O Homem – Aluísio de Azevedo

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I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

XIV

 

I

Madalena, ou simplesmente Magdá, como em família tratavam a filha do Sr.
Conselheiro Pinto Marques, estava, havia duas horas, estendida num divã do
salão de seu pai, toda vestida de preto, sozinha, muito aborrecida, a cismar
em coisa nenhuma; a cabeça apoiada em um dos braços, cujo cotovelo ficava
numa almofada de cetim branco bordada a ouro; e a seus pés, esquecido sobre
um tapete de pelos de urso da Sibéria, um livro que ela tentara ler e sem
dúvida lhe tinha escapado das mãos insensivelmente.

No entanto, não havia ainda um mês que chegara da Europa, depois de um longo
passeio que o pai fizera com sacrifício, para ver se lhe obtinha melhoras
de saúde.

Melhoras! Que esperança! – Magdá voltou no estado em que partiu, se é que
não voltou mais nervosa e impertinente. O Conselheiro, coitado, desfazia-se
em esforços por tirá-la daquela prostação, mas era tudo inútil: de dia para
dia, a pobre moça tornara-se mais melancólica, mais insociável, mais amiga
de estar só. Era preciso fazer milagres para distraí-la um segundo; era preciso
de cada vez inventar um novo engodo para obter que ela comesse alguma coisa
. Estava já muito magra, muito pálida, com grandes olheiras cor de saudade;
nem parecia a mesma. Mas, ainda assim, era bonita.

Morava com o pai e mais uma tia velha chamada Camila numa boa casa na praia
de Botafogo. Prédio talvez um pouco antigo, porém limpo; desde o portão da
chácara pressentia-se logo que ali habitava gente fina e de gosto bem educado;
atravessando-se o jardim por entre a simetria dos canteiros e limosas estátuas
cobertas de verdura, e enormes vasos de tinhorões e begônias do Amazonas,
e bolhas de vidro de várias cores com pedestal de ferro fosco, e lampiões
de três globos que surgiam de pequeninos grupos de palmeiras sem tronco, e
bancos de madeira rústica, e tambores de faiança azul-nanquim, alcançava-se
uma vistosa escadaria de granito, cujo patamar guarneciam duas grandes águias
de bronze polido, com as asas em meio descanso, espalmando as nodosas garras
sobre colunatas de pedra branca. Na sala de entrada, por entre muitos objetos
de arte, notava-se, mesmo de passagem, meia dúzia de telas originais; umas
em cavaletes, outras suspensas contra a parede por grossos cordões de seda
frouxa; e, afastando o soberbo reposteiro de reps verde que havia na porta
do fundo, penetrava-se imediatamente no principal salão da casa.

O salão era magnífico. Paredes forradas por austera tapeçaria de linho inglês
cor de cobre e guarnecida por legítimos caquimanos, em que se destacavam grupos
de chins em lutas fantásticas com dragões bordados a ouro; as figuras saltavam
em relevo do fundo dos painéis e mostravam as suas caras túrgidas e bochechudas,
com olhos de vidro, cabeleiras de cabelo natural e roupas de seda e pelúcia.
Cobria o chão da sala um vasto tapete Pompadour, aveludado, cujo matiz, entre
vermelho e roxo, afirmava admiravelmente com os tons quentes das paredes.
Do meio do teto, onde se notava grande sobriedade de tintas e guarnições de
estuque, descia um precioso lustre de porcelana de Saxe, sobrecarregado de
anjinhos e flores coloridas e pássaros e borboletas, tudo disposto com muita
arte numa complicadíssima combinação de grupos. Por baixo do lustre, uma otomana
cor de pérola, em forma de círculo, tendo no centro uma jardineira de louça
esmaltada onde se viam plantas naturais. A mobília era toda variada; não havia
trastes semelhantes; tanto se encontravam móveis do último gosto, como peças
antigas, de clássicos estilos consagrados pelo tempo. Da parede contrária
à entrada dominava tudo isto um imenso espelho sem moldura, por debaixo do
qual havia um consolo de ébano, com tampo de mármore e mosaicos de Florença,
suportando um pêndulo e dois candelabros bizantinos; ao lado do consolo uma
poltrona de laquê dourado com assento de palhinha e uma cadeira de espaldar,
forrada de gorgorão branco listrado de veludo; logo adiante um divã com estofos
trabalhados na Turquia.

Era neste divã que a filha do Sr. Conselheiro achava-se estendida havia duas
horas, deixando-se roer pelos seus tédios, aos bocadinhos, com os olhos paralisados
num ponto, que ela não via.

Foi interrompida pelo pai.

— Ah!

— Como passaste a noite, minha flor?

Magdá fez um gesto de desânimo, soerguendo-se na almofada de cetim, e tossiu.
O Conselheiro assentou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos com fidalga meiguice.

— Preguiçosa!…

Um belo homem! Alto, bem apessoado, fibra seca, barba a Francisco I, toda
branca, olhos ainda vivos e uma calva incompleta que lhe ia até ao meio da
cabeça, dando-lhe ao rosto uma fina expressão inteligente e aristocrata.

Fora da marinha, mas aos trinta e cinco anos pedira a sua demissão, instalara-se
no Rio de Janeiro, e casara, entregando-se desde essa época à política conservadora.
Enviuvou pouco depois do nascimento de Magdá, único fruto do seu matrimônio;
chamou então para junto de si a irmã, D. Camila, que vivia nesse tempo agregada
à casa de outros parentes mais remotos; a filha foi entregue a uma ama até
chegar à idade de entrar como pensionista num colégio de irmãs de caridade.

Era a essa infeliz criança, tão cedo privada do amor de mãe, que o conselheiro
dedicava a maior parte dos seus afetos, e era também das suas mãos pequeninas
que recebia coragem para enfrentar os desconsolos da viuvez e as neves, que
ia encontrando do meio para o resto do caminho da vida. E era ainda essa criança,
já mulher, que o desgraçado via agora escapar-lhe dos braços e fugir-lhe para
a morte, arrastando atrás de si um triste sudário de mágoas brancas, mágoas
de donzela, mágoas flutuantes, que pareciam feitas de espuma, e contra as
quais no entanto se despedaçavam todo o seu valor de homem e todas as forças
do seu coração de pai.

Coitadinha! Havia dois anos que se achava nesse estado. Pode-se todavia afirmar
que começara a sofrer deste a fatal ocasião em que a convenceram da impossibilidade
do seu casamento com Fernando.

Que romance!

Fernando fora o seu companheiro de infância, o seu amigo; cresceram juntos.
Quando ela nasceu, encontrou-o já em casa do pai com cinco anos de idade,
e desde muito cedo habituaram-se ambos à idéia de que nunca pertenceriam senão
um ao outro.

Segundo o que sabia, toda a gente, este Fernando era um afilhado, que o Sr.
Conselheiro adotara por compaixão e a quem mandara instruir; o certo é que
o estimava muito e não menos verdade era que o rapaz merecia esta estima;
dera sempre boas contas de si, e desde o colégio já se adivinhava nele um
homem útil e honrado. Um belo dia, porém, quando andava no penúltimo ano de
medicina, o padrinho chamou-o ao seu gabinete e disse-lhe que, de algum tempo
àquela parte, observava-lhe com referência a Magdá uma certa ternura, que
não lhe parecia inspirada só pela amizade.

Fernando sorriu-lhe e fez-se um pouco vermelho.

— Com efeito, confessou, havia já bastante tempo que sentia pela filha
do seu padrinho muito mais do que simples amizade. E toda a sua ambição, todo
o seu desejo, era vir a desposá-la logo que se formasse; tanto assim, que
tencionava, mal concluísse os estudos, pedi-la em casamento.

— Isto é impossível!

— Impossível? interrogou o rapaz erguendo os olhos para o Conselheiro.
— Impossível, como?

O velho fez um gesto de resignação e acrescentou em voz sumida:

— Magdá é tua irmã.

— Minha irmã…?

Houve um constrangimento entre os dois. No fim de alguns segundos, o Conselheiro
declarou que não tencionava fazer tão cedo semelhante revelação, e que nem
a faria se a isso o não obrigassem as circunstâncias.

Fernando estava abismado. Sua irmã. Visto isto – toda essa história, que
ele conhecia desde pequeno; essa história, em que figurava como filho de um
pobre marinheiro viúvo, falecido a bordo, era…

— Uma fábula, concluiu o pai de Magdá, sempre de olhos baixos. —
Inventei-a para esconder a minha culpa.

O moço teve um ar de censura.

— Bem sei que fiz mal, prosseguiu o velho, hesitando em levantar a
cabeça. — Mas não podia declarar-me teu pai sem prejuízo de tua parte
e sem enxovalhar a memória daquela que te deu o ser. Era casada com outro
e tu nasceste ainda em vida de minha mulher. O marido de tua mãe estava ausente
quando vieste ao mundo; ignorou sempre a tua existência, e enviuvou quando
tinhas apenas dois anos de idade. Eu então carreguei contigo para casa, inventei
o que até aqui supunhas verdade e nunca mais te abandonei.

Fernando deixou-se cair numa cadeira. O pai continuou, aproximando-se mais,
e falando-lhe em surdina:

— Minha intenção era esconder esse segredo até no dia em que depois
de minha morte, viesses a saber que estavas perfilado por mim e contemplado
nas minhas disposições testamentárias; mas – o homem põe e Deus dispõe – para
meu castigo, quis a fatalidade que te agradasses de tua irmã e, como bem vês,
só me restava agora confessar francamente a situação. Ficas, por conseguinte,
prevenido de que, de hoje em diante, deves empregar todos os meios para afastar
do espírito de Magdá qualquer esperança de casamento, que ela por ventura
mantenha a teu respeito…

Fernando declarou que preferia desaparecer dali. Partiria no primeiro vapor
que encontrasse.

Não! isso seria loucura! Ele estava bem encaminhado e pouco lhe faltava para
terminar a carreira… Que se formasse e partiria depois.

— Olha, concluiu o velho, passado um instante – caso prefiras estudar
ainda um pouco na Europa, vê o lugar que te serve e conta comigo. Não sou
rico, mas também não és extravagante; apenas o que te peço é que, de modo
algum, reveles a tua irmã o que acabas de saber. Será talvez uma questão de
temperamento, mas creio que morreria se o fizesse.

Quando o Conselheiro terminou, Fernando chorava.

— E o marido de minha mãe? perguntou.

— Há dez anos que morreu; não deixou parentes.

E o pai de Magdá, vendo que o filho parecia sucumbido, passou-lhe o braço
nas costas: — Então! vamos, nada de fraquezas! um abraço! e que esta
conversa fique aqui entre nós dois.

O rapaz prometeu e jurou que ninguém, e muito menos Magdá, ouviria de sua
boca uma só palavra sobre aquele assunto. O velho agradeceu o protesto com
um aperto de mão; e ficaram ainda alguns momentos estreitados um contra o
outro, até que o Conselheiro se retirou, a limpar os olhos, e o rapaz caiu
de novo na cadeira, dobrando os cotovelos sobre uma mesa e escondendo no lenço
os seus soluços, que agora lhe rebentavam desesperadamente.

Foi Magdá quem veio despertá-lo dali a meia hora, depois de o haver procurado
embalde por toda a casa.

— Ora, muito obrigado… ia dizer, mas deteve-se, intimidada pela expressão
que lhe notara na fisionomia. — Que era aquilo?… Ele estava chorando?…

— Ó senhores! Hoje nesta casa estão todos amuados! Ao outro encontro
chorando, que nem um bebê; este diz-me que não está bom e que eu entretenha-me
com a tia Camila! Ora já se viu!

O pai afagou-lhe a cabeça. — Esta tolinha!…

— Mas, papai, que tem o Fernando?

— Não sei, minha filha.

— Diz que um amigo dele está muito mal…

— Pois aí tens…

— E você, papai, por que está triste?— Não estou triste, apenas
preocupado. Não é nada contigo. Política, sabes? Mas vai, vai lá para dentro,
que tenho que fazer agora.

— Política!…

Magdá afastou-se, meio enfiada, mas daí a pouco se lhe ouviram os gorgeios
do riso nos aposentos da tia Camila.

Já lá estava o demoninho a bolir com a pobre da velha!

II

A tristeza de Fernando, em vez de diminuir com o tempo, foi crescendo de
dia para dia. A irmã bem o notou, mas já sem vontade de rir, nem dará parte
ao Conselheiro; estava então justamente no delicado período em que os últimos
encantos da menina desabotoam nas primeiras seduções da mulher; transição
que começa no vestido comprido e termina com o véu de noiva.

Quinze anos!

E que bem empregados! Muito bem feita de corpo, elegante, olhos negros banhados
de azul, cabelos castanhos formosíssimos; pele fina e melindrosa como pétalas
de camélia, nariz sereno feito de uma só linha, mãos e pés de uma distinção
fascinadora; tudo isso realçando nos seus vestidos simples de moça solteira
bem educada, na sua gesticulação fácil, na sua maneira original de mexer com
a cabeça quando falava, rindo e mostrando as jóias da boca.

Aquela insistente frieza do irmão foi a sua primeira mágoa. Em começo não
se preocupava muito com isso; quando viu, porém, que os dias se passavam e
Fernando continuava mais e mais a seco e retraído, chegando até a evitá-la,
ficou deveras apreensiva. — “Teria o rapaz mudado de resolução a respeito
do casamento? — Estaria enamorado de outra?” Estas duas hipóteses não
lhe saíam do espírito.

Agora muito poucas vezes achava ocasião de estar a sós com ele e, quando
tal sucedia, Fernando, com tamanho empenho procurava escapar-lhe, que de uma
feita a pobre menina foi queixar-se ao pai.

— É que naturalmente, respondeu o velho, o rapaz não tenciona casar
contigo e procura desiludir-te a esse respeito.

Magdá ficou muito séria quando ouviu estas palavras.

— Ouve, minha filha, tu o que deves fazer é olhar para ele como se
fosse seu irmão; vocês cresceram juntos e não se pode amar de outro modo…
E queres então que te diga? Estes casamentos, forjados assim, entre companheiros
de infância, nuca provaram bem. Santo de casa não faz milagre! Eu, em teu
caso, ia tratando de atirar as vistas para outro lado…

— O Fernando então é um homem sem caráter?

— Sem caráter porque, minha filha?

— Ora, porque! Porque muitas vezes jurou que não se casaria senão comigo!…

— Coisas de criança! Hoje naturalmente pensa de outro modo. Talvez
até já tenha noiva escolhida…

— Não, não creio… Se assim fosse, ele seria o primeiro a contar-me
tudo com franqueza! A causa é outra, hei de descobri-la, custe o que custar!

Contudo não se animou a inquirir o noivo.

Mas, considerava a moça, como acreditar que Fernando descobrisse um novo
namoro, se agora, mais que nunca, nadava metido com os estudos e não se despregava
dos livros!… Onde, pois, teria ido arranjar essa paixão, se agora não ia
à casa de ninguém?… Além disso, as suas tristezas não pareciam de um namorado;
mostravam caráter muito mais feio e sombrio. O fato de pretender casar com
outra não seria, de resto, razão para que a tratasse daquele modo! Era como
se a temesse, se receiasse a sua presença… Dantes segurava-lhe as mãos com
toda a naturalidade; afagava-lhe os cabelos; endireitava-lhe o chapéu na cabeça
quando iam sair juntos; acolchetava-lhe a luva; trazia-lhe livros novos; gostava
de brincar com ela, dizer-lhe tolices por pirraça, para faze-la encavacar;
pregava-lhe sustos tapava-lhe os olhos quando a pilhava de surpresa pelas
costas; pedia-lhe perfumes quando ele não tinha extrato para o lenço. E agora?
Agora bastava que ela se aproximasse do Fernando, para este já estar todo
que parecia sobre brasas e, ao primeiro pretexto, fugir e encerrar-se no quarto,
fechado por dentro, às vezes até as escuras. Ora, estava entrando pelos olhos
que tudo isto não podia ser natural… Magdá, pelo menos, nuca tinha visto
um namorado de semelhante espécie!

— Em todo caso, resolva de si para si, ele deu-me a sua palavra de
honra que me pediria a papai tão logo se formasse; por conseguinte não posso
ainda queixar-me. Vamos ver primeiro como se sairá do compromisso.

E deliberou esperar até o fim do ano.

Entretanto, o Conselheiro, querendo a todo o custo arredar do espírito da
filha a idéia de casar com o irmão, pensava em atrair gente à casa, para ver
se despertava nela o desejo de escolher outro noivo. A dificuldade estava
em arranjar as festas; sim, porque, para receber os convidados, só podia contar,
além de Magdá, com a irmã, D. Camila. Mas D. Camila era uma solteirona velha,
muito devota, muito esquisita de gênio e sem jeito nenhum para fazer sala.
— Uma verdadeira “barata de sacristia” como lhe chamava nas bochechas
o despachado do Dr. Lobão, médico da casa e amigo particular do Conselheiro.

— Ora, se Magdá tivesse um pouco mais de idade, considerava este, estaria
tudo arranjado. Como, porém, encarregar uma menina de dezesseis anos de fazer
as honras de um baile?

Salvou a situação, pedindo a um seu amigo velho, o Militão de Brito, homem
pobre, casado e pai de três filhas solteiras já de certa idade, que fosse
e mais a família passar algum tempo com ele. — A casa era grande e não
haviam de ficar de todo mal acomodados.

Para justificar o pedido, observou que a filha estava na flor da juventude,
precisava distrair-se, e que lhe doía a ele, como pai, traze-la enclausurada
na idade em que todas as moças gostavam de brincar. O Militão, que também
era pai, compreendeu a intenção da proposta, aceitou-a de braços abertos e
teve a franqueza de confessar que aquele convite vinha do céu, porque ele
igualmente via as suas raparigas, coitadinhas, muito pouco divertidas.

Mudou-se pois a família de Militão para a casa do Conselheiro e Magdá, adivinhando
os planos do pai, sorriu intimamente. Inauguraram-se os bailes, e os pretendentes
não se fizeram esperar. Pudera! Uma menina que não é pobre, com certa educação,
algum espírito, e linda como a filha do Sr. Conselheiro Pinto Marques, encontra
sempre quem a deseje.

O primeiro a apresentar-se foi um tal Martinho de Azevedo, rapaz de vinte
e poucos anos, filho de um cônsul em que em não sei que parte da Europa; ares
de fidalgo; bigode louro e olhos de mulher; não tinha nada de feio; ao contrário,
chegava a ser impertinente com a sua inalterável boniteza risonha; e vestia-se
como ninguém, graças a alguns anos que passara em Paris estudando um curso
que não chegara a concluir.

Magdá esteve quase a desenganá-lo, antes mesmo que o sujeito se lhe declarasse;
resolveu, porém, deixar isso ao cuidado do pai, que não se embirrava menos
com ele. Com quem o Conselheiro não embirrou, e mostrou até simpatizar, foi
um certo ministro argentino, levado à sua casa por um colega que já lá se
dava; mas este segundo pretendente não foi feliz que o primeiro, nem que os
outros apresentados depois.

Todavia as festas continuavam, e por fim a casa do Conselheiro Pinto Marques
era tida e havida entre a melhor gente como das mais distintas e bem freqüentadas
do Rio de Janeiro; e Magdá classificada ao lado das estrelas mais rutilantes
do empíreo de Botafogo.

Assim se passou o resto do ano.

Ah! com que ansiedade contou a pobre menina os dias que precederam à formatura
do irmão! Como aquele coraçãozinho palpitou de susto e de esperança ao lembrar-se
de que em breve o seu Fernando, o único que aos olhos dela parecia bom, delicado,
inteligente e sincero, tinha com uma só palavra de apagar todas as dúvidas
que a torturavam, ou destruir-lhe por uma vez todos os sonhos de ventura.

Sim, porque a filha do Conselheiro, agora nos seus dezessete anos, estava
bem certa de que amava Fernando; mais se convencera dessa verdade nesses últimos
tempos em que ele se mostrara indiferente e esquivo. Só agora podia avaliar
o bem que lhe faziam aquelas tranqüilas palestras que tantas vezes desfrutara
com ele, ora nos bancos da chácara, ora assentados junta à janela, perto um
do outro, ou em volta da pequena mesa de viex-chêne que havia numa saleta
ao lado do gabinete do Conselheiro, e onde ela costumava ler e estudar no
bom tempo em que Fernando se comprazia em dar-lhe lições de preparatórios.

As lições!… Quanto desvelo de parte a parte! Com que gosto ele ensinava
e com que gosto ela aprendia!

Magdá, logo ao deixar o colégio das irmãs de caridade, entrou a estudar com
o irmão, e foi nesse contato espiritual de três horas diárias que os dois
mais se fizeram um do outro, e mais se amaram, e mais se respeitaram. Todavia,
nesse tempo ela ainda não lhe tinha observado as feições, nem notado a inteireza
de caráter nem a delicadeza do gênio; habituara-se a estimá-lo, e aceitava-o
quase que pela fatalidade da convivência ou pela natureza efetiva do seu próprio
temperamento; mas depois, quando teve ocasião de compará-lo com outros, amou-o
por eleição, por entender que ele era o melhor de todos os homens, o mais
digno de preferência.

Agora, depois daqueles frios meses de retraimento, Fernando parecia-lhe ainda
mais belo e mais desejável; aquela transformação inesperada foi como uma dolorosa
ausência em que as boas qualidades do rapaz ganharam novo prestígio no espírito
da irmã, assumindo proporções excepcionais. Magdá esperava pelo dia da formatura,
como se aguardasse a chegada do noivo; tinha lá para si que o seu amado reapareceria
então como dantes, meigo, comunicativo e amigo de estar ao lado dela. Agora
idolatrava-o; todo o grande empenho do Conselheiro em substituí-lo por outro
apenas conseguia encarecê-lo ainda mais, fazendo-o mais desejável, mais insubstituível.
Ela já não podia compreender como é que por aí se amavam outros que não eram
Fernando; outros que não tinham aquela mesma barba, aqueles olhos tão inteligentes
e tão doces, aquela mesma estatura bem conformada, forte sem ser grosseira,
aquela boca tão limpa, tão bem tratada, que logo se via não poder servir de
caminho à mentira ou a uma palavra feia. E muita coisa, que até então não
lhe notara, agora a impressionava; a voz, por exemplo, o metal de sua voz,
em que havia uma certa harmonia corajosa; aquela voz velada, discreta, mas
muito inteligível; uma voz que não chamava a atenção de ninguém, mas que prendia
a todo aquele que por qualquer circunstância a escutava. — E a cor do
seu rosto? aquele moreno suave, de pele muito fina, em que ia tão bem, o cabelo
preto? — E aquele modo inteligente de sorrir, quando ele descobria um
ridículo noutrem? aquele ar condescendente com que Fernando ouvia as frioleiras
do Martinho de Azevedo ou as bazófias do ministro argentino? aquele sorriso
inteiriço, de alma virgem, onde não havia o menor vislumbre de inveja a ninguém,
nem contentamento próprio por vaidade; aquele sorriso, que ela supunha ser
a única a compreender.

A própria indiferença de Fernando agora a seduzia e namorava; achava-o por
isso mesmo fora do vulgar dos outros homens um pouco misterioso, como que
guardando no fundo do coração alguma coisa muito superior, muito excelente,
que ele não queria expor às vistas dos profanos e só pertenceria àquela que
escolhesse para inseparável companheira de sua vida.

Ah, Magdá contava que aquele segredo ainda seria também o seu; sua alma estava
aberta de par em par e não se fecharia enquanto não houvesse recolhido todo
o conteúdo daquele coração misterioso; só se fecharia para melhor guardar
em depósito as gemas preciosíssimas que dentro de sua alma despejasse a alma
do seu amado. — Oh, quanto não seria bom ser a esposa daquele homem,
ser a sua criatura, ser a testemunha de todos os seus instantes! E ainda lhe
passara pela mente a hipótese de uma traição por parte dele!… Mas onde tinha
então a cabeça?… Pois Fernando lá seria capaz algum dia de dizer uma coisa
e fazer outra?… Pois ela não via logo o modo pelo qual nos bailes de seu
pai todas as moças solteiras procuravam requestá-lo, sem nada conseguir, nem
mesmo alterar-lhe aquela fria abstração de homem superior?… Oh, sim, sim!
a única que ele queria, a única que ele amava, era ela ainda e sempre! Tudo
lho dizia: tudo lho confirmava! Nem podia ser que tamanho sentimento continuasse
a crescer e aprofundar-se no seu coração de donzela, se, do fundo da aparente
indiferença de Fernando não viesse um raio de calor manter-lhe a vida!

Amparando-se nestes raciocínios, Magdá viu chegar a véspera da formatura,
quase tranqüila de todo. Nesse dia recolheu-se mais cedo que de costume; ajoelhou-se
diante de um crucifixo de marfim, herdado de sua mãe, e do qual nunca se separara,
e rezou, rezou muito, pedindo ao pai do céu, pelas chagas do seu divino corpo,
que a protegesse e fizesse feliz. Falou-lhe em voz baixa e amiga, segredando-lhe
ternuras e confidências, como se se dirigisse a um velho camarada de infância,
bonacheirão, que a tivesse trazido ao colo em pequenina e que ainda se babasse
de amores por ela. E contou-lhe o quanto adorava o seu Fernando e quanto precisava
de casar com ele. — Deus não havia de ser tão mau que, só para contrariá-la,
estorvasse aquela união!…

No dia seguinte Fernando estava formado e a casa do Conselheiro toda em preparos
de festa; Magdá que havia muito não se animava a dirigir-lhe palavra, foi
ter com ele e, depois de lhe dar os parabéns, interrogou-o com um olhar cheio
de ansiedade. O moço fez que não entendeu, mas ficou perturbado.

— Então! disse Magdá.— Então o que, minha amiguinha?

— Pois não estás formado afinal?

— E daí?

— Daí é que havíamos combinado que me pedirias hoje em casamento…

Fernando perturbou-se mais.

— Ainda pensavas nisso?… gaguejou por fim, em ânimo de encará-la.
E acrescentou depois, percebendo que ela não se mexia: — Parto daqui
a dias para a Europa e não sei quando voltarei…

Magdá sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo, um punho de ferro tomar-lhe
a boca do estômago e subir-lhe até a garganta, sufocando-a .

— Bem!

E não pode dizer mais nada, virou-lhe as costas e afastou-se de carreira,
como se levasse consigo uma bomba acesa e não quisesse vê-la rebentar ali
mesmo.

— Ouve, Magdá! Espera.

Ela havia alcançado já o quarto; atirou-se à cama. E a bomba estourou, sacudindo-a
toda, convulsivamente, numa descarga de soluços que se tornavam progressivamente
mais rápidos e mais fortes, à semelhança do ansioso arfar de uma locomotiva
ao partir.

III

Terminada a crise dos soluços, Magdá sentiu uma estranha energia apoderar-se
dela; uma necessidade de reação; andar, correr, fazer muito exercício; mas
ao mesmo tempo não se achava com ânimo de largar a cama. Era uma vontade que
se lhe não comunicava aos membros do corpo. Ergueu-se, afinal, mandou chamar
o pai, e este não se fez esperar. Ia pálido e acabrunhado; é que estivera
conversando antes com o filho a respeito do ocorrido. A notícia do procedimento
de Magdá fulminara-o; supunha-a já de todo esquecida dos seus projetos de
casamento com o irmão e agora se arrependia de não haver dado as providências
para que este se apartasse dela; sentia-se muito culpado em ter sido o próprio
a detê-lo em casa, e doía-lhe a consciência fazer sofrer daquele modo a pobre
menina. No entanto, quando o rapaz lhe pediu licença para confessar a verdade
à irmã, negou-a a pé firme, aterrado com a idéia de ter de corar diante da
filha. — Não! Tudo, menos isso!

Fernando protestou as suas razões contra tal egoísmo: não era justo que se
expatriasse amaldiçoado por uma pessoa a quem tanto estremecia, sem ter cometido
o menor delito para merecer tamanho castigo. Ah! se o pai tivesse visto com
que profunda indignação, com que ódio, com que nojo, ela o havia encarado!…

— Não! nunca! Que se poderia esperar de uma filha, que recebesse do
próprio pai semelhante exemplo de imoralidade?…

Foi nessa ocasião que o criado o interrompeu com o chamado de Magdá. O Conselheiro,
quando chegou junto dela, sentiu-se ainda mais comovido: “Não seria tudo aquilo
um crime maior do que os seus passados amores com a mãe de Fernando?… Sim;
estes ao menos não se baseavam em preconceitos e vaidades, baseavam-se nos
instintos e na ternura”. E o mísero, atordoado com estas idéias, tomou as
mãos da filha, falhou-lhe com humildade perguntou-lhe com muito carinho o
que ela sentia.

— Quase nada! Um simples abalo… Já não tinha coisa alguma…

E tremia toda.

— Queres que mande buscar o Dr. Lobão? Estou te achando o corpo esquentado.

— Não, não vale a pena; isto não é nada. Eu chamei-o papai, para lhe
pedir um obséquio…

— Um obséquio? Fala, minha filha.

— Pedir um obséquio e fazer-lhe uma declaração…

E, brincando com os botões da sobrecasaca do Conselheiro: — Sabe? Estou
resolvida a casar com o Martinho de Azevedo; desejava que meu pai lhe mandasse
comunicar imediatamente esta minha deliberação…

— Temos tolice!…

— E queria que o casamento se realizasse antes da partida do Fernando…

— Estás louca?

— Se estiver, tanto pior para mim. Afianço-lhe que hei de fazer o que
estou dizendo!

— Não sejas vingativa, minha filha; Fernando contou-me o que se passou
entre vocês dois, disse0me tudo, e eu juro pela memória de tua mãe que o procedimento
dele não podia ser outro… Foi correto, fez o seu dever!

— O seu dever? Tem graça!

— Mais tarde verás que digo a verdade; o que desde já posso afirmar
é que o pobre rapaz não tem absolutamente a menor culpa em tudo isto. Não
o deves ver com maus lhos, nem lhe deves retirar a tua confiança e a tua estima…

— Mas fale por uma vez! Não vê que as suas meias palavras me põem doida?…

— Não posso; é bastante que acredites em mim; eu juro-te que Fernando,
negando-se a casar contigo, cumpre o seu dever. Vou chamá-lo e quero que…

— Não, não! atalhou a filha, segurando-lhe os braços. — Ele que
não me apareça! Que não me fale! Detesto-o!

— Não acreditas em teu pai!…

— Não sei; acredito é que entre o senhor e ele há uma conspiração contra
mim! Querem engodar-me com mistérios que não existem, como se eu fosse alguma
criança! Ah! mas eu mostrarei que não sou o que pensam!

— Então, minha filha, então!

— Creio que já disse bem claro qual é a minha resolução a respeito
de casamento, e agora só me convém saber se meu pai está ou não disposto a
tratar disso!

— Não digo que não, mas para que fazer as coisas tão precipitadamente?…

O velho sentia o suor gelar-lhe o corpo.

— Custe o que custar, eu me casarei antes da partida daquele miserável!
Se meu pai não fizer o que eu disse, o escândalo será maior! Ao menos falo
com esta franqueza — Não tenho “mistérios”!

Ela havia-se desprendido das mãos do Conselheiro e passeava agora pelo quarto,
muito agitada, com as faces em fogo, os lábios secos e os olhos ainda úmidos
das últimas lágrimas. E em todos os seus movimentos nervosos, em todos os
seus gestos, sentia-se uma resolução enérgica, altiva e orgulhosa.

— Não há outro remédio! Pensou o velho, limpando a fronte orvalhada
e fria da neve, não há outro remédio!

E aproximou-se da filha, para lhe dizer quase em segredo, com a voz estrangulada
pela vergonha:

— Fernando não se casa contigo, porque é teu irmão…

Magdá retraiu-se toda, como se lhe tivesse passado por diante dos olhos uma
faísca elétrica, e fitou-os sobre o pai, que abaixou a cabeça num angustioso
resfolegar de delinqüente.

— Ora aí tens… balbuciou ele, depois de uma pausa, durante a qual
só se ouviam os soluços de Magdá que se lhe havia atirado nos braços. —
Já vês que aqui o único culpado sou eu; nunca devia ter consentido que vocês
se criassem juntos, sem lhes ter exposto a verdade. Tua mãe ignorou sempre
que Fernando fosse meu filho…

— Vá ter com ele… pediu Magdá chorando. — Que me perdoe! Que
me perdoe! Diga-lhe que eu não sabia de nada, e que sou muito desgraçada!

Quando o Conselheiro saiu do quarto, ela tornou à cama, e daí a pouco delirava
com febre.

Transferiu-se a festa; mandou-se chamar logo o Dr. Lobão, que receitou; e,
só à tarde do dia seguinte, a enferma deu acordo de si, depois de um sono
profundo que durou muitas horas.

Despertou tranqüila, um pouco abstrata. — Tinha sonhado tanto!…

Levou um bom espaço a cismar, por fim soltou um profundo suspiro resignado
e pediu que conduzissem o irmão à sua presença. Ele foi logo, acompanhado
pelo Conselheiro, e assentou-se, sem dizer palavra, numa cadeira ao lado da
cabeceira da cama. Magdá tomou-lhe as mãos em silêncio, beijou-las repetidas
vezes, e em seguida levou uma delas ao rosto e ficou assim por algum tempo,
a descansar a cabeça contra a palma da mão de Fernando. Como por encanto,
a sua meiguice havia se transformado da noite para o dia: já não eram de noiva
os seus carinhos, mas perfeitamente de irmã. Não por isso menos expansivos,
antes parecia agora muito mais em liberdade com ele; pelo menos nunca lhe
havia tomado as mãos daquele modo. Ainda fez mais depois: pousou a face contra
o seu colo e cingiu-lhe o braço em volta da cintura.

— E eu que cheguei a supor que eras um homem mau!… balbuciou, com
uma voz tão arrependida, tão humilde e tão meiga, que o rapaz a apertou contra
o seio e deu-lhe um beijo no alto da cabeça.

Magdá estremeceu todo, teve um novo suspiro, e deixou-se cair sobre os travesseiros,
com os olhos fechados e a boca entreaberta. Chorava.

— Então, agora estão feitas as pazes?… perguntou o Conselheiro, alisando
com os dedos o cabelo da filha.

Esta ergueu as pálpebras vagarosamente e deu em resposta um sorriso sofredor
e triste.

— E ainda pensas no Martinho de Azevedo?… interrogou o velho, afetando
bom humor.

Ela voltou seu sorriso para Fernando, como lhe pedindo perdão daquela vingança
tão tola e tão imerecida.

Todo o resto desse dia se passou assim, sem uma nuvem que o toldasse; a paz
era completa, pelo menos na aparência. Magdá não se queixava de coisa alguma.
O Dr. Lobão, quando foi à noite, encontrou-a de pé, muito esperta, conversando
com a gente de Brito. O médico desta vez olhou para a rapariga com mais atenção
e fez-lhe um cúmulo de perguntas à queima-roupa: — Se era muito impressionável;
se era sujeita a enxaquecas e dores de cabeça; o que costumava comer ao almoço
e ao jantar; se tinha bom apetite; se usava o espartilho muito apertado; desde
que idade freqüentava os bailes; se as suas funções intestinais eram bem reguladas;
e, como estas, outras e outras perguntas, a que Magdá respondia por comprazer,
afinal já importunada.

Ela sempre embirrara com o Dr. Lobão; tinha-lhe velha antipatia; achava-o
sistematicamente grosseiro, rude, abusando da sua grande nomeada de primeiro
cirurgião do Brasil, maltratando os seus doentes, cobrando-lhes um despropósito
pelas visitas, a ponto de fazer supor que metia na conta as descomposturas
que lhes passava.

— A senhora tem tido muitos namorados? interrompeu ele, depois de estudar,
medindo-a de alto a baixo, por cima dos óculos.

Magdá sentiu venetas de virar-lhe as costas e retirar-se.

— Não ouviu? Pergunto se tem tido muitos namorados!

— Não sei!

E ela afastou-se, enquanto o cirurgião resmungava:

— Que diabo! Para que então me fazem vir cá?…

Ia já a sair, quando o Conselheiro foi ter com ele:

— Então?

— Não é coisa de cuidado; um abalo nervoso. Que idade tem ela?

— Dezessete anos.

— É…! mas não convém que esta menina deixe o casamento para muito
tarde. Noto-lhe uma perigosa exaltação nervosa que, uma vez agravada, por
interessar-lhe os órgão encefálicos e degenerar em histeria…

— Mas, doutor, ela parece tão bem conformada, tão…

— Por isso mesmo. Ah! Eu leio um pouco pela cartilha antiga. Quanto
melhor for a sua compleição muscular, tanto mais deve ser atendida, sob pena
de sentir-se irritada e esbravejar por’aí, que nem o diabo dará jeito!
E adeus. Passe bem!

Mas voltou para perguntar: — E a barata velha, como vai?

— Minha irmã…? ao mesmo, coitada! Enfermidades crônicas…

— Ela que vá continuando com as colheradas de azeite todas as manhãs
e que não abandone os clisteres. Hei de vê-la, noutra ocasião; hoje não tenho
mais tempo. Adeus, adeus!

E saiu com os seus movimentos de carniceiro, resmungando ao entrar no carro:

— Não tratam da vida enquanto são moças e agora, depois de velhas,
o médico que as ature! Súcia! Não prestam p’ra nada! nem p’ra
parir!

A festa de Fernando realizou-se na véspera da sua partida. Magdá nuca pareceu
tão alegre nem tão bem disposta de saúde; pôs um vestido de cassa cor-de-rosa,
todo enfeitado de margaridas, deixando ver em transparência a ebúrnea riqueza
do colo e dos braços.

Estava fascinadora: toda ela era graça, beleza e espírito; causou delírios
de admiração. Nessa noite dançou muito, cantou e, durante o baile inteiro,
mostrou-se para com Fernando de uma solicitude, em que não se percebia a menor
sombra de ressentimento; dir-se-ia até que estimava haver descoberto que era
sua irmã. Conversaram muito; ela contou-lhe, ora rindo, ora falando a sério,
as declarações de amor que recebera; citou nomes, apontou indivíduos, pediu-lhe
conselhos sobre a hipótese de uma escolha e declarou, mais de uma vez, que
estava resolvida a casar.

No dia seguinte apresentaram-se alguns amigos para o bota-fora. Magdá foi
à bordo, chorou, mas não fez escarcéu; em casa compareceu ao jantar, comeu
regularmente e até a ocasião de se recolher falou repetidas vezes do irmão,
sem patentear nunca na sua tristeza desesperos de viúva, nem alucinações de
mulher abandonada.

Só dois meses depois foi que notaram que estava tanto mais magra e um tanto
mais pálida; e assim também que o seu riso ia perdendo todos os dias certa
frescura sanguínea, que dantes lhe alegrava o rosto, e tomando aos poucos
uma fria expressão de inexplicável cansaço.

Alguns meses mais, e o que havia de menina desapareceu de todo, par só ficar
a mulher. Fazia-se então muito grave, muito senhora, sem todavia parecer triste,
nem contrariada; as amigas iam vê-la com freqüência e encontravam-na sempre
em boa disposição para dar um passeio pela praia, ou para fazer música, dançar,
cantar; tudo isto, porém, sem o menor entusiasmo, friamente, como quem cumpre
um dever. Vieram-lhe depois intermitências de tédio; tinha dias de muito bom
humor e outros em que ficava impertinente ao ponto de irritar-se coma menor
contrariedade. Não obstante, continuava a ser admirada, querida e invejada,
graças ao seu inalterável bom gosto, à sua altiva de procedimento e à sua
aristocrática beleza. O pai votava-lhe já essa reverente consideração, que
nos inspiram certas damas, cuja pureza de hábitos e extrema correção nos costumes
se tornam lendárias entre os grupos com que convivem; tanto assim que, vendo
o Militão forçado a retirar-se com a família par uma fazenda que ia administrar,
o Conselheiro não os substituiu por ninguém, e a casa ficou entregue a Magdá.

Quanto à saúde — assim, assim… Às vezes passava muito bem semanas
inteiras; outras vezes ficava aborrecida, triste, sem apetite; apareciam-lhe
nevralgias, acompanhadas de grande sobreexcitação nervosa. Então, qualquer
objeto ou qualquer fato repugnante indispunha-a de um modo singular; não podia
ver sanguessugas ,rãs, morcegos ,aranhas; o movimento vermicular de certos
répteis causava-lhe arrepios de febre; se à noite não estando acompanhada,
encontrava um gato em qualquer parte da casa, tinha um choque elétrico, perfeitamente
elétrico, e não podia mais dormir tão cedo.

Uma madrugada, em que a tia foi acometida de cólicas horrorosas e sobressaltou
a família com os seus gritos, Magdá sofreu tamanho abalo que, durante dois
dias, pareceu louca. Desde essa época principiou a sofrer de uma dores de
cabeça, que lhe produziam no ato do crânio, que ora a impressão de uma pedra
de gelo, ora a de um ferro em brasa.

Agora também o barulho lhe fazia mal aos nervos: ouvindo música desafinada,
sentia-se logo inquieta e apreensiva; o mesmo fenômeno se dava com o aroma
ativo de certas flores e de certos extratos: o sândalo, por exemplo, quebrantava-lhe
o corpo; o perfume da magnólia enfreneziava-a; o almíscar produzia-lhe náuseas.
Ainda outros cheiros a incomodavam: o fartum que se exala da terra quando
chove depois de uma grande soalheira, o fedor do cavalo suado, o de certos
remédios preparados com ópio, mercúrio, clorofórmio; tudo isto agora lhe fazia
mal, porém de um modo tão vago, que ela muita vez sentia-se indisposta e não
atinava porque.

Notava-se-lhe também certa alteração nos gostos com respeito à comida; preferia
agora os alimentos fracos e muito adubados; tinha predileções esquisitas;
voltava-se toda para a cozinha francesa; gostava mais de açúcar, mas queria
o chá e o café bem amargos

As cartas de Fernando não a alteraram absolutamente; a primeira, entretanto,
fora recebida com exclamações de contentamento. Ele dizia-se feliz e divertido,
apoquentamento apenas pelas saudades da família. Magdá escrevia-lhe de irmã
para irmão, afetando muita tranqüilidade, procurando fazer pilhéria, citando
anedotas, dando-lhe notícias do Rio de Janeiro, falando em teatros e cantores.

E assinava sempre “Tua irmãzinha que te estremece — Madalena”.

IV

Decorreu uma no. O incidente romanesco do namoro entre os dois irmãos ia
caindo no rol das puerilidades da infância; Magdá se lembrava dele com um
criterioso sorriso de indulgência.

— Criancices! criancices!

Agora, no seu todo de senhora refeita, com as suas intransigências de dona
de casa, com as suas preocupações de economia doméstica, ela estava a pedir
um marido prático, um homem de boa posição, que lhe trouxesse tanto ou mais
prestígio que o pai; mesmo porque este, ultimamente, e só por causa dela,
havia-se alargado um pouco mais com aquelas festas e começava a sentir necessidade
de apertar os cordéis da bolsa.

Não é brincadeira dar um baile por mês!

Foi essa a sua época mais fecunda em pretendentes; apareceram-lhe de todos
os matizes, desde o pingue senador do império, até o escaveirado amanuense
de secretaria; concorreram negociantes, capitalistas e doutores de vária espécie.
Ela, porém, como se estivesse brincando a “Cortina de amor” em jogo de prendas,
não entregou o lenço a nenhum. Não os repelia com denodo, antes tinha sempre
para cada qual um sorriso amável; mas — repelia-os.

Todavia, de vez em quando, lhe vinham reações. — Precisava acabar com
aquilo de uma vez, decidir-se por alguém. E fazia íntimos protestos de resolução,
e empregava todos os esforços para se agradar deste ou daquele que lhe parecia
preferível; mas na ocasião de dar o “Sim” hesitava, torcia todo o corpo, e
afinal não se dispunha por ninguém.

Ah! Magdá sabia claramente que era preciso tomar uma resolução! bem parecia
que o pai, coitado, já estava fazendo das fraquezas forças e morto por vê-la
encaminhada; além disso, o Dr. Lobão, com aquela brutalidade que todos lhe
perdoavam, como se ele fosse um privilégio, por mais de uma vez lhe dissera:
“É preciso não passar dos vinte anos que depois quem tem de agüentar com as
maçadas sou eu! compreende?”

Sim, ela compreendia, compreendia perfeitamente. — Mas por ventura
teria culpa de estar solteira ainda? Que havia de fazer, se entre toda aquela
gente, que o pai lhe metia pelos olhos, nenhum só homem lhe inspirava bastante
confiança? — Não era uma questão de amor, era uma questão de não fazer
asneira! Lá ilusões a esse respeito, isso não tinha; sabia de antemão que
não encontraria nenhum amante extremoso e apaixonado; não sonhava nenhum herói
de romance. — A época dessas tolices já lá se havia ido para sempre;
sabia muito bem que o casamento naquelas condições, era uma questão de interesse
de parte a parte, interesses positivos, nos quais o sentimento não tinha que
intervir; sabia que no círculo hipócrita das suas relações todos os maridos
eram mais ou menos ruins; que não havia um perfeitamente bom. — De acordo!
mas queria dos males o menor!

Casava-se, pois não! estava disposta a isso, e até compreendia e sentia melhor
que ninguém o quanto precisava, por conveniência mesmo da sua própria saúde,
arrancar-se daquele estado de solteira que já se ia prolongando por demais.
Estava disposta a casar, que dúvida! Mas também não queria fazer alguma irreparável
doidice, que tivesse de amargar em todo o resto da sua vida… Nem se julgava
nenhuma criança, para não saber o que lhe convinha e o que não lhe convinha!
Enfim, a sua intenção era, como se diz em gíria de boa sociedade: “Casar bem”.

Sim! uma vez que o casamento era arranjado daquele modo; uma vez que tinha
de escolher friamente um homem, a quem se havia de entregar por convenção,
queria ao menos escolher um dos menos difíceis de aturar; um homem de gênio
suportável, com um pouco de mocidade e uma fortuna decente.

Bastava-lhe isto!

Nada, porém, de se decidir, e o tempo a correr! Os vinte anos vieram encontrá-la
sem noivo escolhido; o pai principiava a inquietar-se, e o Dr. Lobão a dizer-lhe:
“Olhe lá, meu amigo, é bom não facilitar! É bom não facilitar!…

“Que injustiça! o pobre Conselheiro não facilitava; não fazia mesmo outra
coisa senão andar por aí arrebanhando para a sua casa todo homem que lhe parecia
apto para casar com a filha; e tanto, que a roda dos seus amigos crescia largamente,
e as suas festas amiudavam-se, e suas despesas reproduziam-se.

Uma notícia má veio, porém, enlutar a casa e fechar-lhe as portas por algum
tempo — a morte de Fernando. O rapaz nas últimas cartas já se queixava
da saúde; dizia que andava à procura de ares mais convenientes aos seus brônquios.
Fugira da Alemanha para a França, de França para a Itália, desta para a Espanha,
e fora morrer, afinal, em Portugal.

O Conselheiro ficou fulminado com a notícia, aparentemente mais sentido do
quem a própria Magdá. Esta recebeu-a como se já a esperasse: saltaram-lhe
as lágrimas dos olhos, mas não teve um grito, uma exclamação, um gemido; apenas
ficou muito apreensiva, aterrada, com medo do escuro e da solidão. Durante
noites seguidas foi perseguida por terríveis pesadelos, nos quais o morto
representava sempre o principal papel, mas, durante o dia, não tinha uma palavra
com referência a ele.

Não obstante, duas semanas depois, passeando na chácara, viu pular diante
de si um sapo; e foi o bastante para que explodisse a reação dos nervos. Estremeceu
com um grande abalo, soltou um grito agudo e sentiu logo na boca do estômago
uma pressão violenta. Era a primeira vez que lhe dava isto; acudiram-na e
carregaram-na para o quarto. Ela, porém, não sossegava; o peso do estômago
como que se enovelava e subia-lhe por dentro até a garganta, sufocando-a num
desabrido estrangulante. Esteve assim um pouco; afinal perdeu os sentidos
e começou a espolinhar-se na cama, em convulsões que duraram quase uma hora.

Tornou a si nos braços das amigas da vizinhança, atraídas ali pelos formidáveis
gritos que ela soltava. O pai e o Dr. Lobão também estavam a seu lado; o doutor,
muito expedito, com os óculos na ponta do nariz, suando, rabujava enquanto
a socorria:

— Que dizia eu? Ora aí tem! É bem feito! Acho ainda pouco! Quem corre
por seu gosto não cansa! Se fizessem o que recomendei, nada disso sucederia!
Agora o médico que a ature!…

E, voltando-se para uma das vizinhas que, por ficar muito perto dele, lhe
estorvava às vezes o movimento do braço, exclamou com arremesso: — Saia
daí! Também não sei o que tem a cheirar cá! Melhor seria que estivessem em
casa cuidando das obrigações!

— Cruzes! disse a moça, fugindo do quarto. — Que bruto! Deus
te livre!

Por esse tempo Magdá era acometida por uma explosão de soluços, e chorava
copiosamente, o peito muito oprimido.

— Ora até que enfim! Rosnou o doutor. E, erguendo-se, soprou para o
Conselheiro, a descer as mangas da camisa e da sobrecasaca, que havia arregaçado:
— Pronto! Estes soluços continuarão ainda por algum tempo, e depois
ela sossegará. Naturalmente há de dormir. O que lhe pode aparecer é a cefalalgia…

— Como?

— Dores de cabeça. Mas para isso você lhe dará o remédio que vou receitar.

E saíram juntos para ir ao escritório.

— É o diabo!… praguejava entre dentes o brutalhão, enquanto atravessava
o corredor ao lado do Conselheiro, enfiando às pressas o seu inseparável sobretudo
de casimira alvadia. — É o diabo! Esta menina já devia ter casado!

— Disso sei eu… balbuciou o outro. — E não é por falta de esforços
de minha parte, creia!

— Diabo! Faz lástima que um organismo tão rico e tão bom para procriar,
se sacrifique deste modo! Enfim — ainda não é tarde; mas se ela não
casar quanto antes — um um! Não respondo pelo resto!

— Então o doutor acha que… ?

O Lobão inflamou-se: Oh o Conselheiro não podia imaginar o que eram aqueles
temperamentozinhos impressionáveis!… eram terríveis, eram violentos, quando
alguém tentava contrariá-los! Não pediam — exigiam! — reclamavam!

— E se não lhes dá o que reclamam, prosseguiu, — aniquilam-se,
estrangulam-se, como leões atacados de cólera! É perigoso brincar com a fera
que principia a despertar… O monstro já deu sinal de si; e, pelo primeiro
berro, você bem pode calcular o que não será quando estiver deveras assanhado!

— Valha-me Deus! suspirou o pobre Conselheiro, que eu hei de fazer,
não dirão?

— Ora essa! Pois já não lhe disse! É casar a rapariga quanto antes!

— Mas com quem?

— Seja lá com quem for! O útero, conforme Platão, é uma besta que quer
a todo custo conceber no momento oportuno; se lho não permitem — dana!
Ora aí tem!

— Não! Alto lá! isso não! A histeria pode ter várias causas, nem sempre
é produzida pela abstinência; seria asneira sustentar o contrário. Convenho
mesmo com alguns médicos modernos em que ela nada mais seja do que uma nevrose
do encéfalo e não estabeleça a sua sede nos órgãos genitais, como queriam
os antigos; mas isso que tem a ver com o nosso caso? Aqui não se trata de
curar uma histérica, trata-se de evitar a histeria. Ora, sua filha é uma delicadíssima
sensibilidade nervosa; acaba de sofrer um formidável abalo com a morte de
uma pessoa que ela estremecia muito; está, por conseguinte, sob o domínio
de uma impressão violenta; pois o que convém agora é evitar que esta impressão
permaneça, que avulte e degenere em histeria; compreende você? Para isso é
preciso, antes de mais nada, que ela contente e traga em perfeito equilíbrio
certos órgãos, cuja exacerbação iria alterar fatalmente o seu sistema psíquico;
e, como o casamento é indispensável àquele equilíbrio, eu faço grande questão
do casamento.

— De acordo, mas…

— Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! —
Ela precisa de homem! — Ora aí tem você!

O Conselheiro suspirou com força, coçou a cabeça. Os dois penetraram no gabinete,
e se o doutor, depois de escrever a sua receita, acrescentou, como se não
tivesse interrompido a conversa: — Noutras circunstâncias, sua filha
não sofreria tanto… nada disso teria até conseqüências perigosas; mas, impressionável
como é, com a educação religiosa que teve. E com aquele caraterzinho orgulhoso
e cheio de intransigências, se não casar quanto antes, irá padecer muito;
irá vive em luta aberta consigo mesma!

— Em luta? Como assim, doutor?

— Ora! A luta da matéria que impõe e da vontade que resiste; a luta
que se trava sempre que o corpo reclama com direito a satisfação de qualquer
necessidade, e a razão opõe-se a isso, porque não quer ir de encontro a certos
preceitos sociais. Estupidez humana! Imagine que você tem uma fome de três
dias e que, para comer, só dispões de um meio — roubar! Que faria neste
caso?

— Não sei, mas com certeza não roubava…

— Então — morria de fome… Todavia um homem, de moral mais fácil
que a sua não morreria, porque roubava… Compreende? _Pois aí tem!

V

Depois do ataque, Magdá sentiu um grande quebramento de corpo e pontadas
na cabeça. O Conselheiro, quando a viu em estado de conversar, falou-lhe com
delicadeza a respeito de casamento, apresentando-lhe as doutrinas do Dr. Lobão,
vestidas agora de um modo mais conveniente.

— Mas eu estou de acordo! repontou ela, estou perfeitamente de acordo!
A questão é haver um noivo! Eu não posso casar sem um noivo!

— Tens rejeitado tantos!

— Porque não me convinha nenhum dos que me apresentaram; hoje, porém,
estou resolvida a ser mais fácil de contentar, e creio que me casarei.

— Ainda bem, minha filha, ainda bem!

E abriram-se de novo as salas do Sr. Conselheiro, e começaram de novo as
festas, e de novo começou aquela canseira de arranjar um — marido.

E espalhem-se convites para todos os lados! E corre a gente à confeitaria
e aos armazéns de bebidas! E contrate-se orquestra! E chama-se a costureira!
E ature-se o cabeleireiro! — Que maçada! Que insuportável maçada!

Entre os novos arrebanhados, apareceu o Sr. Comendador José Furtado da Rocha,
velhote bem disposto, orçando pelos cinqüenta, mas dando tinta ao cabelo e
escanhoando-se com muita perfeição. Era português, e havia-se opulentado no
comércio, onde principiara brunindo pesos e balanças. Magdá aceitou-lhe a
corte quase por brincadeira, a rir; ou talvez para não contrariar o pai, que
se mostrava muito afeiçoado por ele; ou, quem sabe? talvez ainda na esperança
de ver surgir de um momento para outro novo pretendente.

O velho parecia adorá-la e falava, com meias palavras e sorrisos de misteriosa
intenção, em arranjar títulos, deixar palácio, correr a Europa inteira e comprar
objetos de arte.

Um ajo! Mas, quando o Conselheiro, em nome do amigo, perguntou à filha se
estava resolvida a casar com ele, Magdá sorriu, espreguiçou-se e, afinal,
para não deixar o pai sem resposta, tartamudeou:

— Não digo que não, mas… sabe?… é cedo para decidir… Havemos
de ver! havemos de ver!…

Três meses depois, o Comendador, já desenganado, casava-se em São Paulo com
uma viúva ainda moça, professora de piano.

Apresentou-se então, solicitando a mão de Magdá, p Dr. Tolentino. Não tinha
a metade do dinheiro do outro, mas em compensação era muito mais novo. Muito
mais! E com um belo prestígio de homem de talento e um futurão na advocacia,
se os seus pulmões lho permitissem.

Sim senhor, porque o Dr. Tolentino não gozava boa saúde. Era ainda jovem
e parecia velho; extremamente magro, vergado, um pouco giboso, olhos fundos,
faces cavadas, cabelo pobre e uma tosse de a cada instante. Todo ele respirava
longas noites de estudo, sobre grossos livros de direito ou defronte das carunchosas
pilhas dos autos; todo ele estava a pedir, com seu magro pescocinho, um longo
cache-nez bem quente, e as suas mãos, extensas e magras, queriam luvas de
lã; e os seus pés, longos e espalmados, exigiam sapatos de borracha. Não produzia
lá muito bom efeito o vê-lo assim desmalmado, muito comprido dentro da sua
sobrecasaca abotoada de cima a baixo, olhando tristemente para a vida por
detrás dos seus óculos de míope.

Muito bom efeito — não, não produzia; mas também não produzia muito
mau, graças à delicadeza dos seus gestos e à expressão inteligente do seu
rosto cor de palha de milho. Cheirava a doença; mas, palavra de honra, falava
que nem o José Bonifácio.

Não! definitivamente merecia a fama de homem ilustre!

O seu namoro à filha do Conselheiro foi calmo, correto e persistente. Porém
inútil: Magdá, depois de muita negaça, muita hesitação e muito constrangimento,
resolveu não o aceitar.

Já lá se ia entretanto quase que meio ano depois do primeiro ataque, e ela
começava a torcer o nariz à comida, a fazer-se mais magra, mais irritável
e mais sujeita a sobressaltos nervosos.

Abatia.

O drama, a música triste, o romance amoroso, provocavam-lhe agora um choro,
que principiava pelas simples lágrimas e acabava sempre em convulsivos. Ao
depois — aí estavam as pontadas no alto da cabeça, o embrulhamento do
estômago, os terrores infundados, o exagero de todos os seus atos e em estranho
desassossego do corpo e do espírito, que a fazia andar inquieta por toda a
casa sem parar três segundos no mesmo ponto.

— Temo-la travada! Exclamava o seu médico; até que, uma ocasião, avançando
furioso de punho fechado contra o Conselheiro, gritou-lhe, cerrando os dentes
e arreganhando-os: — Que diabo, homem! casa esta pobre rapariga, seja
lá com quem for!

— É boa! Respondeu o outro! — Ainda mais esta!… Pois você acha
que, se houvesse aparecido com quem, eu já não a teria casado?

— Ora o que, meu amigo! As minhas observações não me enganam: ela tem
qualquer amor contrariado, que não me confessa; e você com certeza sabe de
tudo e cala o bico por conveniência… É que para o sujeito, naturalmente,
é um tipo sem eira nem beira!… Ah! Eu compreendo estas coisas… mas, em
todo o caso, fique sabendo para o seu governo que você está mas é preparando
uma doida de primeira ordem! Ora aí tem!

O Conselheiro deu a sua palavra que não sabia de nada, e afirmou em boa fé
que a filha não tinha namoro oculto, nem claro; se o tivera, já ele o houvera
descoberto.

— Pois se não tem, é preciso arranjá-lo e arranjá-lo já!

Surgiu então o Conde do Valado.

Trinta a trinta e cinco anos. Elegante, louro, meio calvo, barba rente espetando
no queixo em duas pontas de saca-rolha; olho azul, monóculo, o esquerdo sempre
fechado; uma ferradura de ouro guarnecida de pequeninos brilhantes, na gravata,
que também era toda sarapintada de ferraduras; luvas de pele da Suécia com
três riscões negros em cima; sapatos ingleses, mostrando meias de cor, onde
havia ainda pequenas ferraduras bordadas a seda.

Este, quanto ao chamado vil metal, não tinha nem pouco, nem muito; era pobre,
pobre como o país onde nascera; mas descendia em linha reta de uma família
portuguesa muito ilustre pelo sangue, e em cujos primeiros galhos até príncipes
se apontavam. Vivia a custa de um cavalo igualmente puro no sangue e na raça,
com o qual apostava no Prado. De resto — falava inglês, fumava cigarrilhos
de Havana, bebia cerveja como qualquer doutor formado na Alemanha e tinha
o distintíssimo talento de encher cinco horas só a tratar de jóquei-clube.

Magdá ficou muito impressionada quando o viu pela primeira vez passar a meio
trote na praia de Botafogo fazendo corcovear à rédea tosa um alazão do Moreaux.
Achou-o irresistível de botas de verniz, elegantemente enrugadas sobre o tornozelo,
calção de flanela branca abotoado na parte exterior da coxa, jaleco de pelúcia
cor de pinhão com passamantes e botões de prata, chapéu alto de castor cinzento
e luvas de camurça. Por muitos dias conservou no ouvido o eco daquele estalar
metódico e compassado, que as patas do animal feriam no calçamento da rua.
E, em família, tanto e com tamanha insistência falou do tal conde, que o pai,
mau grado as informações contrárias que obtivera a respeito dele, deu providências
para o atrair à sua casa.

Foi uma corte sem tréguas a do Valado. Perseguia Magdá por toda a parte;
passava-lhe a cavalo pela porta todos os dias; convidava-a para todas as valsas;
fazia-lhe declarações de amor em todas as ocasiões.

— Então? perguntou o Conselheiro à filha, depois de lhe comunicar que
o conde acabara de pedir a mão dela.

— Não sei, respondeu Magdá. Mais tarde, mais tarde terão a resposta…
É bem possível que aceite…

Deram todos como certo o casamento da filha do Conselheiro com o estróina
do conde. Fizeram-se comentários, reprovações. Mas, nesta mesma semana, uma
noite, estando aquela ao piano e o outro ao seu lado, a virar-lhe as folhas
da partitura, ela de repente deixou de tocar, soltou um grito e foi logo acometida
por um novo ataque, ainda mais forte que o primeiro.

Havia descoberto, a passear no colarinho do fidalgo, um pequenino inseto
da cor do jaquetão com que ele se exibia a cavalo. Acudiram-na de pronto com
sais e algodões queimados. Fez-se uma desordem geral na sala; Magdá foi carregada
a pulso para o quarto dando de pernas e braços por todo o caminho. E, daí
a pouco, levantava-se a reunião e retiravam-se os convidados.

Não pode erguer-se da cama no dia seguinte, nem no outro, nem nos cinco mais
próximos. Detinham-na grandes dores de cabeça, amolecimento nas pernas, e
uma ligeira impressão dolorosa na espinha dorsal.

— Olhe! disse o Dr. Lobão ao Conselheiro — Isto ainda não é precisamente
a tal fome de três dias, mas para isso pouco lhe falta!…

O pai de Magdá resolveu aproveitar a primeira estiada da moléstia para casar
a filha com o conde.

— Decerto! decerto! aprovara o médico.

Todavia a caprichosa, ainda de cama, declarou que — definitivamente
— mão se casaria com semelhante homem. — Nunca!

— Não! exclamou, com este é tempo perdido! Façam o que quiserem, eu
não me caso!

— Mas porque milha filha?…

— Não sei, não quero!

— Ele te deu algum motivo de desgosto?…

— Ora! Já te disse que não quero!

E ninguém, nem ela própria, sabia explicar a razão porque. — Era lá
uma cisma.

Quando se levantou estava desfeita; apareceram-lhe náuseas depois da comida
e uma tosse seca que a perseguia enquanto estivesse de pé.

Foi então que o Dr. Lobão, enfurecido com a sua doente, porque se recusara
a entregar-se ao conde, aconselhou o tal passeio à Europa.

VI

A viagem, como ficou dito, pouco lhe aproveitou ao sistema muscular e agravara-lhe
sem dúvida o sistema nervoso. Magdá voltou mais impressionável, mais vibrante,
mais elétrica. De novo, verdadeiramente novo, o que se lhe notava era só uma
exagerada preocupação religiosa; estava devota como nunca fora, nem mesmo
nos seus tempos de pensionista das irmãs de caridade. Mostrava-se muito piedosa,
muito humilde e muito submissa aos preceitos da igreja. Falava de Cristo,
pondo na voz infinitas doçuras de amor.

É que, enquanto percorrera as grandes capitais do mundo católico, visitando
de preferência os lugares sagrados e as ruínas, o seu espírito, como se peregrinasse
em busca do ideal fora lentamente se voltando para Deus. Preferira sempre
os ermos silenciosos e propícios às longas concentrações místicas. As multidões
assustavam-na com a sua grosseira e ruidosa atividade dos grandes centros
de indústria e do comércio; o verminar das avenidas e boulevards, as enchentes
de teatro, a concorrência dos passeios públicos, a aglomeração das oficinas
e dos armazéns de moda, o cheiro do carvão de pedra, o vaivém dos operários,
o zunzum dos hotéis; tudo isso lhe fazia mal. Agora, a sua delicadíssima sensibilidade
nervosa reclamava o taciturno recolhimento dos claustros; pedia uma vida obscura
e contemplativa, toda ocupada com um perenal idílio da alma com a divindade.

Em França, chegou a falar ao pai em recolher-se a um convento. O Conselheiro
disparatou:

— Estava doida! Pois ele tinha lá criado uma filha com tanto esmero
para a ver freira?… Não lhe faltava mais nada! Ah! bem quisera opor-se àquelas
incessantes visitas aos mosteiros, aos cemitérios e às igrejas! Não se opusera
— aí estavam agora as conseqüências! — Ser freira! Tinha graça!
Não havia dúvida — tinha muita graça que a Sra. D. Madalena fosse a
Paris para ficar num convento! Mas era bem feito!… era muito bem feito,
porque, desde o dia em que se deu o que se dera com a visita ao túmulo de
Eloisa e Abelardo, que ele devia estar prevenido contra semelhantes passeios
e tomar providências a respeito daquela mania religiosa!

A visita ao túmulo dos legendários amantes fora com efeito muito fatal à
filha do Conselheiro. Esta, depois de contemplá-lo em silêncio e por longo
tempo, estática, abriu num pranto muito soluçado, findo o qual, pôs-se a dançar
e cantar, num ritmo, que ia aos poucos se acelerando. O pai quis contê-la;
Magdá fugiu-lhe, correndo pelo cemitério, saltando pelas sepulturas, tropeçando
aqui e ali, tão depressa caindo como se levantando, a soltar gritos que pareciam
uivos de fera esfaimada. Afinal, já sem forças e com as roupas em frangalhos,
abateu por terra, ofegante, mas encabujando ainda num rosnar convulsivo, até
perder os sentidos, e logo pegar em sono profundo, do qual só despertou vinte
e tantas horas depois, já no hotel, para onde a levaram, sem que ela desse
acordo de si.

Estava no período da coréia e das convulsões.

Este acidente, porém, em vez de lhe servir de lição e de afastá-la de tudo
que lhe pudesse causar novas crises, foi, ao contrário, como que o ponto de
partida da sua declinação para as coisas religiosas. Começou desde então a
sentir-se oprimida por uma ansiedade sem objetivo nem causa aparente; às vezes
uma grande mágoa a sufocava, enchendo-lhe a garganta de soluços indissolúveis;
outras vezes eram titilações por todo o corpo, uns pruridos que a irritavam,
que lhe metiam vontade de morder as carnes, de açoitar-se, de beliscar-se
até tirar sangue. E, quando cessavam estas tiranias da matéria, voltavam de
novo as mágoas, e então o que a consumia era um desejo esquisito, que lhe
comia por dentro, onde e porque não sabia dizer; e depois ma esperança de
conforto, um como ideal despedaçado no seu interior, cujas incalculáveis partículas
se lhe espalhassem por todo o ser e procurassem fugir, transformadas em milhões
de suspiros.

Valia-se então das súplicas religiosas e ficava longo tempo a rezar, banhada
em lágrimas, os olhos injetados, os lábios trêmulos, o nariz frio de neve.
Porém a oração não a confortava, e a infeliz pedia a Deus que a matasse naquele
mesmo instante ou lhe enviasse dos céus um alívio para a suas aflições.

Foi neste estado que Magdá tornou ao Rio de Janeiro. A velha Camila, cuja
beatice emperrara com o tempo e já tresandara a idiotia, rejubilou ao vê-la
assim; durante a viagem da sobrinha, ela se recolhera ao convento de Santa
Teresa, onde tinha amigas e onde costumava dantes ir passar dias e às vezes
semanas inteiras, no tempo em que ainda não estava tão mal de saúde. Qual
não seria, pois, o seu gosto, quando Magdá, fechando-se com ela no quarto,
abriu o coração e franqueou à devota todas as vagas mortificações e místicos
arrebatamentos da sua pobre alma enferma?

— Fizeste muito bem, minha filha! aplaudiu a tia, abraçando-a transportada.
— Fizeste muito bem em te voltares para a igreja! Deixa lá falar teu
pai, que não entende disto e está tão contaminado de heresia como qualquer
homem deste tempo. Deixa-o lá e entrega-te às mãos de Deus, que terás bem-aventurança
na terra, como mais tarde a pilharás no céu.

A sobrinha falou em casamento.

— Se encontrares marido, respondeu a velha, e entenderes que deves
casar — casa-te, menina, que essa é a vontade de teu pai; mas também
se não casares, nem por isso serás menos feliz, uma vez que já estejas na
divina graça de Nosso Senhor Jesus Cristo…

E, depois de cruzar as mãos sobre o peito e revirar os olhos para o céu,
acrescentou: — Não tenho eu vivido até hoje tão solteirinha como no
dia em que nasci?… E, olha, rapariga, que o homem nunca me fez lá essas
faltas! Ainda em certa idade, quando andava no fogo dos meus vinte aos trinta,
vinham-se assim umas venetas mais fortes de casamento; mas que fazia eu? —
Disfarçava; metia-me com os meus santinhos; rezava à Nossa Senhora do Amparo,
e com poucas — nem mais pensava em semelhante porcaria! A coisa está
em tirar uma pessoa o juízo daí! Olha: decora a oração que te vou ensinar,
e reza-a sempre que sentires formigueiros na pele e comichões por dentro!

A oração constava do seguinte:

“Jesus, filho de Maria, príncipe dos céus e rei na terra, senhor dos homens,
amado meu, esposo de minha alma, vale0me tu, que és a minha salvação e o meu
amor! Esconde-me, querido, com o teu manto, que o leão me cerca! Protege-me
contra mim mesma! esconjura o bicho imundo que habita minha carne e suja minha
alma! — Salva-me! Não me deixes cair em pecado de luxúria, que eu sinto
já as línguas do inferno me lambendo as carnes do meu corpo e enfiando-se
pelas minhas veias! Vale-me, esposo meu, amado meu! Vou dormir à sombra de
tua cruz, como o cordeirinho imaculado, para que o demônio não se aproxime
de mim! Amado do meu coração, espero-te esta noite no meu sonho, deitada de
ventre para cima, com os peitos bem abertos, para que tu me penetres até ao
fundo de minhas entranhas e me ilumine toda por dentro com a luz do teu divino
espírito! Por quem és, conjuro-te que não me faltes, por que, se não vieres,
arrisco-me a cair em poder dos teus contrários, e morrerei sem estar no gozo
da tua graça! Vem ter comigo, Jesus! Jesus, filho de Deus, senhor dos homens,
príncipe dos céus e rei na terra! Vem que eu te espero. Amém.”

Magdá decorou isto e, desde então, todas as noites, antes de dormir, ficava
horas esquecidas ajoelhada defronte do seu crucifixo de marfim, a repetir
em êxtases aquelas palavras que a entonteciam com a sua dura sensualidade
ascética. E os olhos prendiam-se-lhe na chagada nudez do filho de Maria e
ungiam-lhe ternamente as feridas, como se ela contemplasse com efeito o retrato
de seu amado. Mas, naquele corpo de homem nu, ali, no mistério do quarto,
trazia-lhe estranhas conjeturas e maus pensamentos, que a mísera enxotava
do espírito, coroando envergonhada da sua própria imaginação.

Foi a partir desse tempo que deu para andar sempre vestida de luto, muito
simples, com a cabelo apenas enrodilhado e preso na nuca; um fio de pérolas
ao pescoço, sustentando uma cruz de ouro, e mais nenhuma outra jóia. E, assim,
a sua figura ainda parecia mais delgada e o seu rosto mais pálido. A tristeza
e a concentração davam-lhe à fisionomia uma severa expressão de orgulho; dir-se-ia
que ela, a medida que se humilhava perante Deus, fazia-se cada vez mais altiva
e sobranceira para com os homens. O todo era o de uma princesa traída pelo
amante, e cuja desventura não conseguira abaixar-lhe a soberbia, nem arrancar-lhe
dos lábios frios numa queixa de amor ou um suspiro de saudade.

Os seus atos mais simples e os seus mais ligeiros pensamentos ressentiam-se
agora de um grande exagero. Nunca se mostrara tão intolerante nos princípios
de dignidade e na pureza dos costumes; nunca fora tão aristocrata, tão zeladora
da sua posição na sociedade, nem tão convicta dos seus merecimentos e dos
seus créditos.

Uma conduta irrepreensível! Se sofria ou não para sustentar os deveres de
mulher honesta só o sabia a discreta imagem de marfim, a quem unicamente confiava
os segredos das suas lutas interiores; os desesperos e as misérias da sua
carne; se tinha desejos, tragava-os em silêncio com a mais inflexível nobreza
e o mais afinado orgulho. Ao vê-la, na singela gravidade do seu trajo, o rosto
descolorido pela moléstia, os movimentos demorados e sem vida, sentia a gente
por ela um profundo respeito compassivo, uma simpatia discreta e duradoura.
O triste ar de altiva resignação que se lhe notara nos olhos, outrora tão
ardentes e tão talhados para todos os mistérios da ternura; a desdenhosa expressão
de fidalguia daqueles lábios já sem cor, instrumentos que a natureza havia
destinado para executar a música ideal dos beijos e cujas cordas pareciam
agora frouxas e embambecidas; aquela respiração curta e entrecortada de imperceptíveis
suspiros; aquela voz, poderosa na expressão e fraca na tonalidade, onde havia
um pouco de súplica e um pouco de arrogância — súplica para Deus e arrogância
para os homens; enfim — tudo que respirava da sua adorável figura de
deusa enferma: tudo nos conduzia a amá-la em segredo reverentemente, como
um soldado a sua rainha.

Agora a bem poucos dava a honra de uma conversa; falava sempre sem gesticular
e em voz baixa, e ninguém, a não ser o pai, lhe alcançava um sorriso. A dança,
o canto, o piano, tudo isso foi posto à margem; as partituras dos seus autores
favoritos já não se abriam havia longos meses; a sua caixinha de tintas vivia
no abandono; os seus pincéis de aquarela, dantes tão companheiros dela, já
lhe não mereciam sequer um beijo. Iam-se-lhe agora os dias quase que exclusivamente
consumidos na leitura, lia mais que dantes, muito mais, sem comparação, mas
tão somente livros religiosos ou aqueles que mais de perto jogavam com os
interesses da igreja; gostava de saber as biografias dos santos, deliciava-se
com a “Imitação de Jesus Cristo”, e não se fartava de ler a Bíblia, o grande
manancial da poesia que agora mais a encantava; decorara o “Cântico dos Cânticos”
de Salomão, principalmente o capítulo V que principia deste modo:

“Venha o meu amado para o seu jardim, e coma o fruto das suas macieiras.

“Eu vim para o meu jardim, irmã minha esposa; seguei a minha birra aromática;
comi o favo com o mel; bebi o meu vinho com o meu leite. Comei, amigos, e
bebei, e embriagai-vos, caríssimos!

“Eu durmo e o meu coração vela; eis a voz do meu amado que bate; dizendo:
— Abre-me, irmã minha pomba minha, imaculada minha, porque sinto a cabeça
cheia de orvalho, e me estão correndo pelos anéis do cabelo, as gotas da noite.”

E estes, como todos os outros versículos de Salomão, lhe punham no espírito
uma embriagues deliciosa, atordoavam-na como o perfume capitoso e melífluo
de flores orientais ou como um vinho saboroso e tépido que a ia penetrando
toda, até a alma, com a sua doçura aveludada e cheirosa. E, de pois de repeti-los
muitas e muitas vezes, corria a tomar nas mãos a imagem de Cristo, e abraçava-a,
e cobria-a de beijos, soluçando e murmurando: “Meu amado, meu irmão, meu esposo!”
E dizia-lhe em segredo, num delírio crescente: “Eu sou a tua pomba imaculada;
sou o mel de que teus lábios gostam; sou o leite fresco e puro com que tu
te acalmas; tu és o vinho com que me embriago!”

— Isto acaba mal! Isto com certeza acaba muito mal! exclamava entretanto
o Dr. Lobão, furioso contra o Conselheiro, sobre quem ele fazia recair toda
a responsabilidade do estado de Magdá. — Pois já não bastavam os terríveis
elementos que havia para agravar a moléstia?… Como então deixou nascer e
desenvolver-se o demônio daquela beatice, que só por si era mais que suficiente
para derreter os miolos a qualquer mulher?!

Uma tarde, na semana santa, ela saiu em companhia da velha e voltou sem sentidos
no fundo de um carro. Tinham ido ouvir um sermão na Capela Imperial, e Magdá
fora aí mesmo acometida por um ataque de convulsões em delírio.

O Conselheiro revoltou-se formalmente contra a irmã:

Aquilo era um abuso que orçava pela petulância! era um desrespeito ao que
ele determinara dentro de sua casa e com relação à sua própria filha! Por
mais de uma vez havia declarado já que a Sra. D. Madalena não podia ir à igreja
e muito menos demorar-se aí horas e horas; e fazia-se justamente o contrário!
Se D. Camila não podia passar sem isso, que fosse sozinha! Podia lá ficar
o tempo que quisesse, fartar-se de sermões e rezas, deliciar-se com aquela
bela atmosfera impregnada de incenso e bodum de negros! Que fosse; ninguém
se privava de ir, mas, com um milhão de raios! não arrastasse consigo uma
pobre doente para pô-la naquele estado! Era muito bonito, não tinha dúvida!
Ele em casa a desfazer-se com cuidados de meses e meses para minorar os sofrimentos
da filha, a fazer sacrifícios para a ver boa; e a besta da irmã a destruir
tudo isso em poucas horas! Não! não tinha jeito! A continuarem as coisas por
aquele modo, ele ver-se-ia obrigado a tomar sérias providências contra semelhante
abuso! Se D. Camila não se queria conformar com o que ditava o bom senso,
que tivesse paciência, mas voltaria por uma vez para o convento!

E o que mais o irritava era o modo fraudulento porque tudo aquilo se fazia;
eram as confidências secretas, as combinações em voz misteriosa, a espécie
de conspiração que havia contra ele, entre Magdá e a velha. Enganavam-no:
saiam para “dar um passeio pela praia”, e agora ficava descoberto o que eram
os tais passeios! Roubavam-lhe até o amor e a confiança de sua filha! —
Dantes, Magdá não dava um passo, nem mesmo pensava em fazer fosse o que fosse,
sem primeiro consultá-lo, ouvi-lo; e agora — evitava-o; falava-lhe em
meias palavras; parecia ter segredos inconfessáveis! Dissimulava!

— Tudo isso é da moléstia! Explicou o Dr. Lobão, cujas visitas à casa
do Conselheiro rareavam ultimamente, porque o feroz médico vivia muito preocupado
com o estabelecimento de uma casa de saúde, que acabava de montar fora da
cidade. Mas o pobre pai não se consolava com a explicação do doutor e sofria
cada vez mais por amor da sua estremecida enferma. Magdá, com efeito, estava
agora toda cheia de dissimulações e reservas; parecia viver só exclusivamente
para uma idéia secreta, um ideal muito seu, que ela colocava acima de tudo
e de todos. Fazia-se muito manhosa, muito amiga de sutilezas, de disfarce,
empenhando-se em esconder as suas mais simples e justificáveis intenções e
fazendo acreditar que existiam outras de grande responsabilidade. Os passeios
clandestinos que continuava a dar coma tia, cegando a vigilância do Conselheiro,
para estar algum tempo na igreja, tinham para ela um irresistível encanto
de fruto proibido, e a preocupação em esconde-los constituía o melhor interesse
de sua existência.

As duas saíam em passo de quem vai espairecer um pouco pelas imediações de
casa, mas a certa distância aceleravam a marcha, apressavam-se, conversando
em segredo em segredo os seus assuntos religiosos. A rapariga, à medida que
se aproximava do templo, ia ficando excitada, palpitante, olhando repetidas
vezes para trás, como se receiasse que a seguissem. Afinal chegava, ofegante,
com o coração na garganta e, depois de verificar que não erra seguida por
ninguém, entrava na igreja, trêmula e assustadiça, como se entrasse no latíbulo
de um amante. E aquele silêncio das naves; aquela meia sombra em que rebrilhavam
os ouros dos altares; aquela solidão compungida; o ar fresco dos lugares de
teto muito alto; tudo isso lhe punha no corpo um meigo quebranto de volúpia
sobressaltada.

Ajoelhava sempre num ponto certo; tinha já a sua imagem predileta, era um
grupo de Mater Dolorosa, de tamanho natural, com o Cristo deitado ao colo,
morto, todo nu, os braços pendentes, o sangue a escorrer-lhe pelas faces e
pela ebúrnea rigidez do corpo. Adorava este Cristo, amava-o, preferia-o, tinha
íntimas predileções por ele; achava-o mais formoso do que todas as outras
imagens sagradas. Embriagava-se com ver-lhe aquele rosto muito pálido, aqueles
olhos de pálpebras mal fechados, adormecidos no negrume dos martírios, aqueles
lábios roxos, imóveis, aqueles longos cabelos que lhe caíam pelos ombro, aquela
barba nazarena que parecia ter bebido de cada mulher da terra uma lágrima
de amor.

E Ela, no murmúrio das suas orações, dizia-lhe ternuras de esposa; pedia-lhe
consolos e confortos, que ele não lhe podia dar; falava-lhe com o magoado
orientalismo do “Cântico dos Cânticos”; e suas palavras eram quentes como
beijos e ternas e doloridas como suspiros de quem ama. Por aquela imagem querida
acentuava na sua imaginação e melancólica figura desse ente perfeito e desejado,
de que na Bíblia lhe falavam as filhas de Jerusalém. Era esse o amado que,
em sonhos, lhe pedia para pedir a porta, porque lhe estavam correndo pelos
anéis do cabelo as gotas da noite; esse era o amado cândido e rubicundo, escolhido
entre milhares; era esse, cujos olhos são ternos e doces, nem como as pombas
que, tendo os ninhos ao pé do regato das águas, estão lavadas em leite e se
acham de assento junto das mais largas correntes dos rios; era esse o amado,
cujas faces são iguais a canteiros de flores aromáticas e cujos lábios destilam
a mais preciosa mirra; era esse de mãos superfinas, feitas ao torno, cheias
de jacintos; esse de ventre de marfim, guarnecido de safiras; esse de pernas
de mármore sustentadas sobre bases de ouro; esse que era escolhido como os
cedros e cuja figura a chorosa e lânguida sulamita comparava ao Líbano.

Era esse que ela supunha amar; a quem supunha dar tudo o que seu coração
e alma possuíam; e, vendo-se descoberta e proibida de ir às místicas entrevistas
com ele, foi tomada por um grande desgosto, sobrevindo as convulsões, e tendo
de guardar a cama por muitos dias, porque lhe apareceu então uma febre de
caráter especial, apresentando todos os sintomas da pirexia comum, mas que
todavia não se subordinava aos medicamentos que a esta combatem.

— Ora aí tem! É a febre histórica! Classificou logo o Dr. Lobão. E,
em resposta às perguntas do Conselheiro, despejou um chorrilho de nomes técnicos,
dizendo que: “Aquilo não podia ser febre tifóide, nem ter sua origem na flegmasia
encefálica, nem tão pouco na alteração de algum órgão esplâncnico, porque
uma meningite, ou uma encefalite ou mesmo a febre tifóide comum não poderia
chegar àquele grau, por que não havia doente capaz de resistir!”

O certo é que Magdá, ao levantar-se da tal febre, estava reduzida a uma fraqueza
extrema. Voltaram-lhe a dor da espinha, a tosse e a inapetência completa;
se insistia em comer, vomitava incontinente. O Dr. Lobão, na sua venerável
pretensão de médico antigo, declarou sem cerimônia que, “pela contração tônica
dos músculos, pressentia a aproximação da letargia”.

— A letargia! Agora é que eram elas! Aí estava o que ele menos desejava
que viesse!

Depois de praguejar contra todo mundo e ralhar cuidadosamente com o Conselheiro,
aconselhou a este que levasse a doente para outro arrabalde mais campestre,
onde não houvessem igrejas perto de casa e onde ela pudesse estar mais em
liberdade e mais em movimento. E, logo que se sentisse melhor, convinha despertar-lhe
o gosto por qualquer ocupação manual. “Nada de belas artes, nem leituras!
Exclamava o cirurgião. — Jardinagem, serviço de horta, jogos de exercícios,
como o bilhar, a caça, a pesca! E passeios! Muitos passeios ao ar livre, pela
fresca manhã, sem chapéu, sem muito medo de apanhar sol! E, se os passeios
fossem depois de um banho bem frio — melhor seria! Era preciso que Magdá
não deixasse de tomar ferro e aquele xarope de Easton, que ele receitara.
Na alimentação devia procurar sempre comer um pouco de carne sangrenta, mariscos,
e tomar bom vinho Madeira.”

— Ora, aí tem! Faça isto, concluiu ele, e veja se consegue esconder-lhe
o diabo dos tais livros religiosos, que ela tem lido ultimamente.

E resmungou ainda, depois de novas pragas: — Pena é que se lhe não
possa esconder também aquela barata velha, que é ainda pior do que todas as
cartilhas da doutrina cristã!

VII

A mudança estava marcada para daí a quinze dias. Iriam refugiar-se na Tijuca,
num casarão, que o Conselheiro possuía para essa bandas. Sobrado muito antigo
e de aparência tristonha, todo enterrado no fundo de uma chácara, enorme e
destratada, que em alguns pontos até aprecia mato virgem. Janelas quase quadradas;
paredes denegridas pela chuva e pelo tempo; nas grades da escadaria principal
heras e parasitas grimpavam livremente; as trapoerabas cobriam os degraus
e alastravam por toda a parte; e lá no alto, à beira desdentada do telhado,
habitava uma república de andorinhas.

Para chegar à casa, tinha-se de atravessar uma longa e tenebrosa alameda
de mangueiras, que começava logo no portão da entrada e se ia estendendo por
ali acima lúgrebe como um caminho de cemitério. Era triste aquilo com os seus
altos muros de pedra e cal, pesados, cobertos de limo, e transbordantes de
copas de árvores velhas. O casarão, olhado pelas costas ou pelo franco esquerdo,
deixava-se ver em toda a sua grosseira imponência, porque dava esses lados
para a rua, fazendo esquina com as suas próprias paredes. Metia aflição entrar
lá; um pavoroso silêncio de igreja abandonada enchia os enormes quartos nus
e enxovalhados de pó; um ar frio e encanado, como o ar de corredores de claustro,
enregelava e oprimia o coração naqueles longos aposentos sem vida. Tudo aquilo
transpirava cheiro de velhice, cheiro de moléstia; sentia-se a friagem da
morte e a fedentina úmida das catacumbas.

O Conselheiro, porém, mandou correr uma limpeza geral na casa; fez ir para
lá os móveis e objetos necessários; e, uma bela tarde, meteu-se afinal num
landeau com a filha e mais a velha Camila e abandonaram Botafogo.

Foram com o carro fechado até certa altura do caminho, porque Magdá, de tão
incomodada que passara a noite da véspera, não tivera ânimo de por outra roupa
e apenas enfiara um sobretudo de casimira e agasalhara a cabeça e o pescoço
com uma saída de baile.

Chegaram pouco antes do crepúsculo. O sol acabara de retirar-se, mas a terra
ainda palpitava na luz. As aves iam-se chegando aos seus penates; toda a natureza
se aninhava para dormir; só as vadias das cigarras continuavam espertas, a
cantar, fazendo sobressair o seu interminável lá menor dentre os pacatos bocejos
da mata que se espreguiçava ali mesmo, a dois passos da casa, tranqüila e
submissa somo um animal doméstico. Magdá sentiu-se ternamente impressionada
pelo taciturno aspecto do casarão que, lá naquelas alturas, se lhe afigurava
um velho mosteiro ignorado. A circunstância da hora também contribuiu para
isso; aquela hora sem dono, que não pertence ao dia nem à noite — era
dela; chamou-a a si, como se recolhesse um enjeitado, e tomou-lhe carinho.
Era o momento predileto para as suas concentrações e para seus êxtases: em
tudo descobria a essa hora o carpir de uma saudade; cada moita de verdura
ou cada grupo de árvores tinha para a filha do Conselheiro suspiros e queixumes
de amor. Parecia-lhe a terra, nesse lamentoso e supremo instante em que o
sol morre, se vestia de luto e chorava a perda do esposo que além se afogava,
em pleno horizonte, atirando-lhe de longe os seus últimos beijos de fogo.
Magdá ouvia então os abafados soluços da viúva e sentia-lhe o frio orvalhar
do pranto.

— Bem, minha filha, vamos para cima, que já cai sereno.

Ela havia escolhido para seus aposentos uma sala e dois cômodos do andar
superior. O quarto da cama era quadrado, muito singelo, uma verdadeira cela,
em que o inseparável crucifixo de marfim assentava ao ponto de impressionar;
tinha uma só janela, essa mesma gradeada de ferro e sem vista, porque ficava
justamente de fronte de uma grande pedreira em exploração. O Conselheiro teve
de contrariar a filha para dar a estas salas um pouco de conforto e elegância.

— Para que? dizia ela, não é preciso! em qualquer parte a gente vive
e morre…

Como estava transformada! Ainda assim notava-se-lhe nas maneiras a mesma
correção fidalga e nos gestos a fina escolha e apurada sobriedade, que dantes
a distinguiam tanto entre as suas amigas. D. Camila foi também para o andar
de cima, fazendo-se acompanhar por uma corte de santos de várias espécies,
tamanhos e virtudes. Além dos escravos, levaram apenas uma criada branca,
para tratar de Magdá.

Instalados, o Conselheiro tomou um homem para arranjar o jardim e ocupou
os seus negros na reparação da chácara, acompanhando ele próprio o serviço,
na esperança de despertar igual desejo no ânimo da filha.

Mas qual! Ela, desde o momento que se enterrou ali, parecia até mais desanimada,
mais triste e metida consigo. Agora dava para não ir à mesa e fechar-se no
quarto, comendo pedacinhos de pão de instante a instante, roendo queijo seco,
chupando frutas ácidas e mastigando goiabas verdes. E sempre a cismar.

O pai embalde protestava contra isto; embalde lhe dizia que ela estava-se
preparando para uma séria irritação do estômago; embalde queria arrastá-la
par a mesa nas horas da comida; embalde lembrava passeios pela manhã ou ao
cair da tarde, a pé, a cavalo, de carro, como ela escolhesse. Era tudo inútil:
Magdá continuava agarrada ao quarto — cismando.

— Então, ao menos, que acordasse mais cedo, fosse para baixo conversar
com ele na chácara; tomar leite mungido na ocasião; ver o pombal que se estava
fazendo; dar uma vista-d’olhos pelo galinheiro e pela horta.

Magdá prometia, resmungava: — Que sim, que sim, porque não? Do outro
dia em diante estaria de pé logo ao amanhecer!

Mas, no dia seguinte, quando iam chamá-la ao quarto, à uma hora da tarde,
respondia de mau humor:

— Deixem-me em paz! Oh!

— Nesse caso vamos de novo para Botafogo! Exclamou afinal o Conselheiro,
perdendo a paciência. — Eu, se vim enfurnar-me aqui, foi na esperança
de fazer-te mudar de regime e com isso alcançar-te algumas melhoras! Vejo,
porém, que é muito pior a emenda que o soneto!

Ela teve um tremor de músculos, e ficou muito impressionada com o tom quase
áspero que o pai pusera nestas palavras.

— Não sei que desejam de mim!… disse.

— Desejo que fiques boa. Aí tens tu, o que desejo!…

— Só parece que julgam que me faço doente para contrariar os outros!
Se estivesse em minhas mãos, seria mais agradável a todos; não me ponho melhor
e bem disposta, porque não posso!…

— Está bom, está bom, balbuciou o Conselheiro, acarinhando-a, arrependido
por não ter sido tão amável desta vez como das outras. — Não vás agora
afligir-te com o que eu disse… Aquilo não teve a intenção de magoar-te…

Ela prosseguiu em tom infeliz e ressentido: — Se vim para cá, foi porque
me trouxeram… não reclamei nada… Não me queixei de coisa alguma… Sinto-me
aqui perfeitamente… dou-me até muito bem, e só peço e suplico que não me
contrariem; que me deixem em paz pelo amor de Deus; que não me apoquentem;
que…

Vieram os soluços e Magdá principiou a excitar-se.

— Então, minha filha, que tolice é essa?

— É que eu não posso ouvir falar assim comigo!… bem sabem que estou
nervosa! bem sabem que estou doente!

— Sim, sim, tens razão… Passou! Passou!

E o Conselheiro, deveras surpreso com aquelas esquisitices da filha, espantado
por vê-la fazer-se tão humilde, tão coitadinha, puxou-a brandamente para junto
de si e afagou-a como se estivesse a consolar uma criança.

— Acabou! Acabou!

Magdá chorava com a cabeça pousada no colo dele.

— Então, então, não te mortifiques… Aqui ninguém faz senão o que
for do teu gosto… Vamos, não chores desse modo…

Qual! o resultado foi passar pior esse dia e aumentarem as suas rabugices
no dia imediato; — Que desejava morrer! — Acabar logo com aquela
miserável existência! Que ali todos já estavam fartos de a suportar! Que todos
se aborreciam com ela e procuravam meios e modos de contrariá-la, só para
ver se a despachavam mais depressa! Que bem quisera recolher-se a um convento,
mas não lhe deixaram! Pois antes tivessem consentido, porque agora até a própria
criada parecia fazer-lhe um grande obséquio, quando era obrigada a ter um
pouco mais de trabalho com ela.

No fim de contas apareceu-lhe de novo a tal febre de caráter especial; agora,
porém, com delírios e movimentos luxuriosos, sobrevindo uma profunda letargia,
contra a qual eram inúteis todos os recursos do médico.

Parecia morta. No fim de longas horas de esforços, o Dr. Lobão, já desesperado,
teve, a contra gosto, de aceitar o conselho de um colega ainda moço e de idéias
modernas — a compressão do ovário.

Efeito pronto: Magdá tornou a si depois da operação, livre já das impertinências
e infantis rabugices, que tivera antes da febre. Voltara à sua habitual gravidade,
às suas maneiras austeras de fidalga enferma; mas começou a sentir-se vagamente
magoada nos melindres do seu pudor: queria parecer-lhe adivinhava que, durante
a inconsciência da sua anestesia, o insolente do médico a devassara toda;
sentia ainda nos lugares mais vergonhosos do corpo a impressão de mãos estranhas
que os apalparam e comprimiram. E a idéia de que alguém a vira descomposta
e que lhe tocara nas carnes, revoltou-a como imperdoável ultraje feita à sua
honra e ao seu orgulho de mulher pura. Todavia não se achava com coragem de
interrogar ninguém a esse respeito, e, foi tal o seu vexame, que a infeliz
escondeu-se no quarto, a chorar de acanhamento e raiva.

— Oh! exclamou o doutor, enquanto o Conselheiro lhe deu conta disto:
— Eu punha-a esperta e sã em pouco tempo, se me dessem carta branca
para isso! A questão dependia toda do enfermeiro que lhe arranjasse! Aquelas
lamúrias e aquelas lágrimas ir-se-iam logo embora com a primeira semana de
lua de mel!

No entanto, Magdá continuava a sofrer: a tosse não a deixava senão quando
ela se recolhia à cama; deitada não tossia nunca, mas, em compensação, aparecia-lhe
uma espécie de asma. Agora, uma das suas manias era pôr-se à janela do quarto
e aí permanecer horas e horas esquecidas, a ver o serviço da pedreira que
ficava defronte, olhando muito entretida para os cavoqueiros, e ouvindo a
toada que eles gemem quando estão minando a rocha para lhe tocar fogo. Parecia
gostar de ver os trabalhadores; como se lhe aprazia aquela rica exibição de
músculos tesos que saltavam com o peso do macete e do furão de ferro, e daqueles
corpos nus e suados, que reluziam ao sol como se fossem de bronze polido.

E, quando alguém ia chamá-la para a mesa ou para conversar com o pai, respondia
zangada, sem tirar os olhos da pedreira:

— Não posso ir! Deixem-me!

E se insistiam: — Ó senhores, que maçada! Não posso ir, já disse! Estou
doente! Oh!

Depois do ataque de letargia, foram voltando pouco a pouco s esquisitices
de gênio e os caprichos de crianças estragadas com mimos; quase nunca se desprendia
do quarto e, nas poucas vezes que lhe surgia por lá alguma camarada dos bons
tempos, por tal modo se mostrava seca e até grosseira, que a amiga tratava
de abreviar a visita e saía sem a menor intenção de voltar.

Nem mesmo a própria criada queria já suportá-la, apesar de muito bem paga.
“Pois não! Era uma impertinência todo dia! um rapelão por dá cá aquela palha!
— Se a gente não ia logo correndo saber o que serrazina queria quando
chamava — tome sarabanda! — Oh! Insuportável! Uma verdadeira fúria!
De mais a mais a “barata velha” ultimamente também dera para ficar pior, e
havia quase duas semanas que se não desgrudava da cama nem à mão de Deus Padre!”

Pobre velha! Consumia-se numa infernal complicação de moléstias; eram intestinos,
era cabeça, eram pernas, era o diabo! Parecia uma decomposição em vida: fedia
como coisa podre! Já se não alimentava pela boca; os seus gemidos eram arrotos
de ovo choco, e os humores que ela expelia por toda a parte do corpo empesteavam
a casa inteira.

— Essa não tem mais que esperar! declarou bem alto o Dr. Lobão, olhando-a
desdenhosamente por cima dos óculos, como se a mísera fosse já um defunto
e não pudera ouvir-lhe a desumana profecia. — Está despachada! A consumpção
deu-lhe cabo do canastro!

Metia dó. Veio uma velhinha, sua camarada de muitos anos, ajudá-la a morrer,
e consigo trouxe duas escravas, especialistas em servir a enfermos desenganados,
porque a senhora tinha mania de acompanhar os últimos instantes de todas as
amigas que se iam antes dela. A casa parecia um hospital: sentia-se cheiro
de enfermaria e andavam todos sarapantados, cheios de terror pela morte; de
manhã à noite faziam-se rezas em torno do doente. O Conselheiro quis que a
filha se afastasse daquele espetáculo e fosse passar algum tempo em outra
parte; Magdá opôs-se de pé firme e deixou-se ficar ao lado da tia, rezando
com tamanho empenho que fazia crer que só com seus esforços contava para salvar-lhe
a alma.

O médico dissera a verdade: quatro dias depois da sentença lavrada por ele,
D. Camila pediu um padre, muito aflita. Era já a morte que pegava de agoniá-la.

Correu-se a chamar Nosso-Pai.

Não veio logo; e a moribunda, como quem está com o pé no estribo para uma
longa viagem e arrisca a partir sem levar um objeto que lhe há de fazer muita
falta em caminho, remexia inquieta a cabeça sobre os travesseiros, lançando
contínuos olhares de impaciência para a porta do quarto.

O Viático demorava-se.

O Conselheiro ia de vez em quando até a janela de uma das salas que davam
para a rua e passeava ansioso pelo segundo andar.

— Chegou! Disse por fim, retornando ao aposento da irmã.

Houve uma enternecida agitação. Ouviu-se o toque de uma campainha ecoando
nos corredores da casa, e a velha Camila teve um suspiro de alívio. —
Já não partiria sem a sua extrema unção!

O padre entrou com os ajudantes, muito cerimonioso debaixo do pálio, agasalhando
a hóstia consagrada junto ao peito, com os cuidados de quem traz uma vasilha
cheia até as bordas e não quer entorná-la. Fez-se em redor dele e da paciente
respeitoso silêncio; apenas se ouviam, além dos roncos da moribunda, a voz
abafada do sacerdote, que resmungava numa alternativa de sussurros, ora mais
alto, ora mais baixo, sem fazer pausas, como se estivesse contando intermináveis
algarismos.

A cerimônia durou pouco e, quando o religioso se retirou com a sua comitiva,
a velha parecia tranqüila, nem que houvesse tomado um milagroso remédio de
efeito imediato. Magdá, por detrás dos pés da cama, orava, ajoelhada defronte
de uma mesinha coberta por alva toalha de rendas sobre a qual um crucifixo,
entre duas velas de cera que ardiam com pequenos estalinhos secos; tinha os
olhos muito abertos e postos sobre a imagem do Crucificado, transbordando
lágrimas que lhe rolavam silenciosas pela face; as mãos cruzadas sobre o peito
numa postura de êxtases. O Conselheiro puxou uma cadeira para junto do leito
da irmã e assentou-se, colocando a sua mão direita por debaixo do úmido crânio
da agonizante; esta começou a agitar-se de novo nos travesseiros. Então, a
velhinha amiga dela ajoelhou-se do lado oposto e obrigou-a a segurar nos dedos
já sem vida uma das velas, que acabava de tirar de cima da mesa, e pôs-se
a rezar em voz baixa. Camila rouquejava gemidos que iam se transformando num
pigarro contínuo; as suas pupilas estavam já imóveis e veladas; escolhia-lhe
das ventas e da boca aberta, como um buraco feito na cara, uma grossa mucosidade
esverdinhada e fedentinosa. Assim levou algum tempo, arquejando; até que afinal
a respiração lhe foi aos poucos amortecendo na garganta, e até que os olhos
espremeram a última lágrima e os pulmões sopraram o derradeiro fôlego.

Nessa ocasião, Magdá acabava de levantar-se e marcava compassos de música
com o dedo sobre a mesinha, dançando com o corpo de um para o outro lado,
numa cadência inalterável, em tirar a ponta dos pés do mesmo lugar e movendo
os calcanhares suspensos do chão.

— Um! dois! — Um! dois! — Um! dois!

Era um novo ataque de coréia.

VIII

Com a morte da velha Camila, despedira-se da casa a mulher que estava ao
serviço de Magdá e fora substituí-la uma rapariga ali mesmo da vizinhança.

— Justina, uma sua criada, para a servir.

Portuguesa, das ilhas, forte, rechonchuda e muito amiga de conversar. Teria
trinta anos, era viúva, com três filhos: o mais velho já encaminhado numa
oficina de encadernador; o imediato morando com a madrinha em Belém, e o mais
novo, que ainda mal se agüentava nas pernas, acompanhava para onde ela ia.

— Não! que isto de crianças, quando estão pequenas, as mães devem aturá-las!
como não?

Diziam que fora sempre mulher de bons costumes, e com efeito parecia, ao
menos pela cara. Muito risonha, corada, dentes claros e olhos castanhos, um
pouco recaídos para o lado de fora com uma natural expressão de lástima, que
aliás não perturbava em nada a alegre vivacidade da sua fisionomia. Tinha
papadas, e fazia roscas no cachaço; uma penugem de fruta na polpa do queixo
e dois pincéis de aquarelas nos cantos da boca. Quando andava tremiam-lhe
os quadris como imensos limões de cheiro feitos de borracha.

Logo às primeiras palavras que ela trocou com Magdá mostrou-lhe simpatia.
É que era justamente uma dessas criaturas vindas ao mundo para cuidar de doentes;
naturezas que só amam deveras àquelas a quem devem muitas canseiras; que só
amam depois de grandes sacrifícios; depois de muita noite perdida e muito
sono interrompido. Nascera enfermeira, nascera para os fracos; gostava de
encarregar-se de crianças e, quanto mais achacadinhas fossem estas tanto melhor.
Os raquíticos, os aleijados, eram gente da sua predileção. Com o leite do
seu último pequeno criara um fedelho, que estava morre-não-morre quando lhe
foi parar às mãos; pois ela, depois de salvar-lhe a vida, a custo de longos
meses de desvelo sem descanso, tomou-lhe tal carinho que o queria mais do
que ao próprio filho, um maroto este, forte e sadio como um bezerro. “Um coisinha
ruim! afirmava sorrindo.— Não há mal que lhe entre! Nunca vi! —
nem chora, o brutinho, Deus me perdoe!”

Magdá quis saber onde é que ela estivera até então empregada; qual a casa
donde vinha.

— Em parte alguma, não senhora. Morava com a tia Zefa ali mesmo defronte,
naquela casinha de duas janelas com entrada pela estalagem.

— Que gente vem a ser essa?

— A tia Zefa é filha da velha Custódia; lavadeiras, como não? Vem já
de trás estas amizades! Nós, por bem dizer, fomos criados pela tia Zefa; foi
de lá que eu saí para casar, e minha mana, a Rosinha, vosmecê não conhece,
essa ainda mora com ela.

— Ah! tem uma irmã…

— Então! Muito mais nova do que eu. Solteira, mas já tem o seu noivo.
Não é por ser minha irmã, porém é uma rapariga que se pode ver! O Luiz…

— Bem, bem! Você então traz um filho em sua companhia!

— Ora coitado! Não há de incomodar… E, se se fizer tolo, carrego-o
logo lá p’ra defronte, que a velha é perdida por ele. Se o é! Dá-lhe
um tudo! Não viu vosmecê aquele chapeuzinho de pluma com que ele veio ontem?
Pois quem foi que o deu? Foi ela!

E riu-se toda.

— Bem, bem, trate de ir buscar o que é seu e tome conta desse quarto
aí ao pé, porque, não sei se sabe, você tem de fazer-me companhia à noite.
Ando muito doente e às vezes é preciso que me dêem o remédio, compreende?

— Como não, minh’alma? Pode vosmecê ficar descansada por esse
lado, que esta que aqui está não lhe dará razões de queixa!

E já parecia radiante com aquela expectativa de ter uma enferma à sua guarda.
Uma enferma nas condições da filha do Conselheiro era o seu ideal. E, por
cima de tudo, “bom ordenado, comida com fartura, seu copo de vinho ao jantar
e daí até, quem sabe? talvez seu vestidinho de vez em quando…”

— Não há dúvida, foi um bom achado!

Um achado! Ela é que foi um bom achado para Magdá. Esta nunca houvera tido
criada tão alegre, tão amorosa e tão diligente no serviço..

Além do que: muito sã, muito limpa e muito séria. Perto daquela figura socada,
de carne esperta e luzente, a pobre senhora ainda parecia mais magra e mais
pálida; gostava, porém, de senti-la ao seu lado, aquecer-se naquele calor
de saúde, parasitar um pouco daquele húmus ressumbrante de seiva, sorver aquela
forte exalação sanguínea de fêmea refeita e bem adubada.

Nunca entravam em confidências e palestras, que a orgulhosa filha do Conselheiro
não dava para essas coisas; mas a mesquinha enferma gostava de deitar-se sobre
um tapete no chão, defronte da janela do quarto, a aí ficar, cismando nos
seus tédios, com a cabeça pousada no morno e carnudo regaço da criada. Às
vezes adormecia assim e então abraçava-se com ela e enterrava o rosto entre
as almofadas dos seus peitos, respirando com um regalo inconsciente de criança
que já não mama, mas ainda gosta de sentir ao pegar no sono a calentura do
colo materno.

Em breve, a Justina era tão indispensável para Magdá, quanto uma ama a um
orfãozinho recém-nascido. A infeliz moça passava assim muito melhor; conseguia
ficar com algumas coisas no estômago e tinha certa regularidade no sono. Um
dia, em que a rapariga lhe pediu licença para ir a Belém ver o filhinho que
estava à morte, ela quase teve um ataque, tal foi a sua contrariedade.

— É por pouco tempo… esclareceu aquela — Eu volto logo. Três
ou quatro, quando muito; de mais deixo uma outra no meu lugar…

Foi, sempre foi, mas à senhora tanto custou a sua ausência que jurou nunca
mais consentir que de novo se separassem. Ficou nervosa e impertinente que
causava pena. Veio-lhe outra vez a mania das rezas, voltaram-lhe os monólogos
à meia voz e os sobressaltos sem causa aparente.

— Maldito pequeno! lembrar-se de cair doente! e logo agora!

A Justina demorou-se mais do que contava. Uma semana depois da sua partida
Magdá, que não havia comparecido ao almoço, fez voltar o lanche das duas da
tarde, que o pai lhe mandara levar ao quarto.

— Não me aborreça! Gritou ela à substituta da Justina; uma sujeita
alta, ossuda, de nariz comprido e mal encarada. Cheirava a morrinha de cachorro,
Magdá não a podia ver.

— Saia daqui! Não ouviu?

A mulher observou com a sua voz grossa e compassada:

— O senhor disse para a senhora não deixar de tomar ao menos o caldo,
que foi temperado por ele.

— Papai que me deixe em paz! Ponha-se lá fora! Ponha-se lá fora!

A criada saiu, tesa que nem um granadeiro, a resmungar com a bandeja nas
mãos; e Magdá fechou a porta sobre ela, com estrondoso ímpeto, atirando-se
depois no divã e sacudindo a cabeça como se estivesse sufocada.

— Que gente, meu Deus! Que gente!

E levou uma boa hora a fitar um só ponto, com os olhos apertados e as sobrancelhas
franzidas e mais retorcidas que um recamo japonês. Ergueu-se afinal, inteiriçada
num espreguiçamento suspirado e longo, deu em seguida alguns passos indolentes
pela alcova, tomou um resto de leite frio que havia numa xícara sobre a mesa,
e encaminhou-se sonambulamente para a janela. Aí encostou o rosto entre os
dois varões da grade e segurou-se com as mãos nos outros que ficavam mais
próximos.

— Ah!… respirou, igual ao cego que obtém, depois de grandes esforços,
chegar ao ponto que deseja. E olhou à toa para os fundos do céu que se estendiam
lá por detrás do horizonte. E seu olhar errou pelo espaço, perdido como andorinha
doida a que roubassem o ninho, percorrendo inquieta e tonta, de um só vôo,
léguas e léguas de azul, até ir afinal cair prostrada, de asas bambas, no
cimo da pedreira que lhe enfrontava com a janela.

Prendeu-lhe toda a atenção o que se passava ali; os trabalhadores suspendiam
por instante o serviço, alvoroçados com a chegada de uma raparigona que lhes
levava o jantar. Que alegria! A cachopa era sem dúvida mulher de um deles,
o mais alto e mais barbado, porque ela, mal soltou no chão o cesto de comida,
lhe arrumou uma carícia de gado grosso um murro nos rins, e retraiu-se logo,
a rir, toda arrepiada, esperando que o macho correspondesse. Este cascalhou
uma risada de gozo alvar e ferrou-lhe na anca a sua mão bruta de cavoqueiro,
tão escrostada e escamosa, que se não podia abrir de todo. Depois; acercaram-se
de um pedaço de pedra, em que a mulher foi depondo o que trouxera na cesta;
e de cócoras, ao lado uns dos outros, puseram-se todos a comer sofregamente,
no meio de muito rir e palavrear de boca cheia.

Magdá, sem conseguir escutar o que eles tanto conversavam, não lhes tirava
os olhos de cima, profundamente entretida em ver aquilo. E, coisa estranha,
em tal momento daria de bom grado os melhores diamantes que possuía para ter
ali um pouco do que eles comiam lá no alto da pedreira com tamanha vontade.
Ela, que já não podia sofrer os imaginosos acepipes da mesa de seu pai, sentia
vir-lhe água à boca pela comida dos trabalhadores, e até parece incrível,
tinhas desejos de beber da mesma garrafa em que eles bebiam pelo gargalo,
fazendo questão para que nenhum lograsse ao outro.

No dia seguinte, justamente àquelas horas, apresentou-se ao pai, já vestida
e pronta para sair.

— Bravo! Exclamou o Conselheiro, surpreendido pela novidade —
Bravo! muito bem!

E marcou apressado a página do livro que estava lendo e, como se temesse
que a filha mudasse de resolução, correu logo a buscar o chapéu e a bengala.
“Ora até que enfim aquela preguiçosa se resolvia a passear!”

Quando se achavam na rua, Magdá foi tomando a direção da pedreira; o pai
acompanhou-a sem proferir palavra. Só pararam lá perto.

O morro, com as suas entranhas já muito à mostra, arrojava-se para o céu,
como um gigante de pedra violentado pela dor; via-se-lhe o âmago cinzento
reverberar à luz do sol, que parecia estar doendo. E enormes avalanches de
granito, ruídas e arremessadas pela explosão da pólvora, acavalavam-se em
ciam à base da rocha, lembrando estranha cachoeira que houvera-se petrificado
de súbito. Cá em baixo, daqui e dali, ouviam-se retinir ainda o picão e o
macete, e lá no alto, no escalavrado cume do penhasco, quatro homens, agarrados
com todos os dedos a um imenso furão de ferro, abriam penosamente uma nova
mina no granito, gemendo em tom monótono e arrastando uma toada lúgubre.

De cada vez que eles suspendiam a formidável barra de ferro para deixarem-na
cair novamente dentro do furo, recomeçava o choro lamentoso que, de tão triste,
parecia uma súplica religiosa.

— Vamos lá?… propôs Magdá ao pai, depois de admirar de perto aquele
monstro que ela contemplava todos os dias da janela gradeada do seu quarto.

— Onde, minha filha?… perguntou o Conselheiro, sem ânimo de acreditar
no que ouvia.

— Lá em cima, onde aqueles homens estão brocando a pedra. Quero ver
aquilo.

— Estás sonhando, ou me supões tão louco que consinta em tal temeridade?
Esta pedreira é muito alta!

— Não faz mal…

— Sentirás vertigens antes de chegar ao fim!

— Mas eu quero ir!

— Deixa-te disso.

— Ora que me hão de contrariar em tudo!

— É que é uma imprudência sem nome o que desejas fazer, minha filha!

Já amuada, soltou-se do braço do pai e correu para os lados por onde se subia
à montanha.

— Espera aí! gritou o velho tentando alcançá-la! espera aí, caprichosa!
Eu te acompanho!

A caprichosa havia galgado o primeiro lance de pedra.

A subida foi penosa.

Ah! o caminho era muito estreito, irregular e coberto de calhaus. O pé às
vezes não encontrava resistência, porque o cascalho rodava debaixo dele.

Mas subiam. Magdá, sem querer dar parte de fraca, segurava-se arquejante
ao braço do pai; este mesmo, porém, sabe Deus com que heroísmo conseguia não
perder o equilíbrio.

— Vamos adiante! Vamos adiante! Dizia ela, quase sem fôlego.

— Descansemos um pouco, minha filha.

Não, ela não descansaria, enquanto não alcançasse o morro. Felizmente o caminho
em cima era quase plano e com pequeno esforço chegava-se daí ao lugar onde
trabalhavam os quatro homens. Mais um arranco, e lá estariam.

Afinal conseguiram chegar. Mas, ah! quando a pobre Magdá, toda trêmula e
exausta de forças, já no tope da pedreira, defrontou com o pavoroso abismo
debaixo de seus pés, soltou um grito rápido, fechou os olhos, e teria caído
para trás, se o Conselheiro não lhe acode tão a tempo.

— Magdá, minha filha! Então! então!

Ela não respondeu.

— Está aí! está aí o que eu receava! Lembrar-se do subir a estas alturas!…
E agora a volta…?

— Pode voscência ficar tranqüilo por esse lado, arriscou um dos cavoqueiros,
que se havia aproximado, a coçar a cabeça. — Se voscência quiser, eu
cá estou para por esta senhora lá em baixo, sem que lhe aconteça a ela a menor
lástima.

— Ainda bem! respondeu S. Ex. com um suspiro de desabafo.

O trabalhador que se ofereceu para conduzir Magdá era um mocó de vinte e
tantos anos, vigoroso e belo de força. Estava nu da cintura para cima e a
riqueza dos seus músculos, bronzeados pelo sol, patenteava-se livremente com
uma independência de estátua. Os cabelos, empastados de suor e pó de pedra,
caíram-lhe sobre a testa e sobre o pescoço, dando-lhe uma satírica feição
de sensualidade ingênua.

— Vamos! Vamos! Apressou o Conselheiro, entregando-lhe a filha.

O rapaz passou um dos braços na cintura de Magdá e com o outro a suspendeu
de mansinho pelas curvas dos joelhos, chamando-a toda contra o seu largo peito
nu. Ela soltou um longo suspiro e, na inconsciência da síncope, deixou pender
molemente a cabeça sobre o ombro do cavoqueiro. E, seguidos de perto pelo
velho, lá se foram os dois, abraçados, descendo, pé ante pé, a íngreme irregularidade
do caminho.

Era preciso toda atenção e muito cuidado para não rolarem juntos; o moço
fazia prodígios de agilidade e de força para se equilibrar com Magdá nos braços.
De vez em quando, nos solavancos mais fortes, o pálido e frio rosto da filha
do Conselheiro roçava na cara esfogueada do trabalhador e tingia-se logo em
cor de rosa, como se lhe houvera roubado das faces uma gota daquele sangue
vermelho e quente. Ela afinal teve um dobrado respirar de quem acorda, e entreabriu
com volúpia os olhos. Não perguntou onde estava, nem indagou quem a conduzia;
apenas esticou nervosamente os músculos num espreguiçamento de gozo e estreitou-se
em seguida ao peito do rapaz, unindo-se bem contra ele, cingindo-lhe os braços
em volta do pescoço com a avidez de quem se apega nos travesseiros aquecidos
para continuar um sono gostoso e reparador. E caiu depois num fundo entorpecimento,
bambeando as pálpebras; os olhos em branco, as narinas e os seios ofegantes;
os lábios secos e despregados, mostrando a brancura dos dentes. Achava-se
muito bem no tépido aconchego daquele corpo de homem; toda ela se penetrava
do calor vivificante que vinha dele; toda ela aspirava, até pelos poros, a
vida forte daquela vigorosa e boa carnadura, criada ao ar livre e quotidianamente
enriquecida pelo trabalho braçal e pelo pródigo sol americano. Aquele calor
de carne sã era uma esmola atirada à fome do seu miserável sangue.

E Magdá, sentindo no rosto o resfolegar ardente e acelerado do cavoqueiro,
e nas carnes macias da garganta o roçagar das barbas dele, ásperas e mal tratadas,
gemia e suspirava baixinho como se estivesse a acarinhá-la depois de longa
e assanhada pugna de amor.

Quando o moço, já em baixo, a depôs num banco de pedra que ali havia, a enferma
abriu de todo os olhos, deixou escapar um grito e cobriu logo o rosto com
as mãos. Agora não podia encarar com aquele homem de corpo nu que ali estava
de fronte dela, a tirar com os punhos o suor que lhe escorria em bagas pela
testa.

Chorou de pejo.

O seu pudor e o seu orgulho revoltaram-se, sem que ela soubesse determinar
a razão porque. Uma cólera repentina, um sôfrego desejo de vingança, enchiam-lhe
a garganta com um novelo de soluços. O pranto parecia sufocá-la quando rebentou.

— Eu maguei-a, ó patroazinha?… perguntou o trabalhador, com humildade,
quase sem poder vencer ainda o cansaço. E o imprudente tocou com a mão no
ombro de Magdá, procurando, coitado, dar-lhe a perceber o quanto estava consumido
por vê-la chorar daquele modo. Ela estremeceu toda e fugiu com o corpo, nem
que se houvessem chegado um ferro em brasa; e abraçou-se ao pai, escondendo
no peito deste os soluços que agora borbotavam sem intermitência.

O pobre cavoqueiro, ainda com o peito para cima e para baixo, quedava-se
a olhar para os dois com uma cara palerma de desgosto. E assim que ele fazia
o menor movimento de corpo, a senhora retraía-se assustada e enterrava mais
a cabeça entre os braços do Conselheiro. Foi preciso que este o afastasse
dali, dizendo-lhe que lhe aparecesse logo mais em casa para receber uma gorjeta.

Mal se pilhou no quarto, Magdá foi estraçalhando as roupas, como se as trouxera
incendiadas; mas sentia também nos seus cabelos, no seu rosto, em toda ela,
o mesmo cheiro de animal suado, o mesmo enjoativo bodum de carne crua. Parecia-lhe
mais — que a sua própria transpiração já tresandava àquele mesmo fartum
do mocó da pedreira.

— Diabo! diabo! diabo!

E os movimentos que fazia par sacar a camisa eram tão violentos, que ela
parecia querer arrancar até a própria pele do corpo.

Um mal querer desnorteado, contra tudo e contra todos, apoderou-se do seu
espírito. Estava furiosa e mais ainda por não saber contra quem e contra o
que.

Não podia queixar-se a ninguém, nem de ninguém, e sentia-se no entanto ofendida,
ultrajada, no seu orgulho e no seu pudor. A vontade que tinha era de mandar
matar no mesmo instante aquele maldito homem — para nunca mais o ver,
para nunca mais o sentir.

Só depois de muito bem lavada e coberta de perfumes, recolheu-se à cama,
ainda estrangulada de raiva. Também, foi só adormecer e começou logo a sonhar
com o amaldiçoado cavoqueiro.

IX

Sonhou com ele a noite inteira; mas que sonhos! E o melhor é que então o
pobre diabo lhe já aparecia não por um prisma repugnante; ao contrário imaginando-se
ao lado daquele corpo robusto, Magdá sentia todo o seu organismo rejubilar
de satisfação; ainda melhor do que quando se aninhava no colo de Justina.
Perto dele gozava, em sonho, um bem-estar de calmo conforto, como o dos tísicos
junto aos bois, na morna atmosfera dos currais.

Tanto o amaldiçoara acordada, quanto o estremecera durante o sonho; este
contudo nem sempre foi agradável e em certas fases até pelas horripilações
do pesadelo.

Começou vendo-se no alto da pedreira, a olhar para o espaço, justamente como
acontecera na realidade; mas a pedreira afigurava-se-lhe agora três ou quatro
vezes maior. De repente, falta-lhe o terreno debaixo dos pés, e ela cai, não
para trás e sim bem de frente — no ar. Nisto, uma garra fortíssima empolga-lhe
as roupas das costas, sustentando-lhe a vertigem da queda, sem todavia impedir
que ela continuasse a resvalar; mas já não cai, desliza suavemente, como se
estivesse voando. Um braço musculoso cinge-lhe as curvas dos joelhos, outro
toma-a pela cintura e o seu colo é recebido em cheio por um largo peito nu,
onde há cabelos que lhe põem cócegas na pele: Magdá ri com as cócegas, e sua
cabeça repousa num táureo pescoço de Hércules, cujo suor lhe umedece as faces.
E, assim abraçados, deslizam voluptuosamente no espaço, descendo numa embriagadora
delícia de vôo contínuo.

O vôo dura um tempo infinito. E ela, como receiando ficar desamparada, trata
de agarrar-se ao outro o melhor que pode. Estreitam-se mais.

E mais.

Há já um princípio de frenesi no modo por que se estreitam. A moça procura
com ânsia unir-se bem ao corpo do cavoqueiro; quer que seus peitos lhe fiquem
bem colados ao peito; quer que os seus braços sintam em toda a extensão a
carne das espáduas do homem; que a sua barriga se ajuste à dele e que as suas
coxas lhe apalpem os rins.

E continuam a descair, a descair, sem para nunca. Magdá sente nas faces uma
impressão desagradável de frio; sela imediatamente o rosto contra o outro
rosto, e deixa-se aquecer, ao calor de beijos. Então os seus olhos desmaiam
de gosto; as suas narinas arfam com mais força, porque ela não pode respirar
pela boca, que está toda tomada pela outra boca. Um arrepio percorre-lhe o
corpo, agitando-o até na mais pequenina fibra; e o seu sangue enlouquece;
e os suspiros quebram-se-lhe na garganta, desfazendo-se em gemidos.

E estreitam-se mais. E unem-se. E confundem no ar os membros enleados e trêmulos.
O cavoqueiro soluça, arqueja; ele já não tem uma só parte de si em que não
o sinta. E, de improviso, um violento sopro de vida a invade toda, esquentando-a
por dentro, penetrando-lhe as vísceras, soprando-lhe nas veias um calor estranho,
alheio, que a ressuscita e faz saltarem-lhe dos olhos lágrimas de gozo.

Terminaram caindo, ainda abraçados, aos pés do Conselheiro, que os esperava
lá em baixo, vestido com uma túnica vermelha e agitando na mão, colericamente,
a sua grossa bengala de cana da Índia. Magdá escondeu o rosto. Mas desta vez
não era o moço da pedreira quem lhe fazia vexame, era o próprio pai; não foi,
pois, o colo deste que ela agora procurou para ocultar o orvalho do seu pudor,
foi o colo do outro.

Houve um duro silêncio, durante o qual S. Ex., cujas barbas haviam crescido
muito, e cuja calva reluzia que nem a de um patriarca da Bíblia, olhava, ora
para a filha, ora para o rapaz, como se estivesse a compará-los.

— Com efeito!…

E sacudia a cabeça, e esticava os beiços, sem desviar a vista. No capricho
do sonho, o pobre Conselheiro tinha perdido as suas maneiras distintas e afáveis,
e até no modo de se exprimir era grosseiro e burguês.

— Com efeito!… repisou ele, estalando um riso de sarcasmo. —
É até onde pode chegar o aviltamento!… Dar-se a um trabalhador da mais baixa
espécie!… É inacreditável!

— A culpa não foi minha, papai…

— Cale-se! Não sei onde estou, que lhe não quebre esta bengala nas
costas!

— Creia, patrão, que… ia arriscar o rapaz.

— Ó tratante! berrou o velho. — Ainda te atreves a abrir o bico?
Ora espera que te ensino!

E cresceu para o moço, que o esperou sem tugir nem mugir, com o aspecto resignado
de uma besta que tem dono. Magdá, porém, já se havia metido entre os dois
e , de joelhos, chorando, abraçava-se às pernas do patriarca.

— Piedade, meu pai! piedade!

— Qual piedade, nem qual carapuças! Não fosse tão assanhada!

— Tenha compaixão de dois infelizes, cuja falta foi só uma e única…

— E acha pouco, sua desavergonhada? Acha talvez que esta não basta
para me fazer subir ao arame! Tem graça!

E, enquanto a filha soluçava, sem erguer os olhos: — Ingrata! Eu a
matar-me para a fazer gente; para lhe ar uma certa educação — e ela
a meter-me os pés! Criar uma filha com tanto carinho, para vê-la depois entregue
a um homem de pedreira!…

— Perdoe, meu pai!

— Não perdôo nada!

— Juro-te que não tenho culpa do que sucedeu…

— Perversa! Eu a sacrificar-me a instruí-la e arranjar-lhe um futuro,
e ela a sujar-se de lama e a cobrir-me de vergonhas!

— Não fui eu, papai, foi a minha natureza; foi a minha carne; foram
os meus sentidos!…

— Qual carne, nem qual sentidos! A patifaria tem sempre desculpas!

Fez uma pausa e prosseguiu depois, comovendo-se, mau grado seu: — Dei-lhe
tudo o que se podia desejar! Foi já o professor de piano; foi já o professor
de canto; foi já o mestre de desenho! E venha o explicador de francês! E venha
outro para história e geografia pátria! E outro para isto! E outro para aquilo!
E compre-se mais este dicionário! E assine-se mais este jornal! E corra-se
aos Castelões a buscar o camarote do Lírico! E olhe o carro que não esqueça!
E veja essa luva de vinte botões que saia! E venha a bela da jóia! E venha
o belo vestido de seda! E olhe o chapéu à Sarah Bernhardt! E olhe as regatas!
E olhe as corridas! E dêem-se festas todos os meses! E façam-se viagens à
Europa! — E tudo isto afinal p’ra que? — Sim! tudo isto
p’ra que?! Só quero que me digam de que serviu tanto sacrifício!

— Perdoe-me!

— Não! não perdôo, nem devo perdoar! Se queria casar, há muito tempo
que o podia ter feito; o que não lhe faltou foram pretendentes! A senhora
torceu o nariz a todos! E, logo que o Dr. Lobão me fez ver a necessidade urgente
de uni-la a alguém, trouxe-lhe o meu amigo José Furtado!

— Um velho!

— Não será uma criança, mas também não é nenhum bisavô! Outra qualquer
a teria agarrado com unhas e dentes! Um homem de conta, peso e medida!

— Pudera! Principiou a vida a limpar pesos e balanças!

— E que tem isso? Um homem honrado, trabalhador e econômico. Entrou
na vida com um barril nas costas, mas hoje é uma das mais sólidas fortunas
do Rio de Janeiro!

— Não é de dinheiro que eu preciso!

— Pois então casasse com o Dr. Tolentino…

— Um defunto!

— Defunto! Não terá uma saúde perfeita, coitado, mas é uma das mais
bem constituídas cabeças do Brasil. Muito talentoso, muito ilustrado! Membro
da Sociedade de Geografia de Lisboa, e consta até que vai receber diploma
de sócio não sei que importante congregação científica da Bélgica!

— Também não é de ciência que eu preciso!

— Nesse caso, porque não aceitou o Conde do Valado?

— Um libertino!

— Não é tanto assim.

— Um vicioso comum que, se deixa de falar um instante em cavalos, é
para discutir cocotes.

— Que exagero! Não direi que os seus costumes sejam tão puros como
os do comendador José Furtado ou como os do Dr. Tolentino, mas é um mocó ilustre,
descendente em linha reta de uma das mais importantes casas de Portugal. Seus
avós figuraram todos na história e o seu nome tornaria fidalga a mulher que
o possuísse!

— Eu não preciso de nobreza!

— Não precisas de nobreza; não precisas de ciências; não precisas de
dinheiro! Então de que diabo precisas tu?

— De um homem…

— Um homem! Quanta desfaçatez! De que precisavas, grandíssima desavergonhada,
era de uma boa carga de pau, para te apagar o fogo do rabo!

E o velho, possuindo-se de novo acesso de cólera, estendeu o braço, enxotando
a filha e mais o moço da pedreira.

— Já! Rua seus bandalhos! E que eu nunca mais lhes ponha a vista em
cima! Estão amaldiçoados!

— Meu pai! meu pai!

— Aqui já não há pai, nem mãe! Não sou pai de mulheres à-toa! Ponham-se
a andar, e que sejam muito felizes! Boa viagem!

— Deixe-me ao menos ir lá dentro buscar as minhas jóias, um pouco de
roupa e os meus livros…

— Jóias, roupas, livros! para que? A senhora já não tem tudo quanto
deseja, para que mais?… As boas roupas fizeram-se para os nobres, as jóias
para os ricos e os livros para os sábios! A senhora nada tem que ver com esta
gente e com estas coisas! Só queria “um homem”, pois já o tem! É andar! Ele
que lhe compre jóias; que se encarregue de vesti-la, de sustentá-la e de consolá-la.
Tem obrigação disso; e, se não dispõe de meios, invente-os — trabalhe!
Se não puder tratá-la a bicos de rouxinol, comam feijão com carne seca, que
a senhora tem obrigação de contentar-se com o que ele lhe der! É o “seu homem”
e, por conseguinte, é quem de hoje em diante a governa com direito de vida
e de morte! Acompanhe-o submissa para onde ele for, seja para o inferno ou
seja para o paraíso! A partir desse momento— o seu destino é o dele!
E deixem-me!

— Meu pai!

— Foi tempo! Nada mais há de comum entre nós! Para continuar a ser
seu pai, seria preciso que eu me fizesse pai também daquele pedaço d’asno;
e eu não quero ter filhos de tal espécie!

E S. Ex,. notando que Magdá não se resolvia a largar-lhe as pernas e continuava
a chorar, ordenou, voltando-se para o cavoqueiro:— Olá, seu coisa! Tome
conta dessa mulher! É sua! Pode levá-la para onde bem entender!

— Ah! exclamou a filha, caindo por terra, de borco, com os braços estendidos
no chão, enquanto o velho, arrepanhando a sua túnica da cor simpática às histéricas,
se afastava para casa, muito fresquinho e senhor de si, assoviando, de cabeça
impertigada, nem como se a coisa tivera sido com ele.

Magdá permanecia de bruços, a soluçar. Então o mocó da pedreira inclinou-se
sobre ela e deu-lhe com toda delicadeza u ósculo nos cabelos. Depois tomou-a
ao colo e pôs-se a caminhar, vagarosamente, muito vagarosamente, na direção
da fatal montanha onde ele trabalhava. E toda a natureza, que parecia haver
entristecido e tomado luto com a maldição do velho, começou a reanimar-se,
a rir de novo, tingindo-se de luz purpúrea e entoando em voz baixa epitalâmeos
sensuais. E os dois, abraçados, formando um só grupo, lentamente penetraram
numa deliciosa alameda de laranjeiras, cujos galhos se vergavam na sua passagem
para lhes beijar a fronte, derramando-lhes sobre a cabeça uma odorífera chuva
de flores desfolhadas. E do céu baixava doce harmonia religiosa, que parecia
balbuciada por uma nuvem de anjos.

Nisto — despertou.

Circunscreveu o olhar em torno de si, reconhecendo a custo a própria alcova.
O seu pequeno relógio Luiz XV, de bronze dourado, marcava, no mostrador de
porcelana de Sèvres esmaltada, meia hora depois do meio-dia. Uma cortina cinzenta,
de seda de Leão, quebrava na janela a luz que batia de fora, e dava ao quarto
o tom opalino de um crepúsculo de inverno. Magdá suspirou, espreguiçando-se.
O drama fantástico de toda aquela noite dissolveu-se: teatro e personagens
desapareceram. Mal ouvia-se, ainda, bem distintamente, o tal coro religioso
que baixara dos céus para solenizar a sua passagem na encantada alameda; a
moça soergueu-se no leito, concheando a mão no ouvido que ficava do lado da
janela e, meio maravilhada, pôs-se a escutar com atenção aquela tristonha
cantilena que persistia ali, na vida real, como um prolongamento do sonho.

Caiu logo em si: era a toada melancólica dos trabalhadores que minavam a
pedreira. E ali deixou-se tombar de novo sobre os travesseiros e aí permaneceu,
com os olhos muito quietos, enquanto duas lágrimas lhe serpeavam ao comprido
das faces.

Oh! Sentia-se profundamente envergonhada do que sonhara a noite inteira.

— Minha’alma, rosnou a nova criada, afastando o reposteiro da
porta com a cabeça — o senhor mandou perguntar como vosmecê passou de
ontem p’ra hoje.— Diga-lhe que pode vir daqui a pouco, e você
volte já para me vestir.

Quando se achou preparada, foi esperar o pai na sal contígua à sua alcova.

— Então, minha filha, como passaste a noite.

— Bem, respondeu ela, beijando-lhe a mão.

— Dormiste?

— Bastante.

— Pareces-me, no entanto, fatigada… Como te sentes hoje de humor!
— No mesmo.

— Aquela loucura de ontem…

Magdá estremeceu e abaixou as pálpebras. Dir-se-ia que o pai lhe lançava
no rosto uma falta humilhante.

— Ficaste tão apreensiva com a tal subida da pedreira que…

— É melhor não falarmos mais nisso…

E tomou as mãos do Conselheiro, fazendo-o chegar-se para bem junto dela.
E, depois de contemplá-lo em silêncio com um meio sorriso, abraçou-o, demoradamente,
como se procurasse ficar convencida por uma vez de que aquelas tolices do
sonho não tinham o menor fundamento, e que seu pai, o seu extremoso pai, a
quem tanto queria do fundo do coração, ainda ali estava a seu lado, para amá-la
como sempre e protegê-la contra o maldito intruso que habitava dentro dela
e que a consumia para alimentar-se.

— O senhor é muito meu amigo, não é verdade, papai?…

— Ora, que pergunta, minha filha!

— Diga!…

— Pois ainda não tens certeza disso?

— E o senhor seria capaz de abandonar-me, capaz de desprezar-me, fosse
lá pelo que fosse?

— Mas que lembrança é esta, Magdá? Desprezar-te, eu? Enlouqueceste!

— Ama-me muito, não é verdade? Por coisa alguma desta vida seria capaz
de enxotar-me da sua companhia, não é assim? Responda.

— Deixa de criancices, minha flor, e olha! — toma o teu chocolate
que ali está esfriando há meia hora. Mas que é isto?… Choras?… Então!
então! Que tu sentes, Magdá? Fala, meu amor.

Ela começou a soluçar.

— Nada! nada! nervoso! Acordei hoje muito nervosa!

— Mas não te aflijas deste modo. Vamos — toma o teu chocolate
e desce comigo ao jardim. Anda! Vê se consegues não pensar em coisas que te
façam mal… Não sejas crianças…

O Conselheiro, à força de carinhos, conseguiu que ela tomasse, além de meia
chavena de chocolate, uma colherada do xarope de Esston, que o Dr. Lobão havia
receitado.

A arrastou-a para a chácara.

Mas, pobre senhora! mal acabava de descer a escada do jardim, deu logo, cara
a cara com o moço da pedreira, que ia buscar a espórtula prometida pelo Conselheiro.—
Ah! exclamou toda trêmula, corando e abaixando as pálpebras. E tratou de abraçar-se
ao pai e esconder a cabeça no colo deste, como na véspera, depois da síncope.

O bom velho não pode compreender o que era aquilo.

— Tens alguma coisa? perguntou. — Sentes alguma novidade? Fala.

— Voltemos para cima! Voltemos para cima! Dizia a moça, aflita, sem
mostrar o rosto.

O trabalhador, muito rendido, continuava defronte deles, com os olhos em
terra, a torcer vexadíssimo entre as mãos e o seu seboso casquete de pele
de lebre.

— Ó patrão, se quer, eu apareço noutra ocasião…

— Sim, sim, é melhor, volveu o Conselheiro, muito ocupado com Magdá.

— Não! acudiu esta, sempre com o rosto escondido. — Despache-o
de uma vez! Para que fazer este homem voltar ainda aqui?

Ao perceber uma pequena parte destas palavras, o cavoqueiro fez uma careta
que tanto podia ser de surpresa como de lástima, e resmungou meio sentido:

— Voscência queira desculpar, mas eu, se aqui vim, foi porque me disseram
p’ra vir… Tinha que com isso não ofendia pessoa alguma… mas, a vista
de que ando mal, peço desculpa e o mais que posso fazer — é não tornar
cá!

— Não! opôs S. Ex. — Espere um instante. E, passando o braço
pela cintura da filha, segredou ao ouvido desta: — Vamos, vamos lá para
cima. Creio que hoje não estás boa…

X

O cavoqueiro ficou a esperar no jardim, encostado p’r’ali numa
árvore, e a fazer de lá suas considerações.

— Que macacos o lambesse se entendia aquela gente! A tal dos “me deixes”
ficara a modos que assanhada quando ele lhe pôs as vistas em riba! Pois estava
que não havia razão de zangar, antes pelo contrário — havia p’r’agradecer:
Sim! Prestara-lhe um serviço; que não era lá nenhum grande serviço; mas enfim,
que diabo, na ocasião, ela não tinha quem a pusesse cá em baixo!

Tecia este raciocínio quando sentiu no ombro uma palmada de mão polpuda.

— Estás a cismar, ó Luiz!

— Olá, S’óra Justina! Bons olhos a vejam! Como chegou vosmecê?

Ela chegara bem, graças a Deus.

— E o pequeno? Como ficou?

— Ora! Pronto p’ra outra!

— Vosmecê está chegando agora!

— Não. Já estive lá na estalagem com a tua gente. Estão muito apertadas
de serviço com a roupa de uma família que embarca depois d’amanhã. E
tu! Não foste hoje ao trabalho?

— Já se vê que sim, Pus o casaco para vir aqui, mas volto.

— Isto é novidade…

— Não é nada, é que ontem a senhora aí de cima…

— Minh’ama…

— Deve ser — foi passear lá na pedreira e…

— Ah! Ela subiu à pedreira…?

— Subiu, mas caiu, logo com um faniquito: eu carreguei-a cá p’ra
baixo… Vai então o pai — disse-me que lhe aparecesse para me dar ma
gorjeta, e eu vim. Ora aí tem vosmecê!

— ‘Sta direito. Já falaste?

— Já, mas não entendo esta gente. Se a S’ora Justina chega um
bocadinho antes, havia de presenciar o mais bonito!

— Qu’houve?

— Pois a moça não fez aqui umas partes?…

— Que foi, Luiz?

— Pois não! Vinha descendo muito bem a escada e assim que me bispou
– zás!

— Zás — como?

— Abriu a chorar que nem uma criança, e agora o verás.

— Coitada! Eu sei — é moléstia!

E a Justina comoveu-se. Sempre que lhe tocavam na ama, apertava mais as sobrancelhas
e ficava com uma cara de profunda lástima.

— Arrenego de tal moléstia! replicou o trabalhador. — Uma coisa
dá para espantos, nem que a gente fosse alma do outro mundo! Olhe que se o
pai não me dissesse para esperar aqui, juro-lhe que já cá não estava! Diabo
de uma esganiçada, que parece que está parte não parte pelo meio! Ontem, quando
a trouxe, tive medo de chegar cá embaixo com um pedaço em cada mão!

— Não sejas má língua, Luiz! Não seria a primeira vez que perdesses
por falar de mais! Se não fosse semelhante balda, estarias a esta hora casado
já com a Rosinha…

— Ora, sua mana mesmo foi que teve a culpa! Ela gosta mais de falar
do que eu!

— Como teve a culpa, se tu és que andavas todo o santo dia a debicar
o Comendador? Pois não dizias a todo mundo que ele era um sapo-boi e não o
arremedavas lá na estalagem para quem queria ver?… A caçoada chegou aos
ouvidos do homem, e ele de o dito pelo não dito – não quis mais ajudar o casamento
da afilhada… Fez muito bem! Tu, no caso dele, farias o mesmo! Como não?

— Sim, mas se sua irmã não fosse lá contar o que se fazia na estalagem,
o homem não bufava e teria caído com os cobres para o enxoval!

— Fez de tola!

— Ah! mas deixe estar que o casório há de ser, mesmo sem a ajuda do
sapo velho! O pobre também vive!

A outra era do mesmo parecer: — Como não? que isto de raparigas, a
gente deve despachá-las logo, antes que o demo as tente!

E, vendo que um escravo do Conselheiro descia a escada. — Olha! Aí
vem o negro com a tua gorjeta.

Com efeito, eram dez mil réis que o pai de Magdá mandava ao cavoqueiro.

— Que fico muito obrigado, ouviu? E quando precisar, lá estou às ordens.

O escravo afastou-se.

— Vê lá agora se te metes hoje nalguma bebedeira!… observou Justina,
a bater-lhe no ombro. — E até logo, que ainda não me apresentei à patroa!

Já a certa distância, parou, para gritar:

— Olha! dize à tia Zefa que não me deixe o pequeno socar-se muito de
aipim, que foi isto o que derrubou o outro!

E galgou de carreira a escadaria do Conselheiro, num ativo remeximento de
quadris em evidência.

— Vou comprara um bilhete inteiro! Deliberou consigo Luiz, guardando
a cédula na algibeira.

Luiz era filho da tia Zefa, e morava com esta, mais a avó e mais a Rosinha,
irmã de Justina e noiva dele, na tal casita de duas janelas, com entrada pela
estalagem que ficava em frente da chácara do Sr. Conselheiro. Viera novo para
o Brasil, onde se achava perfeitamente aclimado; não sabia ler nem escrever;
tinha, porém, força e saúde, “que é o principal para quem deseja ganhar a
vida”. O seu casamento estava já para se realizar havia um ano, porque Luiz
queria fazer coisa aceiada. “Não! Que para um homem atrasar a vida, junto
com a da mulher, antes fique solteiro! A pequena que esperasse , que o que
tinha de ser dela às mãos lhe chegaria! Com outra não se casava — isso
é que era dos livros! Ah! se a fortuna se lembrasse dele, já tudo estaria
feito; mas o diabo da sorte andava arisca; todos os vigésimos da loteria,
que ele comprara às ocultas da mãe e da avó, saíram-lhe brancos… Só mesmo
podia contar com o triste peculiozinho do trabalho; o verdadeiro, por conseguinte,
era ir se preparando aos poucos — hoje com uma coisa, amanhã com outra,
conforme desse o cobre e conforme as pechinchas que aparecessem. Seu padrinho
de batismo, um velhote apatacado que emprestava dinheiro a juros, esse prometera
entrar com uma famosa cama de jacarandá, que tinha em casa e da qual não se
servia desde a morte da mulher. Ah! esse não era o Comendador! Muito seguro,
muito apertado, não havia dúvida! mas, também, prometendo, podia a gente contar
com o bruto — a cana era certa! Ora, pois, com o dinheiro que lá estava
na Caixa Econômica, ele teria um fato novo e um arranjo de roupa branca. Vinte
e cinco mi réis seriam para um relógio de prata dourada, dos modernos. —
Isso era sagrado! Porque ele não admitia que ninguém se casasse sem ter relógio
e corrente. Corrente já tinha — cordão de ouro que foi do pai e que
vivia fechado na cômoda da tia Zefa ao lado dos ouros da família.”

E estava a ver defronte dos seus olhos todo aquele tesouro: grandes rosetas
redondas e abertas, do tamanho de moedas de vintém; anelões de chapa em cima;
um crucifixo de trazer ao pescoço em dias de festa; uma figa que era uma riqueza,
no peso; um alfinete de peito representando um anjo a tocar trombeta; três
pulseiras lisas e polidas; outras de coral com fecho de ouro; vários objetos
de filigrama de prata fabricados no Porto; um paliteiro e dois castiçais também
de prata, sem contar com dois diamantezinhos que a vovó ganhara aos vinte
anos, quando se casou, e que fazia questão de levá-los às orelhas para a sepultura.
“Era lá mania da velhinha — respeitava-se!”

“Ora… a Rosinha, além de tudo, tinha também os seus cobritos juntos; por
conseguinte, Luiz, com mais algum tempo de economias, bem que podia casar
com ela”. Foi sacudido por este risonho raciocínio que o cavoqueiro, já de
volta do serviço, entrou em casa às sete da noite, mais satisfeito que de
ordinário, graças à gorjeta do pai de Magdá, e talvez por haver tomado depois
do trabalho alguns martelos de vinho com os companheiros.

A pequena sentiu-lhe cheiro de bebida logo que ele entrou.

— An… an…! Você hoje entortou o cotovelo, hein, seu Luiz? Muito
bonito!

— Um nada! Foi para beber à saúde da moça dali defronte…

— A filha do Conselheiro… Ah! E deram a molhadura?

— Já se deixa ver que sim, Mas aviem-me esse jantar, que estou a tinir!

E assentou-se à mesa, que tia Zefa cobria nesse instante com uma toalha de
linho grosso, enquanto a Rosinha corria a buscar á dentro a tigela de sopa.
A avó chegou-se também para vê-lo comer, como fazia todos os dias. Uma velhinha
engraçada, a vovó Custódia! — seca, pequenita, a pele enrugada que nem
um jenipapo maduro; a cabeça que era um algodão; a boca fechando e abrindo
sempre, e toda cheia de pregas, tal qual a boca de um saco fechado. Mas toda
ela ainda esperta, agarrando-se à vida com as unhas, que os dentes já á se
tinham ido.

Sentia-se ali um cheiro especial de roupa engomada e de roupa lavada. Justificando
esse cheiro, viam-se acumulada por toda a parte, sobre as mesas, sobre as
cadeiras, pilhas de camisas dobradas, montões de peças de roupa branca, e,
dependuradas de uma corda, pelo cós, muitas anáguas, e muitas saias, penteadores
bordados e vestidos de linho com guarnições de renda. Um candieiro de querosene
iluminava a pobre sala de duas braças de largura e três de comprimento, toda
caiada de cima a baixo, e com uma pequena barra de roxo-terra. Havia um armário
de pinho sem pintura, onde se guardava a louça, aquela grossa louça de doze
vinténs o prato, e aquelas canecas de pó de pedra, onde eles tomavam café
antes de levantar o dia. Na parede — uma gaiola de pindoba com um gaturamo.
A casa constava ainda d duas alcovas e outra salinha; ao fundo um pequeno
quintal que dava para o cortiço. Era propriedade da mãe do Luiz; deixou-lha
o marido, um ferreiro, que morreu de desastre.

O rapaz, enquanto jantava, falou a respeito das esquisitices da filha do
Conselheiro, causou grande impressão na sua gente. Quiseram pormenores; crivaram-no
de perguntas: “Se Magdá tinha cara de doida; se era bonita; se se dava ao
respeito”. Luiz respondia a tudo, devorando colheradas de feijão amassado
com farinha.

— Pois mana Justina diz que ela é muito boa, observou Rosinha. —
E o caso é que lhe tem dado muita coisa! Ainda há dias mostrou-me um anel,
que…

— Um anel? De ouro?

— Sim, senhora, de ouro! Juro por esta luz! Eu vi! Lindo! Com umas
pedrinhas em ciam!

A notícia do anel abriu um silêncio comovido.

A tia Zefa observou afinal:

— Aquela chorou na barriga da mãe! Tem muita sorte o diabo da rapariga!
Hão de ver que ainda encontra marido, apesar dos filhos…

— Ora se encontra! respondeu Luiz. — Isso é tão certo como me
achar eu aqui! Pois não se vê como está o Manoel das Iscas por ela?… Não
fala noutra coisa! “Porque a S’óra Justina p’ra cá! A S’óra
Justina p’ra lá!” Até já fede!

— Que me estás tu a dizer, rapaz?

— Ora! Caidinho! E, se ela o souber levar, apanha-o mesmo!

— Uma sorte grande! O Iscas já tem alguma coisa de seu!

— Olá! Só aquele correr de casas, que ele fez agora, dá-lhe com que
passar mais duas vidas!…

Depois do Iscas, a filha do Conselheiro tornou a entrar para assunto da conversa,
e discutiram-se com assombro os presentes dados por ela à Justina. Por fim
o cavoqueiro ergueu-se da mesa, tomou a sua viola e foi esperar pela hora
de dormir, assentado à porta da estalagem, repinicando o seu fado favorito.
Rosinha acompanhou-lhe logo e instalou-se ao lado dele como costumava fazer;
ao passo que as duas velhas, tomando cada qual a sua cadeira, ficaram defronte
uma da outra, a falar; entre bocejos e cochilos, no que tinham trabalhado
esse dia e no que iam trabalhar no dia seguinte. Daí a pouco já não diziam
palavra, e a própria Rosinha dava marradas no noivo, cabeceando de sono. Só
a viola do cavoqueiro continuava bem acordada, quebrando o denso recolhimento
das nove e meia com o seu “tir-lim-tim-tim” monótono e embebido de saudade.

Luiz cantava:

“O sol prometeu à lua

Uma faixa de mil cores;

Quando o sol promete à lua,

Que dirá quem tem amores!…

“Tir-lim-tim-tim! Tir-lim-tim-tim!

“Tia a amar-me, e eu a amar-te,

Não sei qual será mais firme!

Eu como sol a buscar-te,

Tu como sombra a fugir-me!”

Essa cantilena chegava até a casa do Conselheiro reduzida a uma toada errante
e tão lânguida que entristecia. Magdá escutava-o da sua alcova, deitada no
colo de Justina, à espera do sono.

E quando, lá pela meia-noite, conseguiu adormecer, continuou logo a sonhar
com o moço da pedreira.

XI

O sonho ligava-se ao da véspera. Tornou a ver-se no colo do rapaz, abandonando
a casa paterna e dirigindo-se vagarosamente para a montanha; esta, porém,
surgia-lhe adora defronte dos olhos, não como pedreira esbrugada, mas em plena
efervescência de verdura e toda coberta de flores.

Começaram a subir. Uma floresta virgem abria-se diante deles, para lhes dar
passagem, e logo se fechava sobre os seus passos, como cortinas de um leito
de folhas. O moço parecia não cansar com o peso que levava, e Magdá por sua
vez sentia-se leve, muito vaporosa; e, à proporção que se afastava de casa
e ia-se entranhando na mata, fazia-se melhor, mais satisfeita e feliz.

Afinal, deram com uma planície. Haviam chegado ao cimo da montanha; aí o
círculo de verdura que os guardava abriu em clareira, destoldando o azul,
onde o sol resplandecia, transbordante de ouro por entre espumas de prata.
Reinava na luz um meio tom suave e comunicativo; tudo era doce, temperado
e calmo; as vozes da natureza chegavam aos seus ouvidos apenas balbuciadas;
as folhas e asas cochichavam, como se temessem acordar alguém; perto corria
um regato sussurrando.

O moço pousou Magdá sobre a relva e assentou-lhe ao lado dela, tomando-lhe
as mãos entre as suas.

— Como te sentes agora, minha flor! Segredou-lhe, aproximando o rosto.

— Muito, muito melhor… respondeu a filha do Conselheiro com um suspiro.
— Sinto-me ainda um pouco fraca, mas conto que estes ares me restituam
as forças…

— Em breve estarás perfeitamente boa e serás completamente feliz! disse
o outro, e soltou-lhe um beijo na boca. Magdá percebeu então que o hálito
do moço tinha o perfume de murta, e que as barbas dele eram agora mais macias
do que os arminhos da sua saída de baile. E, encantada com a descoberta, notou
ainda que as mãos do cavaqueiro já não eram tão duras e mal tratadas, mas
bem torneadas e de uma flexibilidade muito enérgica e nervosa; que o cheiro
do seu corpo já não tresandava a cavalo suado, mas rescêndia a um odor fecundo
de carne sadia e limpa, lembrando o cheiro de leite fresco; que os seus dentes
eram alvos e puros como as areias da praia; que o seu peito era mais branco
e mais rijo que o granito da pedreira; que os seus cabelos, roçando nela,
acordavam desejos, e que seus braços eram cadeias de fogo em que toda ela
se abrasava de amor.

— Gostas de me ter a seu lado?… perguntou ele.

— Tu restitues-me a vida… respondeu Magdá, cingindo-o pelos rins
e pousando o rosto abatido e frio sobre o colo vigoroso e largo do amigo.
— Oh! balbuciou depois, aconchegando-se mais — como eu me sinto
bem assim! Com a cabeça aqui! A gozar nos meus peitos o calor do teu corpo!
Deixa-me ficar ainda! Deixa-me ficar um instante, meu senhor e meu amado!

E apertava-o nos míseros braços, fechando os olhos e aspirando com força,
como se quisesse sorver de um só hausto, a vitalidade que ele de si exalava,
mais capitosa que o vapor de um vinho velho fervendo ao fogo.

— Tu és só meu?

— Todo teu e para sempre!

— Nunca amarás outra mulher?

— Não, Magdá, nunca!

— Se me esqueces por outra, eu morreria de ciúmes, antes que as feras
me devorassem aqui! Olha! vê como, só com pensar nisto, tremo toda…

Ele puxou-a de vez para o seu colo e afagou-a.

— Não chores, disse. — Descansa, que nunca mais nos separaremos.
Eu serei eternamente o teu companheiro, o teu amigo, o eu esposo! Quando te
sentires com força, irás a pé, pelo meu braço, passear ao outro lado da montanha,
que ainda é mais belo do que este. Depois chegaremos até lá em baixo, no vale,
onde encontrarás tudo o que de melhor há na vida: os mais saborosos frutos,
as flores mais mimosas, as aves mais lindas, as águas mais puras, o sol mais
carinhoso e os seres mais benfazejos da natureza. Lá tudo é nosso amigo; tudo
nos ama; nenhuma ente da terra te fará mal, porque aqui tu és rainha e eu
sou o rei. Não tenho para te oferecer aposentos como os de teu pai; não tenho
carruagens, nem sedas, nem baixelas de prata; mas, em compensação, nenhuma
outra te disputará o poder sobre estes teus domínios, nem o amor deste teu
escravo! Quando sentires vontade de comer, eu irei buscar os pomos mais suculentos
e gostosos; quando tiveres sede, eu trarei nas minhas mãos a água mais cristalina
das nossas fontes; quanto te sentires cansada, eu te carregarei nos meus braços.
Eu percorrerei o mundo inteiro para te matar um desejo! E, quando dormires,
estarei a teu lado, pedindo a Deus que te dê bons sonhos e encha tua alma
de consolações.

— Como sou feliz agora, meu amigo…

— Sim, tu serás muito feliz, porque aqui não haverá ódios nunca, nem
invejas, nem ambições, nem vícios; aqui só o amor existe! Este é o seu reino;
nada aqui vive senão dele e para ele! Amarmo-nos será o nosso único destino
e o nosso único dever. Desde que o não fizéssemos, seríamos logo expulsos
deste paraíso por indignos e maus, e teríamos de ir chorar a nossa miséria
lá na outra existência, onde os homens se detestam e atraiçoam a todo momento.
Vês estas árvores, estes pássaros, todo este mundo alegre e feliz que canta
em torno dos nossos beijos! pois todo ele vive só para se amar! Vê! repara
como todos crescem aos pares; como concebem e como produzem! Olha para cima
da tua cabeça; olha para debaixo dos teus pés; olha para os lados e observa!
— Está tudo amando? Em cada beijo que damos, um infinito de vidas se
forma entre nossos lábios!

Houve um duro silêncio, durante o qual S. Ex., cujas barbas haviam crescido
muito, e cuja calva reluzia que nem a de um patriarca da Bíblia, olhava, ora
para a filha, ora para o rapaz, como se estivesse a compará-los.

— Com efeito!…

E sacudia a cabeça, e esticava os beiços, sem desviar a vista. No capricho
do sonho, o pobre Conselheiro tinha perdido as suas maneiras distintas e afáveis,
e até no modo de se exprimir era grosseiro e burguês.

— Com efeito!… repisou ele, estalando um riso de sarcasmo. —
É até onde pode chegar o aviltamento!… Dar-se a um trabalhador da mais baixa
espécie!… É inacreditável!

— A culpa não foi minha, papai…

— Cale-se! Não sei onde estou, que lhe não quebre esta bengala nas
costas!

— Creia, patrão, que… ia arriscar o rapaz.

— Ó tratante! berrou o velho. — Ainda te atreves a abrir o bico?
Ora espera que te ensino!

E cresceu para o moço, que o esperou sem tugir nem mugir, com o aspecto resignado
de uma besta que tem dono. Magdá, porém, já se havia metido entre os dois
e , de joelhos, chorando, abraçava-se às pernas do patriarca.

— Piedade, meu pai! piedade!

— Qual piedade, nem qual carapuças! Não fosse tão assanhada!

— Tenha compaixão de dois infelizes, cuja falta foi só uma e única…

— E acha pouco, sua desavergonhada? Acha talvez que esta não basta
para me fazer subir ao arame! Tem graça!

E, enquanto a filha soluçava, sem erguer os olhos: — Ingrata! Eu a
matar-me para a fazer gente; para lhe ar uma certa educação — e ela
a meter-me os pés! Criar uma filha com tanto carinho, para vê-la depois entregue
a um homem de pedreira!…

— Perdoe, meu pai!

— Não perdôo nada!

— Juro-te que não tenho culpa do que sucedeu…

— Perversa! Eu a sacrificar-me a instruí-la e arranjar-lhe um futuro,
e ela a sujar-se de lama e a cobrir-me de vergonhas!

— Não fui eu, papai, foi a minha natureza; foi a minha carne; foram
os meus sentidos!…

— Qual carne, nem qual sentidos! A patifaria tem sempre desculpas!

Fez uma pausa e prosseguiu depois, comovendo-se, mau grado seu: — Dei-lhe
tudo o que se podia desejar! Foi já o professor de piano; foi já o professor
de canto; foi já o mestre de desenho! E venha o explicador de francês! E venha
outro para história e geografia pátria! E outro para isto! E outro para aquilo!
E compre-se mais este dicionário! E assine-se mais este jornal! E corra-se
aos Castelões a buscar o camarote do Lírico! E olhe o carro que não esqueça!
E veja essa luva de vinte botões que saia! E venha a bela da jóia! E venha
o belo vestido de seda! E olhe o chapéu à Sarah Bernhardt! E olhe as regatas!
E olhe as corridas! E dêem-se festas todos os meses! E façam-se viagens à
Europa! — E tudo isto afinal p’ra que? — Sim! tudo isto
p’ra que?! Só quero que me digam de que serviu tanto sacrifício!

— Perdoe-me!

— Não! não perdôo, nem devo perdoar! Se queria casar, há muito tempo
que o podia ter feito; o que não lhe faltou foram pretendentes! A senhora
torceu o nariz a todos! E, logo que o Dr. Lobão me fez ver a necessidade urgente
de uni-la a alguém, trouxe-lhe o meu amigo José Furtado!

— Um velho!

— Não será uma criança, mas também não é nenhum bisavô! Outra qualquer
a teria agarrado com unhas e dentes! Um homem de conta, peso e medida!

— Pudera! Principiou a vida a limpar pesos e balanças!

— E que tem isso? Um homem honrado, trabalhador e econômico. Entrou
na vida com um barril nas costas, mas hoje é uma das mais sólidas fortunas
do Rio de Janeiro!

— Não é de dinheiro que eu preciso!

— Pois então casasse com o Dr. Tolentino…

— Um defunto!

— Defunto! Não terá uma saúde perfeita, coitado, mas é uma das mais
bem constituídas cabeças do Brasil. Muito talentoso, muito ilustrado! Membro
da Sociedade de Geografia de Lisboa, e consta até que vai receber diploma
de sócio não sei que importante congregação científica da Bélgica!

— Também não é de ciência que eu preciso!

— Nesse caso, porque não aceitou o Conde do Valado?

— Um libertino!

— Não é tanto assim.

— Um vicioso comum que, se deixa de falar um instante em cavalos, é
para discutir cocotes.

— Que exagero! Não direi que os seus costumes sejam tão puros como
os do comendador José Furtado ou como os do Dr. Tolentino, mas é um mocó ilustre,
descendente em linha reta de uma das mais importantes casas de Portugal. Seus
avós figuraram todos na história e o seu nome tornaria fidalga a mulher que
o possuísse!

— Eu não preciso de nobreza!

— Não precisas de nobreza; não precisas de ciências; não precisas de
dinheiro! Então de que diabo precisas tu?

— De um homem…

— Um homem! Quanta desfaçatez! De que precisavas, grandíssima desavergonhada,
era de uma boa carga de pau, para te apagar o fogo do rabo!

E o velho, possuindo-se de novo acesso de cólera, estendeu o braço, enxotando
a filha e mais o moço da pedreira.

— Já! Rua seus bandalhos! E que eu nunca mais lhes ponha a vista em
cima! Estão amaldiçoados!

— Meu pai! meu pai!

— Aqui já não há pai, nem mãe! Não sou pai de mulheres à-toa! Ponham-se
a andar, e que sejam muito felizes! Boa viagem!

— Deixe-me ao menos ir lá dentro buscar as minhas jóias, um pouco de
roupa e os meus livros…

— Jóias, roupas, livros! para que? A senhora já não tem tudo quanto
deseja, para que mais?… As boas roupas fizeram-se para os nobres, as jóias
para os ricos e os livros para os sábios! A senhora nada tem que ver com esta
gente e com estas coisas! Só queria “um homem”, pois já o tem! É andar! Ele
que lhe compre jóias; que se encarregue de vesti-la, de sustentá-la e de consolá-la.
Tem obrigação disso; e, se não dispõe de meios, invente-os — trabalhe!
Se não puder tratá-la a bicos de rouxinol, comam feijão com carne seca, que
a senhora tem obrigação de contentar-se com o que ele lhe der! É o “seu homem”
e, por conseguinte, é quem de hoje em diante a governa com direito de vida
e de morte! Acompanhe-o submissa para onde ele for, seja para o inferno ou
seja para o paraíso! A partir desse momento— o seu destino é o dele!
E deixem-me!

— Meu pai!

— Foi tempo! Nada mais há de comum entre nós! Para continuar a ser
seu pai, seria preciso que eu me fizesse pai também daquele pedaço d’asno;
e eu não quero ter filhos de tal espécie!

E S. Ex,. notando que Magdá não se resolvia a largar-lhe as pernas e continuava
a chorar, ordenou, voltando-se para o cavoqueiro:— Olá, seu coisa! Tome
conta dessa mulher! É sua! Pode levá-la para onde bem entender!

— Ah! exclamou a filha, caindo por terra, de borco, com os braços estendidos
no chão, enquanto o velho, arrepanhando a sua túnica da cor simpática às histéricas,
se afastava para casa, muito fresquinho e senhor de si, assoviando, de cabeça
impertigada, nem como se a coisa tivera sido com ele.

Magdá permanecia de bruços, a soluçar. Então o mocó da pedreira inclinou-se
sobre ela e deu-lhe com toda delicadeza u ósculo nos cabelos. Depois tomou-a
ao colo e pôs-se a caminhar, vagarosamente, muito vagarosamente, na direção
da fatal montanha onde ele trabalhava. E toda a natureza, que parecia haver
entristecido e tomado luto com a maldição do velho, começou a reanimar-se,
a rir de novo, tingindo-se de luz purpúrea e entoando em voz baixa epitalâmeos
sensuais. E os dois, abraçados, formando um só grupo, lentamente penetraram
numa deliciosa alameda de laranjeiras, cujos galhos se vergavam na sua passagem
para lhes beijar a fronte, derramando-lhes sobre a cabeça uma odorífera chuva
de flores desfolhadas. E do céu baixava doce harmonia religiosa, que parecia
balbuciada por uma nuvem de anjos.

Nisto — despertou.

Circunscreveu o olhar em torno de si, reconhecendo a custo a própria alcova.
O seu pequeno relógio Luiz XV, de bronze dourado, marcava, no mostrador de
porcelana de Sèvres esmaltada, meia hora depois do meio-dia. Uma cortina cinzenta,
de seda de Leão, quebrava na janela a luz que batia de fora, e dava ao quarto
o tom opalino de um crepúsculo de inverno. Magdá suspirou, espreguiçando-se.
O drama fantástico de toda aquela noite dissolveu-se: teatro e personagens
desapareceram. Mal ouvia-se, ainda, bem distintamente, o tal coro religioso
que baixara dos céus para solenizar a sua passagem na encantada alameda; a
moça soergueu-se no leito, concheando a mão no ouvido que ficava do lado da
janela e, meio maravilhada, pôs-se a escutar com atenção aquela tristonha
cantilena que persistia ali, na vida real, como um prolongamento do sonho.

Caiu logo em si: era a toada melancólica dos trabalhadores que minavam a
pedreira. E ali deixou-se tombar de novo sobre os travesseiros e aí permaneceu,
com os olhos muito quietos, enquanto duas lágrimas lhe serpeavam ao comprido
das faces.

Oh! Sentia-se profundamente envergonhada do que sonhara a noite inteira.

— Minha’alma, rosnou a nova criada, afastando o reposteiro da
porta com a cabeça — o senhor mandou perguntar como vosmecê passou de
ontem p’ra hoje.— Diga-lhe que pode vir daqui a pouco, e você
volte já para me vestir.

Quando se achou preparada, foi esperar o pai na sal contígua à sua alcova.

— Então, minha filha, como passaste a noite.

— Bem, respondeu ela, beijando-lhe a mão.

— Dormiste?

— Bastante.

— Pareces-me, no entanto, fatigada… Como te sentes hoje de humor!
— No mesmo.

— Aquela loucura de ontem…

Magdá estremeceu e abaixou as pálpebras. Dir-se-ia que o pai lhe lançava
no rosto uma falta humilhante.

— Ficaste tão apreensiva com a tal subida da pedreira que…

— É melhor não falarmos mais nisso…

E tomou as mãos do Conselheiro, fazendo-o chegar-se para bem junto dela.
E, depois de contemplá-lo em silêncio com um meio sorriso, abraçou-o, demoradamente,
como se procurasse ficar convencida por uma vez de que aquelas tolices do
sonho não tinham o menor fundamento, e que seu pai, o seu extremoso pai, a
quem tanto queria do fundo do coração, ainda ali estava a seu lado, para amá-la
como sempre e protegê-la contra o maldito intruso que habitava dentro dela
e que a consumia para alimentar-se.

— O senhor é muito meu amigo, não é verdade, papai?…

— Ora, que pergunta, minha filha!

— Diga!…

— Pois ainda não tens certeza disso?

— E o senhor seria capaz de abandonar-me, capaz de desprezar-me, fosse
lá pelo que fosse?

— Mas que lembrança é esta, Magdá? Desprezar-te, eu? Enlouqueceste!

— Ama-me muito, não é verdade? Por coisa alguma desta vida seria capaz
de enxotar-me da sua companhia, não é assim? Responda.

— Deixa de criancices, minha flor, e olha! — toma o teu chocolate
que ali está esfriando há meia hora. Mas que é isto?… Choras?… Então!
então! Que tu sentes, Magdá? Fala, meu amor.

Ela começou a soluçar.

— Nada! nada! nervoso! Acordei hoje muito nervosa!

— Mas não te aflijas deste modo. Vamos — toma o teu chocolate
e desce comigo ao jardim. Anda! Vê se consegues não pensar em coisas que te
façam mal… Não sejas crianças…

O Conselheiro, à força de carinhos, conseguiu que ela tomasse, além de meia
chavena de chocolate, uma colherada do xarope de Esston, que o Dr. Lobão havia
receitado.

A arrastou-a para a chácara.

Mas, pobre senhora! mal acabava de descer a escada do jardim, deu logo, cara
a cara com o moço da pedreira, que ia buscar a espórtula prometida pelo Conselheiro.—
Ah! exclamou toda trêmula, corando e abaixando as pálpebras. E tratou de abraçar-se
ao pai e esconder a cabeça no colo deste, como na véspera, depois da síncope.

O bom velho não pode compreender o que era aquilo.

— Tens alguma coisa? perguntou. — Sentes alguma novidade? Fala.

— Voltemos para cima! Voltemos para cima! Dizia a moça, aflita, sem
mostrar o rosto.

O trabalhador, muito rendido, continuava defronte deles, com os olhos em
terra, a torcer vexadíssimo entre as mãos e o seu seboso casquete de pele
de lebre.

— Ó patrão, se quer, eu apareço noutra ocasião…

— Sim, sim, é melhor, volveu o Conselheiro, muito ocupado com Magdá.

— Não! acudiu esta, sempre com o rosto escondido. — Despache-o
de uma vez! Para que fazer este homem voltar ainda aqui?

Ao perceber uma pequena parte destas palavras, o cavoqueiro fez uma careta
que tanto podia ser de surpresa como de lástima, e resmungou meio sentido:

— Voscência queira desculpar, mas eu, se aqui vim, foi porque me disseram
p’ra vir… Tinha que com isso não ofendia pessoa alguma… mas, a vista
de que ando mal, peço desculpa e o mais que posso fazer — é não tornar
cá!

— Não! opôs S. Ex. — Espere um instante. E, passando o braço
pela cintura da filha, segredou ao ouvido desta: — Vamos, vamos lá para
cima. Creio que hoje não estás boa…

XII

Acordou muito nervosa e muito triste. O sonho deixara-a num grande abatimento
físico e moral; pungia-lhe um como remorso de quem se arrepende de haver passado
a noite em claro, no deboche. Sentia-se humilhada.

– Maldito homem! maldita a hora em que ela se lembrou de subir à pedreira.

Não é que não compreendesse perfeitamente que tudo aquilo era devido ao seu
lastimável estado de doença; mas, por melhores esforços empregados para se
convencer de que lhe não cabia a mais ligeira responsabilidade em semelhantes
extravagâncias, um profundo vexame apoderava-se do seu espírito, constrangendo-a
de vergonha contra si própria. Reconhecia-se criminosa por aqueles delitos
de uma sensualidade tão brutal e tão baixa; não podia conceber como era que
ela – ela! a filha do Conselheiro Finto Marques, a intolerante, a escrupulosa
por excelência, a irrepreensível nos seus gostos e nas suas predileções, mantinha,
segregadas nos meandros da sua fantasia, tais sementes de luxúria, que bastava
cair uma única no misterioso terreno dos sonhos para rebentar logo uma floresta
inteira de concupiscência. Lembrou-se de contar tudo com franqueza ao Dr.
Lobão e pedir-lhe que lhe arranjasse um remédio contra aqueles desvarios;
mas só a idéia de repetir, de confessar certos particularidades do seu delírio,
faziam-na tremer toda de pejo. “Ah! se a tia Camila ainda fosse viva!.” E
o que ela não se animou de confiar ao médico, disse em confidência de alcova
ao seu crucifixo, pedindo-lhe entre lágrimas, pelo amor da Virgem Mãe Santíssima,
que a protegesse; que a livrasse daqueles pensamentos impuros; que lhe mandasse
dos céus todas as noites um dos seus anjos para lhe velar o sono e impedir
que a sua pobre alma, enquanto ela dormia, fosse vagabundear por ali, como
a alma de qualquer perdida.

Cristo não a atendeu. À mísera, depois de um dia como os outros, dia arrastado
entre colheradas de remédio e tédios de enferma, sem um riso, nem a sombra
de uma esperança de alegria, mal adormeceu, animada no colo da Justina, acordou
em sonho nos braços do cavoqueiro.

Continuava a sua existência fantástica. Despertou com um beijo dele.

– Ah! disse, e olhou em torno de si, procurando reconhecer o sítio da quimérica
felicidade.

Sorriu logo, satisfeita: era o mesmo lugar em que na véspera havia pegado
no sono acalentada pelo amante. – Era, que dúvida! – lá estavam as mesmas
árvores, agora tranqüilas e confortadas; as mesmas paineiras sussurrantes,
o inalterável regato de águas diamantinas em que se destacavam os nenúfares,
formando pequenas ilhas cor de esmeralda e guarnecidas de grandes flores vermelhas
e brancas. E, como para se certificar de que o seu amado ainda era também
o mesmo, pôs-se a tatear-lhe a musculatura dos braços e do peito.

— Era ele mesmo! Era! Nem outro possuía aquela rijeza de carnes junto
àquela maciez de pele.

Apalpou-o todo. Depois, como se ainda não estivesse bem convencida, esfregou
o rosto nas barbas dele, meteu os dedos por entre os anéis do seu cabelo,
cheirou-lhe a boca.

— Era! Era o mesmo! cheirava a murta.

E beijou-o.

Olha, falou o moço. — Enquanto dormias tu, andei por aí colhendo estas
frutas. Deves sentir fome.

– E’ verdade, respondeu Magdá. — Tenho uma fome enorme. Há muito tempo
que não como.

E ergueu-se a meio para o banquete.

– Vê como são boas… observou o outro, trincando um cajá e levando-lhe à
boca o pedaço que tinha entre dentes.

Ela comeu e pediu outro bocado, mas queria assim mesmo – de boca para boca.

— Como é bom! Como é bom! repetia batendo palmas.

— Estes, que estão picados de passarinho, são os mais doces. Olha!
experimenta.

Ela afinal deitou-se no colo dele, para comer à moda das crianças. O rapaz
escolhia os melhores frutos, mordia-os primeiro e dividia o pedaço com ela,
ambos a rirem-se muito desta brincadeira.

— Mais! mais!

Ele mostrou uma grande manga.

— Oh! Que bela! exclamou a filha do Conselheiro, tomando em cheio nas
mãozinhas a imensa manga que o companheiro lhe apresentava. E, farta de admirá-la,
lembrou com um repente

— Vamos chupá-la os dois juntos?…

— Como?

— Deita-te aqui no chão, ao meu lado. Assim!

E, uma vez deitados, começaram, com o rosto muito unidos, a chuchurrear a
manga, como se mamassem ao mesmo tempo por uma só teta. Magdá sentia com isto
uma volúpia indefinível; de vez cm quando despregava os lábios da fruta, para
poder olhar o amigo, soltava uma risadinha e continuava a mamar. Quando se
sentiram satisfeitos, ele foi buscar água na parra de um tinhorão e deu de
beber à companheira.

— Bem, disse depois. — Agora vamos dar um passeio.

— Sim, mas eu não posso ir muito longe. Sinto-me ainda tão fraca…

— Eu te carregarei, quando não puderes andar. Encosta-te a mim.

Magdá ergueu-se e pôs-se a caminhar vagarosamente ao lado do amante, toda
reclinada sobre ele; os braços na cintura um do outro. Ouviam-se então cantar
as aves e as plantas inclinavam-se com ternura e respeito por onde seguia
o amoroso par; a folhagem tinha sorrisos; as boninas beijavam-lhes os pés.

Um cheiro delicado de baunilha enriquecia o ar.

Chegaram à beira do regato e Magdá mirou-se nágua com faceirice de noiva.
Ao seu lado refletia-se a robusta figura do moço.

— Dá-me algumas flores, pediu ela. — Quero enfeitar-me para te
parecer mais bonita. Estou tão magra!…

Ele afastou-se e voltou logo com um braçado de rosas, magnólias, jasmins
e manacás. O ambiente trescalou de aromas. Magdâ soltou o cabelo e depois,
a rever-se na própria imagem refletida a seus pés, fez novas tranças em que
ia intercalando flores com o mimoso capricho de quem faz uma obra d’arte.
O moço olhava-a sorrindo.

— Vaidosa… murmurou.

— Ingrato! E’ para te agradar… E ela, quando deu por pronto o seu
toucado, foi colocar-se defronte do amigo para receber os afagos da aprovação.

— Senta-te aqui, disse este, em seguida a um beijo.

A amante obedeceu; ele deitou-se na relva e pousou a cabeça no colo de Magdá,
que começou a afagar-lhe os cabelos, segredando ternuras, vergando-se sobre
o seu rosto, para alcançar-lhe os lábios. Estiveram assim um tempo infinito;
alheios e esquecidos de tudo, bebendo pela boca um do outro o vinho da sua
animalidade, embriagando-se de camaradagem, aos poucos, voluptuosamente; até
que, ébrios de todo, se deixaram rolar ao chão e se quedaram abraçados, mudos,
inconscientes, quase mortos na deliciosa prostração do coma venéreo.

Só deram por si ao declinar do dia. Continuaram o passeio.

— Que ruído é este? perguntou Magdá, parando em certa altura da floresta.

— Não tenhas medo, meu amor, é o trapejar de uma cascata que fica do
outro lado da montanha. Havemos de lá ir um dia.

— Espera! Parece que vai chover… Senti uma gota dágua cair-me na
face.

— Vai, sim, mas não faz mal; nós nos recolhemos à gruta.

— Que gruta?

— Verás. Fica muito perto daqui. Vamos.

Principiava com efeito a chuviscar. Ele tomou Magdá nos braços e correu para
a gruta, que em verdade, era muito perto dali. Consistia numa grande rocha
negra, toda encipoada de heras e parasitas com uma pequena fenda que mal dava
passagem a uma só pessoa de cada vez. O cavoqueiro transpôs a brecha e em
seguida fez entrar a companheira.

— Agora pôde lá fora chover a cântaros! Declarou — estamos perfeitamente
agasalhados.

Magdá olhou em torno de si na meia escuridão da caverna, e notou que se achava
num lugar muito aprazível, de atmosfera de alcova. Os seus pés eram embebidos
em armelina e doce alfombra; suas mãos tocavam nas paredes uma penugem macia
que lembrava a pluma do algodão. Era um ninho, um verdadeiro ninho de musgo
cheiroso, aveludado e tépido.

O rapaz deixou-se cair em cheio sobre o tapete de relva, arrastando Magdá
na queda. E, fechando-a nos seus braços, disse-lhe com o rosto unido ao dela:

— Não ouves lá fora um arrulhar mavioso e triste?…

— Sim, porque ?

— É o urú que anuncia a noite. Vamos dormir.

E ela sonhou que adormecia, justamente na ocasião em que acordava na vida
real. O gemebundo piar das rolas desdobrou-se na monótona e pesarosa cantilena
dos trabalhadores da pedreira.

XIII

— Terceiro sonho ~… Era já o terceiro sonho!… cismava Magdá, muito
impressionada e ainda recolhida na sua cama de erable com esculturas de mogno.
— Três sonhos seguidos, de noite inteira, com aquele miserável trabalhador…
E não poder reagir contra semelhante violência!… Não dispor de um único
recurso contra esse misterioso tirano que a constrangia àquela convivência
extravagante, àquele amor ignóbil por um ente, que ela na vida real malqueria
e desprezava. Terrível cativeiro! Não poder dizer à sua imaginação: “Acomoda-te,
demônio! Sossega!” Isto com quem não estava habituada a repetir uma ordem;
com ela, que não fora nunca desatendida nos menores caprichos, como nas maiores
imposições!… Que desespero — ter de submeter-se ao jugo da sua carne!
Que inferno — sentir-se todos os dias ao acordar humilhada por si mesma,
indignada contra os seus próprios sentidos.

E se aquilo desse para continuar?… Sim, como havia de ser, se nunca mais
terminasse aquela nova existência que ela agora vivia com o cavoqueiro durante
a noite?…. Oh, antes a morte! antes a morte!

Justina abriu o cortinado da cama, para saber se a senhora queria já o chocolate.

— Que horas são!

— Meio-dia.

— Não consigo acordar mais cedo…

E notava agora na boca um gosto acre e doce ao mesmo tempo, muito enjoativo,
sabendo a sangue.

— Minh’ama sente alguma coisa? perguntou a criada, reparando que Magdá
estalava com insistência a língua contra o céu da boca.

— Um gosto esquisito.

— E’ do estômago! Não tenho dito a vosmecê que não é bom estar paparicando
guloseimas todo o dia?… Como não! Está aí!

— Mas eu ontem nada comi que me pudesse fazer mal. Tomei um caldo e
bebi um cálice de vinho; e à tarde… Ah! talvez seja do xarope… diz o doutor
que leva muita estriquinina…

— Deve ser, como não? Estes remédios de hoje são todos uns venenos,
Deus me perdoe!

— Prepara-me água para lavar a boca.

— Está tudo pronto.

Magdá ergueu-se da cama.

E, enquanto se preparava: — Ó senhores! que frenesi me mete aquilo!

— Aquilo que, minh’ama?

— Aquela maldita cantilena!

— Ah! Os homens da pedreira! Coitados! Diz que assim não sentem tanto
o peso do serviço… Aquilo é um trabalho muito bruto! Vosmecê não imagina…
Ainda outro dia…

— Sim, sim! Meu pai já saiu?

— Ainda não, senhora, e já veio saber como minh’ama passou a noite.

— ‘Stá bem.

— … Ainda outro dia, o Luiz…

— Que Luiz… ?

— Esse rapaz que está para casar com minha irmã, com a Rosinha; aquele
que desceu minh’ama da pedreira!… O Luiz, vosmecê conhece, como não ?

— Sim, sim! Não quero saber disso… — Dá-me o chocolate e o
remédio.

Justina precipitou-se logo para fora da alcova, e Magdá, contra a sua vontade
repetia mentalmente: “O Luiz, esse rapaz que está para casar com Rosinha…”
Mas a fisionomia não se lhe alterou e, como era do seu costume ao levantar-se
do leito, tomou um espelhinho de mão e pôs-se a mirar de perto as feições.
Achou-se extremamente abatida e muito descorada; em compensação sentia-se
agora de melhor humor e até disposta a sair do quarto. O diabo era aquele
maldito gosto de sangue que lhe não deixava a boca. Bebeu dois tragos de chocolate,
rejeitou o frasco do xarope, e em seguida desceu ao primeiro andar, mais animada
que nos outros dias.

O pai fez um espalhafato quando a viu.

— Assim é que ele queria!

E beijou-a na testa. — Assim é que Magdá devia fazer sempre! Hoje até,
acrescentou risonho e afagando-lhe o queixo, bem podias dar um passeio comigo,
hein? Mando buscar o carro? Que dizes?

— Onde o passeio?

— Onde quiseres; em qualquer parte. Está dito?

Ela aceitou, com grande contentamento do Conselheiro; e a surpresa deste
subiu ao zênite quando viu a filha ordenar ao copeiro que lhe servisse um
pouco dum roast-beef que estava sobre a mesa.

— Bravíssimo! Bravíssimo

Magdá, porém, logo que percebeu sangue no assado, repeliu o prato, a estalar
a língua; mas exigiu que lhe dessem sardinhas de Nantes e comeu depois meia
costeleta de carneiro, um pouco de pão, queijo com mostarda, um gole de vinho
e ainda tomou uma chávena de chá preto. E não sentiu náuseas.

O pai ficou louco de contente.

— O xarope está produzindo efeito!… raciocinou ele, esfregando as
mãos.

Ela pôs um vestido de cor, o que havia muito tempo não fazia; e daí a pouco
embarcava no carro com o Conselheiro.

Mandou tocar para o lado da cidade. — Ah! Estava farta de árvores e
de florestas; agora precisava ver casas, ruas com gente, movimento de povo;
para deserto bastava-lhe o paraíso dos seus sonhos!

Durante o caminho mostrou-se de magnífica disposição, conversou bastante,
chegou a rir mais de uma vez. Ao passar pelo Campo de Santana apeteceu-lhe
entrar no jardim. O carro ficou à espera defronte da Estação de Bombeiros.

Eram três horas da tarde quando penetraram no parque. Fazia calor; a areia
dos caminhos estava quente; os lagos reluziam e os côncavos tabuleiros de
grama, que dão vontade à gente de rolar por eles, tinham reflexos de esmeralda
nos pontos em que lhes batia o sol; os patos e os gansos amoitavam-se nas
touceiras de verdura, à beira dágua, procurando sombra; a mole compacta dos
crotons parecia formada de incontáveis retalhozinhos de seda de várias cores;
os gordos cactos e as bromélias cintilavam como se fossem de aço polido. Mas
toda esta natureza simétrica, medida como que metrificada e até rimada, parecia
mesquinha em confronto com as luxuriantes paisagens, que Magdá sonhara naquelas
últimas noites. Todavia, nem por isso deixou de impressioná-la, trazendo-lhe
ao espírito recordações vexativas; por mais de uma vez sentiu a moça subir4he
o sangue às faces, à maneira do seu delito; mas não falou em retirar-se; apenas
propôs ao pai que descansassem um pouco.

O Conselheiro levou-a até à cascata. Aí estava com efeito muito mais agradável;
fazia inteira sombra, e a água, que caía lá do alto, esfarelando-se contra
os pedregulhos artificiais, refrescava o ar e punha-lhe um tom úmido de beira
de praia. Magdá ficou um instante à entrada da gruta, apoiada na corrente
da ponte, entretida a olhar os peixinhos vermelhos que nadavam em cardumes
por entre as ilhotas de pedra. O velho esperava ao lado, em silêncio, sem
nenhuma expressão na fisionomia, com uma paciência de pai; ao penetrarem na
gruta, ele percebeu que o braço da filha tremia.

— Sentes alguma coisa?…

— Não. E’ que isto escorrega tanto…

Lá dentro havia um casal que se retirou com a chegada deles, conversando
em voz baixa e afetando grande interesse na conversa. S. Ex. teve um gesto
largo de quem admira; Magdá olhou indiferentemente o teto de cimento, as grossas
estalactites pingando sobre as estalagmites com um aprazível ruído de noite
de inverno. A umidade da gruta fez-lhe sede; o Conselheiro procurou uma bica
e descobriu afinal uma caneca pendurada a um canto, donde jorravam goteiras
mais grossas.

— Eu bebo aí mesmo. disse Magdá, correndo para ele e arrepanhando as
saias, porque o chão era nesse lugar muito encharcado. O Conselheiro notou
a impropriedade daquelas estalactites numa rocha que fingia ser de granito;
Magdá não prestou nota à observação científica do pai e enfiou por um corredor
à esquerda. Foi dar lá em cima; assentou-se cansada no rebordo onde está a
entrada para a caixa dágua. O velho ficou de pé.

— Aqui está bom, não achas? perguntou.

Ela não deu resposta. Olhava. A voz de um sujeito, que tinha subida pelo
lado oposto, espantou-a; a nervosa soltou um pequenino grito e ficou ligeiramente
trêmula.

— E’ melhor descermos… aconselhou S. Ex., vendo que dois vagabundos
se aproximavam com as suas calças de boca muito larga, a cabeleira maior que
a aba do chapéu e grossos porretes na mão.

Voltaram pelos fundos da cascata. Um bêbado dormia aí, estendido por terra,
meio descomposto, uma garrafa ao lado. O Conselheiro fez um trejeito de contrariedade
e seguiu mais apressado com a filha. Quando se acharam fora da gruta, o sol
declinava já e as ruas do parque enchiam-se de sombra. Corria então um fresco
agradável. Anilavam-se as verduras mais distantes; desfolhavam-se os heliotrópios
ao tépido soprar da tarde; as amendoeiras desfloreciam, recamando o tapete
verde de pontos amarelos. Havia uma surda transformação nas plantas; reviviam
as flores amigas da noite e começavam a murchar os miosótis e as papoulas;
as árvores sacudiam-se, rejubilavam, aliviadas do mal que lhes fazia tanto
sol; ouviam-se nas moitas suspiros de desabafo. Os patos e os gansos deslizavam
agora vitoriosamente, rasgando com o peito a brunida superfície dos lagos;
chilreavam pássaros, saracuras assustadas cortavam de vez em quando o caminho,
olhando para os lados; ouviam-se grasnar marrecos e frangos dágua. Tudo estava
mais satisfeito. Uma nuvem de gaivotas pairava sobre os tabuleiros verdes,
debicando na relva; as cambachilras saltitavam por toda a parte. Via-se aparecer
ao longe, por detrás dos horizontes de folhagem, a agulha da igreja de S.
Gonçalo, destacando-se do límpido azul do céu toda esmaltada pelo sol das
cinco e meia.

Principiava a chegar gente; surgiam homens de palito na boca, o colete desabotoado
sobre o ventre; calcinhas brancas, curtas e mal feitas, mostrando botas empoeiradas;
gorduras feias dos climas abrasados; hidroceles obscenas; chapéus altos ensalitrados
de suor. Mulheres da Cidade Nova, com umas caras reluzentes, vermelhas como
se acabassem de ser esbofeteadas; portuguesas monstruosas, com umas ancas
que pediam palmadas, os pés turgidos cm sapatos de pano preto sem feitio.
“Uma gente impossível!” Magdá via-os a todos, um por um, enjoada, com o narizinho
torcido e cheia de uma secreta vontade de chicoteá-los.

Deteve-se para contemplar o grupo muito pulha de L. Despret, logo à direita
de quem sai da gruta; um homem, auxiliado por um cão, a lutar com um tigre;
mas o homem corta o peito da fera como se estivesse talhando pão-de-ló, e
o cão raspa com os dentes a anca da mesma, como se tentasse morder um animal
de bronze. Não obstante, Magdá parou defronte da escultura e parecia interessada
por ela. Aquele homem de músculos atléticos prendia-lhe a atenção. Porque?
— Sabia lá! O Conselheiro, intimamente estranhado pela importância que
a filha dava a semelhante obra, falou-lhe no museu do Louvre, nos belos mármores
que os dois mais de uma vez apreciaram juntos. Ela não ouviu e, depois de
muito contemplar o lutador, disse:

— Não há no mundo um homem assim como este, hein, papai?

_ Assim como, minha filha?

— Assim forte, musculoso…

— Ah! de certo que não…

— Mas já houve…

— Ora, noutros tempos, quando os guerreiros carregavam ao corpo armaduras
de dez arrobas.

— E as mulheres dessa época? Deviam ser também bastante vigorosas…

— Com certeza! Pois se uns descendiam dos outros…

Nisto passou perto deles um bêbado. muito esbodegado, a cambalear cantarolando;
a camisa esfobada no estômago, o chapéu à ré; os punhos sujos a saírem-lhe
da manga do paletó, engolindo-lhe as mão. O Conselheiro desviou-se discretamente
com a filha para o deixar passar; o borracho parou um instante, cumprimentou-os
com toda a cerimônia, quase sem poder abrir os olhos, e lá se foi aos bordos,
empinando a barriga para a frente. Magdá soltou uma risada tão gostosa, que
abismou S. Ex.

— Definitivamente aquele era o dia dos prodígios… pensou o extremoso
pai — E qual não seria o seu espanto quando ouviu a rapariga soltar
a segunda e a terceira, a quarta e, enfim, uma crescente escala de gargalhadas
contínuas.

— Com efeito!… disse. Muita graça achaste tu naquele tipo!

Ela não podia responder; o riso sufocava-a

— Está bom, minha filha, não vá isso te fazer mal…

Magdá procurava conter a hilaridade, mas não conseguia. Os transeuntes olhavam-na
tomados de grosseira curiosidade; o Conselheiro, meio vexado por ver que ela
chamava a atenção de todos, repetia-lhe baixinho:

— Está bom… está bom…

Foi um capadócio quem afinal a fez calar; um que passou de súcia com outros,
medindo-a de alto a baixo e que, depois de mirá-la muito, começou por caçoada
a remedar-lhe o riso. Magdá ficou furiosa. Subiu-lhe sangue à cabeça e teve
ímpetos de… nem ela sabia de que!… fazer um disparate! tomar a bengala
do pai e quebrá-la na cara do tal sujeito.

— Atrevido! resmungava entre dentes cerrados, afastando-se com o Conselheiro.

E, apesar dos esforços que este empregou para distraí-la, o resto do passeio
foi todo feito sob a impressão daquele incidente.

— Não penses mais nisso… insistia o velho, quando Magdá, já dentro
do carro, se referia ao fato pela milésima vez.

Tocaram para casa; ela em toda a viagem não falou noutra coisa. Vinha-lhe
agora um a inhabitual vontade de brigar, de fazer escândalo. Esteve quase
a pedir ao pai que voltasse e fosse à procura do malcriado até descobri-lo,
para lhe pespegar duas bengaladas, mas bem fortes!

E jurava que, naquele momento, seria capaz de estrangular o maldito. Não
parecia a mesma. Ela, que fora sempre tão inimiga de tudo em que transpirasse
escândalo e barulho, sentia agora uma estranha sede de provocações, de desordens;
já não era com o capadócio do jardim, mas com qualquer pessoa. Quando entrou
em casa, porque a Justina não respondeu logo a’ primeira pergunta que lhe
fez, bradou trêmula:

— Você também é um estafermo!

— Estafermo?

— Não me replique!

— Eu não estou replicando…

— Rua!

— Vosmecê despede-me?…

— Rua! Não a quero aqui nem mais um instante!

— Mas, minh’ama…

— Rua! Não ouviu?

O Conselheiro interveio:

— Então, minha filha, não te mortifiques

— Pois meu pai não vê como esta mulher me provoca, só pelo gostinho
de me pôr nervosa?

— Tu parecias gostar tanto dela.

— Nunca! Não a posso olhar! Tenho-lhe ódio!

Justina, coitada, ia tentar a sua defesa, já banhada cm lágrimas, quando
o pai de Magdá lhe fez sinal de que se afastasse; ao passo que a histérica,
falando sozinha e praguejando contra tudo e contra todos, dirigia-se furiosa
para o quarto.

Uma súcia! Todos uma súcia, resmungava, enterrando as unhas na palma da mão.
E fechou-se por dentro com arremesso, atirando-se à cama, desesperada e arquejante.

Justina enxugava as lágrimas no avental, dando guinadas com todo o corpo
a cada suspirado soluço que lhe vinha.

— Descanse que você não irá embora, disse-lhe o amo. — Quando
a Sra. D. Madalena chamar por alguém, apresente-se e não se mostre ressentida
com o que se deu. Aquilo passa! É da moléstia! Vá!

— Uma coisa assim!… lamuriou a criada. — Eu que tanto faço
por agradá-la.

— ‘Stá bem, ‘stá bem! já lhe disse que você não será despedida.

— Não é por nada, mas é pela aquela que a gente toma às pessoas!. .
Eu estava já afeita com minh’ama, e ter de deixá-la assim de um momento p’ra
outro, sem lhe ter dado motivo… dói, como não dói?.

— Mas vá, vá sossegada, que não haverá novidade.

Justina afastou-se chorando a valer.

O Dr. Lobão chegava nesse momento e o Conselheiro passou a narrar-lhe as
últimas esquisitices da doente. O médico escutou-o calado, fazendo bico com
a boca sem lábios; olhando por cima dos óculos, com as sobrancelhas no meio
da testa, arqueadas como duas sanguessugas.

— Ela tem tido as funç5es mensais com regularidade?… perguntou no
fim da sua concentração. E rosnou, depois da resposta: — É o diabo!
é o diabo!… Preciso examiná-la de novo! E lembrar-me de que tudo isto se
teria evitado com tão pouco sacrifício para todos nós! Pensam que é brincadeira
contrariar a natureza! Agora — o médico que a agüente!

Quando o doutor saiu, já a filha do Conselheiro dormia a sono solto e sonhava:
escusado é dizer com quem.

XIV

— Magdá, Magdá, repara que já é dia! Aqui não é permitido dormir assim
até tão tarde! Vem ver despontar o sol. A passarada já está toda de fora,
não ouves? Não há mais um só casal nos ninhos! Levanta-te! Sua Majestade aí
chega, esfogueado da viagem, pedindo a cada corola uma gota de orvalho para
beber e acendendo em cada gota de sangue uma centelha de amor!

A filha do Conselheiro abriu os olhos — sonhando. A primeira palavra
que lhe escapou dos lábios foi o nome do trabalhador da pedreira.

— Bravo! exclamou este apanhando-lhe a boca num beijo. — Até
que enfim te ouço dizer o meu nome!

— É que o ignorava…

— E como o sabes tu agora?

— Sonhei.

— Ah! sonhaste comigo?…

— Todo tempo que levei a dormir.

— E que sonhaste, meu amor ?

— Que estava ainda na minha primitiva existência, no mundo que troquei
por este, e do qual não tenho saudades, a não ser por meu pai.

— E então?

— Via-te a todo o instante; levava-te comigo no pensamento para toda
a parte; vi-te até em estátua, lutando com um tigre…

— Fantasias de sonho…

— Sonhei com tudo isto que nos cerca neste nosso éden; sonhei com esta
gruta, com estas árvores, com estes lagos e com esta deliciosa luz sanguínea
que me aviventa.

— Sim, sim, mas vai tratando de deixar a cama, que não havemos de ficar
aqui metidos o dia inteiro. Hoje quero levar-te ao vale, onde passa o rio
que nos separa da ilha do Segredo.

— Ilha do Segredo? ~ Que vem a ser isso?

— Tu verás… É encantadora.

— Muito longe daqui?

— Não, e se fosse? Não estou eu a teu lado para te carregar?

— É que me sinto tão fraca, tão pobre de coragem… tão magra!…

— Lá encontrarás novas forças. Vamos!

Ela ergueu-se pela mão do companheiro, e saíram da gruta.

Repontava o dia. Tudo se enchia de vida: as abelhas saíram para as suas obrigações;
borboletas peralteavam já pelo ar, em troça, mexendo com as flores; a pequenada
dos ninhos reclamava o almoço, e os pais andavam por fora, a tratar da vida,
aflitos, preocupados, mariscando na umidade da terra o pão-nosso da família.
O sol erguia-se como um patrão madrugador e ativo, acordando toda a sua gente
e chicoteando a golpes de luz a mata inteira, folha por folha, para não deixar
nenhum preguiçoso dormindo acoitado pela sombra. Uma dourada nuvem de lavandeiras
doudejava sobre os lagos, picando a água com a cauda, de instante a instante,
num crepitar frenético de asas.

— Então perguntou Luiz, de braço passado na cintura de Magdá. —
Não é melhor estarmos aqui no que metidos lã na gruta?

— Certamente, meu amigo.

— Ampara-te pois ao meu corpo e deixa o passeio por minha conta.

Puseram-se a andar por entre a chilreada dos caminhos. De vez em quando paravam
para colher um fruto, que dividiam entre si com a boca.

Andaram muito. Quando a moça chegou ao vale estava prostrada de cansaço.
O sol ia já bem alto no horizonte.

— Descansemos aqui à sombra deste tamarindeiro, para irmos depois até
ao rio, propôs Luiz. E, enquanto Magdá repousava no chão, ele foi apanhar
um coco e trouxe-lho já em estado de se lhe sorver o saboroso leite refrigerante.
Quando a viu de todo acalmada, principiou a descalçar-lhe os sapatinhos de
cetim.

— Que fazes!

Vou despir-te.

E tirou-lhe as meias.

— Despir-me, para que? ~ perguntou a filha do Conselheiro com um retraimento
de pudor.

— Para atravessarmos o rio.

E foi logo lhe desabotoando o colo. Magdá não se animou a dizer que não,
mas fez-se vermelha e abaixou os olhos. Luiz, todo vergado sobre ela, ajudou-lhe
a desenfiar as mangas do corpinho e sacou-o fora. Desacolchetou-lhe depois
as saias na cintura e arrepanhou-as para debaixo das pernas dela.

À moça levou as mãos às roupas, assustada, olhando com receio para os lados,
como se quisesse, antes de despi-las, certificar-se bem de que não era vista
senão pelo seu amante. Este compreendeu o gesto e disse-lhe sorrindo e tocando-lhe
com os dedos no alvo cetim da espádua:

— Não tenhas medo… Aqui não há mais ninguém além de nós! Podemos
ficar à nossa plena vontade, fazer o que bem quisermos; rolar nus e abraçados
por estes tabuleiros de relva; entregar-nos a todos os delírios do amor; enlouquecer
de gozo! Só Deus nos espreita, e Deus foi quem te fez para mim, para que eu
te goze e te fecunde, minha flor! Ele observa-nos satisfeito, lá de muito
alto, espiando pelas estrelas e sorrindo a cada beijo que damos! Quando nascer
o fruto do teu ventre, ele descerá logo num raio de luz, e virá abrir na boca
de nosso filhinho o seu primeiro riso e beber-lhe dos olhos a primeira lágrima.
É com esta lágrima e com esse riso das criancinhas que o bom velho fabrica
todos os dias o mel e o perfume das flores, o canto dos pássaros e o azul
dos céus.

E Luiz continuou a despi-la.

Magdá cruzou os braços sobre os peitos — ele acabava de lhe arrancar
afinal a camisa — e fechou os olhos, toda vexada e retraída. Mas depois,
sentindo nas carnes o olhar ardente que a queimava, porque o moço permanecia
a contemplá-la, embevecido e mudo, torceu-se logo sobre o quadril esquerdo,
repuxando para esconder a sua mimosa nudez as largas parras de um tinhorão
que havia junto.

Vergonhosa!… balbuciou o amante, ajoelhando-se aos pés dela.

E acrescentou em voz alterada, procurando alcançar. com os lábios o rosto
que Magdá se empenhava em esconder: — Não deves ter desses escrúpulos
comigo esposa de minha alma!… Acaso não sou todo teu! não és toda minha?…
Porque escondes o semblante! porque abaixas os olhos? Fita-os antes em mim
e deixa-me beber o mel dos teus lábios! Deixa-me abraçar-te bem! assim! toda
inteira, toda nua, que eu sinta na minha carne, a carne do teu corpo! Cinge-me
nos teus peitos! Aperta-me! Mais! mais ainda Magdá — um beijo… dá-me
um bei… Ah!

— Tu me matas de amor! soluçou ela.

E, por entre o suspirado resfolegar dos dois, estalejava o seco farfalhar
das folhas caídas.

Seguiram depois para o rio. Ele levou-a de colo, porque Magdá não podia andar
descalça; só a largou à margem dâgua.

— Mas eu não sei nadar… considerou ela, assustada.

— Sabes sim; todos sabem nadar. A questão é não ter medo.

— Ah! Eu tenho medo!…

— Irás comigo. Espera.

Luiz entrou no rio e disse à companheira que lhe passasse os braços em volta
do pescoço. Magdá obedeceu.

— Ah! Não me soltes, hein?…

— Não tens confiança em mim?…

— Ui, ui, ui, meu Deus!

— Então!

— Ai, minha Nossa Senhora! É agora!

— Medrosa! Não vês como vamos tão bem …

— Voltemos para terra! Voltemos!

— Olha que estás me apertando a garganta…

— Aqui já é muito fundo!… É melhor voltar-mos.

— Não sejas criança…

— A ilha está muito longe ainda?…

— Não a vês defronte de ti?

— É verdade! Oh! E como é linda!…

Calaram-se por instantes.

— Ainda tens medo? perguntou depois o moço.

— Não. Ela agora estava até gozando daquela excursão.

— Não te dizia?…

— E tu, não te sentes cansado?

— Qual o que!

Parecia mesmo não cansar; nadava como um cisne, quase sem se lhe perceberem
os movimentos, de tão suaves que eram. E a outra perdera afinal inteiramente
o medo, e, toda estendida à flor das águas, com os cabelos derramados pelo
rosto e pelos ombros, lá ia flutuando segura no amante, mais branca e leve
que uma pena de gaivota arrastada pela corrente.

— Então?… consultou o rapaz, tomando vau à margem da ilha e passando
o braço em volta de Magdá.- Que me dizes do passeio?…

— Delicioso.

— Aqui podes andar por teu pé, que o chão é todo de areia fina; mas
vamos primeiro assentar-nos debaixo daquelas juçareiras para repousarmos um
instante. Tens fome?

— Não, respondeu a moça, contemplando a ilha.

Era esta encantadora com a sua praia argentina lavada em esmeralda. Daqui
e dali surgiam dentre o salivar das espumas pequenos rochedos reverdecidos
de musgo aquático, onde garças e guarás mariscavam tranqüilamente. Um palmeiral
sem fim nascia quase á beira dágua e, pouco a pouco, à medida que se entranhava
pela terra, fazia-se mais compacto, até se fechar de todo com murmurosa cúpula
de verdura suspensa por milhões de colunas. Mundos de parasitas serpenteavam
em todas as direções, já suspensas e pendentes, embaladas pelo vento; já dependuradas
em arco, formando grinaldas; já grimpando encaracoladas pelos troncos e alastrando
em cima, como se quisessem quebrar a interminável noite daquele céu de folhas
com um infinito de estrelas de todas as cores.

Magdá, ao transpor o assombrado átrio da floresta, deteve-se para fazer notar
ao companheiro o perfume ativo que se respirava ali; um cheiro como o da magnólia,
agudo e penetrante, que ia direito ao cérebro com sutil impressão de frio.

— Vem dessas florinhas que vês aqui nos espiando de todos os lados;
essas que ora são cor de rosa, ora avermelhadas, ora cor de laranja e ora
cor de sangue. É uma trepadeira; não há canto da ilha em que não as encontres.
Mas não toques em nenhuma delas, porque, se colhesses alguma, nunca mais poderíamos
sair daqui.

— Ora essa! Porque?

— Não sei, é segredo! Foi Deus que assim o quis… Repara: não se descobre
uma só dessas flores pelo chão, e também a gente não as vê nascer; quando
vão murchando mudam de cor e revivem.

— E não dão fruto!

— Nunca.

— É esquisito.

— E perigoso…

— Mas como é que elas prendem a quem lhes toca?…

— Pois se é um segredo, como queres tu que eu saiba?…

— E nunca tiveste desejos de descobri-lo!

— Para que! Sou perfeitamente feliz sem isso…

— Não és curioso.

— Sou, mas tenho medo de tornar-se desgraçado.

Nesta conversa haviam chegado à fralda de um oiteiro coberto de murta e empenachado
por um frondoso bosque de bambús.

– Este morro divide a ilha em duas partes, explicou Luiz. — Queres
subir?

Magdá consentiu, posto se visse já bastante fatigada e fraca; tanto que,
do meio para o fim da viagem, foi preciso que o rapaz a carregasse. Sentia-se
quase desfalecida.

— Meu Deus, como estás pálida! disse ele, pousando-a à sombra dos bambús.
— Vou busear4e um pouco dágua ali à fonte. Espera um instante; eu volto
já.

– Não, não! gemeu a moça, segurando-o com ambas as mãos. — Não te afastes
de mim! Não é de água que eu preciso, é de um pouco de vida! Sinto fugirem-me
as últimas forças! Eu preciso de sangue.

E fazia-se cor de cera, e fechava os olhos, e entreabria os lábios, como
um orfãozinho abandonado que morre à míngua do leite materno.

Cortava o coração

— Magdá! meu amor! minha vida! exclamou Luiz, tomando-a nos braços.
— Não desfaleças! Não fiques assim! Desperta!

Ela soergueu as pálpebras, e murmurou baixinho, quase imperceptivelmente:

— Sangue! sangue! sangue, senão eu morro!…

— Ah! fez o moço com vislumbre. E sem sair donde estava, quebrou um
espinho de palmeira e com ele picou uma artéria do braço. — Toma! disse,
apresentando à amante a gota vermelha que havia orvalhado na brancura da sua
carne. — Bebe!

Magdá precipitou-se avidamente sobre ela e chupou-a com volúpia. Não se ergueu
logo; continuou a sugar a veia, conchegando-se mais ao amigo, agarrando-se-lhe
ao corpo, toda grudada nele, apertando os olhos, dilatando os poros, arfando,
suspirando desafogadamente pelas narinas, como se matasse uma velha sede devoradora.

Luiz, sem uma palavra, ouvia-lhe os estalinhos da língua e o gluglutar sôfrego
de criancinha gulosa pela mama.

Ah! respirou enfim a filha do Conselheiro, desprendendo os lábios do braço
dele e sorrindo satisfeita e vitoriosa. — Agora sim! posso viver!

O amante encarou-a e recuou, não podendo conter a sua surpresa e a sua admiração.
Magdá readquiria por encanto a frescura, a beleza e a saúde, que havia perdido
nos últimos anos. Reconstruía-se, revivificava-se à semelhança das florinhas
feiticeiras da ilha.

Ergueu-se triunfante.

As suas faces eram de novo duas rosas que atraíam beijos, como o matiz das
flores atrai sobre a sua corola o inseto portador do pólen; os olhos rebrilhavam-lhe
já com a sedutora expressão primitiva. Os seus lábios trêmulos recuperaram
logo o perdido sorriso dos tempos passados; a garganta carneou-se, reconquistando
as linhas macias, as doces flexibilidades da pele sã; as curvas do desnalgado
quadril retomaram enérgicas ondulações; os seios empinaram; as coxas enrijaram;
e toda ela se retesou, se refez de músculos e nervos, num a súbita revisceração
deslumbradora.

Luiz caiu-lhe aos pés, beijando-lhos com transporte.

— Como estás bela! Como estás bela! Abençoada gota de sangue que te
dei!

Magdá sorriu, estendendo-lhe os braços, agora carnudos e torneados. E, logo
que ele se levantou, cingiram-se ambos um contra o outro, num só arranco,
em igualdade pletórica de ternura.

Passaram o resto da tarde à sombra dos bambús, celebrando a sua nova lua
de mel com um opulentíssimo banquete de amor. Sentia-se já a aproximação da
noite, quando resolveram abandonar a ilha.

Magdá quis, porém, antes de partir, lançar lá de cima um olhar de despedida
sobre aquelas paragens encantadas. O companheiro levou-a ao ponto mais elevado
do morro.

— Contempla os teus domínios! disse, desferindo no ar um círculo com
a mão aberta.

Ela deixou cair o seu olhar de rainha sobre a esplêndida natureza virgem
que a cercava. Bosques e bosques acumulavam-se numa interminável aglomeracão
de tons, em que entravam todas as tintas da mágica palheta do divino artista,
dissolvidas em fogo, essa cor primordial que nenhum outro pintor possui. O
horizonte ardia em chamas; o céu rasgava-se, deixando transbordar em jorros
uma cascata de luz que dava ao menor objeto da terra o brilho de um metal
precioso. As florestas cintilavam. Gigantescos paus-d’arco bracejavam por
entre as árvores vizinhas para mostrar bem alto a sua coroa de ouro; mas as
palmeiras não se deixavam vencer e reagiam vitoriosamente por entre a espessura
da mata, agitando no ar o seu penacho indígena; a gameleira brava procurava
erguer a cabeça engrinaldada de heras e parasitas; pinheiros seculares, cedros
mais velhos que a religião, primeiras, angicos, perobas, todos os gigantes
da selva, pelejavam para sobressair! Uma luta silenciosa e terrível! Viam-se
púrpuras que se rompiam de cólera; cetros que se despedaçavam de inveja! As
tímidas plantas escondiam-se de medo e os lírios retraíam-se, estremecidos
e assustados, procurando ocultar a candura das suas urnas embalsamadas atrás
de rasteiros tinhorões e discretas folhas de begônia. Entretanto, o indiferente
rio, em preguiçosos torcicolos, rastreava lá em baixo, franjando de rendas
de prata aquela imensa túnica de veludo verde-negro, que a montanha arrastava,
estendendo-a sobranceiramente pelo vale. Afinal declinou a luta era a noite
que vinha já, com os seus cabelos sempre molhados, a sacudi-os, orvalhando
estrelas pelo espaço e apaziguando a terra debaixo das suas asas.

Ah! como Magdá amava agora tudo isso! Como estremecia aquela montanha em
que vivera os seus primeiros dias com Luiz! Era lá a pátria da sua felicidade!

E ficou a cismar embevecida neste devaneio, revendo-se na sua fraqueza de
então, quando ainda lhe não era permitido dar um passo sem o auxilio do amante.
E veio-lhe uma grande saudade, uma forte vontade desensofrida de rever no
mesmo instante aquele lugar querido, onde ela tanto padecera e gozara ao mesmo
tempo! Ao seu lado, Luiz parecia tomado dos mesmos enlevos; e tão distraídos
estavam ambos, que a moça, sem reparar, colhera uma das tais florinhas feiticeiras,
e ele a deixara colher sem dar por isso.

Mal, porém, a flor se desprendeu da haste, um medonho estampido ecoou pelo
espaço, deslocando o ar e abalando a terra. Magdá estremeceu, soltou um grito
e viu, em menos de um segundo, o rio que cercava a ilha levantar-se com ímpeto
e, enovelando-se, arrojar-se para cima das margens opostas e rebentar em pororocas,
engolindo a terra. E a montanha, com a sua túnica real, e os monarcas da floresta,
com os seus diademas cravejados de pedraria, e os prados com as suas cândidas
boninas, e os vales com os seus lírios tímidos. tudo defronte dos seus olhos
se convertera rapidamente num oceano sem fim, onde enorme sol vermelho e trôpego
se atufava, arquejante, ensangüentando as águas.

E Magdá, vendo a ilha isolada no meio de tamanho mar, atirou-se ao chão,
escabujando em gritos e soluços, e por alguns instantes perdeu de todo os
sentidos.

Voltou a si chamada por uma voz meiga que lhe dizia:

— Magdá, minha filha! Valha-me Deus! Valha-me Deus! Até o demônio daquela
pedreira havia de ficar defronte justamente aqui do quarto!.

E, reconhecendo a voz do Conselheiro, reconheceu também a da Justina. que
exclamava:

— Pestes! Atacarem fogo à pedreira sem prevenir nada, sabendo que há
aqui uma pobre doente neste estado! É maldade, como não ?

Magdá, quando abriu os olhos, percebeu que estava nos braços do pai.

— Ora graças! Ora graças, minha filha, que recuperas os sentidos!

XV

De todos os seus sonhos este foi até aí o que a deixou mais vencida pela
fadiga e pela vergonha. Duas horas depois de acordada, ainda permanecia na
cama, a cismar, sem ânimo de se erguer. Aquele incidente da ilha, em que ela
se via completamente nua, punha-lhe o espírito em dura revolta, contra a qual
a desgraçada antejulgava que não encontraria consolações.

— Mas, pensava, que mal fizera a Deus para ser castigada daquela forma?….
Pois não bastavam já os seus padecimentos físicos, os seus desgostos e os
seus tédios?… Porque e para que ia então o Criador descobrir com tamanha
falta de coração aquele novo modo de tortura?… Atacá-la no que ela mais
encarecia — atacá-la no seu pudor…! Não! antes morrer; antes mil vezes,
do que suportar por mais tempo semelhante desvario dos sentidos!

Felizmente veio a reação; deliberou-se a abrir luta contra o sonho. E, para
dar logo começo à campanha, resolveu passar a seguinte noite acordada.

— Minh’ama quer o seu chocolate? perguntou Justina pela terceira vez.

Magdá levantou-se afinal.

— Você porque se enfrasca deste modo em perfumes, sabendo que isso
me faz mal?

— Eu, minha senhora?

— Então quem há de ser?

— Juro por esta luz que não pus nenhum cheiro no corpo.

— Veja então se há algum frasco de perfumaria por aí desarrolhado!
Está rescendendo, não sente?

— Não, minh’ama, não sinto, respondeu a criada a fungar forte, como
um animal que procura descobrir alguma coisa pelo faro. — Não sinto
nada!…

— Que olfato tem você, benza-a Deus! Estou sufocada! Abra o diabo dessa
porta, deixe entrar o ar!

Justina apressou-se a cumprir a ordem da senhora, mas o maldito cheiro continuava.
E o mais estranho é que era aquele mesmo perfume agudo da ilha do Segredo;
aquele perfume ativo que lhe penetrava no fundo do cérebro como agulhas de
gelo.

— Veja se deixaram por aí algumas flores!… Sinto cheiro de magnólia!

Justina percorreu a alcova e os aposentos imediatos, fariscando ruidosamente.

Nada! Não encontrava nada de flores!

— Vá então lá em baixo saber o que é isto! Parece que estou numa fábrica
de perfumarias!

A, criada afastou-se, e Magdá ficou a estalar a língua contra o céu da boca.
Era ainda o terrível gosto de sangue que não a deixava.

— Oh! Quanta coisa desagradável, meu Deus!

Lembrou-se então da extravagante passagem da ilha, em que ela sugara o sangue
do trabalhador. Vieram-lhe engulhos, muita tosse e acabou vomitando o chocolate
que tomara nesse instante.

— É o mesmo cheiro, não há dúvida, pensou depois, indo à janela; o
mesmo cheiro que eu sentia no sonho!

E respirava alto, com insistência. — Sim, sim, é o mesmo perfume! Ora
esta! Parece que tudo tresandava a magnólia! Será muito bonito se eu, de agora
em diante, não puder livrar-me, nem acordada, de semelhante perseguição!…

Todo esse dia, entretanto, se passou assim: o cheiro de magnólia e o gosto
de sangue não a deixaram um segundo. Nunca estivera tão nervosa, tão excitada;
achando em tudo um pretexto para implicar, chorando sem causa aparente, irrequieta,
a passarinhar pela casa, com um desassossêgo de ave quando está para fazer
o ninho. O Dir. Lobão conversou com o Conselheiro e os olhos deste se encheram
dágua.

— Acha então que ela está pior, Doutor?… Acha que está muito mal?.,..

— Está entrando já no terceiro período da moléstia. Esse desassossêgo
que sobreveio agora é um terrível sintoma… Mas não desanime! não desanime!

E, para o consolar, afiançou que Magdá era o caso mais bonito de histeria
observado por ele.

Á noite a enferma pediu café.

— Café?

Houve um espanto. Não lho quiseram dar; afinal, depois de grande disputa,
consentiram em ceder-lhe meia chávena, muito fraco.

— Não, não, não! Ela não queria assim! queria um bulezinho cheio e
de café forte.

— Mas, minha filha, lembra-te do estado melindroso em que tens os nervos!
Se o café em grandes doses faz mal a qualquer um, quanto mais a ti.

Magdá chorou, arrepelou-se, arrancou cabelos. O médico, porém, voltando à
noite, aconselhou que a deixassem tomar todo o café que lhe apetecesse

— Deixem-na beber à vontade! Pode ser até que isso lhe produza uma
reação favorável sobre os nervos! Nada de contrariá-la!

Foi levada uma cafeteira para o quarto de Magdá. Esta assentou-se à mesinha
defronte do candieiro e começou a ler, depois de tomar uma chávena de café,
que se lhe conservou no estômago.

— Você, ordenou à criada, não durma, hein? Nem me deixe dormir também,
compreende?

— Como, minh’alma ? Pois vosmecê não tenciona dormir tão cedo?…

— Tenciono passar a noite em claro.

— Jesus! Mas isso lhe há de fazer muito mal! Ora como não?

— Vá buscar-me aqueles jornais ilustrados e aqueles álbuns de desenho,
que estão lá na sala, e ponha-me tudo aí em cima da mesa.

Justina afastou-se trejeitando esgares de lástima.

Magdá sentia-se agora menos inquieta; fazia-lhe bem o empenho com que ela
queria pregar um logro ao sonho, faltar à entrevista com o moço da pedreira.
Sentia gosto em enganar alguém. Era uma preocupação e por conseguinte um divertimento.
Ardia de impaciência por ver passada aquela noite; afigurava-se-lhe que, depois
disso, poderia dormir à vontade, tranqüilamente, sem cair nunca mais nas garras
do seu maldito perseguidor.

A Justina é que daí a pouco cabeceava, sem conseguir abrir olhos. Magdá obrigou-a
a tomar uma xícara de café, o que não impediu que a boa mulher uma hora depois
ressonasse, ali mesmo, de pé, encostada à ombreira da porta, com os braços
cruzados.

A senhora sacudiu-a, frenética.

— Eu não lhe disse, criatura, para ficar acordada?

A pobre respondeu com bocejos.

— Vamos! Ponha-se esperta! Tome outra xícara de café!

A senhora que a desculpasse; havia, porém, um ‘rôr de tempo que ela não dormia
direito e puxava muito pelo corpo durante o dia…

— E porque você não tem dormido direito?

— Ora! porque é necessário estar sempre meio acordada, para ver quando
minh’ama precisa de alguma coisa… Como não?

— Eu então não tenho o sono tranqüilo?

— Tranqüilo? Quem lho dera! Vosmecê durante o sono tem arrepios de
vez em quando; doutras parece que está ardendo em calor; que sente comichões
pelo corpo: coça-se, remexe-se, abraça-se e esfrega-se nos travesseiros; geme,
suspira; tão depressa dá p’ra chorar, como p’ra rir; ora se encolhe toda,
ora atira com as pernas e com os braços e quer lançar-se fora da cama! Pois
então? E’ preciso que a gente a endireite; que lhe dê o remédio do frasco
maior ou uma pouca dágua com flor de laranja… De quantas e quantas feitas
eu não tenho deitado a vosmecê no meu colo, para sossegá-la?…

— E não falo quando durmo?

— Ás vezes, como não? e muito! mas não se entende patavina; fala entre
dentes. Ainda ontem, foi muito boa! vosmecê, lá pela volta das duas da madrugada,
deu p’ra embirrar por tal modo com a roupa, que eu tive de sacar-lhe fora
a camisa.

— Pois você me despiu, mulher?

— E tornei a vestir depois, sim senhora.

— E eu não acordei! …

— Ah! vosmecê agora tem um sono muito ferrado. Quer parecer que acorda,
mas qual! está dormindo que é um gosto! abre os olhos, isso abre; passa a
mão pela testa; se lhe dou a água — bebe-a; às vezes levanta-se, quer
andar, eu não deixo. Uma ocasião, quando dei fé, já minh’ama se tinha safado
da cama e estava a procurar não sei o que naquele canto do quarto… Por sinal
que me pregou um tal ‘susto, credo!

Magdá ficou a cismar com as palavras da criada, estalando sempre a língua
contra o céu da boca. Uma idéia extravagante atravessava-lhe o espírito nesse
momento: “E quem sabia lá se aquela mulher não lhe tinha dado sangue a beber?…”

Fitou Justina, e com tal insistência, que a rapariga perguntou:

— Sente alguma coisa, minh’ama?…

— Deixe ver o seu braço.

Justina estendeu o braço, intrigada.

Magdá examinou-o todo, minuciosamente, mas não descobriu nele a menor escoriação.

— Porque vosmecê me revista o braço? …

— Cale-se!

E, depois de fitá-la de novo: — O que é que você me tem dado a beber
durante o sono? Mas não minta!

— Ó minha senhora, eu já disse, como não? A água pura ou com açúcar
e flor de laranja, ou quando não, aquele remédio de frasco maior, que o Doutor
mandou dar, quando vosmecê acordasse à noite com os seus incômodos.

Magdá pediu o tal frasco para ver e, apanhando uma gota do remédio com a
língua, ficou a tomar-lhe o sabor.

Qual! Não era dali que vinha o gosto de sangue!

Bateu meia noite no relógio da sala de jantar.

— Olhe, minh’ama, meia noite!

— Já sei! Vá lá abaixo buscar um pouco de presunto com pão.

— Que diz, minh’ama ? Não caia nessa! Vosmecê tem visto o mal que lhe
faz a comida fora d’horas…

— Não me aborreça! Veja o que lhe disse!

Justina saiu do quarto, resmungando, e a senhora logo que se achou sozinha,
teve um tremor de medo. A criada felizmente não se demorou muito.

— Cá está, minh’ama. Vosmecê quer vinho?

— Não.

~ Magdá gulosou algumas febras de presunto, bebeu mais café e atirou-se aos
seus jornais ilustrados, disposta a não ceder um passo na resolução tomada.

— Porque vosmecê não se vai deitar, minh’ama? E’ melhor! Agasalhe-se!
Daqui a pouco está aí a friagem da madrugada! Já passa de uma hora!

A filha do Conselheiro não respondeu e ferrou a vista, com uma fixidez de
teima, no desenho que tinha debaixo dos olhos.

— Vosmecê nunca se deitou tão tarde..

— Cale-se, que diabo!

— É que lhe pode fazer mal…

— Pior!

A criada calou-se, bocejou traçando com a mão uma cruz, mais sobre o nariz
do que sobre a boca, e daí a nada pediu, quase de olhos fechados, que su’ama
então lhe deixasse encostar a cabeça um instante. “Ela estava a cair de canceira”.

Pois sim, que fosse, mas que ficasse alerta.

“Como não?” Mal porém. encostou a cabeça, dormiu logo a sono solto.

No entanto, a senhora parecia bem entretida com as suas ilustrações. Correu
meia hora — e ela sempre a ver os desenhos e a ler. De repente teve
uma contração nervosa, muito rápida.

— Mau!… disse, e procurou segurar melhor a atenção no que estava
lendo.

Mas com pouco um calefrio empolgou-lhe os ombros e foi lhe descendo pelo
dorso, até fazer vibrar-lhe o corpo inteiro

— Justina! Justina!

A criada não se abalou, e o silêncio e a solidão da noite começaram prontamente
a fazer das suas. A histérica estremeceu de novo, olhando para os lados, aterrada,
sem poder mais articular palavra. Um pânico apoderou-se dela, pondo-lhe estranha
agitação no sangue.

Teve uma idéia — rezar.

Ergueu-se desvairada, com os cabelos em pé, e encaminhou-se para o crucifixo.
Nisto ouviu distintamente uma voz dizer ao seu ouvido:

— Magdá!

Voltou-se com um gemido rouco e caiu de joelhos defronte da imagem, toda
trêmula e gelada.

Tinha reconhecido a voz do seu amante fantástico. E principiou logo a ver
tudo avermelhado como nos sonhos: o que era branco fazia-se cor de rosa; o
que era cor de rosa tingia-se de escarlate; o amarelo tomava a cor de laranja
e o azul arroxeava-se.

Ela arfava; levou a mão à testa: os dedos voltaram úmidos de suor frio; quis
gritar, e não pôde. E o seu corpo escaldava em febre; e suas fontes latejavam.
Contudo não tinha perdido ainda de todo a razão e mentalmente suplicava a
Deus que a amparasse, que a socorresse naquele horroroso transe:

— Pois não me será dado escapar a esta maldita perseguição?… Ó meu
pai misericordioso, que irá me suceder? Que irá me suceder agora?

Mas os objetos difundiam-se já e transformavam-se em torno de seus olhos,
que só viam a imagem de Cristo — de braços abertos, e a crescer, a crescer,
enchendo a parede.

E, naquela palpitação nervosa, Magdá sentia as palavras borbotarem no seu
espírito e derramarem-se pelos seus lábios com a verbosidade e a inspiração
de um poeta ébrio.

— Preciso não sonhar! Preciso arrancar aqui de dentro esta dolorosa
loucura que me absorve, gota a gota, toda a substância da minha vida!

E, de joelhos, o rosto levantado, as mãos erguidas para o céu, as lágrimas
a desfiarem-lhe uma a uma pelas faces, ela acrescentou depois da oração que
lhe ensinara a tia Camila: — Jesus, meu amado, meu esposo, acode-me,
acode-me depressa, que a fera já aí está comigo! Vem, que ela me farisca e
me cerca rosnando! Vem, que lhe ouço o respirar assanhado e já sinto o seu
bafo e o cheiro carnal que ela solta de si! Vem, que a maldita me acompanha
por toda a parte e me cheira como o cão à cadela! Vem de pressa; não a deixes
saciar no meu corpo de virgem os seus apetites lascivos! Não me deixes assim,
amado do meu coração, cair tão feiamente em pecado de impureza e luxúria!
Não me atires como um pedaço de carne às garras do lobo imundo! Esconde-me
à tua sombra; protege-me como o fizeste com a outra Madalena, menos merecedora
do que eu, que sou donzela e sempre te amei e servi com a mesma candura! Lembra-te,
querido de minh’alma, de que estou enferma e fraca e só tenho força e ânimo
para te amar! Vê que não me posso defender só por mim! Ajuda-me! tem pena
de quem te quer e adora acima de todas as coisas! Vê como tremo e choro! Se
és o pai dos humildes, vale-me agora, salva o meu pudor e não consintas que
de hoje em diante a minha virgindade se haja ainda de retrair corrida e envergonhada!
Vem e acompanha-me nos meus sonhos, conduze-me pela tua mão, como fazias com
as crianças que encontravas perdidas no caminho; se te vir a meu lado não
sonharei desatinos e sujidades que me matam de vexame e nojo contra mim própria!
Vem ter comigo e exorciza de dentro de mim o demônio que habita minha carne
e enche de fogo todas as veias do meu corpo! Não deixes que a luxúria esverdinhe
minha alma com a baba do seu veneno! Reabilita-me, para que eu me estime e
preze como dantes! Lava-me da cabeça aos pés com a luz da tua divina graça;
perfuma-me com os teus aromas celestiais; sopra teu hálito sobre mim, para
que não me fique vestígio de terra na pele e nos cabelos; beija minha boca,
para lhe apagar o gosto de pecado que a põe amarga e suja; beija meus olhos,
para que eles não enxerguem o que não devem ver; beija meus ouvidos, para
que eles não escutem o que não devem ouvir; beija-me toda, para que toda eu
me purifique e me faça digna do teu amor! Sacode em cima de mim o orvalho
do teu manto e as gotas do teu cabelo, para que eu me acalme e abrande; traça
com a tua mão pura uma cruz sobre a minha testa, para afastar por uma vez
os maus pensamentos, e passeia três voltas em torno do meu corpo para que
a fera nunca mais se aproxime de mim! Vem, vem! que ela aí torna e começa
a uivar de novo! Acode-me, Senhor, acode-me!

Estremeceu toda num arrepio mortal, escondendo o rosto, sacudida pelos soluços.
E, como em resposta às suas súplicas, não descia dos céus nenhum alívio, ela
revoltou-se afinal contra Jesus: — Para que então servis? interrogou
— Para que então sois Deus, se não baixais em meu socorro, quando eu
tanto preciso de amparo e de defesa?! Que é feito então do extremoso amigo
das mulheres e das crianças, ao qual me ensinaram a amar desde o berço? que
é feito desse ente apaixonado e casto, que tinha dantes consolações para toda
a desgraça, e um raio de luz para secar a mais escondida lágrima dos que padeciam?
que é feito do sudário cor de lírio em que se enxugava o pranto dos desamparados?
que é feito dessas bênçãos de pai, que apaziguavam a terra e confortavam o
coração dos pobres? para onde se voltaram aqueles olhos misericordiosos, que
dantes enchiam o mundo com o eflúvio da sua ternura? como para sempre se fecharam
aquelas entranhas de piedade, aquele peito de amor, onde a mísera humanidade
se refugiava, como num templo de ouro e marfim? Se não vierdes imediatamente
em meu socorro, acreditarei no que dizem os contrários da vossa igreja, ou
que desertastes de vez para os céus, esquecidos de todo das vossas criaturas!
Se não vierdes já e já, acreditarei que estais outro e que já não sois aquele
mesmo Jesus, terno, humilde, casto, bom, fiel e onipotente! acreditarei que
viveis no egoísmo e na indiferença, amarrado ao trono, ébrio de orgulho e
vaidade, como qualquer miserável monarca da terra!

E interrogou a imagem com um olhar em que havia súplica e ameaça. Mal soltou
logo um rugido surdo, apontando para o crucifixo e balbuciando, cheia de terror:
— Não! Já não sois vós quem aí está crucificado! Quem está aí agora
é o outro! É ele! É o demônio!

E caiu do bruços no chão, com um grito. E logo em seguida, sem ânimo de erguer
a cabeça, transida de medo, sentiu distintamente que o Cristo se agitava na
parede, como forcejando para despregar-se da cruz, e que afinal descia, pisava
no chão, encaminhava-se para ela e tocava-lhe de leve com a mão no ombro,
aproximando a boca, para lhe falar ao ouvido. Magdá sentiu rescender o cheiro
da murta.

— Levanta-te, amiga minha, formosa minha, e vem! A mangueira começou
a dar as suas primeiras mangas; as flores do caju lançaram já o seu cheiro!
Vem, pomba minha: nos segredos do teu quarto mostra-me a tua face; soe a tua
voz dentro dos meus ouvidos, porque a tua voz é doce e a tua face graciosa!

A moça ergueu a cabeça.

Ele beijou-a, prosseguindo, com o rosto unido ao dela: — Sim, Magdá,
minha irmã, minha esposa, minha amada, teus olhos de tão belos se parecem
com os olhos de Maria Santíssima; são ternos, são negros, humildes o majestosos;
tuas mãos brancas relembram os lírios da Virgem e os teus dedos distilam a
mirra mais preciosa; as faces do teu rosto rescendem como as rosas do amor
divino; os teus cabelos excedem no cheiro aos aromas excelentes do seu altar;
os teus peitos são brancos como duas ovelhas gêmeas e tão rijos como os jacintos
da sua coroa de rainha dos céus; a tua carne é tão macia como o cetim do seu
manto e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso; o sorrir da
tua boca é tão lindo como o dela, mas eu gosto mais do teu, por menos divino
e etéreo e porque mais me enfeitiça e me abrasa de amor; o teu hálito, minha
pomba, é melhor que os perfumes do país de Cedar; tua garganta é de sândalo;
tua voz é um aroma; a luz dos teus olhos é um diamante líquido; teus dentes
são pérolas de orvalho entre pétalas de rosa. Tu, entre as mulheres da terra,
és a mais bonita, a mais sedutora e a mais amável; entre as mulheres tu és
como a palmeira entre as outras árvores: não tens igual; és majestosa como
os cedros do Líbano e delicada e cheirosa como os eloendros de Jerusalém

Magdá deixava-se embalar pela música sensual e mística destas palavras e
o cheiro de murta. E, já sem medos nem sobressaltos, quedava-se imóvel e comovida,
como se estivesse conversando em êxtasis com um Cristo só dela, um Cristo
destronado e sem orgulhos de Deus, um Cristo seu amante, fraco, de carne,
submisso e humano.

E a voz ainda lhe disse, entrando-lhe pelos ouvidos, pela boca, por todos
os poros, com o seu aroma agreste e afrodisíaco: — Levanta-te, minha
amada, e torna comigo ao nosso ninho de amor! Eu te busquei esta noite a meu
lado, busquei-te e não te encontrei! Ergui-me à luz das estrelas e rodeei
como um louco a ilha, e não te achei! busquei-te pelas matas, pelos vales
e pelo monte, e não te descobri! Chamei-te: “Magdá! Magdá! Magdá!” e não me
respondeste! Perguntei às águas do mar, às arvores do campo, aos ventos do
espaço, se tinham visto aquela a quem ama minh’alma; e todos eles não souberam
dar novas tuas; e eu aqui estou; eu vim buscar-te, e não tornarei sem te levar
comigo! Vem! Na tua ausência fiz um leito de madeiras aromáticas e alcatifei-o
todo de flores, para te receber; colhi os mais saborosos frutos para a tua
chegada, e fermentei a uva mais doce para nos embriagarmos com ela!

— Sim, sim, respondeu afinal Magdá, entregando-se a ele; leva-me! Eu
te acompanho de novo para onde bem quiseres! Carrega-me, querido! Preciso
ir beber do teu vinho, comer dos teus frutos, amor do teu amor e reviver com
o teu sangue! Leva-me! Aqui me tens! Sou tua!

XVI

Esta crise prostrou-a de cama por dois dias, dois dias de febre e delírios,
em que ela não deu acordo de si e falava de coisas inteiramente estranhas
para os mais. Sonhava-se na ilha do Segredo.

– Quando, enfim, se levantou havia já entrado totalmente no terceiro período
da moléstia. Estava cadavérica; os olhos muito fundos; as faces cavadas e
a pele estalando em pequeninas rugas, como porcelana velha. Contudo, em nenhum
dos seus gestos, como em nenhuma de suas palavras se lhe notava desarranjo
cerebral; aparentemente era a mesma em orgulho, em virtudes e em fidelidade
aos seus princípios religiosos, apenas sucedia que todas estas qualidades
cada vez mais se acentuavam com certo exagero progressivo. O cheiro de magnólia
e o gosto de sangue ainda a perseguiam com maior ou menor intensidade. De
novo o que Magdá apresentava agora de mais notável eram umas espécies de alucinações
letárgicas, muito rápidas, que a acometiam de vez em quando e nas quais reatava
quase sempre o seu último sonho; mas não falava durante essas crises, ficava
num estado comatoso, estática, de olhos bem abertos, dentes cerrados, um ligeiro
rubor nas faces; às vezes sorrindo e às vezes deixando que as lágrimas lhe
corressem surdamente pelo rosto.

O médico recomendou que não a despertassem dessas letargias. “Deixassem-na
lá, que por si mesma havia de recuperar a razão.”

Outra novidade era que já não parecia sentir, como dantes, repugnância em
ouvir falar no futuro cunhado de Justina; agora, ao contrário, quando esta
se referia ao rapaz, a senhora escutava-a com interesse e até já lhe fazia
perguntas a respeito do pobre diabo. Uma ocasião quis saber que tal era ele
de gênio; quais os seus costumes, se bons ou maus; se estimava muito a noiva;
se pretendia realizar em breve o casamento; se era homem dado a bebidas, ou
ao jogo, ou a outras coisas feias. A criada informou muito a favor do Luiz:
elogiou-lhe o caráter; contou as suas boas ações; falou na sua economia, no
seu amor pela mãe e pela avó, e terminou declarando que a Rosinha apanhara
um homem às direitas. “Às direitas, como não?”

À filha do Conselheiro contrariaram um tanto estes elogios. Não sabia porque,
mas intimamente desejava que aquele imbecil fosse mais desgraçado e menos
digno de estima; preferia ouvir dizer pelos outros os horrores que ela tinha
vontade e não podia despejar contra o miserável; preferia saber que ele era
um perdido, sem a menor idéia de estabelecer família, um bêbado devorado pela
vil e baixa crápula das vendas e dos cortiços. E Magdá ficava revoltada, sentia
as mãos frias de raiva, quando, ao chegar por acaso à janela, dava com o cavoqueiro
que ia ou vinha do trabalho, ostentando o ar satisfeito de quem traz a vida
direita e anda em dia com as obrigações.

— Ah! o seu desejo era descarregar-lhe um tiro na cabeça!

Um domingo, em que ela espairecia à porta da chácara, o Luiz passou na rua,
todo chibante nas suas roupas de ver a Deus, de braço dado à noiva, e rindo
muito e conversando com a mãe e com a velhinha Custódia: contentes que metia
gosto vê-los. Pois a filha do Conselheiro, só por causa disso, mostrou-se
contrariada e ficou pior esse dia. Tanto que, já de noite, estando a cismar
na sala, com os olhos fitos num pequeno grupo de mármore que aí havia, ergueu-se,
tomou-o nas mãos e, depois de o examinar com o rosto muito carregado, arremessou-o
de encontro à laje da janela. O grupo representava em miniatura: “Amor e Desejo”,
de Miguel Ângelo — Um casal de quinze anos preso pelos lábios em um
beijo ideal e ardente. — Quando o Conselheiro, deveras contrariado,
perguntou quem havia quebrado a escultura, ela respondeu sem se alterar:

— Foi a Justina, papai, mas não lhe diga nada, coitada!

Sim, por último dera para isto: pregar destas pequenas mentiras e, se acaso
queriam provar o contrário do que afirmava, punha-se furiosa, acabando sempre
por desabafar em soluços a sua contrariedade. Assim, tendo uma vez matado
um casal de rolas que havia na sala de jantar, só porque o surpreendera em
flagrante delito de procriação, não só fugiu à responsabilidade do ato como
ainda afetou grande desgosto pela morte dos brutinhos, chegado a revolucionar
toda a casa para descobrir o suposto assassino.

Entretanto, os sonhos com Luiz continuavam sem interrupção, e Magdá, a contra
gosto, habituava-se com a sua existência em duplicata, ajeitando-se pouco
a pouco ao contraste daquelas duas vidas tão diversas e tão inimigas. Não
podia ser mais feliz do que era ao lado do seu fantástico amante; ah! mas
bem caro pagava depois essa felicidade, quando, acordada, o seu orgulho de
mulher honesta abria em luta contra as degradantes lubricidades do sono.

Viviam nus desde o fatal momento em que se prenderam na ilha do Segredo.
Luiz construíra uma cabana de bambú, coberta de pindoba, e fez alguns utensílios
domésticos; já tinham cama, bancos, um armário para guardar frutas, e dois
ou três potes para conservar o mel das abelhas, o vinho do cajú e o leite
de uma cabra que apanharam no monte.

Cercaram a choupana com valentes toros de madeira e, quando anoitecia levantavam
uma fogueira defronte da porta. É que já se não sentiam tão seguros como dantes;
Luiz temia até qualquer invasão, porque, logo que o rio se converteu em mar,
estava franqueada a ilha.

E, com efeito, um belo dia, passeavam os dois na praia, secando os cabelos
ao sol depois do banho, quando avistaram no horizonte uma vela que se aproximava.
Ficaram ambos transidos de sobressalto; Luiz ordenou a Magdá que se metesse
em casa e não saísse sem ser chamada por ele.

A filha do Conselheiro obedeceu, mas ficou espiando lá de dentro.

Daí a pouco viu chegar num escaler, tripulado por quatro marinheiros, um
magote de seis pessoas que, pela distância, não podia reconhecer, distinguindo
apenas que havia quatro mulheres no grupo; que um dos homens trazia farta
de oficial de marinha e que o outro estava todo envolvido numa enorme capa
negra, que lhe dava aparências de espectro.

O oficial saltou a ilha e fez apeiarem-se as mulheres. Estas, logo que se
pilharam em terra, correram de braços abertos sobre Luiz, soltando gritos
de contentamento. E, depois de muitos beijos e abraços, puseram-se todos a
caminhar na direção da palhoça, acompanhados pelos quatro marinheiros que
vinham armados de escopetas e machadinhas de abordagem.

Magdá reconheceu então que o oficial era o Conselheiro, vestido e remoçado
como num retrato a óleo, que ele tinha no seu gabinete de trabalho em Botafogo.

Tremeu, quis fugir, mas lembrou-se da ordem de Luiz e deixou-se ficar. Em
uma das mulheres descobriu Justina; em outra Rosinha; nas outras a mãe e a
avó do moço da pedreira. Vinham todas com as roupas do domingo; as duas velhas
traziam lenços de ramagem na cabeça, e nos ombros xales encarnados de Alcobaça.
As raparigas, com os seus vestidinhos de chita, tinham o ar contrafeito e
grosseiramente sério das moças de cortiço; as mangas do casaquinho muito justas,
quase insuficientes, dando difícil saída a punhos grossos, vermelhos e lustrosos,
terminados em mãos curtas, socadas, de gordura sanguínea.

O outro, o da túnica negra, é que Magdá não conseguiu reconhecer, a despeito
dos esforços que empregava para isso; só pôde distinguir-lhe as feições quando
ele lá se achava a uns quarenta passos da choupana. Era seu falecido irmão,
o Fernando; vinha cor de cadáver, muito desfeito; parecia ter saído naquele
instante da sepultura. Ela estremeceu toda e, com um arranco de anta bravia,
pinchou o corpo para fora da toca e abriu num carreirão pelo mato.

— Não fujas! gritou Luiz. — Não tenhas medo, que ninguém aqui
te quer fazer mal

— Magdá! Magdá!

— Espera, minha filha!

Era tudo inútil. Magdá, completamente una, os cabelos soltos ao vento, lá
ia, por trancos e barrancos, internando-se na floresta. Um fugir vertiginoso
de cabrita assustada! Morros e valados desapareciam atrás dela; não havia
encruzamento de cipó que lhe tolhesse a marcha, nem espinheiro, por mais bravio,
que lhe quebrasse a fúria. E sentia atrás de si uma gritaria infernal e um
tropel confuso de passos rápidos.

— Magdá! Magdá! Bradavam-lhe na pista.

E ela corria mais De repente — parou. Uma voz grossa exclamava-lhe
pela frente:

— Cerca! Cerca!

Em menos de um minuto fecharam-na por todos os lados gritos de caçadores
e passos que se aproximavam com vertigem.

— Cerca! Cerca!

— Por aqui!

— Por ali!

E de cada ponto surgiu logo uma cabeça de marujo, rompendo a argamassa das
folhas.

Magdá caiu por terra sem forças, as carnes alanhadas, os pés em sangue, os
cabelos arrebentados. Incontinente os homens a rodearam, sem todavia nenhum
deles lhe tocar com um dedo; a prisioneira, estarrecida no chão, arquejava,
cruzando as pernas e os braços para esconder as suas partes vergonhosas. Afinal
chegaram os outros, entre os quais vinha o Luiz, agora mais composto por uma
capa, que o Conselheiro lhe pusera aos ombros; o primeiro a aproximar-se dela
foi Fernando, que despiu logo a manta e estendeu-a sobre a nudez da irmã.

— Minha filha! minha filha! disse o Conselheiro, vergando-se para lhe
dar um beijo. — Em que estado a encontro, meu Deus! E ordenou aos marinheiros
que improvisassem uma padiola de bambús e folhas de bananeira.

Daí a pouco Magdá era levada ao ombro daqueles para a cabana. Arrearam-na
sobre o tosco leito fabricado pelo amante; deram-lhe a beber os confortativos
que se foram buscar a bordo com toda a pressa e lavaram-lhe em arnica as feridas
que ainda sangravam.

Quando conseguiu falar, pediu ao pai e ao irmão que não a castigassem.

— Castigar-te, minha filha…? respondeu o Conselheiro, afagando-a.
— Não! Nada tenho que te exprobar, porque agora compreendo que o moço
da pedreira te salvou a vida, trazendo-te para o seu desterro. Se eu te obrigasse
a ficar lá em casa, sozinha comigo, a estas horas estarias sem dúvida debaixo
da terra; ao passo que aqui — vives! e estás forte, e bela, e feliz!
Não! eu te abençôo, como abençôo a este rapaz, cujos esforços foram muito
mais proveitosos que os do Dr. Lobão.

E, palavras ditas, o pai de Magdá abraçou-se a Luiz.

— Não desejo contrariar-te… prosseguiu ele, voltando-se de novo para
a rapariga, com os olhos carregados dágua, se quiseres continuar a viver aqui,
fica; se quiseres voltar para a minha companhia, eu te receberei e mais ao
teu homem; apenas o que lhes peço. quer vão ou fiquem, é que se casem e quanto
antes. Trouxe no meu navio um padre e tenho a bordo o necessário para armar
o altar.

— Pois está dito, balbuciou Magdá. E chegando os lábios ao ouvido do
pai, disse-lhe um segredo, que a ela própria fez corar, mas que a ele encheu
de vivo contentamento.

— Um neto, exclamou o Conselheiro. — Oh, que felicidade!

Magdá, afogada em pejo. tapou-lhe a boca com a polpa da mão.

— Ter um neto era o meu sonho dourado! Como vou ser feliz no resto
da minha vida!…

— Ora, papai!…

Que mal faz que o saibam todos, se vais esposar de teu filho?… Acaso, desse
momento em diante; não ficarás reabilitada aos olhos do mundo inteiro!

— Cale-se, papai…

— Não! Deixe-me falar! Deixa-me dar expansão à minha alegria! Não vês
como estou rindo… . e não sentes, minha filha, estas lágrimas que me abandonam,
porque o coração, de tão contente que está, as enxota de casa, como inúteis
de hoje em diante? Oh! obrigado, Magdá! muito obrigado!

De junto, Fernando contemplava-a silenciosamente com o seu imóvel e apagado
olhar de morto; os braços em cruz sobre o casco do peito; a pele sem brilho;
as barbas ressequidas e cobertas de pó. Agora é que ele de todo se parecia
com o Cristo da Mater Dolorosa; a irmã teve impulsos de ajoelhar-se defronte
daquela melancólica imagem e rezar. como fazia dantes nas suas tredas escápulas
religiosas.

Ficou resolvido que o casamento se efetuaria daí a dois ou três dias com
a maior solenidade que lhe pudessem dar. Começou-se logo a construir outra
casa maior, não mais de bambús amarrados com embira e coberta de folhas de
pindoba, mas feita de madeiras escolhidas, forrada de tábuas pela parte de
fora e de lona pela parte de dentro. Mobiliaram-na depois com muito gosto
e sortiram-na com enorme provisão de mantimentos cm conserva, e pipas de vinho
e aguardente e latas de bolacha inglesa E vieram também aparelhos de porcelana
e lanternas e candieiros, muitas caixas de velas, jarros, quadros, um piano,
colchão, colchas lavradas e roupas de toda a espécie, não esquecendo as jóias,
os livros e mais objetos de que se privara Magdá ao partir com o cavoqueiro.

— Mas isto é uma mudança completa! Meu pai não deixou nada em terra…!
— observou ela, notando as coisas que desembarcavam e reconhecendo-as
uma por uma.

Com efeito, vinha tudo; lá estavam as louças da Saxônia, os candelabros bisantinos,
as peles da Sibéria. as velhas tapeçarias do salão de Botafogo, os caprichosos
kakimanos, os espelhos, os damascos bordados a ouro e prata, e os consolos
com mosaicos de Florença. É que o Conselheiro, uma vez que a filha não estivesse
resolvida a acompanhá-lo, voltaria à vida inconstante do mar, para nunca mais
se desprender do seu navio.

Pronta e armada a casa, principiou-se a fazer defronte dela um altar ao ar
livre, com uma imensa cruz de cedro tosco entre duas palmeiras e fincada num
grande pedestal de troncos d’árvores, cujos degraus não se viam, era tal a
profusão de flores que os carregava de alto a baixo. Arranjaram-se faróis
para iluminar toda a ilha, e a tripulação de bordo saiu, em parte armada de
espingardas, a caçar pela floresta, e em parte carregada de redes para a pescaria.
Engendrou-se uma soberba tenda destinada ao banquete, embandeirou-se tudo
e pregaram-se lanternas chinesas em volta da habitação.

No dia das bodas cinqüenta peças de caça e outras tantas de pesca rechinavam
e lourejavam sobre braseiros e fogueiras; grandes tachos de cobre luziam ao
fogo, soprando nuvens de vapor odorante; fabricavam-se os doces mais estimados;
batiam-se as massas mais delicadas. E os marinheiros, agora de avental branco
e carapuça de cozinheiro, cruzavam-se no morro, ora levando largas braçadas
de frutas, ora carregando enormes travessões de assado, ou conduzindo para
& mesa ânforas de prata cheias de vinho. Havia uma grande atividade; a
velha Custódia e a tia Zefa não descansavam um segundo, iam e vinham azafamadas,
a saia enrodillhada na cintura, os braços arremangados, tão depressa a encher
garrafas e cangirões, como preparando ramilhetes para os jarros ou pejando
as corbelhas com frutas que lhe traziam os marujos. O Conselheiro, sempre
de farda, dirigia todo o serviço tal qual como se manobrasse um navio; só
dava as suas ordens apitando ou então gritando por um porta-voz de que se
não separava nunca. E ao seu comando afestoava-se toda a ilha, com uma rapidez
de serviço de bordo.

A cerimônia religiosa estava marcada para o meio-dia em ponto e devia ser
seguida por uma salva de vinte tiros de canhão, toque de caixa e corneta,
repiques de sino e vivas da marinhagem. O capelão havia chegado já, acompanhado
por dois marujos vestidos de batina e sobrepeliz, vendo-se-lhes por debaixo
as botas de couro cru, sentindo-se-lhes ranger o cinturão e adivinhando-se-lhes
a navalha grudada aos largos quadris. Os turíbulos e a caldeirinha pareciam
em risco de esfarelar-se entre os seus dedos grossos como cabos de enxárcia.
Aquelas caras marcadas, com a barba feita de fresco e uma faixa branca no
lugar da testa em que o boné não deixara que o sol as encardisse, não pareciam
de gente, e, no entanto, coisa singular! ambas lembravam a carranca do Dr.
Lobão. Magdá, ao vê-las, retraiu-se intimidada e não se animou a dar palavra,
nem a mexer-se do lugar em que estava. Ficou tolhida, a fitá-las por muito
tempo.

A voz da Justina despertou-a com uma vibração estranha, que a fez estremecer
toda; uma voz que desafinava do resto.

— Que é, mulher perguntou Magdá, arregalando os olhos sobre ela.

Acordara por instantes, mas não chegou a reconhecer o seu quarto da Tijuca.

— Então, minh’ama não se veste?… Fica vosmecê desse modo a olhar
para mim?… Vamos, prepare-se…

— Sim, tens razão; são horas. Dá-me o banho.

E acrescentou de si para si:

— Está tudo pronto! Já chegou o padre com os seus ajudantes; meu noivo
deve agora parecer lindo como um Deus! Vou perfurmar-me e fazer-me bela, para
que ele mais se abrase de amor assim que me veja…

Era o delírio que prosseguia, mesmo sem a intervenção do sono.

A criada trouxe-lhe o banho que lhe servia todos os dias; ela, porém, supondo~se
na sua casa da ilha, tinha que se lavava em águas perfumadas e que cortava
e brunia as unhas, alisava os cabelos com óleo cheiroso, enchia-se de aromas
finos, e em seguida que se cobria toda de rendas e cambraias e punha um vestido
de veludo branco bordado de prata, calçava meias de seda finíssima, sapatinhos
de cetim e guarnecia a cabeça e o pescoço com longos fios de pérolas.

Mirou-se no espelho e nunca se achou tão bela.

— Está pronta a noiva! Está pronta a noiva! — exclamaram de todos
os lados, assim que a viram surgir à porta da habitação, acompanhada pela
Justina.

Os marujos soltaram gritos de entusiasmo.

Magdá volveu os olhos em redor de si e notou, sorrindo, que, nem só as pessoas
que ali estavam, como também a natureza inteira, pareciam alegrar-se com a
sua felicidade; mas deixando cair a vista para o fundo do vale, teve um sobressalto:
lá em baixo, na fralda do monte, o espectro de Fernando passeava tristemente
por entre as árvores, arremedando Cristo no Horto das Oliveiras; tinha os
passos lentos, a figura alquebrada, uma doce resignação na fisionomia. Viu
depois uma mulher aproximar-se dele, atirando-se ao chão para lhe beijar os
brancos pés descalços e a fímbria da sua túnica rota pelos espinhos e embranquecida
pela areia das estradas; reconheceu Rosinha. E a dura melancolia daquele canto
de paisagem, mergulhado na sombra, lembrava Jerusalém; e menina do cortiço,
com as suas roupas em desalinho, cabelos soltos e cobertos de terra, o rosto
escorrendo de lágrimas, parecia estrangulada por uma aflição profunda e fascinadora
como a de Maria Madalena. A infeliz abraçava-se às pernas de Fernando, desfazendo-se
em queixas e lamentos, que Magdá não conseguia ouvir; ele, afinal, ergueu-a
carinhosamente, pousou-lhe a mão aberta sobre a cabeça, e, terno e comovido,
tornou para o céu os olhos castos, onde havia súplicas de infinita doçura.

Rosinha pôs-se então a rezar vergada sobre o peito; enquanto o outro se afastava,
caminhando sutil, que nem uma sombra, por entre as árvores.

Magdá desceu de carreira pela encosta da montanha na direção que ele tomara.
O seu vulto de noiva sobressaia errante na azul penumbra dos caminhos como
um lírio levado pelo vento; mas, quando alcançou a campina, já Fernando ia
distante.

— Atende! Atende! gritou atrás dele.

O espectro não atendeu e lá foi por diante, agitando às brisas do mar a sua
túnica solta.

— Fernando! irmão meu amado de minha alma, não me fujas!

E o lírio precipitava-se pelo vaie, sem conseguir alcançar a sombra dos seus
amores.

Venceram assim toda a floresta; a sombra sempre a fugir e o lírio a persegui-la;
até que chegaram às margens da ilha, e Magdá viu estender-se o oceano defronte
de seus olhos. E a sombra, a fugir-lhe sempre, ganhou as águas, andando por
sobre elas, como Jesus sobre o lago de Genezaré.

A sonhadora parou na praia, resignada e triste, e o seu olhar acompanhou
aquela estremecida sombra fugitiva que se fazia ao largo, até vê-la desaparecer
de todo no infinito das ondas.

“Eu como sol a buscar-te… tu como sombra a fugir-me!.. .” pensou, tornando
então sobre seus passos, e ajoelhando-se de vez em quando, para beijar em
êxtases as pegadas que Fernando deixara na areia. Afinal penetrou de novo
na mata e, caminhando distraidamente, chegou à fralda da montanha sem dar
por isso, de tão preocupada que ia.

Uns soluços que vinham do fundo do vale despertaram-na do seu enlevo. Encaminhou-se
para lá, e descobriu Rosinha, deitada de bruços à sombra de uma figueira brava,
chorando, com o rosto escondido nos braços.

Aproximou-se dela e tocou-lhe no ombro; a outra pôs-se de pé e teve um gesto
de cólera quando reconheceu a rival.

— Está zangada comigo?… — perguntou a filha do Conselheiro,
fazendo-se meiga.

— E a senhora ainda mo pergunta? Rouba-me o noivo e pergunta se estou
zangada! Tem graça!

Magdá procurou acalmá-la, dizendo-lhe com extrema brandura que o Luiz, que
Rosinha conhecia do cortiço, o moço da pedreira, era um ser fantástico, um
mito; e que o único verdadeiro Luiz, o existente, era o da ilha, o poderoso
monarca, o senhor daqueles domínios, um ente superior, um ente privilegiado
por Deus, que lhe concedera o dom de tomar na terra a encarnação que lhe aprouvesse.
Rosinha que se conformasse com a sorte, coitada! que se resignasse, que tivesse
paciência; mas o Luiz, o legítimo, o único, o rei da ilha, esse lhe pertencia
a ela, Magdá, e nunca seria de nenhuma outra mulher.

— Isso é o que veremos! — replicou a moça do cortiço, lívida
de raiva — Não é a mim que a senhora convence de que este Luiz não é
aquele mesmo que me havia prometido casamento! Ah, eu não tenho, bem sei,
os seus segredos para o enfeitiçar, mas também juro-lhe que o verdadeiro amor,
o amor que ele me inspirou, sincero e ardente, é capaz de tudo e é mais poderoso
do que quantos artifícios possam imaginar as bruxas da sua espécie! O que
lhe afianço pelo menos é que eu, desprezada como sou, seria mulher para dar
por ele a minha vida, ao passo que a senhora, só com o fim de se fazer bonita,
lhe tem roubado todo o sangue!

— Cala-te, miserável!

— Ah, pensavas que eu não sabia…? Bem te conheço, vampiro! Não é
à toa que o pobre rapaz ultimamente anda tão fraco, que nem pode subir à pedreira
sem ficar cansado! Ele, o Luiz, dantes mais rijo e mais ágil que um potro!
Ah, mas conto que a tia Zefa há de descobrir que lhes estás matando o filho!
Livre-te Deus de que a velha Custódia suspeite de longe o que se tem passado
com o neto! Aquela velhinha, ali onde a vês, é capaz de arrancar-te a língua
pela boca, ladra fementida!

E a rapariga do cortiço, dando em Magdá um empuxão que lhe abalou o corpo
inteiro, exclamou terrível:

— Vai! vai! casa-te com o Luiz! farta-te, loba! A~ festas estão prontas!
o altar está armado! a cama está juncada de flores! Vai, deita-te, mais ele,
e logo que o tenhas embebedado com o teu almíscar de cobra traiçoeira, suga-lhe
o resto do sangue, sorve-lhe a última gota! Vai, agora és a dona do homem,
como és a rainha desta ilha! Vai; mas eu te juro, sanguessuga, que te hei
de perseguir mesmo depois da tua morte!

— Então, Magdá! então! disse o noivo, aparecendo por entre duas moitas
de crotons. Há boas horas que te esperamos lá em cima para a celebração das
nossas núpcias, e tu aqui a conversares com esta sujeita. Anda, vamos, meu
amor; estou farto de procurar-te!

Ele vinha vestido de veludo carmesim com botões de ouro, calção largo, blusa
apertada na cintura, donde lhe pendia uma espada cintilante de pedraria; polainas
pretas de couro envernizado; chapéu cinzento de abas largas com uma grande
pluma branca que lhe ia até ao pescoço, destacando-se do ébano brilhante dos
seus cabelos encaracolados, como um a pena de garça entremetida na asa de
um pássaro negro; capa escura com forro cor de sangue e em volta do colo uma
reluzente cadeia de esmeraldas, safiras e rubis.

Deu-lhe o braço Magdá; pousando a cabeça sobre o ombro dele. E puseram-se
ambos a subir a montanha, salpicados pelo sol que se peneirava por entre as
folhas e chicoteados por um olhar ameaçador de Rosinha, que resmungava:

— Vão, vão, mas que a cama de vocês dois se transforme num espinheiro
bravo!

XVII

Depois destes delírios, tão complexos, que em parte foram sofridos durante
o sono e parte durante as letargias, agora mais repetidas e prolongadas, Magdá
piorou consideravelmente. Ouviam-se-lhe já no meio da conversa palavras de
um sentido estranho, que ninguém compreendia; por exemplo: querendo certa
vez dar idéia de um grande estampido, disse: ” Fez tamanho estrondo, que nem
um rio quando se transforma em mar”. Os que a escutavam olharam-se entre si
disfarçadamente. Outra ocasião, falando de um susto que apanhara, usou desta
frase: “Assustei-me ainda mais do que no dia em que o Fernando me foi visitar
à ilha”. E, como estas, fugiam-lhe muitas referências à sua vida fantástica;
coisas que ela dizia com a maior naturalidade, enchendo não obstante de lágrimas
os olhos do Conselheiro e provocando no Dr. Lobão um desesperançado sacudir
d’ombros. Este último se mostrava mais que nunca empenhado no tratamento da
enferma, a ponto de descuidar-se da própria casa de saúde — a menina
dos seus olhos. “Porém não era, dizia ele, a filha do amigo o que tanto o
prendia e interessava, mas simplesmente o caso patológico. Puro interesse
de médico”.

Justina admirava-se de ver a sua ama tão desvelada pela família do Luiz:
não se passava um só dia sem que Magdá lhe fizesse várias perguntas a respeito
dela, principalmente sobre a noiva do cavoqueiro, a rubicunda Rosinha. Quando
a criada lhe deu parte de que o casamento estava definitivamente marcado para
o seguinte mês, a senhora estremeceu e encarou-a por tal modo, que a rapariga
julgou vê-la cair ali mesmo com um ataque de convulsões.

— E, então no mês que vem?… interrogou depois. do abalo.

— Se Deus quiser, minh’ama. E as roupas da cama estão quase prontas,
que era só o que faltava. Ah! eu penso com o Luiz que a gente não deve casar
sem ter arranjado umas tantas coisas, como não É muito feio casar-se uma pessoa
sem enxoval, inda que seja um enxoval pobre, mas contanto que cheire a novo!

Daí em diante a filha do Conselheiro indagava quotidianamente da criada “se
o casamento era sempre no mesmo dia”, como se contasse com qualquer inesperado
incidente que o transferisse ou desmanchasse de um momento para outro. Todavia,
a sua existência quimérica dos sonhos prosseguia com a mesma regularidade:
Uma vez casada com o belo e encantador príncipe, declarou ao pai que não se
achava disposta a abandonar a ilha, e pediu-lhe que a fosse visitar de quando
em quando, visto que ele agora tencionava ficar para sempre erradio sobre
as águas do mar. O Conselheiro retirou-se triste com os seus companheiros
de viagem, deixando aos desposados tudo o que de supérfluo havia a bordo e
a Justina para os servir. A vida ideal dos dois amantes tornou-se então muito
humana, muito deliciosa e fácil. Comiam em baixelas de prata e em porcelanas
da Índia; bebiam em taças de cristal da Boêmia; vestiam-se confortavelmente
de linho, veludo e seda; tinham leito macio e, à noite, fechados no doce aconchego
do lar, Magdá cantava às vezes ao piano e de outras lia em voz alta, para
entreter o marido, ou jogavam as cartas antes do chá. Luiz em breve já não
era o mesmo selvagem, graças à mulher, que lhe dava lições de leitura, de
escrita, de desenho e de música, o que ele aprendia tudo com um talento verdadeiramente
sobrenatural.

E assim viveram felizes até ao dia em que a filha do Conselheiro percebeu
que ia ser mãe. Preparou-se o ninho e ela deu à luz sem a menor dificuldade,
nem o mais ligeiro vislumbre de dor: um parir silencioso e tranqüilo como
o dos vegetais.

Era menino. Forte, moreno, de cabelos e olhos pretos; o mais extraordinário,
porém, é que a criança não se parecia com o pai, nem com a mãe; parecia-se
com o Fernando. Não o Fernando escaveirado e espetral que lhe apareceu na
ilha, mas o dos bons tempos de Botafogo; aquele belo moço a quem ela tanto
amara e tanto desejara possuir. O pequeno tinha a mesma doçura no olhar, o
mesmo enternecimento no sorriso; eram as mesmas feições e a mesma palidez
aveludada e fresca. Magdá amamentava-o pensando no irmão.

— Como havemos de chamá-lo? perguntou Luiz.

— Fernando! Está claro, respondeu ela.

E a partir daí, Magdá vivia nos seus sonhos exclusivamente para o filho.
Era feliz, muito feliz com essa nova dedicação o que absorvia todas as outras;
mas acordada, uma dolorosa tristeza pungia-lhe a alma à vista dos seus mesquinhos
seios, fanados e emurchecidos antes de tempo, como fruta perdida que não chegou
a sazonar. Vinham-lhe lágrimas aos olhos quando comparava o seu magro corpo
da vida real com a opulenta carnação que na outra vida possuía; chorava contemplando
a pobreza das suas espáduas de tísica, considerando os seus quadris sem curvas,
a exiguidade dos seus braços, a miséria das suas pernas de esqueleto; chorava
mirando no espelho o seu rosto de múmia, os seus lábios secos e estalados;
chorava observando de perto as suas mãos transparentes e trêmulas.

E começou então a preferir o sonho à realidade; tomava-se de amares por ele
à proporção que se aborrecia desta Aquela dura repugnância cheia de ódio,
que sentia acordada contra o fiel companheiro dos seus delírios e contra si
própria, não a experimentava absolutamente contra o filho; ao contrário: sempre
que se lembrava deste entezinho fantástico, possuía-se de ternura, como se
ele com efeito lhe houvera saído das entranhas. Agora até era a primeira a
provocar o sono ou a letargia. Muitas vezes, de repente, tais saudades lhe
acudiam do pequenino, que a infeliz chegava a tomar laudamo para dormir mais
depressa e por mais tempo; e adormecia sorrindo de contentamento e pedindo
a Deus que lhe fizesse os sonhos bem longos, intermináveis; e acordava amaldiçoando
a vida real, contrariada e triste sem achar consolações para a ausência do
seu filhinho amado.

E este amor de mãe foi crescendo tanto e enfolhando tão depressa, que o Luiz
afinal se resguardava perfeitamente à sombra dele. Magdá, quando acordada,
já não o maldizia; já não sentia aquela negra aversão, aquele nojo, que lhe
inspirava dantes o moço da pedreira. Oh! dava-se agora justamente o oposto:
quando, da janela do seu quarto, ela via o pobre diabo passar lá em baixo
para o trabalho, ficava compungida e acompanhava-o com um enternecido olhar
de bondade; tinha até desejos de o chamar e dizer-lhe: “Olha, Luiz, deixa
aquele estúpido serviço da pedreira; sobre ser muito bruto, é muito ingrato!
Ali um homem está sempre com a vida em perigo; a rocha é traidora! não confies
na submissão com que ela consente que lhe retalhem todos os dias o ventre;
lá uma bela vez, quando menos o esperares, zanga-se, e ai de ti, meu amigo,
serás devorado! O cavoqueiro é como o domador de feras: acaba sempre nas garras
da que ele explora… Olha, queres saber? vem cá para casa; o que ai não falta
são cômodos desocupados, e sobra sempre à mesa bastante comida!” E, de bom
grado, Magdá pediria ao Conselheiro para tomar ao seu serviço o pobre rapaz;
não porque ela o quisesse perto de si — nada disso! — mas simplesmente
para lhe fazer bem, para o tornar um pouco menos desgraçado. “E, como lhe
querer mal?… como não o estimar, coitado, se ele no fim de contas era o
cúmplice do seu crime e ao mesmo tempo o da sua felicidade? Se não fosse Luiz,
ela não possuiria um filho, e o filho era para Magdá a melhor coisa do mundo!

Sim, no seu espírito alucinado já não protestavam conveniências sociais,
nem tradições de costumes, nem hábitos de donzela; o seu pudor despira-se;
agora só o que lhe dominava o espírito, o que lhe enchia o coração, era a
idéia do filho; era a mística loucura desse amor visionário por aquela criança
de olhos meigos, que estava sempre a chamá-la de longe, lá das misteriosas
margens da ilha encantada dos seus sonhos; era a saudade dessa criaturinha
ideal, que ela já no podia deixar de ver, não só todas as noites durante o
sono, mas a todo o instante, na deliciosa insânia dos seus êxtases.

O filho era a sombra de Fernando; ela vivia para esta sombra.

XVIII

E entanto, na verdadeira casa de Luiz, na casinha do cortiço, as coisas corriam
de modo muito diverso.

Aí é que havia sincero contentamento e legítima felicidade; aproximava-se
o dia do casório do rapaz e, tanto a noiva como as duas velhas, resplandeciam
de júbilo. Falava-se desde pela manhã até à noite no grande assunto, e discutiam-se
já os doces, o carname, o peixe frito e a vinhaça da pagodeira.

Ah! que eles teriam uma festa para se ver, ninguém o punha em dúvida. “Como
não? Seriam os primeiros da família que se cassassem à capucha, como aí qualquer
ovelha sem pastor! Não! que para isso, graças a Deus, ainda havia quatro vinténs
no fundo da arca!” E a velha Custódia, a tia Zefa e a Rosinha saracoteavam
pela estalagem, mesmo durante o serviço, a responder para a direita e para
a esquerda; a falar com este, a dar trela àquele, sem sossegar um instante,
a rir, a papaguear, e sempre com o casamento na boca. Agora cantavam mais
durante o trabalho, mas nem por isso labutavam menos. A pequena, muito roliça
e esfogueada pelo ferro de engomar, mostrava a toda amiga que a visitava o
seu vestido de cambraia branca, o seu véu, a sua grinalda, o seu ramo de cravos
artificiais, como as suas camisas e as suas anáguas novas em folha, algumas
até com renda Estava provida de tudo; ninguém o podia negar! “Só vestidos
de chita, dessa à moda, tinha cinco prontos e fazenda para outros tantos;
meias — que fazia pena calçá-las, de tão lindas; e muita peça de morim
para lençóis e roupa branca, e belas fronhas bordadas, e mais uma colcha de
lã. — Ah! Ah! — verde e amarela, com as armas imperiais no centro,
que era uma grandeza!”

A Justina dava de vez em quando uma escapula até lá e voltava entusiasmada,
falando pelos cotovelos. No dia em que se esperava a tal cama prometida pelo
padrinho do Luiz, ela não parou cinco minutos em casa dos amos; tão depressa
a viam aí, como no cortiço.

— Já chegou? Pois ainda não veio? Oh, que demora! — Quem sabe
se o homem não manda,… Ele é tão agarrado!

— Não! Há de vir! Ainda não deu meio-dia. Com poucas ela aí está!

E havia no cortiço uma grande impaciência pela chegada da cama. A cama era
o grande acontecimento do dia!

— Virá.

— Não virá?

Fizeram-se apostas na estalagem. Rosinha, de instante a instante, largava
o ferro e corria à porta, para dar uma vista d’olhos pela rua; de uma das
vezes voltou saltando, batendo palmas e a gritar como louca:

— Aí vem ela! Aí vem ela!

E, com efeito, na esquina da rua surgiram seis negros descalços e em mangas
de camisa, a cantarem em voz alta, equilibrando na cabeça uma enorme cama
do tempo antigo; bastante usada, mas polida de novo. Vinha armada e trazia
já o colchão, os lençóis e um par de grandes travesseiros.

Era toda de jacarandá com embutidos de madeira amarela, muito larga; tinha
forma de caixão, e o espelho de cabeceira media nunca menos de dez palmos
de altura. Dos quatro cantos erguiam-se colunas oitavadas, de uns três metros
de comprimento, sustentando uma formidável cúpula de feitio de um chapéu do
Chile, a que quadrassem as abas, forrada por dentro e por fora de cetim azul
já desbotado. No alto das colunas, e sobressaindo dos ângulos do sobrecéu,
aprumavam-se dois pares de respeitáveis maçanetas que pareciam quartinhas
da Bahia.

Foi um sucesso em todo o quarteirão a chegada desta velha relíquia dos bons
tempos: os vizinhos de Luiz assomaram à janela, atraídos pelo grosseiro canto
dos africanos; o cortiço inteiro agitou-se; as lavadeiras abandonaram as tinas
e os coradouros e vieram ruidosamente ao portão da estalagem, com os braços
nus, saias arrepolhadas no quadril, mostrando pernas sem meias e grossos pés
metidos em tamancos; a pequenada descalça acompanhava os carregadores numa
grande algazarra; o homem da venda acudiu em camisa de meia, o peito muito
cabeludo aparecendo; pretos e pretas, que andavam nas compras do jantar, estacionaram
em frente ao cortiço com a cesta no braço; negras minas pararam para olhar,
monologando em voz alta, o tabuleiro na cabeça, e na mão um banquinho de pau;
algumas traziam ainda um filho escarranchado atrás, nos rins, e encueirado
numa toalha, cujas pontas elas amarravam na cintura. A velha Custódia apareceu,
levando enfiada nos dedos uma meia, que serzia; a tia Zefa e mais a Rosinha,
essas não se puderam conter, e foram logo ao encontro dos carregadores, gritando,
ralhando, afastando com berros a molecagem que não se arredava nem à mão de
Deus Padre; Luiz, lá do alto da pedreira, onde estava trabalhando a essas
horas, mal compreendeu pelo movimento da rua que a sua cama chegava, desgalgou
o morro e precipitou-se de carreira para o cortiço, nu da cintura para cima,
muito suado e coberto do pó branco da pedra.

Os carregadores chegaram por fim defronte do portão da estalagem, pararam
a um só tempo, e, depois, com uma certa manobra especial, volveram para o
lado da entrada, continuando sempre a cantar; seguiram enfim, e os curiosos
seguiram atrás deles. O cortiço foi invadido por muita gente e então principiou
a verdadeira balbúrdia. Destacavam-se os gritos do Luiz, da tia Zefa e da
Rosinha.

— Olha como a viras. estupor! Queres quebrar-lhe as maçanetas?

— Força mais para a esquerda, com os diabos!

— Arriba!

— Vira!

— Abaixa!

— Olha a árvore!

Todos se metiam a ajudar, mas o demonhão da cama não entrava, nem mesmo pelos
fundos da casa.

— Também não sei p”ra que um espantalho deste

tamanho!

— E o que tem você com isso. Meta-se lã com a sua vida!

— Ali dormem seis casais à larga

— Podia caber-lhe a família toda em riba!

— Arrea!

— Livra!

— Torce!

Já a gaiola de um papagaio, que havia na parede, tinha ido pelos ares, levando
o louro preso na corrente, a gritar como se o estivessem matando; um pequeno,
filho de uma lavadeira, berrava com um trompásio que apanhara sem saber de
quem. “Era bem feito, para não ser intrometido!” O cão da casa, junto com
os da vizinhança, protestava energicamente contra a invasão daquele monstro
de jacarandá que tudo revolucionava. Fazia-se um catatau infernal; todos aconselhavam;
todos queriam mandar; todos falavam ao mesmo tempo; mas, por melhor que gritassem:
“Arrea! — Torce! — Levanta! — Agasta! — Agüenta! —
Pára!” o monstro não passava do quintal e, mesmo para chegar lá, fora preciso
arrancarem-se algumas estacas da cerca que separava a casa do cortiço.

Afinal, um marceneiro do bairro, quieto até aí a presenciar a função com
um superior e mudo desdém, disse, torcendo o cavaignac: “que se quisessem,
ele desmancharia aquela carangueijola e comprometia-se a armá-la no quarto,
tal qual como a entregassem”. Surgiram logo mil opiniões; umas contra e outras
a favor da proposta, e só depois de calorosa discussão, em que o marceneiro
não deu palavra, resolveram desarmar o monstro.

— Ora. que pena! lamentavam.

— Que lástima não entrar armada!

A cama foi levada para o meio do quintal, e o homem do cavaignac, que tinha
feito vir já a sua ferramenta, meteu mãos à obra, cercado de gente por todos
os lados. Rebentaram de novo, ao redor, os comentários, as chufas e os ditérios.

Luiz, ao lado da noiva, acotovela-a, sorrindo e piscando o olho para o lado
dos colchões.

— Ali em cima é que eu te quero pilhar!… considerou, dando-lhe uma
pontada no bojo do quadril.

Rosinha conteve o riso e resmungou, abaixando os olhos:

— Este sem vergonha!…

Não obstante, entre todos os curiosos que presenciavam a espetaculosa chegada
do leito nupcial do cavoqueiro, o mais impressionado não estava ali, nem na
rua, estava sim lá defronte, na casa de S. Ex., espiando por detrás das grades
de uma das janelas do sobrado.

Era Magdá.

Estranho abalo punha-lhe nos sentidos aquela escandalosa exibição de cama
em pleno ar livre. Vendo-a, como a viu, publicamente armada e feita, patenteando
sem o menor escrúpulo o seu largo colchão para dois, com travesseiros duplos,
afigurava-se-lhe ter defronte dos olhos um altar que se trazia de longe, para
a ementa e religiosa cerimonia do desfloramento de uma virgem. Havia alguma
coisa de pagão e bárbaro em tudo aquilo; alguma coisa que a levava a pensar
na paradisíaca impudência dos seus sonhados amores; alguma coisa que a levava
de rastros, puxada pelos cabelos, para a vermelha sensualidade dos seus delírios.

A cama, apesar de recolhida ao cortiço, não desapareceu para ela, que continuou
a vê4a com a imaginação, já muito maior, fantasticamente grande. Depois, viu
surgir, deitado de barriga para o ar sobre o colchão, a dormir, completamente
nu, como nos primeiros dias da ilha, o Luiz — esse homem com quem afinal
todo o seu ser se habituara, nem se com efeito houvera passado com ele as
melhores noites da sua vida.

Depois, viu surgir um pequenito ao lado do cavoqueiro; reconheceu o filho,
e notou, sobressaltada, que este chorava de susto. Procurou o que metia medo
à criança, e descobriu então aos pés da cama, que atingira proporções colossais,
três mulheres: uma muito moça, outra de meia idade e a terceira já bastante
velha, e todas desesperadas por lhes não ser possível subir até onde estava
Luiz. Magdá observava isto do alto, imaginando-se no interior da cúpula do
leito, cujo cetim azul a pouco e pouco se estrelava, transformando-se em um
céu, onde ela se mantinha suspensa como se tivesse asas.

E notou que a mais moça das três mulheres levantava aflitivamente para ela
o olhar afogado em lágrimas, pedindo-lhe por amor de Deus que lhe restituísse
o seu noivo.

— Ele não serve para a senhora, exclamava a mísera entre soluços; é
um pobre-diabo muito à toa; muito grosseiro, só serve mesmo para uma rapariga
de cortiço como eu! Restitua-me o Luiz, senhora! Não lhe tire mais sangue!
não o mate, não o mate, por tudo o que V. Ex. mais estima na vida! Se lhe
desagrada vê-lo comigo, juro-lhe que nunca estarei com ele; que não nos casaremos;
prometo que iremos os dois cada um para seu lado; prometo o que a senhora
quiser; tudo, tudo! mas, por amor de Deus, não o mate, não o mate, minha rica
senhora!

Magdá riu-se, e a rapariga, vendo que as suas súplicas eram baldadas, atirou-se
ao chão, estrangulada pelo pranto. Então a velhinha, ameaçando a filha do
Conselheiro com o punho fechado, gritou colérica:

— Malvada, põe já p’ra cá o meu neto ou ruim praga te perseguirá para
sempre! Larga o homem que não é teu! Entrega o seu a seu dono, ou que Deus
Nosso Senhor te rache a madre com o mal dos lázaros!

E Luiz continuava a dormir. E Magdá sorria, de má.

A outra mulher enxugou os olhos e pegou então de falar, suplicante:

— Senhora, minha senhora, tenha dó de uma pobre mãe!… Dê cá o meu
filho, dê cá o meu querido Luiz! Ah, se vosmecê soubesse o que é ser mãe,
com certeza não mo negaria… Dê-mo, bem vê que o reclamo de joelhos… Se
a sua questão é de beber sangue, aqui estou eu — sou forte, muito mais
forte do que ele. .. repare para as minhas cores; veja como tenho as carnes
rijas e socadas; comprometo-me a deixar que vosmecê me sugue até à última
gota; mas, por quem é, poupe-me o rapaz, que o pobrezinho já não pode mais
alimentá-la… está muito fraco, está quase com a pele nos ossos!

Magdá sorriu ainda e Luiz não acordou; o pequenito é que parecia agora muito
intimidado por aqueles clamores: calara-se de medo, e, engatinhando, fora
até às bordas do colchão, cuja superfície se havia por último coberto de relva
As mulheres, logo que deram com ele, começaram a atirar-lhes pedras; estas,
porém, não chegavam ao seu destino, porque a cama, sempre a crescer, era já
um grande morro plantado de bambús. E, como os lados do leito se transformaram
em declives de montanha, as três puseram-se a subir, chamando por Luiz e correndo
em direção ao menino; este abriu de novo a chorar, fugindo; e Magdá, percebendo-o
em risco, precipitou-se do alto e foi cair ao seu lado, tratando logo de resguardá-lo
com o corpo e gritando ao mesmo tempo pelo marido.

~ Mas o lugar em que ela agora se julgava já não era um descampado relvoso;
via-se dentro da sua casa fantástica na ilha ao lado do filho e do marido;
perfeitamente abrigada e defendida. Lá fora roncava uma tempestade, estralejando
no espaço, entre uivos de feras assustadas.

— Que barulho é este? — perguntou Magdá, abraçando-se ao esposo,
muito trêmula.

— Não tenhas medo, minha flor, é a tempestade.

— E não ouviste vozes de gente, a gritar?

— Qual! Era o vento que sibilava nos bambus.

— Não, não! Eu ouvi perfeitamente! Entendi tudo o que diziam!

— Sonhavas, com certeza…

— Sim, Deus queira que tenhas razão, porque não podia ser mais horrível
o que se passava…

— Que foi ?

— Sonhava, imagina tu, que ias casar com a Rosinha…

— Mas como, se eu sou casado contigo?

— E chegava a cama para o teu noivado, e depois a cama se transformava
numa montanha e a tua suposta família vinha disputar-te contra mim e queria
matar a pedradas o nosso filho.

— Que loucura! respondeu o esposo com um riso de homem feliz.

— Sim, foi loucura, foi um sonho que felizmente já passou, e vejo-te
a meu lado, fiel e amoroso como sempre. Não é verdade que só a mim amas e
ao nosso filhinho? Fala, meu querido!

— Tão verdade quanto é mentira o que sonhavas; mas dorme, sim? dorme
de novo, que precisas muito de repouso.

Magdá adormeceu com a cabeça no colo do marido imaginário e acordou a valer
nos braços de Justina.

— Como se sente, minh’ama?

— Perfeitamente.

E acrescentou, depois de uma pausa: — Aquece um pouco de leite para
dar ao Fernandinho, ouviste?

Justina olhou muito séria para a senhora e não se achou com ânimo de dizer
nada.

— Ora esta!… pensou. — De que Fernandinho falará ela?…

E saiu do quarto benzendo-se toda.

O Conselheiro, a quem a rapariga foi logo comunicar o disparate da ama, correu
a ter com a filha; mas, durante as longas horas cm que conversaram, não lhe
apanhou uma só palavra que levasse a desconfiar da sua razão. Magdá, ao contrário,
parecia muito senhora das suas faculdades e até menos nervosa que de costume.

— Com certeza era tolice da criada.

XIX

Assim chegou a véspera do casamento de Luiz com Rosinha. Haviam escolhido
um domingo e achava-se tudo quase pronto para o grande regabofe: a casa foi
esfregada por dentro e por fora com sabão e areia; não ficou um átomo de pó
nas paredes, um sinal de escarro no assoalho, nem uma teia de aranha no teto.
Desde a porta da rua até à cozinha recamou-se o chão de folhas de mangueira
e trevo cheiroso, pregaram-se arcos de verdura em todas as portas; pediram-se
cadeiras, louças, copos e talheres emprestados a amigos para que nada faltasse
na ocasião do banquete; mandaram-se vir dois garrafões, um de vinho e outro
de parati, o tacho de açúcar não saiu do fogo e encheram-se compoteiras e
tigelas de doce de coco, de araçá, de leite, de ovos, de goiaba, marmelo,
bananas, sem contar com bolos e pudins — uma orgia de açúcar! O forno
do padeiro, que lhes fornecia o pão, prestou-se a assar um peru, um quarto
de carneiro, um leitão e um grande alguidar de arroz, guarnecido de azeitonas
e rodelas de lingüiça. Trabalhou-se até à meia-noite em preparar o aposento
dos noivos. A formidável cama lá estava, atravancando tudo; houve grandes
discussões na ocasião de colocá-la porque aqueles não queriam, por coisa nenhuma
desta vida, ficar com os pés para o lado da rua, “que era de mau agouro!”
Resolveu-se a dificuldade condenando a porta da alcova e estabelecendo passagem
por uma janela aberta sobre a salinha de jantar. Era um pouco maçante ter
de entrar e sair do quarto aos pulos, lá isso era; mas, antes assim do que
ficar com os pés para a rua. “Deus te livre!”

A cama estava imponente: descia-lhe da cúpula um enorme cortinado de labirinto,
que a avó do Luiz, em quando moça, recebera como presente de uma senhora.
do Porto, a cujo filho amamentara antes de vir para o Brasil; arrepanhavam-no
pelas extremidades, à base das quatro colunas, grandes ramos de flores naturais,
donde pendiam laços de cetim azul, baratinho, mas muito vistoso. Por cima
da famosa colcha auri-verde com armas brasileiras figurava uma cerimoniosa
cobertura de rendas, sobre a qual se desfolharam rosas e bogaris; e lá no
alto, por fora do sobrecéu, esparralhado contra o teto, um imenso feixe de
tinhorões e crotons.

— Que lindo! diziam comovidos.

Ao lado da cama. A que não se podia subir sem o auxílio de uma cadeira, estendeu-se
um tapete já surrado, mas onde se distinguia ainda o desenho de um leão em
repouso; a um canto do quarto uma retrete com braços, e de outro uma pequena
mesa de pinho, coberta de chita até aos pés, tendo em cima uma lamparina de
azeite e um econômico oratório de madeira pintada, com uma Virgem que desaparecia
engolida no seu desproporcionado resplendor de prata. Não se podia ir de uma
à outra banda do aposento sem galgar por cima do leito.

O casório fez-se no dia marcado, às dez da manhã, numa igreja do Andarai-Grande.
Que pagode — Os noivos foram e voltaram a bonde, seguidos por uma dúzia
de convidados de ambos os sexos e mais os padrinhos e as madrinhas; todos
em gala de domingo. Muita roupa de cor, muita água flórida, muita jóia maciça
e tosca, e muita pilhéria de tirar couro e cabelo. O tempo ajudava; fazia
um belo sol de inverno, alegre e comunicativo. Rosinha, baixota, bem socada,
parecia mais vermelha no seu vestido de cassa branca, e o enorme véu de cambraia
pouco transparente e dura que a envolvia da cabeça aos pés, dava-lhe um feitio
piramidal de pão de açúcar. Ia muito encalistrada sob a vista curiosa dos
passageiros estranhos à festa; não ergueu os olhos durante toda a viagem e
as mãos suavam4he com o grande ramo simbólico, cuja haste ela mantinha sobre
o peito, como quem segura o cabo de um estandarte. O Luiz, à sua esquerda,
mostrava-se, ao contrário, muito senhor de si e quase petulante de ventura;
vestia calça e paletó de pano preto, novo em folha; nada de colete; tinha
grandes sapatos de bezerro, engraxados, chapéu de lebre e gravata branca de
cetim com um alfinete de ouro atravessando o laço. O casaco fechava-se-lhe
sobre o estômago, deixando ver um peito de camisa, que era a última expressão
da arte de reduzir o pano à madeira por meio do polvilho e do ferro de engomar;
de tão duro e violento, rompia por entre as golas da roupa e abaulava-se arrogante
numa só curva de alto a baixo; três botõezinhos de osso tingido de vermelho
desfrutavam a suprema honra de guarnecer esta preciosidade. Levava dobrado
ao pescoço, para resguardar o colarinho do suor, um lenço usado pela primeira
vez, e no bolso do lenço trazia o relógio, com o trancelim bem à mostra por
cima do peito. E todo ele rescendia ao óleo e à brilhantina do barbeiro.

Quando, ultimada a cerimônia religiosa, tornaram para casa, com a idéia no
resistente almoço preparado. foram à porta da rua surpreendidos por um oficleide,
um piston, um clarinete e um sax, que os perseguiam desd’aí até à sala de
jantar, tocando furiosamente; era uma ovação feita ao recém-casado pelos seus
companheiros de trabalho, que lá se achavam todos, mais ou menos endomingados.
A refeição correu de princípio ao fim muito alegre e animada; não havia cerimônia;
era comer e beber à vontade; fizeram-se os brindes do estilo e trocaram-se
entre risadas as clássicas chalaças, com que essa boa gentinha dos cortiços
costuma frizar brejeiramente a vexada felicidade dos noivos. Rosinha teve
de repetir, por várias vezes a frase de repreensão: “Este sem vergonha!…”
Depois da mesa engendrou-se um forrobodó e foi dançar pr’aí até o diabo dizer
basta!

Um pagodão! Só uma coisa contrariava ao cavoqueiro: era ver entre aquelas
moças, todas elas gente direita, a peste de uma bruaca que morava lá perto,
uma tal D. Helena Guimarães, a quem a velha Custódia se lembrara de convidar.

— Ora pistolas!

— Mas que mal te fez a pobre de Cristo? – perguntou-lhe a avó.

— Não sei! E’ mulher de má vida!

— É, não senhor, foi! Hoje não tem o que se lhe diga…

— Porque está canhão! ninguém a quer para nada! Aparecesse um tolo…
e veríamos!

— Coitada!

— Um estupor, que parece estar metendo pela cara dos outros aquele
vestido de seda mais velho que a Sé! Um raio de uma biraia toda cheia de não
me toques, com uma cara de que tudo lhe fede, e a abanar-se como no teatro!
Má peste a lamba!

— São maneiras, filho!

— Maneiras! Eu dava-lhas, mas havia de ser com um bom marmelo! Demônio
de um calhamaço, que tisna as farripas e pinta os olhos para parecer bonita?
Uma lata toda rebocada, que até faz nojo!

E escarrou de esguelha. — Não! Com certeza seria melhor que ela cá
não estivesse!

E tinha razão. Ali, no meio daquela áspera gente do trabalho, gente de honestidade
feroz, entre a qual o adultério do homem é tão severamente punido como o da
esposa, a figura da tal I)~. Helena Guimarães destacava-se mais do que uma
nódoa de lama no meio de uma camisa de algodão lavado. Na roda das prostitutas,
seria um ornamento alegre, uma nota cômica — faria rir; mas ali servia
apenas para constranger aos que queriam folgar em liberdade. Felizmente, porém,
o estupor, mal acabou de jantar, ergueu-se e retirou-se logo, confessando-se
indisposta. Sem dúvida foi para casa vomitar as tripas, que estômagos daqueles
já não resistem à forte comida dos que se levantam antes do sol e trabalham
doze horas por dia.

Pela volta das nove da noite surgiram como por encanto as violas e as guitarras,
e o pagode tomou novo caráter. Pegou-se então de cantar o Fado Corrido, o
Malhão, a Caninha Verde e a Espadelada. Começava a verdadeira festa.

Justina, que era louca pelo Fado, tratou de esgueirar-se, fugindo à tentação.

— Então já te raspas ? perguntou-lhe a irmã.

— Minh’ama está só… respondeu num tom misterioso e apressado.

— Mas ainda é cedo… dança ao menos uma roda e vai-te ao depois.

— Não, não! A pobrezinha está muito ruim! Não imaginas, está como nunca;
até parece que já não regula bem!…

A outra fez um espanto e quis informações.

Não sei, filha, moléstias de família. O doutor disse outro dia que a mãe
também acabara mal.

— E ela ainda pergunta por nós ?

— Sempre. Inda hoje me perguntou pelo Luiz…

— Coitada!

— Mas adeus, adeus, que já lá estão gritando por teu nome! Vai, filha,
vai! Se me bispa o Manél das Iscas não me desgarra tão cedo!

Ao sair, na carreira que a Justina levava para atravessar a rua, um capadócio,
tresandando a cachaça e cambaleando, deu-lhe uma atracação. A rapariga desviou
o corpo e soltou-lhe tal punhada pelas ventas, que o borracho rodou sobre
os calcanhares e zás — por terra! Ela seguiu adiante.

— Diabo dos vagabundos! resmungou; mas, ao transpor o portão da chácara
do Conselheiro, ria-se com a idéia do trambolhão que pregara ao tipo. —
Bem feito! é para não se fazer de tolo cá p’ra meu lado!

Encontrou a senhora ainda acordada, a cismar, estendida no divã da alcova.

— Então, que tal correu a festa! perguntou Magdá com um bocejo.

A criada deu conta de tudo; descreveu o lindo que estava a casa; o rico que
foi o banquete; o muito que se dançou durante o dia; a gente que lá se achava,
nomeando um por um todos os convidados.

— Ah, minh’ama, vosmecê não faz idéia! Não me fica bem a mim falar,
mas esteve que se podia ver! Nada faltou! Até sorvetes, creia!

E passou aos pormenores: citou os pratos que se exibiram, as garrafas que
se enxugaram. “Uma coisa era ver e outra dizer!”

— E o quarto?… acrescentou com interrogação de assombro, o quarto
dos noivos?! Ah, que lindo! Todo forradinho de novo, com um papel azul de
ramagens brancas. Metia gosto! E a cama? Só lençóis de linho — quatro!
e mais três de algodão; não contando as colchas!

— Sete lençóis?

E, porque a ama fizesse um certo ar de estranheza: — Para não manchar
o colchão, como não?

— Ah …. fez Magdá, caindo em si.

— E o colchão é novo em folha! O homem saiu-se!

— Que homem?

— O padrinho do Luiz, o Antônio Pechinchão! Pois quem foi que lhe deu
a cama?

— Sim, sim.

— E’ um traste que mete respeito. Aquilo deita a netos!

E, vendo que a senhora mostrava interesse, continuou a dar à língua, particularizando
os episódios mais insignificantes da função, repetindo as partidas que se
deram, narrando pilhérias, contando os namoros, os ciúmes, e afinal! —
Ai! a Caninha Verde! “Que pena não poder ficar para ver!” Depois, sem se conter
e rindo envergonhada, confessou a festa que lhe fez o Manuel das Iscas. “Pois
o demônio do homem não lhe tocou em casar?… Ora que asneira!… uma viúva
mãe de três filhos pode lá pesar nisso!…” E por ai foi. no calor do entusiasmo,
derretendo em palavras o seu bom humor condimentado com os brindes desse dia.

Magdá escutava-a. imóvel, sem lhe opor uma palavra; agora assentada; o queixo
enterrado entre as mãos, os cotovelos fincados sobre as coxas magras. Lá fora,
na casa. dos noivos, continuavam a cantar ao desafio, ao som plangente das
guitarras; e aquela música simples e melancólica, dissolvida num lamento harmonioso
e continuo, ora chorado por voz de homem, ora soluçado por voz de mulher,
chegava aos ouvidos dela, embebida em deliciosas mágoas de amor. Roía como
uma saudade; gemia mais triste que a derradeira esperança quando abre as asas
e desfere o vôo, para nunca mais voltar.

— Olhe, minh’ama! exclamou de súbito Justina.

— É ele que. está cantando agora! E’ o Luiz!

Magdá ergueu-se com um sobressalto e correu à janela. Era, com efeito, a
voz do seu companheiro da outra vida:

“Tu a amar-me e eu a amar-te,

Não sei qual será mais firme!

Eu como sol a buscar-te;

Tu como sombra a fugir-me!”

E um coro de vozes abafadas respondia:

“Verde no mar

Anda à roda do vapor.

Ainda está para nascer

Quem há de ser

o meu amor.”

E os olhos de Magdá orvalharam-se de ternura, e o seu coração enlangueceu
dolente, como se aquela voz, tão meiga e tão sentida, a estivesse chamando
lá da misteriosa ilha dos seus amores.

— Escute, escute, minh’ama! Agora é a Rosinha!

“Se fores domingo à missa,

Fica em lugar que eu te veja,

Não faças andar meus olhos

Em leilão por toda a igreja!”

E vinha logo o lamentoso estribilho, cujas últimas notas se prolongavam surdamente
e morriam de leve, como orações feitas no alto mar em noites de tempestade.

Magdá estava num enlevo. Depois de Rosinha Luiz cantou de novo, e outros
e outros os sucederam, e desafio foi se prolongando, e o tempo correndo, até
que veio a madrugada surpreendê-la ainda esquecida à janela, na esperança
de reconhecer entre aquelas vozes, e ouvi-la inda uma vez, a voz do seu fantástico
amante.

— Ele não canta mais?… perguntou, afinal, à criada.

Justina sacudiu os ombros e disse entre dois bocejos que “era natural que
o rapaz já se tivesse ido aninhar junto com a noiva”.

— Ah!

— Também são horas e vosmecê devia fazer outro tanto…

— Outro tanto, como?…

— Devia deitar-se; descansar o corpo. São mais que horas?

— Que horas são?

— Caminha pr’as quatro.

— Já? Creio que eles não cantam mais…

— Não, minha senhora, acabou-se o pagode. Vosmecê quer que eu a adormeça
no meu colo?

— Não. Você está caindo de sono.

— É que hoje lidei tanto…

— Pois recolha-se.

— E minh’ama, não se deita?

— Sim; já vou. Durma…

— Vosmecê sente alguma coisa ?

— Não; suponho que não…

— Então, faça-me a vontade, sim? recolha-se também; agasalhe-se, minh’ama.

E Justina foi fechar a janela e conseguiu obrigar a senhora a ir para a cama.

Mas a filha do Conselheiro não podia dormir; sentia-se inquieta, sobressaltada,
cheia de estranha e dolorosa impaciência; uma impaciência sem objetivo; um
desejar vago, sem contornos; um querer, fosse o que fosse, que ela não lograva
determinar lucidamente, por melhores esforços que fizesse. Deram cinco horas;
seis. Magdá ergueu-se de novo, frenética, atordoada, enfiou o sobretudo de
lã, agasalhou a cabeça e o pescoço num xale de seda e pôs-se a passear no
quarto. Agora o que mais lhe apertava o coração era uma enorme saudade do
filho; precisava vê-lo, abraçá-lo, devorá-lo de beijos.

— Oh! que falta lhe fazia o sonho!… disse ela, torcendo-se de ansiedade.

Foi ter à janela da saleta contígua à sua alcova e ficou a olhar abstratamente
lá para fora. O dia acordava, estremunhado, remanchão, preguiçoso, sem ânimo
de abrir de todo as pálpebras sonolentas, espiando por entre as cambraias
da neblina: não havia linhas de horizonte, não havia contornos definidos;
era tudo uma acumulação de névoas, onde mal se pressentiam apagadas sombras.
Nem viva alma se destacava; nem um só trabalhador passava para o serviço;
a pedreira transparecia apenas, como se estivesse mergulhada dentro de uma
grande opala derretida. E, aos olhos de Magdá, tudo aquilo principiou de afigurar
uma natureza em embrião, um mundo ainda informe, em estado gasoso; alguma
coisa que já existia e que ainda não vivia: um ovo ainda não galado por Deus.

Mas, daí a pouco, no fundo desse caos opaco, no âmago daquela albumina, a
montanha começou a bulir, a mexer-se como um corpo em gestação, e depois a
agitar-se como um feto que quer nascer.

A infeliz delirava lá.

E ela distinguiu que o imenso feto, sequioso de vida, espedaçava a crisálida
e, erguendo a cabeça, sacudia cá fora, à luz do dia, a treva dos seus cabelos;
e nessa cabeça, Magdá enxergava olhos que eram ternos e humanos, e lábios
que sorriam de amor. E viu em seguida o gigante erguer os braços e romper
as nuvens de alto a baixo, e pôs-se de pé, altivo e risonho, tocando com a
fronte nas estrelas que a cingiam e constelavam de régio diadema.

E reconheceu logo o seu amante.

— Oh, enfim! exclamou num brado de contentamento, estendendo-lhe os
braços e pedindo-lhe entre lágrimas de gozo, que sem demora a arrebatasse
lá para a outra vida ideal da fantasia. Nessa ocasião, porem, outro gigante
inda maior assomara para além das bandas do oriente, e este agora vinha formidável
e terrível, armado da cabeça aos pés, irradiando fogo; e, só com o dardejar
e reluzir do seu escudo, desmaiavam no céu as densas tímidas e palpitantes,
fugia a lua assustada, e a terra tremia toda como a noiva na primeira noite
das bodas.

Então Magdá viu entristecida a ciclópica figura do seu amado abalar-se e
estremecer também, depois ir empalidecendo, até volver-se de novo montanha,
agora resfraldada de gazes cor de pérola, que se rasgavam e desteciam aos
raios do sol nascente; enquanto ao redor surgiam aqui e acolá pontas de igrejas
e ângulos de chalets esmaltados pela aurora, e repontavam grupos de árvores
e saiam no chão manchas verdes que logo se transformavam em hortas e jardins,
e alvejavam curvas tortuosas que se desfaziam em ruas e caminhos, e pontos
negros que eram carroç5es de lixo, e outros menores e ligeiros que eram carrocinhas
de pão; e pareciam vacas a tilintar o chocalho à porta das chácaras; e homens
de jaquetão à balega e chapéu desabado apregoando perus, frutas ou garrafas
vazias; e lavadeiras com imensas trouxas de roupa na cabeça; e pretas e pretos
carregando altos tabuleiros de verdura ou de carne fresca. E ouviam-se vozes
de gente, choro e riso de crianças. latir de cães, cantar de galos, rodar
de seges; um esfalfado zunzum de mundo gasto e enfermo, que acorda contra
a vontade, inalteravelmente, como na véspera, para vegetar mais um dia de
tédio, à espera da morte.

E Magdá afastou-se da janela e fechou-a com ímpeto, cheia de horror e cheia
de nojo pelo mundo.

— Oh, que miséria! Oh, que miséria, meu Deus!

E cerrou os olhos para não ver nada, e tapou os ouvidos para nada ouvir;
mas, apesar disso, sentia, nauseada, que ali estava a sua alcova de doente,
o seu leito impregnado de moléstia. a mesinha de cabeceira coberta de abomináveis
frascos de remédio; a enfermeira, a Justina, ressonando a um canto, sobre
um colchão, de papo para o ar, a boca aberta, o peito almofadado, meio à mostra,
e uma perna, brutalmente gorda, aparecendo estirada por entre os lençóis.

E isto era a vida! — Que horror! que horror! — Que abjeção! —
Que porcaria!

E Magdá saiu do quarto para não espancar com os pés a criada, para não esbofetear
a sua própria sombra; furtando-se daquilo, tudo desorientada, inconsolável,
com ânsias de desertar do mundo, de fugir de si mesma, do seu próprio corpo,
da sua própria alma. E, no entanto — as saudades do filho a crescerem,
a crescerem-lhe por dentro, cada vez mais, alastrando como hera florida e
viçosa por entre ruínas.

E nada de chegar o sonho ou o delírio! — Que desespero!

Oh, mas precisava ver o filho no mesmo instante, readquiri-lo; matar aquele
desensofrido desejo que a devorava com exigência de um vício profundo, adquirido
na primeira idade; precisava refugiar-se nele — no seu Fernando —
no seu amado, que era todo casto, amoroso e lindo, que era todo ideal e puro,
e nada tinha deste mundo e com esta vida, estúpidos ambos, e ambos dessorados
por enfermidades e por paixões de toda a casta, infames, monstruosas e mesquinhas!

Correu à mesa dos medicamentos, rebuscou entre os vidros o de láudano, apoderou-se
dele com avidez e tomou uma grande dose.

No fim de algum tempo, viu, porém, que nem assim lhe acudia o sono ou a letargia.
— Que suplício! — Apenas ficava estonteada, presa de tênue vertigem,
que de quando em quando lhe apagava a luz dos olhos. Entrou no mesmo estado
pelo dia alto, muito abstrata, andando por toda a casa como uma sonâmbula.
Ao lanche das duas horas da tarde, o pai quis detê-la no seu lado e obrigá-la
a conversar; ela escapou-lhe por entre os dedos e fugiu em silêncio para o
andar superior, olhando a espaços para trás, desconfiada.

Agora, neste momento, não sentia nada, absolutamente nada, que a incomodasse;
nem enxaquecas, nem dores na espinha, nem dormência nas pernas; já não a perseguiam
o gosto de sangue e o cheiro de magnólia; via-se leve, como se estivesse oca,
vaporosa, aeriforme; sentia-se capaz de voar e de manter-se sobre uma pluma
sem a abater. E dava-se ainda um outro fenômeno bem curioso: a vida real parecia-lhe
agora o sonho, e o sonho afigurava-se-lhe a vida real; os fatos verdadeiros
embaralhavam-se-lhe na mente, confundiam-se uns com os outros, fragmentavam-se,
difundiam-se, escapavam; ao passo que os mais insignificantes pormenores da
sua vida fantástica lhe permaneciam inteiros no espírito, claros e seguros
à memória, como os cantos de um poema decorado na infância.

Queria lembrar-se do que, acordada, fizera na véspera; do que fizera havia
poucos instantes, e não conseguia rememorar coisa alguma; enquanto que ainda
lhe cantavam no ouvido, bem lúcidas e sonoras, as mais remotas palavras de
Luiz, e ainda sentia nos lábios a impressão dos últimos beijos de seu filho.
Recordava-se de toda a sua existência fictícia, instante por instante; poderia
narrá-la inteira, seguida; descrevê-la de princípio a fim, sem lhe esquecer
um episódio; e, no entanto, estranhava a sala em que estava, sem poder determinar
que casa era aquela e donde tinham vindo aqueles objetos que a cercavam.

Volvia surpreendida os olhos em torno de si, alheia ao lugar; nada, de quanto
a sua vista lobrigava, lhe trazia à razão a sombra mais sutil de uma reminiscência.
Afinal, deu com um dos grandes espelhos que havia erguidos sobre os consolos,
e mirou-se, deixando escapar uma longa exclamação de pasmo.

Desconhecera-se.

Aproximou-se mais da sua lívida e descarnada imagem, profundamente abismada
de se ver tão feia. Virou-se de um para outro lado e voltou-se para trás,
procurando quem era aquela múmia, aquela horrorosa criatura que se refletia
lá no espelho.

— Não! não! murmurou, sem se alterar e até sorrindo. — A que
aparece lá não sou eu. É impossível

E sacudia com a cabeça, punha a língua de fora, arregalava os olhos. O vidro
reproduzia tudo.

— Mas não, não é possível que seja eu, insistia a desgraçada, fugindo
da sua sombra e gritando, a correr pela sala: — Eu tenho sangue nos
lábios, brilho nos olhos, frescura na pele! meus peitos são carnudos e suculentos
como duas mangas picadas por passarinho! meu corpo é todo cheio e torneado
como o da novilha que foi coberta e ainda não pariu! Eu sou a mais formosa
entre as mulheres da terra, por isso meu amado me escolheu entre todas! Quando
eu vou ter com ele, ando depressa, sacudindo as saias, e a barra do meu vestido
rescende que nem a baunilha e a trevo-cheiroso

Justina acudiu aos lascivos gritos da senhora. O Conselheiro não foi logo,
porque nessa ocasião fazia a sesta no divã do seu gabinete.

— Então que é isso, minh’ama?…

— Não! não! aquela que ali estava não era eu!… Bem sei que isto não
passa de uma extravagância de sonho!…

— É porque vosmecê está muito fraca… Quer que lhe vá buscar o caldinho?….

Magdá não respondeu; olhava fixamente para as suas mãos angulosas e desfeadas.
Depois, com uma careta de repugnância, tenteou-se toda e ficou a tomar nos
dedos a magreza das suas coxas.

Mas riu-se logo, repetindo, a apalpar-se:

— Que sonho extravagante! Que sonho engraçado!

E ia de novo ao espelho e apontava para a sua figura, e ria–se a bandeiras
despregadas, como ébria.

— Que sonho! Que sonho!

— Então, minh’ama, posso ir buscar-lhe o caldinho?..

Magdá pôs-se muito séria e correu para junto da criada, como se só então
tivesse dado pela sua presença.

— Heim? Que é?

— Pergunto se vosmecê quer tomar o seu caldo?…

— Que caldo?

— Ora essa O seu caldinho das três horas.

— Três horas!

— Da tarde, minh’ama. Eu lho trago já.

E Justina saiu, resmungando: — Coitada! Inda ontem tão senhora de si
e já hoje dá para não dizer coisa com coisa!… Mas isto há de passar, é fraqueza
talvez!… ela, coitadinha, ainda não meteu nada p’ra o estômago!…

Daí a um instante voltava à sala.

— Prove, minh’ama, para ver como está seu apetite!

E esfriava o caldo com a colher, soprando-lhe em Magdá sorvia automaticamente
as colheradas que levava à boca.

— Você onde estava?… perguntou a senhora.

— Na cozinha. Porque, minha’ama?

— E ontem, à noite?

— No casamento de minha mana…

— Sua mana?…

— A Rosinha, como não?

— Com quem ela casou?

— É boa! Com o Luiz! Pois minh’ama já se não lembra…

— Luiz? Quem é o Luiz?…

— Olhe agora! E’ o filho da tia Zefa, o moço ali da pedreira…

— Ah!… Um de corpo nu, com a cara molhada de suor…

— Que trouxe vosmecê ao colo, quando minh’ama subiu ao morro… Minh’ama
conhece-o, como não?

Justina dizia estas coisas com a paciência de quem conversa com um alienado
de estimação; e a outra olhava para ela sem pestanejar, interrompendo a sua
imobilidade apenas para sorver as colheradas de caldo.

— Um descalço, prosseguiu Magdá; um que tem cabelos no peito; a carne
rija como pedra; branca de marfim; a boca cheirando a murta!… Conheço! oh,
se conheço!… Pois, se lhe quero tanto bem!… E por onde anda agora esse
ingrato…

— Está em casa, minh’ama… Ele hoje não foi ao serviço, porque se
casou, mas…

— Ah! Ele casou-se…? Que homem!

— Casou-se ontem, sim senhora, mas amanhã está fino para o trabalho!

— Ah! Ele amanhã não fica na cama!…

— Não fica, não senhora.

— Casou-se! Pois diga-lhe que venha aqui com a noiva; quero dar-lhes
um presente, um bom presente de núpcias. Traga-os, não se esqueça; ouviu?

— Sim senhora. E quando?

— Quando quiserem vir.

— E a que horas, minh’ama?

— A qualquer hora, contanto que venham.

Nisto entrou o Conselheiro, e> a um sinal trocado secretamente com a criada,
esta lhe respondeu em voz baixa:

— Agora… depois do caldo, está melhorzinha, sim senhor.

— Era debilidade… pensou o velho e, aproximando-se da filha, perguntou,
tomando-lhe as mãos:

— A minha flor como se sente agora?… Já está mais disposta a conversar
com o seu papai?…

Ela olhou para ele, estendeu-lhe o rosto e recebeu sorrindo um beijo na testa.

— Vamos dar uma volta pela chácara… propôs o pobre homem, tomando-a
pela cintura e amparando-lhe o corpo sobre seu peito.

Magdá deixou-se levar, sem dizer palavra e, enquanto andou lá por baixo,
esteve sempre muito entretida, ligando grande interesse a tudo que encontrava,
nem como se houvesse recuperado a vista naquele momento, depois de uma cegueira
de nascença. Correu tudo, revistou todo o jardim e todo o porão da casa; e
cada objeto, que seus olhos topavam, a não serem os produtos puramente da
natureza, despertava-lhe espantos de criança: um regador de folha, pintado
de encarnado, causou-lhe enorme curiosidade: deteve-se alguns minutos a contemplá-lo,
muito admirada, sem conseguir compreender o que era aquilo; um chapéu velho,
de copa alta, atirado ao chão, fez-lhe medo; parecia-lhe um bicho. O Conselheiro
viu-se martirizado por um não acabar de perguntas verdadeiramente infantis,
a que ele respondia com paciência de santo.

Quando, já ao dobrar da tarde, Justina a recolheu à alcova, ela assentou-se
na cama e deu para fitar o seu crucifixo, indiferentando-se a tudo mais.

Era a letargia que enfim chegou.

Desta Vez a imagem não cresceu, conservou-se do mesmo tamanho, apenas se
despregou da cruz e ficou, posto que suspensa, na posição de quem se espreguiça.
O papel da parede foi a pouco e pouco se convertendo em um fundo de verdura
esbranquiçada, cujos planos iam lentamente se formando e acentuando com as
precisas gradações dos tons3 entretanto, o Cristo continuava sempre do mesmo
tamanho, num desses planos, como por um efeito de perspectiva.. Afinal, destacaram-se
árvores, plantas, uma paisagem inteira e o Cristozinho, deixou de espreguiçar-se
e pegou de andar por entre a mata, com a tranqüilidade de quem passeia nos
seus quintais.

Só então foi que Magdá percebeu que estava observando tudo isto de uma janela
e apressou-se a olhar em torno de si.

Ah! exclamou, reconhecendo a sua adorada habitação da ilha. — Enfim
Ora, graças a Deus!

Lá estavam os seus objetos de arte, a sua mesa, o seu piano.

— Ah! agora sim.. era outra coisa!… prosseguia, considerando o próprio
corpo, afagando-o por vê-lo novamente belo e forte; mas, tocada por uma idéia
que a fez estremecer, correu ligeira ao fundo do quarto, onde havia um berço.

— Ah! ah! Cá está ele! Cá está o meu ladrãozinho!

Fernando dormia; Magdá tomou-o nos braços, ergueu-se no ar o seu lindo corpinho
nu e, vendo que ele agitava as pernas, rabujando zangado, chamou-o para os
lábios e devorou-o de beijos.

O manhoso, assim que se pilhou no colo, pôs-se a rir.

— Coitadinho… balbuciou ela, rindo também, com as lágrimas nos olhos.

E levou-o para a janela. O pequenino, logo que deu com o Cristo que continuava
a passear por entre as árvores, gritou sacudindo os seus bracinhos feitos
de roscas gordas.

— Papá! Papá!

E, ao que parece, o Cristo lhe ouviu a voz, porque veio então se aproximando,
aproximando, fazendo-se homem, até chegar à janela.

Não era mais o Cristo; era o moço da pedreira.

XX

Passou a noite toda inteira na ilha, muito sossegada, muito feliz ao lado
do marido. Lá não havia sobressaltos nervosos, nem infundados temores, nem
súbitos esquecimentos do que se fizera pouco antes; lá a vida era boa, corredia,
larga e tranqüila. Como de costume, fizera o seu bocado de música, leram,
jogaram e conversaram: ela contou-lhe, rindo e chasqueando, os seus últimos
sonhos — o casamento dele com Rosinha — o desafio à guitarra.
Cantou:

“Tu a amar-me e ou a amar-te,

Não sei qual será mais firme!

Eu como sol a buscar-te;

Tu como sombra a fugir-me.”

— Parece que ainda estou te ouvindo, meu amigo.

— Sonhadora!

— Ah, mas via-me tão magra, tão escaveirada, tão amarela, que metia
pena!

Ele achava graça, ria.

— Magra, tu! que tens este corpo!…

E apertava-lhe a polpa do braço com os seus dedos vigorosos.

— Mas não imaginas, meu querido, a má impressão que me fazia o demônio
do sonho; era tudo como se fosse verdade: eu sentia e via como te estou vendo
aqui!

— Estavas então muito feia…?

— Horrorosa! Se aquilo não passasse de pura ilusão — matava-me!
acredita que me matava!

— Que vaidade, Magdá!

— Ora, no fim de contas sou mulher; além disso, prezo menos por mim
a minha beleza do que por tua causa…

O rapaz agradeceu com uma carícia. E os dois continuaram a palestrar. Vieram
à baila as saudades que Magdá sentira do filho e os seus tormentos por julgar-se
longe dele.

— Estava como louca, disse a visionária; lembra-me bem de que, numa
ocasião em que me fazia a passear pelo braço de meu pai na chácara da Tijuca,
vi um regador de folha pintado de encarnado; pois queres acreditar que eu
não podia atinar com o que aquilo era?…

— Tem graça!

— O que mais me admira, porém, de tudo isto, é que eu sonhe com todas
as pessoas da minha convivência: contigo, com papai, com a nossa criada Justina,
com a família desta, e jamais com meu filho… Nunca sonhei com ele!

— Como não, se não pensas noutra coisa enquanto dormes? Pelo menos
assim acabas de o afirmar…

— Sim, mas nunca o vejo a meu lado…

— Vem a dar na mesma.

E assim cavaqueando, foram até à hora do chá, às dez, depois da qual, Magdá
deu de mamar ao seu bebe. Em seguida lavou-se, tomou a sua roupa de alcova
e afinal recolheu-se à cama com o marido, muito prosaicamente, a cantarolar
um estribilho banal, feliz na convicção de que tinha ali mesmo a seu lado,
ao mais curto alcance, tudo de quanto precisava para satisfazer as suas necessidades
de mulher moça.

Foi então que ela tornou a si, na vida real. Estivera dezesseis horas em
estado letárgico; havia caído em torpor às cinco da tarde e só acordara às
nove da manhã do dia seguinte. Tomou a custo uma colherinha de xarope, que
lhe deu a Justina, de um frasco novo que acabava de ser aberto, e ficou a
olhar para a criada, fixamente, sem expressão, como uma figura de cera.

— Minh’ama ainda se lembra do que me disse ontem?…

— Que foi?

— Que eu falasse à Rosinha para vir cá, junto com o marido.

— Ah! lembro-me perfeitamente…

— Pois eles estão aí fora…

Magdá conservou-se estática; não teve a mais ligeira contração no semblante.
A criada acrescentou, depois de vesti-la:

— Quer vosmecê que eu os faça entrar para esta saleta aí ao pé?…

— Pois bem.

Justina saiu do quarto, nadando em satisfação, e desceu de carreira à chácara,
onde o Luiz a esperava ao lado da mulher.

— Daí a pouco eram estes dois conduzidos à presença da filha do Conselheiro.
O rapaz trazia a sua fatiota nova do casamento conservando a gravata de cetim;
a outra um vestido de fustão branco, sarapintado de florinhas azuis e cheirando
à malva. Era ele agora quem estava muito vexado, e Rosinha não. Esta, ao contrário,
resplandescia de contentamento expansivo; abria-lhe as pétalas da boca um
sorriso largo de rosa ao desabrochar. Era a alegria vitoriosa da carne dos
vinte anos, o riso da vontade satisfeita, o canto alegre da pomba depois do
primeiro arrulho.

O sorriso do Luiz já era outro; um sorriso de sonso, de felizardo consciente
da largueza da sua fortuna e da escassez do seu próprio merecimento. Não levantava
o rosto e não olhava de frente como a esposa; tinha os olhos em terra e torcia
e destorcia entre os dedos calejados o seu chapéu novo de abas largas; todo
ele envergonhado de ser tão feliz, envergonhado como um pobre-diabo que é
surpreendido a comer às escondidas um manjar delicadíssimo e digno da boca
de príncipes.

Magdá ainda mais o confundia, porque não lhe tirava a vista de cima; considerava-o
da cabeça aos pés; parecia estudar-lhe os menores traços da fisionomia, como
se intimamente o comparasse com alguém.

— Então, com que sempre se casaram…? perguntou afinal, mordendo o
lábio inferior e achinezando. os olhos.

Os dois, que até aí guardavam um silêncio espesso, apressaram-se a responder
juntos, dando um pequeno passo para a frente:

— Casamos, sim senhora.

— E desde quando se gostam? Há muito tempo já?…

— Ora há que tempo!… resmungou Luiz, olhando de soslaio para a mulher.

Esta soltou uma risadinha e disse:

— Eu ainda bem não tinha acabado a muda e já ele andava atrás de mim..

— E agora… estimam-se deveras?…

Os manganões não responderam, olharam um para o outro, apertando os beiços,
e afinal duas gargalhadas espocaram ao mesmo tempo, sem que ambos pudessem
mais trocar um olhar entre si; esfogueados por aquele riso escandaloso, aquele
riso que denunciava o que só eles, os brejeiros, lá sabiam.

Houve um silêncio, em que Magdá parecia meditar, muito séria; depois —
fez um quase imperceptível movimento de ombros e ordenou à criada que fosse
lá em baixo buscar uma garrafa de vinho: “Vinho bom, heim?”

Justina saiu correndo e de passagem atirou aos noivos um gesto que dizia:
“Vocês agora é que vão ver o que é uma boa pinga!”

A histérica passou ao quarto de dormir e foi buscar o frasco de xarope de
Easton, aberto havia pouco; enquanto Luiz, vendo-se a sós com a mulher, ferrou-lhe
um beliscão na cinta.

— Fica quieto! segredou a moçoila, indicando com o polegar a porta
por onde saíra a filha do Sr. Conselheiro.

Esta tornou a aparecer e propôs-lhe, com uma das mãos escondida atrás das
costas:

— Porque não entram aí para essa outra sala!… Sentem-se lá… Estejam
à vontade…

Os dois seguiram, um após outro, para o compartimento contíguo, e a enferma
acompanhou-os com estranho olhar, em que havia um duro ressaibo de cólera
invejosa. Chispava-lhe na pupila o mesmo rábido fulgor com que ela vira uma
vez matrimoniar-se o casalzinho de rolas da sala de jantar e com que, de outra,
fitara a voluptuosa miniatura do “Amor e Desejo”, que seu pai tanto estimava.

Justina voltou, trazendo uma bandeja com uma garrafa já aberta e três copos.

— Agora vai buscar doces e biscoutos, encomendou-lhe a senhora.

A criada depôs a bandeja sobre a mesa do centro e saiu de novo. Então Magdá,
com muita calma, sem lhe tremer nem de leve a mão, encheu um dos copos de
vinho e despejou no restante da garrafa todo o xarope do frasco; em seguida
ia a chamar os noivos, mas deteve se; tomou novamente a garrafa, mirou-a contra
a luz, provou do vinho na ponta da língua e, satisfeita com o resultado do
seu exame, tornou à alcova, trouxe outro frasco do xarope ainda intacto, abriu-o
e fez deste o mesmo que com o primeiro.

— Agora sim, disse baixinho, sacolejando a garrafa., e acrescentou
em voz alta, dirigindo-se para a sala próxima, enquanto enchia tranqüilamente
o segundo e o terceiro copo:

— Olá! Venham daí beber à minha saúde.

Os desgraçados acudiram logo de pronto. Magdá apoderou-se do copo que havia
enchido antes e ofereceu-lhes com um gesto amável os outros.

Luiz e Rosinha deram-se pressa em lançar mão cada um do seu.

— Então, vá! Para que sejam muito felizes disse a histérica, levando
o vinho à boca. — Bebam tudo! bebam tudo!

Os dois obedeceram, enxugando de um trago o liquido, com uma pequena careta,
que não puderam reprimir.

— Que tal? perguntou Magdá.

— Bom, muito obrigado, respondeu o cavoqueiro; mas, franqueza, franqueza,
achei-o a modo que muito doce e muito azedo ao mesmo tempo…

— É que a gente não está acostumada… explicou Rosinha com um pigarro.

Nesse momento, Justina reaparecia, trazendo os biscoitos; porém, tanto o
rapaz, como a noiva, pasto se servissem logo, não podiam comer, que lhes principiavam
os queixos a emperrar. E amargava-lhes a boca e ardia-lhes a garganta de um
modo muito esquisito.

Pediram água.

Justina não se achou com ânimo de gracejar e correu em busca do que eles
reclamavam.

— Sentem alguma coisa? inqueriu Magdá tranqüilamente.

— Uma apertura aqui… disse Rosinha com dificuldade, levando a mão
às têmporas e depois à nuca.

— Também a mim dói-me a cabeça… confirmou o cavoqueiro em voz alterada.

— Sentem-se, aconselhou a senhora. — Fiquem a gosto…

E sorriu.

Fez-se um silêncio gélido, em que se ouvia pendular na alcova de Magdá o
seu pequeno regulador de bronze; mas no fim de alguns instantes os pobres
noivos, que pareciam cada vez mais sobreexcitados, puseram-se a mexer com
a mandíbula inferior, contraindo os músculos da face e daí a pouco tinham
rápidos estremecimentos convulsivos, que lhe agitavam o corpo inteiro, de
instante a instante, violentamente.

Luiz quis falar e não pôde; apenas gorgolejou uns bufidos guturais.

Magdá ria-se, olhando as caretas convulsivas que ele e a mulher faziam. Esta,
agoniada, levava simultaneamente as mãos à garganta e ao estômago, sem poder
gritar, tão contraída tinha já o laringe.

Repetiam-se os espasmos com mais intensidade, acompanhados de feias agitações
tetaniformes. O cavoqueiro estorcia-se na cadeira, rilhando os dentes e tomado
de uma ereção dolorosíssima.

Quando Justina voltou, encontrou-os por terra, a estrebuchar; roxos, as pupilas
dilatadas os membros hirtos, os queixos cerrados.

A criada soltou um grito, atirou com a bilha de água e os copos e saiu a
berrar.

Com este barulho, Luiz teve um acesso mais forte e retesou-se todo, vergando-se
para trás, a ponto de encostar a cabeça na coluna vertebral.

E roncava, escabujando horrorosamente.

— Que é isto?! exclamou o Conselheiro, invadindo o aposento, seguido
por Justina, que parecia louca.

— Stchio!!! fez Magdá, pondo o dedo nos lábios e arregalando os olhos.
— Não façam espalhafato!… Deixem tudo por minha conta…

— Jesus! Que aconteceu? gritou o pai, fazendo-se cor de mármore e tentando
levantar do chão o trabalhador. Não pôde. Luiz estava duro como uma estátua.

O pobre velho, a tremer, desorientado, precipitou-se sobre a mesa e descobriu
os frascos de xarope.

— Ah! explodiu, arrancando os cabelos. — Meu Deus! meu Deus!
Envenenou-os!

— Que extravagância!… dizia Magdá com uma risada. — Que extravagância!!!
Meu marido há de achar graça!…

O Conselheiro corria de um para outro lado, atônito, e, percebendo que os
envenenados iam morrer, pediu socorro em altos brados.

Justina havia fugido para a rua e gritava:

— Acudam! Acudam!

Entretanto, Rosinha e Luiz agonizavam ao lado um do outro; a boca muito aberta
e as ventas arregaçadas à falta de ar.

Em breve, a casa foi assaltada por uma porção de gente. A mãe e a avó do
cavoqueiro entraram na carreira, terríveis, desgrenhadas, estralando com os
tamancos no soalho — os braços nus, a saia enrodilhada na cintura a
bramirem chorando; ao passo que o Conselheiro deixava-se estrangular pelos
soluços, atirado ao fundo de uma poltrona, com o rosto escondido entre as
mãos.

Havia cm todos os estranhos um lívido assombro de terror. Surgiram pálidas
figuras curiosas e assustadas, espiando pelas portas; só bem distintos se
ouviam os noivos e os rugidos da tia Zela e da velha Cust6dia, que iam, rápido,
farejando a casa toda, sala por saia, tontas e assanhadas como duas leoas
rebuscando os filhos que lhes roubaram.

Uma onda feroz e atroadora invadiu os aposentos de Magdá; mas de súbito assomou
por entre ela o sobretudo alvadio do Dr. Lobão que, atropeladamente, abriu
caminho com três murros, e foi colocar-se defronte da criminosa, quando esta
ia já ser alcançada pelas duas feras.

O populacho do cortiço e os trabalhadores da pedreira queriam acabá-la, ali
mesmo, a unhas e dentes; porém o médico, muito esbofado, porque viera da rua
lá a passo de lobo, o chapéu de castor no alto da cabeça, o suor a inundar-lhe
o pescoço, os olhos faiscantes, mostrava os punhos e refilava as prezas, rosnando
contra quem se aproximasse da “sua enferma”.

Estava formidável; metia medo! Nunca homem nenhum defendeu, nem a própria
amante, com tamanha dedicação.

Ninguém ousou tocar em Magdá.

Entretanto, outro facultativo cuidava de Luiz e Rosinha, mas sem resultado;
os infelizes expiraram penosamente meia hora depois da intoxicação.

Afinal, chegaram as autoridades policiais. Fez-se o corpo de delito. Os cadáveres
foram carregados para a sala do fundo. Expeliu-se o povo, fechou-se a casa
e postaram-se soldados à porta.

Conduzida Magdá à presença de suas vítimas, interrogaram-lhe se ela conhecia
aqueles mortos.

— Pois não!… perfeitamente, respondeu a alucinada.

E acrescentou, segurando os cabelos do moço da pedreira: — Este é o
meu querido esposo bem amado, pai de meu filho, senhor poderoso na terra e
descendente de Deus; matei-o e mais a essa outra que aí está, porque ele me
traiu com ela!

XXI

Magdá, acompanhada pelo pai e pelo médico, foi nesse mesmo dia conduzida
à Casa de Detenção.

Delirou por todo o caminho. Afigurava-se-lhe que o carro em que iam era um
barco e a rua um grande rio deslizado entre paredes de verdura.

— Mais depressa! mais depressa! exclamava a insensata aos dois falsos
tripulantes que tinha ao lado.

— Não deixem dormir os remos!

— Há de ser difícil encontrar semelhante ilha… observou um deles.

— E eu duvido muito que a encontremos… considerou o outro.

— Ah! disse a filha do Conselheiro, notando que o rio se alargava.
— Talvez que apareça agora!…

— Mas isto já é o mar!… contrapôs um daqueles.

— Pois é justamente no mar que ela está… confirmou a desvairada.

— No mar? Pois a senhora quer viajar em pleno mar com um barquinho
tão à toa?…

— Não faz mal! respondeu a senhora. — Não faz mal! Vamos adiante!

— É que é muito arriscado! Podemos levar o diabo!

— Procuremos! Procuremos!

— Procurar uma ilha como quem procura uma casa!…

— Não tenham medo! Vamos para a frente!

E o barco, embalançado agora pelas águas do alta mar, proejava errante; ora
batido para a direita, ora para a esquerda; ora avançando, ora recuando, à
procura da ilha encantada. Magdá, erguida de pé, os cabelos soltos ao vento,
concheava a mão sobre os olhos e procurava descobrir ao longe, nos limbos
do horizonte, algum ponto negro que lhe desse uma esperança.

— Por aqui não há ilha nenhuma!… objurgou um dos mareantes. —
E’ loucura continuarmos a procurá-la!…

— Mas como se chama esse tal demônio de ilha? perguntou o outro.

— Não sei, não sei como se chama, a “Ilha do Segredo” talvez, ou talvez
nem tenha nome; porém juro-lhe que ela existe, porque é lá que eu vivo há
muito tempo, é lá que moro com minha família! Procuremos! Procuremos! Eu lhes
darei todas as minhas jóias, eu lhes darei, senhores, tudo o que possuo, menos
meu filho! Não parem! não hesitem, por amor de Deus!

Com estas palavras os remadores pareciam criar novo ânimo.

— Espera! gritou um deles, no fim de algum tempo. — Há terra
naquela direção!

— E, se me não engano é com efeito uma ilha… acrescentou o companheiro.

— Pois vamos lá! Vamos lá! suplicava a histérica, esfregando as mãos
com impaciência.

— Mas como é longe!.

— Eu já nem sei por onde andamos!…

— Não desanimem! Não desanimem! Agora pouco falta! Vamos! — Um
pequeno esforço!

Enormes vagalhões erguiam-se de todos os lados; o horizonte aparecia e desaparecia
quase sem intermitência; o barquinho, tão depressa rastejava pelo fundo de
abismos tenebrosos, como se alcantilava deslizando no claro dorso de espumosas
montanhas; entretanto — seguia, seguia sempre, agora sem mais auxílio
de remos, como se fosse levado por uma correnteza.

A ilha aumentava rapidamente defronte dos olhos de Magdá.

— É ela mesma! É ela! exclamava a louca. — Já daqui enxergo a
colina, toda emplumada de bambus

E alçava os braços para o céu, rindo e chorando de alegria. — É ela!
E’ a minha querida prisão! É o meu ninho adorado! Vou tornar a vê-la! Vou
habitá-la de novo! Que ventura, que ventura suprema!

E avançavam, cada vez mais aceleradamente, arrastados pelas águas. Em menos
de um minuto avistavam-se já as palmeiras da campina; via-se rebrilhar ao
sol o areal da praia; destacavam-se caminhos de verdura, e o teto da habitação
surgia por entre massas de arvoredo.

Mas já ninguém podia resistir ao ímpeto da carreira que levava o barco; o
miserável precipitava-se agora vertiginosamente como se fosse arrebatado por
uma, pororoca.

— Agüenta! Agüenta! berravam os catraeiros.

— Estamos perdidos!

— Agüenta!

— Proteja-nos Deus!

— Valha-nos a Virgem!

Os marinheiros tinham a feroz catadura de quem vê a morte face a face. Praguejaram
maldições, blasfêmias; depois abriram a chorar, como duas mulheres.

E Magdá sorria com a idéia de que, se expirasse afogada, o seu cadáver seria
levado pelo oceano aos braços do milagroso amante, que a faria ressuscitar
imediatamente.

Os dois homens rezaram, para morrer.

Redobrou a fúria da corrente. O barco rodopiava, que nem um tronco que a
voragem sorveu. Magdá já não sentia ponto de apoio, já não via ninguém a seu
lado, arrebatada por um turbilhão de vagas que a sufocavam.

Remoinhou nessa aflição alguns instantes; de súbito, ouviu um estrondo de
onda que espoca e sentiu-se rolar na praia, cuspida numa golfada de espumas.

Correu até onde nascia a relva e deixou-se cair aí, prostrada.

Assim esteve longo tempo, descansando ofegante sobre a grama fresca e macia,
completamente nua, os olhos fechados; toda ela penetrada por um capitoso perfume
de magnólia. Este aroma, que dantes tanto a importunava, dava-lhe agora inefáveis
consolações; era esse o perfume da sua ilha querida; esse o aroma do paraíso
de amor, onde nascera o ente que ela mais estremecia no mundo.

Todavia a prostração não a deixava ainda correr ao encontro do filho; e seus
lábios estalavam de sede pelos beijos dele, e toda ela ardia na impaciência
da saudade.

— Maldito abatimento!

Entardeceu. Um vento fresco agitava agora os carnaúbais em melancólicos sussurros;
a patativa gemia na mata, chamando o companheiro; e toda a ilha se apurpurava
na fúlgida congestão do sol poente.

Magdá ergueu-se a meio na relva, admirada de que o marido ainda não tivesse
dado por falta dela e não fosse à sua procura: “Não era aquela a hora em que
todos os casais se recolhiam ao aconchego dos ninhos?…”

Ficou a cismar.

— Teria acontecido alguma desgraça?… disse consigo. E então, a idéia
do envenenamento de Luiz e Rosinha veio-lhe à lembrança com o pânico de um
sonho pressago.

Teve um arrepio. Recordou-se de os ter visto mortos, ao lado um do outro,
lívidos e enrijados pela estricnina Seu coração encheu-se com um pressentimento
horrível. Levantou-se logo e tomou aflita a direção da casa.

A porta estava aberta. Foi entrando.

Achou tudo deserto e silencioso.

Estremeceu aterrada.

— Luiz! gritou ela.

Ninguém respondeu.

— Luiz! Ó Luiz!

A sua voz perdia-se nos surdos murmúrios da tarde.

Sem ânimo de fazer uma conjetura, correu ao berço do filho.

Encontrou-o vazio.

Apalpou-lhe as roupas, levou-as à face — nenhum calor as aquecia.

Estremeceu de novo. E, já aturdida. mais pálida do que a estrela da manhã,
foi a todos os cantos da casa, gritando pelo filho e chamando pelo esposo.

Nada! nada!

Saiu a correr; entranhou-se na mata, percorreu vales e montanhas; cercou
doidamente a ilha inteira, gritando e chorando.

Não encontrou ninguém! ninguém!

Tornou pelos caminhos andados; bateu de novo todos os recantos da ilha, e
voltou à casa, possessa, estrangulada de soluços.

— Roubaram meu filho! Roubaram meu filho!

E pôs-se a quebrar tudo que pilhava ao primeiro alcance. Arremessou por terra
e de encontro às paredes, as jarras, o tinteiro, estatuetas e faianças; atirando
depois consigo mesma ao chão, estrebuchando, torcendo-se em arco, encostando
a cabeça nos calcanhares, a espumar entre dentes e a espolinhar-se como um
hidrófobo. Em seguida começou a engatinhar, firmada nas mãos e nos joelhos,
resbunando prolongadamente, com o pescoço estendido, a boca virada para o
alto:

— Fernando! Fernando!

Corriam-lhe lágrimas pela face. De repente, ergueu-se e caiu de novo em fúria,
a querer dar cabo de tudo; então sentiu que vigorosos pulsos a agarravam por
detrás e enlaçavam-lhe os braços.

— Fernando! Fernando!

E tentava morder os que a seguravam, arremetendo com a cabeça para os lados.

Mas um homem suspendeu-a pelas costas e outro lhe enfiou pelos pés uma abominável
mortalha de linho cru, que se lhe estreitava até ao pescoço, tolhendo-lhe
o corpo inteiro.

E Magdá, em vão tentando debater-se na camisola de força, foi entre policiais,
conduzida para uma célula nos braços do Dr. Lobão, que praguejava, furioso,
por lhe não permitirem as leis carregá-la consigo no mesmo instante para a
sua casa de saúde.

Ficou lá dentro sozinha, a roncar como uma fera encarcerada. O pai viu fecharem-lhe
a jaula, mais sucumbido do que se aquela porta fosse a lousa de um túmulo.

— Está perdida para sempre! soluçou o desgraçado, resvalando no colo
do médico,

O esquisitão fez que limpava o suor da testa, para disfarçar duas lágrimas
rebeldes que lhe saltavam dos olhos escandalosamente.

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