupa àqueles dois colegas que não queriam
apresentar-se mal amanhados em uma casa, onde entravam pela primeira vez.
O Coqueiro, em particular, exprobrou-lhe essa franqueza: – Foge da boêmia!…
disse-lhe, no seu diapasão de homem sério. – Foge da boêmia, rapaz! Esses
tipos não merecem que se lhes faça a menor coisa!… metem os pés – sempre!
Já os conheço; não seria eu quem os convidara para a casa de ninguém! É gentinha
que só está habituada a cafés e botequins, não respeitam família! Para eles
as mulheres são todas iguais!… Amâncio sorriu. – Ora Deus queira que não
tenhamos de nos arrepender!… acrescentou o outro.- E, àquela roupa, podes
rezar-lhe por alma… o ali cai, fica! O provinciano afastou-se sem responder
e lamentando interiormente que, logo nessa tarde, não estivesse em casa o
eloqüente Dr. Tavares, que seria uma excelente perna dos brindes da sobremesa.
Mandaram-se vir dois carros. Num iria o Coqueiro mais a família e no outro
Amâncio com os dois amigos. Partiram às oito horas, alegremente, num alvoroço
gárrulo de festa. Mme Brizard dera toda força à sua elegância: atirou-se ao
decote, pôs a pedraria ainda do tempo do primeiro marido, e exibiu aquele
rico pescoço, “que ela não trocava pelo de ninguém”! Amelinha estreou um belo
vestido de escumilha azul que lhe dera o amante. No seu colo, cor de camélia
fanada, assentavam muito bem as pérolas e os rubis; seus braços, levemente
dourados de penugem, sabiam, no meio da confusão caprichosa das rendas valencianas,
fazer tilintar com graça os braceletes que se enroscavam nas compridas e transparentes
luvas de retrós. A cunhada, ao vê-la sair do quarto, dissera: – Não parece
uma brasileira!… Tão linda está!

* * *

Foram recebidos com transportes de júbilo por toda a família do negociante.
Campos entregou a casa ao festejado, “que a este competia, naquela noite,
obsequiar às pessoas presentes; fazer as honras da copa e da mesa; promover
quadrilhas e prender as moças até pela manhã. Era o dono da festa, que se
arranjasse!” Amâncio tomou posse do cargo, sem caber em si de contente. Muito
o sensibilizava tudo aquilo que, de qualquer modo, lhe pudesse afagar o amor-próprio.
E em suas mãos a festa tomou um caráter assustador: o pianista não tinha tempo
para fumar um cigarro; os convidados eram constrangidos a beber nos intervalos
da dança e a dançar nos intervalos das libações. Paiva Rocha e o Salustiano,
a despeito de todas as suas garantias de filósofos, intransigentes e péssimos
dançadores, tiveram de entrar, por mais de uma vez, nas intermináveis contradanças.
Ao inverso do que pressagiara o Coqueiro a respeito destes dois, tanto um
como o outro se houveram admiravelmente. Ninguém melhor que eles para respeitar
senhoras; um espesso acanhamento os encascava e tolhia, que nem a concha ao
molusco. Salustiano, principalmente, estava mais tenro e inofensivo que uma
criança; na quadrilha, mal ousava erguer os olhos para sua dama e, querendo
ser muito delicado, apenas lograva, com os exageros da cortesia, trair a sua
nenhuma freqüência nas salas. Para os intimidar bastava as cerimoniosa presença
de senhoras de boa sociedade. Aqueles dois pândegos, tão céticos em teoria
a respeito da mulher, ali, governados pelo meio, eram os homens mais tolerantes
deste mundo; seriam capazes de defender a existência de Deus ou do diabo,
se elas o entendessem. Fato é que o dono da casa gostou deles em extremo e
pediu-lhes que aparecessem aos domingos, uma vez por outra, para jantar. A
festa correu sempre animada até as três horas da manhã, quando Amâncio convidou
as senhoras a tomar lugar na mesa. Ao desrolhar do champanha, ergueu-se este
resolutamente e exigiu que o acompanhassem num brinde.

Abstiveram-se da bulha, e o estudante grupou em torno do nome inteiro do
Campos todo o velho arsenal de retórica aplicável à situação. Em substância
nada afirmou, mas a sua palavra sonora e cheia; as frases gorgolhavam-lhe
dos lábios com essa verbosidade oca e retumbante que se observa nos filhos
do Norte do Brasil, e que, aliás, tem valido a muitos posição eminente na
política. Aquela voz, estalada e aberta, ferindo as vogais, tinha um sabor
muito picante de ironia, vibrava no ar como uma flecha selvagem e feria os
tímpanos como um insulto inverso. As damas interessaram-se pelo discurso e
alguns homens o ouviram sem pestanejar. E todos eram de acordo que Amâncio
estava talhado para o Direito e que havia de fazer “uma brilhante figura”,
quer na advocacia, quer na política, se por acaso abraçasse uma dessas carreiras.
– É rapaz de talento!… diziam já as senhoras cochichando. – A mim comoveu
tanto o demônio do moço, que chorei!… segredou uma quarentona de chinó,
que passava entre os conhecidos por mulher de maus bofes. E principiaram a
olhar com uma certa submissão para o esperançoso Amâncio. E, com efeito o
seu tipo nervoso e moreno de nortista, o seu modo sem-cerimônia de abrir muito
a boca, mostrando num gesto de pasmo a dentadura, o desembaraço de sua gesticulação,
sempre que entornava para dentro um pouco mais de vinho, e principalmente
o metal daquela voz enfática e encrespada pelo tal sotaque da província; tudo
isso, sem dúvida alguma agradava depois de uma boa ceia, quando cada um não
exige de ninguém senão que lhe deixem tomar me paz o seu café e lhe permita
acender o seu charuto. O caso é que Amâncio se converteu numa espécie de presidente
da mesa. Era a ele que se dirigiam os que propunham novos brindes; era para
ele que mais se voltavam durante o discurso, e, tal e qual no jantar de seu
pai por ocasião do célebre exame de primeiras letras, ainda era ele o alvo
das melhores felicitações; com a diferença de que, neste agora, em vez de
consultar de instante a instante o famoso relógio alcançado naquele dia, o
que Amâncio consultava eram os olhos de Hortênsia, nele igualmente presos
mas por uma cadeia doutra espécie. E, ainda como na primeira festa, o estudante
abusou um pouco dos licores; mas, agora, em vez de pegar no sono, deu-lhe
a bebedeira para abrir às francas com a dona da casa, logo que a pilhou sozinha
no terraço, ao fundo do segundo andar. Hortênsia não se indignou com isso,
mas também não se mostrou satisfeita; não repeliu com energia as palavras
do sedutor, mas não se pode dizer que as acolhesse de boa cara; não lhe deu
enfim, os beijos que ele pedia, mas por outro lado não retirou a mão que o
rapaz agarrara entre as suas. – Eu te adoro, meu amor, minha vida! dizia-lhe
o velhaco, cheirando-lhe os grossos braços revestidos de filó. – Não to disse
há mais tempo por falta de coragem, juro-te, porém, que é verdade! Amo-te,
minha Hortênsia, amo-te com todo o entusiasmo, com toda a paixão de que sou
capaz! Ela o ouvia em silêncio, a pensar, os olhos ferrados a um ponto, o
ar todo caído e acabrunhado como por uma espécie de desgosto; não se mexia,
apenas, quando Amâncio teimava muito em querer beijá-la, desviava o corpo,
sem voltar a cabeça. – Mas, então?…perguntou ele. – Então, o quê?…fez
a outra como interrompendo um longo pensamento. – Não aceita o meu amor?..
– Não, decerto, não posso aceitar semelhante coisa! – Por que, minha santa?…
– Não tenho esse direito; conheço os meus deveres e a minha responsabilidade
.O mais que lhe posso dar é uma afeição de irmã, de amiga, uma afeição sagrada
e pura ! Amâncio declarou que pensava desse modo justamente, mas agora queria
um beijo, um só! O primeiro e último! – nada mais sagrado e puro do que um
beijo!… – Nunca! Disse ela, fugindo com o rosto. Ele a tomou à força e a
senhora ficou ressentida, chegou a ter um gesto de impaciência e teria fugido,
se o estudante não a segurasse pela cintura. – Solte-me! – Perdoa, perdoa,
meu amor! Segredava ele, quase ajoelhado .- Bem quisera ser para contigo o
mais respeitoso dos homens, mas não me pude dominar…Perdoa! – E jura que
, de hoje em diante, não cairá noutra?… – Juro! Juro! Mas não te revoltes
contra mim! – E que nunca mais me faltará ao respeito?… Amâncio fez um gesto
afirmativo, em o qual seus olhos , agora mais estrábicos sob a influência
do vinho e do desejo, luziam suplicantes, como os olhos de um cão que tem
fome.

– Pois bem, murmurou ela, meio compadecida. – vá lá por esta vez! Está perdoado,
mas fique prevenido de que, se repetir a graça não, respondo pelas conseqüências
Amâncio ia fazer novos protestos , quando sentiu que alguém se aproximava;
ergueram-se ambos, instintivamente, e ,fugindo ao rumor, seguiram de braço
dado para a sala. Tocava-se uma valsa. Ele , sem consultar Hortênsia, enlaçou-lhe
a cintura, e puseram-se os dois a rodar, a rodar, tão certos e tão leves,
que prendiam a atenção de quantos lá s achavam. E o Coqueiro, encostado à
ombreiras de uma porta, acompanhava-os com um sorriso de felicidade, no qual
havia alguma coisa de orgulho de pai que se revê num filho prodigioso. Mas
o querido estudante, para o fim da festa, já não pareci o mesmo: as bebidas
e o cansaço davam-lhe um ar grosseiro e desalinhado; já se lhe não via o colarinho,
nem os punhos; a roupa empastava-se-lhe com o suor e a cabeleira desguedelhava-se
sobre a testa. E vinham-lhe então pilhérias de mau gosto; tratava Amelinha
quase licenciosamente e regamboleava as pernas e os braços no meio da quadrilha,
como se estivesse num baile público. Já não dava excelência a ninguém e queria,
por força ,que o Simões e o Paiva, depois da festa, o acompanhassem a um passeio
ao alto da Tijuca. – Que diabo! Rosnava ele, cuspilhando para os lados. –
Ou bem que a gente se mete na pândega ou bem que se não mete! Só se retiraram
ao despontar da aurora. César, que adormecera desde as onze horas da noite,
ficou para passar o dia com a família do Campos. Amâncio pôs um carro à disposição
do Paiva e do Simões e seguiu no outro com as duas senhoras e o Coqueiro.
Este toscanejava durante a viagem, ao lado da mulher que se sumia na abundância
de uma formidável capa de lã; enquanto que Amâncio, a charutar derreado para
um canto da carruagem, adormecia com a mão direita esquecida entre as de Amélia

XVII

Recebeu no dia seguinte uma carta de Ângela; era a segunda que ela escrevia
ao filho depois da morte do marido. Já na primeira lhe suplicava que a fosse
ver, logo ao entrar das férias, pois agora estava muito só e acabrunhada de
desgostos; além disso, os seus padecimentos se agravavam. Amâncio que se não
demorasse; a infeliz tinha para si que a presença do filho substituiria com
vantagem todos os remédios da botica. Na segunda carta ainda se mostrava mais
impaciente e mais aflita pelo rapaz. Falava até no receio de morrer sem abraçá-lo,
caso Amâncio não se apressasse a ir em seu socorro.- A presença dele tornava-se
precisa , mesmo com referências aos interesses do inventário; por quanto D.
Angela começava a desconfiar do Silveira, que não fazia outra coisa senão
lhe pedir dinheiro e mais dinheiro para as tais custas. – Enfim, por todos
os motivos, era urgente que Amâncio desse, quanto antes, um pulo ao Maranhão.
Amelinha, que já não ficara muito tranqüila com a primeira carta, assustou-se
deveras quando o amante lhe mostrou a segunda . – Eu não consinto nesta viagem!
Disse-lhe terminantemente. – Mas não vês que se trata de um caso urgente,
que se trata de defender meus interesses, que se trata de salvar a vida de
minha mãe?…Ou queres tu que eu a mate, hein?… – Amélia não tinha nada
quer ver com isso!…A sua questão resumia-se no seguinte: “Dera-se a um homem,
porque o amava e porque se supunha amada por ele; esse homem a possuiu como
bem quis, gozou-a como muito bem entendeu, e, um belo dia, talvez por já estar
farto, resolvia meter-lhe os pés e pôr-se ao fresco!…” Boas! Não havia de
ser com ela! Amâncio que não caísse em semelhante asneira, porque então veria
o bom e o bonito! Quem o afiançava era “a Amelinha dos camarões”! – Mas ,
filha, que queres tu que eu faça?…Bem vês que esta viagem ao Norte é inevitável!
– Pois então vamos juntos…Casa-te primeiro comigo! A idéia foi tão intempestiva
que o estudante respondeu com uma gargalhada. Mas o demônio da rapariga, tornando
às boas de repente, saltou-lhe ao pescoço e disse-lhe, entre beijos: – E por
que não ?…Por que não te casa logo comigo, meu amor?… – Porque era impossível!…explicava
ele. “Casar não é casaca” Era muito cedo para cuidar nisso!…Primeiro tinha
de formar-se, praticar algum tempo em Paris, e depois então…sim senhor,
não dizia o contrário e havia de ser o mais empenhado em que a coisa se realizasse!
Mas por ora…”Deus nos acuda!” era até loucura pensar em semelhante história!…

Amélia fez-se logo de mau humor; vieram os remoques e o s reviretes do costume,
houve palavras duras de parte a parte e, afinal, como estabelecido imposto
de reconciliação, ficou assentado que Amâncio arranjaria mobília nova para
o chalezinho das Laranjeiras. E o rapaz lá foi comprar os trastes. Dois dias
depois, realizava-se a terceira mudança. O Dr. Tavares, o último hóspede da
famigerada Mme. Brizard, pagou a sua última conta e recebeu da francesa um
abraço de despedida. – Ah! suspirou elas. – Até que enfim se podia descansar
um pouco! Já não era sem tempo! O chalezinho de Amélia ficou muito catita;
parecia um ninho de noivos. Estava a pedir lua-de-mel! A cachorra da pequena
tinha gosto. Exigiu tapetes, espelhos, cortinas de chita indiana para a sala
de jantar, cortinas de renda para a salas d visitas; quis moldura dourada
nos quadros, estatuetas pelas paredes; não dispensou nos aparadores e nos
consolos jarras de porcelana das mais à moda; jardineiras aqui e ali, vasos
caprichosos com begônias e tinhorões sobre a mesa de jantar; cestinhas artísticas,
com para sitas, para dependurar nas janelas; e ainda fez substituir na cozinha,
nos arranjos da comida e no arranjo dos quartos, tudo aquilo que lhe parecia
em condições de reformas. E só com essas coisas e só com a satisfação de tanta
exigência é que Amâncio conseguia paliar as revoltas da amante. O desgraçado
já não tinha ânimo de contrariá-la, porque bem conhecia o preço das rezingas
e, sem achar meio de reagir, via claramente que as reconciliações se tornavam
mais caras de dia para dia.

* * *

Entretanto, depois da mudança, o amor dos dois tomou um caráter mais digno
e decente. Já não era necessário que a rapariga andasse à noite em ponta de
pés pela casa, tateando a escuridão para ir ter com o seu homem. agora dormiam
à vontade, com as portas bem fechadas por dentro. E só se despregavam do lado
um do outro, quando tinham que abandonar o quarto. Então, cada um se servia
da porta competente: Amélia tomava a da varanda e Amâncio a da sala de visitas!
Não podiam desejar melhor! Melhor, bem certo para o descanso do corpo e repouso
do espírito; não, porém, para garantia do amor, essa estranha função psicológica
que só alimenta asa suas raízes nos sobressaltos e no perigo. Tamanha segurança
e tamanha liberdade de ação deviam fatalmente levantar a pontas do tédio,
cujo novelo existe, mais ou menos escondido, no fundo de todas as coisas.
Não vinha longe a saciedade; Amâncio já lhe ouvia o bocejar. Iam-se-lhe pouco
a pouco amornecendo os primitivos arrebatamentos do desejo; os dois tinham-se
já frouxamente, sem lumes de entusiasmo, sem os esforçadores auxílios da imaginação.
Assuntos práticos, positivos, agora se lhes intercalavam nas carícias, puxando-os
grosseiramente à calma realidade da vida. Amelinha já lhe não surgia no quarto
com aquele trêfego ruçar-se de pomba assustada, o que lhe enchia as feições
e os movimentos de uma graça tão maliciosa e provocadora; agora se apresentava
com um ar muito tranqüilo, de casada, a arrastar os chinelos, o roupão desabotoado
e solto, num farto abandono de alcova. Despia-se defronte de Amâncio, coçando
negligentemente as partes do corpo que estiveram comprimidas durante o dia,
como a cinta, o lugar das ligas e dos canos das botinas. Despenteava-se ali
mesmo, alado da cama do rapaz, sacudindo o cabelo com ambas as mãos, num movimento
de braços erguidos que lhe mostrava a grenha das axilas; ele, também, parecia
não dar por isso, eras todo do livro que lia à luz de uma vela pousada no
criado-mudo. E os assuntos de suas conversas materializavam-se completamente.
Já só discutiam interesses práticos, arranjos de vida e conveniências domésticas:
“Era preciso arranjar um jardineiro, que viesse uma vez por semana cuidar
das plantas e limpar os tanques. – Era preciso chamar o homem do gás para
consertar tal candeeiro que não dava boa luz. – Era conveniente alugar uma
criada que soubesse lavar; porque a ladra da lavadeira trocava as camisas
e encardia a roupa, que fazia lástima!” E, à vezes, na intimidade dessas conversas,
criticavam os atos de Mme. Brizard e do Coqueiro; censuravam-lhes umas tantas
coisas, como, por exemplo: a negligência destes para com o César. “O pequeno
ia por um tal caminho, que, se não abrissem os olhos, havia de amargar mais
tarde! – Que diabo custava ao Janjão arranjá-lo aí em qualquer casa de comércio
ou, pelo menos, fazê-lo aprender um ofício?…Em casa mesmo já lhe podiam
ter metido nas unhas a carta do ABC e já lhe podiam ter ensinado alguma coisa…Mas
Loló não se queria incomodar! E senão, vissem o que se passava a respeito
de Nini; outra fosse a boa da mãe, que as pobre rapariga não levaria semanas
e semanas lá na casa de saúde, sem ter uma pessoa que olhasse por ela.” Eram
sempre deste teor os motivos de sua conversa. Amélia, não obstante, fazia-se
muito ligada aos menores interesses do amigo: queria saber o que ele gastava
por fora, com quem estivera; reprovava-lhe certas relações, certas companhias
“que não punham ninguém pra diante”, e aconselhava-o a que se não descuidasse
de

outras que lhe podiam ainda vir a servir; pregava-lhe sermões a respeito
de economias. “O mundo estava cheio de espertos: ele que desconfiasse de todos;
cada um só procurava chamar a brasa para a sua sardinha!” Queria estar a par
de como iam os negócios do amante na província. “Se o dinheiro ficara em boas
mãos; se não havia risco de uma quebra ou de alguma ladroeira”. E muito egoísta,
muito mulher, muito agarrada ao que lhe pertencia, desde Amâncio até ao pó
de suas gavetas, fazia justamente como fazem os sócios comerciais que parecendo
tratar dos interesses abstratos de uma firma, estão mas é tratando dos próprios
interesses. Outras vezes boquejavam sobre os conhecidos, sobre as pessoas
de amizade. Uma noite, em que , durante o serão da varanda, se conversou muito
a respeito de Hortênsia, Amélia, já no quarto, em fralda, com um joelho dobrado
em cima da cama, enquanto tirava grampos da cabeça e os arremessava para o
velador, disse, como se continuasse um pensamento: – Ela, fim de contas, não
passa de uma mulher como as outras!…Loló e Janjão. É que, quando gostam
de uma pessoa tiram tudo dos outros para enfeitá-la! – Quem? D. Maria Hortênsia?
Perguntou Amâncio, procurando num livro o lugar em que na véspera deixara
a leitura. E, depois de um movimento afirmativo da rapariga: – Não, o Coqueiro
tem razão – a mulher do Campos é uma excelente senhora. Muito honesta! – Ora!
É uma mulher como as outras…sustentou Amélia, galgando a cama por cima do
amante, para se aninhar ao lado da parede. – Como as outras, como? Em que
sentido? – Não é lá essas purezas que a querem fazer! Não é nenhuma santa!
– Estás enganada, filha! A Hortênsia é uma mulher muito séria!… – Quando
não se ri… – Pelo menos até aqui, que me conste, ninguém ainda se animou
a dizer nada de sua conduta! Amélia, então, possuída de um rancor instintivo
de classe, de uma surda antipatia de mulher suspeita por mulher honesta, desencadeou
os seus argumentos e as suas razões. Trouxe a lume conversas inteiras, que
bispara na tal noite do exame. “Amâncio via caras e não via corações!…Aquele
– meu bem pra cá, meu bem pra lá, – que todos notavam entre o Campos e a mulher,
era só dos dentes para fora! No íntimo, Hortênsia detestava o marido! Achava-o
muito bom homem, é verdade, muito generoso, não podia se queixar de que lhe
faltasse nada, – boa mesa, boa casa, criados pra servir, teatros, bailes,
seu bom carro, seu vestido de preço, – sim senhor! Mas só ! Quanto a carinhos
– nicles! A respeito de certos confortos de que uma mulher precisas, – era
uma miséria! Às vezes, passavam-se meses e meses sem que o marido a procurasse!
O pobre homem andava lá com os seus negócios, coitado! E a doida, em lugar
de conformar-se com a sorte, punha a boca no mundo e eram queixas e mais queixas
pra frente! Que ela, Amélia, não soubera de tudo isso, por parte deste ou
daquele – escutara com seus próprios ouvidos!” – Pois bem, ainda me ajudas!…volveu
Amâncio, tomando extremo interesse pela conversa, – ainda me ajudas, porque,
se é como dizes, o bom comportamento de D. Hortênsia torna-se muito mais digno
de admiração!… – Sim!…Retrucou a rapariga ironicamente. – Também acho
bom, mas moro longe! – De um, quando mais não seja, sei eu, por quem o tal
“anjo de pureza” seria capaz de dar uma perna ao diabo! E olha que, se ainda
não a deu, foi porque ainda não teve ocasião para isso! Vontade não lhe falta!
Ele que se apresentasse e veríamos! Amâncio quis logo saber quem era o sujeito.
– Um tipo! Não o conheces. – Mas como se chama? Amélia, depois de alguma hesitação,
confessou. – Era o Sousa Antunes…Aí tinha! – Que Antunes? Interrogou Amâncio,
já mordido. – O Antunes, homem! Aquele sujeito da Câmara. Alto, de cavanhaque,
aquele de castor branco, que uma vez encontramos nas regatas, em Botafogo.
– Ah!…Já sei, já sei… E Amâncio procurou disfarçar a sua contrariedade,
fingindo que se abismava na leitura. E parecia muito preso à página, enquanto
aliás o seu pensamento buscava descobrir no tipo de Sousa Antunes os atrativos
que cativaram a mulher do Campos. – Impossível! O tal Antunes era um viúvo
talvez de quarenta anos, pai de filhos, e vulgar, sem talento de espécie alguma,
vivendo de um ordenado oficial de secretaria, nem tendo, ao menos, qualidades
físicas que inspirassem paixão a qualquer mulher, quanto mais àquela! aquela
que não pôs dúvida em lhe atirar com uma recusa pelas ventas!… – Não! Isso
deve ser história!…considerou ele em voz alta.

– Qual história, o quê! Retorquiu logo Amélia. – É louca por ele! Quando
o avista, fica tonta! Eu vi! ( e arregalou um dos olhos com o dedo. ) Ainda
outro dia, no São Pedro- que escândalo! Não lhe tirava o binóculo de cima!
O que a cegou, sei eu… – Mas como viste tu a saber disto?… – Ora! Loló
é toda das Fonsecas, que estão agora de cama e mesa com a Hortênsia!… –
Fonsecas?… – Aquelas moças esquisitas, aquelas que foram à soirée!… Lembras-te?…Ó
homem! as Fonsecas…as de Catumbi!… A Amâncio pouco lhe importavam as Fonsecas,
o quer ele desejava eram mais algumas informações a respeito do escândalo.
Não podia suportar a idéia de que Hortênsia, a mesma Hortênsia que lhe repelira
os beijos, tivesse um fraco pelo Antunes, o Antunes do cavanhaque! – Que horror!

* * *

E, depois dessa conversa, principiou a freqüentar a casa do Campos com mais
assiduidade. Aparecia regularmente duas vezes por semana e quase sempre se
demorava até as horas do chá. – Mas Hortênsia – qual! Não atava, nem desatava.
Era sempre a mesma criatura incompreensível; sempre aquela mesma ambigüidade,
a mesma dúvida, o mesmo querer e não querer! Hoje – Um sorriso de esperanças;
amanhã – uma frieza esmagadora; depois – ora muito coloridos de ternura, ora
lulados de orgulho; tão depressa altiva e sobranceira, como suplicante e humilde;
tão depressa risonha como triste, generosa como sovina, dando com uma das
mãos para tomar logo com a outra. O rapaz impacientava-se: – Fossem lá compreender
semelhante mulher! Um dia – toda condescendência, toda interesse por ele,
no outro – gestos desabridos, ameaças, palavras duras . – Sebo! – Já passava
a debique! No fim de contas não valia a pena! Mas o ladrão da mulher tinha
uns olhos tão doces, uns decentes tão brancos, uma pele tão viçosa!…”Não
senhor! Era preciso acabar com aquilo! Ele estava fazendo um papel ridículo!…”
E deliberava não pensar mais na mulher do Campos. “Que diabo! Se se queria
divertir, comprasse um boneco de engonços!…” Quando , porém , dava por si
no dia imediato, já os passos o tinham conduzido para a casa do negociante.
Entraria, mas lá dentro havia de ser forte, inabalável! E trepava pelas escadas,
imaginando o improvisar um namoro com a Carlotinha, estudando os assuntos
de que teria de usar na conversa, calculando os efeitos que a sua afetada
indiferença devia produzir no espírito da caprichosa. Bastava, porém, um sorriso
de Hortênsia,, uma palavra mais terna, um gesto mais amoroso, para o fazer
ficar caído, desarmado, seguro como nunca. – Era o diabo! Voltava para casa
furioso, atirando com as portas, respondendo de má vontade às perguntas que
lhe dirigiam. Amélia o estranhava, sem dar contudo, a perceber coisa alguma.
Apenas lhe perguntava, aliás como sempre, onde estivera e, quando o rapaz
dizia secamente “Com o Campos”, ela fazia: – Ah!… E não tocava mais em semelhante
coisa. Uma noite ele entrou ainda pior que das outras. Não quis ir à varanda,
meteu-se no quarto, abriu um livro e aí ficou, junto à secretária, com a fisionomia
fechada sobre a página. Todavia, seu pensamento trabalhava: “Era preciso acabar
com aquilo, custasse o que custasse! Era preciso definir as posições! – Ou
a mulher do Campos se explicava, ou ele não poria lá mais os pés!” E resolveu
que o melhor seria escrever-lhe uma carta enérgica, decisiva, exigindo um
“sim” ou um “não”. Fosse a resposta qual fosse, contanto que viesse, contanto
quer Hortênsia desembuchasse por uma vez! Mas não queria escrever enquanto
Amélia não pegasse no sono. – Ele bem sabia o quanto era a rapariga desconfiada
e fina. Só quando a pilhou quieta e presumiu que já estivesse dormindo, foi
que se animou a minutar a carta. Frases e frases desesperadas e cheias de
fogo acavalavam-se umas pelas outras, falando em martírios infernais, em suplícios
dantescos e terríveis aniquilamentos. E Amâncio, no seu epicurismo estrepitoso
e brutal, declarava que “já não podia suportar as meias promessas, os dúbios
sorrisos e as lentas torturas que ao sangue recalcado lhe impunham as atitudes
perplexas de Hortênsia. Preferia a dor por inteiro, completa, de um só golpe.
Ela que tomasse uma resolução, que despachasse! Se lhe não convinha o amor
que ele propunha, declarasse-o com franqueza: – ficaria o dito por não dito!
E, assim, escusavam de prosseguir naquele encarniçamento desabrido, de

cujo oscilante resultado as dúvidas e incertezas o acabrunhavam e consumiam,
mais dolorosamente do que tudo que pudesse haver de terrível e cruel em uma
solução desfavorável!” Quando deu por coreto e limado o que escrevera, tirou
a limpo uma cópia, sobrescritou-a e, para que Amélia não descobrisse nada,
escondeu todos os corpos de delito no fundo de uma das gavetas da secretária.
Depois, como se tivesse alijado um novelo da garganta, respirou desafrontadamente,
amorteceu o bico da gás e, abafando os passos e desfazendo-se em cautelas,
foi meter-se nos lençóis, muito empenhado em não acordar a amante. Não levou
dez minutos a cair no sono. Então, Amélia, ergueu-se, ainda com mais cuidado
do que ele se recolhera, foi pé ante pé à secretária, tirou a carta e, depois
de guardá-la em lugar seguro, tornou de novo à cama, e desta vez adormeceu
deveras.

* * *

Leu-a precatadamente no banho, às oito horas da manhã, enquanto esperava
que o tanque de mármore se enchesse. Amâncio ainda ficara no quarto. Ela,
já despida, encostada ao rebordo da banheira, os ombros curvos, uma perna
sobre a outra, a cabeça descaída molemente para os combros polposos do seio,
tinha em uma das mãos a pequena folha de papel e, de tal modo a fitava, que
parecia disposta a consumi-la com o brilho de seu olhos. Aquela carta a revoltava
muito; não por ele, mas por si mesma; não pelo afeto que teria ao estudante,
mas pelo ressentimento de seu amor-próprio ofendido. Não lhe podia sofrer
a vaidade que um homem, a quem, por merecer, ele fizera tudo que estava em
suas mãos; um homem por quem lançar em juízo jogo todos os recursos de sua
feminilidade; um homem por quem barateara todo o valimento do seu corpo, tivesse
ânimo de desprezá-la por outra mulher! E, com o olhar imóvel sobre a nudez
oriental de seus membros, a boca entreaberta, o colo palpitante, Amélia se
concentrava toda na idéia de uma vingança completa, tão completa, tão grande
que lhe atulhasse o rombo cavado no seu orgulho e mulher traída. A água, que
escorria da torneira com um trapejar monótono, punha no ambiente desagasalhado
do banheiro uma impressão ainda mais fria de umidade e desconforto; e aquele
nu destacava-se ali como uma bela estátua desprezada. Sua carne tersa e maciça
contraía-se, empinando os lóbulos do peito e enrijando a vermicular protuberância
dos quadris. Nisto, uma abelha voejou à roda da cabeça de Amélia, tentando
pousar-lhe nos cabelos; ela agachou-se toda, fugindo logo num movimento medroso
de caça que se assusta. Em seguida, puxou a toalha do cabide e pôs-se a dardejá-la
contra o dourado importuno. Foi uma luta. O inseto fugia; ela trepava-se à
borda do tanque, equilibrando-se, ora num pé , ora no outro, segurando-se
à parede, vindo, recuando, a despedir para todos os lados golpes perdidos
da toalha. Mas a abelha não se deixava prender. Ia e revinha no ar, zumbindo,
a sacudir as sua trêmulas asas de escumilha; até que o sol, por uma frincha
do telhado, veio buscá-la numa aresta de luz, ainda mais dourada do que ela.

* * *

Nessa ocasião, Amâncio, no quarto, perdia a cabeça, à procura da carta. –
Pois se eu a guardei aqui, com estas minutas!…resmungava ele sozinho, depois
de ter já desarrumado toda a gaveta. Imaginar que Amélia desse com ela, não
! não era possível! Não descobriria o lugar, onde Amâncio, tão previdentemente,
sepultara a maldita carta; além disso, quando ele se meteu na cama, já a pequena
dormia a bom dormir e, pela manhã bem a viu acordar e escafeder-se para banho…Que
diabo teria então mexido ali?…As portas ficavam sempre fechadas por dentro!…Supor
que tivesse guardado o demônio da carta em outra parte…mas como? Se a deixara
justamente dentro das minutas, e as minutas lá estavam?… Mas Amélia vinha
de entrar no quarto ao pé.

– Ó Amelinha! Viste por acaso por aí alguma carta?…perguntou o rapaz indo ao
seu encontro. – Que carta? Fez ela com o ar mais calmo e mais natural deste
mundo. – Uma carta que nem é minha!…Guardei-a naquela gaveta, – desapareceu!…agora
não sei que contas preste ao dono! É uma entalação! Uma verdadeira entalação!
Queixava-se o rapaz convictamente. – Mas , onde a puseste? – Na gaveta da secretária;
estou-te a dizer!

– Então deve estar lá. Procura bem. – Já vi. Não está! – Pois aqui não entra
mais ninguém…Eu cá por mim, não mexo nunca nos teus papéis, e ainda nem
abri, uma vez sequer, qualquer dessas gavetas…Se puseste a carta aí, aí
deve estar por força! – Qual está o quê! Já despejei a gaveta! Já remexi tudo.
E a desordem em que se achava o quarto dizia isso mesmo. – Então não sei…concluiu
Amélia, sacudindo os ombros. E continuou tranqüilamente a enxugar os cabelos,
cujo serviço havia interrompido para atender às perguntas do amante. – Mas
a carta também não podia voar! Declarou este em tom áspero. – Sei lá! Replicou
a outra. – Comigo que não a tenho…isso afianço! Diabo! Praguejou Amâncio,
sem se poder dominar. Pois, nem uma miserável carta posso ter nessa casa?!
Arre! Que inferno! – Inferno são esses modos que tens ultimamente! De certo
tempo para cá é esta boniteza ! Parece que falas ao Sabino! Outra que sabe!…quem
sabe se tenho aqui algum senhor?!… – Está bom! Basta! – Basta vá ele! Seu
atrevido! Quero saber que culpa têm os mais com os sumiços que levam as cartas,
para ouvir impropérios destra ordem! – Eu não me dirigi a ninguém! Sebo! Falo
cá comigo! Creio que ao menos tenho o direito de zangar-me quando entender!
– Sim, mas é que os outros também não estão dispostos a aturar esses repelões
a todo o instante! – Pois que não aturem! – Malcriado! Agora, por qualquer
coisinha é isso que se vê! – Qualquer coisinha, não! berrou Amâncio. – É que
ontem pus aqui uma carta (soltou um murro na secretária) 3 e a carta desapareceu!
Irra! – Mas quem é que te podia vir aqui tirara a carta, criatura de Deus?!
Perguntou Amélia mais branda, encaminhado-se para o amante, a modos de querer
chamá-lo à razão. – Não sei! O fato é que a pus aqui, e ela cá não está! –
Há de estar, homem! Não a encontras agora porque já não tens cabeça, mas,
logo que te acalmes, hás de descobri-la… – Mas onde?! Já corri tudo! – Deixas
estar; eu me encarrego de procurá-la assim que saíres. – Mas é quer eu precisava
levá-la comigo! É negócio urgente! Amélia, como em resposta à última frase
do rapaz, abaixou-se sobre os papéis espalhados no chão e começou a examiná-los,
um por um. – Não está aí! Observou Amâncio zangado, a passear de um lado para
outro. – Já revistei tudo isso mais de cem vezes! Furtaram a carta, não tem
que ver! Amélia já não respondia e continuava, muito afoita, a esquadrinhar
o que havia pelo quarto. – Se me lembro perfeitamente que a meti naquela gaveta,
ao fundo, dentro destas minutas!…Acrescentou Amâncio, depois de um silêncio
colérico. – Mas quando a trouxeste?…disse Amélia, sem tirara os olhos do
que rebuscava. – Ontem à noite. – Mas eu não te vi com ela… – Já estavas
dormindo, quando a pus na gaveta. – Quem sabe se ficou naquela algibeira?…
E a manhosa, com um vislumbre, largou tudo de mão para correr a examinar a
roupa do cabide. – Ó filha! Eu não estrava bêbado quando me recolhi! observou
Amâncio. E saiu para se lavar, traçando furioso lençol em volta do corpo,
num gesto melodramático. Quando tornou ao quarto, Amélia já havia arrumado
as gavetas e dispunha sobre a cama a roupa que o rapaz devia vestir à volta
do banho. – Então?…perguntou ele , ao entrar. – Nada! volveu elas, com admiração
na voz. – Com efeito! Isto contado não se acredita!…Rosnou Amâncio, enfiando
as meias. E gritou para fora: – Ó Sabino! Olha essas botas, moleque! Amélia,
ao lado, metia-lhe os botões numa camisa engomada. E depois , a escovar-lhe
o paletó no corpo, quando o estudante já estava pronto:

– E a carta, de quem era?… – Do Campos, respondeu ele, sem hesitar. E saiu.
Amélia acompanhou-o pelas costas com um riso de asco.

* * *

E logo que se viu só, tirou do seio o seu furto e releu-o mais uma vez. –
Que devia fazer daquela carta?…como se devia servir daquela arma?…Denunciar
o infame? – atirar-lhe à cara a prova de sua vilania e nunca mais o procurar
para nada, ou devia simplesmente fingir que não sabia de coisa alguma, e,
em segredo, tomar a vingança que lhe parecesse melhor? Despedi-lo por uma
vez – não convinha! Isso nem por sonhos! Ficar, porém, eternamente resignada
e submissa, também seria asneira! Seu amor-próprio estava mordido e sangrava.
O procedimento desleal de Amâncio assumia no tribunal egoístico de seu espírito
ignorante e mal-educado as proporções jurídicas de um crime, de um monstruoso
abuso de confiança, um estelionato. Não podia conformar com a idéia daquela
tremenda injúria, lançada contra os seus direitos de mulher nova e bonita.
– Canalha! Murmurava consigo, a esmoer o fato. – Bem me dizia o coração!…Agora,
o que precisavas que te fizesse, sei eu! Ah! Mas descansa que hás de pagar
com língua de palmo! Para não seres cão, meu safardana! Foi-se porém, todo
o dia, sem que Amélia deliberasse o destino que deveria dar à carta. Só na
manhã seguinte apareceu-lhe uma resolução. Foi ter com o mano, chamou-o de
parte e entregou-lha. – Vê isto, disse. Coqueiro abismou-se logo desde as
primeiras palavras: “Minha adorada e incompreensível Hortênsia”. – Que vem
a ser isto?…Perguntou ele intrigado. – Lê! Respondeu ela. E, enquanto o
irmão devorava o que vinha escrito: – Vê tu só a hipocrisia daquele sonso!…
– Ele já sabe que esta carta está em teu poder? Interrogou Coqueiro depois
da leitura. – Qual! Nem pode descobrir! – Ainda não deu pela falta? – Já.
Zangou-se um bocado, arrepelou-se, mas afinal creio que se convenceu de que
a tinha perdido. – E agora o que tencionas fazer disto? – Não sei…Que achas
tu?… – Acho que por ora não convém fazer nada! – Calar-me?! – Por ora, decerto!
Esta carta pode vir a servir-te de muito , mas é preciso que, em primeiro
lugar, apareça a ocasião. Se quiseres, deixa-a comigo, que eu sei o destino
que lhe devo dar. E guardou-a no bolso, depois de um gesto aprobativo da irmã:
– Ele a teria escrito de novo e feito chegar às mãos de Hortênsia, sabes?…
– Não sei, mas posso ver. – Bem. Em todo o caso, não te dês por achada! Nem
uma palavra a este respeito! Precisamos dar tempo ao tempo…podes, todavia,
ficar desde já tranqüila, que o que tem de ser – traz força! A justiça não
se fez para os cães!… – É por isso mesmo que eu não confio muito na tal
justiça! Observou a rapariga.

XVIII

Mas, no fundo, João Coqueiro principiava a “cismar com o negócio”. Segundo
os seus cálculos, a irmã, por aquela época, já deveria estar pejada: circunstância
esta que daria oportunidade a um escândalo, de antemão, preparado, forçando
Amâncio a “reparar sua falta”. E, no entanto, Amelinha “nada de aviar”! O
bom irmão sentia até como um peso na consciência por haver contribuído diretamente
para aquela situação. – Era sempre assim!…pensava ele enraivecido. – Se
não precisássemos de um filho, é que os pestinhas haviam de aparecer aí de
enfiada!

E o receio amargo de ter sacrificado a menina, talvez sem os belos resultados
que esperava para si e para ela, invadia-lhe o coração e punha-lhe momentos
maus na vida. Mme. Brizard já não pensava do mesmo modo. Aquela existência
pronta, inteiramente desocupada, lhe viera muito a propósito. “Ela, coitada
de si! Bem precisava de um bocado de descanso!” As coisas, de fato, iam-lhe
agora admiravelmente: Tinha a sua mesa boa e farta, um bom quarto de dormir,
a mucama para lavar-lhe e engomar-lhe a roupa, um camarote no teatro de quando
em quando, aos domingos um passeio à cidade, e lá uma vez por outra uma soirée
em casa de alguma amiga. “Ah! Não se podia comparar a existência que levava
agora com a peste de vida que curtira na Rua do Resende!” ‘E que então não
havia a menor folga; não se podia arredar pé do serviço! E todo o dia reclamações!
E todo o dia – o banho morno de fulano! O chocolate de beltrano! Este queria
ir sem pagar a conta ; o outro se entendia no direito de dizer desaforos porque
pagava! Apre! Assim também não era viver! Seu corpo há muito tempo pedia aquele
repouso! Se continuasse a labutar como dantes, – credo! – estourava por aí
um dia, esfalfada! E, com medo de perder a “pepineira” cercava Amâncio de
adulações. Tinha-o na conta de um patrão, de uma amo; com direito a todos
os carinhos e desvelos. Assim, jamais o contrariava, nunca lhe opunha censuras.
– Aquilo que o rapaz fizesse estava sempre muito bem feito! No seu entendimento
mercantil de locandeira, Amâncio não aparecia ‘como isto ou com aquilo” representava
pura e simplesmente “um bom arranjo” . Ali não havia favores, havia negócio,
ninguém ficava a dever obrigações. – Ele despendia tanto em dinheiro, mas
recebia em carícias e bom trato um valor correspondente. – Estavam quites!
Apenas, como o negócio era rendoso e agradava a boa mulher, esta fazia o que
estava ao seu alcance por agüentá-lo o maior tempo possível, como de resto,
qualquer um procederia com referência a um bom emprego. Quanto à posição de
Amélia, Mme. Brizard a dava por natural e coerente. Não via na cunhada uma
vítima ou coisa que o valha, mas tão-somente um membro solidário naquela empresa,
enviando os esforços de sua competência para o comum interesse da associação.
Isto, já de deixa ver, era o que pensava a francesa, mas não o que ela expunha;
de sorte que o marido ficou muito espantado, quando, falando sobre a necessidade
de tratar do casamento de Amélia com o hóspede, lhe ouviu dizer: – Homem…para
falar com franqueza…acho que o melhor é deixar seguir o barco como vai!…
– Como vai!… E o Coqueiro engoliu a frase indignado: – Ora essa! Tu, com
certeza, não estás falando sério! – às vezes, quem tudo quer, tudo perde!…sentenciou
a mulher. – Mas que diabo quero eu?! Retrucou aquele. – Eu não quero senão
o que é de justiça! Quero apenas que eles se casem! A outra, para quem o casamento
de Amélia não trazia vantagens imediatas e podia, aliás, comprometer o estado
feliz das coisas, saltou logo com uma bateria de opiniões contrárias:” Coqueiro
faria muito mal em precipitar os acontecimentos! Naquela situação o mais razoável
e o mais prudente era sem dúvida esperar! A natureza não dava saltos! As coisas
haviam de atingir a um bom resultado, sem ser preciso lançar mão de meios
violentos!… – Mas é que ele nos pode escapar!…argumentou Coqueiro. – Não
creias! Retorquiu a velha com um gesto arraigado na experiência. – Mas filha,
vem cá! – Não vês como o Amâncio está ultimamente? Já não é o mesmo! Amelinha
já não tem sobre ele domínio de espécie alguma! O maroto já não pensa nela,
é todo da Hortênsia! – E que tem isso! O que tem que ele farisque a Hortênsia?!
Está no seu direito! – é moço, tem dinheiro! – Ora essa!…exclamou de novo
o Coqueiro, ainda mais indignado que da outra vez. – O que em isso?!… E
cruzando os braços: – É muito boa!… Mas tornou logo : – Tem, que ele deve
uma reparação à minha irmã! Tem , que ele, apaixonado pela Hortênsia, pode
virar as costas à pobre menina e abandoná-la no estado em que a pôs! – Desonrada,
perdida! “Que tem isso?! “Ora faça-me o favor! – Tolo! Disse a francesa com
um riso cheio de filosofia, cuja tranqüilidade contrastava com as irritações
do marido. – Tolo! Bem se vê que não conheces os homens!…pois acreditas
lá que o Amâncio despreze a rapariga por ter agora um capricho pela outra?…Não
sabes que a únicas mulher capaz de prender o homem é aquela com quem ele convive
dia e noite; aquela com quem ele se habituou; aquela que já lhe conhece as
fraquezas, os ridículos, as pequeninas misérias da intimidade?! Abandoná-la!…Digo-te
mais: – Hortênsia é até necessária! Deixa

que ele a persiga, que ele a conquiste à força de mil sacrifícios e de mil
sofrimentos; deixa que ele a possua, que a tenha inteira na mão! Deixa, porque
ele há de voltar, e voltar farto!…Meu amigo, paixão é fogo de palha! – não
dura! Nas ocasiões de fadiga e abatimento é com o amorzinho de casa que a
gente se acha! E fica então sabendo que, para um homem amar deveras uma mulher,
é preciso que ele se tenha já desiludido com muitas outras! Tristes de nós,
se assim, não fosse! Há maridos que, ao voltar de suas correrias, apaixonam-se
pelas mesmas esposas, a quem dantes só chegavam por obrigação! E a francesa
velha, saboreando o silêncio que cava ra no adversário, concluiu depois de
tomar fôlego: – O rapaz quer, por graça, dar cabeçadas?…pois deixe-as dar!
Que ele, quando partir a cabeça, há de fazer justiça à tua irmã. Este fato
da mulher do Campos, crê tu, foi uma providência, foi um atalho que se abriu
nos teus planos!

* * *

E o fato é que o Coqueiro acabou por concordar com a mulher. “Amélia, desde
que se convertesse numa necessidade para a vida de Amâncio, este, com certeza,
seria o mais interessado em fazer dela sua esposa; por conseguinte, agora
o que convinha era que a rapariga também ajudasse de sua parte, empregando
todo o jeito e boa vontade de que pudesse dispor; devia mostrar-se cordata,
simples nos seus gostos, bem arranjadinha, amiga do asseio, honesta, digna,
enfim, de um marido!” E dominado por esta idéia, aconselhou logo à irmã que
se fizesse meiga com o “noivo”, dócil, boa companheira e fiel principalmente,
fiel quanto possível, que todo o futuro dela, bom ou mau, só disso dependia!
Mas a rapariga, com um a pontinha de desânimo, contrapunha-lhe o feio procedimento
de Amâncio para com ela naqueles últimos tempos. Apontou as cenas de altercação
que mais a humilharam; disse as frases grosseiras que ouvira do amante, as
ameaças que recebera, as palavras que lhe escaparam, a ele, na febre das contendas;
palavras, onde se enxergavam claramente o fastio e a má vontade! – Não faças
caso! Discreteou o irmão. – Isto não vale nada!…Fecha por enquanto os olhos
a todas essas coisas! Não convém o menor espalhafato antes que o tenhas seguro
de pés e mãos! Nada de espantar a caça!… Lembra-te, minha rica, de que,
no estado em que te achas, só ele te poderá proporcionar uma posição legítima
e definida ! Depois desta conferência, o Coqueiro ficou mais tranqüilo. Agora,
a sua maior preocupação era o sobrado da Rua do Resende . – Já lá se iam meses,
sem que o conseguisse alugar; o diabo do prédio era grande demais para a família
e, na disposição em que estavam os quartos, só mesmo podia servir para casa
de pensão. Nesta conjuntura, resolveu alugá-lo a varias pessoas; mas, para
isso, tinha de fazer obras e faltava-lhe um homem de confiança, que estivesse
disposto a ir para lá e tomar conta de tudo. – Ah! Se não fora a família!…ninguém
mais se encarregava disso senão o próprio Coqueiro! E fá-lo-ia até por gosto!
Encontrou , porém, o seu homem num velho conhecido, empregado no correio e
que, já em algum tempo, tomara a seu cargo, nas mesmas condições, a casa de
um outro amigo. Chamava-se Damião – bom rapaz, ativo e zeloso. Estava talhado
para a coisa. O Damião, mediante a faculdade de não pagar a parte que ocupasse
na casa, comprometia-se a cobrar o aluguel dos outros inquilinos e entregá-lo
pontualmente ao senhorio; ite, obrigava-se a fiscalizar a conservação do prédio
a pregar escritos quando houvesse cômodos desabitados e administraria enfim
o serviço da pessoa que se encarregasse de fazer a limpeza dos quartos, de
varrer os corredores, encher os jarros e moringues, tomar conta da chavaria
e ter olho sobre quem entrasse e que saísse. Para estes últimos cuidados arranjou-se
um homenzinho meio corcunda, português, esperto e rafeiro como um rato um
pouco falador, mas muito experimentado naqueles serviços. Coqueiro dar-lhe-ia
alguma coisa por mês e um canto da casa para dormir. “Uma pechincha!” Fechado
o negócio, tratou o proprietário de dividir a sala de visitas e a varanda
do sobrado em pequenos repartimentos de tabique, forrados de papel nacional.
É inútil dizer que neste ponto foi indispensável a intervenção pecuniária
de Amâncio, que ficou por conseguinte com direito sobre uma parte dos rendimentos
do prédio. E também não é menos inútil declarar que o provinciano, nem de
longe, sentiu jamais o cheiro da tais rendimentos.

* * *

Mas o certo é que as obras se fizeram, e a célebre casa de pensão de Mme.
Brizard, outrora tão animada e concorrida, transformou-se num desses melancólicos
sobradões de alugar quartos, que se observam a cada canto do Rio de Janeiro
e onde, promiscuamente, se aninha toda a sorte de indivíduos, mas de indivíduos
que já foram alguma coisa ou de indivíduos que ainda não são nada. Aí, as
mais belas e atrevidas ilusões vivem paredes-meias com o mais denso a absoluto
ceticismo. Velhos boêmios, curtidos nos venenos e todos os vícios e no segredo
de todas as misérias, encontram-se diariamente , ombro a ombro, com os visionários
estudantes de preparatórios. É nessas praias desamparadas à ventania da sorte
que a sociedade costuma arrevessar o destroço dos que naufragaram nas suas
sua águas, mas é daí também que ela pesca às vezes novas pérolas para p o
seu diadema. Há de tu – homens de todas as nacionalidades, sujeitos devida
misteriosa, solteirões libertinos e neutralizados pelo venéreo, artistas completamente
desconhecidos que se imaginam vítimas do meio, e supostos talentos que vivem
para amaldiçoar a fortuna dos que conseguiram v3encer na vida. Quase todos
eles têm na sua vida um fato, uma época, uma coisa extraordinária, para contar:
um, apresenta a honra de lhe haver morrido nos braços tal homem célebre; outro,
diz que foi amante da senhora condessa de tal; outro afiança e jura ser o
verdadeiro , se bem que obscuro, promotor e tal acontecimento histórico; outro,
revela um romance de amor que lhe cortou a carreira, mas que o imortalizará
em vendo a luz da publicidade; outro, confia numa invenção, “é o seu segredo”,
um projeto mecânico, ou industrial ou econômico -político ; outro, não aceita
emprego nenhum do atual governo, e espera a ocasião de “pegar numa espingarda
e fuzilar as velhas instituições de seu miserando país”; outro, enfim, ( e
são os menos raros) têm apenas para exibir em honra própria a circunstância
de algum parentesco ilustre. Ah! Não se encontram aí notabilidades de nenhuma
espécie, mas sim parentes. Este , é sobrinho de tal poeta ilustre; aquele
,é irmão do ministro tal, que deu o nome a tal rua; estoutro, cunhado ou primo
em terneiro grau do glorioso artista Fulano dos anzóis. E os tipos, quando
lhe tocam nisso, enchem-se de orgulho, como se participassem das glórias do
festejado parente; pelo menos, ninguém os apresenta a qualquer pessoa, sem
acrescentar logo, com assombro: “Ó senhor! Por quem é…não me confunda!…”
É também desses viveiros sombrios e malcheirosos que surgem certas figuras
que, às vezes, nos espantam na rua, – tossicar dentro de um sobretudo enorme,
um xale – _manta em volta do pescoço, um bengalão entre os dedos e na fisionomia
um ar melancólico e ao mesmo tempo irritado. É daí, desses quartos silenciosos,
úmidos e tristonhos, como sepulturas vazias, que surgem com o seu passo inalterável
e pousado os sinistros aranhões, que vemos passear estranhamente pelos jardinas
públicos, ao sol das boas manhãs de inverno. Coitados! São em geral homens
sem meios de vida, protegidos por algum figurão qualquer, de quem, ou foram
colegas na academia, ou ainda continuam a ser parentes com a mais cruel pertinácia.
Quando falam desse protetor feliz e rico não se animam a dizer mal, mas à
sua fisionomia acode invencível sorriso cheio de velha bílis acumulada e sôfrega
por transbordar. Uns vão regularmente comer a certas casas comerciais, outros
se arranjam pelas impossíveis casas de pasto da Cidade – Nova, os “freges”,
onde as refeições não passam de duzentos réis. Alguns têm o almoço seguro
à mesa de um velho amigo de melhores tempos, o jantar em casa doutro;às sextas
– feiras são infalíveis nas comezainas gratuitas dos frades de São Bento.
Uns, passam a noite na jogatina, percorrendo espeluncas, tomando café nos
quiosques às quatro e meia da manhã e então, durante o dia seguinte, dormem
a fartar; outros, recebem donativos de alguma irmandade religiosa, à qual
se filiaram em épocas de prosperidade. São sempre vistos, em horas determinadas,
no jardim do Rocio, n Passeio Público, assentados nos bancos de pedra, lendo
jornais à sombra das amendoeiras, às vezes têm ao lado a botina que descalçaram
por amor dos calos; são vistos igualmente nos edifícios públicos em construção,
acompanhando as obras com interesse, como se estivessem encarregados disso,
fazendo perguntas, ralhando com os operários, numa necessidade irresistível
de aplicar, seja como for, a sua atividade desocupada e vadia. Não há motim,
não há incinere de rua, por mais ligeiro, em que eles não intervenham, tomando
logo a parte principal na coisa, repreendendo o agressor, conciliando o agredido,
fazendo enfim acreditar que ali está uma autoridade civil em pleno exercício
de suas funções. São violentos quando lhes falam de política e só se referem
aos homens do poder com palavrões brutais e desabridos; a alguns nomeiam sempre
com alcunhas determinadas e todos os outros, que ainda não recegbveram o batismo
de sua cólera invejosa, são indistintamente “os ladrões, os patoteiros, os
vis, os traidores, os capachos do rei”! Através dos cerrados negrumes daquela
miséria e daquele ressentimento, nada enxergam de bom e de legítimo O Coqueiro,
não obstante, se mostrava satisfeito com os seus inquilinos e dizia ter encontrado
no Damião o “homem que lhe convinha”.

Aparecia por lá constantemente; gostava de ver como ia o prédio, gostava
de dar uma vista de olhos pelos cantos da casa, em silêncio, de mãos no bolso,
e sentia um verdadeiro prazer sempre que encontrava alguma coisinha par consertar
, – algum pedaço de papel solto da parede, alguma régua despregada, alguma
tábua fora do lugar. A existência nunca lhe parecera tão corredia e tão fácil;
só faltava, para complemento das ventura, que o maçante do colega desembuchasse
por uma vez com aquele maldito casamento. – Ah! então é que seriam elas!…

* * *

Mas o “maçante do colega” estava bem longe de pensar em casamento; todo ele
era pouco para sofrer a cáustica impassibilidade de Hortênsia. A caprichosa
continuava no seu terrível sistema de não aviar nem desaviar. Amâncio fizera-lhe
ir ter às mãos uma segunda cópia da carta subtraída, e ela em resposta aconselhou-o
a que não escrevesse outra, sob pena de entregá-la ao marido. – Pois que vá
para o diabo que a carregue! Pensou o estudante, furioso, e resolveu dar o
negócio por acabado. Com efeito, durante um mês inteiro, nas poucas vezes
em que teve de falar ao Campos sobre questões de interesses materiais, não
passou do escritório. – Homem! dizia-lhe o negociante. – Você só aparece aqui
por fruta, e faz visitinhas de médico! Não há meios de apanhá-lo lá em cima!
Neném até já se queixou! Amâncio defendia-se com os seus estudos e com os
sobressaltos em que andava depois das últimas cartas do Norte. – Por quê?
Há alguma novidade?!… perguntou o amigo cheio de solicitude. – A velha não
está boa!… explicou o rapaz. – Desde que morreu meu pai, a pobre de Cristo
ainda não levantou a cabeça! Confesso-lhe que tenho meus receios, tenho!…
E quedava-se abstrato, a fitar o chão, com a fisionomia paralisada por uma
tristeza vidente e ao mesmo tempo irresoluta. O outro não sem animava a interromper
aquele silêncio doloroso e respeitável, mas, por fim, lembrou discretamente,
com delicadeza, que não seria má uma viagem à província; talvez com isso se
evitasse um desgosto maior… Amâncio era a menina dos olhos de D. Ângela…bem
podia ser que, só com a presença dele, a pobre senhora melhorasse!… O estudante
mostrou-lhe a última carta da mãe; e os dois, tendo ainda conversado com o
mesmo recolhimento, vieram a concordar em que era indispensável um passeio
ao Maranhão; Amâncio retirou-se, fazendo já os planos da viagem. – Oh! exclamava
ele por dentro. – Vou! Não tem que ver! Vou definitivamente! E provo àquela
mulher que não ligo a menor importância ao que ela me fez! Hei de provar-lhe
que o seu procedimento em nada me alterou. Que até sigo muito satisfeito e
muito satisfeito e muito senhor de mim. E via-se já na ocasião da despedidas
– frio, indiferente, sorrindo às lágrimas de Hortênsia . e sua fantasia, gozando
do efeito desses devaneios, armava-lhe, ao sabor da vaidade, cenas muito espetaculosas,
nas quais representava ele sempre o papel mais brilhante e mais elevado. Via
Hortênsia a seus pés, lacrimosa e mísera, suplicando-lhe por piedade que não
se fosse, que a perdoasse, que se compadecesse de tamanho desespero. “Ela
ali estava submissa e arrependida, pronta a cumpri de olhos fechados as ordens
de seu querido Amâncio, do seu senhor, do seu Deus, do seu tudo!” Ele, então,
com um riso cruel, voltando-lhe o rosto e acendendo um charuto: “Não , filha,
tem paciência! E se insistes, vai tudo às mãos do Campos!…” Hortênsia, ao
ouvir estas palavras, estorcia-se numa aflição teatral, e logo que Amâncio
se dispunha a partir, desabava de costa, quase morta, justamente como as heroínas
dos romances que ele devorara aos quinze anos. Mas a terrível concupiscência
do nortista, sobrepujando logo a fantasia do vaidoso, não resistia à tentação
de possuir, ao menos em sonho, aquele belo corpo desfalecido e, como dantes,
começava mentalmente a despi-lo, peça por peça, até deixá-lo em pleno escândalo
da carne.

* * *

Entrou em casa resolvido a levantar o vôo, custasse o que custasse. – Sim,
era preciso ir! Por Hortênsia, por sua mãe, por Amélia, por mera distração,
por tudo! Precisava afastar-se daquele inferno, onde duas mulheres, como duas
sombras, o torturavam; uma fugindo e a outra o perseguindo. Desde que recebeu
a tremenda resposta de Hortênsia, sentia-se muito nervoso e irascível; Amélia
suportava-o, sabe Deus como, fazendo milagres de paciência para não se afastar
dos conselhos que lhe dera o irmão. Quase que já se não podiam sofrer um ao
outro. Além disso, as cartas de Ângela repetiam-se agora desesperadamente.
“Estaria a pobre mãe com efeito em risco de vida?…”pensava Amâncio. “Dependeria
dele o salvá-la? … E os seus interesses que havia tanto tempo o reclamavam?…
E as saudades da pátria? E os prazeres que encontraria à volta do primeiro
ano acadêmico?” Os prazeres, sim, que Amâncio, pelo derradeiro paquete, recebera
em uma das principais folhas diárias de sua província a seguinte notícia:
“MARANHENSE DISTINTO. Acaba de fazer brilhantemente o primeiro ano de seu
curso na Escola de Medicina na Corte o nosso talentoso comprovinciano Amâncio
da Silva Bastos e Vasconcelos, filho de há pouco falecido e sempre chorado
Comendador Manoel Pedro de Vasconcelos, um dos mais estimados negociantes
que foi desta praça, enquanto não podemos pessoalmente abraçar o digno jovem
e esperançoso discípulo de Hipócrates, apressamo-nos a enviar-lhe daqui os
nossos sinceros parabéns, futurando em S. S.a mais uma glória legítima para
a nossa Atenas, já tão rica, aliás, em talentos privilegiados!” Ninguém poderá
imaginar o efeito que produziram tais palavras no espírito presunçoso de Amâncio.
era a primeira vez que ele via o seu nome em letra redonda, seguido de alguns
adjetivos laudatórios. Por detrás daquela notícia pressentia o rapaz um paraíso
de novas considerações que o esperava na província; antevia o sorriso das
damas, a reverência dos pais de família e a inveja dos ex-colegas do Liceu.
– Não! não podia deixar de ir. O Maranhão, naquele momento, e por todos os
motivos, representava para ele uma necessidade urgente. – Havia de meter a
cabeça e varar por quantos obstáculos se lhe antepusessem.

* * *

Amélia ficou estonteada quando o amante lhe deu parte dos seus projetos de
viagem, tão calmo e resoluto foi o tom em que o fez; mas, voltando do primeiro
choque, rompeu num grande pranto e atirou-se de bruços na cama, soluçando
muito aflita. “Que era uma desgraçada! Que Amâncio a queria abandonar, depois
de a ter desonrado e perdido!” – Eu volto, filha! Disse ele, procurando fazer-se
meigo. – Vou tratar de meus interesses, ver minha mãe, e volto para o teu
lado! Não tenhas receio de que te engane! Eu ainda se quisesse, não podia
ficar por lá, já não digo por ti, mas, que diabo! Pelos meus estudos. Pois
acreditas que eu cairia na asneira de abandoná-los, agora que estou tão bem
encaminhado?… – Não sei! Respondeu a rapariga, erguendo-se rapidamente,
com as feições sumidas na vermelhidão do choro. – Você, é impossível que não
tenha no Maranhão alguém à sua espera!… E essa com certeza não há de ser
pobre como eu, não terá a boa-fé que eu tive!…com essa você não porá dúvidas
nenhuma para casar!… E voltaram-lhe os soluços, como um temporal que recresce.
– Estás a dizer tolices, filha! Dou-te a minha palavra de honra em como nunca
me esquecerei de ti! Que mais queres?! – Pois então casemo-nos e partirás
depois!… – Isso é impossível! Já te disse um milhão de vezes! Oh! – Minha
mãe espera-me há quatro vapores seguidos! Imagina tu como não estará ela,
coitada, com a morte do velho! não hei de agora, em vez de minha pessoa, lhe
apresentar uma carta pedindo licença para casar!… Que espécie de filho seria
eu nesse caso?! Enquanto a pobre viúva se desfaz em lágrimas; enquanto na
família tudo é luto e desgosto, o bom do filho pensa em casamento e, sem dúvida,
prepara as festas do noivado!” Não! gritou ele energicamente. – Isso não faria
eu, nem se me cosessem a facadas! Pelo menos, enquanto estiver com esta roupa
sobre o corpo… E sacudiu com força a aba de seu fraque de lustrina. – Enquanto
estiver com esta roupa, não penso em mulher! nada! antes de tudo, sou filho!
Percebes?! Antes de tudo, tenho de olhar por minha pobre mãe, que é muito
capaz de morrer se não me ver ao seu lado! E foi, cheio de excitação, debruçar-se
no peitoril da janela, fitando as plantas do jardim, a roer as unhas. Houve
um silêncio. Amélia já não chorava; imóvel, apoiando-se ao espaldar da cama,
entontecia a vista contra as ramagens cruas do tapete. – Nesse caso, ele que
venha ter contigo… disse, afinal, sem erguer os olhos. – Ora! Resmungou
Amâncio, voltando-se vivamente na janela.

– Ou então iremos nós… acrescentou a rapariga, fazendo um biquinho de enfado.
E depois, com pieguice: – Tenho muito medo das maranhenses!… O estudante
não respondeu, foi ter com ela, tomou-lhe meigamente a cabeça entre as mãos.
– Esta cabecinha!… – disse – esta cabecinha não sei quando terá juízo!…
E, passando a falar em tom sério, protestou que era até injustiça supô-lo
capaz de cometer uma perfídia daquela ordem! Amélia já devia estar perfeitamente
convencida de que ele a amava deveras; de que ele não seria tão mau que a
abandonasse, depois de receber tantos carinhos. Ela que não estivesse a descobrir
perigos, onde nem sombras disso havia!… A tal viagem ao Norte, no fim de
contas, era uma questão de dois ou três meses, e ele deixaria uma mesada regular
e escreveria por todos os vapores!… – Não acreditas ainda que te estou falando
com sinceridade?… concluiu, a beijá-la nos olhos. – Que precisão tinha eu
de te enganar?… – Sim, creio, creio que por ora assim seja, não há dúvida!
Mas também estou persuadida de que, logo que passes a barra, tudo muda de
figura!… Nos primeiros dias ainda te lembrarás da infeliz que aqui deixaste,
mas depois… com a presença de outras, com os novos passatempos que te esperam…
até hás de perguntar aos teus botões “como foi que em algum dia chegaste a
pensar a sério neste casamento?…” – Bem se vê que não me conheces!… retorquiu
o rapaz. – Não! não! não irás! Sustentou Amélia. – Adoro-te, és meu, não te
quero perder! Ora essa! – Mas, filha, observou Amâncio impacientando-se, –
lembra-te de que é mais decente fazermos a coisa por bons modos… afinal,
tu não me podes constranger a ficar, e, eu, em vez de ir, deixando um compromisso
de cavalheiro, sou capaz de ir, sem deixar coisa alguma! Ora aí tens! – Hein?!
Bradou ela, transformando-se a contragosto. – Cai nessa! Experimenta só, para
veres o gosto que lhe achas! Amâncio respondeu com um gesto desabrido, enterrou
o chapéu na cabeça, e saiu à toa, sem destino, com uma fúria surda a espezinhar-lhe
o coração.

* * *

Mas, ao voltar, encontrou Amélia no mesmo estado. E a questão reapareceu
à noite, reapareceu na manhã seguinte, e todos os dias, tomando um caráter
de rezinga permanente. Amâncio perdeu de todo a paciência. – Era demais! Sebo!
Ele, no fim de contas, não tinha obrigação nenhuma de aturar semelhante gaita
nos ouvidos! Que mastigação! Arre! Amélia que fosse atenazar o pai! Ela respondeu
possessa, deixando escapar palavrões, “Supunha ter encontrado um homem, mas
encontrara um quidam, um canalha, um desfrutador!” – Desfrutadores são vocês
todos! Percebes tu?! Berrou ele, colérico. – Desfrutadores – é teu irmão,
– é tua madrasta e és tu! Que só faltam me arrancar a pele! Súcia de filantes!
E lembrou o que até aí gastara com eles, o que lhes dera, o que comprara e
o que lhe desaparecia dos algibeiras. – Não me estás de graça, não! exclamou,
saindo afinal do quarto como da outra vez. Desta, porém, quando voltou à casa,
vinha com o ar mais despreocupado que se pode desejar. E, logo que Amélia
lhe falou na questão da viagem, ele respondeu tranqüilamente que já não havia
nada a esse respeito. “Resolvera ficar.” A rapariga compreendeu o disfarce
e, no dia seguinte, tratou de prevenir o irmão de que abrisse os olhos, se
não queria ver o Sr. Amâncio escapar-lhe por entre os dedos. João Coqueiro
ficou de orelha em pé.

XIX

A pequena tinha toda a razão; Amâncio, se parecia resolvido a desistir da
viagem, era porque nessa mesma tarde encontrara o Paiva e, na sua necessidade
de expansão, levou-o para o fundo de um café e abriu-se com ele. Contou-lhe
as dificuldades que o afligiam, e pediu-lhe conselhos. – Não há que saber!…disse
o consultado. – Não há que saber!…Aí só vejo dois partidos a tomar: – Ser
tolo – ou – não ser tolo! E, como o outro fizesse um trejeito de má compreensão:
– Tolo, se ficares e – não tolo – se te puseres ao fresco! – Mas, Paiva, você
então que devo ir?…perguntou Amâncio, hesitando , a morder as unhas. – Homem!
volveu aquele, – se precisas ir ao Norte, prepara-te caladinho e vai! Que
necessidade tens tu de que a gente do Coqueiro saiba disso?…Deves-lhe satisfação
de teus atos?…Se não deves, é aprontar as malas

e…por aqui é o caminho! Olha! Deixa-lhe uma carta, muito delicada, já se
vê, muito cheia de promessas. “Que voltas, que hás de fazer, que hás de acontecer!”
E, no entanto, vai-te raspando…Porque estas coisas, filho, assim é que se
decidem. E, quanto aos arranjos da viagem…cá estou eu para te ajudar!…
Calaram-se por alguns instantes. Paiva Rocha pediu um novo cherry – cobler
e prosseguiu enquanto o amigo, muito pensativo, fitava o mármore da mesa:
– Agora, se estás tão embeiçado pela sujeita, que não tenhas ânimo de a deixar,
isso é outra coisa!…Neste caso, o melhor é escrever à velha, dizendo-lhe
que venha, arranjar um novo advogado de confiança que se encarregue de teus
negócios no Maranhão, – e faze a vontade à pequena – casa-te! Amâncio torceu
o nariz com enfado: – – Qual! – Então, filho, que esperas?…É perder o amor
aos objetos que lá tens, e fazer o que já te disse! – Mas o Coqueiro não poderá
toma r alguma vingança?… – Não sejas parvo! Resmungou o outro, bebendo de
um trago o que ainda tinha no copo; e ergueu-se disposto a sair. – Amanhã,
às mesmas horas, cá estou! Traze o cobre e deixa o resto por minha conta!
Separaram-se concordes de que no dia seguinte ficariam depositados na república
do Paiva os apetrechos da fuga. Em casa do Coqueiro. Todos, à semelhança de
Amelinha, nem de leve mostravam suspeitar de coisa alguma; pareciam até mais
tranqüilos e satisfeitos. Nem um gesto de ressentimento, nem uma palavra indiscreta
que os denunciasse. Tudo era paz e bem-aventurança. Reapareceram as primitivas
noites de amor, como boa estação que volta carregada de flores. Os dois amantes
nunca se possuíram tão satisfeitos um do outro e nunca se patentearam tão
convictos da mesma felicidade. No empenho comum de se enganarem, cada qual
redobrava de carinhos e meiguices; enquanto por dentro os corações lhes bocejavam,
aborrecidos e fatigados. O dia da viagem chegou sem novidade alguma. Amâncio
levantou-se como das outras vezes, apenas um pouco mais cedo. Olhou por um
momento Amélia que ainda dormia, toda sumida nos lençóis, vestiu-se cautelosamente
para não a acordar; depois foi `varanda, bebeu café e saiu em ar de passeio.
No Largo do Machado tomou um carro e bateu para a república do Paiva. Não
encontrou o colega, havia já saído. – Devia estar à sua espera com a bagagem,
no cais Pharoux. Amâncio mandou tocar o carro para lá. E, à proporção que
se aproximava do mar, crescia-lhe por dentro um vago sobressalto de impaciência
e de medo – Anda! Gritou ao cocheiro, espiando repetidas vezes pela portinhola
e apalpando de instante a instante o bilhete da passagem que tinha no bolso.
Estava comovido, principiava a sentir pena de deixar a Corte; apareciam-lhe
saudades das boas noites com Amélia, das patuscadas com os amigos. E um mundo
de recordações formava-se e transformava-se atrás dele, fugindo, desaparecendo
como sombras que se esbatem. Para disfarçar a impressão desagradável de tais
mágoas, procurava embriagar-se com a idéia das aventuras que o esperavam na
província, grupando na fantasia tudo aquilo que o pudesse interessar de qualquer
modo; e compunha, e construía, inventava episódios, cenas, dramas inteiros,
nos quais lhe cabia sempre a principal figura. E, depois de bem mergulhado
nos seus devaneios, depois de bem envolvido na alacridade de seus sonhos de
glória, o Maranhão aparecia-lhe risonho e brilhante como a última expressão
do que há de melhor sobre a terra Mas, na ocasião em que se apeava, um tipo
mal – encarado, olhando por cima dos óculos, a barba grisalha, um tom geral
de porcaria no seu velho fato de pano preto, nas sua botas alcacanhadas, no
seu chapéu de pêlo cheio de manchas amarelas, aproximou-se dele e, com voz
enxuta e morfanha, intimou-o “a comparecer imediatamente em presença do delegado
de semana na secretaria de polícia”. Era um oficial de justiça. – Mas que
desejam de mim?…perguntou o estudante, empalidecendo e procurando o Paiva
com os olhos. – Eu não tenho nada com a polícia! E recuou dois passos. – O
senhor está intimado! Repetiu secamente o outro, e, em voz baixa, disse a
dois sujeitos que se haviam adiantado: – Cerca! Cerca o homem! Então aqueles
avançaram logo, jogando o corpo num pé só, o chapéu para trás, um grosso porrete
na mão. – Comigo é onze! Exclamou um deles, muito canalha, a cuspilhar para
os lados. – Mas por que me prendem?!…perguntou o estudante, sentindo-se
tolhido. – São coisas!… responderam-lhe, fazendo-o entrar no carro. Amâncio
ainda procurou descobrir o Paiva ; depois, azoinado pela gentalha que se reunia
em torno dele, saltou para a almofada, perseguido sempre pelos três sujeitos.
O oficial segredou alguma coisa ao cocheiro, e o carro deu volta e rodou em
sentido contrário aso cais.

Amâncio cobriu o rosto com o lenço e principiou a soluçar.

* * *

Coqueiro, desde a prevenção que lhe fez a irmã, não se descuidou mais um
instante de vigiar a sua presa: segui-lhe os passos, farejando, até o momento
em que Amâncio tomou o bilhete de passagem para o Norte. Então, correu para
à casa do Dr. Teles de Moura. O Teles era um advogado velho, muito respeitado
no foro; não pelo caráter, que o não mostrava nunca, nem pela sua ciência,
que a não tinha; nem tampouco pelos seus cabelos brancos, que a estes nem
ele próprio respeitava, invertendo-lhes a cor; mas sim pela sua proverbial
sagacidade, pelas suas manhas de chicanista, pela sua terrível figura de raposa
velha, pelos sues olhinhos irrequietos e matreiros, pelo seu nariz à bico
de pássaro e pela sua boca sem lábios, donde a palavra saía seca e penetrante
como uma bala. O passado do Teles era toda uma legenda de vitórias judiciais;
atribuíam-lhe anedotas mais antigas de que ele; muito processo se anulou naquelas
unhas aduncas e tamanduá; muito criminoso escapou às penas da lei por entre
as malhas das sua astúcia; muito inocente foi parar à cadeia ensarilhado nas
pontas de seus sofismas. Para ele não havia causas más; em suas mãos qualquer
processo se enformava ao capricho dos dedos como uma bola de miolo de pão.
E o irmão de Amélia sabia de tudo isso perfeitamente quando lhe foi bater
à porta. Seriam então nove horas da manhã, a raposas almoçava. Coqueiro esperou
um instante e, só terminado o barulho dos pratos, animou-se a tocar a campainha.
Apareceu um moleque, tomou o recado no corredor e pouco depois trouxe a resposta.
“O amo estava muito cheio de ocupações naquele dia, não falava com pessoa
alguma. Coqueiro que voltasse noutra ocasião.” Mas Coqueiro recalcitrou. “Esperaria…Tinha
que falar ao Dr. Teles, custasse o que custasse. Tratava-se de uma causa importantíssima!”
Veio afinal o doutor, palitando os dentes, o ar muito ocupado, os movimentos
de quem tem pressa. – Que era ? O que desejavam? Coqueiro, com a voz alterada,
os gestos dramaticamente desesperados, disse que ia ali buscar proteção e
justiça. “Era pobre, sim, mas estudioso e trabalhador. Sua vida aí estava,
– limpa! Podia até servir de modelo! – Casara-se na idade em que os rapazes
em geral só pensam nos prazeres e nas loucuras!…Adorava a família; sim!
adorava, porque a família era o bem único de que ele dispunha na terra! Tinha
uma irmã, inocente e indefesa, a quem até aí servira de pai e de tutor…”
O advogado deixou escapar uma tossezinha de impaciência. – Pois bem, senhor
doutor! Exclamou o outro, puxando com ambas as mãos, contra o peito, o seu
chapéu de feltro. – Pois bem! Essa menina, que era todo o meu orgulho, que
era como o documento vivo do bom cumprimento de meu dever…essa menina, que
eduquei sob os maiores sacrifícios…essa pobre menina… – Que fez? Perguntou
o velho muito calmo. – Arribou de casa?… Não senho, acaba de ser vítima
da maior traição, da mais degradante maldade, que… – Mas, afinal, o que
houve?…interrogou o doutor, fugindo às preliminares. – Foi desvirtuada por
um rapaz, um colega meu, que , há coisa de um ano, hospedei, por amizade,
debaixo de minhas telhas!… – E ele? Perguntou o advogado, sem se comover.
– Ele já está de passagem comprada para o Maranhão e foge amanhã mesmo, se
não houver uma alma reta e caridosa que lhe embargue a viagem. – Ela ficou
pejada? – Não senhor. – É menor? – Tem vinte e três anos, respondeu o queixoso,
triste porque sua irmã não tinha menor idade. – Está o diabo!…Resmungou
a raposa; espetando os dentes com o palito. – E ele? – Ele tem vinte e um.
– Feitos? – Feitos, sim senhor. – Bem. E acendeu um cigarro que levara a preparar
lentamente. – É o diabo!…repisava. – Não se pode fazer nada, sem a verificação
do fato…É o diabo!! E calaram-se ambos. O velho a pensar; o outro, de cabeça
baixa, o aspecto infeliz, a choramingar baixinho.

– Ele tem recurso? Perguntou aquele afinal. – É rico, bastante rico, respondeu
o Coqueiro, sem tirara os olhos do chão. – Emancipado?… – Totalmente. órfão
de pai! É até sócio comanditário de uma importante casa comercial. Tem para
mais de quatrocentos contos de réis. – Bem. Arranja-se a queixa – crime. Olhe!
Deixe-me aí o seu nome, o dele, o da vítima, o dos competentes pais, se os
tiverem, as respectivas moradas, profissões, etc., etc. Enfim a substância
da queixa… – O senhor doutor acha então que… – Veremos! Veremos o que
se pode fazer!…Não perca tempo – escreva. Coqueiro escreveu prontamente,
interrompendo-se de vez em quando o para pedir informações. – ‘Stá direito!
Sussurrou o advogado, correndo os olhinhos pelas folha de papel que o outro
lhe acabava de passar. – Pode ir descansado. Vá. E seu todo impaciente estava
a despedir a visita. Esta, porém, fazia não dar por isso e desejava mais esclarecimentos;
queria saber ao certo o tempo que deitaria aquela questão. “Se era de esperar
que Amâncio cassasse com a vítima; se havia recursos na lei para o perseguir,
etc., etc. ” O velho palitou os dentes mais vivamente. “Que diabo! Um processo
era um processo! Tinha de percorrer todos os competentes sacramentos! Não
se chegava ao fim, sem passar pelos meios!…Amâncio podia furtar-se à citação,
esconder-se; os oficiais de justiça eram tão fáceis de ser comprados!…tão
ordinários!…vendiam-se por qualquer lambujem, por um relógio, por um pouco
de dinheiro!… E principiou a encarecer a causa, grupando termos jurídicos,
apontando dificuldades. Sua voz transformava-se ao sabor daquela terminologia
especial. “Em primeiro lugar tinham de apresentar uma queixa perante o Juiz
de Direito do distrito criminal. Deferida a petição, intimar-se-ia o indiciado
para a audiência que se designasse. – E os interrogatórios? E a pronúncia?
E os recursos?…Enfim havia de se fazer o que fosse possível!… – E por
enquanto…acrescentou o chicanista, consultando apressado o relógio- não
tenho de meu nem mais um segundo! E despedindo o outro com um aperto de mão:
– Olhe! Procure-me logo mais na polícia, ao meio-dia. Estou lá à sua espera.
Pode ir descansado. Adeus! E empurrando-o brandamente: – Não deixe de ir,
hein?…Meio-dia em ponto! Adeus! Desculpe! Coqueiro saiu, mastigando agradecimentos.
Estava agora mais tranqüilo; – a fama do Dr. Teles de Moura enchia-o de esperanças
radiosas. “Sua causa não podia cair em melhores mãos!”

* * *

E a verdade é que ele, industriado pela raposa velha, obteve um mandado de
notificação, obrigando Amâncio a comparecer na polícia, imediatamente, para
investigações policiais, e peitou o oficial de justiça e arranjou dois secretas
e, afinal, o amante da irmã foi conduzido à presença do delegado de semana
e daí levado à detenção, donde só sairia para responder ao primeiro interrogatório..
O advogado requereu corpo de delito na ofendida e, para a seguinte audiência,
o comparecimento dos outros dois inquilinos que, por ocasião do crime, moravam
na casa de pensão, – O Dr. Tavares e o guarda-livros. No inquérito, duas testemunhas
fizeram-se ouvir contra Amâncio; um taverneiro das Laranjeiras – bicho gordo,
cabeludo, a pele cor de telha e dono de uma venda que encostava os fundos
com os da casa de Amélia, e um alferesinho de polícia, noutro tempo vizinho
do queixoso em Santa Teresa e agora morador do casarão da Rua do Resende,
– Homenzinho magro, pobre de sangue, olhos fundos e a boca devastada por uma
anodontia horrorosa. Amâncio , que ainda não conhecia de perto o que vinhas
a ser “um processo” e estava longe de imaginar as tricas e os ardis de que
costumam lançar mão os litigantes para defender ou acusar um pobre – diabo
que a justiça lhe atira às unhas, ficou pasmo, quando, na ocasião de assinar
os atos e termos, leu a matéria do fato criminoso que lhe argüíam. O alferes
declarou em substância que: “na noite de 16 de julho do ano tal, pela uma
hora da madrugada, estando em Santa Teresa, no sótão que então ocupava, (
o qual era místico ao sótão de uma outra casa onde, viera a saber mais tarde,
residira Amâncio ) , ouviu daí partirem gemidos angustiados e uma voz fraca,
de mulher, a dizer: Solte-me! Solte-me! Não me force! E que tomado de curiosidade,
trepara-se ao muro do quintal e pusera-se a

espreitar para a casa do vizinho, e, então, percebera distintamente que um
homem violentava uma rapariga; e que depois cessaram as vozes e só se ouviram
suspiros e soluços abafados”. O taverneiro depunha que: “naquela mesma noite,
estando casualmente de passeio em Santa Teresa, ouvira, ao passar pela casa
onde então residia João Coqueiro com a família, uma altercação de duas vozes,
na qual se destacava uma de mulher que chorava, implorando piedade e suplicando,
por amor de Deus, que a não desonrassem” . E tudo isso estava perfeitamente
de acordo com que já havia declarado o Coqueiro. Dissera este que: “nessa
mesma noite se recolhera às três horas da madrugada, pois estivera até então
em Botafogo, na companhia de seu colega Firmino de Azevedo, e que, ao entrar
em casa, ouvira leves gemidos no quarto da irmã e, chamando por esta da varanda
e perguntando-lhe o que tinha, ela respondera que – não era nada, apenas havia
acordado às voltas com um pesadelo; mas que ele, Coqueiro, apesar dessa explicação,
ficou muito sobressaltado e ainda mais, quando, depois de acordar a esposa,
que dormia profundamente, e perguntar-lhe se houvera em casa alguma novidade
durante a sua ausência, lhe ouvira dizer que – até às nove horas da noite
podia afiançar que nada acontecera, mas que, daí em diante, não sabia, visto
que, sentindo-se àquela hora muito incomodada, se havia recolhido ao quarto
com seu filho César e, como usava água de flor de laranja para os padecimentos
nervosos, supunha ter essa noite medido mal a dose e tomado demais o remédio,
em virtude do estranho e profundo sono que se apoderou dela até o momento
em que o marido a chamara. – Por conseguinte, das nove horas da noite às três
da madrugada, Amâncio e Amélia haviam ficado em plena liberdade”. E mais:
“que , no dia seguinte àquela noite fatal, Amélia não quis sair do quarto
e que ele, indo ter com a irmã e perguntando-lhe se sofria de alguma coisa
e se precisava de médico, notou-lhe certa perturbação, certo constrangimento
e um grande embaraço na resposta negativa que deu; e que ela, todas as vezes
que era interrogada, fugia com o rosto para o lado contrário e abaixava os
olhos, como tolhida de vergonha; e que, examinando-a melhor, lhe descobrira
sinais roxos nos lábios, nas faces, e pequenas escoriações no pescoço, nas
mãos e nos braços; e que , então fulminado por uma suspeita terrível, exigiu
energicamente a revelação de tudo que ase passara na véspera durante a sua
ausência, e que ela, empalidecendo, abrira a chorar e, só depois de muito
resistir, confessou que fora violentada por Amâncio , mas que este prometera,
sob palavra de honra, em breve reparar com o casamento a falta cometida”.
Mme. Brizard confirmou o que disse o marido a seu respeito. Amâncio, porém,
logo que foi novamente interrogado, negou: 1.º – Que conhecesse as duas testemunhas
deponentes contra ele;2.º – Que em tempo algum houvesse sucedido o que elas
afirmavam; 3.º – Que tivesse empregado violência contra Amélia; 4.º – _Que
fizesse promessa de casamento a quem quer que fosse e debaixo de quaisquer
condições. E confirmou: 1.º_Que em a noite, não de 16, mas de 2o de julho
daquele ano, estabelecera relações carnais com a queixosa; 2.º – Que nessa
noite, permanecendo de pé o conchavo de uma entrevista combinada entre eles,
Amélia, logo que a casa se achou de todo recolhida, apresentara-se-lhe no
quarto e aí ficara até às cinco horas da manhã, sem mostrar durante esse tempo
o menor indício de contrariedade, e parecendo, aliás, muito satisfeita e feliz
com o que se dera, como se alcançara a realização do seu melhor desejo; 3.º-
Que de tudo isso nada absolutamente terias sucedido, se Amélia não o perseguisse
com os seus repetidos protestos amorosos, com as suas provocações de todo
o instante, chegando um dia a surpreendê-lo à banca do trabalho com uma aluvião
de beijos! Que não teria sucedido, se todos os de casa, todos!- o irmão, a
cunhada, ela, o César, os fâmulos, não concorressem direta ou indiretamente
para aquilo, armando situações, preparando conjunturas arriscadas para ambos,
explanando ocasiões escorregadias, nas quais fora inevitável uma queda! E
Amâncio acrescentou, arrebatado pela correnteza de suas palavras: – Nada disso
teria acontecido, senhor Juiz, se me não desafiassem, se me não sobressaltassem
os instintos, atirando-a a todo momento contra mim; se nos não empurrassem
um para o outro, com insistência, com tenacidade, deixando-nos a sós horas
e horas consecutivas, fazendo-a enfermeira ao lado de minha cama; pespegando-a
todos os dias, todas as noites, diante de meus olhos, ao alcance de minhas
mãos, – enfeitada, perfumada, preparada, como uma armadilha, com uma tentação
viva e constante! O delegado observou discretamente que Amâncio se excedia
nas suas declarações; mas o auditório, na maior parte formado de estudantes,
protestava, atraído por aquela setentrional verbosidade que enchia toda a
sala. Rebentavam já daqui e dali, algumas exclamações de aplauso. E a voz
do nortista, irônica e crespa no seu sotaque provinciano, ainda se fez ouvir
por alguns instantes, em meio do quente rumor que se alevantava. – Ah! Por
Deus! Por Deus, que bem longe estava ele de imaginar um fim tão dramático
àquela comédia! Bem longe estava de imaginar que, depois de o escodearem por
tantas maneiras; já o fazendo chefe de uma família que não era a sua; já lhe
exigindo a compra de uma casa, exigindo vestidos, jóias, carros, dinheiro
para despesas

diárias, dinheiro para a botica, dinheiro para o açougue, para o médico,
para tudo! – ainda se lembrassem de extorquir-lhe a coisa única que até aí
não haviam cobiçado – seu nome! – o nome que herdara de seus pais! – Bravo!
Bravo! Muito bem! E a matinadas dos estudantes rebentou com entusiasmo, sufocando
os novos protestos que apareciam. O delegado reclamava silêncio, e Amâncio,
muito pálido, a resta luzente de suor, tinha os braços cruzados, a cabeça
baixa, numa atitude dramática de altiva resignação. Findo o inquérito e dada
a queixa, o sumário caminhou sem mais incidente. Todavia, o provinciano, sempre
que era interrogado, deixava-se arrebatar como da primeira vez. As testemunhas,
com mais ou menos tergiversação, reproduziam as suas patranhas; concederam-se
os dias da lei ao indiciado, para que juntasse a sua defesa escrita e os seus
documentos; e, afinal, subiram os autos à Relação, onde foi sustentada a pronúncia,
e o processo esperou que designassem a sessão em que Amâncio teria de entrar
em julgamento.

XX

O acidente de Amâncio causou enorme impressão nos seus conhecidos. Campos,
ao receber a notícia, ficou fulminado e atirou-se no mesmo instante para a
casa de correção, sem mais se lembrar de que nesse dia estava cheio de serviço
até os olhos. Seu primeiro ímpeto foi de repreender severamente o culpado,
verberar-lhe com energia a “ação indigna” que acabava de praticar; mas pouco
depois, veio-lhe uma grande comiseração. “Porque , enfim, coitado, o pobre
moço era ainda uma criança…naturalmente fraco…e daí…Quem sabia lá o
que teriam feito para o precipitar naquele crime?… “Sem saber por que, afigurava-se-lhe
que o papel de vítima cabia mais a Amâncio do que ao Coqueiro. Este surgia-lhe
agora à imaginação, como um Satanás de mágica que deixou fugir de repente,
pelo alçapão do teatro, a sua túnica de bom velho peregrino. Seria até capaz
de jurar que, a despeito do disfarce, já de muito lhe havia bispado a saliência
dos cornos diabólicos por debaixo do religioso capuz. E pequeninos fastos,
que até aí jaziam dispersos e abandonados no seu espírito , vinham, acordando
de repente, justificar semelhante transformação. – Sim! Já em certa época
descobrira no Coqueiro tais e tais sintomas de hipocrisia; ouvira-lhe tais
e tais frase que o fizeram desconfiar de seu caráter!… não tina que ver!
– Já lá estavam as tais pontas diabólicas a espetar o capuz! E arrependia-se
de não haver em tempo desviado o pobre Amâncio daquele perigo: – Andara mal!
Devia preveni-lo!…devia ter dado qualquer providência a esse respeito!…
E voltando-se contra si: – Mas, onde diabo tinha eu esta cabeça, para não
ver logo que um homem, – que se casa especulativamente com uma velha do feitio
de Mme. Brizard; um homem que consentir à irmã receber presentes e mais presentes
de um estranho; um homem que especula com tudo e com todos, um maroto! – Não
se mostraria tão agarrado ao rapaz, senão com o propósito firme de lhe pregar
alguma?!…Oh! andei mal! Andei mal, como um pedaço de asno!… E apressou-se
a socorrer a ‘Pobre vítima” – Ainda se houvesse a hipótese de uma fiança…reconsiderava
ele, já em caminho das detenção. – Mas qual! O Dr. Tavares, que lhe levara
ao escritório a notícia do escândalo, dissera-lhe que “”o crime era inafiançável
e que por conseguinte não se podia evitar a prisão!” Infeliz moço! Infeliz
moço! Resmungava o Campos , quase chorando. – Antes nunca ele viesse ao Rio
de janeiro! – Que demônio hei de eu agora escrever à família?…E a pobre
D.Ângela?! Coitada, como ficará, quando, em vez do filho, receber a notícia
de tanta desgraça?!…Valha-me Deus! E foi nesse estado que o Campos chegou
à Rua do Conde. Hortênsia não ficou menos impressionada; ao saber do caso
empalideceu extraordinariamente e começou a tremer toda. Desde então se tornou
apreensiva e nervosa de um modo lastimável; tinha pesadelos, ataques de choro,
ameaças de febre e um fastio enorme. Carlotinha, que se achava nessa ocasião
de passeio em casa das Fonsecas de Catumbi, foi logo reclamada a lhe fazer
companhia. Em casa do negociante quase que se não falava de outra coisa que
não fosse o processo de Amâncio; pareciam todos empenhados com o mesmo ardor
na sorte do “pobre rapaz” Os caixeiros murmuravam pelos cantos

do armazém e os criados, sempre desejosos de merecer a atenção dos amos,
traziam da rua os cometrários que ouviam ou que inventavam sobre o fato. E
o escândalo, como um líquido derramado, ia escorrendo pelas ruas, pelos becos,
penetrando por aqui e por ali, invadindo as repartições públicas, os escritórios
comerciais, as redações das folhas e as casa particulares. Os jornais começavam
a explorá-lo. Na Academia de Medicina e na Escola Politécnica levantavam-se
partidos. João Coqueiro bem poucos colegas tinha se seu lado; nem só porque
lhe cabia na questão o papel , sempre mais antipático, de agressor, com em
virtude de seu gênio insociável e seco. Antigos ressentimentos, que pareciam
esquecidos, ressurgiam agora, aproveitando a ocasião para tirar vinganças;
daí,- opiniões mal – intencionadas; comentários atrevidos sobre a conduta
de Amélia, sobre o caráter mercantil de Mme. Brizard, sobre as velhas brejeirices
da Ruas do Resende. Uns se contentavam em fazer conjeturas, outros, porém,
tiravam conclusões, e alguns iam ainda mais longe, contando fatos: “Em tal
baile do Mozart”, dizia um quartanista de medicina, “estivera com a irmã do
Coqueiro, dançara com ela duas valsas e desde então ficara sabendo de quer
força era a tal bichinha!…”E seguiam-se pormenores degradantes e revelações
descaradas. Este, sustentava que o João Coqueiro sabia perfeitamente de tudo
que lhe ia por casa e que era até o primeiro a mercadejar com a irmã, como
seria capaz de fazer com a própria mulher, se houvesse um homem de bastante
coragem para afrontar aquele dragão! Estouro, afirmava que lhe não se lamberia
com a proteção do carola Teles de Moura, se não foram as legendária relações
de Mme. Brizard com o falecido cônego Muniz, ex – redator de um jornal católico.
E choviam as insimulações, as denúncias “Coqueiro era um hipócrita, um jesuíta!
– Fingia-se muito devoto na escola para agradar ao professor fulano; defendia
a escravidão e a monarquia para lisonjear Beltrano; – Se entrava numa pândega
com os companheiros, no outro dia punha-se a dizer que só ele não se embebedara
e não fizera papel triste! _ se lhe tocavam mulheres, o velhaco abaixava os
olhos e ficava todo estomagado, e debaixo da capa de santarrão, ia fazendo
das suas! – Era um cão! Um tartufo! Toda essa má vontade contra o João o coqueiro
redundava em benefício de Amâncio, por quem alguns estudantes pareciam sentir
verdadeiro entusiasmo. Na faculdade de Medicina não se encontrava um sé rapaz
em favor daquele; ao passo que este tinha por si quase toda a Politécnica.
Nas duas escolas falava-se muito em “exploração, em roubo, em piratagem”.A
cifra dos bens de Amâncio, à medida que passava de boca em boca, ia tomando
proporções fabulosas, faziam-na de mil, quatro mil, dez mil contos de réis.
O Paiva era agora requestado pelos colegas, como um boletim sanitário que
traz os últimos telegramas da guerra. Por saberem de sua intimidade com o
réu e das visitas cotidianas que ele fazia à casa de correção, não o largavam
um só instante; cercavam-no, cobriam-no de perguntas “Como estava Amâncio,
se triste, abatido, desesperançado, ou se alegre, indiferente, risonho?!…E
a tal Amelinha dos camarões?…que fazia/ como se portava no negócio? – ia
visitar o amante? Escrevia-lhe? aparecia a algum! Comprazia-se com desdita
do preso ou era solidária nos sofrimentos dele?” Paiva respondia para todos
os lados, não tina mãos a medir; os espírito s, porém, longe de se acalmarem
com isso, mais se sofregavam e acendiam. A impaciência tomava o lugar da curiosidade;
um sobressalto febril, de jogo, preava o coração dos estudantes; os ânimos
palpitavam na expectativa de um, desfecho escandaloso. Previam-se, com arrepios
de gozo antecipado, o impudico espetáculo dos depoimentos , as brutais declarações
dos médicos e todo o cortejo descomposto de um, júri de desfloramento. O artigo
222 do Código Criminal lá estava pairando nos ares, cínico e espetaculoso
como o flammeum de Nero no banquete de Tigelino.

* * *

O Campos, entretanto, não podia descansar com a idéia daquela desgraça. Abandonava
tudo, esquecia os próprios interesses para correr às bancas dos advogados,
consultando, propondo defesas; mais tonto, mais aflito do que se tratasse
de salvar um filho. A situação relacionara com o Dr. Tavares. O qual, um pouco
em represália ao Coqueiro por havê-lo despedido de casa, sem as explicações
devidas ao seu alto merecimento, e um, pouco talvez na esperança de lucros
pecuniários, mostrava-se ferozmente empenhado na questão. Nunca esteve tão
verboso, tão cheio de entusiasmo e tão fecundo em citações latinas. Viam-no,
a cada passo, em todos os grupos da Rua do Ouvidor, berrando., gesticulando
sobre o assunto, como se tudo aquilo lhe trocasse diretamente. – É incontestável,
exclamava ele a quem lhe caía nas garras, – é incontestável que Amâncio foi
vítima de uma arbitrariedade esse delegado das dúzias que, sem mais nem menos,
o mandou recolher à prisão, – prevaricopui! Prevaricou, principalmente porque
Amâncio nada mais fez do que desflorar mulher virgem maior de

dezessete anos, o que, perante a nossa lei, não constitui crime! Por cons3efguinte,
a prisão preventiva não devia ser efetuada! E a sua voz, aguda e sistemática,
repetindo a palavra friamente obscena da lei, causavas no auditório o efeito
vexativo que nos produz um cadáver nu. Hortênsia já se escondia no quarto,
quando o maçante se lhe pespegava em casa. – Ah! Ele havia de mostrar a esses
advogadozinhos de meia- tigela, os quais, mal surge um processo andam se oferecendo
como protetores de qualquer uma das partes e comprometendo a causa!- Ele havia
de mostrar o que é dignidade e retidão na justiça! E, se não tivesse outro
meio, escreveria uma série de artigos, que os poria a todos na rua da amargura!
Campos havia de ver! E, chegando-se para este, em atitude misteriosa: – Mas
o senho, justamente, é que me podia ajudar se quisesse!… – Ajudá-lo? – Sim!
Nós dois, brincando, dávamos cabo da panelinha do Coqueiro! Que julga? Sei
de tudo! Vi – com estes olhos! Sei, melhor que ninguém, como se arrumou a
cilada ao pobre moço! Campos declarou que , em benefício de Amâncio, estava
pronto a fazer o que fosse preciso. – Encarrega-se da publicação dos artigos?!
Exclamou o advogado. – Pago-os até quem os fizer…disse o Campos – contanto
que isso aproveitar ao rapaz! Todo o meu desejo é livrá-lo o mais depressa
possível! É uma questão de consciência! – Pois então, meu caro amigo, pode
escrever que, ou o seu protegido não sofrerá menor desgosto ou leva o diabo
a caranguejola desta justiça de borra! Sou eu quem o afirma! amanhã mesmo
trago-lhe o primeiro artigo! Verá! – Está dito! Mas , nesse mesmo dia, quando
o Campos se dispunha a sair de casa, para se entender com o Saldanha Marinho,
que parecia resolvido a tomar a causa de Amâncio, entregaram-lhe uma carta.
Era o Coqueiro e dizia simplesmente: “Para que V. S. ª não continue iludido
e não se sacrifique por quem não lhe merece mais do que o desprezo, junto
remeto-lhe um documento que nos torna quase companheiros de infortúnio e que
lhe dará uma idéia justa do caráter desse moço perverso, cuja intenção aso
lado de sua família era desonrá-la como desonrou a minha!” O negociante desdobrou,
a tremer, o papel que vinha incluso, e leu aquela célebre carta subtraída
por Amélia, alguns tempos antes. Não quis logo acreditar no que via escrito.
Uma nuvem passara-lhe diante dos olhos. “Mas não havia dúvida! Era a letra
de Amâncio , era a letra daquele miserável, por quem ele ultimamente passara
dias tão penoso! – Que ingratidão! E o Campos que o tinha na conta de um rapaz
honesto!…Como vivera iludido!…Agora, dava toda a razão ao Coqueiro! Calculava
já o que não teria feito o biltre na casa de pensão! As tais pontas de Mefistófeles
iam desaparecendo da cabeça do irmão de Amélia para se revelarem na cabeça
de Amâncio. – E Hortênsia?! Gritou-lhe de surpresa o coração. – Ah! por esse
lado estava tranqüilo!…Por ela meteria a mão no fogo! – Demais, o teor da
carta bem claro mostrava que o infame não conseguira seus lúbricos desígnios!
– no desespero brutal daquelas palavras via-se indubitavelmente que a “virtuosa
senhora” fechara ouvidos ao malvado! Mas, como se podia conceber tanta perversidade
e tanta hipocrisia em uma criatura de vinte anos?!…E lembrar-se o Campos
de que, ainda naquela manhã, nem conseguira almoçar direito, de tão preocupado
que estava com o destino de semelhante cachorro!… Agora, nem de longe queria
ouvir falar de Amâncio ou do que a estie se referisse. As sua boas intenções
sobre o rapaz fugiram de um só vôo e o coração esvaziou-se-lhe de repente,
como um pombal abandonado. Mas ainda lá ficou uma idéia branda e compassiva
que respeitava ao ingrato; ainda lá ficou uma mesquinha pomba esquecida, que
já não tinha forças para acompanhar as revoada das companheiras, – era a comiseração
inspirada pela mãe do criminoso. Essa ficou. – Que desgraça da infeliz senhora!
Possuir um filho daquela espécie! E o Campos, com as mão cruzadas atrás, encaminhou-se
lentamente para o segundo andar, em busca da mulher. Não a acusou; não lhe
fez de leve ima pergunta de desconfiança; apenas disse, pondo-lhe a carta
defronte dos olhos: – Mira-te neste espelho. Hortênsia ficou lívida.

– Vê tu em que eu me metia!…acrescentou ele. – Defender aquele miserável!
Calculo quanto não te incomodaste, minha santa! E beijou-a na testa. Ela sacudiu
os ombros numa expressão de confiança na própria virtude: – O marido a conhecia
bem, para que pudesse recear uma deslealdade de sua parte! Logo, porém, que
lhe escapou da presença, sentiu uma grande vontade de chorar. Correu ao quarto,
fechou-se por dentro, e atirou-se à cama, abafando os soluços com os travesseiros
que se inundavam.

* * *

Era um desespero nervoso, uma estranha mágoa por alguma coisa que ela não
podia determinar o que fosse, mas que só se abrandava com aquela orgia de
lágrimas. Sentia gosto em vertê-las, abundantes, fartas, como se as derramasse
no fogo que a devorava. Não obstante, ao receber aquela carta, ainda lhe sobejara
coragem para responder, sem afrouxar nos seus princípios de honestidade; mas,
agora, uma súbita transformação ganhava-lhe os sentidos e parecia chamar-lhe
à cabeça as ondas quentes de seu sangue revolucionado. – E quem não se revoltaria,
pensava Hortênsia, – defronte da sorte tão contrária do lastimável moço, cujo
grande crime consistia apenas no muito amor que ela lhe inspirara?…Ah! Era
isso decerto o que a enchia de aflição e desalento! – era a desgraça dessa
pobre criatura, contra a qual tudo parecia conspirar, como se um gênio fantástico
e mau a perseguisse! Que seria agora do mísero, sem a proteção do Campos?…Que
seria do desgraçado, sem esse último companheiro que lhe restava no meio de
tamanhas lutas?… Violou uma donzela, é verdade! Mas deveriam responsabilizá-lo
por isso?…Seria ele o verdadeiro culpado ou simplesmente uma vítima?…Falava-se
tanto nos costumes de toda aquela gente do Coqueiro!…rosnavam com tanta
insistência sobre os planos, os cálculos, as armadilhas tramadas ao dinheiro
do rapaz!…De que lado estaria a razão?…E, quando se revoltassem toso contra
o infeliz, teria ela, Hortênsia, o direito de fazer o mesmo?…Não lhe caberia
grande parte na culpa de que o acusavam? Não poderias ela, só ela, ter evitado
aquilo tudo com um simples palavra de amor?…Por que , afinal o que lançou
Amâncio nos braços da tal rapariga?…Foi a paixão? foi a beleza? Foi o talento?
– não! foi unicamente o despeito! Foi o delírio, o desespero de um coração
repudiado! – Sim! sim! Tudo aquilo sucedera, porque ela o repelira; porque
ela, a imprudente, fechara-lhe os braços, quando o desgraçado, louco de paixão,
lhe suplicava por um bocado de amor, um pouco de caridade!… Antes tivesse
cedido!… E embravecia-lhe o pranto. – Antes tivesse, porque, se assim fosse,
o pobre moço, com certeza, não pensaria na outra! – Mas o infeliz, coitado!
viu-se aflito, enraivecido, sofrendo , saber Deus o quê! E sucumbiu, ora essa!
Sucumbiu como aconteceria a qualquer nas mesmas condições! Sucumbiu por desalento,
talvez por vingança, talvez por não ter outro remédio – Não! definitivamente
sentia muita pena daquele desditoso rapaz! Amava-o agora. Seu espirito atrasado
e muito brasileiro descobria nele uma vítima da fatalidades amorosas, e esse
prisma romântico emprestava ao estudante uma irresistível simpatia de tristeza,
uma deliciosa atração de desgraça. Hortênsia sonhava-o “pálido, melancólico,
desprezado no fundo de umas prisão, tendo por leito – um catre abominável,
por única luz – uma trêmula aresta do sol que se filtrava pelas grades negras
do cárcere”,. E aquela encantadora figura de prisioneiro, com a cabeça languidamente
apoiada nas mãos, os olhos úmidos de pranto, os cabelos em desalinho sobre
a fronte, – a penetrava toda, enchia-lhe o coração ,num aflitivo trasbordamento
de lágrimas. – Oh! Aquela adorável figura de vinte anos sofria tudo aquilo
porque a amava! – porque uma paixão insensata lhe entrara no peito; sofria
porque Hortênsia recusaras os beijos que o desventurado lhe pedira com tanta
ansiedade. Pobre moço! Pobres vinte anos! Dizia ela quase com as mesma frases
do marido. – Mas por que se haviam de ter visto?…por que se haviam de amar?…
E a mulher do Campos, que até aí não sentira dificuldade em resistir às seduções
do estudante, agora, fascinada pela dramatização daquela catástrofe que o
heroificava, via-o belo, indispensável, grande na sua situação especial, conhecido
das mulheres, temido e odiado dos homens, vivendo na curiosidade do público,
percorrendo todas as fantasias, sobressaltando todos os corações. E o contraste
da sofredora condição em que o vias presentemente com as atitudes brilhantes
que ele outrora estadeara naquela própria casa, quando, de taça em punho,
espargia a sua bela palavra quente e sonora, prendendo a atenção de velhos
e moços, dominando, conquistando, – esse contraste ainda mais a arrebatava
para ele com toda a violência de uma alucinação.

Não mais se possuiu, – um desgosto mofino apoderou-se dela; ficou insociável
e muito triste; entregou-se a longas leituras místicas, acompanhando com interesse
amores infelizes, lentos martírios da alma, que só terminavam no esquecimento
da morte ou do claustro. Decorou entre lágrimas a carta do réu. – Como ele
me amava! Dizia soluçando, – como ele sofrias, quando arrancou do coração
estas palavras , ainda quentes do seu sangue! De sorte que, ao lhe comunicar
o marido a resolução de escrever a Amâncio , remetendo-lhe a terrível carta
denunciador prevenindo-o de que lhe retirava a sua amizade, ela, com uma agonia
a sufocá-la, resolveu também escrever ao moço uma carta que servisse, ao menos,
para suavizar o golpe da outra.

* * *

O estudante, no dia seguinte, recebia na prisão as duas cartas. Não se pode
determinar qual delas o surpreendeu mais; notando-se , porém, que a do Campos
produziu completo o efeito a que se propunha; ao passo que a outra, em vez
de o consolar, enraiveceu-o – Pois aquela mulher ainda não estava satisfeita
e queria insistir nas provocações?…Ela talvez fosse a culpada única de tudo
que de mau lhe acontecera! – As coisas não tomariam decerto o mesmo caminho,
se a maldita não lhe fizesse as negaças que fez e não lhe acordasse desejos
que se não podiam saciar! – E agora?…além de perder a amizade do Campos,
justamente quando mais precisava dela, havia de suportar a prosa lírica da
Sr.a D. Hortênsia!…”Que estava arrependida, que o adorava, que seria capaz
de tudo por lhe dar um momento de ventura e que o esperava de braços abertos,
logo eu ele se achasse em liberdade.”

Fosse para o inferno com as suas adorações! Diabo da pamonha! “Que o esperava
de braços abertos!” Era quanto podia ser! Aquilo até lhe cheirava a debique!
Aquilo parecia um insulto à sua desgarra, à sua terrível posição! E chorava,
o infeliz chorava como se quisesse vingar nas lágrimas. Depois da carta de Hortênsia,
a vida se lhe fazia mais escura e mais apertada entre as paredes da sua prisão.
Quase que já não podia agüentar a presença do Paiva, do Simões e de alguns outros
colegas que lá iam. No meio das sombras, progressivamente acentuadas em torno
dele, só a imagem tranqüila e doce de sua mãe permanecia com a mesma consoladora
suavidade; sempre aquela mesma carinhosa figura de cabelos brancos. Aquele corpo
fraco, vergado e tão mesquinho que parecia pequeno demais para sustentar tamanho
amor. – Minha mãe! Minha santa mãe! Exclamava o preso, quando seu espírito ,
esfalfado pelas desilusões, precisava remansear ao abrigo morno e quieto de
um bom pensamento. – Minha santa mãe!

XXI

Três meses depois, a Escola Politécnica e a Escola de Medicina apresentavam
o quente aspecto de uma sedição. – Amâncio fora absolvido. Os estudantes formigavam
assanhados como se acabassem de ganhar uma vitória. O nome do nortista era
repetido com transporte; um grupo enorme de rapazes, capitaneado pelo Paiva
Rocha e pelo Simões, aguardava o colega à saída do júri, para o conduzir em
triunfo ao Hotel Paris , onde havia à sua espera um almoço e a banda de músicos
alemães. Fora muito extenso o último júri, quarenta horas seguidas; a defesa
de Amâncio principiou à meia – noite e acabou às seis da manhã. O advogado,
que “estava feliz como nunca”, ainda aproveitou engenhosamente essa circunstância
para afestoar o remate de seu pomposo discurso ;”Não queria que o rei dos
astros se envergonhasse com aquele nojento espetáculo de pequenas misérias!
Não queria que o sol tivesse de corar defronte de semelhante tolina! Pedia
que se varressem de pronto as consciências; que se descarregassem os espíritos,
para que limpamente recebessem a esplêndida visita da aurora! – Aí chegava
o dia! Aí chegava a luz, enxotando os fantasmas tenebrosos da noite e precipitando-os
em debandada pelo espaço!” ” Pois bem! Pois bem, meus senhores! Se ainda permanece
nos vossos espíritos alguma sombra, alguma dúvida, alguma opinião vacilante
sobre a inocência daquele pobre mancebo…( e mostrava Amâncio com um gesto
supremo) – que essa dúvida se apague! Que essa opinião vacilante se resolva
na luz que nos assalta! Que essa última sombra se retire espavorida de envolta
com as últimas sombras da noite que foge!” – Bravo! Bravo! Apoiado! Muito
bem! E, no conflito da luz fresca, que entrava pelas janelas do edifício,
com a luz vermelha do gás que amortecia, as palavras retumbantes do orador
tomavam uma expressão de trágica solenidade. E os rostos lívidos e tresnoitados
iam se esbatendo nas sombras da sala, como pálidas manchas brancas que se
dissolvem.

Ninguém saíra antes de terminar a defesa; um empenho nervoso os prendia ali;
as palavras do advogado eram aplaudidas com febre; – todos queriam a absolvição
de Amâncio. Às nove horas da manhã a cidade parecia ter enlouquecido. Interrompeu-se
o trabalho; os empregados públicos demoravam-se na rua; os cafés enchiam-se
com a gente que vinhas do júri. À porta das redações dos jornais não se podia
passar com o povo que se aglomerava para ler as derradeiras notícias do processo,
pregadas na parede à última hora. Por toda a parte discutia-se a brilhante
defesa de Amâncio de Vasconcelos: “Estivera magnífica! – Surpreendente! –
Uma verdadeira obra- prima! Uma glória para o advogado Fulano! “Repetiam-se
frases inteiras do imenso discurso; faziam-se comparações “Maître Lachaud
não e sairia melhor!” A Rua dos Ourives estava quase intransitável com a multidão
que se precipitava freneticamente para ver sair o absolvido. Á porta do júri,
o tal grupo de estudantes capitaneado pelo Paiva, esperava-0 formando alas
ruidosas. Tudo era impaciência e sofreguidão. Afinal, apareceu o homem. Vinha
muito pálido e um pouco mais magro. Ouviu-se então um rugido formidável que
se prolongava por toda a rua. Os chapéus agitaram-se no ar. – Viva Amâncio
de Vasconcelos! – Vivô! repetiram os colegas. – Morram os locandeiros – Morram
os piratas! Amâncio passava de braço a braço, afagado. Beijado, querido, como
uma mulher formosa. Mas o Paiva e Simões apoderaram-se dele, e, seguidos pelo
enorme grupo de estudantes, puseram-se a caminho para o hotel, entre as contínuas
exclamações de entusuasmo, que rompiam de todos os pontos. Entraram na Rua
do Ouvidor. {Por onde passava o bando alegre dos rapazes, um rumor ardente,
ancho de vida, enchia a rua num delírio de vozes confundidas. As portas das
casa comerciais atulhavam-se de gente; pelas janelas os dentistas, das costureiras
e dos hotéis, surgiam com o mesmo alvoroço, cabeças femininas de todas as
graduações: – senhoras que andavam em compras, raparigas que estavam no trabalho,
professoras de piano, atrizes, cocotes; e, em todas igual sorriso de pasmo,
olhares incendiados, bocas entreabertas a balbuciar o nome de Amâncio. Baraços
de carne branca apontavam para ele num tilintar nervoso de braceletes. – É
aquele! Diziam. – Aquele moreno, de cabelo crespo, que ali vai! – Mamãe! mamãe!
Gritavam doutro lado, – venha ver o moço rico que saiu hoje da prisão! E flores
desfolhadas choviam-lhe sobre a cabeça, e os lenços de renda borboleteavam
e iam cair-lhe aos pés, como uma provocação, e olhares de amor entornavam-se
das janelas entre o ruidoso e pitoresco catassol das mulheres em grupo. E
Amâncio, tonto de prazer, caminhava no meio dos amigos, abraçado a um grande
ramo de flores naturais, que um preto lhe acabava de entregar e em cuja larga
fita pendente via-se o nome dele em letras de ouro. Era uma lembrança de Hortênsia.
E o bando crescia sempre. O Largo de São Francisco já estava cheio e ainda
a Rua do Ouvidor não se tinha esvaziado. Ao passar pela Escola Politécnica,
ouviram-se estalar foguetes e os vivas a Amâncio e à Liberdade reproduziram-se
com mais veemência. Os músicos alemães responderam da porta do hotel com a
Marselhesa. – A vertigem chegou então ao seu cúmulo, inflamada pela vibração
corajosa dos instrumentos de metal. A Rua do Teatro, o Rocio e todos os becos
e travessas circunvizinhas já se achavam tolhidas de povo; as janelas do Hotel
Paris destacavam-se embandeiradas e cheias de gente, como nos dias de carnaval.
E aquela festa, ali, no coração da cidade, tomava um largo caráter de manifestação
pública. Já ninguém se entendia com o estardalhaço das vozes, da música e
dos foguetes. Amâncio, carregado em triunfo nos ombros dos colegas, entrou
no hotel ao som do grande hino, chorando de emoção e agitando freneticamente
o seu velho chapéu de feltro, desabado e boêmio. Francesas de cabelo amarelo
desciam com espalhafato ao primeiro andar do Paris , para ver de perto o “tipo
da ordem do dia”, o belo moço de que todo o Rio de Janeiro se ocupava naquele
momento, – o herói daquele romance de amor que havia meses apressava tantos
espíritos e sobressaltava tantos corações. Ele, que até ali parecia sufocado
e não dera palavra, como que despertou às primeiras notas da Marselhesa recobrou
de súbito a sua equatorial verbosidade de brasileiro nortista; acenderam-se-lhe
repentinamente as faces;

os olhos luziram-lhe como duas jóias, e a sua voz era já segura e vibrante
quando ao teto voaram as primeiras rolhas de champanha. E, de pé, dominando
a extensas mesa coberta de iguarias, – a taça erguida ao alto, o corpo torcido
em uma posição teatral, desencadeou o seu verbo apaixonado e brilhante.

* * *

Entretanto, a essas horas, Coqueiro se dirigia tristemente para casa. As
mão cruzadas atrás, a cabeça baixa, as sobrancelhas franzidas, com o ar trágico
de um herói vencido. Vira e ouvira tudo! Oculto num botequim, vira passar
o bando fogoso dos colegas que festejavam o amante de sua irmã; ouvira os
“morra ao locandeiro! Ao pirata!” ouvira as galhofas, os risos de escárnio,
que lhe atiravam como a um inimigo de guerra. E uma raiva negra, um desespero
surdo e profundo entraram-lhe no corpo, que nem um bando de corvos, para lhe
comer a carniça do coração. Um duro desgosto pela vida o levava a pensar na
morte, revoltado contar o mundo , contra a sociedade, contra sua família,
contra a hora em que nascera. – Maldito fosse tudo isso! Malditos seus pais!
Sua pátria! Sua convicções! Malditas as leis todas que regiam aquela miserável
existência! Chegou lívido, sombrio, com os lábios a tremer na sua comoção
mortífera. Um silencio fúnebre enchia a casa; dir-se-ia que acabava de sair
dali um enterro. Amélia chorava fechada no quarto e Mme. Brizard, estendida
na preguiçosa, tinha a cabeça entre as mãos e meditava soturnamente. Sobre
a mesa o almoço há que horas esfriava, esquecido e às moscas. É que já sabiam
do terrível desfecho do júri: – Amâncio estava livre, senhor de si por uma
vez! Podendo ir para a província quando bem quisesse, porque, além de tudo,
nem o dinheiro lhe faltava!… – E eles que ali ficassem, a roer um chifre!
– sem recursos, e obrigados a ocupar aquela casa, que era o preço de sua desonra
comum. – Mas , o culpado foste tu e só tu! Berrou de supetão Mme. Brizard,
erguendo-se da cadeira com um movimento de cólera. – Se me tivesses ouvido,
não ficarias agora com essa cara de asno. “Que tudo quer, tudo perde!” Foi
bem feito! Foi muito bem feito, para que, de hoje em diante, prestes mais
atenção ao que te digo! – Agora- pega-lhe com trapos quentes! O marido deixou
cair a cabeça sobre o peito e quedou-se a fitar o chão. Mme. Brizard, depois
de voltear agitada pela sala acrescentou: – Se fosses o único a sofrer as
conseqüências de tuas cabeçadas, vá! Mas é que nós todos temos de as agüentar!
agora só quero ver como te arranjas! Onde vais tu descobrir dinheiro para
sustentar a casa! É preciso ser muito cavalo, para ter a fortuna nas mãos
e atirá-la pela janela fora! Agora é que eu quero ver! Anda! Vai arranjar
hóspedes! Vê se descobres um novo Amâncio! ou quem sabe se contas viver do
que der o cortiço da Rua do Resende?! Fizeste-a bonita; os outros que amarguem!..
Calou-se por um instante, arquejando, mas repinchou logo: – Olha! Por estes
três meses já podes avaliar o que não será o resto! – Não há mais um punhado
de farinha em casa; a companhia já ontem nos cortou o gás, porque não lhe
pagamos o trimestre vencido; o último criado que nos restava foi-se há mais
de quatro semanas, dizendo aí o diabo; só nos fresta a mucamas, que é aquele
estafermo que sabemos; o Eiras reclama todos os dias o tratamento de Nini!
– E tu!…tu! – sem um emprego, sem um rendimento, sem nada! – Então?! ( E
pôs as mãos nas cadeiras, com um riso abominável de ironia. ) Então?! Estamos
ou não estamos arranjadinhos?!…O que te afianço é que não me sinto nada
disposta a tornar a inferno da existência que curti na Rua do Resende! Vê
lá como te arranjas! Coqueiro fugiu para o quarto, sem responder à mulher.
“Tinha medo de fazer um despropósito.! “- Que miséria de vida, a sua! Refletia
ele. – Nem ao menos a própria família o consolava! Por toda a parte a mesma
perseguição, o mesmo ódio, a mesma luta! – Que seria de si?! Que fim poderia
ter tudo aquilo?! Onde iria cavar dinheiro para manter os seus?! – E as custas
do processo, e as despesas que fizera?! – O alferes e o homem da venda exigiam
o pagamento do que depuseram contra Amâncio, a quem mal conheciam de vista;
aquele o ameaçava com um escândalo, se Coqueiro não lhe “cuspisse pr’ali os
cobres “;o outro o abocanhava pela vizinhança, fazendo acreditar que o devedor
era, nem só um caloteiro, como um bêbado! E não havia dinheiro para nenhuma
dessas coisas! – Um inferno! Um verdadeiro inferno! – Os moradores da Rua
do Resende há que tempos que não pingavam vintém; – O Damião estava já pelos
cabelos para arriar a carga: “Não podia mais aturar semelhante corja!” dizia
e contava até que um dos inquilinos lhe tentara chegar a roupa ao pêlo por
questões de aluguéis.

E o Coqueiro viu arrastar-se todo aquele mau dia na mesma inferneira. À noite,
foi preciso acender velas em substituição do gás suprimido. Amélia não comera
desde a véspera e queixava-se agora de muitas dores de cabeça, náuseas, tonturas
de febre e um fastio mortal; apareciam-lhe por todo o corpo0 pequenas manchas
roxas. Mme. Brizard só abria a boca para fazer novas recriminações e praguejar;
na sua cólera chegara alguns tabefes ao filho, e este rabujava a um canto,
embesourado e casmurro. – Antes morresse! Antes, mil vezes antes! Repisava
o Coqueiro, sentindo-se esmagar debaixo daquele desmoronamento. – Que faria
agora de uma irmã prostituída, e de uma mulher desesperada?!… E as horas
arrastavam-se pesadas como cadeias de ferro. A casa mal esclarecida tinha
uma tristeza lúgubre de igreja deserta. Afinal, Mme. Brizard foi para a cama
com o filho, Amélia parecia mais tranqüila; só o Coqueiro velava, só ele,
com o seu desespero a triturá-lo por dentro. Não podia sossegar um minuto
– era deixar-se ir consumindo pelo sofrimento., até que a dor cansasse de
doer e os tais bichos negros do coração lhe comessem o último bocado de carniça.
Sentia, porém, uma espécie de volúpia pungente em reler as cartas anônimas
que lhe enviaram durante o dia; encolerizava-se com isso, mas não podia deixar
de as ler, como quem não resiste a tocar numa parte dorida do corpo. Três,
nada menos do que três cartas anônimas, e cada qual a mais insultuosa e mais
perversa; não lhe poupavam coisa alguma: – a vergonha real da situação, o
ridículo que havia de o acompanhar para sempre, a ojeriza que o público lhe
votava espontaneamente; tudo lá estava; tudo vinha descrito com uma minuciosidade
cruel, e com pequeninas considerações ultrajantes, com o terrível cuidado
de quem se vinga. E, para o efeito ser mis completo, falavam intencionalmente,
com entusiasmo, nas conquistas e nas simpatias do outro, do querido, do “feliz”!
Não se esqueciam da menor circunstância lisonjeira para Amâncio: – o modo
pelo qual o receberam ao sair da prisão – os vivas, – as flores desfolhadas
sobre ele, – os oferecimentos, – as declarações de amor, – os ramilhetes que
lhe deram, – os brindes; tudo, tudo fora metido ali, para ferir, para danar,
para moer. Reconheceu logo quer uma das cartas era de Lúcia; as outras deviam
ser de seus próprios colegas ou, quem sabe?…de algum velho inimigo já esquecido
por ele!- Tanta gente saíra despeitada da sua casa de pensão!…Ser credor
é ser algoz!…exigir pagamento de uma conta a quem não tem dinheiro é exigir
a sua inimizade eterna! Além disso, com os seu modos secos e retraídos, ele
sempre fora tão pouco estimado na academia!…não tinha, como o “prosa” do
Amâncio, gênio para agradar a todo o mundo; não tinha as lábias do outro:
não sabia fazer” discursatas e falações”a propósito de tudo!…Era um infeliz,
que todos evitavam – um leproso! um lazeiro! E a dor, sem se resolver nas
lágrimas que lhe faltavam, encaroçava-se-lhe por dentro, numa grande aflição.
– Agora, como se apresntar nas aulas?!…Com que cara suportar o riso sarcástico
dos colegas?!…Como resistir à curiosidade brutal do público que o esperava
impaciente por cuspir-lhe no rosto?!…Como passar debaixo daquelas mesmas
janelas que despejaram flores à cabeça de Amâncio?!…- Amâncio! o homem que
dormiu com sua irmã!… E, maquinalmente foi à secretária e tirou o velho
revólver que fora do pai. Que estranhas recordações à vista daquela arma!
Daquela arma que na sua infância o fizera chorar tantas e tantas vezes!…Belos
tempos que não voltam!… E contemplava distraído os bonitos do revólver –
os arabescos de prata e madrepérolas com o brasão do velho Lourenço Coqueiro
em ouro. Rica peça! Artística, bem trabalhada; não se lhe enxergava sinal
de ferrugem, nem desarranjo nas molas. – Também, que havia nisso para admirar
se o dono tinha por ela uma espécie de fetichismo e andava sempre a bruni-la
e a azeitá-la! Q Era o único objeto que lhe falava ainda das extintas grandezas
do pai: Quantas vezes ele não ouvira o pobre velho cavaquear sobre as alegorias
daquele rico brasão!…E quantas vezes, a tremer de medo, não o vira descarregar
aquela mesma arma contra uma laranja que um escravo segurava com a mão erguida!
– Ah! bem que se recordava de tudo isso!…Parecia-lhe ouvir ainda gritar
o pai, quando lhe metia à força o revólver entre os dedos. “Não! Isso agora
hás de ter paciência! Tu, ao menos, ficarás sabendo dar um tiro!” E todavia,
não fiquei sabendo…balbuciou o filho de Lourenço, a experimentar nos lábios
o contacto frio do cano de aço. – Não fiquei sabendo dar um tiro, que, se
o soubesse, acabaria aqui mesmo com esta vida estúpida e misserável!… S
eu tivesse ânimo…pensou ele, estremecido com a idéia da morte – amanhã encontravam
o meu cadáveres e não ficariam naturalmente fazendo de mim um juízo tão triste
e tão ridículo! – Talvez até chegassem a amaldiçoar o outro e erguessem em
volta de meu nome uma legenda respeitosa e compassiva… Foi à gaveta, havia
lá algumas balas, carregou a arma.

– Não há dúvida, é a melhor coisa que eu poderias fazer…reconsiderava Coqueiro,
imóvel, a olhar indeciso para o revólver que tinha na mão. Mas era bastante
chegá-lo contra a boca ou contra um dos ouvidos, para que os seus dedos logo
se paralisassem e para que um arrepio muito agudo lhe corresse pela espinha
dorsal. Faltava-lhe a coragem. Duas vezes ergueu-o à altura da cabeça, duas
vezes o desviou, com as mãos trêmulas e o corpo entalado numa agonia insuportável.
– É horrível! Resmungava ele. – É horrível! Ia principiar de novo as tentativas,
quando da rua uma forte matinada lhe prendeu a atenção. Um grupo se aproximava,
entre cantarolas e algazarras de risos. Eram dez ou doze dos últimos convivas
de Amâncio; haviam passado todo o dia e grande parte da noite a folgazar no
Paris; muitos, como o autor da pândega, lá ficaram prostrados pela bebida,
mas aqueles tiveram a fantasia de um passeio matinal ao Jardim Botânico e
meteram-se barulhosamente no bonde. Já no Largo do Machado, um deles, um,
que de há muito trazia o Coqueiro atravessado na garganta , lembrou que seria
mais divertido apearem-se ali e seguirem a Rua das Laranjeira. “A casa do
velhaco era a alguns passos – bem lhe podiam cantar uma serenata debaixo das
janelas!” A idéia foi bem acolhida, e a ruidosa farândola despejou-se pelo
caminho das Laranjeiras numa hilaridade pletórica de bêbados. Só pararam defronte
da porta de João Coqueiro. Através das vidraças e das cortinas de uma das
janelas, viram transparecer dubiamente a trêmula morte – cor de uma luz avermelhada.
– Estás dormindo, ó Joãozinho dos camarões?! Berrou cambaleando o que tivera
a idéia daquela romaria. – Dorme, dorme! É assim que fazem os sem – vergonhas
de tua espécie!- vendem a irmã e põem-se a descansar no colchão que lhe deixou
o amante! Seguiu-se um estrupido de gritos e risos: – Fora! Fora! – Fiau,
fiau! – Larga essa casa que não é tua, gritou aquele. – É da outra! Ganhou-a
com o suor de seu rosto! – Sai, parasita! – Sai! Sai! E espocavam gargalhadas
no grupo, e os guinchos sibilantes iam até o fim da rua :- Fora! – Fora! –
Fiau – Sai, cão! – Deixa a casa, que não é tua !- Fora! – Fora o cáften! –
Fiau! Os vizinhos chegavam às janelas, vozeando furiosos contra semelhante
berraria. – É o que sucede a quem mora perto de um João Coqueiro! Bradou um
da turma. – Quem mora junto ao chiqueiro sente o fedor da lama! Gritou um
segundo. – Queixe-se à Câmara Municipal! Acudiu outro. E formidável matacão
foi de encontro à vidraça iluminada do chalé de Amélia. Um dos vizinhos apitou
e outro despediu um jarro de água sobre os desordeiros Ouvi-se logo o estardalhaço
impetuoso dos gritos, das descomposturas e do crepitar dos vidros que se partiam
sob um chuveiro de pedras. – Morra! – Morra o infame! bramia a malta , já
de carreira para o Largo do Machado. – Morra o cáften!

* * *

João Coqueiro presenciara tudo aquilo, grudado a um canto da janela, mordendo
os nós da mão, os olhos injetados, o sangue a saltar-lhe nas veias. – Oh!
Era demais, pensava ele desesperado. – Era demais tanta injúria! – Se Amâncio
estivesse ali, naquela ocasião, por Deus que o estrangulava! Abriu a janela.
O dia repontava já, mas enevoado e triste. Não havia azul; céu e horizontes
formavam uma só pasta cor de pérola, onde vultos cinzentos se esfumavam.

O homem da venda abria também as sus portas. Coqueiro cumprimentou-o, ele
respondeu com um risinho insolente, acompanhado de pigarro. Uma caleça rodejava
lentamente ao largo da rua, o cocheiro vergado sobre as rédeas, o seu casquete
sumido na gola do capotão. Coqueiro fez-lhe sinal que esperasse, embrulhou-se
no sobretudo, enterrou o chapéu na cabeça, meteu o revólver no bolso e saiu.
– Hotel Paris! Disse ao da boléia, atirando-se no fundo da carruagem. O cocheiro
endireitou-se sobre a almofada, espichou o pescoço, sacudiu as rédeas e os
animais dispararam, assoprando grossamente contra o ar frio da manhã.

* * *

Coqueiro enfiou pela escadaria do hotel. Estava tudo deserto e silencioso;
apenas, no salão principal, viam-se um preto velho e um caixeiro desdormido
que, entre bocejos, se dispunha a principiar a limpeza da casa. Dir-se-ia
que ali passara um exército de bêbados. Por toda a parte vinho derramado,
copos partidos, cacos de garrafa e destroços do vasilhame que servira à mesa;
o oleado do chão escorregava com uma crusta gordurosa de restos de comida
e vômito pezinhado; um espelho ficara em fanicos e um aquário desabara, fazendo-se
pedaços e alagando o pavimento, onde peixinhos dourados e vermelhos jaziam,
uns mortos e outros ainda estrebuchando. O preto, de gatinhas, em manga de
camisa e calças arregambiadas , procurava desencardir o sobrado com um esfregão
de coco, que ia embeber ao canto da sala numa tina cheia d’ água; enquanto
o caixeiro, a jogar o corpo, muito esbodegado, erguia o que estava pelo chão
e empilhava as cadeiras sobre as mesinhas de mármore, ao comprido das paredes.
– Onde é o quarto do Amâncio? perguntou-lhe João Coqueiro. – Amâncio?…repetiu
aquele, emperrando no meio da sala para fitar o interlocutor com um olhar
morto de sono! – Ah! bocejou. – O tal moço do pagode de ontem?… Coqueiro
sacudiu a cabeça perpendicularmente. – É cá, no número dois, mas escusa bater,
que ele aí não está. Ficou lá em cima, no onze, com a Janete. E, voltando
ao serviço: – Se não é coisa de pressa, o melhor seria procurá-lo mais logo…Deve
de estar agora ferrado no sono, que levou na pândega até as quatro e meia!…
Coqueiro voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o segundo andar. Bateu à porta
no n.º 11. Ninguém respondeu. Tornou a bater. Bateu de novo. – Qui est là!…perguntou
na rouquidão do estremunhamento uma voz de mulher. – Preciso falar a esse
rapaz que aí está, o Amâncio! Ouviu-se um farfalhar de panos, chinelas arrastaram,
e em seguida a porta abriu-se cautelosamente, mostrando pela fisga um rosto
gordo, de olhos azuis. – Qui est là… Mas o Coqueiro, em vez de responder,
afastou a porta com um murro e atirou-se para dentro do quarto; ao passo que
a Jeanete, esfandogada de medo, desgalgava em fralda o escadarão que ia ter
ao primeiro andar. Amâncio, em uma cama muito cortinada e muito larga, dormia
profundamente, de barriga para o ar, pernas abertas e braços atirados sobre
a desordem das colchas e dos lençóis. No chão, ao lado do escarrador, um travesseiro
caído, e em torno, por todo o desarranjo da alcova, roupas espalhadas. O Coqueiro
olhou um instante para ele, sem pestanejar; depois, sacou tranqüilamente o
revólver da algibeira e deu-lhe um tiro à queima – roupa. Amâncio soltou um
ai. A segunda bala já o não pilhou, mas o irmão de Amélia, abstrato, pateta,
continuava a disparar os outros tiros até que a arma lhe caiu das mãos. Nisto,
como se acordasse de uma vertigem, saiu a correr tropeçando em tudo. No primeiro
andara um polícia lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi conduzindo
à sua frente, sem lhe dizer palavra. Entretanto, Amâncio despertou com um
novo gemido e levou ao peito as mãos que se ensoparam no sangue da ferida.
Olhou em torno, à procura de alguém; mas o quarto estava abandonado.

Então, fechou novamente os olhos estremecendo, esticou o corpo – e uma palavra
doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, coimo um fraco e lamentoso apelo
de criança: – Mamãe!.. E morreu.

XXII

Começou logo a reunir povo na porta do hotel. Faziam-se grupos; os repórteres
andavam num torniquete; via-se o Piloto por toda a parte, irrequieto, farisqueiro;
e o fato ia ganhando circulação, com uma rapidez elétrica. Pânico sobressalto
quebrava violentamente a plácida monotonia da Corte; mulheres de toda a espécie
e de todas as idades empenhavam-se com a mesma febre na sorte dramática do
infeliz estudante, e o Coqueiro, alado pela transcendência de seu crime, principiava
a realçar no espírito público, sob a irradiação simpática e brilhante de sua
corajosa desafronta. Às dez horas da manhã já se não podia entra facilmente
no necrotério, para onde fora, sem perda de tempo, conduzido o cadáver de
Amâncio, entre um cortejo imenso de curiosos. Choviam as interpretações, os
comentários sobre o fato; todos queriam dar esclarecimentos, explicar os pontos
mais obscuros do grande sucesso. “A bala atravessara-lhe as regiões torácicas
e fora cravar-se num osso da espinha”, afirmava um homem alto, elegante, de
cabelos brancos, cujo ar empantufado prendia a atenção dos mais. Esse homem,
que alguns tomavam por um médico, outros por qualquer autoridade policial;
outros por um jornalista, outros por um dos professores da faculdade, onde
estudava o defunto, não era senão o Lambertosa – o ilustre – gentleman da
casa de pensão da Mme. Brizard. E, sempre distinto, sempre viajado, pronto
sempre a explicar as coisas cientificamente, agitava a bengala afagando a
barriga bem abotoada, e de pernas abertas, pescoço duro, ia estadeando a sua
“grande intimidade” com o célebre morto; citando fatos, contando magníficas
anedotas que se deram entre os dois. Ah! Era um moço de invejável talento!
– Boa memória, compreensão fácil e gosto cultivado. Para a retórica ainda
não vi outro…Não, minto – em Londres, em Londres, confesso que encontrei
um outro nessas condições!… E punha-se a falar de Londres, e passava depois
à França, à Itália, à Europa inteira, e chegaria até aos pólos, se alguém
quisesse acompanhá-lo na viagem. Muitos outros dos antigos inquilinos de Mme.
Brizard também apareceram no necrotério. Lá esteve a pálida Lúcia, cheia de
melancolia, a fitar o cadáver, em silêncio, com os seus belos olhos alterados
pelo abuso das lunetas. Agora morava ela com o seu Pereira em Niterói, numa
casa de pensão de um italiano, educador de cães e macacos. Era a terceira
que percorria depois da da Rua do Resende. Lá esteve, de passagem, o Fontes,
com as suas amostras de renda debaixo do braço; lá esteve o triste Paula Mendes,
para fazer a vontade à mulher, que exigira ver a “vítima daquele grande cão!’;
lá esteve o Dr. Tavares que parecia tomar cada vez mais interesse no “escandaloso
assassínio”. E, quem diria? Até lá esteve o esquisitão do Campelo que muito
dificilmente se abalava com as questões alheias. Por toda a cidade só se pensava
no “crime do Hotel Paris”; os jornais saíam carregados de notícias e artigos
sobre ele, esgotavam-se as edições da defesa e da acusação de Amâncio; vendia-se
na rua o retrato deste em todas as posições, feitios e tamanhos; moribundo,
em vida, na escola, no passeio. E tudo ia direito para os álbuns, para as
paredes e para as coleções de raridades. Hortênsia, quando lhe constou o terrível
desfecho daquele episódio que, na sua fantasia romântica, tomava as proporções
de um poema, caiu sem sentidos e ficou prostrada na cama por uma febre violenta.
Durante esse tempo, o marido procurava na prisão o assassino para lhe oferece
os seus serviços e pôr à disposição dele o dinheiro de que precisasse. “Coqueiro
podia ficar tranqüilo – nada lhe havia de faltar à família, nem mesmo a pensão
de Nini.” E foi em pessoa dar as providências para o enterro do outro.

* * *

O funeral atingiu dimensões gigantescas; parecia que se tratava das morte
de um grande benemérito das Pátria.

Por influência do advogado de Amâncio, que era político e bem relacionado,
compareceram muitos figurões e até alguns homens do poder. Houve senadores,
ministros em vigor, titulares de vários matizes, altos funcionários públicos,
artistas de nome, doutores de toda a espécie, clubes de todas as ordens, ordens
de todas as devoções, jornalistas, negociantes, empresários, capitalistas
e estudantes; estudantes que era uma coisa por demais. A cidade inteira abalou-se,
demoveu-se, para deixar passar aquela estranha procissão de um magro cadáver
de vinte anos. Veio muita gente dos arrabaldes. De todos os cantos do Rio
de Janeiro acudia povo e mais povo a ver o enterro. As ruas, os largos, por
onde ele ia, ficavam acogulados de gente; os garotos grimpavam-se aos muros,
escalavam as árvores, subiam às grades das chácaras; as janelas regurgitavam,
como num domingo de festa. O caixão foi carregado a pulso , coberto de coroas;
no cemitério ninguém se podia mexer com a multidão que afluía. Um delírio!
E no dia seguinte, descrições e mais descrições jornalísticas; necrológios,
artigos fúnebres, notícias biográficas e poesias dedicadas à “triste morte
daquelas vinte primaveras”. E, o que é mais raro, o fato não caiu logo no
esquecimento , porque aí estava o novo processo do assassino para lhe entreter
o calor, à feição de um banho-maria. Continuavam, pois, as notícias jurídicas;
Coqueiro ia se popularizando, ia conquistando opiniões e simpatias; ia aos
pouco se instalando no lugar vago pelo desaparecimento do outro. Mitos colegas
se voltavam já a favor dele; até o Simões – até o Paiva! O Paiva, sim! que
agora , completamente restaurado com as roupas herdadas de Amâncio , deixava-se
ver a miúdo nos pontos mais concorridos da cidade e, entre as palestras dos
amigos, mostrava-se todo propenso a justificar o ato do irmão de Amélia. –
Não!, dizia ele, quando lhe tocavam nesse ponto – não! O Coqueiro andou bem!…Eu,
se tivesse uma irmã, fosse ela quem fosse , faria o mesmo naturalmente!…

* * *

Entretanto, pouco depois do enterro, no meio do burburinho de passageiros
chegando no vapor do Norte, uma senhora já idosa, coberta de luto, saltava
no cais Pharoux. Vinha acompanhada por uma mulata, que trazia constantemente
os braços cruzados em sinal de respeito, e por um velho gordo e bem vestido,
cujas maneiras faziam adivinhar que ele ali não passava de um simples companheiro
de viagem. Como se já tivessem resolvido no escaler o que deviam fazer logo
que saltassem, o velho, mal se viu em terra, chamou por um carroceiro, deu
a este a sua bagagem com o competente endereço, fez sinal à mulata que seguisse
a carroça e, depois de ajudar a senhora a sair do bote, perguntou, solicitamente,
se ela queria tomar um carro. A senhora, muito inquieta, respondeu que preferia
ir a pé,, e os dois, de braço dado, puseram-se a andar na direção da Rua Direita.
Essa senhora era D. Ângela. O Campos já lhe havia escrito, comunicando a prisão
do filho. A princípio, não se achou com ânimo de falar nisso à pobre mãe;
mas seus escrúpulos fugiram totalmente, desde que lhe chegou às mãos aquela
terrível denúncia do Coqueiro. Ângela não esperava pelo golpe e ficou a ponto
de perder a cabeça. “Como?! Seria crível?…Seu filho, seu querido filho na
prisão, com um processo às costas e sem ter quem lhe valesse!…Ó Santo Deus!
Santo Deus! Que isso era demais para um pobre coração de mãe! – Que mal teria
ela feito para merecer tão grande castigo?!” E resolveu seguir para a Corte,
imediatamente, no mesmo vapor. Sentia-se corajosa, capaz de todas as lutas,
de todas as violências, para salvar seu filho. Esqueceu-se s de seus achaques,
do estado melindroso de seu peito, para só cuidar dele; só pensar nessas criatura
idolatrada que valia mais, no fanatismo de seu afeto, do que todas as grandezas
da terra, todos os esplendores do mundo e todas a potências do céu. – Oh!
Haviam de restituir-lhe o filho!…Estava resolvida a atirar-se aos pés dos
juizes, das autoridades, do Imperador, se preciso fosse, para resgatá-lo!
_Não era possível que só encontrasse corações to duros, que resistissem a
tanta lágrima, a tamanha dor e a tamanho desespero! No primeiro paquete achava-se
abordo, apenas seguida de uma escrava que, entre as suas, lhe merecia mais
confiança.

Mas, agora, pelo braço de um estranho que a não desamparava por mera delicadeza,
ou talvez por compaixão; agora, no grosseiro tumulto do cais, estremunhada
no meio daquela gente desconhecida – a infeliz sentia-se fraquear. Não sabia
que fazer, – se ir em busca do Campos ou correr à toa por aquelas ruas, a
gritar pelo filho, a reclamá-lo daquele mundo indiferente que formigava em
torno de sua perplexidade. E, por mais que se quisesse fingir forte, uma aflição
crescia-lhe dentro e tomava-lhe a garganta. Tremiam-lhe as pernas e os olhos
marejavam-se-lhe de lágrimas. – Mas V. Ex.ª não disse que seu filho morava
nas Laranjeiras?…perguntou o velho, compreendendo a perturbação de Ângela.
– Sim, foi para aí que ele me mandou dirigir as cartas…Tenho até aqui comigo
o número da casa, mas, depois disso, já recebi a tal notícia da prisão , e…
– Bem, interrompeu o outro – o mais certo é irmos até lá. – Se não encontrarmos
o rapaz, havemos de achar alguém que nos dê informações. É mais um instante!
Eu ainda posso acompanhá-la ;não tenho pressa; o melhor, porém, seria tomarmos
um carro. – Não, não! respondeu a senhora, sempre inquieta, a olhar para todos
os lados, como se esperasse, por um acaso feliz, descobrir Amâncio , de um
momento para outro. Estavam já na Rua Direita. Ela, de repente, estacou e
pôs-se a fitar a vidraça de um armarinho. – Algum conhecido? Perguntou o velho.
– Não. É que estes chapéus…tenha a bondade de ver se consegue ler aquele
nome…eu, talvez me enganasse… O velho leu distintamente”` Amâncio de Vasconcelos”.
– É o título! Disse. – Eles agora batizam as mercadorias com os nomes que
estão na moda. Algum tenor! – É singular!…balbuciou a senhora. – Por quê?
– É esse justamente o nome de meu filho. – Oh! não há só uma Maria no mundo!…
Mas D. Ângela fugira-lhe outra vez do braço para correr a uma nova vidraça.
Eram agora bengalas e gravatas “à Amâncio de Vasconcelos” que lhe prendiam
a atenção. Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor. – Vê?…interrogou ela, muito
preocupada e procurando esconder a comoção. – Ainda! – Ah! fez o companheiro,
já impaciente. – V. Ex.ª vai encontrar o mesmo nome por toda parte. – É o
costume! Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio! Tenha a
bondade de ver! D. Ângela aproximou-se do retrato, correndo, e soltou logo
uma exclamação: – Mas é ele! O meu Amâncio! E começou a rir e a chorar muito
perturbada. O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão em plena
Rua do Ouvidor, principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro
Ângela, quando esta, que estivera até aí a percorrer, como uma doida, outros
mostradores, arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.
Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério , com o tronco nu,
o corpo em sangue. E por debaixo, em, letras garrafais: Amâncio de Vasconcelos,
assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris, em tantos de tal.”

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