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Guerra dos Mascates – Livro
ADVERTÊNCIA
INDISPENSÁVEL CONTRA ENREDEIROS E MALDIZENTES
Alinhavou-se esta crônica sobre uma papelada velha, descoberta de modo bem estúrdio.
Ia proceder-se à eleição primária em uma paróquia dos subúrbios do Recife. Desde a véspera que o rábula político do lugar tinha arranjado a cousa a bico de pena e conforme a senha; mas era preciso dar representação e mostra oficial da farsa para embaçar uns escrúpulos ridículos do presidente calouro.
Para esse fim um grupo de governistas, com o competente destacamento policial, acampou na Matriz, onde a oposição, que tivera o cuidado de meter-se nas encóspias, não apareceu.
Na ocasião de começar a encamisada, deu-se por falta da urna de que ninguém se lembrara. Felizmente lá desencavaram no fundo do armário da sacristia um cofre ou arca de jacarandá, que devia ter servido, no tempo de El-Rei Nosso Senhor, para guardar os pelouros da vereança.
Havia dentro da tal arca três antigualhas, dignas de uma memória do Instituto Histórico. Eram: uma cabeleira de rabicho que naturalmente pertenceu ao último juiz do povo; uma liga de belbute com atacadores de prata em forma de corações, adereço casquilho de alguma Egéria dos tempos coloniais; e finalmente um grosso rolo de escrita enleado com um cadarço de Lamego.
Sem o menor respeito atiraram essas preciosas relíquias a um canto, onde as descobriu dois dias depois o sacristão da freguesia.
Era este o Sr. Beltrão, que ao mister de enxota-cães da matriz acumulava o ofício de meirinho do subdelegado, combinação esta que dava boa suma das habilidades do nosso homem. Sentia ele também suas cócegas pela política, e desde certo tempo andava chocando de longe, como jacaré, o lugar de inspetor de quarteirão. Até já lhe passara uma vez pela cachola a idéia de trocar a opa vermelha por uma farda azul de alferes da Guarda Nacional; e saindo-lhe a cousa certa, por que não havia de entrar na lista de eleitores, e pilhar a subdelegacia?
Cometera o governo de então o erro gravíssimo de não prestar a consideração devida ao merecimento de um homem dessa marca e a seus relevantes serviços, como fósforo que era e da melhor fábrica. Justamente ofendido em seus brios, o Sr. Beltrão decidiu virar a jaqueta, pois ainda não se tinha metido em casaca; e desandou em oposicionista de quatro costados.
Achando os objetos no canto, o gírio do sacrista contemplou-os um instante com um sorriso manhoso e deitou-se a passo de rafeiro para a casa do escrivão, que era ali o tombo e conselho do partido. Nesse mesmo dia partiu para a cidade um próprio, levando pesado embrulho e uma carta com endereço ao redator do órgão oposicionista.
O tarelo escritor andava a tinir com o malogro de sua candidatura. Ainda garraio em política, tivera a ingenuidade de tomar ao sério a eleição e concebera a louca esperança de furar a chapa do governo, empresa mais difícil do que a de brocar o Pão de Açúcar.
Foi receber a carta e pular o tarouco do publicista à mesa, onde cortadas as tiras de papel almaço, desandou um artigo em estilo de bomba, no qual trovejava deveras contra o despotismo que oprimia o país.
No outro dia apareceu o presidente com cara de demissão, o que logo se conheceu pelas cerdas revoltas do bigodinho, que o excelentíssimo esmerava-se em trazer sempre com um torcido dos mais elegantes. Pudera não! Logo na cama tomara, à guisa de mingau ou chocolate, a siribanda da folha oposicionista num artigo furibundo, sob a epígrafe – Ubinam gentium sumus!… Era o tal sobre a eleição.
Depois de uns rasgos eloqüentes acerca da depravação do sistema representativo, e da corrupção que lastra como uma lepra oficial (isso é lá do publicista pernambucano), descrevia o retumbante artigo os atentados inauditos praticados pelo partido dominante para tomar de assalto as urnas. Esse partido então dominante, confesso que não indaguei qual seria, mas cada um porá o que for mais de seu gosto; assim ficaremos todos contentes, e não haverá motivo de zanga entre conservadores e liberais.
Aí vai a amostra do tal artigo:
Chegou a ponto a ousadia, a impudência, dessa horda de vândalos que não respeitaram as cousas mais sagradas, a santidade do templo, as cãs de uma velhice honrada e a virtude do sexo frágil!
– O honrado capitão-mor, o Sr. A***, esse benemérito ancião, acatado em todos os tempos como um tipo de sisudez e probidade, foi vitima dos insultos e apupadas dos energúmenos, que depois de tentarem contra sua existência, tiveram a protérvia incrível de calcar aos pés a sua cabeleira, esse venerando símbolo da velhice gloriosa do grande patriota.
Não escapou à sanha dos bandidos a ilustre Sr.a D. B***, essa ínclita matrona pernambucana, digna dos melhores tempos de Roma por sua virtude e austeridade. Talhada no molde de D. Maria de Sousa, a heroína brasileira, é adorada como uma providência daqueles lugares por sua caridade inexaurível. Estando na missa, foi ultrajada sem respeito à santidade do lugar e ao recato do sexo. E por quê… Pelo crime imperdoável de ser mãe de um nosso amigo, o Sr. C***, oposicionista importante. Para se avaliar quanto sofreu a ilustre matrona, bastará saber-se que no meio do tumulto caiu-lhe uma liga de preço, e esse penhor da castidade veio a servir – horresco!… de joguete à canalha.
No dia seguinte o corpo da igreja onde se fez a eleição, apresentava aspecto igual ao teatro de uma bacanal. Rolavam pelo chão, de envolta com aqueles objetos respeitáveis, maços de cédulas arrancados à urna violada, e sobejos da opípara ceia com que banquetearam a seus janízaros.
E o governo, depois de se debochar nessa orgia, ousará ainda com o maior cinismo falar em liberdade de voto e pureza de eleição! Infeliz país, governado por lacaios a quem servem outros lacaios, e outros, desde a antecâmara até a cocheira.
Um esquisitão que havia em Pernambuco, republicano de 1817, convertido em comendador, ao ler aquele trecho saiu-se com estaque não era escrito de pena, mas de chuço.
Tinha uma nota o artigo, e assim concebida:
Ficam em nosso poder, onde podem ser examinados, os objetos a que nos referimos, verdadeiro corpo de delito da saturnal representada pelos esbirros do governo.
Muitas pessoas foram ao escritório da folha ver a cabeleira, a liga e o maço a que aludia o artigo. Entanto era a toda pressa chamado a palácio o chefe do partido. A conferência esteve tempestuosa.
O presidente engrilou-se, declarando que estava disposto a fazer tudo, mas guardadas as aparências. O chefe bateu-lhe o pé; deu-lhe três gritos, e acabou por dizer-lhe que não faltavam presidentes para Pernambuco. Da secretaria ouviu-se a altercação; e horas depois assoalhou-se que as duas potências estavam desavindas.
Por este tempo o capitão-mor e a matrona, sabendo do artigo, quiseram protestar. O primeiro assegurava que sua cabeleira de rabicho há muitos anos fora roída pelos ratos, e lamentava esse desastre. A segunda, furiosa contra o escritor e disposta a não aturar desaforos, jurava que tivera sempre sua perna bem grossa e carnuda para segurar a meia sem necessidade de ligas. Ambos declaravam que não tinham saído de casa no dia da eleição.
Interpuseram-se, porém, os oráculos da oposição, e usaram de todos os meios de influência para obstar à declaração. Exigiam as conveniências do partido não se tirasse a força moral de um artigo, que produzira grande efeito e dera azo ao rompimento do chefe governista com o presidente.
O subdelegado da freguesia, cabo da eleição, desmentiu em oficio e por cartas as acusações do jornal oposicionista; mas ninguém, nem os seus próprios amigos acreditaram nas asseverações do homem, que sabiam capaz de maiores façanhas, useiro e vezeiro nelas. Não obstante, a imprensa do governo desfez-se em elogios à imparcialidade e moderação do prestante cidadão a quem estava confiada a autoridade do lugar.
Um mês depois, cá na corte, o ministro da Justiça voltava do despacho azoado com uma sabatina que sofrera a respeito da eleição da tal paróquia, cuja existência ele ignorava, pois era homem do Sul. O oficial de gabinete ouviu no meio de um solilóquio trágico estas palavras inauditas:
– Não se pode ser ministro assim!…
Tirando então da pasta um caderno de papel com o título de extrato dos jornais, o pimpolho do estadista procurou um lugar marcado à margem com uma cruz sinistra riscada a lápis. Era nada menos do que o trecho elo quentíssimo do publicista pernambucano.
Expediu-se nesse mesmo dia um reservado ao presidente exigindo com urgência informações a respeito dos fatos escandalosos referidos pela folha. A oposição em Pernambuco teve logo noticia do que havia, e compreendendo o partido que podia tirar do incidente, remeteu para a corte os objetos a que aludira o artigo, a fim de serem vistos por ALGUÉM.
Foi portador o nosso jornalista. Chegando à corte fez-me o favor de procurar como colega, e pedir que preparasse a opinião com um artigo de minha lavra, confiando-me para este fim o pacote onde estava o corpo de delito do grande escândalo. Há embrechadas de que ninguém se livra: era esta uma das tais.
Atirei o embrulho a um canto muito resolvido a desculpar-me com as minhas lidas, quando o homem viesse buscá-lo no sábado próximo, para a audiência que esperava. Nesse ínterim, porém, caiu o ministério; e houve mudança na política.
Disseram nas câmaras que, tendo-se agravado os incômodos do ministro do império, este insistira pela demissão, e o gabinete julgando inconveniente uma reorganização, resolvera retirar-se. O público ouviu estas explicações com o mesmo ar do homem da boa sociedade quando o amigo se desculpa de o não ter visitado ainda, por causa de incômodos de saúde. Sabe-se que é uma calva mentira; mas todos a aceitam e agradecem como uma prova de polidez.
A verdadeira causa da queda do ministério só muito depois vim eu a sabê-la; e como não me pediram segredo, aí vai sem tirar nem pôr.
Recebendo o reservado do ministro da Justiça, o presidente de Pernambuco pressentiu que ali andava dedo de mestre; e desenvolveu um zelo digno dos maiores encômios. É preciso notar que nessa mesma ocasião o fedelho administrativo fora honrado com uma particular do ministro do Império, na qual o novo Mazarin insinuara habilmente esta máxima profunda: – Aos reis como às crianças, é preciso enganá-los para seu próprio bem.
Apesar de tão salutar advertência, o presidente porventura já fascinado pelo irresistível prestigio do absurdo, tomou ao sério o reservado. No mesmo dia foi demitido o subdelegado da tal freguesia com todos os seis suplentes; e o chefe de policia recebeu ordem de se dirigir imediatamente àquela localidade a fim de sindicar dos fatos graves ocorridos durante a eleição.
Estes atos foram publicados na folha oficial. O chefe governista, que depois do rompimento resolvera contemporizar, bufou. No primeiro paquete veio o seu ultimato: A conservação do atual presidente é uma calamidade. Meus amigos estão sendo sacrificados ao capricho deste moço enfatuado; e a lealdade exige que eu os acompanhe na adversidade.
Andava o ministro do Império muito desgostoso com os colegas porque não conseguira fazer o genro barão. A carta do chefe pernambucano foi um pretexto magnífico. Instou pela demissão do presidente, o que não obteve, como de antemão sabia; pediu então respeitosamente vênia para retirar-se do poder, e foi-lhe graciosamente recusada. Não havia motivo para separar-se de seus colegas; devia continuar a prestar bons serviços ao país, e juntos deixarem o governo quando lhes viesse a faltar o apoio do parlamento do que não havia receio. A saída de um membro do gabinete isoladamente não era de boa política.
Tais foram pelo menos as palavras que o ministro do Império trouxe a seus colegas reunidos em conferência na casa do presidente do conselho. O secretário da Marinha, grumete de primeira viagem, expandiu-se como uma papoula, convencido de que o ministério estava mais firme que rocha, e tinha vida para cinco anos, senão dez.
Qual não foi seu pasmo, vendo que o matreiro do ministro do Império apesar daquelas palavras graciosas, insistia calculadamente pela retirada, mas a pretexto de moléstia; e que o presidente do conselho anunciava com um riso jâmbico a resolução de acompanhar seu colega: “Estava cansado e velho; devia passar o fardo a ombros mais robustos.”
A bom entendedor meia palavra basta. A trempe do gabinete manobrava para alijar o colega do Império; mas aquela augusta solicitude manifestada pela solidariedade ministerial, abriu-lhe os olhos. Soara o buona sera; cumpria se despedirem logo, para não representarem o papel de D. Basílio.
Assim operou-se a mudança política. Mal sabia a essa hora o maroto do sacristão que ele tivera a honra de servir de pretexto a um acontecimento tão importante! Se o adivinhasse, não limitaria suas ambições ao modesto lugar de inspetor, que arranjou-lhe o escrivão, e à patente. de alferes que o novo presidente prometeu-lhe.
Decorreram oito ou nove meses.
A câmara fora dissolvida. O jovem escritor tinha sido eleito deputado, e estava com assento na câmara. Um domingo por manhã recebi sua visita, em retribuição do cartão que lhe deixara à chegada. Conversamos a respeito de política; o autor do artigo sobre a cabeleira do capitão-mor pensava que tínhamos demasia de liberdade; a imprensa especialmente carecia de um corretivo salutar.
Trouxe-me à memória o embrulho que ainda atravancava uma gaveta de minha papeleira. Sem advertir que fazia um epigrama ao Cícero pernambucano, perguntei-lhe:
– Que destino devo dar aos objetos que 1′. Ex.a me confiou? Quer que os envie à sua residência?
– Oh! não vale a pena! respondeu com um rubor de primeira legislatura. A mudança, que se operou na política, tirou a estes objetos sua importância.
Ao sair encontrou-se a visita com um indivíduo esguio, que subia a escada. O feto ministerial não se dignou abaixar o augusto e digníssimo olhar para a zumbaia do desconhecido, cujo ar beguino cheirava de longe a morrão de igreja.
Quem havia de ser o sujeito?
O marreco do sacristão, que já foi encaixado na Guarda Nacional vinha à corte pretender um empregozinho para viver. Servia-lhe até mesmo o oficio de seu amigo, o escrivão, arriscado a perdê-lo por certo desfalque no cofre de órfãos.
– Dizem, acrescentou ele; eu não creio; talvez não passem de calúnias; mas enfim tudo pode acontecer.
Trazia-me o mirífico alferes uma carta de recomendação, que lhe dava o direito de importunar-me uma hora a contar sua genealogia, como prólogo necessário e importante da biografia. Mas nunca um tagarela caiu-me tão a propósito do céu como aquele.
– Sr. Beltrão, meus pequenos serviços estão à sua disposição; mas não tenho valimento. É bom que procure os deputados de sua província.
– Qual, sr. doutor. São uns ingratos; já estou escarmentado deles. Não viu este que saía quando entrei? Depois que se encarrapitou, faz que não conhece a gente. Não gosto de falar… Mas se não fosse eu, ele não estaria hoje – senhor deputado!
– Trabalhou a favor de sua candidatura?
O sacristão olhou-me com um sublime gesto de modéstia:
– Fui eu que derrubei o ministério passado.
– Ah!…
O Sr. Beltrão tinha em um saguão ministerial travado conhecimento com o correio do ex-presidente do conselho, que lhe referiu a verdade verdadeira a respeito da queda do último ministério.
– Ora, concluiu ele; quem meteu o capitão-mor na dança fui eu..
– Então ele não perdeu a cabeleira na igreja?
– Qual cabeleira, sr. doutor. Aqueles cacarecos velhos estavam escondidos numa caixa do defunto vigário, que a tinha metido no armário da sacristia. Eu é que arranje: a tramóia com o escrivão.
– Pois Sr. Beltrão, já vejo que há de ser bem sucedido em sua pretensão. Um homem de seu talento deve ir longe.
Foi-se afinal o sacristão. Tornando ao gabinete, depois de uma manhã perdida, deu-me a curiosidade de examinar as antigualhas do embrulho, antes de mandá-las para o lixo. O rolo de papel, que o escritor pernambucano, jurando na palavra do escrivão, qualificara de maço de cédulas e como tal fora visto por várias pessoas; era nada menos do que um tesouro.
Era o manuscrito de uma crônica inédita da Guerra dos Mascates. Devorei o cartapácio e desde logo fiz tenção de o tirar a lume, espanando-lhe de leve as roupagens do estilo, que me pareceram um tanto poentas. Só agora, no remanso destas férias, à sombra de umas jaqueiras que sem dúvida competem com as faias virgilianas, se pôde levar a cabo a grande empresa; e não sei como, lá se meteram pela velha crônica uns cerzidos ou remendos de estofo moderno, que seguramente lhe tiram seu ar carrança, o melhor sainete do manuscrito.
Esta advertência, bem se vê que era imprescindível, para evitar certos comentos. Não faltariam malignos que julgassem ter sido esta crônica inventada à feição e sabor dos tempos de agora, como quem enxerta borbulha nova em tronco seco; não quanto à trama da ação, que versa de amores, mas no tocante às cousas da governança da capitania.
Pois não lograrão seu intento; que o público aí fica munido do documento preciso para julgar da autenticidade desta verídica história.
Se os tempos volvem como as vistas de uma marmota, e as figurinhas cá do presépio da terra entram para saírem, com os mesmos engonços e geringonças, embora metidas em trajos diferentes; disso não tem culpa o cronista. Lá se avenham com o mundo, que é o titereiro-mor de tais bonecos.
O que se tira agora à estampa forma apenas a primeira parte da crônica, e bem se pode chamar o Prólogo da comédia, que a seu tempo, quando houver folga e pachorra, também virá a lume.
Tijuca, dezembro de 1870.
NOTA
Sai tardio e já fora de sazão este primeiro volume de uma obra que podia bem estar a esta hora no rol dos alcaides de livraria.
Tendo entrado nos prelos em 1871, como se vê do frontispício, só agora 1873 vem a lume, e ainda assim desacompanhado do outro tomo, que lhe serve de parelha.
A culpa é do autor e ele a confessa contrito.
Poderia alegar em seu favor que logo depois de remetido à tipografia o original, teve necessidade de ir a Baependi fazer uso das águas de Caxambu, que lhe eram aconselhadas.
Nem venha o leitor com a sua contrariedade, lembrando que nesse decurso escrevia ele o Til, para o folhetim da República.
É o Til desses livros que se compõem com material próprio, fornecido pela imaginação e pela reminiscência; e que portanto se podem escrever em viagem, sobre a perna, ou num canto da mesa de jantar.
Não sucede o mesmo com um romance histórico, e ainda mais em nosso país onde as fontes do passado nos ficaram tão escassas, senão muitas vezes exaustas.
Para decrever a nossa sociedade colonial é necessário reconstrui-la pelo mesmo processo de que usam os naturalistas com os animais antediluvianos. De um osso, eles recompõem a carcaça, guiados pela analogia e pela ciência.
O escritor que no Brasil tenta o romance histórico, há de cometer antes de tudo essa árdua tarefa de recompor com os fragmentos catados nos velhos cronistas a colônia portuguesa da América, tal como ela existiu, a separar-se de dia em dia da mãe pátria, e já preparando o futuro império.
Imagine o leitor a cópia de livros de que tem de cercar-se o autor; o isolamento a que deve sujeitar seu espírito a fim de identificá-lo com esses órgãos do passado; a leitura incessante que lhe é necessária para saturar-se da antiguidade que se exala dos velhos alfarrábios.
Isto não se faz em viagem, e ainda menos em viagem de terra, pelos caminhos que temos, e com as pocilgas que às vezes servem de pouso aí por esse interior.
Bem saudades levava eu dos meus personagens da Guerra dos Mascates, com os quais me habituara a tratar, e a quem já conhecia tão bem, que os distinguia de longe pelo gesto ou pelo andar.
Quando, de volta de Caxambu, de novo os procurei, já não eram os conhecidos que eu tinha deixado; e custou-me a entrar de novo em sua convivência.
Este inconveniente, eu o noto todas as vezes que interrompo alguma obra. Se ela ganha pela reflexão, perde muito da energia e abundância que tem o primeiro arrojo da concepção.
A idéia de um livro, para aqueles que o escrevem de inspiração, brota de uma ebulição do pensamento, como a planta do germe que fermenta no solo.
Essa ebulição traz consigo toda a seiva do livro como no torrão em que vem o broto há o sal da terra, que deve formar o lenho, as folhas e a flor da árvore.
Uma vez apagada a efervescência d’alma, sem que o livro esteja concluído, é muito difícil reproduzir o fenômeno, e nunca ele volta com a mesma exuberância e o brilho da primeira expansão.
Malfadada nasceu esta crônica, pois quando o autor se julgava tornado a ela, arrancou-o a enfermidade para levá-lo outra vez em triste peregrinação, mas desta vez pelos arrabaldes da cidade.
Cá ficaram as provas a rever, e os materiais do segundo volume outra vez fechados na pasta à espera de uma folga, que só veio decorrido um ano, e depois de profundos desgostos.
Acudirá o leitor com o Garatuja, que há poucos dias foi dado à estampa?
O Garatuja estava feito; faltava-lhe apenas a forma. A cidade colonial de São Sebastião, eu tenho-a tantas vezes estudado e discorrido por ela, que já a conheço melhor do que a cidade imperial em que habitamos.
Foi para mim um anódino ao tédio da moléstia, essa crônica despretensiosa, escrita sem esforço nem cuidado, com o maior desalinho. Outra sorte desejava eu para a Guerra dos Mascates, que todavia sai mau grado, tanto, se não mais, descuidada na composição, como na revisão.
Era minha intenção acompanhar este volume de notas, com referência à parte histórica da obra, mas sobre faltar-me o tempo, careço da paciência para esse trabalho tão fastidioso, quanto em geral desdenhado.
A Guerra dos Mascates é talvez dos fatos da nossa história colonial aquele de que nos ficaram mais copiosos subsídios. Temos acerca dessa grotesca revolução o informe dos dois partidos, os quais, como sempre acontece, exageraram cada um por sua conta.
Dos personagens, que a história memorou, o principal é sem dúvida Sebastião de Castro Caldas, governador e capitão-general de Pernambuco, posto ao qual foi promovido depois que deixou o governo da Capitania do Rio de Janeiro, onde serviu entre os anos de 1695 a 1697.
De seu caráter, como dos fatos que referem os cronistas, não carecemos de ocupar-nos aqui, pois melhor se verão do texto da obra, especialmente do segundo volume, onde a ação se desenvolve.
Foi este governador muito caluniado, em seu tempo, acabando por lhe faltarem os amigos e defensores, em qualquer dos partidos; até mesmo naquele a quem por último se entregara. É a sorte dos caracteres dúbios e perplexos, que dirigindo todo seu esforço a manter-se em equilíbrio entre as idéias e os homens, quando uma vez falseiam, não acham esteio e despenham-se.
Copiando-lhe o vulto histórico, além de vingar sua memória contra a injustiça e o aleive dos coevos, erigi em vera efígie, para exemplo dos pósteros, a estátua dessa política sorna, tíbia, sorrateira e esconsa, que à maneira da carcoma rói e corrompe a alma do povo.
Quanto aos outros personagens, tanto os que vieram à tona da história, como os outros que a onda dos acontecimentos submergiu, não são mais do que os manequins da crônica, semelhantes às figuras de pau e cera em que os alfaiates e cabeleireiros põem à mostra na vidraça roupas e penteados.
Se o leitor malicioso quiser divertir-se experimentando carapuças, o autor desde já protesta contra semelhante abuso e pelos prejuízos, perdas e danos que dai possam provir a seu livro, o mais inocente de quantos já foram postos em letra de fôrma, desde que se inventou esse gênio do bem e do mal chamado imprensa.
12 de maio de 1873.
GUERRA DOS MASCATES
PRIMEIRA PARTE
(O PRÓLOGO)
CAPÍTULO I
A JANELINHA REBUÇADA DO SÓTÃO DA CASA NOVA DO P£RERECA
A tarde do dia 1º de outubro de 1710 não teve cousa de maior.
Foi uma tarde como qualquer, em fazendo bom tempo. O sol tinha a cara dos mais dias, aí pela volta das quatro horas que seriam então; nada mais, a não ser uma carapuça de algodão que lá as nuvens haviam encasquetado na cabeça do astro para guardá-lo de constipar-se com o relento.
E o mais é que assim encarapuçado, Febo, como ainda o chamavam então os poetas e os namorados, fazia a figura de um Xerxes trajado à moda de rei constitucional, de casaca e chapéu redondo.
O céu estava azul mais ou menos; o mar pelo mesmo teor; levanta-se a viração e as árvores tinham o verde do costume, misturado com alguns ramos secos e folhas murchas. Também deviam de cantar pelos arredores alguns passarinhos; não falando das flores que sem dúvida estrelavam o campo.
Agora, se era de cetim o manto do firmamento, e de safira a redoma do oceano; se as auras suspiravam amores nos seios das boninas, e arrulhavam saudades as rolas melancólicas, enquanto as açucenas abriam as suas caçoulas cheias de perfumes, não sei eu: que não o diz a crônica.
Mas por isso não haja queixa. Tome cada um de sedas, pedrarias, endeixas e fragrâncias, quanta porção queira, e vá enfeitando e arrebicando a minha descrição a seu gosto. Eu cá prefiro a simplicidade, que é o mais cômodo de todos os estilos; basta ver que forra-se a gente ao trabalho de fantasiar, e deixa isso ao leitor.
Há nada como aquele modo chão de principiar as histórias da carocha? – Foi um dia… E cada um que imagine o tal dia à sua feição, de inverno ou de verão, de outono ou primavera, como lhe saiba melhor.
Pois era uma tarde… e a janela do sótão, na casa do. Perereca, abria manso e manso fazendo uma fresta, onde se mostrou a medo a ponta arrebitada do mais lindo narizinho retorcido de que há notícia desde Aglaia, a qual o tinha de primor, valha a fábula, como a graça que era do chiste e da malícia, donde veio chamarem-na os gregos de esplêndida.
Agora vejo que não se conhece ainda a casa, nem o lugar em que estava situada, sem falar de outras particularidades, que não deixam de ser curiosas, com especialidade o dono; pois, e não digo novidade, se em geral os prédios são cousa de seu proprietário, também donos há que são acessórios de sua casa.
Estamos no Recife.
Andando a Rua da Praia dos Coqueiros, no bairro de Santo Antônio, quem ia naquele tempo do Colégio para as bandas das Cinco Pontas, quase a meio caminho encontrava um vasto edifício que ficava fronteiro à barra; ainda a Rua da Maré com sua casaria não se tinha prolongado até aquele ponto da ribeira.
Larga e baixa, a casa terreira acaçapava-se entre o arvoredo do quintal que a beirava de um e outro lado; mas dava logo nas vistas pela especialidade da pintura extravagante com que a haviam lambuzado, pois outra qualificação não quadraria à incrível borradela.
Tinha cerca de quatro anos o edifício. Acabada nele a obra de pedreiro e carapina, quando se teve de passar ao artigo pintura, vieram as tribulações para o dono, o digno Sr. Simão Ribas, mascate de peso e marca entre os principais do Recife.
Não sei se já ai por essa monarquia doméstica tinham inventado o governo pessoal, e usavam as calças responsáveis meterem-se por baixo da saia inviolável. Cá, no meu alfarrábio, só vejo que houve muita rezinga e altercação, acabando o bate-barba ou questão de alcova, como de costume, com o triunfo completo da trunfa, que era então, como o coque é hoje, a coroa doméstica.
Sabidas as contas, decidira a Sr.a Rufina Ribas que a fachada fosse de uma cor farfante e para ver-se a léguas, lá do alto-mar. Antes de surdir o navio pelo Lameirão adentro, queria a respeitável matrona que sua casa nova entrasse pelas vistas da gente que vinha da santa terrinha.
Nem por sombras ocorreu ao marido a idéia de opor-se à vontade de sua dona. Era um marido constitucional o Sr. Simão Ribas; e não há ai ministro cortesão, a que ele não levasse as lampas na arte insigne de fundir-se, como cera, em figurinhas moldadas ao capricho mulheril. Não foram, pois, assomos de resistência que perturbaram a paz doméstica; ao inverso, proveio tudo de excessos de zelo e obediência.
Chamado a conselho o exímio borrador a fim de dar alvitre sobre o caso, foi de voto que não havia como o zarcão, para fazer o gosto à Sr.a Rufina. Dito e feito: no dia seguinte amanheceu a parede assanhada com uma crosta do mais coruscante vermelho.
Muito ancho de si, o digno mascate já se regozijava de ter uma vez na a feito as cousas ao agrado da querida metade, quando lhe veio ela deitar água na fervura.
Esguelhando à parede um olhar impertinente, espevitou o nariz, torceu o beiço, e deu um muxoxo, que erriçou os cabelos ao marido.
Barulh0 no caso: novo apelo ao borrador que gizou a combinação do verdete com o zarcão; e assim, de rezinga em rezinga, chegou-se àquele espalha. fato de todas as cores, onde o azul brigava com o encarnado, o verde com o vermelho, e o roxo-terra com o amarelo da oca. Era cousa indescritível, que o prospeto de algumas tabernas de hoje ainda não conseguiu imitar.
Nos primeiros dias esteve a casa de mostra aos basbaques e pascácios que por lá iam, para se pasmarem diante daquela maravilha. Por um mês não se falou no Recife doutra cousa; até que um dia lá apareceu pela manhã escrito a carvão, na frente, este dístico maligno – Perereca.
Lavou-se da parede a tisna, mas a alcunha ficou ai fisgada à casa, como se a tivessem gravado em bronze. Fora o brejeiro de um rapaz que, voltando a ave-maria da escola e ouvindo cantar a rã numa touça de bananeiras, lembrou-se da semelhança que tinha com a frente da casa, e escreveu-lhe o nome na parede. Ao outro dia, antes que apagassem as letras, sucedeu passarem ai um frade, uma comadre e um soldado. Leu o franciscano em voz alta, se julgando a sós, e riu-se: ouviram-no os dois que atinaram com a graça.
Tanto bastou para que ao meio-dia se soubesse em todo o Recife do acontecido; e, pelo plebiscito do motejo unânime, a casa sarapintada ficou sendo conhecida pelo nome expressivo de – Casa do Perereca.
Cobria o edifício um telhado de largas abas e alto cocuruto, que lançava em cada quina uma ponta de barro com pretensões a figura de marreca. Nas duas faces laterais erguiam-se as águas-furtadas do sótão, que rasgava duas janelas, uma para cada banda.
Na janela da direita, que durante o dia estava aberta sempre, de costume estendiam em um cordel passado de uma à outra ombreira certa colcha de chita de ramagens, que ao sopro do vento desfraldava-se à guisa de estandarte. Quem tinha a dita de conhecer a Sra. Rufina Ribas, acertando de passar por aqueles sítios e dando com o espantalho da tal coberta, adivinhava logo que era da garrida matrona essa janela.
Tinha outro ar e outros modos a janela da esquerda. Começava logo por uma latada que lhe haviam armado em volta, e lhe servia como de capuz, com as ramadas do maracujazeiro, entrelaçada pelos escaques do caramanchel. Dava-lhe isso, à tal janelinha, uns biocos de freira, mas de freira moça e bonita, que lá do remanso do claustro enfia pela grade uma olhadela curiosa e ávida do burburinho do mundo.
Outra diferença vinha de estarem as adufas da direita sempre cerradas, em horas soalheiras; nisso pareciam-se com o cálice de certas flores e com os cílios da juriti, que fecham-se pela muita luz e só abrem ao doce toque do crepúsculo. Todavia não eram elas tão recatadas do sol, que não se descerrassem lá uma ou outra vez, na calma do dia, sobretudo aos domingos, para deixar que entrasse algum raio fagueiro pela câmara do sótão.
No estreito eirado, rente com o peitoril, havia três vasos de barro onde cresciam várias plantas. A mão que reunira ai o alvo bogarim, a rubra cravina, o goivo amarelo e os bagos escarlates da pimenta, esse conjunto singular lhe estava denunciando a travessura. Se é verdade, e eu creio, que a alma imprime nos objetos que a cercam a sua própria feição, podia-se ver naquele grupo de plantas o enigma de um coração.
Não seria o alvo bogarim o reflexo da candidez, como as pétalas da cravina a imagem dos vivos rubores de uma petulante castidade? O goivo, ali na mansão da juventude, não exprimia a descuidosa alegria, que orvalha de risos até as horas aziagas? E naqueles bagos vermelhos e brilhantes da pimenta, não havia quiçá o emblema das unhas de nácar, habituadas a insinuar no afago o belisco traiçoeiro?
Afinal de contas, quem sabe se apesar de todas as suas mostras encantadoras não estava a tal sonsa da janelinha enganando a gente que passava, como certas moças do tempo de hoje, cujo fraco é porem-se às vessas; quero eu dizer, e sem malícia, que se empenham com todas as forças para fazerem-se outras, das que as criou a natureza.
Assim tosquia-se para fazer cachos, aquela que Deus ornou com a túnica mais bela, que é uma soberba madeixa. Se não a possuísse, havia de esmagar a cabeça com uma trouxa enorme de cabelos postiços. Estufa-se a magra com enchimentos para simular contornos, como a gorda se espartilha e acocha para figurar de esbelta. E nesse teor, enganando-se a si e aos outros, vai o mundo a rolar como uma bola que é, levantando estes e abaixando aqueles, mas por fim esmoendo a todos.
Eis porque não seria caso de espantar, se naquela janelinha tão louçã viesse a aparecer uma velha encarquilhada, descobrindo-se afinal que o nosso narizinho retorcido não passava da ponta fungada do cavalete setuagenário de um respeitável par de óculos de tartaruga.
Tudo pode ser.
CAPÍTULO II
A LEBRE NA TOCA E O VEADO NA MOITA
Já batia a sombra no peitoril, quando se entreabrira a adufa da janela, mostrando a ponta retorcida do gentil narizinho.
Dir-se-ia que ele farejava como uma lebre arisca, tal era sua volubilidade, se não fosse mais natural presumir um olhar, que ainda se não distinguia, coando pela fresta, a espreitar os arredores. Como nada aparecia de suspeito, as duas abas correram, escancarando-se de par em par com arrebatamento igual da timidez anterior.
Assim abrem-se também as asas do passarinho, que há pouco titilava dentro do ninho, e já talha os ares com o vôo rápido.
No vão da janela mostrou-se o busto de uma menina; mas o que primeiro se viu, senão somente, pois arrebatava os olhos todos e a alma, foi a cabecinha cheia de papelotes, que se enroscavam entre os anéis do cabelo negro. Nunca flores, nem pérolas, ornaram uma fronte fidalga como aqueles crespos de papel.
Trazia a menina os bolsos do avental cheios de gomos de cana, cortados à feição de chupar; e naquele momento, seus dentes brancos e polidos como o jaspe mordiam uma talhada, que lhe arregaçava graciosamente os lábios purpurinos. No prazer com que ela trincava a fibra da cana, sugando-lhe o mel, adivinhava-se o segredo dessa boquinha faceira.
Não era boca para embeber-se na delícia de um beijo ardente, com a ânsia da paixão que imbui uma alma na outra, fundindo-as em delíquios de amor. Não o era decerto; mas para trincar um coração, como se fosse um gomo de cana, ou para esgarçar a vida de um mísero amante, como o bagaço que segurava entre os dedos, isto sim: podia-se jurar.
Quem admirou a fina polpa desse lábio e não viu logo as semelhanças da pétala de rosa cobrindo o espinho, ou do bago da pitanga onde acaso insinua-se o farpão da abelha? Desses lábios, quando ele, alguma vez se abrocham em botão, não há fiar; são beijos de morder, os que eles sabem, caricias que pungem n’alma e a deixam em piques. Por isso estão sempre a rir, não tanto de alegria, como pelo gosto de mostrar o dentezinho branco, sutil e afilado como o dardo da áspide que se escondesse em um aljôfar.
Mas naquele rosto gracioso, o primor não eram nem a boca brejeira e os cabelos cacheados, nem os olhos pretos que faziam cócegas no coração, nem mesmo a covinha da barba, que um poeta chamaria o ninho das graças. Era… Adivinhem!… Era o narizinho retorcido, que no meio daquelas gentis feições, parecia um anjo traquinas dentro de um berço de boninas.
Quando encontro um desses narizes arrebitados, já se entende, em rosto de moça, cuido estar vendo um passarinho, que arrufa-se de cólera e empina a cabeça, pronto a lançar a bicada. Reparem bem; depois digam-me se nesse retorcido gracioso de uma ventinha rósea e transparente, não está aí esculpido na sua mais bela forma o capricho. E se não sabem o que seja capricho, posso confiar-lhes este segredo de minha invenção: é um colibri que tem o ninho no coração de certas moças, e chupa-lhes o mel de todas as flores d’alma.
Chupando os gomos de cana, ia-os a menina dos papelotes arranjando um perto do outro, em fileiras, sobre o batente da janela; no cuidado com que o fazia, e certo arzinho lesto, se estava denunciando o pensamento de uma travessura, de que ela já saboreava o gostinho.
De vez em quando relanceava um olhar pela praia fronteira do bairro do Recife, desde o Forte do Matos até à ponte, que unia as duas margens, e da qual os tetos das casas e arvoredos dos quintais não lhe deixavam avistar senão a extremidade oposta. Entretanto, se acontecia farfalharem as folhas com alguma rajada mais fresca da brisa do mar ou com o arranco de alguma rola assustada, estremecia a fingida e punha-se alerta.
Reparando nas plantas dos vasos, que formavam seu jardim, o narizinho arrebitado achou-as lânguidas e tristes com o calor do dia, e lembrou-se de regá-las.
Foi dentro buscar um moringue d’água, dos bojudos e pesados como os costumam fazer ainda hoje; e a custo, erguendo-o com ambas as mãos para vencer-lhe o peso, conseguiu deitá-lo no peitoril da janela. Daí inclinando-o, tomava ela os bochechos d’água, que deitava sobre as plantas, de bruços ao parapeito para alcançar o vaso.
Uma carriça, que tinha construído o ninho no vão de uma telha, desde instantes folgava defronte da janela, traçando no ar os adejos, como costuma, a voar e revoar no mesmo lugar.
Convidada pela frescura d’água, foi esconder-se entre as folhas rociadas do bogarim, e bebeu uma gota que tremulava dentro da nívea corola da flor. Invejou a menina dos papelotes aquela travessura, e sentiu não ser passarinho para fazê-la.
Que é isso? Temos novidade?
Ergueu-se rápida a cabeça dos papelotes; os olhos vivos lhe cintilaram de prazer, fitando um objeto, lá da outra banda.
Seria acaso um rapazola que desembocava apressado da Rua do Azeite na da Madre de Deus, e depois de quebrar a esquina, voltando a cabeça para assegurar-se que o não seguiam, deitara a correr na direção da ponte?
Bem pode ser, porque os olhos buliçosos, agora atados, vieram seguindo passo a passo pela praia o sujeitinho, até passar o arco e entrar na ponte onde o esconderam as casas. Todavia continuaram os olhinhos caminheiros a andarem pelo ar uma certa vereda que lá eles conheciam de a terem batido muita vez, e que, era eu capaz de apostar, vinha cair aí perto, entre os cajueiros e mangues do areal da Penha, mesmo naquele claro para onde está olhando agora a curiosa.
Debruçada sobre o peitoril, com as mãos seguras ao batente onde apoiava o seio, o pescoço estendido e o ouvido alerta, tinha a menina o jeito de uma lebre agachada à boca da toca sobre as patas dianteiras, com as orelhas crespas, de espreita ao perigo. Este não andava longe.
Atravessando a ponte e seguindo pela Rua da Maré, o garoto ganhara o arvoredo além da coroa de areia onde se elevava o convento de Nossa Senhora da Penha de França. Ai parou um instante, com a ligeira hesitação da esperança que receia um malogro.
Era ele um belo rapaz de dezessete anos; não obstante a pouca idade, mostrava no gentil parecer tal ardimento, e no talhe bem composto um donaire firme e resoluto, que imprimiam em sua graça adolescente uma encantadora bizama.
Com um movimento que parecia habitual alisava um bigode ausente, o qual apenas se anunciava pela macia pubescência do lábio superior. Em falta dos longos pêlos que repuxasse em momentos de enfado, à moda dos veteranos, pagavam os cantos da boca fresca e rosada.
Outro sestro que se lhe notava era dar à ilharga, em andando, certa descaída como o soldado que traz espada à cinta e furta levemente o quadril para não embaraçar a marcha. Bem diverso era o instrumento de que vinha ele armado: sobraçava um bastão chanfrado de jacarandá com a medida portuguesa de vara e côvado, e trazia às costas uma burjaca de couro de Moscóvia cheia de fazendas e miudezas, objetos estes de que não se pudera antes desvencilhar com receio de perdê-los; mas naquele momento vingou-se com usura.
– Arre! Não está longe o dia em que te hei de meter no fogo! exclamou atirando a vara ao chão e dando-lhe por cima um pontapé; e o saco foi pelo mesmo caminho e teor.
Vestia o rapaz, ao uso do tempo e de sua condição, jaleco, véstia e calçiles de belbute da mesma cor parda, com meias cruas apertadas abaixo do joelho e sapatos grossos de couro acamurçado, com fivela de estanho. Pelo trajo via-se que era filho da gente do meio, como se designava então a classe que nem era a nobre, nem a mecânica; mas. ficava entre ambas, e se compunha daqueles a quem o ofício ou arte liberal privilegiava com certa isenção. Deste número eram os mercadores de tenda aberta.
Quem, pois, visse passar pelas ruas do Recife naquele tempo o esperto garoto com a vara embaixo do braço e a burjaca ao ombro, reconhecia-o logo pelo moço de um mascate, ou seu caixeiro de rua e balcão.
E não se enganaria, pois tal era o mister que tinha o Nuno na loja de seu pai, o mercador Miguel Viana.
Curta foi a hesitação do rapaz. Meteu-se entre as árvores e aproximou-se sorrateiramente, afastando os ramos para aprochar a casa. Se do lado da casa-a lebre espiava, de cá era o campeiro que passava sutil través da folhagem, aspirando as baforadas do ar e pressentindo um hálito suspeito de envolta com as emanações da brisa e os eflúvios das flores.
Afinal, de espreita em espreita, lá chofraram-se os olhares de ambos, a modo de pélas que se encontrassem no ar e retrocedessem. Como figurinhas de artifício tocadas por mola oculta, tomaram de súbito vária postura. O rapaz, voltando costas à janela, apanhava no chão um ramo seco e partia-o em pedaços, que lhe serviam para atirar à copa das árvores, com o disfarce de abater algum fruto. Quanto à menina, de um ápice escondera-se atrás da ombreira da janela, debulhando nos lábios um riso malicioso, que ralhava com o rubor derramado pelas faces, da mesma forma que os dedos traquinas estavam às voltas com os alamares do justilho.
Passado um momento, como o Nuno parecia em verdade ocupado com as árvores, o narizinho retorcido que se animara a espiar com o canto do olho pela quina da ombreira, foi a pouco e pouco, de susto em susto, já ousado, e já trêmulo, mostrando-se pela face interior, até que afinal surdiu fora de novo, embora um tanto arisco e desconfiado.
Aí a esperava o fingido moço, que tendo visto de esguelha toda a mímica, voltou-se de supetão; mas, se ouviu um gritozinho semelhante ao da carriça, não enxergou mais que uma sombra a desvanecer-se na obscuridade da recamara.
Tão viva e ligeira como ele, a menina frustrou-lhe a travessura, escondendo-se de novo.
Duas ou três vezes repetiu-se a pantomima, e o rapaz sempre logrado; até que amuou-se, e trepando em um galho d’árvore, sentou-se de costas para a janela, a balançar as pernas e a repetir a cantiga de um folguedo muito em voga então:
Uma, duas, argolinha,
Finca o pé na pepolinha;
O rapaz que jogo faz,
Faz o jogo do capão,
O capão sobre o capão,
Conta bem, Manuel João;
Conta bem que vinte são;
E recolhe este pezinho
Na conchinha duma mão.
CAPÍTULO III
ENTRAM EM CENA A RONHA E A BILIS DO GOVERNO DA CAPITANIA
Debalde a faceira veio estouvadamente debruçar-se à janela; debalde começou a espantar os passarinhos com um certo chó dos lábios que riam-se arremedando um psiu; debalde contrariada pela impassibilidade do rapaz, tirou do peito uma tosse fingida, que, se não me engano, acabou por um suspiro mavioso.
Não se abalava o rapaz, que era pirracento, senão ardiloso. Mas que bigode, quando mais buço a pungir, há aí que vença em manha e teima a um narizinho retorcido? Mostrem-mo, se são capazes.
Acaso tocara a menina com o cotovelo na ruma de bagaços de cana, que alinhara sobre o peitoril, e dos quais se esquecera um instante. Segurou o primeiro na ponta dos dedos, e zás, fez alvo no rapaz que não se mexeu. Ao quinto ou sexto tiro todavia, o inimigo incólume, pois nenhum dos projéteis acertara nele, deu sinal de baleado, tombando de repente para trás.
Rodar sobre o galho como um corrupio, virar no ar uma cambalhota, e cair de pé, em frente da janela, foi para o rapaz negócio de esfregar um olho. Quando a travessa o procurava no ar, já estava ele quase embaixo da janela, fazendo-lhe por despique um momo de simulado espanto.
– Hã!…
Já era tarde para fugir, se é que ela nunca teve tal idéia, e não se deixara muito de propósito apanhar dessa calculada surpresa. Contudo fez menção de hesitar, enleada no melhor partido; e foi ela soltar a risada gostosa que lhe estavam provocando os gatimanhos do moço.
Começou então o desafio das risadas e das ligeirezas; porque ela procurava acertá-lo com o bagaço de cana, que ele evitava com saltos e furtadelas de corpo; daí as negaças e os enliços de parte a parte, até que partia o tiro; se errava o alvo, como quase sempre acontecia, Nuno fazia uma careta:
– Uh! Uh!…
E eram gargalhadas da menina e trejeitos do moço, que se divertia com aquele folguedo apto ao seu gênio trêfego e petulante.
Acabados os projéteis, meteu a menina a mão no bolso e tirou um gomo de cana, mas em vez de o jogar, começou com ele a fazer foscas ao moço, ora fingindo que o chupava, ora acenando que lho queria dar em mão.
– Quer? perguntou afinal.
– Atire!
– Lá vai!
Aparou o moço nas mãos o gomo de cana e chupou-o logo: depois outro e outro até o último.
– Não tem mais! dizia a menina virando os bolsos.
– Que pena!
Desde que não havia mais travessuras, sentiam-se os dois enleados; já não se animavam a olhar um para o outro, nem a trocar palavra.
O rapaz estendia os olhos para o caminho e suspirava; a menina já não se debruçava à janela, e de vez em quando voltava-se para dentro.
Desse lado da casa havia um tapume tosco e em muitos pontos aberto pela gente que, para encurtar caminho, atravessava os terrenos da quinta, na direção dos Mogados. Favorecido pelos hábitos dos moradores que deixavam essa parte da habitação deserta naquelas horas, Nuno se aproximara sem despertar a atenção, e como cada tarde ia conquistando mais terreno, estava então junto ao tronco de uma pinheira que lançava os galhos para o telhado.
Lembrou-se de trepar; era uma travessura. Nisso uma voz aguda chamou do interior:
– Marta!
Correu para dentro a menina, e com pouco voltou, comendo uma cocada que a mãe lhe dera, e com a qual se preparava para fazer figa ao camarada; mas não o viu. Cansada de procurá-lo entre as árvores e despeitada da peça que lhe pregara, ia retirar-se murmurando: guerra dos mascates 171
– Deixa-te estar, marotinho!
Eis que surge-lhe pela beirada do telhado a cabeça do estouvado rapaz, trepado na pinheira, donde conseguira alcançar com a mão as travessas ou cachorros, como lhes chamam os carpinteiros. Com o susto que sofrera e o receio de que descobrissem o rapaz naquela posição, Marta acenou-lhe com a mão que descesse:
– Um ninho! disse Nuno olhando pelo interstício das telhas.
– Aonde? perguntou a menina já picada pela curiosidade.
– Aqui. É o da carriça!
– Tem ovos?
– Dois!
– Ah!…
– Quer?
– Não!
Esse não, disseram-no vivamente os lábios de Marta, mas os olhos a desmenti-los estavam morrendo de desejos de ter o ninho com os ovos dentro. Já este passara do vão da telha para a mão do rapaz que o mostrava:
– Olhe!
– Que bonito! exclamou a menina com o prazer supremo da criança, que se atira para o brinquedo e parece meter-se por ele para melhor o possuir. É talvez por essa veemência do gozo infantil, que os meninos quebram logo as tetéias de que mais gostam.
– Tome! disse Nuno fazendo menção de levar-lhe o ninho.
– Não, não! respondeu Marta com espanto, querendo fugir da janela.
– Então levo para Isabel.
– Pois sim!
Desconsolado metia Nuno o ninho no peito da véstia, e preparava-se para descer, enquanto de seu lado Marta arrufada consigo mesma, olhava à sorrelfa o camarada, com sorriso insosso. O rapaz cogitava um pretexto para ficar; a menina tinha medo que ele o achasse, mas sentia que se fosse tão depressa.
De repente uma voz de tom imperioso soou perto, que produziu nos dois o natural espanto e soçobro de se verem surpreendidos em flagrante delito de travessura:
– Que fazes tu aí, garoto?
Com estas palavras, ressoou também o estrépito de uma brilhante cavalgata, que se aproximara sem rumor por causa da areia, e estava agora parada na rua, aquém do canto da casa, onde passava a cena anterior.
A figura proeminente do troço era um cavaleiro de grande porte e alta estatura, que então ocupava o centro na testa do primeiro grupo. Orçaria pelos quarenta anos; tinha olhos pequenos e ornava-lhe o rosto alvo densa barba cinzenta, fina e macia, que disfarçando a aspereza das linhas inferiores, corrigia-lhe o oval do semblante.
De perfil, porém, acentuava-se a projeção do queixo, bem como a proeminência da fronte, que se distinguia sob a aba do chapéu de castor, guarnecido a cairel de ouro. Nessas duas saliências da fisionomia estava, como em relevo, desenhado um caráter.
A pertinácia, não a da perseverança como a praticam os ânimos robustos que sabem querer, e sim a da obstinação própria de naturezas tímidas, que se aferram ao pretexto; a resistência da dúvida, alimentada pela índole da contradição; o molde da parte posterior do rosto o estava retratando.
Anunciava inteligência a fronte aberta; e todavia a testa bombeada acusava nesse contorno arredondado do crânio um traço feminino. Via-se aí a fôrma do talento do detalhe, ou melhor, da maleabilidade do engenho, que se presta a vários misteres ao mesmo tempo, contanto que todos calhem na bitola.
Era nobre e viril o parecer do cavaleiro, especialmente em repouso; mas desde que se punham em ação suas faculdades, desprendia-se delas um prurido de atividade sôfrega e volúbil, que desconcertava a compostura do semblante, como do talhe. Falava rápido, com a palavra difusa e a voz estridente; demasiava-se no gesto; e em todos os seus modos punha tal alacridade, que devia-lhe algumas vezes o espírito titubear, enleado naquela meada de idas e vindas, de passos e voltas, em que se comprazia o seu gênio infatigável.
Casaca de veludo castanho com mangas de bota e guarnecida, como o chapéu, de cairel de ouro; volta de renda, laçada ao pescoço, e da qual lhe caíam as duas pontas largas sobre o peito da véstia de cetim azul com ramagens brancas estampadas; talim de veludo que suspendia a rica espada; broches de pedraria na presilha do chapéu, nos punhos do camisote e na atadura dos calções de brocado amarelo: assim vestia o cavaleiro.
Trajo esse para fidalgo de grande estado, novo e aprimorado da fazenda como do feitio, bem longe de sobressair na compleição bem proporcionada do cavaleiro, parecia, pelo desleixo com que o trazia ele, já amarrotado do muito uso.
Tal era Sebastião de Castro Caldas, governador e capitão-general de Pernambuco.
À direita ficava-lhe o Capitão Barbosa de Lima, secretário do governo; à esquerda o Capitão Negreiros, primeiro ajudante-de-ordens. Seguia-se o Tenente Bernardo Alemão, segundo ajudante-de-ordens, com o alferes André Vieira, que mandava o piquete de cavalaria da guarda do governador; por último quatro criados em libré de seda amarela com forro verde dobrado nas golas, no canhão e ponta das abas, tendo as armas dos Castro Caldas bordadas no alto da manga do gibão à guisa de dragona.
Eis a cavalgada que parara no canto da casa, com espanto do Nuno, que lá de cima da sua pinheira, quase encarapitado no telhado, esgazeava uns olhos donde coava-se através do susto o chasco ardiloso do brejeiro.
CAPÍTULO IV
DO PERIGO DE TIRAR NINHOS DOS TELHADOS NO TEMPO DE EL-REI NOSSO SENHOR
No momento em que a luzida cavalgada, avançando a passo moderado, defrontou com a janela do sótão, Um ligeiro sorriso perpassara nos lábios do governador, erriçando de prazer o fino bigode, que sua mão branca e esmerada alisou com um gesto rápido.
Tinha percebido o vulto gracioso de Marta, que destacava no vão da janela, como a figura de uma sílfide na tela escura de exímio pintor. Ao sopro da brisa as roupas transparentes de garça verde-gaio lhe flutuavam em torno como asas de gaturamo, especialmente as mangas soltas, donde se lançavam os lindos braços, imitando lírios hasteados entre a folhagem. Um justilho preto, curto e chanfrado, cerrava-lhe a cintura mimosa, que dobrava-se como a haste da flor, com as inflexões do talhe.
Breve se apagara nos lábios do governador o sorriso, percebendo que a menina não estava só, mas praticando com alguém. Ao ver o intruso, a posição em que se achava, e a casta de gente que era, carregou-se-lhe o sobrolho; e por uma leve depressão do lábio superior, dir-se-ia que mordera um fio do bigode.
Todavia não se alterou em geral a calma de seu porte; e a ligeira perturbação passou desapercebida para todos, com exceção dos dois oficiais que ladeavam o governador.
Foi então que o Capitão Negreiros, justamente irritado contra o temerário que ousara cair no desagrado do poderoso governador, não só lançou contra o Nuno aquela apóstrofe acentuada com a mais oca retumbância de sua voz, porém ficou-o fulminando com a sombria catadura.
Como não respondesse o rapaz, e estivesse lá de seu poleiro a mirá-lo com ares de mofa, arremessou-lhe de novo estas palavras:
– Não tens boca, mariola! Que fazes tu ai?
– É um ninho de carriça, sim, meu senhor!… respondeu o menino atarantado.
– Um ninho, grandíssimo peralta! bradou o ajudante com suprema indignação e a mais possante ênfase oratória. Um ninho no telhado!…
No ânimo do nosso ajudante um crime de lesa-majestade dos capítulos de primeira cabeça não produziria tamanho horror, qual mostrava, e devemos crer que às veras, diante da enormidade desse atentado inaudito contra a inocente prole da carriça e a inviolabilidade do telhado do Perereca.
Em verdade era grave o caso; assassinato em massa e invasão na propriedade alheia. Se um rei ou um governador se lembrasse disso para distrair-se, inventando uma guerra ou algum monopólio que dizimasse o povo na vida e na bolsa, avisaria o nosso ajudante a excelência da medida; pois qual é o fim da república senão divertir aos príncipes? Mas quando era um galopim que ousava atacar as telhas e os ninhos!… Oh! protérvia!…
Arremessou o capitão o cavalo contra a cerca no intuito de alcançar o artelho do rapaz e derrubá-lo da árvore; mas este que lhe adivinhou o plano apoiando-se na beirada, galgou o telhado e se pôs a salvo.
– Safa rascada! gritou o brejeiro.
Afastara-se o governador e entretinha-se à parte com o prazenteiro secretário, parecendo de todo alheio à cena que ali se passava. Mas quem o observasse atento, perceberia o olhar rápido que a furto relanceava para a janela do sótão, onde se eclipsara a estrela, com o aparecimento da cavalgada.
– Desce, biltre!… intimava furioso o ajudante.
Mas o marotinho do rapaz gingava no telhado, bamboleando o corpo e fazendo-lhe gatimanhos de zombaria:
– Babau, sr. capitão! Babau!
– Eu te esbandalho, pedaço de um bargante! berrou o ajudante.
– Isca! Isca!.
– Olá, um! Agarrem-me já este espirro de gato.
Apeou-se um dos lacaios para cumprir a ordem, o que compreendendo o Nuno e vendo a estreiteza do caso, lançou em torno uma vista indecisa; nisto sentiu que lhe puxavam a aba do gibão. Voltando-se, deu com a carinha travessa de Marta um tanto amarrotada do susto, a mostrar-lhe a recâmera como um asilo. Não havia hesitar.
Corriam-se as adufas da protetora janelinha, justamente quando aparecia a cabeça do lacaio por cima das telhas. O ajudante estava no delírio da raiva; se a princípio se mostrava irritado por conta do governador, agora era pela sua própria que esbravejava como um possesso.
– Marau, gambirra, fundilho de Judas, lêndea do Cão-Tinhoso, fedelho de Satanás!…
Por este jeito vociferou durante algum tempo o ajudante, notável pela fertilidade dos epítetos mais pitorescos e originais, com que nos seus momentos de sanhuda eloqüência ele enriquecia o idioma das regateiras.
Observando o governador que seu ajudante começava a exceder-se, deu de rédea ao cavalo e passou adiante com o secretário, cujo eterno sorriso se encrespara com um ligeiro tom de ironia ao ver o destampatório do capitão.
Quando passavam pela frente da casa, abriu-se a porta, e saiu um homúnculo, armado com uma cabeça de pitorra e enfaixado em um quimão de primavera.
Desbarretando-se até ao chão, desfazia-se em cortesias tão rasteiras, que mais pareciam dirigidas ao cavalo do que ao cavaleiro.
– Boa tarde, sr. almotacé.
– Aos pés da muito alta plosopéia do exmo sl. govelnadol!
A esse tempo por urna fresta da gelosia do meio, a Sr.a Rufina, que empurrara o marido pela porta, espreitava de dentro.
– Não sabe o que acontece? perguntou o governador.
– Sabelei, meu senhol, se a bondade de V. Ex.a concedel-me essa glaça.
– Capitão! disse o governador com os olhos no secretário.
Este, compreendendo a intenção, tomou a palavra:
– Agora mesmo, ao passar, vimos um galopim que trepou no telhado de sua casa e entrou pela janela do sótão.
Ouviu-se o estrépido da gelosia que batera, e logo uma voz correndo para o interior:
– Virgem Santíssima! No quarto de Marta! Acudam, gentes!… Quanto ao Sr. Simão Ribas, ficara estatelado com o caso; mas afinal, pondo as mãos na cabeça, exclamou em tom patético:
– Um sicálio, aflontando a minha autolidade! Que atlevimento!…
Voltando-se depois a custo, porque as pernas lhe fugiam, disse para a casa:
– A minha vala, Senhola Lufina!
Entretanto Nuno e Marta espiavam pelas frestas bem conchegados pelo susto e também por esse gozo inefável de transviver-se em outro, o que já em criança todos pressentíamos com o prazer de inocente folguedo. Qual, no jogo da manja, não procurava de preferência a parceria da menina mais bonita, para atracar-se com ela no cantinho e tão apertados, como se quisessem esconder-se um no outro?
– Que Caifás tão feio que é aquele sujeito! dizia Marta mostrando o ajudante. Cruzes!
– Ah! se eu tivesse já a minha durindana! dizia Nuno com recacho militar; você veria como eu havia de tosar o pêlo àquele barbaças de centurião. Olhe: vá a pequena lá abaixo e busque-me o estoque do pai.
– Deus me livre! Para a mamã ralhar-me!…
– Agora sim! exclamou o rapazinho batendo as palmas de prazer.
– O que é? perguntou curiosa Marta, enfrestando o olhar.
– Cá chega o Vital.
– O primo?
De feito entrara na cena do quintal um novo personagem, bem disposto e elegante cavaleiro, no viço dos anos floridos, pois já andava nos trinta. Sombreavam-lhe o rosto oval fino bigode e pera que ele trazia contra a moda do tempo, e destacavam-se com donaire na tez de suave moreno. Os olhos, tinha-os grandes, cheios de brilho e ardimento, como lumes, que eram, de um coração bravo e generoso. Nos cantos da boca, apagava-se o sorriso em uma plica ligeira, indicio da preocupação constante que absorvia-lhe o pensamento.
Muita louçania dava a essa fisionomia inteligente e ao garboso talhe o apuro das roupas que trazia com especial gentileza o cavaleiro. De lemiste com forro de cetim azul era a casaca bem talhada, que dobrava a gola sobre uma linda almilha de tela alcachofrada, e espalmava as abas pela anca tio brioso cavalo, mostrando os calções estreitos de veludo cereja. Colarinhos e punhos de renda de Veneza atacados com rubis; luvas de pele acamurçada; alva pluma de garça no chapéu de castor pardo; borzeguins altos com rosetas de filigrana de prata, iguais ao tope do chapéu e às borlas do florete, completavam o casquilho vestuário.
Desde algum tempo que o cavalheiro, parado a curta distância, observava oculto pela ramada das árvores, a ridícula cena ali representada pelo Ajudante Negreiros. Aproximando-se afinal, saudou o oficial com um gesto de mofa.
– É certo, pois, sr. ajudante, que afinal romperam os de Olinda?
– Donde o sabe? atalhou o Negreiros tomando a nova ao sério e já alvo roçado com o prazer de espatifar os do levante.
– Agora vejo que me enganei. Ao chegar, dando com toda esta azáfama da gente de El-Rei, devia pensar que os nobres tinham assaltado a casa do meu parente Simão Ribas!
– O caso não é para chascos, nem eu sou homem para eles, bem o sabe o senhor! replicou o ajudante com cenho de ameaça.
– Que se há de fazer à comédia, senão rir dela? Esbarra-se a gente no caminho com um ferrabrás de espada desembainhada, a esgrimir contra os telhados, dando caça a um pirralho: e quer o sr. ajudante que se fique sério como um burlão?
– Sr. Vital Rebelo! exclamou o capitão aceso em ira.
– Sr. Ajudante Negreiros! disse o seu interlocutor sem alterar-se, como se respondesse a uma benévola interpelação.
A ponto sobreveio um lance para atalhar a disputa que prometia azedar-se; e foi que a janela do sótão abriu-se de supetão e dela espirrou o Nuno acossado por um inimigo que lhe tomara a retaguarda. Mal saltara o rapaz no telhado, que a Sr.a Rufina assomara ao postigo, empunhando à guisa de lança um cabo de vassoura, armado da competente broxa de palha.
Convencido de que, na estreiteza do caso, só uma resolução pronta e destemida o podia salvar, o mascatinho atravessara de corrida, mais veloz do que um gato, a aba do telhado até a extremidade da casa, e aí de um pulo, travou os ramos de um cajueiro, donde alcançou facilmente o chão, e desapareceu entre o arvoredo.
Tão rápido foi o incidente, que deixou pasmado o Ajudante Negreiros; mas recobrando enfim o ímpeto, arrancou no encalço do fugitivo, e por certo o alcançara se não lhe atravessasse o passo Vital Rebelo.
– Caminho!
– Não se passa.
– À ordem do sr. governador!
– Da parte de El-Rei!
– E quem, estando eu, fala aqui em nome de El-Rei Meu Senhor?
Pronunciara estas palavras Sebastião de Castro, que se aproximara advertido da altercação.
– Falo eu, disse Rebelo com um tom respeitoso e digno; e falo a V.Sª a quem El-Rei pôs de governador nesta capitania para reger-lhe os povos e guardar-nos os forais; que não para montear os filhos de seus vassalos como caça bravia.
Pareceu o governador um instante perplexo ante aquela resposta, onde ressumbrava não só a altivez dos brios, como a consciência de um direito; logo, porém, replicou em tom moderado e conciliador:
– Talvez tenha razão, Sr. Vital Rebelo; mas se algum excesso houve, que eu não creio, da parte de nosso ajudante, foi somente no zelo com que se emprega no serviço de El-Rei Meu Senhor e da nossa pessoa.
Cortejando com a mão a Vital, voltou-se para a comitiva, com estas palavras:
– Vamos, senhores, que de sobra já nos demoramos.
Desfilou a cavalgada pela frente da casa onde o digno almotacé, ainda engasgado com o caso que lhe acontecera, gritava pela vara para intimar a sua autoridade ao malfeitor.
CAPÍTULO V
TRÉS CANDIDATOS À GLÓRIA, UM RABISCA-PAPEL, UM FERE-FOLHA E UM ROEDOR DE UNHAS
Ao tempo em que Nuno escapava-se da embrechada, outro mancebo pouco mais idoso que ele assomou na extremidade da ponte que então ligava ao Recife a Ilha dos Pescadores, onde era o bairro de Santo Antônio.
Já não existe aquela ponte construída no tempo da dominação holandesa pelo Conde Maurício de Nassau. Em 1737 a reformou o Governador Henrique Luís Pereira Freire, que teve a engenhosa idéia de levantar ao longo dela dois renques de pequenas lojas para os quincalheiros, donde provinha ao real erário boas propinas. Desabando esta segunda ponte em 5 de outubro de 1815, foi substituída por outra que chegou aos nossos dias.
Vinha o rapaz do Porto das Canoas onde acabava de desembarcar.
Representava ele maior idade do que os 26 anos que tinha; era de mediana estatura e compleição fornida. Por cacoete ou vicio de conformação faziam as espáduas uma leve corcunda, que o privava de apresentar o rosto bem de face; o olhar do interlocutor encontrava um semblante escorregadio e resvalava por ele sem o penetrar.
Caminhava com um piso miudinho, mas indeciso, imprimindo à marcha certa sinuosidade. Percebia-se, reparando-lhe nos movimentos, que antes de abrir o passo hesitava em avançar; e que andando vacilava constantemente, como um pêndulo, entre a direita e a esquerda.
Ao mesmo tempo os olhos quase redondos e espantadiços enfrestavam-se pelas pestanas de uma à outra banda e faziam um como crivo de olhadelas rápidas e sutis. Dai lhe viera o apelido de Pisca-Pisca por que era mais conhecido do que pelo próprio nome de Cosme Borralho. Nesse estrabismo artificial estava o cunho do rapaz. Em tudo vesgava ele; na vista, no andar, na fisionomia e até na fala. Ressentia-se a voz de singular desafinação, pelo que ora saia-lhe machucha, ora menineira.
Seu trajo compunha-se de roupeta, véstia, calções e peúgas, tudo preto, muito rapado e já cerzido em vários lugares. Mas a escova lhe espoara escrupulosamente o fato, e os fios mais desbotados do estofo pareciam retintos de fresco a bico de pena. O mesmo esmero se notava no velho casquete surrado e nos grossos sapatões de couro alaranjado.
Indicava esse vestuário um de tantos moços que então escreviam para os tabeliães do público, judicial e notas, e aí se amestravam na rabulice. O povo chamava-os pela alcunha expressiva de fuinhas de cartório, que lhes assentava às mil maravilhas.
Enterravam-se no sombrio aposento como em um buraco. Desde crianças, curvados sobre o telônio e afeitos à busca dos autos e papéis velhos, adquiriam certa inflexão e prolongamento de pescoço acompanhado de furtivos esgares que lhes davam em verdade boas mostras do animalejo furão e bisbilhoteiro.
Saiam-lhe do bolso da véstia um rolo de papel cheio de garatujas e as ramas compridas de duas ou três penas de ganso, matizadas de várias cores. Semelhante garridice, único vislumbre de vaidade naquela figura sombria e estrambótica, a inspirara o carinho da profissão, que de ordinário cria os melhores operários do espírito como da matéria.
De quando em quando por um gesto rápido passava pelos beiços a unha polegar da mão direita e a esfregava com sofreguidão ao peito da roupeta. Parecia dominado da idéia de umedecer a coroa do dedo, a fim de tirar pelo atrito uma nódoa de tinta, ali permanente desde muitos anos.
Não era pela gola, que atacava a gordura do casco, nem pelos cotovelos roçados no bufete de escrever, que ia-se a roupeta do Pisca-Pisca. Vinha-lhe a ruína do peito, onde trabalhava a unha impertinente. Homem de recursos, pusera em prática todos os meios de vencer o terrível cacoete. Chegara até a amarrar à cinta o dedo rebelde; porém quando a unha lhe começava a comer, e era justamente no meio de suas cogitações, lá se ia o atilhó. Ao dar fé de si, o escrevente via com desespero o brejeiro do dedo tocando viola no peito da roupeta.
No momento em que o avistamos sob o arco do Bom Jesus, vai ele sem dúvida muito preocupado; pois o atrito atingiu sua maior velocidade. Com efeito, assim atravessou a ponte, e já saia em Santo Antônio, quando o Nuno esbarrou-lhe a passagem.
– Vem de Olinda, Cosme?
– Agora chego.
– Quando estoura o negócio?
– De qual negócio fala você, Nuno? retorquiu o escrevente envesgando um olhar que fez ziguezague à direita e á esquerda e veio cair sobre o bolso da véstia, onde aparecia o rolo de papel.
– Vamos cá! disse o mascatinho puxando o fuinha pela aba da roupeta.
– Pois não estamos bem aqui?
– Nada, que não me faz conta me bispem os tais malandros! Se me pilham!…
Assim falando, puxava o Nuno ao companheiro pala baixo do primeiro olhal da ponte, que a maré deixara em seco.
– Então não sabe que negócio é, hem?
– Podia jurar que não!
– Ora! Quer-se fazer de bom. Pois olhe, aqui está tudo cheio da nova; desde Fora de Portas até Arrombados não se fala senão do levante que os de Olinda pretendem fazer.
– Muito há que se rosna a este respeito; mas são boatos que dão em nada. Há certa gentinha enredeira que inventa estas cousas para ter de que mexericar.
– Desta vez a cousa é séria, digo-lhe eu, Cosme; que também vou meter-me na dança. Oh! se vou; hei de ensinar a uns certos marrecos, inclusive um barbado cá do meu conhecimento! Tomara já ver tudo no sarilho.
– Não acredite nessas caraminholas, Nuno. Que lucrarão os de Olinda com o levante?
– Então você está muito atrasado. O plano é empolgar o marmanjão do Sebastião de Castro como se fez há tempos com o Xumbregas, e recambiá-lo para Lisboa com uma queixa a El-Rei.
– E conseguem lá isto? Não há de sair como pensam. Os do Recife são gente de peso, mercadores ricos, e têm por si o melhor povo da capitania.
– E os nobres então? Não foram eles que conquistaram ao flamengo esta terra’
– Assim apregoam; e contudo, pensando bem, Nuno, que valeria a terra, se não fossem os mercadores que a têm enriquecido? Mas nenhum como o Sr. Miguel Viana.
– O pai tem juntado boa chelpa, não há dúvida; mas tirante disso não serve para mais nada. Eu cá é que não estou pelo ajuste. Em começando a guerra, hão de ver para quanto presta este fedelho, como dizia o mono há pouco.
– Quem? perguntou curioso o fuinha.
– Aquele focinho de caititu do tal de Negreiros… Mas isto cá é comigo.
– Então, vistos os autos, está você aborrecido de mascatear e prefere a milícia!
– Pois é minha paixão! Não sei por que já não atirei no mangue esta burjaca.
Assim é a sorte. O que você rejeita, outros invejam. Eu, verbi gratia, eu que há sete anos garatujo do Matias, para ganhar uns magros tostões… se pilhasse um arranjozinho de mascate, nalguma loja… Bem podia você, Nuno, se quisesse, arranjar-me em casa de seu pai para o lugar que vai deixar.
– Está dito; você toma conta da albarda, e o pai ganha na troca, porque fica com um bom latagão! Vamos a isto; eis aí o surrão!
Para fazer ao vivo a entrega do fardo, o Nuno chimpou com ele no toutiço do Cosme, que titubeou.
– Arre lá! As cousas fazem-se com jeito. Você primeiro deve falar de mim ao velho; e para inquirições ele pode tirá-las do Capitão Miguel Correia e Padre João da Costa, o da Recoleta. Ambos hão de assegurar que eu dou conta da obrigação, como se fosse devoção. Não há tarefa que me meta medo; e para remate, fui sempre pelos do Recife.
Já não o escutava o Nuno, que esguardava na ribeira do Recife alguma cousa. Reparando nessa distração, voltou-se o Pisca-Pisca e logo percebeu-lhe a causa.
Havia daquela banda do bairro uns muros de quintais com serventia para a praia. O sol, transmontando, projetava larga sombra ao longo da parede. Aí, na zona opaca, um sujeito ia e vinha em continuo giro, a não ser que o interrompia acercando-se do muro e gesticulando, como se estivera com ele em prática animada.
– O Lisardo!…
Murmurou o escrevente este nome com um meio sorriso de mofa, pronto a se transformar de súbito em sorriso de prazer. Tudo neste rapaz era assim dúplice. Nos olhos, como nos lábios, sua alma só apresentava-se aos outros de perfil, para que não lhe vissem a divergência das duas faces.
– Psiu!… Psiu!… fazia no entanto Nuno agitando a mão.
– É debalde!… acudiu o Pisca-Pisca zombando.
– Vamos bulir com ele?
– Já vai sendo tarde, e tenho de voltar a Olinda antes de Trindades.
– Qual! para o escurecer ainda falta muito. Toca a avançar… Lança em riste. Arranca!
Vergou-se o petulante rapaz enristando a vara como se fora um virote, e empurrou para diante o escrevente em rota batida. Assim atravessaram rapidamente a ponte, e contornando a praia, foram sair no lugar onde arruava o solitário passeador.
Era também um rapaz; e parecia não ter ainda vinte anos. Ia e vinha ao longo do muro, repetindo em tom soturno palavras sem nexo. Acompanhava o trabalho mental uma gesticulação enérgica. Todo o corpo concorria para aquela mímica, desde a cabeça que pontuava a frase até ao pé que batia a cadência.
Tinha entre os dedos alguma cousa que se lobrigava confusamente no meio do gesto patético. Quando parava para conversar com o muro, percebia-se então perfeitamente que era um prego enferrujado. Servia-lhe de estilete para gravar na caliça da parede as rimas de uma décima em cuja composição suava o jovem árcade.
Ali na página aberta desse álbum dos meninos de escola liam-se já algumas palavras alinhadas no fim de um risco..
_______________ nascer
_______________ instante
_______________ inconstante
_______________ sofrer.
O sítio não era dos mais apropriados para a poesia. Além da sua já suspeita posição nos fundos dos quintais, vizinhava com a praia suja e coberta de cisco. Havia ali uma transfusão de cheiros terrestres e marinhos, capaz de asfixiar a mais robusta inspiração. Alguns velhos cascos de navios, que desmanchavam para lenha, ali amontoavam-se na vasa, fechando o horizonte.
São os poetas uma espécie de caramujos, ainda mais admiráveis que os outros; pois estes apenas levam consigo a casa, e aqueles nada menos do que um mundo, no qual vivem. Não se admirem pois, que apesar de tudo não estancasse a veia poética do nosso rimador. Ele tinha lá na sua cachola, de sobressalente, uma tal provisão de flores, de matizes e de perfumes, que debalde o assaltavam as impressões exteriores.
Naqueles olhos tudo eram prados; naquele olfato tudo recendia a jasmim.
Estava o sujeito muito apurado a escrever a deixa do seu quinto verso, quando desastradamente apareceram Nuno e Cosme no cotovelo que formava a praia. A areia solta, abalando os passos, permitiu que se aproximassem, antes que os pressentisse o outro.
Sempre estabanado, anunciou o caixeiro sua vinda de uma maneira estrepitosa. Arremessou com força o surrão, que foi esbarrar nas canelas do poeta.
– Rende-te, cavaleiro das beldroegas!.
O susto que teve o camarada, surpreendido por aquela imprevista surtida, não se imagina. Todo o indivíduo foi abalado, como se dentro dele puxassem um cordel para fazer dançar cabeça, braços e pernas de arlequim. Logo, porém, que tornou a si do choque, compôs nos lábios um sorriso de bondade extrema para saudar os recém-chegados.
– Que maricas!… exclamou Nuno a rir-se. Quero ver como te aviarás agora com a guerra.
– Que diz você, Nuno? Pois temos guerra?
– Não acredite!… soprou o Pisca.
O caixeiro levantou com a ponta do pé o balote, pondo-o a prumo para lhe servir de tamborete.
– Pois não sabes? Vai haver um levante dos de Olinda; e leva tudo a breca.
– Quem lhe disse, Nuno? Será sério?
– Não leva três dias a arrebentar’. Quem disse foi o Tunda-Cumbe.
– O Manuel Gonçalves? acudiu o Pisca-Pisca.
– Você bem sabe a gana que ele tem aos nobres, por causa da sova que lhe pregaram.
Houve um instante de silêncio.
O poeta cismava:
– Estou bem avisado com estas brigas. Ou Ceres ou Vênus!
Resmungava o escrevente:
– Diabos me levem se entendo este mascatinho a cortar na súcia do pai. Entretanto Nuno, lobrigando no muro as palavras escritas pelo companheiro, exclamara:
– Oh! temos rima?
Frustrada a esperança de apreciar a obra do Lisardo, apanhou na areia uma casca de marisco e pôs-se a garatujar naquela página do álbum popular, onde o galopim soberano exerce a liberdade da gaiatice.
CAPÍTULO VI
COMO EM TODOS OS TEMPOS SE FORMAM OS PARTIDOS
Lisardo estava sucumbido.
Era ele mancebo de vinte anos; tinha uma cabeça grega em talhe árabe. Os cabelos castanhos anelados caiam-lhe sobre as espáduas, moldurando o belo semblante.
Seu gibão verde era do melhor veludo de Alcobaça, mas já bastante usado; os calções apenas de belbute de algodão cor de azeitona. Contrastava, pela novidade e frescura, a véstia escarlata, embora feita de uma serafina bem ordinária.
Semelhante anomalia no trajo, não a deve estranhar quem sabe como viviam os rimadores daquele tempo. Se algum não se recorda, leia Nicolau Tolentino, o grâo-mestre da ordem dos poetas mendicantes do século XVIII. Que soma de engenho se não despendia então para arrancar dos ricos uma propina que hoje se obtém com uma simples folha de papel e a epígrafe subscrição?
Foi o Nuno quem reatou o fio à prática interrompida.
– Então, Lisardo, ficou você ai tão murcho. Tudo isso é medo?
– Ou cousa que se parece! acrescentou o fuinha piscando.
– Bem sabem vocês que eu não sou para estas cousas. A culpa, se há, minha não é; mas de quem me fez assim.
– Fique você descansado, que o ponho sob minha guarda, tornou o mascatinho em tom de importância.
– Estava eu bem aviado! respondeu o poeta sorrindo.
– De uma cousa porém ainda não cogitaram vocês, e me parece a principal, observou o escrevente.
– Vá dizendo!
– Demos que se embrulhem as cousas ainda mais do que já estão e haja realmente um levante. Notem bem que eu não asseguro; é uma simples suposição.
– Com a breca!… Asseguro eu, exclamou o Nuno.
– Pois sim; caso apareça o barulho, cada um de nós há de tomar seu partido. O do Nuno já se sabe; há de ser o da família.
– Quem lhe disse?
– Assim parece.
– Vê-lo-emos. E você, Lisardo, por quem há de ser?
O poeta estremeceu; tinham-lhe tocado na tecla.
– Eu?… Vejo o caso bem intrincado. Todo o meu indivíduo desde a raiz dos cabelos até a pontinha dos pés devia ser pelos senhores de Olinda, pois são eles que abrigam e mantêm este físico. O verso lá na cidade é moeda corrente: paga o jantar na mesa dos Cavalcantis e Figueiredos, e de vez em quando rende um vestuário que o dono já não usa, porque desmereceu na cor, mas que ainda faz sua vista cá no Recife. Os senhores mercadores são excelentes pessoas…
– Todos reconhecem!… atalhou o escrevente.
– Mas destas bandas os sonetos e décimas não valem um ceitil. Podia correr o bairro todo que não acharia por eles dez réis de cominho.
– Menos essa! interrompeu Nuno. Sei eu de certa pessoinha que tem seu fraco por umas rimas, especialmente por certo acróstico… hem! certo acróstico…
E piscou o olho para o companheiro.
Perturbou-se o poeta, e acrescentou logo para disfarçar:
– Os senhores mercadores, como é de razão, preferem Mercúrio a Apolo e as nove irmãs.
Não escapou ao fuinha nem a alusão de Nuno, nem o vexame de Lisardo.
– Mas afinal de contas, disse ele, em que fica você?
– Sim; dizia que todo eu estava em Olinda; mas cá me ficou por meus pecados neste Recife um bocadinho do tal eu, que pelos modos pode tanto, se não for mais do que o resto, não obstante ser este um quase todo. Ora, por mais que eu faça para desatar este nó daqui, creio que antes de o conseguir, primeiro me romperia a mim. Portanto o seguro é concertar-me com as duas vontades, para que me deixem ficar neutro na contenda.
– E caso não queiram elas estar pelo ajuste?
– Por que não, se bem nem mal faço a qualquer das duas?
– Não gosto de ser leva-e-traz; mas olhe que já em casa do capitão-mor um destes dias se cochichou: “Tenho notado que o Lisardo vai muito pelo Recife.” Bem entendido, contaram-me, que eu não ando lá pela casa desses senhores. Mas no cartório sabe-se de tudo.
– Pois se não houver outro meio que melhor acomode as cousas, nesse caso vencerá a força maior.
– A barriga? perguntou o Cosme com uma mímica expressiva.
– Barriga não passa de vasilha: força é a fome; mas vence a do coração, por maior. Senão vejam: ainda não jantei hoje; e contudo estou bem contente de minha vida.
– Assim pende você decididamente para o Recife! concluiu o Cosme.
– Se não houver outro remédio?
– Pois então, atalhou Nuno, erguendo-se de um salto, comigo se há de haver o Sr. Lisardo de Albertim, poeta d’água doce, que me anda esgravatando versos no monturo para garatujá-los nas paredes! Está entendendo?…
Aquele pequeno repouso de uma natureza impetuosa devia ter breve sua explosão. Enquanto o macio poeta o contemplava maravilhado, e o escrevente lhe espreitava os movimentos por detrás de uma cara sonsa, o caixeiro prorrompeu:
– Que estão ai vocês embasbacados a olhar-me? Cuidaram que por ser filho de mascate, e dos graúdos, havia de entrar na súcia? Pois enganaram-se, digo-lhes eu. Se fosse com outra gente, nada mais natural que ajudar os seus… Regra do Mateus! Mas com a tal mascataria… Pensam lazer neste Pernambuco com os filhos o mesmo que lá na santa terrinha fizeram seus pais deles, que os empurraram para cá, no porão de um navio, com uma réstia de cebolas e um par de tamancos! Vejo cavalos que nascem da mesma besta, e uns são marchadores, outros choutões; uns levam albarda, mas outros têm arneses de veludo! Só o filho de mascate é que há de ser mascate por força! Uma figa!… Este muro falará, se me virem mais regatear!
Neste ponto de sua vigorosa alocução avistou Nuno o pacote, e travando-o com ímpeto, imprimiu-lhe tal rotação que o arremessou na praia.
– Vai-te, perseguição! Assim hei de eu fazer a todas as drogas que me caírem nas mãos, e também aos donos e vendedores das ditas!
Animou-se o poeta a introduzir uma palavra no meio daquela impetuosa loqüela:
– Mas…
– Olhe! Eu não sou versista como você… Não tenho veia para a cousa; mas cada um se arranja como pode. Já fiz um mote para mim; há de ser minha divisa nesta guerra! Vejam!…
Agarrando os dois cada um pelo braço, levou-os o caixeiro ao muro onde riscara o Lisardo suas rimas. Enchera as linhas o Nuno, tendo cuidado, para lhes dar igual comprimento, de graduar a letra. Saiu a seguinte composição, que se remete aos modernos fabricadores de poemas em todos os metros:
Para mascate não valia a pena nascer
Não suporto mais um instante!
Oh!… sorte inconstante!
Arre! que estou cansado de tanto sofrer.
– E mais é que tem seu jeito! exclamou o fuinha extático ante a obra. Você dá para poeta, Nuno!
– Então, que diz à quadra, Lisardo?
O poeta estava horrorizado:
– Quadra!… Quadrada seria a sandice se a escrevesse de outra forma!
– As que você tem mandado à mana Belinha, sô pateta, não são melhores!…
– Nuno!… modulou o Albertim em dois tons, sustenido e bemol, ao mesmo tempo que lhe indicava com o olhar a presença do escrevente.
– Ora! Que bem me importa?
Felizmente Cosme naquele instante parecia muito apurado a reler a bela produção de Nuno, a qual decididamente lhe dera no goto. Era de jurar que nada percebera, pois mostrou-se inteiramente alheio ao caso. Se porém as observações fossem cousas corpóreas, o bucho do escrevente já estaria tão bojudo, que o não pudera ele decerto conter no cós das bragas.
Seguira-se naturalmente uma pausa no diálogo. Os nossos camaradas formavam então um triângulo, cujo vértice era o Cosme ao pé do muro. Quando este se convenceu que estava de todo passado o episódio do namoro, voltou-se para os companheiros:
– Lisardo, você há de ensinar-me também a fazer a minha quadrinha. É bom a gente saber de tudo.
Não o atendeu o poeta, que estava ruminando, mas em prosa desta vez. Ao cabo saiu-se com esta:
– Ouça, Nuno; sou mais velho que você dois anos; e portanto estou no caso de lhe dar conselhos, como é dever dos mais idosos para com os mais moços.
– Que apoquentação do diabo! gritou o Nuno. E todos eles a darem-me com a matraca!… Muito moço, muito moço!
– Você não pode tomar nesta contenda as partes de ninguém mais, senão daqueles com que estão os seus. Não lhe parece, Cosme?
O fuinha atento à altercação foi surpreendido por aquela interpelação direta, da qual bem desejava fugir. Mas Nuno de seu lado voltara-se para ele esperando seu alvitre: força era dá-lo.
– Eu, sim, eu, quero dizer… pensando bem, entendo que… você (para o poeta) … você (para o caixeiro) tem razão.
– Está ouvindo? exclamou Nuno.
– Estou!… O Cosme concorda comigo!
– Não há tal.
– Justa… mente!… disse o fuinha gaguejando e escandindo a palavra de modo a endereçar cada sílaba a um dos companheiros.
Tinha o Cosme esse hábito de gaguejar nas ocasiões difíceis.
– A primeira pátria, continuou o poeta sentenciosamente, é a nossa casa; pois está mais junto de nós. Traz-nos dentro dela toda a meninice, como nos traz no ventre durante nove meses aquela que nos deu o ser. Que se diria de uma criança que rasgasse por vontade o seio materno para sair à luz antes de tempo? Pois este é o caso do filho menor que abandona a casa de seu pai. É um mau filho: e Deus lhe retira a bênção.
Tais palavras ditas com sinceridade e energia não deixariam de comover o caixeiro em outra ocasião; mas naquela tarde estava ele tocado da fúria guerreira.
– Por que não fazes tu outro tanto do que dizes?
– Bem atirado! murmurou em aparte o fuinha.
– Não tenho casa, nem pai, Nuno! respondeu o poeta com sorriso merencório.
– Mas tem lá em Olinda quem lhe agasalha, e não obstante.
– É diferente!
– Qual diferente! Diga que o coração lhe puxa de cá!…
– Ele o confessou! acudiu o Cosme.
– Pois coração, também eu tenho, que bem me puxa, e a arrebentar.
– Lá para Olinda? replicou Lisardo pasmo.
– Para lá mesmo!… Ah! você não sabe ainda, que lhe não contei. Pois o almotacé não teve o descoco de me dizer ontem quando lhe falei de casar com a filha, a Marta, que eu ainda era um criançola, e que havia de contar ao pai para ele ralhar comigo!…
– Ora essa!… ponderou Cosme, e acabou a frase com um jeito que fez rir a um dos olhos, o do lado do poeta, e choramingar o outro, que pusera ao serviço de Nuno.
– Também você madrugou! disse o Lisardo.
– Com os seiscentos! Ando nos dezoito anos!…
– Dezesseis, Nuno!…
– Que seja! Já me nasceram todos os dentes, tenho mais um palmo de altura do que este carrapeta do Cosme!
– Nem tanto! replicou o escrevente empertigando-se.
– E não sou um homem?. . . Que me falta?… Barba?… Não é essencial; o Camarão tem a cara lisa como uma melancia e já está madurão!
– E o primo, o grande Camarão, dizem que era o mesmo. Nem um fio na cara; na cabeça, sim, com fartura.
– Com isso que nos conta, Nuno, mais me enche você de razão. Se o seu cuidado está cá no Recife, não é pelo caminho de Olinda que há de chegar.
– Isso depende do modo de caçar de cada um. Você, Lisardo, vai se chegando devagarinho para não espantar a rola. Eu cá atiro de longe, em campo aberto. O Perereca tem de haver-se comigo, e mais o pato choco do governador, com o seu ajudante. A pé, na estacada, à lança ou à espada, com o ferro na gorja os obrigarei a restituir-me a dama de meus pensamentos. Sempre desejei uma guerra; e a queixa que tenho de minha mãe é não me haver parido no tempo dos holandeses. Aquilo, sim, é que foi tempo!
– Com esta me vou! disse a rir o escrevente.
– Mas você, Cosme, ainda não disse por quem é? Olinda ou Recife?
– Eu sou por ambos!
– Como pode ser isso?
– Se cada um de vocês vai para sua banda, que remédio senão dividir-me por ambos? Eu cá não tenho quem me prenda a estes ou àqueles, e nada espero de uns nem de outros. Pelo meu gosto deixava a terra. Mas vocês podem precisar de mim, e então careço de estar em posição de lhes prestar.
Dois apertos cordiais cerraram ao mesmo tempo na mão que o Cosme levantava para enxugar os cantos dos olhos, umedecidos por um líquido humoral que em anatomia se chama lágrima.
CAPÍTULO VII
ENCANTOS QUE TINHAM PARA O NOSSO POETA UMA SAIA REMENDADA E DUAS CANELAS COR DE AZEVICHE
Seriam 5 horas da tarde.
Os dois companheiros se tinham ido; ficara o poeta de novo solitário na erma praia. Com pouco levou ele a cabo a décima principiada. Repassaudo-a então uma e muitas vezes na memória, tratava de a limar com uma pachorra horaciana.
Nesse trabalho, avançara contornando a praia na direção de Fora de Portas. Aí desdobrava-se um painel encantador. Na cúpula, dossel magnífico de ouro franjado a púrpura; embaixo, uma alcatifa imensa de chamalote azul recamada de brancos lises. No centro, um peristilo majestoso formado por grupos de elegantes colunas e rematado em ogiva pelas verdes arcadas.
As tintas deste deslumbrante painel dava-as o sol no ocaso, o mar em bonança e os ramalhetes dos coqueiros, que ensombravam a formosa ilha desse nome, também chamada do Nogueira. Esse berço gracioso de palmeiras,. com as oscilações que a brisa da tarde imprimia às longas hastes e aos frondosos penachos, parecia embalar-se no seio das ondas.
Aquém apareciam as ribas arenosas onde brinca o travesso Capiberibe tecendo lindos meandros e cingindo as quintas pitorescas do Monteiro. Finalmente pelo mar estendia-se o negro cordão do recife. Enroscando-se pelos abrolhos e cobrindo-os de grossos rolos de espuma, davam as vagas aquele dorso granítico feições de enorme serpente do mar, preposta à guarda das formosas hespérides de Pernambuco.
Passava o Sr. Lisardo de Albertim em face de todos estes primores da palheta divina, sem os ver sequer. Não é isso de estranhar em poetas, anomalias de carne e osso que fazem o desespero dos fisiologistas e dos alfaiates.
Mais deliciosos que todos esses lanços de vista sobre o mar, achava ele uns tabuleiros de mata-pasto que bordavam a areia nessas abas da povoação, destacando sobre as faxinas das cercas vizinhas. Aquelas varinhas ligadas com embiras tinham especial encanto para o nosso poeta, que enfiava por elas uns compridos olhos e deleitava-se na contemplação… do que, não sei eu; mas ali não havia senão umas galinhas a ciscar, umas goiabeiras encarquilhadas e umas panelas de borco no terreiro.
Pior foi quando bruxulearam entre a faxina as dobras de uma saia azul de algodão tecido na costa da Mina, em África. Nunca vestuário de baile, apontoado por mãos francesas e recheado de meia dúzia de ninharias parisienses, com esdrúxulas designações, objeto da pasmaceira da gente do tom, teve no salão do Cassino poder igual ao daquela saia, para excitar em tão alto grau as emoções de um poeta.
Aquele azul era celeste; uns gadanhos de carvão e gordura o tisnavam aqui. e ali, mas eram justamente esses laivos que traziam presa a alma do mancebo. Tinha a saia um remendo de serafina; quando o percebeu, ele não se pôde conter que não soltasse uma exclamação de júbilo e ficasse em um êxtase indefinível.
Assim, agachado entre o mata-pasto, com os olhos naquela bendita aparição esteve bom pedaço. A saia tinha-se entrouxado perto das marmitas; e pelo movimento destas, assim como pelo chiar do punhado de palha e coaxar d’água, parecia haver ali uma lavagem de panelas.
De repente o poeta começou a tremer; batia-lhe o coração com palpitações violentas.
Dera causa a essa repentina comoção um novo incidente. Observara o Lisardo que dois tornozelos pretos e suas competentes canelas moviam-se debaixo da tal saia, na direção da cerca, onde havia uma portinha para o mata-pasto, bem defronte do nosso rimador. Em sobressalto, lançou ele os olhos ao redor para ver se o espreitavam e escondeu-se por trás das moitas.
A faxina da porta entreabriu-se. Uma preta de meia-idade, que tinha jeitos de cozinheira, estirou o pescoço pela fresta e olhou para fora. Não vendo o que esperava ia a recolher, quando ouviu rumor na moita e cuidou ver um vulto agachado. Logo após soou um psiu baixinho, e logo outro mais alto; afinal animou-se a aparecer o nariz do poeta e a mão do mesmo acenando.
Poupo ao leitor os trejeitos, negaças e requebros que de parte a parte se trocaram os dois antes de chegarem finalmente à fala.
– Está bom, sô moço, acabe com isso que eu tenho que fazer.
– Então, Benvinda…
A língua do poeta tremia como folha de bananeira.
– Então, você falou?…
– Pois então! Não falara!…
– E ela que disse?
– Que sim.
Aqui teve o Lisardo um soluço que de todo embargou-lhe a voz. Só a muito custo recobrou a fala, não a natural, mas uma sumida e fanhosa, que era pena ouvir.
– Deveras, Benvinda? Ela disse que sim? …
– Disse, sô Lisardinho.
– Como foi que você falou? Onde estava ela?
– Meio-dia, quando ela veio no quintal apanhar goiaba, eu cheguei devagarinho e perguntei assim: “A menina Belinhas sabe?… Sô Lisardo, aquele moço que lhe manda os versos, tem um segredinho para dizer à menina.”
– E que fez ela então, Benvinda? Conte-me tudo, tintim por tintim.
Deu uma risadinha gostosa e ficou vermelha que nem um tomatinho; depois deitou a correr para a cozinha.
– E não respondeu?
– Nem palavra.
– Mas então como disse você… Ah! Benvinda, que não imagina o mal que me fez.
– Espere lá, moço, que ainda não acabei. Quando ela chegou na porta da cozinha, voltou-se, chamando pelo meu nome, e bateu três vezes com a cabeça, assim!
– Adorada Belisa! murmurou Lisardo engalfinhando as mãos e pondo os olhos no céu.
De repente assaltou-o a dúvida:
– Mas, Benvinda, está você bem certa que ela consentiu!
– Pois, moço, a menina é lagartixa para bater com a cabeça à toa?
– Quem sabe se ela queria dizer Outra cousa! Talvez você não percebesse bem.
– Pois eu não sei o que faço? Sô Lisardinho em casando com a Belinhas, me põe forra logo, não é assim?
– Antes disso mesmo. Olhe; eu tenho um planozinho em que ando cogitando há dias. Vou mandar um memorial em verso ao Duque de Cadaval, pedindo a vara de meirinho do sertão que está vaga. Em apanhando o provimento, como espero, trato logo de vender o ofício por boas patacas; e então pode contar com a alforria. Se quer, empenho-lhe os meus sonetos, que já andam em cento e quarenta.
– Nada; não precisa; basta que prometa!
– Dou-lhe minha palavra.
– Então já se vê que eu hei de tratar do meu benefício, fazendo que sô Lisardinho fale cá á menina. Escute: não tardam trindades. Vá-se chegando aqui pelo lado da casa, encostado à última janela, e espere um instantinho, que eu vou arranjar tudo.
– Agora mesmo? exclamou o poeta espavorido.
– Já; é aproveitar a ocasião, enquanto as velhas estão ocupadas fazendo farténs lá dentro, porque esta noite ai vem cear muita gente. Se não for hoje, ninguém sabe quando será.
– Mas pode ela não gostar!…
– Deixe por minha conta.
– Não, o melhor é…
O diálogo foi interrompido por uma voz pachorrenta que chamava em escala cromática:
– Benvinda!… Benvinda!… Benvinda!…
O Lisardo quis meter-se pela terra adentro só de ouvir aquele chamado. preta acudiu às pressas, acenando-lhe de longe que fosse para o lugar aprazado.
Começa agora um quarto de hora que eu desisto de historiar; um livro era mínimo espaço para descrevê-lo. O célebre quarto de hora de Rabelais, em que a barriga cheia curtia o martírio da bolsa vazia; e aquele outro chamado quarto de hora de pontualidade que, a título de cortesia, suportam os convidados de certos jantares marcados para as quatro e postos às sete; nada disso se compara ao transe referido.
Quero ver contudo se por meio de uma imagem dou ligeira idéia.
Não há quem não tenha visto voar no seu terreiro uma pena de galinha. Ludibrio do vento, o sutil objeto sobe e desce, vai e vem, foge e torna, avança e recua, gira sobre si, pára e move-se, para afinal esbarrar-se contra algum obstáculo.
Pois em vez de pena, imaginem um rapaz enamorado; e ajuntem em alta dose os tremores nervosos, os súbitos calafrios, os suores gelados, de mistura com os repetidos fogachos; e terão uma idéia do que foi o tal quarto de hora de espera para o nosso Lisardo.
Afinal o encontramos na parede do oitão, uma braça distante da janela, e oscilando ainda como uma pêndula entre o desejo de ficar e o ímpeto de fugir.
De repente a banda mais próxima da rótula entreabriu-se; dois dedos mimosos enfiaram pela gelosia, e um olhar negro e aveludado filtrou das estreitas frestas como um esguicho de mil centelhas miudinhas, desferidas por todos os lados. Viu Lisardo o enxame de faíscas e ficou deslumbrado e quedo.
Vão-se acabando aquelas antigas rótulas que escondiam tão guapos amores; se algumas ainda restam pelas grandes cidades, já perderam o suave perfume de castidade que dava a essas flores recatadas um arzinho de violetas. Agora a rótula será canteiro de arrudas e mentruzes.
Muitos inventos modernos se introduziram em compensação: os véus de filó, os crepúsculos artificiais, as máscaras de cetim, as gazes transparentes e outros engenhosos sistemas do ver e do não ver; mas a rótula, cá para mim, há de sempre deixar saudades. Uma linda moça através da gelosia é a imagem das mais belas criações de Deus, a flor entre a folhagem, a estrela entre o azul.
Mas nada como o encanto que a rótula dava ao olhar! Quando se movia brandamente embalada por mão descuidosa, parecia que estava peneirando aqueles relanços d’olhos em um pó sutil. Se Deus me concedesse pulverizar uma estrela e passá-la por um crivo bem fino, pudera eu pintar a trepidação graciosa de uns olhos negros por entre a rótula.
Esquecia-me advertir. Olhos para rótula deviam de ser negros. Os azuis, querem-se límpidos, serenos e desnublados, como os puros céus de uma alma angélica. Os outros, castanhos, pardos, verdes ou gázeos, que arranjem-se como puderem e melhor lhes for; porém, escusam de ter saudades da rótula.
Eram pois uns olhos negros, do mais belo negro, que se coavam pela rótula do oitão.
A princípio derramaram-se em torno; mas logo recolheram para se atirarem ao mancebo, como uns punhados de alfinetes. Devia de ser assim realmente, porque o pobre Lisardo sentiu o rosto a fervilhar.
Tão flexível antes, qual folha de cana, estava agora o nosso poeta estatelado à parede e rijo como estafermo. Fincava as costas ao muro, a ver se podia sumir-se por ele adentro; os olhares esparramados pelo mato fora tinham jeito de disparar; e de certo houveram já deitado a correr por aí além, caso não estivessem amarrados ao poste.
Os olhos negros e os dedinhos brancos cuidaram que os não tinha percebido o poeta. Abriu-se um cantinho à rótula; tornou logo a cerrar, rangendo de leve; buliu a aldraba devagarinho; enfim ouviu-se um rufo mavioso de unhas rosadas no gradil.
Estes rumores significativos mais espavoriam o poeta. O ríspido som do gatilho de um arcabuz que lhe apontassem ao peito, não lhe causara por certo maior pavor.
CAPÍTULO VIII
A DESTRA E A SINESTRA DO HOMEM EM MAIÚSCULO
SEPARANDO-SE do nosso poeta, os dois companheiros se dirigiram para o lado da ponte.
Cosme tinha destino, embora não lhe fizesse conta confessá-lo. Quanto ao Nuno, esse aproveitava a companhia para pautear, e ter um pretexto de demorar-se fora da loja.
– O que você disse, Nuno, não passa de brincadeira? insinuou o Cosme.
– Pois ainda duvida? Não tarda a estralada, e se não andarem com isso depressa, eu cá darei jeito à cousa.
– De que modo?
– Ainda não sei; mas hei de achar.
– Em verdade nunca faltam meios de barulhar as cousas; o acomodá-las, sim, é o difícil.
Nesse ponto do diálogo, o Nuno deu um salto, arregalando os olhos para a ponte. Sem mais ambages, quebrou a esquina e barafustou pela rua afora, deixando surpreso o Cosme, mas contente, porque o forrava ao trabalho de se desvencilhar dele.
O que assim espantara ao caixeiro era a cavalgada do governador, que já de volta das Cinco Pontas, atravessava para ir ao Forte do Mar, como costumava.
Vinha Sebastião de Castro pensativo; o que não deixava de inquietar ao secretário e ajudante, os dois braços do governo da capitania, colocados à direita e esquerda do excelentíssimo toro.
Não será fora de propósito esboçar aquelas figuras de ministros coloniais; até mesmo porque podem servir para o paralelo com as ilustres cariátides modernas, que aí andam em quadros de apoteoses.
Alto, bem apessoado, o Capitão Barbosa de Lima florescia, apesar dos anos que lhe tinham despovoado a fronte, sem fanar a rosada frescura do agradável semblante, nem estancar o perene sorriso que manava dos lábios suasivos, como fio de um favo; e ele o tinha na palavra insinuante.
Dos olhos pequenos e redondos lhe escapavam as chispas de um espírito a cintilar, como lentejoula que era do seu engenho superior e adestrado no manejo dos negócios. A cavalo, as pernas mais compridas do que exigia a justa proporção do corpo dariam a outro postura ingrata, senão ridícula; mas o secretário com tal jeito conduzia esse trambolho, e tamanha sedução crescia em torno de si, que lhe esqueciam a prorrogação das gâmbias, para somente verem a afabilidade das maneiras.
As moças, que todas têm no mindinho sua unha de Dalila e gostam da juba para a tosquiarem, todavia achavam bonita a calva do secretário; e os rapazes invejavam-lhe a estatura pernalta, a que se atribuía o ter galgado tanto pela escada da fortuna. Quanto aos homens bons da governança da terra, velhos e moços, nobres e plebeus, todos à uma o afagavam e todos o queriam por companheiro. Razão tinham eles, pois era cavaleiro de boas manhas, como se dizia então: e pagava os defeitos de que ninguém está isento, com prendas de que poucos se ornam, ainda mais em vida de tamanha porfia como a tivera.
Fazia contraste com essa feição prazenteira a fosca e sombria carranca do Ajudante Negreiros, coberta de lívido pergaminho e crivada por espesso molho de cerdas.
Dentre a barba hirsuta destacavam os grossos lábios de nina boca flácida e lorpa que estava debuxando na balofa carnosidade a gula insaciável de todos os apetites. Se há nos traços fisionômicos uma expressão, essa boca fora talhada, não só para inchar a palavra, arrotando petulâncias e indigestos impropérios, como para atolar-se no tarro da sensualidade.
Nesse homem de pêlo híspido e couro adiposo, ressumbrava certa expressão e gesto suíno, que chegava algumas vezes até o grunhir. O tronco parecia Diógenes puro, mas lardeado de D. Quixote, e trufado com Aretino. O todo afogado em grosso unto de Tartufo, mas com uma rija côdea de Catão, que formava os folhos do grande pastelão de carne e osso.
O antagonismo dos elementos agregados no indivíduo o traziam em tamanha anarquia, que se lhe desarticulava o pescoço a cada instante em torcicolos e trejeitos, como se a cabeça lutasse por despegar-se do corpo estranho ao qual por engano a tinham ligado. Desse cacoete lhe proviera uma volta do congote, que o tornava um tanto corcunda.
Os que mais de perto conheciam o ajudante tinham-no em conta de homem às direitas, e fiavam tudo de sua inteireza. Também disso damos testemunho; mas era para lamentar que a natureza não tivesse virado ao avesso tão excelente pessoa, mostrando-a antes pelo forro.
Descendia o ajudante do ilustre André Vidal de Negreiros, do que muito se enfatuava; e havia arranjado para seu uso um extenso rosário de nomes, que apregoavam sua antiga e remota linhagem.
Ao avistar a cavalgada à boca da Rua da Moeda que saía na Ribeira, volveu D. Sebastião um olhar ao Ajudante Negreiros, e perguntou-lhe com ar que se não era, bem parecia distraído e indiferente.
– Não é na Rua da Moeda que mora o mercador Miguel Viana?
– Aí mora, sr. governador, acudiu o ajudante atento ao menor gesto de D. Sebastião. E se V. Ex.a concede, vou-me já à casa dele agarrar o mariola do filho!
– Em casa do Miguel Viana? perguntou o governador no tom do maior espanto.
– Pois que é o pai do bigorrilhas!
– Ah!
– O sr. governador não sabia?
– Deixe em paz o moço, Negreiros, tornou D. Sebastião esquivando a resposta.
– Em paz o quero eu, atalhou o ajudante com um regougo de riso, mas é no Forte do Brum, aos tirantes de uma peça de 64. Não há como isso, para amansar o lombo desta canalha de birbantes.
– Tamanho rigor não pede o caso. Uma rapazia de moço brejeiro… Basta que o pai lhe passe um repelão e lhe traga tente as rédeas.
– Aquele?… Não toma caminho, a não ser o do pelourinho, onde certo vai parar, se não o amarrarem à carreta e sem demora.
– Se o mandassem a Lisboa estudar, não cuida o ajudante, que se havia de fazer gente? Lembre ao mercador, como cousa sua; verá que ele abraça logo o alvitre. Vá, vá ter com o homem.
Falara D. Sebastião com a habitual volubilidade; mas na leve resistência que despontara através da última réplica, percebeu o Ajudante Negreiros o pulso da vontade oculta, que à semelhança da odalisca de um serralho, nunca se mostrava a rosto descoberto.
Quando porém o fidalgo, sobre despedi-lo com a palavra e o gesto, voltou-se de todo para o secretário, impedindo assim qualquer réplica, compreendeu nosso ajudante que a ordem era peremptória, e rasgando uma cortesia com a cabeça inclinada a tocar as orelhas do cavalo e o chapéu desbarretado até a garupa, separou-se da comitiva para enfiar a Rua da Moeda.
Pouco faltava à comitiva para enfrentar com a Rua do Azeite em cuja esquina ficara de plantão o Cosme, depois da escapula do Nuno, esperando a passagem do governador para fazer-lhe a sua reverência.
Respondeu o fidalgo à zumbaia do escrevente com um sorriso animador, e à meia voz disse para o Capitão Barbosa de Lima:
– Aí está um rapaz de recado, que bem merece ser aproveitado.
– Já tinha pensado nisso, respondeu o secretário que nem vira a sonsa figura do escrevente. Consta que é de ânimo cordato; ainda que o suspeita o almotacé de pender para os de Olinda.
– Que mal vem daí? perguntou o governador com um sorriso melífluo.
Lembrou-se o capitão que também ele, antes de tomá-lo o governador a seu serviço, andara extraviado e fora do bom caminho, tendo sido um dos mais respingados entre os do partido olindense.
Com o barrete na mão, e o espinhaço reverencialmente curvo, acompanhou Cosme a cavalgada até que a viu sumir-se por trás da Madre de Deus. Arrancando então um suspiro que lhe estava entalado na garganta, deitou-se o rapaz a trote na mesma direção da cavalgada, para atravessar a ponte e ganhar a outra banda donde já podia estar de volta, se não lho estorvasse o trapalhão do Nuno.
Seguindo de longe o governador, embalava-se o escrevente em fagueiras esperanças, e sentia lá dentro do coração umas cócegas deliciosas. Parecia-lhe que sua estrela ia enfim raiar do seio das águas turvas que se estavam encapelando.
A ocasião faz o homem, como o choco faz o pinto; sem ela, o homem é um ovo goro.
Tal era o conceito em que se embebia o espírito do nosso escrevente, pouco poético, se o quiserem, mas profundo na filosofia, não a especulativa, que se deleita em chilras utopias, mas a prática e sólida, que é a verdadeira ciência da vida.
Chegado à outra banda, encaminhou-se o Cosme à casa do almotacé, onde esteve de cochichos com a Sr.a Rufina, na janela do canto.
Do que ai o levou, e da espécie de comércio que havia entre a matrona e o escrevente, saberemos a seu tempo; sendo que neste momento mal pudemos acompanhar o rapaz na disparada em que vai, já de volta para o Recife.
Ei-lo que enfia pela Rua da Cadeia, e chegado à casa que procurava, encostou-se à ombreira da porta, encolhido para que não ó avistassem de dentro; assim ficou a espreitar pelas fasquias da rótula:
Na câmera servida por essa porta achavam-se em palestra animada duas pessoas, uma cuja voz fornida retumbava pelo teto, e outra de fala submissa embora rouquenha.
O sujeito do verbo alto trazia as vestes dos recoletos, e esquadriava o pavimento de tijolo com umas pernadas, que nada tinham de eclesiásticas, e mais pareciam guinadas de espadachim. As vezes parecia que a batina o tolhia, e dava-lhe tal safanão acompanhado de um trejeito da boca e dos olhos, que bem se via quanto lhe custava a arrastar aquele trambolho. Se não fora a utilidade que lhe prestava, com certeza já o houvera lançado às urtigas.
O árdego padre tinha a cabeça batida; o rosto largo, olhos redondos e lábios carnudos, que estavam denunciando a temulência da carne não castigada convenientemente pela abstinência, e menos pela disciplina. Apesar do freio de santarrão com que ele havia bridado o carão moreno, e do cuidado com que lhe amansava a braveza, não raro mostrava-se ao natural a catadura, e via-se então que era homem de dar e tomar, como se dizia no sertão.
E no sertão deixara o Padre João da Costa, no tempo que por lá andara, memória de suas proezas. Entre outras cousas dizia-se que na festa de uma freguesia, apresentara-se no largo, e puxando da faca, arremetera contra uni pimpão para lhe bifar a rapariga com quem estava; e conseguiu, porque era o frade faquista de fama, e o outro sentiu bater-lhe a passarinha. Tomando então a moça de garupa, saiu o fragueiro do reverendo pela povoação afora, mui ancho de si.
É verdade que estas e outras anedotas vinham de Olinda, onde o Padre João da Costa era abominado, como a alma da conspiração dos mercadores, e o espírito daninho que o estimulava contra os nobres e moradores da terra. Convém portanto dar a tais murmurações o devido desconto da paixão partidária, tão acesa naqueles tempos.
O outro personagem era homem de seus trinta anos, bem fornido de carnes, com uma dessas construções maciças, que se podem bem comparar na arquitetura humana aos edifícios de pedra e cal, sólidos e elegantes. Tinha bela presença; e uma compostura, a que dava realce a galhardia marcial, rara em um mercador, como ele era.
– Ouça o que lhe digo, Sr. Miguel Correia. Antes de três dias decide-se a cousa.
– Pois eu aposto, Padre João, que ainda não é desta vez!
O frade soltou uma risadinha:
– Veremos! Amanhã à noite em casa do Miguel Viana há de mudar de parecer!
– Qual! Os mecos são espertos!
– São! São!… Não há dúvida!
Destas frases ditas em tom claro e compassado, pilhou o escrevente algumas palavras. Infelizmente botando-se o Miguel Correia para a janela, não pôde ele escutar o mais. Bateu então à rótula devagarinho, como quem acabasse de chegar.
– Ah! é você rapaz? disse o mercador levantando o postigo da rótula que era de bater. Entre!
Enquanto arredava a porta .para dar passagem ao gaguinho, voltou-se para anunciá-lo ao frade:
– É o Cosme Borralho, Reverendo!
– Bem aparecido, moço, disse o Padre João; já sei que nos traz alguma nova importante!
– O reverendo e mais o Sr. Miguel Correia dirão, respondeu Cosme com modéstia.
Sacando então do bolso da sotaina o maço de papéis, escolheu um cheio de garatujas que apresentou aos dois. Logo apoderou-se o frade do manuscrito e acercou-se da janela para o decifrar.
– Há!… há!… fazia o reverendo, durante a leitura. Bravo!… Que malandros!
Exultava o gaguinho por baixo da sonsa, vendo o efeito que produzia o papel. Quanto ao mercador, depois de ter debalde tentado soletrar as garatujas do escrevente por cima do ombro do frade, achou mais proveitoso consultar as reverendas bochechas; e como elas se espraiavam em riso gostoso que serpejava enroscando a papada, também o bom do mercador se pôs a gargalhar, esfregando as mãos de contente.
– Aposto que são obras do matreiro do entrevado?
– Foi o licenciado que o escreveu ainda esta manhã, respondeu Borralho.
– O Davi de Albuquerque? perguntou o mercador.
– Grande ronha!… Tem mais peçonha por dentro do que lhe sai por fora das chagas do corpo! prosseguiu o reverendo tornando à leitura.
O mercador tentou segunda entrada nos gregotins do manuscrito, porém debalde.
– Ótimo!… continuava o Padre João.
– Boas noticias, hem?… Bem dizia eu que o Borralho era um rapaz de truz. Mas então as cousas vão bem?…
– As maravilhas, Sr. Miguel Correia, futuro procurador do Senado recifense! exclamou o frade com ênfase, terminada a leitura.
Arrufou-se o mercador de prazer, como um peru de roda quando o garoto rapaz lhe assobia no terreiro.
– Qual!…
– Digo-lho eu. O mês se não acaba sem que tenhamos pelouros abertos neste Recife.
– Pois já tão próximo?… tornou o Miguel. Pelo que vejo este papel é algum arranjo que os pés-rapados nos propõem?
– Este papel?…
Um riso desdenhoso borrifou a respeitável belfa do frade, que inchou as bochechas, para soltar a palavra retumbante com a ênfase do costume.
Aqui para nós, leitor, o reverendo preparava-se para representar o papel de tribuno, que é o apostolado político; e por isso não perdia ensejo de pôr os pontos á sua eloqüência.
– Este papel?… É o mane, thecel, phares da orgulhosa Olinda!… Como Babilônia cairá para não se levantar mais, a famigerada cidade! Este papel?… É o documento da conjuração que tramam os fariseus deste Pernambuco, contra a autoridade do Rei, na pessoa de seu governador, a quem trabalham com danada tenção por deitar fora da terra, a fim de porem a governança na mão de seus apaniguados, embora se derrame o sangue de inocentes, contanto que satisfaçam ao seu nefando propósito de abater esta Sião do Recife, o que tenho fé não hão de consegui-lo…
O reverendo tomou fôlego, e enroscando no dedo índex o fim do longo período à maneira de carapito, outra vez encheu os foles da bochecha para apontuar devidamente o fim daquela rajada de eloqüência.
– … jamais!…
Saiu o gaguinho dos biocos humildes e silenciosos em que se metera, para manifestar por modos significativos sua admiração à oratória do Padre João. Piscando os olhos de entusiasmo, e batendo a cabeça como o lagarto, animou-se a murmurar à meia voz:
– Nem o Padre Vieira!
Lançou o frade ao gaguinho o olhar de proteção com que hoje em dia o ministro na Câmara afaga os íntimos que engastam em ‘apoiados” e “muito bem” as pérolas, por ele desfiadas na tribuna.
Entretanto passava o Miguel Correia um momento bem atribulado. De todo aquele soberbo jacto da reverendíssima eloqüência, não tirara o seu bestunto senão uma cousa; mas essa de arrepiar.
Era o tópico de sangue derramado tão junto ao nome do Recife. Ora, havia no digno mascate invencível repulsão por tudo quanto atentava contra a integridade da pele humana, e sobretudo da que lhe forrava o indivíduo.
Não se conhecia ainda naquele tempo a causa de semelhante fenômeno. Medo; nem por sombras podemos conjeturar que o sentisse um homem da polpa do Sr. Miguel Correia Gomes, capitão no terço dos brancos, e escolhido pelos mascates como um de seus cabeças, para levar a cabo a grande empresa em que se haviam empenhado.
Atualmente, abençoado progresso, qualquer estudante de Medicina explicaria de uma maneira clara e decorosa aquela esquisitice, diagnosticando uma afecção nervosa. Fique pois assentado que o Sr. Correia, bem apessoado de corpo, era, não obstante a fartura de músculo e fêvera do seu todo, um organismo essencialmente nervoso.
Tal frouxidão produziram nele as palavras referidas, que as pernas faltaram ao tronco; os ombros afundaram sob a cabeça; e o homem se aboborou sobre o tamborete.
CAPÍTULO IX
COMO A CONSPIRAÇÃO, POR MAIS RODEIOS QUE FAÇA, VAI SEMPRE DAR NA RÓTULA DOS OLHOS NEGROS
Afinal recobrara o mascate a fala. que eles são capazes de praticar estas
– Deveras, Padre João, você julga maldades?…
– Capazes eram, e de mais, se os deixássemos! Mas eles que façam o levante, e lhes mostraremos!
– Um levante?… conseguiu balbuciar o Correia com a língua perra.
– Pois então, homem!… Não está aqui a cópia do manifesto que contam remeter para Lisboa, com o governador?
– Virgem Santíssima!
– De que se espanta você?
– Ah! padre, que desgraça!
– Diga que fortuna!
O mascate não tugiu; porém a cara agalgada retorquiu por ele com uma eloqüência irresistível.
Que mais desejamos nós, os do Recife? Que os fariseus de Olinda ponham em prática seus perversos intentos! Então o senhor governador acreditará no que lhe havemos dito; e fará respeitar a vontade de El-Rei, capturando os mais famosos entre os tais fidalgotes de meia-cara.
– Mas o levante?
– O levante, abate-se! respondeu com fleuma admirável o padre.
– Mas quem? O padre, com os seus congregados da Madre de Deus?
– Nada; lá isso é da sua competência, Miguel Correia, e dos outros da militança. Nós os acompanharemos com as nossas preces…
– Sim; bem fechados no convento!
– Porque assim o exige o meu santo ministério, que por gosto estaria a frente dos nossos guerreiros, para bater a brecha em Olinda.
– A brecha!… A brecha!… Pois olhem: comigo não contem! gritou Miguel Correia furioso a medir de uma à outra ponta a comprida sala com uma desencadernação de passos inconcebível. Não é lá por medo; mas eu não posso ver matar aos meus semelhantes. No fim de contas sou cristão, antes de ser mercador; e uma vila de mais ou de menos na terra não é razão para se estar a gente a comer como cães esfaimados!
Tendo neste solilóquio enérgico feito sua declaração de voto, o nervoso mascate barafustou pela casa adentro, meio peremptório de impedir a réplica do frade e assim melhor se convencer da verdade do próprio dito.
O reverendo o acompanhou com um olhar de zanga:
– Se todos forem deste jaez, estamos aviados. É cada um ir tratando de arrumar a trouxa e deixar a terra aos senhores dela. Perder a melhor ocasião!
– O reverendo, então, acredita que os de Olinda fazem o levante!
– Pois este papel? perguntou o padre surpreso.
– André de Figueiredo, bem sabe o reverendo, que é de todos o mais empenhado contra o Recife. Foi ele quem encomendou o manifesto ao licenciado Davi de Albuquerque, que o ditou, e eu tirei a jeito esta cópia, quando o passava a limpo.
– Então?
– Olhe, sr. padre, pelo voto dele, amanhã já se punha o motim na rua; mas é que a melhor gente está em dúvida por causa do velho Capitão-Mor João Cavalcanti. Então se emprazaram para um dia destes em casa do dito, a fim de acordar-se no melhor.
– Pelo que vejo, ainda não é negócio resolvido! Que pena!
– Agora, uma cousa me parece a mim, que ao reverendo sem dúvida já lembrou. Se o governador, sabendo do manifesto, mandasse prender alguns…
– É verdade; ocorreu-me há pouco. Ótima idéia. Vou já tratar disto!
Ergueu-se o padre e despedindo o rapaz foi em procura do Miguel Correia no interior da casa. Conseguiu explicar-lhe o novo plano ou, como se diria atualmente em linguagem parlamentar, a última fase da questão olindense.
O mercador apoiou com entusiasmo a emenda substitutiva. O expediente da captura efetuada pela tropa de guarnição, em nome de El-Rei, além de não atacar os nervos do capitão do terço, podia ser um poderoso tônico, livrando-o dos constantes sobressaltos em que vivia.
Assentaram pois de comunicar o plano aos amigos que se ajuntavam quase todas as noites na calçada do mercador Viana; e como já estavam a pingar trindades, foram de passeio se encaminhando para ali. A companhia de ordinário começava a reunir-se com o escuro; porém o Miguel Correia tinha suas razões para chegar cedo.
Puseram-se os dois a caminho pela praia fronteira à Madre de Deus, quando os apanhou o toque de ave-maria. Depois de recitada a oração, deram-se mutuamente as boas-noites e, continuando o passeio, foram sair nas imediações da Rua da Moeda. Os quintais separados formavam um beco estreito por onde se entrava da praia para a cidade. Houvera ali outrora uma pequena porta, fabricada pelos holandeses, mas já em ruínas.
A um dos lados da travessa estava o outão com a rótula dos olhos negros. O Miguel Correia estendendo os olhos naquela direção, viu cousa que o pôs alerta. A gelosia estava entreaberta; e próximo da janela, encostado à parede, havia um indivíduo gesticulando. Tornou-se pensativo o homem; e seu companheiro teria reparado na torvação, se não fosse uma figura de retórica das mais retumbantes, e cujo efeito naquele momento ensaiava o padre sobre o mascate, pensando que este o escutava.
Quem era o indivíduo da rótula, já o sabemos. Ainda ali está onde ficou, o nosso poeta; mas parece que não perdeu seu tempo, o maganão. Quando o deixamos, estava ele em suores frios por causa de uns rebates de unhas rosadas que vinham da rótula.
Isso, porém, nada era á vista do que tinha de vir. De repente escapou-se dentre as persianas aquele som mavioso, que só têm duas cousas neste mundo: a brisa no seio da rosa e o hálito nos lábios de uma moça.
Um suspiro!… Haverá na mulher outra expressão que se lhe compare? O olhar é a centelha; o sorriso a corola resplandecente; o beijo a polpa deliciosa. Nada, porém, como essa fragrância melodiosa a destilar no seio da flor celeste, que se abre n’alma da virgem.
Felizmente para o Lisardo caíram do sino do Carmo as primeiras badaladas de trindades. O beato amante logo se pôs em atitude de cumprir com o dever religioso; nunca ele se desbarretara com tamanha presteza, nem rezara com tanto zelo como nesta ocasião. Também a gelosia se recolhera ao batente; e um silêncio respeitoso derramou-se por aqueles lugares já de si pouco ruidosos.
Quando se desvaneceram ao longe pelos ares as últimas e gemedoras percussões do bronze, o Lisardo levou o arrojo ao ponto de voltar o canto do olho para a rótula, prestes a retirá-lo com velocidade de relâmpago. Continuava cerrada a gelosia. Esta observação reanimou o mancebo, que se meteu a falar entre si.
– Com certeza ela não volta mais; foi rezar junto das velhas. Portanto posso me ir escapulindo. Que mais faço eu aqui? Podem bispar-me e depois… Ela mesma talvez não goste, e tanto que já recolheu-se.
Não acabara; rangeu de leve o gonzo da rótula, que se entreabriu; e os olhos negros começaram de novo a cintilar de modo que faria crer estavam apostados com a estrela da tarde, à qual luziria mais.
Lembrem-se daqueles moldes feitos em velho papelão, que as rendeiras pregavam outrora na almofada com espinhos de macaúba, e farão idéia justa da figura do meu pobre Lisardo cosido à parede por aquele molho de crivos.
Instante depois, ressoou ali um canto suave. Os olhos negros falavam:
– Já está escurecendo; são horas de ir para dentro!…
Foi este aparte proferido com certa lentidão pachorrenta de quem procura um pretexto para retardar o cumprimento da obrigação; com o mesmo vagar começou a rótula de fechar-se, e o Lisardo imóvel. Quando cuidava ele ouvir o correr do trinco, abriu-se de novo a banda da gelosia, e os olhos negros se puseram – à janela, mas desta vez zangados, porque diziam:
– Ah! também… Já me vou!…
Estiveram pouco tempo; de repente dali partiu um grito de susto, e a rótula puxada batera com força o batente que a repeliu:
– Ai, Jesus!… Um homem!…
Começando na janela continuou a voz no interior:
– E eu aqui sozinha!
Entraram os olhos negros a jogar o esconde-esconde. Iam-se chegando à rótula, e de repente furtavam-se com uma timidez cheia de feitiços.
O medo e o acanhamento outra cousa não é senão medo de certas ninharias; desaparece como por encanto quando se acha em face de outro maior. É capaz então de ir até a petulância. Se os olhos negros sabiam disto, não posso afirmá-lo; mas que os olhos negros são melhores fisiologistas do que os doutores arvorados em mestres de tal ciência, não haja dúvida.
Assim foi que o Lisardo, vendo a moça ter medo e vergonha dele, se encheu logo de certa importância. A coragem a pouco e pouco lhe aqueceu o ânimo; despregou-se a língua do palato e recobrou alguma flexibilidade. Teve dó dos olhos negros, lembrando-se da aflição que neles havia de produzir sua audácia.
Tossiu o nosso Lisardo; afinou de leve a garganta, e com o gesto mais arredondado, entrou a recitar para umas estrelas defronte:
DÉCIMA!
disse ele com voz de epígrafe e prosseguiu:
Entre um morrer e viver
Que me assalta a todo instante,
Traz-me sempre uma inconstante
Só constante em meu sofrer.
Quando me cuido morrer,
Dá-me Belisa uns carinhos;
Torno à vida aos bocadinhos,
Eis logo me deita uns olhos
Que o foram, mas já são molhos
De enfados por entre espinhos.
Apenas começou o recitativo, os olhos negros bruxulearam através da gelosia, e foram a pouco e pouco se enfiando tanto pelo gradil, que já se via junto deles uma testa branca de leite e um narizinho afilado do mais puro tipo pernambucano.
– Ai, ai!… murmuraram no fim os lábios que se adivinhavam em uma sombra rósea por entre o crepúsculo da rótula.
Compreendeu Lisardo que este monossílabo suspirado era a resposta eloqüente à sua décima; e que devia ele, para travar o diálogo, replicar. Mas não se tendo preparado, ficaria em seco, se lhe não ocorresse uma lembrança feliz. Repetiu os versos com um acionado mais correto.
Desgraçadamente desembocava pelo beco o Miguel Correia com o padre. Ao espanto da rótula que fechou-se de repente, percebeu o poeta a causa. Com tal cara de estatelado ficou ele, que o Miguel Correia sentiu uma agastura no estômago, e coseu-se ao reverendo. Mas, a distância suficiente, voltou-se com um gesto mal-encarado e escarrou duas vezes.
– Que lhe parece aquele sujeito encostado à rótula, Padre João? perguntou ao frade em dobrando o canto.
– Não reparei, não, homem. Mas então desconfiou de alguma cousa?
– Eu sei!. .. Se a menina estava na rótula, o caso não é para graças. É preciso que indague disto?
– Quer você meu conselho? Não indague de cousa alguma.
– Essa é boa. Então se a rapariga andar de namoricos pelo quintal, eu não devo curar disso?
– Para quê? respondeu o frade com um riso magano. Se por força você tem de casar, não é melhor que ignore o mais? O que olhos não vêem, coração não sente. O Viana ajustou dar-lhe a mão da menina quando ela entrar nos vinte anos; e eu, é preciso que saiba, já me preparei para abençoar o consórcio e trinchar o peru das bodas. Portanto, que mais quer o amigo?
– Quero saber a casta da mulher que levo para casa.
– Lá Isto nunca há de saber, nem que viva com ela cem anos.
– Mas em todo o caso sempre será bom advertir o pai.
– Disso me incumbo eu, como capelão da casa.
CAPÍTULO X
TEM O I.EITOR A INESPERADA FORTUNA DE SE AVISTAR COM UMA NINFA OLINDENSE
Enquanto passavam no Recife estas cenas, outras do mesmo drama se desdobravam na próxima cidade.
Era Olinda então a princesa daqueles mares. Reclinada sobre os verdes outeiros, ainda olhava ela com desdém a nova povoação que surgia-lhe aos pés longe em uma nesga de terra sáfara. Ainda sorria altiva aos esforços da humilde serva, que tentava quebrar o preito e obediência devidas à legítima suserana.
E tinha razão. Olinda, a fidalga, a cidade nobre e de mais antiga linhagem naquelas partes, senão em todo o Brasil, conservava nos princípios do século XVIII a flor de sua beleza. Incendiada embora em 1630 pelos holandeses, renascera das cinzas e aumentara com o novo influxo que recebeu a capitania depois de restaurada. Quem, pela vez primeira, a avistava do mar, emergindo do seio das ondas, compreendia como a absurda tradição de seu nome tanto se vulgarizou. Realmente era para exclamar: – Oh!… linda, linda cidade!
O outeiro se elevava como um triclínio romano voltada a cabeceira para o sul, e os pés estendidos pela dilatada campina. Aí, nesse leito voluptuoso, se recostava a americana cidade. Suas ruas subiam as encostas e serpejavam pela esplanada, a cavaleiro do mar. Era este um dos encantos de Olinda, e que raras cidades possuem.
De ordinário o viajante que chega não vê logo senão o vulto indeciso das cidades; a sua feição está no interior das ruas e praças para conhece-la é preciso atravessar a orla de trapiches ou quintais que lhe formam a crosta. Com Olinda não era assim; a faceira, garbosa de sua formosura vinha ao encontro do viajante e abria o seio para recebe-lo. Quem se aproximava de suas ribas alcantiladas, logo via do primeiro lance o coração da cidade bem como o fluxo e refluxo da vida no centro da povoação.
Provinha esta singularidade do corte abrupto da montanha pelo lado do mar. Parecia que a cidade fora fendida a meio pelo desabo da eminência. Tinha esse aspecto alguma cousa de cênico que redobrava-lhe o encanto; como nas vistas do teatro, o ponto visual era no foco do sitio representado.
Outra graça especial de Olinda era a garridice campestre com que ela, cidade nobre, se adornava. Os campanários erriçados de suas belas igrejas, assim como os tetos vermelhos dos edifícios, surgiam de um maciço de verdura. Não havia grupo de casas que não tivesse uma cintura de ramagem e flores. O campo e a cidade, como dois amantes se uniam em apertado abraço. A civilização, assim vestida à americana, tinha uns ares de louçania e gentileza que a embelezavam.
Dizem que tão bonita era Olinda de longe, quanto feia e incômoda dentro. Se essa tradição nasceu de gente invejosa, filha das outras terras, ou de algum cronista vendido aos mascates, é cousa impossível já de averiguar-se. Mas em todo o caso não desabona a cidade; há belezas para serem admiradas de longe; outras se querem vistas de perto.
Infelizmente, aquele viço da altiva formosura não tardava se desvanecer. Lá estava ao sul, numa orla de praia, a minguada povoação de pescadores, que fora crescendo desde a invasão holandesa; e devia em breve dominar essas regiões.
Tinha Olinda todas as superioridades. Situação magnífica, ares saudáveis, água em abundância, terreno fértil, e vegetação opulenta; esses eram os dons da natureza, aos quais o homem juntara outros: as tradições da primeira colonização, os edifícios bem acabados, e os meios de defensão.
Recife era uma ponta de areia, estéril, despida de arvoredo, fétida e doentia, sem outra água potável além da péssima fornecida por cacimbas. A próxima Ilha de Santo Antônio estava nas mesmas condições. Mas havia ali um ancoradouro, porta aberta ao comércio. A indústria, que já se estreava para um dia se apoderar da civilização e subjugá-la, devia arrastar a população do alto das verdes e risonhas colinas às praias sujas, e infetas do Mosqueiro.
Assim, a pouco e pouco minguou a seiva à altiva cidade; suas casas foram desamparadas; tornaram-se ermas as ruas; e o cadáver da formosa Olinda permaneceu como seca múmia entre a verdura das árvores e as palmas dos coqueiros, únicas de suas galas antigas que não desbotaram ainda hoje. Para consolo dessa velhice prematura fizeram-na beata: deixaram-lhe a supremacia espiritual.
Quando a vi de primeira vez, transiram-me o silêncio e melancolia que a habitavam. Pareceu-me penetrar o vasto âmbito de um templo cristão. Tal era o profundo abatimento de Olinda, que não podiam reanimá-la a inexaurível jovialidade e o habitual rumor da colônia acadêmica, então para ali rejeitada.
Naquela tarde de 11 de outubro de 1710 resplandecia Olinda entre os fulgores do ocaso. A rósea vez das nuvens refletia na branca fachada dos edifícios, e algumas chispas do último raio do dia abrasavam os coruchéus das torres. Ao meio da rua principal que se prolonga pelo dorso da montanha, e então como hoje se chamava de São Bento, do mosteiro situado em frente, sobressaíam as outras duas casas nobres, da melhor aparência naquele tempo.
Tinham sobrado ambas, com janelas de sacada, revestidas de altas cortinas de rótulas, pintadas de vermelho. A primeira, mais larga e de cinco portas, pertencia ao Capitão-Mor João Cavalcanti, pessoa da melhor nobreza de Pernambuco. A outra, de três portas somente, era da propriedade e residência do Capitão André Dias de Figueiredo, morador dentre os principais de Olinda.
Na primeira sacada da última casa percebiam-se entre as gretas da rótula, por onde coavam-se as derradeiras réstias do sol cadente, dois vultos que pareciam de mulher; e o eram de feito. Estava sentada em cadeira e mais recolhida, uma já revelhusca; a outra, moça e formosa, em estrado e pendida para a sacada, a fim de aproveitar a claridade; pois trabalhava na trama de uma bolsa de retrós.
– Não se amofine com isto, menina! dizia a matrona.
– Pois, tia, não me hei de queixar de minha sorte, que me fez donzela e casada, sem que o seja nem uma, nem outra? Não me pertenço a mim, que sou de quem me disse o coração; não me pertenço ao meu marido, que dele me tem separada. Ah! soubera eu do que me esperava, que não teria consentido! Afinal de contas ele é meu esposo e eu devia acompanhá-lo…
– Que diz você, Leonor?… Queria então ajuda-lo na guerra que faz aos nossos?
– Quem fala disto, senhora? Sou tão boa pernambucana, como a que melhor for; e também, lhe juro, ninguém se desvela tanto de amores por esta Olinda, onde nasci e me criei, e parece que tudo me conhece, porque brincamos juntos, quando era eu criança; e vai a ponto que viver fora daqui, creio que não é mais viver, e sim morrer-se em vida aos poucos.
– Se pensa por esse teor, de que se arrepende então?
– Eu sei, tia? Tenho cá uma cousa comigo a dizer-me que se não fossem ao Sr. Vital Rebelo, logo na mesma noite em que nos desposamos, a intimar-lhe para morar em Olinda, ele se não havia de agastar; e depois com o tempo, pedindo e rogando, como era meu dever, tudo alcançaríamos dele. E agora!…
Curvou Leonor ainda mais a cabeça, dando ao colo alvo e flexuoso uma ondulação de cisne, a fim de esconder da tia a lágrima cristalina que tremia nos cílios e veio a cair no regaço. Mas a voz não a pôde esconder; viera aquela última palavra rociada de prantos.
– Está bom, tornou a senhora; console-se que breve tudo isto acaba. Em vencendo nós aos tais mascates…
– Contanto que lhe não façam mal! replicou prontamente a moça.
– Disso lhe dou fiança, menina; basta ser seu marido e meu sobrinho.
– Mas quando acabará?
– Qualquer destes dias.
– Ah! Deus lhe ouça, tiazinha de meu coração, exclamou a donzela esposa, erguendo ao rosto as mãos juntas para o céu.
Nesse movimento as madeixas do cabelo castanho descaindo para as espáduas mostravam em toda a pureza natural o belo semblante de Leonor. Entre a límpida alvura coavam uns reflexos de luz rosada que anunciavam a aurora da esperançada ventura.
D. Severa lançou-lhe um olhar de castelã.
– Ai! Quem me dera outra vez aqueles bons tempos em que as damas e donzelas sabiam arrostar os perigos e davam aos senhores homens o exemplo do heroísmo? Também por isso eram mais respeitadas e queridas do que são hoje, que vivem encostadas ao canto que nem traste velho e fora de uso. Se não era outra cousa bem diferente das de agora uma fidalga, ainda mesmo do tempo de minha avó, que pelejou em Porto Calvo com D. Clara? E por sinal que atravessou dois holandeses com uma só lançada!
– Jesus!… Que mulherzinha!
– E eu sou capaz de outro tanto; o ponto é me acompanharem.
– Ui! tia não se lembre disto. Já estas cousas andaram tão baralhadas sem nós mulheres andarmos aí às voltas, quanto mais se nos fôssemos também meter com elas? Então é que ninguém mais se entenderia; por força que havia de vir muita desgraça, sem contar a que já estou prevendo de me ver casada e descasada tão sem graça e de repente!
– Não digo! Para choramingas e rezas é que servem hoje as mulheres. Se fosse uma dama do bom tempo, que se apartasse como você, Leonor, de seu esposo para seguir a seus parentes, em vez de ficar em casa a fazer meias ou bolsas, punha-se em campo com seus acostados e gente d’armas; e havia de não menos vencer o inimigo à ponta de espada, do que render o esposo com um bote de lança, que não com um requebro d’olhos.
– Nossa Senhora me defenda de tal tentação!
– Ai, saudades!… Aquilo é que era viver! continuou D. Severa entusiasmada. A gente sempre adorada, cavaleiros de todas as partes que cercavam a dama de seus pensamentos, e bastava um aceno para que eles fossem ao fim do mundo, e isso só em troca de um sorriso de longe em longe, ou quando muito de uma flor, de modo que assim a formosura de uma fidalga podia chegar para fazer a tantos felizes; e não é como hoje, que vive fechada dentro de casa para um só, e este mesmo nem com ela se importa!… Ai, tempos, belos tempos dos torneios, das justas, das cruzadas! Tempos de constância em que a gente não se dava de esperar dez, vinte, trinta anos, que seu esposo voltasse da Palestina! É para se comparar!…
Aqui vejo-me obrigado a dizer alguma cousa sobre o físico da Sr.a D. Severa de Sousa, para que o leitor não se deixe ir a suposições arriscadas!
Tinha a fidalga cinqüenta anos bem puxados: os cabelos, ainda não grisalhos, mas de um preto ruço, trazia-os ela em diadema enastrado de fitas verdes, amarelas e escarlates. Nas faces, onde a natureza pôs aquele doce pomo rubescente, que nossos pais com propriedade chamaram as maçãs do rosto, havia outra variedade de fruto, duas nozes.
Formavam estas saliências em conjunção com o queixo não menos proeminente a triangulação da beleza de D. Severa, que se contava no rol das ninfas olindenses. E não era vaidosa, não. O nosso amigo Lisardo que tinha entradas no Parnaso e privava com as musas, lhe dedicara há tempos um madrigal neste gosto:
Onde vais correndo assim?
Pergunto à Flora chorosa.
Diz-me a deusa: “Busco a rosa
Que fugiu do meu jardim.”
Acode amor: “Oh! não penses,
Que volte a ser flor mimosa,
Clélia, a ninfa mais formosa
Entre as ninfas olindenses.
Ah! poetas, poetas. Por que vos deu a natureza um estômago?… Sem essa víscera exigente não seríeis forçados, vós, os sacerdotes do belo, a cantar as Donas Severas de todos os tempos; e a incensar as torpezas de ambos os sexos, que por ai pululam corno rãs, neste grande charco, chamado mundo!
Observava Leonor com um arzinho zombeteiro o entusiasmo cavalheiresco da tia, e o sorriso que lhe brincava nos lábios já abrochava para soltar algum remoque inocente, quando uni tropel de cavalo soou na rua, que a distraiu. Enfiando o olhar pela fresta da gelosia, teve um sobressalto e se arremessou de encontro à rótula com irresistível impulso.
– O que é? 0 que é? perguntou D. Severa estendendo o longo pescoço, que no madrigal do Lisardo devera representar o pedúnculo da rosa.
CAPÍTULO XI
O PRIMEIRO SANGUE DERRAMADO NA FAMOSA GUERRA DOS MASCATES
Um cavaleiro bem parecido e trajado com lindas roupas, que descia a rua na direção da Misericórdia, fora causa do sobressalto da moça.
Quase fronteiro à janela, o fogoso cavalo em que montava caracolou-se voltando rapidamente sobre os pés; e durante um momento lutou o mancebo, que mostrava ser excelente escudeiro, para subjugar o animal. Nesse tempo o tinha visto Leonor, que se lançara para a janela.
Decerto percebera ele o vulto da moça e a reconhecera, porque fitou nela um olhar expressivo acompanhado por um gesto rápido. Entreabrira a mão direita erguida; e um pequeno objeto, mais alvo que as rendas do punho, apareceu na palma. Logo após, dando de rédea ao cavalo, seguiu a passo pela rua adiante.
– Não é nada, tia, disse Leonor ainda trêmula, sem retirar os olhos das restas.
Mas não se é ninfa debalde. A esperta da D. Severa não pudera ver já as feições do cavaleiro, mas admirando-lhe o talhe airoso que moldava a casaca de lemiste, induziu pela perturbação da sobrinha quem era o guapo mancebo.
– Sonsa! Cuidas que não o conheci?
– A quem, senhora?
Já livre da surpresa, a moça volveu os olhos em torno como se procurasse alguma pessoa.
– A quem mais, senão a teu marido que passou neste momento! Pior é se me queres fazer de boneca!
– Bem vi um cavaleiro, mas se era o Sr. Vital Rebelo não digo, porque não reparei; estava olhando para outra cousa.
– E o susto que você teve?
– Ah 1… Cuidei que me tinha caído o fio da seda, respondeu a moça mostrando o novelo.
– Estes olhos não me enganam!
– Está bom!
Dizendo isto com um tonzinho de arrufada, Leonor se absorveu completamente no trabalho, apesar de estar quase escuro. A matrona continuou:
– Agora, porque nega você, não sei. Não é tão natural que seu marido, vencido de saudades, quebre os protestos de esquivança e espie as ocasiões de ver sua esposa e senhora? Assim praticava-se antigamente. As damas encerradas em seu castelo viam às vezes passar um cavaleiro misterioso, de viseira caída; ou então à noite calada, pelo claro da lua, ouviam alguma serenata embaixo da sua torre. Batia o coração à castelã: “Quem será?” perguntava baixinho para a aia. E ficava naquele sobressalto da dúvida, se porventura seria o esposo que tornava, ou algum outro cavaleiro enamorado de sua beleza, que neste vai e vem da esperança é que estava o maior gosto. Qual era naquele tempo o marido que depois de uma ausência entrava em casa, como hoje, tão sem graça, que a gente já sabe o dia e hora em que chegam e a cara que trazem?
– Mas, então, nesse tempo as esposas viviam sempre ausentes, ou ainda pior, desquitadas de seus maridos?
– Pois aí estava a galanteria, menina! Amarrem um ao outro, como uma caçamba na corda, duas criaturas, e agora vejam que aborrecimento não é este de se aturarem a todo o instante, que por fim de contas ambos já se sabem um ao outro de cor e salteado; e de mais a mais, está-se vendo que a gente não pode receber as finezas e requebros dos cavaleiros, mesmo nas barbas do homem?… Não tem jeito nenhum. Como era, sim, que. os maridos nunca perdiam o garbo de namorados, e as damas viviam até morrer sempre requestadas com mil gentilezas. Minha bisavó tinha setenta anos quando D. Jorge de Albuquerque, num torneio aqui mesmo. nesta Olinda, lá no pátio do palácio, com o punhal na gorja, obrigou três cavaleiros a confessarem que ela era um bogarim.
– Por causa dos cabelos brancos? observou ingenuamente Leonor.
– Fosse pelo que fosse. Ainda há quem ouvisse falar do quanto era formosa então; e dizem que em mocinha se pareceu comigo.
As observações sensatas de D. Severa suscitam uma reflexão curiosa a respeito da semelhança entre os costumes cavalheirescos, na parte conjugal, e os atuais costumes realistas. Exceção feita de algumas circunstâncias mínimas, e substituídos os torneios pelos bailes, as serenatas pelos presentes, parece que o fundo é o mesmo.
Escutava Leonor a matrona somente com o ouvido esquerdo, porque o direito o tinha ela alerta ao menor rumor de fora. De repente a conchinha cor-de-rosa, meio oculta pelas madeixas castanhas, ardeu com súbito rubor. O som da pata de um cavalo batera ao longe o chão duro e seco da rua.
– Ai, querida tia, me conte do torneio. Então D. Jorge de Albuquerque… é o donatário, o filho de D. Brites, o que pelejou na Índia, não é, tia?… Mas então ele atirou a luva por minha tataravó!… Não é? Como havia de ficar a dama toda cheia de si!… As cores… Quais tinha D. Jorge?… Eram negras as armas, sem dúvida? E o mote?…
Tais perguntinhas caíram sobre a matrona como um enxame de abelhas, e a atordoaram um instante; recobrando logo seu ar solene e cheio de dignidade, começou D. Severa a narração pitoresca das cenas do torneio, em que fora sua bisavó proclamada o bogarim de Olinda.
Entretanto se aproximara o tropel, que cessou de repente por baixo da janela. Se D. Severa estivesse menos preocupada com as reminiscências cavalheirescas da família, não lhe escapara decerto nem essa circunstância, nem o curioso ponto de malha que a sobrinha apesar do escuro acabava de inventar.
Julgo conveniente dar às minhas amáveis leitoras, se as tiver, a explicação desse ponto elegante, porque estou certo a não encontrarão em nenhum jornal de modas.
Faz-se volta sobre a mão direita, enfia-se a agulha sutilmente pela fresta da rótula; um cavaleiro na rua amarra um bilhetinho na agulha e estica o retrós; colhe-se então docemente a volta, e de novo trançando as malhas, remata-se o ponto de laçada. Há atualmente muitos outros pontos de croque mais em voga; porém nenhum tão elegante como aquele.
Muito antes de terminar D. Severa o episódio da bisavó, tinha Leonor rematado seu ponto; e sentindo a fazer-lhe cócegas no seio um papelzinho dobrado, tornou-se inquieta e desassossegada. Nem mais escutava a narração daquela famosa aventura do bogarim, que tão viva curiosidade lhe despertara pouco antes.
Afinal se não pôde conter:
– Eu volto já, tia D. Severa; um instantinho, enquanto arranjo meu toucado que se desmanchou, não sei como.
– Pois juntas iremos.
– Para que ter esse trabalho? Não me demoro nada. Espere a tia.
– Porventura, Leonor, quer você esconder de mim alguma cousa?
– Eu?.. . Esconder!. .. Ora que lembrança esta agora da tia!
– Pois está você com tantas partes por uma cousa á-toa!
– Já não digo nada; a senhora tia faça como for de seu gosto.
– Venha então para a alcova se compor.
– Não é mais preciso; aqui mesmo arranjarei.
Contrariada, Leonor alisou os cabelos com as pontas dos dedos e deu pelo aposento alguns passos a esmo, indecisa sobre o que havia de fazer, e ao mesmo tempo impaciente de tomar uma resolução.
Soaram passos no corredor; entrou um escravo com uma candeia de garavato para acender o lampião da sala; e logo em seguida o dono da casa, que naquele momento chegara da rua.
Representava o Capitão André de Figueiredo ser homem de trinta e sete anos; toda a sua pessoa respirava exuberância de energia e arrebatamento, que dizia com a organização musculosa e o adunco perfil.
Ao entrar, dardejou um a outro canto da sala, olhos que não buscavam somente, mas iam já cheios de iras para afrontar o objeto procurado. Reconhecendo que estavam sós as duas senhoras, sofreou um tanto os ímpetos; e se dirigiu para elas dando as boas-noites.
– Traz-nos alguma boa nova, Capitão André?
– Nenhuma, senhora prima.
– Disso já eu sabia que era bem escusado perguntar-lhe, porque nada havia de saber. Os homens de agora assim é que nos tratam, de resto. Já se foi o tempo da galanteria, em que as damas eram as primeiras consultadas sobre os negócios; e não se saiam por isso os cavalheiros mal das empresas, antes não sei que diga, que muito melhor do que hoje em dia, e a prova ai está na nossa terra.
Aproveitou Leonor o ensejo para ganhar furtivamente a alcova. Como de costume crepitava na cantoneira aos pés da Virgem a luzinha da griseta de prata, que era a devoção da moça, lá por uma certa promessa que fizera.
O bilhete que tantas cócegas lhe fizera, continha poucas palavras:
Senhora, que esposa não devo chamar quem se roubou ao Juramento que a fizera minha. Forçoso é que vos veja e fale pela derradeira vez. Se de todo ainda não se apagou em vosso coração aquele afeto, que já vos mereci, e antes nunca o merecesse, por vosso bem e meu sossego, interceda ele em meu favor para que obtenha de vossa crueldade, essa mercê.
Devorou a moça com os olhos primeiro, depois com um alívio de beijos, a carta; e cerrando-a entre as mãos cruzadas, levantou para a Virgem uma prece eloqüente, ainda que muda. Outro pensamento, porém, a reclamou; desejava responder; e as dificuldades lhe ocorriam à mente.
Atualmente, não há mocinha de dez anos – outrora se chamavam meninas às de vinte – não há, dizia eu, bonecrinha de carne e osso, que não tenha sua papeterie com papel de vários tamanhos, desde o de palmo para cartas de negócio até o de polegada para os bilhetinhos açucarados. E não só papel como sobrecartas, fechos emblemáticos, lacres perfumados, penas diamantinas, areia de ouro, enfim todo o arsenal de ninharias indispensável à ciência epistolar, a mais transcendente e sublime deste século.
A bem dizer, a carta é a mais poderosa alavanca do progresso: nem o jornal lhe chega. Quem se propusesse a estudar sua fisiologia e sistemar as espécies de que são principais a carta de empenho, a circular dos candidatos, a de crédito, a de namoro, de felicitação, de cumprimentos, a reservada, reservadíssima e confidencial, escreveria uma bela obra, um livro prático, dos mais justamente apreciados na atualidade. E faria fortuna o autor, principalmente se o governo lhe ficasse com a metade dos exemplares, no intuito de promover a colonização.
No tempo desta história, a ciência epistolar estava ainda no embrião. Cada casa, e das fidalgas e abastadas, era mobiliada com um tinteiro único, mas respeitável.
Esse traste importante, acompanhado dos seus acessórios, o areeiro, duas penas de ganso e uma hóstia ou obreia encarnada, estava debaixo de chave e sob a guarda imediata do dono da casa, como o responsável pela honra e segurança da família.
Lembrou-se, portanto, Leonor da resposta por escrito, somente para reconhecer a impossibilidade em que estava de usar dela. O outro meio, mais corriqueiro, o dos recadinhos, bem sabia ser impraticável, assim de repente, em uma casa onde a traziam espiada. Sôfrega, correu os olhos por todos os cantos e móveis do aposento, procurando um meio, ou pelo menos uma inspiração.
Com a cabeça inclinada em atitude pensativa, engastando entre os dentes de pérola a unha rosada do polegar, e estremecendo de impaciência, estava encantadora a donzela. Dir-se-ia que ela esperava tirar da coroa daquele dedinho mimoso o fio do enigma, como costumava puxar com os dentes a ponta da linha para desembaraçar a meada.
Eis que desperta com um pulinho de contentamento. Estende o seu lenço de batista sobre o donzel, e tirando uma agulha de bordar do açafate de costura; picou a veia azul do braço esquerdo.
Uma gota, e da mais fina púrpura, borbulhou na tez alva e acetinada. Aí molhando a miúdo a ponta da agulha, pôde escrever na cambraia estas palavras: amanhã na cerca.
Machucou o lenço na mão, que mal o escondia, e disfarçando esta entre os fofos da saia, voltou à sala onde encontrou ainda em conversa animada D. Severa e o capitão. As outras senhoras da casa estavam sentadas em roda de D. Lourença, respeitável matrona pernambucana, que muito se avantajou nas letras e virtudes. Era irmã de André de Figueiredo, e viúva.
Achando já reunida na sala a família, à qual esperava antecipar-se, hesitou a moça; a resolução porém não se fez esperar. Acercou-se do grupo, dizendo:
– Quem me dá um lugar?
E sem esperar resposta:
– Está bom; tenho meu estrado.
Encaminhou-se então para a janela com o pretexto de arrastar o estradinho em que estivera sentada à tarde. Do primeiro lance viu ela parado em frente da casa um vulto. Observando que não reparavam, abriu rapidamente a aldraba da rótula e arremessou o lenço.
Ao voltar-se de todo para melhor empurrar com o pé o estrado, viu em frente André de Figueiredo, que se aproximava dela:
– Sabe quem andou hoje por Olinda, Leonor?
– Como posso saber, eu que daqui não saio nunca? respondeu a moça trêmula.
– O Vital Rebelo!
– Não disse eu? acudiu D. Severa.
– Bem minha tia teimava que o tinha visto! continuou Leonor.
– Que terá ele vindo buscar? perguntou D. Lourença.
– Não sei; mas queira Deus não seja o que suspeito! replicou o capitão com surda voz de ameaça.
– Que vem fazer? acudiu D. Severa. Pois, Lourença, não tem ele destas bandas a dama de seu coração?
– Tomara eu que me ele deixe sossegada! balbuciou Leonor.
Pálida e demudada, foi a moça tomar lugar na roda das senhoras, disfarçando para esconder seu terror. Mil vezes arrependida do que fizera, bem desejava, se fosse possível, resgatar com um ano de sua vida aquele momento de irreflexão. Quantas desgraças talvez não ia causar a sua imprudência?
CAPÍTULO XII
ONDE SE ENCONTRA NOTÍCIA DO SOFÁ QUE TIRAVA O SONO AO GOVERNADOR
Era noite caída.
Iluminou-se a rua com o clarão dos fachos agitados pelos pajens, que precediam os nobres cavaleiros e suas damas.
Das bandas da Misericórdia e Varadouro, retroava o chão com o estrupido de animais que se aproximavam; e com pouco levantou-se debaixo das sacadas o burburinho que produz o vozeio soturno de muitas pessoas.
Eram bandos de cavaleiros, que chegavam acompanhados de seus pajens, e alguns precedidos de palanquins, onde vinham as donas e filhas dos nobres moradores de Olinda, para o serão quotidiano das casas do Capitão-Mor João Cavalcanti.
Ficavam estas casas à direita e parede-meia das outras em que morava o Capitão André de Figueiredo; eram, porém, mais vastas e avantajadas, assim na forma da construção, como no custo das alfaias e móveis que a adereçavam.
Ocupava dois terços da frente a peça principal, a casa do sofá, larga sala em quadro, com as paredes revestidas no terço inferior de almofadas de brasilete e o resto de colgaduras de pano de rãs.
De meia volta em abóbada, era o teto pintado a fresco, com tarjas douradas que cercavam os vários painéis ovais dispostos em simetria pela precinta e representando episódios guerreiros da descoberta de Olinda, ou frutos e aves de Pernambuco.
No centro do teto, em obra de talha, via-se enroscada uma serpente, mastigando nas presas a corrente donde pendiam uma grande lâmpada de prata cinzelada com sete luzes, que bastavam para esclarecer o vasto aposento.
Às quatro janelas rasgadas para a rua correspondiam três portas de comunicação interior, sendo a entrada pela câmara da direita donde se descia ao vestíbulo, e ficando à esquerda, ao longo da parede, o sofá.
À noite de ordinário conservava-se fechada a porta larga do fundo, que era do oratório; salvo quando se tinha de festejar algum santo de particular devoção da casa, como era o Evangelista, seu padroeiro; ou quando celebravam-se casamentos e batizados de pessoas da família.
Nos quatro ângulos da ampla sala desciam até a meio da parede troféus com lambeis volantes, em cuja apiciadura ressaltavam suspensos à cornija quatro escudos em metal com os brasões de aliança que o capitão-mor tinha o direito de trazer e eram os dos Coelhos, Barros, Sousas e Bezerras.
De jacarandá preto, trabalhado a torno, e de sola vermelha com pregaria de metal amarelo, era toda a mobília. Nos espaldares das cadeiras coroados pelo elmo aberto em obra de talha, esculpira destro artífice o escudo das armas do capitão-mor.
A essa casa concorriam regularmente todas as noites os moradores principais de Olinda, parentes pela maior parte ou aderentes do capitão-mor, para colher informação das cousas da governança e andamento da república; e também combinarem os melhores alvitres na estreiteza em que se achavam, com os negócios da terra bem intrincados, e o governador tão desviado do bom caminho pelo mau conselho dos que o cercavam.
Era João Cavalcanti naquele tempo o chefe da grande família Cavalcanti, que em Pernambuco data da fundação da colônia, e provém de troncos nobilíssimos; pela linha materna saíram da estirpe dos Coelhos e Albuquerques, flor da fidalguia portuguesa, e pela linha paterna remontam a Arnaldo Cavalcanti, que se aliou na casa dos Médicis, a mais ilustre de Florença; de cuja linhagem nasceu Filipe Cavalcanti que se passou a Pernambuco, nos primeiros tempos da povoação.
De grandes posses, senhor de muitos engenhos, vivendo à lei da grandeza, com todos os regalos da vida; bravo, cortês e generoso, embora presumido de sua fidalguia; liberal até à prodigalidade, de bolsa aberta sempre para quem a ele recorria: era de razão que tivesse o capitão-mor grande séquito não só entre os moradores nobres, como na gente miúda da terra.
Não havia, entre os mazombos insignes daquele Pernambuco, outro mais acatado do que este, e tão poderoso; pois só com os seus escravos e os acostados de seus engenhos, sem falar das suas ordenanças e dos inúmeros sequazes que tinha pelos povoados, podia levantar da noite para o dia um bom terço de tropa mais decidida, senão melhor armada, do que a milícia do governador.
Mazombo era o título popular que tinham naquela época os principais, entre os nobres pernambucanos. A história, que nos conservou o vocábulo, hoje caduco, descuidou-se de transmitir a origem; de modo que, a não ser o precioso manuscrito desta crônica, não poderia o Instituto Histórico, apesar de profundas e sábias investigações, assentar opinião segura em tão escabroso assunto.
Tinha a destruição dos Palmares divulgado boa cópia de nomes africanos, empregados pelos negros na sua república. Zambi chamavam ao cabo supremo, a quem todos obedeciam; e muzambi, eram os grandes oficiais, do serviço do maioral, e seus ministros.
Por desprezo, entraram os mercadores portugueses a alcunharem os nobres pernambucanos de mazombos, como para inculcá-los de cabecilhas de negros, querendo com isso lançar-lhes o labéu de gente de cor. É peco esse de nossos irmãos, tine mais tarde inventaram com a mesma intenção o epíteto afrontoso de pé-de-cabra.
Repetiu-se o que sempre sucede em tais casos. Os filhos de Pernambuco, e especialmente a gente de cor, trocando em honroso mote o nome que lhes haviam lançado os contrários como afronta, timbravam em designar por mazombos as pessoas principais da nobreza pernambucana; e tornou-se o titulo de mazombo insigne a maior glória a que poderia aspirar um fidalgo na terra de seu nascimento.
Quando entrou a família de André de Figueiredo, já achou a sala povoada dos parentes e vizinhos que eram certos ao serão.
Atravessando por entre as mais pessoas, que se moviam no aposento para tomar lugar, ou recostarem-se às sacadas das janelas, o bando chegado por último aproximou-se do sofá.
Não era qualquer sofá o da casa do capitão-mor, nem se parecia em nada com o móvel tão conhecido e corriqueiro, que hoje em dia trasteja a mais pobre das salas de visitas, ou alfaia o rico palácio, com a diferença apenas da madeira e da forma elegante.
Naquele tempo esse requinte de luxo oriental, que os portugueses trouxeram de seu comércio das Índias, poucos se animavam a gozá-lo; e não tanto pelo custo das alfaias, como pela espécie de pompa real, que tal uso comunicava ao aposento. Nas colônias, porém, nunca as pragmáticas foram tomadas ao sério; os ricos moradores ou fidalgos das capitanias zombavam dos ciúmes da majestade e de suas leis suntuárias.
Corria no fundo e ao longo da parede um largo estrado, com alcatifa de veludo escarlate e ressalto de dois degraus sobre o soalho da casa, guardado todo ele por um esparavel de brocado azul, que se elevava em cúpula suspensa à parede com um florão de bronze.
Na face exterior dessa cúpula apainelava-se o escudo oval dos Cavalcantis, com as armas de prata coticadas de negro, em campo de pala, prata no fundo, vermelho em cima, floreteado também de prata. Por timbre um cavalo com asas, mãos suspensas, pés sobre o elmo, volante por entre chamas.
Sobre o estrado havia uma camilha de couro rendado em arabescos e flores que deixavam coar-se o ar pelos recortes; fresco ripanço que em clima ardente como o de Olinda convidava os lassos membros ao repouso. Era brasil a madeira do custoso móvel, e as pregarias da melhor prata.
Em frente à camilha e tomando-lhe a vista, um bufete coberto por cima de charão da Índia com embutidos ou marchetarias, e fechado dos três lados de fora por bambolins de couro de Moscóvia com iluminações de prata. À volta do bufete, algumas cadeiras e tamboretes rasos ofereciam assentos aos poucos admitidos nesse lugar de honra.
No momento em que se aproximavam D. Lourença Cavalcanti e André de Figueiredo com os de sua casa, achava-se recostado na camilha, com o corpo derreado sobre a almofada de couro, um velho de sessenta anos, alto, magro, de feições descarnadas, olhos vivos e cintilantes, cabelos grisalhos, e tez acobreada que denunciava o sangue americano.
Era o Capitão-Mor João Cavalcanti.
Naquele instante acabava ele de apear-se à porta da casa, donde partira quatro horas antes para acabar a tarefa começada pela manhã de correr os engenhos próximos da cidade: lida com que se entretinha, quando não havia outra cousa em que passar o tempo.
Depois de cinco ou seis léguas a cavalo pelas margens do Capiberibe, pode-se avaliar da boa fadiga e apetite que devia trazer. Assim ia ele acomodando-se na camilha, com as pernas estendidas pela prateleira do bufete, enquanto não lhe punham ali mesmo a ceia.
Nesse intermédio, iam chegando os da obrigação de todas as noites, que logo se encaminhavam para o estrado a saudá-lo e desejar-lhe as boas-noites. Aos parentes mais moços dava ele por antigo costume a mão a beijar; fossem descendentes ou simplesmente colaterais remotos e talvez improvisados, nenhum prescindia de lhe tomar a bênção, e julgariam ter decaído do seu agrado, se lhes ele recusasse aquela mostra de submissão e respeito.
As pessoas mais qualificadas tomavam lugar no sofá, junto ao bufete; e aí durante a primeira parte da noite, praticava-se acerca das novas mais importantes do dia, e preparavam-se os futuros sucessos que deviam perturbar o sossego da capitania.
João Cavalcanti pouca parte tomava nos planos e alvitres; o mais do tempo ouvia, e quando instado para dar seu aviso, sempre eximia-se com a velhice, que já lhe tinha gasto a têmpera. E não era por modéstia, se não por um pressentimento da verdade que o dizia.
De feito, nesse caráter de antes quebrar que torcer relaxara-se a rígida fibra e, quiçá, pela tensão que lhe dera outrora uma vontade impetuosa e o gênio em extremo arrebatado. Chegara a ponto que, fora de seus hábitos inveterados, os quais já tinham adquirido força mecânica e materialidade de instintos, não era mais homem para decidir-se por si, no mais importante negócio da vida.
Não acudisse alguém para incutir-lhe uma resolução, que ele deixaria ao azar o encargo de remover a dificuldade.
É do homem perecer assim aos poucos, à semelhança da árvore, que em se aproximando do termo de sua duração, começam-lhe a tombar as folhas primeiro, após os ramos, e por último fende-se o próprio tronco e esboroa carcomido pelo tempo. Da mesma sorte ao velho, morrem-lhe os cabelos, quando lhe despem a fronte, ou encanecem; despovoa-se a boca, e a obra melhor do Criador não é mais do que uma ruína que de dia em dia se desmorona e desfaz no pó de que se formou.
Conservara o capitão-mor sua integridade física, e aos setenta anos era um velho ainda verde e rijo. A eiva ali penetrara no cerne; fora ao moral, e consumira as poderosas faculdades, que outrora animavam esse organismo, deixando-lhe apenas o exterior.
Com especial demonstração recebeu o capitão-mor a sua sobrinha D. Lourença Cavalcanti; era a pessoa de seus extremos.
Depois que lhe deu a mão a beijar, e a abraçou com muito carinho, sentou-a perto de si na beira da camilha.
– Então, D. Lourença, sempre quereis que se rompa, filha? perguntou a rir e com maneira afetuosa o velho.
– O que eu quero, bem o sabe o senhor tio, que é ver esta nossa terra livre da praga de aventureiros que a infestam, e restituída a seus legítimos senhores.
– Bem falado, D. Lourença! exclamou Leonardo Bezerra.
– Melhor seria para todos que isto se fizesse sem briga, nem contendas. Mas se não pode ser por outra forma, e força é defender e sustentar no campo nossos privilégios e forais, os nobres de Pernambuco devem lembrar-se que descendem dos que restauraram a pátria e à liberdade esta capitania, muitos dos quais ainda aí estão como o senhor tio, e Deus os conserve ao nosso amor por muitos e dilatados anos, para exemplo aos seus e estranhos.
– Lembrem-se também as damas pernambucanas do que devem à terra onde floresceram uma D. Clara Camarão, e uma D. Maria de Sousa, acudiu em tom espevitado D. Severa.
– Ai, que esta ainda é mais guerreira que a D. Lourença, pois não se contenta só com instigar, mas quer ela mesma sair a campo, e batalhar! Assim D. Severa! exclamou o velho capitão-mor galhofando.
– Por mim já teria lançado um cartel a D. Sebastião de Castro; e em vez de estar aqui todas as noites a levantar planos, que é um não acabar, e nunca vão por diante, eu houvera chamado o governador em repto de honra a pé, a cavalo, na estacada, ou em campo aberto…
– Olá de dentro!… gritou D. João; tragam-me já daí sem detença a armadura de meu avô, para esta cavaleira andante. Quanto a nós, senhores. vamos ver se nos dão uma roca ou uns bilros, e nos arrumamos no estrado a dobar o algodão e a fazer rendas. Porque, as cousas da República, cá a D. Lourença as destrinça melhor que um letrado; e no que toca a assunto de guerra, lá a D. Severa com três botes de lança põe tudo em debandada.
Já a esse tempo estavam os assentos próximos ao sofá ocupados pelas pessoas do costume.
Das principais eram, além das já nomeadas, o Coronel Domingos Bezerra Monteiro, o Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti com os dois filhos, Cosme e Manuel, alferes ambos, o Sargento-Mor Cristóvão de Holanda, o Capitão-Mor Matias Coelho Barbosa e o licenciado José Tavares de Holanda, os quais todos aplaudiram com risadas a saída do velho Cavalcanti e mofaram dos recachos marciais de D. Severa.
Apareceram na sala os pajens, mas não acudindo ao chamado, senão a porem a mesa para a ceia, que estava a pingar a hora canônica.
Estendida sobre o charão uma colcha de damasco de seda franjada, pois o capitão-mor não admitia, como já era uso, comer sobre roupas de linho ou algodão, cobriu-se a mesa da fina louça de porcelana, com ramagens verdes e tarjas douradas. O serviço era todo ele de prata lavrada, com o brasão da casa.
Foi lauta a ceia. Vários assados de vitela, peixe e aves, peças de caça do monte e volateria, carvonadas de carneiro e galinhas, chacinas de porco e uma grande torta de mariscos, formavam a parte suculenta da refeição: o que bem se podia chamar a armação do edifício culinário.
Havia demais, para debicar-se nos intervalos e preparar o estômago para novo assalto, morcelas de Arouca, enchovas, pastelinhos de cabidela, o picante caril, azeitonas, alcaparras, e outras gulosinas naquele tempo inventadas pela arte cibária para regalo dos glutões.
Entre essas iguarias da cozinha portuguesa apareciam os novos quitutes brasileiros, primícias da nacionalidade que já despontava nesse tão importante mister da vida, como em tudo o mais. Viam-se ali os covilhetes de paçoca e inhames, as muquecas enfolhadas, os bolos de cará, acepipes ensinados pelos índios, sem falar das corbelhas de filigrana de prata cheias das mais saborosas frutas do país, ananases, pinhas, mangas e bananas.
Também a par dos bons vinhos das Canárias e do Reino, figurava o mosto do jenipapo e a garapa; assim como não se desmerecia entre os pães de várias formas e receitas quais o mimoso, o sovado e o comum, a nossa farinha d’água, e as alvas tapiocas, em lindas cestas de palha matizada, trabalho dos caboclos.
Acabavam os pajens de pôr a ceia e preparavam-se para servir aos convivas, quando notou-se do lado da entrada certo alvoroço, ainda que mui ligeiro, entre as pessoas ali agrupadas.
Dera causa a essa animação a chegada de um cavaleiro, que reproduzia-se em mesuras a um e outro lado, para logo após desfazer-se em mil abanicos e finezas acompanhadas de partes mágicas. A cada um saudou com apuros de cortesia e umas inflexões de talhe, por modo requebradas, que tinha jeito de se estar enroscando pela gente.
– Ai. chega o Filipe Uchoa! disse o capitão-mor que lobrigara o cavaleiro através de suas floretas. Ainda bem! Cuidei que o não teríamos hoje à ceia!
– Não lhe falta que fazer, acudiu o Sargento-Mor Bezerra; mas de tudo se desempenha a tempo e pelo melhor. Não sei de outro de mais conselho, nem capaz de tanto e em tão poucos anos.
Expandiu-se o Capitão-Mor João Cavalcanti com o elogio feito ao sobrinho.
– Chegais a ponto para a primeira investida, Uchoa, como bom cavaleiro que sois.
– Aprendi em boa escola, como não quero que a haja melhor, em toda a cristandade, respondeu o Uchoa, afagando a vaidade do velho.
CAPÍTULO XIII
UM RASCUNHO D0 SECRETARIO DA CAPITANIA COM PRESUNÇÃO DE ESTAMPA
Arrastando os tamboretes, acercaram-se os convivas da mesa, ou tábua, como diriam João de Barros e Frei Luís de Sousa, com um de seus tão freqüentes galicismos.
Filipe Uchoa tomou o seu lugar do costume, à esquerda. de D. Lourença Cavalcanti; e passou logo a exercer o seu mister de trinchante, no que era de consumada perícia. Muitos lhe invejavam, mas nenhum ousava disputar-lhe o honroso mister, em que fazia as vezes do dono da casa, como o parente de seu especial afeto entre os homens, da mesma sorte que D. Lourença entre as damas.
– Senhores e parentes, assaltemos este castelo roqueiro que nos está afrontando. À brecha, Filipe Uchoa! Depois veremos o que se há de fazer ao Brum e às Cinco Pontas, que são os baluartes do governador.
Afincara o bacharel a faca do trincho no empadão de caça; e cortou para o tio uma naca formidável, servindo em seguida aos outros convivas, na proporção da valentia gastronômica de cada um, o que ele conhecia pela prática do ofício e experiência adquirida.
– Não tivesse ele outros baluartes senão esses, que não seria façanha rendê-lo com os fronteiros que temos, observara o Uchoa.
– E quais outros cuidais que ele tenha, senhor bacharel?
– É principal o ouro dos mascates, que. vai semeando a traição entre os naturais, de sorte a não se poder já contar com a fé do mais seguro.
– Se até ao Sr. Capitão-Mor João de Barros, nosso tio, se atreveram os pícaros a fazer-lhe um, tiro à queima-roupa, mas de mil cruzados, que doutra espécie de bala não entende nem quer saber a cáfila dos forasteiros, atalhou o Capitão André de Figueiredo.
– Já não tornam os tempos, em que davam os naturais exemplo de uma constância e heroísmo que não têm inveja aos mais decantados das antigas eras, exclamou com fervor o licenciado José de Holanda. Aqueles eram pernambucanos, e sabiam servir a pátria e a religião, que livres desamparavam a casa e a família para não se curvarem ao jugo de hereges, e cativos rejeitavam a liberdade, porque tinham em mais valia do que tão precioso dom, guardar a fé a seus senhores.
– Depois que a ralé da mascataria, mal pecado nosso, lastrou por esta terra, já ela não pode ser o que foi, o Pernambuco de nossos maiores; nem afogado como anda de más ervas e pragas, podem mais aí medrar as virtudes, que rebentavam outrora com tamanho viço.
A pouco e pouco foi caindo a prática, embargada da tarefa de destrinçar no prato as várias iguarias, mais agradável e avisada naquele momento do que a de razoar sobre cousas já tão discursadas.
Terminado o primeiro pasto, retiraram os pajens as iguarias que transportaram à casa de jantar, onde já estava posta a mesa para o restante da companhia.
Entrou então a última coberta dos doces e conservas de açúcar para o dessert, como já se dizia nessa época à moda francesa, em vez de postre.
Veio o infalível manjar-branco; em seguida as castanhas de caju confeitas, as tortas de maturi e creme, as trouxas d’ovos tão decantadas pelo bom Filinto, as conservas de frutas e a deliciosa cocada em tigelinhas de cristal, tudo acompanhado de vinho Palhete e de Cândia.
No centro campeava uma pirâmide de prata lavrada, formando por andainas uma pinha de beliões de abóbora e batata, pucarinhas finas de geléias de araçá e pitanga, trebelhos ou flores de alfenim, e as saborosas queijadinhas, preparadas pelas mãos mimosas de D. Lourença para o velho capitão-mor, o qual lambia os beiços de gosto, depois que devorava uma boa dúzia delas.
Era nessa ocasião da sobremesa que. os principais dos parentes, conhecidos como os de melhor discurso e. conselho, ficavam sós entre si; porque o mais da assembléia acudia por sua vez à ceia, que já os estava esperando na casa de jantar, presidida por Álvaro Cavalcanti, o filho do capitão-mor, um desbragado que levava a vida a pautear, não cuidando senão de jogo, mulheres e comezainas.
Por isso achava-se mais a gosto ali em liberdade e fora das vistas do pai, do que no sofá, onde nada lhe interessava do que se tratava, e sentia-se tomado de uma como bebedeira de aborrecimento e sono.
Antes que se entre a tratar de negócios graves, aproveitemos a curta pausa para assentar os traços mais salientes do bacharel Filipe Uchoa, que teve parte mui proeminente nos sucessos daquele tempo.
A figura, serviria um furo abaixo, e com diferenças mínimas, o mesmo molde por onde se tirara o secretário do governador, o Capitão Barbosa de Lima. Por primeiro contraste logo se notava que neste a cabeça era sobre o largo, enquanto no outro se alongava direita; no que porventura alguém entendido na abstrusa ciência do homem verá um sintoma de que no bacharel dominava exclusivamente o prurido de subir-se ao mais alto, ao passo que no secretário a ambição não lhe tolhia as expansões generosas.
Afora essa particularidade, no mais era Filipe Uchoa o escorço de Barbosa de Lima, de modo que ver um, tanto valia como ter conhecido o outro em moço, antes que os anos bem surtidos lhe houvessem dado todo o corpo. Da mesma avantajada e pernalta estatura, com uma calva que no secretário chegara ao apogeu, e no bacharel se estreava tão prometedora como a sua entrada nos negócios; dotados da mesma abundância de gesto e mobilidade de compostura, bem podia-se tomar estes dois nobres pernambucanos como o primeiro e segundo esboço lavrado em gesso para servir à fundição de um molde.
Nas maneiras, em que ambos primavam à lei de corteses, reparando-se bem, lá se lobrigava um cambiante. Assim, no secretário a afabilidade espraiava-se como as ondas de um manancial perene; no. bacharel, ao contrário, saía aos esguichos, quanto bastava para filtrar na vaidade alheia. Era sincero o primeiro, e obedecia ao impulso de sua natureza; ao passo que no segundo havia mais afetação do que índole.
Não perdoava Filipe Uchoa ao Barbosa de Lima o ter este conseguido granjear a confiança do governador e encartar-se no lugar tão cobiçado de secretário.
Trabalhava pois, e com afinco, para derribá-lo do posto, e rendê-lo nele, trazendo D. Sebastião à boa causa, de que andava transviado. Se, porém, fosse preciso, para entrar nas graças do homem, algum arranjo com os mascates, salvo o direito de meter-lhe os pés a seu tempo, é mui de crer que não hesitasse o bacharel, como hábil político.
Nesse empenho, muito se valia da boa sombra que lhe davam o nome e fama do tio, o Capitão-Mor Cavalcanti; e para melhor o levar, não se esquecia de granjear a boa vontade de D. Lourença, em quem o velho principalmente empregava o seu afeto.
Era de ver como refinava galanterias no favonear as presunções da prima que se tinha na conta de uma Duquesa d’Alba, capaz de empunhar as rédeas do governo da capitania, se fosse necessário, para o que se julgava com mais letras e melhores bofes do que toda a parentela junta e refundida.
Para acabar o paralelo entre os dois competidores, falta ainda um traço. Era o secretário homem de engenho superior e filho de suas obras; donde vinha o não sentir inveja do mérito alheio. O bacharel, garfo de extensa parentela, tinha o talento preciso para manter-se na altura em que o plantara a fortuna, e desconfiado de que não podia subir além, cuidava que só abatendo os outros, conservaria a proeminência.
Ninguém se queixara jamais de um ato menos leal do secretário, embora não faltassem muitos a lançar-lhe a pecha de pendores e mobilidades nos alvitres, como modo de ver as cousas. Do bacharel nada se falava acerca de volubilidade, porque sempre esteve ele adstrito ao feudo da família e jungido ao carro da fortuna; mas a cópia que dá a crônica quanto ao refolho, é de tão insigne, que chegava ao ponto de enganar-se a si próprio.
Tocava ao termo o pospasto no sofá, como bem o indicava a postura do capitão-mor, já um tanto derreado sobre o espaldar do espreguiceiro, pelo qual. ia-lhe aos poucos resvalando o mal sustido corpo.
Aproveitou André de Figueiredo o ensejo da privança para tratar do assunto de ponderação, que o trazia preocupado desde o começo da noite.
– Meu tio e senhores parentes! Sabereis que tenho para propor à vossa prudência consumada, negócio de muita e grande monta.
E com estas palavras que a todos pôs de aviso, tirou o capitão do peito do gibão um rolo de manuscrito, que empunhou na destra à guisa de bastão de comando.
Não escapou esse meneio do primo a Filipe Uchoa, que era perito na arte de tirar pelo semblante as inquirições do que ia lá dentro. E todavia o gesto de Figueiredo não era senão um assomo, rijo porventura, de seu ânimo franco e resoluto.
Distraído, como parecia, a contemplar o topázio líquido de um cálix de Palhete que ia gostando aos goles, relanceou o bacharel por cima dos óculos um olhar oblíquo a uma e outra banda.
Esqueceu esse pormenor, como porventura outros que se irão pelo diante tirando a limpo. Trazia óculos o bacharel; andaço este, que a lermos por Montesquieu,. grassava naqueles tempos grandissimamente entre os portugueses, pela veneração que de todos granjeava.
Nariz cavalgado por um, par de cangalhas, no dizer do malicioso francês, por força que era um nariz sábio, credor do maior respeito, torre de ciência e promontório de prodigioso engenho. Ora, a probóscide do bacharel, se tais epítetos não existissem, os inventaria.
– Não ignoram V.ces, meu tio e senhores parentes, como têm corrido os tempos na esperança traidora dum remédio que não chega e talvez nunca chegará, pois não é de hoje que estão no costume em Lisboa de nos esquecerem quando carecemos de defender nossa liberdade e pátria; mas havendo algum dote ou qualquer outro subsidio, sem falar das fintas ordinárias, então sim, é de ver quão prontos se lembram, e os rendimentos e termos amistosos com que o fazem.
– Tem carradas de razão, André de Figueiredo! disse o Sargento-Mor Bezerra.
– É tempo já que venhamos a uma congruência feliz para os negócios de Pernambuco, ameaçado de completa ruína pela soberba e aleivosia dos mercadores do Recife. E como o lembrar é para todos, enquanto que o avisar só cabe a poucos, e esses de muito conselho e experiência, pareceu-me comunicar-vos o que entendo sobre estas cousas, em que andam. empenhados nossos brios de pernambucanos, tão pisados nestes últimos tempos, e o respeito a uma pátria ilustre, que não havemos de consentir se torne feitoria de mascates.
– Qual é pois vosso alvitre, Capitão André de Figueiredo? disse o velho Cavalcanti já de todo derreado contra o espaldar. Dai-nos a saber; contanto que não seja algum partido extremo.
– Para o sujeitar ao voto do tio e de todos os senhores e parentes, que ministros melhores não podem ter os negócios de Pernambuco, o trouxe eu; e não é outro senão o de rompermos de uma vez em defesa da pátria e da liberdade pernambucana, intimando com antecedência ao governador esta resolução, para o caso de que prefira ele arrepiar do mau caminho e enxotar de ao redor de si a súcia dos mascates. E fio-vos eu, que em tendo a cousa por certa, ele o fará. Se porém persistir no seu erro, recambiemo-lo a Lisboa com um manifesto a El-Rei em o qual lhe exporemos nossos agravos e as razões maiores que nos levaram à forçosa necessidade de despedirmos desta terra o mau ministro que lhe pôs por governador. O manifesto, senhores e parentes, aqui o tenho já; fê-lo a rogo meu, nosso amigo, o licenciado Davi de Albuquerque.
Abriu então André de Figueiredo o rolo de papel que tinha fechado na mão esquerda enquanto falava; e mostrou em roda o manuscrito, do qual se preparava a dar leitura aos circunstantes.
Nesse momento o bacharel Uchoa, que ouvia ao capitão com um sentido grave e atento, enfrestou por cima das vidraças um olhar significativo a D. Lourença, e temperando ao de leve a garganta, propôs-se a dar seu voto:
– Senhores meus e respeitáveis parentes, aqui reunidos à sombra do venerável chefe de nossa família, disse o bacharel fazendo com a cabeça a vênia do costume ao capitão-mor, que já então se achava em perfeita diagonal. Ninguém que tenha meditado as cousas do governo, como elas merecem, desconhecerá a verdade de quanto expôs nosso primo, Capitão André de Figueiredo, e a urgência do mal que pede remédio pronto; pois se lhe tardamos com ele, é perder logo toda esperança de cura.
Foi este o exórdio da arenga que o bacharel trazia preparada para o caso. Pelo Cosme Borralho, que era da sua roda, tivera ele notícia e comunicação do manifesto encomendado por André de Figueiredo ao licenciado Davi de Albuquerque. Atinando desde logo com o pensamento do primo, e não lhe sofrendo a vaidade levasse outro nos conselhos da família as lampas que pretendia somente para si, tratou de pôr cobro ao que julgava uma usurpação.
Nesse propósito entendeu-se com D. Lourença, que era nos últimos tempos a alma viva do capitão-mor, seus olhos e seus ouvidos.
Soberba, imperiosa, rendia-se contudo a matrona pernambucana à admiração e encômios, de que a trazia constantemente incensada Filipe Uchoa, sem que entrasse nesse rendimento o mais remoto vislumbre de ternura. Tal encanto achava D. Lourença em sentir-se adulada pelo mancebo apontado como o grande luminar da família, que raríssimo era recusar-lhe sua condescendência.
Desta vez o caso parecia árduo, pois cifrava-se em induzir D. Lourença a contrariar um plano do próprio irmão, e o de mais estimação. Mas tão ao vivo lhe representou Uchoa os perigos com que o traço imprudente de André de Figueiredo ameaçava a ele primeiro, e a todos os seus, que nem hesitou a matrona, e tomou a seu cargo preparar o capitão-mor.
Depois do intróito, formalizara-se de novo o bacharel. Dando ao vulto mais outra camada de gravidade, começou a cortar o ar ante si com o impulso e retração do braço, como se preparasse um escoadouro à exuberância de sua palavra. Saiu então uma dessas arrancadas de eloqüência, nas quais se estão mostrando os puxos da memória para dar à luz as idéias, e o enfaixamento das pobres criaturinhas mal nascidas.
Serviu de tema ao bacharel a resenha dos acontecimentos, que se tinham sucedido desde a posse do Governador Sebastião de Castro; e isso com pormenores de fatigar e minudências fúteis que nada faziam ao caso; mas entendia lá para si o bacharel, que fazia prova de engenho profundo e investigador, catando semelhantes argueiros para soprá-los nos olhos dos outros.
– Tal é o estado a que chegaram as cousas em Pernambuco, e quanto mais grave, a não ser nossa prudência e moderação! Em tão grande estreiteza havemos de ficar indiferentes e entregar a pior azar a sorte nossa e da pátria? Por nenhum modo; carecemos de voltar o rosto, e empenhar quanto pode e vale a nobreza pernambucana para repor as cousas no seu assento e trazer a bom termo as diferenças que tamanho dano causam. Mas o meio de o alcançar?…
Nesse momento, à porta de entrada fronteira ao sofá, apareceu o vulto do Lisardo e cresceu pela casa adentro. Ao que se via, o poeta da família não estava nos seus eixos; alguma lhe acontecera que o trazia espantadiço. Avançava, não com sua habitual macieza, mas inteiriçado, aos trancos, à guisa de maninelo de papelão empurrado pela mão do titereiro.
Era este nem mais nem menos do que o garoto do Nuno, o qual levado da breca e decidido, fazia finca-pé metendo os braços aos ombros do Lisardo, e aos boléus introduzia em casa do capitão-mor o nosso rimador, apesar da visível repugnância que a este inspirava naquela noite o teto protetor e hospedeiro.
Desta sorte tangido pelo caixeiro, atravessou Lisardo a casa do sofá, e sumiu-se na casa do jantar, sem que as personagens reunidas em torno do capitão-mor fizessem grande reparo no incidente.
A todo momento estavam entrando as pessoas de trato e conversação da casa, e o Lisardo era bem conhecido a título de comensal e trovista. Quanto ao Nuno, agachado por detrás do camarada, não se lhe via do sofá nem mesmo as pernas a mover-se por baixo do gibão do outro.
Esgotada, portanto, a pausa que o bacharel com jeito colocara diante de sua interrogação para avultar-lhe a força e o peso, prosseguiu na sua oração:
– “Quomodo?… Por que modo, ou por que modos? Somos entrados no labirinto mais intrincado das consciências que são os modos, os traços, as artes, as invenções de negociar, de intrometer, de insinuar, de persuadir, de negar, de anular, de provar, de desviar, de encontrar, de preferir, de prevalecer; finalmente de conseguir para si, ou alcançar para outrem tudo quanto deixamos dito.”
São do nosso Padre Antônio Vieira tão discretas palavras, em que muito se pode aprender para o nosso caso. Se afrontarmos com as armas a D. Sebastião, carregamos com todas as culpas, porque em suma é governador desta terra, nela posto por El-Rei, Nosso Senhor, como seu capitão-general; e é bem de ver que na pessoa dele desacatamos a majestade que o elegeu.
– Em tal caso cruzemos os braços, e entreguemos duma vez o pescoço à canga dos mascates, interrompeu André de Figueiredo.
Filipe Uchoa sorriu:
– Aqui é que se há mister todo o artifício e sutileza de engenho com que estes modos se fiam e estas negociações se tecem. Já não temos que esperar senão de nossas armas, e força é que venhamos às mãos? E note-se que não o afirmo eu, senão que apenas o concedo por suposição. Pois ainda nesse caso extremo, achemos traça de sermos nós os provocados; de sorte que antes pareça que fomos coagidos da dura necessidade de defender nossa vida e liberdade, do que levados de animosidade contra o governador. Este é o meu voto; e assim tenha eu a fortuna de o ver aceito, que não me pouparei a pô-lo logo por obra, de sorte que saiamos quanto antes de tão difícil conjuntura.
Terminada a arenga do bacharel, D Lourença que se debruçara como para melhor ouvir, mas principalmente com o fim de esconder o vulto do capitão-mor, disfarçadamente acordou-o puxando-o pela barba pois já ressonava. Desperto, o velho ergue a cabeça para dizer com voz trôpega:
– Bem falado, Filipe Uchoa. É o que temos de melhor a fazer.
Depois desta aprovação, se alguém pretendia opor-se com outras razões ao alvitre do bacharel, desistiu do propósito A última palavra acabava de ser proferida; e o conselho de família estava encerrado por aquela noite.
Ergueram-se todos da mesa já despida e espalharam-se pela casa, enquanto D. Lourença corria os reposteiros de sarja vermelha, que cerravam o sofá, transformando-o em pequena recâmera, onde costumava o capitão-mor dormir o primeiro sono.
Nessa ocasião ouviu-se grande rebuliço na casa de jantar.
CAPÍTULO XIV
COMO D. SEVERA ACHOU TÃO A PONTO O PAJEM DE QUE NECESSITAVA PARA
ESTREAR-SE NA CAVALARIA ANDANTE
Quando à tarde o Ajudante Negreiros apartou-se do governador, tomando pela Rua da Moeda, houve quem lhe bispasse a manobra.
Viam-se pela ribeira, próximos à jusante da maré, jiraus cobertos de palha, onde costumavam os pescadores guardar as canoas, e também jangadas suspensas de um lado por espeques. Aí, atrás de uma dessas anteparas se metera o Nuno, com receio de que o avistasse de longe a comitiva do governador, e lhe pusesse o ajudante no encalço os lacaios e guardas a cavalo.
Sucedeu esconder-se o rapaz a jeito de ouvir as palavras que trocaram o ajudante é o governador, ao passarem rente com a palhoça onde se agachara.
Desde que desapareceu a comitiva, surdiu o mascatinho sarapatando, e lobrigou o Negreiros que apeava-se na calçada da loja. Ali naquela hora se ia decidir de sua sorte, e sabendo do empenho que punha o mercador em agradar a D. Sebastião, tinha já como cousa assentada, a remessa para Lisboa.
No primeiro navio que se fizesse de vela para aquele porto, lá ia ele encomendado a algum tio da outra banda; e tão cedo não veria a sua Marta, nem de tão longe a poderia disputar aos que se atrevessem a pretendê-la.
Logo, sem mais detença, cuidou em evitar o golpe; e o único meio que tinha era desaparecer da casa, e de modo que lhe não pudesse o pai seguir a pista e agarrá-lo.
– Não me pilham!… disse o mascatinho ao concluir a sua breve reflexão. Vamos rondando do lado do quintal, a ver se posso apanhar-me dentro de casa e arranjar a trouxa. Depois raspo-me; e passem lá muito bem.
Era precavido o rapaz, no que mostrava a despontar entre os arreganhos marciais o sangue mascate. Como podia ter necessidade de ganhar o sertão, lembrou-se que precisava da roupa, mas sobretudo de armas, sem as quais não o tomariam por homem de guerra; o que era todo o seu desejo.
Ao avizinhar-se dos fundos da casa, escondido entre o mata-pasto, deu com o Lisardo encostado à parede da tacaniça, perto da gelosia, e não lhe custou adivinhar o que ali fazia o amigo.
Enquanto afinava-se o trovista para recitar a sua décima, o esperto do Nuno penetrou na casa paterna, pelo quintal, onde só encontrou a Benvinda, que estava cochilando ao borralho, em companhia dos dois gatos da casa.
Barafustou o rapaz a correr pelo corredor, até um compartimento que ficava nos fundos da loja, e lhe servia de armazém ou arca de Noé. Aí cuidou logo de escolher o mais fornido chifarote que suspendeu à. ilharga pelo talabarte; pôs à bandoleira uma clavina; meteu no cinturão um par de pistolas francesas e uma adaga flamenga, e na cabeça uma velha cervilheira, que ali rolava de envolta com outros cacaréus.
Assim reduzido a um cabide d’armas, tratou o garoto de entrouxar duas ou três mudas de roupa, que tirou do armário das que já vinham em obra do Reino; feito o que, foi-se pondo ao fresco sem mais demora, pois no meio dos seus aprestos vinha-lhe a rajadas, lá da entrada da loja, um certo rumor de vozes, que o tinham alerta.
Desconfiava o rapaz, e não sem motivo, que esse sussurro provinha da prática do pai e do ajudante, naturalmente sentados à calçada da loja. Por maior que fosse a curiosidade de saber o que estavam os dois tramando contra sua liberdade, o medo de que o viesse encontrar o pai, armado em guerra dos pés até a cabeça, tirou-lhe. todo o gosto da escuta e lhe amolou os calcanhares.
Ao toque de ave-maria já estava o Nuno outra vez escondido no mata-pasto em frente à rótula, e a ruminar uma lembrança que lhe acudira. Era nada menos do que sair ao encontro do ajudante, na volta deste, chamá-lo a desafio, e ali mesmo meter-lhe na pele duas boas cutiladas, para ensiná-lo a não se intrometer com a vida alheia.
Quando tinha assentado levar por diante a traça, e já a trazia bem concertada, saiu-lhe o negócio burlado; pois o Negreiros com a pressa de tornar a D. Sebastião, portador de boas-novas, apenas saltou na sela fincou esporas no ginete, e lançou-o a todo o galope. Ninguém o julgaria capaz de tal façanha, achacado como era de várias queixas, que todas lhe provinham dos destemperos de boca. Que heroísmos, porém, não inspira a bajulação?
Assim frustrada sua esperança de vingar-se no ajudante, se deixou ficar o Nuno oculto no mata-pasto, à espreita do nosso poeta Lisardo, com quem contava para o plano que forjara.
Já haviam passado o Rev. João da Costa em companhia de Miguel Correia, e o Lisardo não se resolvia a apartar-se da rótula. Cansado de esperar, o Nuno que não primava pela paciência, foi-se aproximando agachado entre o mata-pasto, e de repente surdiu em face do nosso poeta.
– Defende-te, vilão! gritou o mascatinho engrossando a voz e puxando do chanfalho.
Ao ver-se atacado por uma panóplia, o Lisardo, que sofria de nervoso, ficou estatelado contra a parede, sem voz para proferir palavra; porém maior foi a surpresa quando todo aquele fero se trocou em gargalhada, e ele reconheceu sob a viseira o rosto brejeiro do Nuno.
– Sempre tens uns modos!… disse o nosso poeta arrufado.
– Com que então queria o Sr. Lisardo de Albertim que eu o deixasse muito de seu e sossegado estar aqui de requebros e segredinhos com a sonsa da senhora minha irmã, que aposto nos está escutando por detrás daquela rótula.
Ouviu-se um muxoxo entre as frestas.
– Pois engana-se, tornou o mascatinho entonando-se outra vez no seu recacho guerreiro. À espada ou lança, a pé ou encarapitado, lhe mostrarei que… que você é um poeta das dúzias.
– E você um espalha-brasas!… atalhou com impaciência uma voz maviosa que vinha da rótula.
Voltou-se o Nuno para dar-lhe o troco; mas em vez do rostinho de alfenim que ele esperava encontrar, lobrigou através da rótula entreaberta as marrafas de uma respeitável matrona, que se aproximava da janela com uma curiosidade suspeita.
Essa matrona era nada menos do que a Senhora Rosaura, mulher do mercador Miguel Viana e mãe do nosso Nuno.
Percebendo-lhe as pisadas, a menina dos olhos negros esgueirou-se da rótula o mais depressa que pôde. Vendo o que, o Lisardo teve o palpite de amolar as canelas, escamando-se a bom correr pelo campo fora.
Pensou o Nuno que era esse o mais prudente alvitre, e apesar da durindana que lhe embaraçava as pernas e da cervilheira a dançar-lhe na cachola, lá disparou pelo mata-pasto no encalço do Lisardo, de quem não lhe fazia conta perder a pista.
Momentos depois caminhavam os dois amigos pelo istmo, na direção de Olinda.
Chegados ã altura do Brum, parou o Lisardo, pensando que o Nuno desejaria separar-se dele para tornar ao Recife. O mascatinho, porém, tinha lá sua traça, e foi despejando o caminho sem dar-se por entendido.
– Olhe, não fique tarde para você recolher-se, Nuno! disse-lhe o nosso trovista.
– Não lhe dê cuidado, sô mofino!
Assim chegaram às abas de Olinda, e o Lisardo ia despedir-se do companheiro. quando este perfilando-se disse-lhe com um tom que não admitia volta.
– Fique sabendo o Sr. Lisardo de Albertim que vai deste passo levar-me à casa do Capitão-Mor João Cavalcanti.
– Do… do capitão-mor?… murmurou o poeta gago de surpresa.
– De que se espanta você?
– Pois, Nuno, o filho de um mascate do Recife…
– Que tem isso?… D. Francisco de Sousa, que é nobre e dos mais nobres, não está com os mascates?
Embatucou o Lisardo com o exemplo, mas não se deu por vencido:
– E seu pai?
– Ele que se arranje! Não; que para Lisboa não me levam nem em postas.
– Que me diz você, Nuno?
– A tramóia foi armada pelo manhoso do governador e mais o paparrotão do ajudante que o leve o demo! Mas hei de pregar-lhes um mono, que não imaginam.
– Então é ponto decidido?
– Com a breca!… Eu cá não sou homem de voltar atrás! Dito e feito!… Desembainhando o chifarote com um arreganho de ferrabrás, o Nuno cresceu para o Lisardo gritando-lhe:
– Leve-me já à casa do capitão-mor se não quer que o leve eu espetado na ponta desta espada!
Já abalado pela noticia do desterro que ameaçava o amigo, o nosso poeta rendeu-se ante aquele argumento perfurante.
Eis porque momentos antes o Lisardo atravessava a casa do sofá de um modo tão original, e surdira na casa da ceia, no meio da surpresa geral dos convivas, que o viram entrar à guisa de boneco de engonço.
Passada a primeira surpresa. as vistas se fitaram no vulto de Nuno, que atado ao formidável chanfalho e coberto pela enorme cervilheira, fazia uma figura grotesca. As risadas estrugiram pelo âmbito da sala de envolta com o tinir da louça e dos cristais.
Susteve Nuno impassível e sem pestanejar o fogo rolante daquela estrepitosa gargalhada, ainda que por seu gosto preferia afrontar uma descarga de mosquetaria.
Afinal, passado o frouxo de riso, veio a curiosidade de saber por que artes aparecera ali aquela estrambótica figura; e voltou-se a atenção para o Lisardo que, aproveitando a hilaridade, tratava de esgueirar-se pela copa, onde contava achar os remanescentes da opípara ceia.
– Oh! Lisardo! Não nos dirá onde foi desencavar este palerma?
– Querem ver que é algum fedelho dos flamengos, que ai ficou enterrado no mangue!
– Mais parece um bugio armado em guerra!
– Ora qual! É o Pança do D. Quixote do nosso Lisardo! Pois não sabiam! Enquanto assim os convivas trauteavam o nosso poeta, ele estava sobre espinhos; e não se animando a abrir a boca, encolhia-se de modo que parecia querer sumir-se dentro de si próprio.
Foi o Nuno quem, revestindo-se de sua natural petulância, pôs termo ao suplício do amigo.
– Querem saber quem eu sou; pois já lhes digo. Sou o filho do mercador Miguel Viana!
– Do mascate!…
– O mais atrevido da súcia!
– Que veio cheirar aqui, sô mariola?
– Oral Anda bisbilhotando para ir meter no bico dos labregos!
– É espião, não tem que ver!
– Pois enganam-se, acudiu Nuno decidido. Deixei o Recife e o pai; porque sou por Olinda e quero combater com a nobreza, em pró de sua causa, que é a dos legítimos senhores de Pernambuco.
Acolheram os convivas estas palavras do Nuno com um, silêncio cheio de suspeitas, apesar de serem elas proferidas em tom firme e sincero.
Não assim D. Severa, que atravessando o aposento, veio ao encontro do mascatinho:
– Bravo, moço. Como se chama você?
– Nuno! respondeu o caixeiro.
– Nuno, doravante pertence à minha casa. Faça-o meu pajem de estrado para o serviço especial da minha pessoa.
Nessa ocasião entrava na casa de jantar o Filipe Uchoa; e consultado sobre o caso, aprovou com um riso jâmbico a resolução de D. Severa.
– Não podíamos inventar melhor polé para o Miguel Viana, respondeu ele.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
ADVERTÊNCIA
Quando a cerca de um ano veio a lume o primeiro tomo desta crônica, houve muito quem teimasse em ver personagens contemporâneos disfarçados nessas figuras do século passado.
Semelhante personificação, o autor não pode de modo algum admiti-la.
Os atores da comédia, que se chamou a Guerra dos Mascates, são antes de tudo históricos: ou porque os anais do tempo fazem deles especial menção, ou porque representam as idéias e os costumes da época.
Demais, essas figuras têm cada uma seu papel no desenvolvimento da ação que o autor se incumbiu de narrar, conforme a lição do seu alfarrábio.
Admitida a personificação, não poderia o escritor referir um fato ou circunstância histórica, nem descrever um episódio qualquer da crônica sem que tais pormenores fossem logo referidos aos inculcados sósias de seus personagens.
Ora, o autor não pretende certamente defender-se do pecado de uma ou outra alusão, que lhe corre às vezes sem querer dos bicos da pena. Mas essas demasias, não as tem senão sobre a política, que e já de si um longo e interminável epigrama.
Insinuações à vida privada, nunca as fez o autor, e espera que não cometerá jamais tão grande aleivosia apesar de ter sido ele muitas vezes a vitima de semelhantes emboscadas.
Não é daqueles que muram a vida privada. Ao contrário, pensa como Alphonse Karr, que o homem publico não tem direito a esse asilo; pois deve à opinião que ele pretende dirigir, e ao pais a quem serve de exemplo, satisfação plena de todos seus atos.
Mas e com a precisa coragem e franqueza, não com insinuações que se tem direito de atacar o procedimento repreensível de qualquer cidadão, de modo a provocar a defesa e habilitar a opinião a pronunciar-se.
Com estas idéias, bem se vê que não podia o autor caricaturar ninguém nos personagens de sua crônica, aliás obrigados a desempenhar papéis originais em uma comédia de outros tempos e de outros costumes.
Carreguem-lhe pois a culpa das malignidades políticas, ainda mesmo daquelas de que não cogitou, mas deixem-lhe o direito de mover à vontade as figuras do seu teatrinho; de casá-las a jeito, e distribuir-lhes a cada um seu papel de pai, marido, filho, noivo, ou qualquer outro da comédia social.
Com isso, que é do domínio da fantasia, nada tem que ver a maledicência.
Corte, 1 de junho de 1874.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO I
CENAS ROMANTICAS DA VIDA CONJUGAL SEM O ADUBO DA IMORALIDADE
Era por noite calada.
A episcopal cidade de Olinda, envolta nas trevas, jazia em profundo silêncio. Desde muito que se tinham apagado os fogos, e apenas de longe em longe, pela praia, tremulava a chama do molho de palhas que servia de farol aos pescadores.
A não ser o rolo das ondas, desdobrando-se ao longo do istmo, o sussurro do coqueiral rugido pela viração da noite, ou o regougo da coruja à caça dos morcegos, nenhum outro rumor quebrava a mudez da metrópole pernambucana.
Todavia, pela volta das nove horas, no alto da subida do Varadouro soaram passos, os quais se diriam de cavaleiro, pelo tinido das esporas batidas nas pedras soltas que lastravam o chão.
Quem era desceu rua abaixo, com o andar rápido, mas parando a trechos, tanto para verificar se porventura o espreitavam como para orientar-se no meio da escuridão.
Chegado ao princípio do muro de taipa, que fechava o quintal da casa de André de Figueiredo, o desconhecido redobrou de precaução até alcançar um ponto em que a copa frondosa do arvoredo, reclinando para a rua, tornava a escuridão ainda mais densa.
Aí, julgando-se ao abrigo do mais penetrante olhar, já apoiava a mão sobre o lombo do muro para formar o salto, quando ouviu um roçar de folhas na cerca fronteira.
Fitando pronto a vista, pareceu-lhe percebido entre a ramagem vulto humano, e sem a menor hesitação, atirando a longa capa em que se envolvia para os ombros, sacou a espada da bainha e pôs-se em guarda.
– Enfim! murmurara então resfolgando à larga.
Como, passado algum tempo, nada aparecesse de suspeito, pensou o desconhecido que ou se enganara na sua desconfiança, ou o vulto não tinha negócio com ele, a quem talvez nem houvesse pressentido; tornando ao primeiro intento galgou com agilidade o muro, e sem dificuldade achou-se do outro lado, dentro do quintal.
Com o perigo cresciam agora as precauções do cavalheiro receoso de dar rebate à gente da casa. Esgueirando-se por entre o arvoredo até o terreiro donde avistava as janelas do oitão e a porta da serventia do quintal, ali ficou oculto pelas folhas e à espreita de alguma cousa de sua muita devoção, pois assim o trazia a afrontar perigos.
Ao cabo de algum tempo dessa espreita, percebeu o desconhecido que a aba de uma janela do sobrado se entreabria e o busto de uma pessoa reclinava-se ao balcão, recolhendo logo após uma rápida pesquisa dos arredores.
Apesar do sobressalto que teve, o cavalheiro não desmentiu sua consumada prudência. Conservou-se imóvel e oculto entre a folhagem, redobrando de vigilância.
Somente depois que a oscilação da janela repetiu-se por três vezes, e que na impaciência como na sutileza do movimento ele pressentiu um gesto feminino, foi que o desconhecido resolveu-se a sair da sombra, destacando o vulto no descoberto do terreiro.
Ouviu-se então o soçobro de uma respiração cortada de repente, e que mais parecia o soluço intermitente da aura nas folhas da bananeira. Cerrou-se a janela, mas um objeto caíra aos pés do cavaleiro.
Era um fino lenço de batista, perfumado e ainda tépido das mãos que o apertavam pouco antes; trazia atada a uma das pontas grossa chave de ferro, a qual o desconhecido sem mais demora buscou introduzir na porta fronteira.
Não se logrou da diligência, que a chave não servia e, afastando-se, aguardou que a janela se entreabrisse para obter a explicação de que precisava. Nova esperança frustrada, pois o vulto havia se recolhido de uma vez.
Começava o desconhecido a impacientar-se, quando lhe acudiu a lembrança. que tinha a casa mais de uma porta.
– Em alguma há de servir.
Cosendo-se à parede, foi experimentando a chave em quanta porta encontrava, até que afinal acertou. Ao ranger dos gonzos que obedeciam ao impulso,. escapou-se pela fresta um trêmulo psiu recomendando silêncio.
Adiantando o desconhecido a mão para sondar as trevas do aposento em que entrava, encontrou outra mão, porém pequena, suave, mimosa, que escapou-se arrufada e palpitante como uma rola apanhada no ninho.
– Não tendes que recear-vos de mim, senhora, pois ainda que vosso esposo pela bênção do Senhor e por vossa própria escolha, um irmão não respeitaria com maior desvelo vosso recato.
Nenhuma voz respondeu a estas palavras do cavaleiro, mas ouviu-se distintamente um profundo suspiro que parecia vir do mais recôndito d’alma.
Esta cena passava-se na noite do dia seguinte àquele em que principiou. nossa crônica e para o qual D. Leonor tinha de véspera emprazado Vital Rebelo por um bilhete escrito com o sangue de suas veias.
Dissipada a exaltação de ânimo que a impelira àquela afoiteza, a mísera. moça caindo em si, ficou espavorida com a imprudência que havia cometido.
Como poderia ela, tão guardada de sua pessoa, iludir a vigilância que a cercava, e a defesa das casas de André de Figueiredo, que mais pareciam presídio do que moradia?
Vital acudiria ao emprazamento; não a encontrando, se arrojaria para vê-la a alguma temeridade que o traísse. E ela, esposa a quem traziam viúva do querido de sua alma; ela, que todos os dias rogava a Deus a restituísse aos braços de que a tinham arrancado; ela, encerrada nas paredes de sua recâmera, ouviria talvez o grito de angústia de Vital, sucumbindo aos golpes de inimigos que, por maior infelicidade sua, ela era obrigada a acatar.
Então rezava para que o marido não viesse à entrevista; mas quando enchia-se dessa esperança e achava-se mais animada, a vinha desconsolar a idéia de que essa fria indiferença de Vital seria a prova do pouco afeto que lhe votava: e logo repelia um lenitivo que, se acalentava-lhe os sustos, excruciava-lhe o coração.
Assim nesta cruel absorção passou ela parte do dia, cogitando mil alvitres que a tirassem de tão apertado transe, mas sem ânimo de tomar uma deliberação. Por tarde seus espíritos extenuados caíram em profundo abatimento, e nessa atonia esperou com gélida impassibilidade a catástrofe que via iminente.
Estava a família como de costume reunida na sala principal, quando entrou André de Figueiredo, que dirigiu-se à irmã.
– D. Lourença, mande-me dar as chaves do trem.
Ergueu-se a dama e foi ela mesma tirar de uma arca, na próxima câmera, duas chaves atadas em uma correia, que entregou ao capitão.
– Em tempos como estes, bom é precatar-se cada um para o que pode acontecer. Ninguém sabe o que nos trará o dia de amanhã.
Estas palavras, que André de Figueiredo proferiu à saída, traspassaram o coração de Leonor. Apoderou-se dela um pavor inexplicável.
Havia ao rés-do-chão e para os fundos da casa um vasto armazém onde se guardavam trastes fora do uso, ferramentas, utensílios, mas principalmente armas e petrechos de que todo morador principal daqueles tempos tinha cuidado de prover-se, para acudir, sendo preciso, à defesa da cidade e da própria habitação.
Foi a esse repartimento, chamado casa do trem, que se dirigiu o capitão; ali demorou-se até o escurecer.
Recolhendo-se à sua recâmera, o viu Leonor que voltava. Vinha ele preocupado e distraído a tal ponto que, parecendo não reparar na presença de alguém, guardou as chaves em uma gaveta da mesa de jantar e desceu para a rua.
Sobressaltou-se Leonor e fugiu espavorida com a idéia que a assaltara. Todo o serão correu para ela entre os assaltos da luta obstinada que haviam travado em sua alma a paixão do marido e o terror da família.
Vencera afinal o amor, que depois de mil hesitações a trouxera ao encontre do esposo, por quem se estava ali morrendo de pejo e de afeto.
– Não vim aqui, senhora, em requesta de vossas finezas, como cavalheiro namorado que implora favores à sua dama. Ficai portanto descansada, que não terei palavra, nem ação, capaz de magoar vosso melindre. Se ainda uma vez busquei falar-vos, depois de tantas em que me recusastes esta mercê, foi para decidir afinal de nosso destino, e romper dum golpe, ou a fatalidade que vos arrebata a meu afeto, ou o laço que ainda prende nossas almas. No ponto a que nos trouxe a sorte adversa, ou sois tudo para mim, ou nada sereis; se não vos fala agora, neste momento, o esposo a quem jurastes pertencer e a vos deveis de corpo e alma pela vida e pela eternidade, dizei-o, senhora, dizei-o pronto, que não serei mais do que um estranho que já não vos conhece e fugirá à vossa presença, como um fantasma que volta à catacumba.
Proferidas estas palavras, Vital aguardou um instante a resposta; mas o silêncio que reinava naquela escuridão apenas foi cortado por soluços, cujo tépido bafejo aqueceu a face do cavalheiro.
Este abriu os braços e conchegou ao seio o corpo vacilante da esposa, que se rendia ao seu amor.
– Leonor! murmurou Vital. Ainda me queres? Pensei que já se tinha de todo apagado em teu coração aquela ternura que te mereci, e que tenho pago com tantas desesperanças?
– Mais que as desesperanças doem as injustiças, Senhor Vital, respondeu Leonor tragando o pranto. Que fiz eu para me acusarem de ingrata?
– Ninguém vos acusou; apenas queixei-me eu algumas vezes e a mim mesmo.
– Mas de quê?
– Ainda o perguntais, D. Leonor? Depois deste ano, passado longe um do outro na viuvez de nossas almas, deste ano que devia ser a primavera florida de nosso amor, e que um mau fado transformou em torva borrasca?
– Que podia eu contra a sorte?
– Tudo. Não tínheis um esposo cujo dever era proteger-vos, e cuja maior ventura seria obedecer-vos?
– E minha mãe? replicou Leonor com desalento.
Vital calou-se.
– Bem sabeis que a maldição cairia sobre mim, se eu me revoltasse contra a tirania que nos separou; e por nenhum preço eu, que vos prezo e respeito acima de todos os homens, Senhor Vital Rebelo, vos daria uma esposa maldita e um afeto mal-agourado. Agora mesmo, quem sabe que perigos nos ameaçam e que desgraças não custará esta minha imprudência?
– Não pode ser maldita a esposa que o ministro do Senhor uniu em face do altar pelo próprio voto e com o consentimento dos seus; nem será mal-agourado este afeto porque desarrazoada obstinação de parentes se opõe à sua felicidade.
– Consentimento dos seus, dizeis; mas eles afirmam que esse consentimento o deram iludidos, e logo o retiraram, antes que deixasse eu a casa paterna para pertencer-vos, pelo que…
– Prossegui, D. Leonor! acudiu Vital, percebendo a hesitação da moça.
– Não vos queria afligir; porém melhor é saberdes logo, pois não tenho esperança de falar-vos outra vez.
– Assim é este o momento de nossa eterna despedida, senhora? tornou Rebelo com um termo grave e triste.
– Ah! se soubésseis!…
– Sei tudo.
– Sabeis que mandaram a Roma para dissolver o nosso desposório e que esperam receber o breve pela primeira embarcação do reino?
– Sabia-o, sim, D. Leonor, respondeu o cavalheiro com a mesma grave placidez. O que não sabia, e preciso ouvir de vossa boca, é se destes a isso vosso consentimento.
– Eu?… balbuciou a dama.
– Falai sem receio. De mim não tendes que temer maldições, nem ameaças. Vosso querer é a minha lei; eu, que zombo das fanfarronadas de vossos parentes e da bula que mandaram comprar a Roma, obedecerei submisso a uma palavra proferida por vós, contanto que essa palavra seja a voz d’alma; porque, se me eu curvo ante vosso desejo, não terei, ficai certa, a mesma docilidade com as vontades alheias que abusam de sua posição para insinuarem-se em vosso ânimo tímido e ingênuo. Pois que é esta a última vez que nos vemos, abri-me vosso coração. Tivestes parte nesse trama da dissolução de nosso casamento?
– Eu assinei um papel, que me apresentaram, mas não o li.
– E não vos disseram o que ele continha, nem o suspeitastes vós?
– Minha mãe tinha-me prevenido.
– Portanto não ignoráveis de que se tratava, nem que influência devia ter em vossa existência aquela assinatura. Quando escrevestes ali vosso nome, renegastes o esposo que havíeis escolhido.
– Obedeci à minha mãe! soluçou Leonor com a voz dilacerada.
– Vossa mãe andou bem-avisada em vo-lo ordenar, D. Leonor.
– Também vós a aprovais?
– Se não me tendes o menor afeto, por que seríeis minha mulher, e ficaríeis com a vossa existência encadeada a um estranho, quando a podeis partilhar com quem melhor vos mereça?
– Não me estejais apunhalando com estas palavras de desprezo; melhor é acabar-me de uma vez, e a esta triste sina. Não posso pertencer-vos como esposa, que minha mãe se interpõe entre nós; mas pertenço-vos como quem se vos deu e não quer e não pode ser jamais de outro; aqui me tendes; ponde um termo a este resto de existência que ainda me sobra de tamanho sofrer.
Vital permaneceu calmo, apesar de abalado profundamente no íntimo:
– Dizeis que vos destes a mim, senhora; e eu vejo que não vos podeis dar a ninguém, pois para isso era preciso que vos pertencêsseis; o que não acontece. Nada mais sois do que o corpo que anima a alma de vossa mãe, ou antes a alma que lhe empresta vosso tio, André de Figueiredo, que ela não a tem e menos de mãe.
– Senhor Vital! disse Leonor ressentida.
– Não quereis e não podeis ser jamais de outro…
– Eu vos juro!
– Também me jurastes a mim a fé de esposa e bastou o sopro de vossa mãe para apagar esse juramento. Ordene-vos ela amanhã que ameis a outro…
– Nunca!
– Haveis de obedecer-lhe, D. Leonor, disse Vital com amarga ironia, senão ela pode amaldiçoar-vos!.
– Não estou eu suplicando-vos que me mateis! exclamou a moça em um grito de desespero atirando-se de joelhos aos pés do cavalheiro.
Ergueu-a Vital Rebelo nos braços, e pousou-lhe um beijo casto na fronte:
– Não, alma de minha vida, não morrerás; que eu te salvarei contra todos e contra ti mesma, que és o meu bem supremo; mas tens sido o meu e teu algoz. Eu te salvarei; e se Deus me negar essa dita, restar-nos-á então, Leonor minha, a de morrermos juntos.
Um regougo de riso sarcástico reboou no meio da escuridão, acompanhado por uma voz zombeteira.
– Há de morrer, esteja descansado, mas sem companhia.
Leonor desmaiara nos braços de Vital Rebelo.
CAPÍTULO II
UM CAPÍTULO DE HISTÓRIA QUE PARECE TER SIDO ESCRITO PARA O ROMANCE
Por tal forma se travam os negócios da governança com os amores de Vital Rebelo, que para melhor compreensão desta nossa crônica, vamos dar uma resenha do estado das cousas na Capitania de Pernambuco pelo correr do ano de 1710.
Já pela rama se falou da rivalidade que existia entre a cidade de Olinda e a recente povoação do Recife, por causa do incremento que esse bairro comercial importante ainda no domínio dos holandeses, fora tomando com o volver dos tempos.
Desde a época da restauração que os mercadores, atraídos pela vantagem de um ancoradouro cômodo e seguro, se estabeleceram de preferência nessa povoação e ocuparam os armazéns e tercenas construídos pelos flamengos.
Os senhores de engenho que eram os principais da capitania e aqueles que formavam a nobreza pernambucana, foram obrigados a suprirem-se do necessário para o custeio de suas fábricas nas lojas e tendilhões do Recife.
Dava-se então o que ainda hoje acontece com pequena diferença. Onerado o agricultor com uma dívida avultada, que não podia pagar, tinha de sujeitar-se à usura do credor ou de entregar-lhe a safra a preço e condições lesivas. Assim a arroba de açúcar, o mercador a pagava no Recife por 400 rs. para vendê-la no reino por l$400.
Mais de século e meio é decorrido, e ainda o tacanho espírito que sob várias encarnações tem governado este país, não descobriu um meio de proteger a lavoura contra o monopólio mercantil; antes parece que de todo a desamparou entregando-a à sanguessuga do Banco do Brasil que lhe exaure a seiva em proveito de certa oligarquia financeira.
Uma circunstância muito concorria para agravar a posição da nobreza pernambucana. Não permitindo as idéias do tempo que os fidalgos se dessem à mercancia por ser esse um ofício plebeu, resultava daí que os seus fornecedores eram gente inferior e animada do ciúme que em todos os tempos, mas principalmente naquela época, dividia as classes.
O que porém mais fomentou a rivalidade entre os povos de Recife e Olinda foi o espírito de bairrismo.
Os moradores da capitania descendiam na máxima parte de portugueses, ainda que já entrava aí grande mescla de sangue flamengo e outro de Europa, sem falar do indígena e africano. Tinham, porém, nascido ali, na terra americana, e consideravam-se herdeiros dessa pátria que seus maiores haviam reivindicado do holandês pelo heroísmo e intrepidez de suas armas.
Por isso chamavam-se eles pernambucanos, e àqueles que vinham do reino se estabelecer na colônia davam o nome de forasteiros, negando-lhes o foro de vizinhos e portanto o direito de tomar parte no governo da terra.
Com poucas exceções, eram os mercadores do Recife desses portugueses europeus, que deixavam a sua aldeia para tentarem a fortuna no novo mundo.
Já naqueles tempos, como nos de hoje, tinha a colônia portuguesa duas virtudes, a que deve a sua prosperidade, e são: a perseverança e a união, dotes de raça, que todavia por uma ignota razão desmerecem no solo brasileiro e não se transmitem à prole aqui nascida.
Chegava um desses garotos sem outro fato mais do que a trouxa amarrada em lenço de Lamego; com a camisa de bertangil, preto de sujo, e calções de lona besuntada de alcatrão. A força de trabalho conseguiam uma dúzia de patacas, com que se proviam de algumas réstias de alho e cebola, além de outras drogas, e saíam a mercar pelas ruas do povoado e engenhos do interior. Nesse giro mesquinho ajudavam-nos os patrícios, fiando-lhes fazendas e drogas para estenderem o seu tráfego, e assim arvorados em mascates aqueles labregos, que no reino nem para moços de servir prestavam, de repente se viam senhores de grosso cabedal.
Deste modo, com pouca discordância de termos, se exprime um malévolo cronista pernambucano no intuito de rebaixar os mercadores do Recife, quando ao invés lhes tece o maior encômio, pondo em relevo o caráter laborioso e paciente desses homens, filhos de seus trabalhos e obreiros da própria fortuna.
De dia em dia, pois, ia crescendo o ciúme entre os dois povoados, na medida em que o plebeu Recife medrava com o impulso de seu comércio florescente, e a aristocrática Olinda decaía pelo desbarato dos ricos patrimônios outrora acumulados pelas famílias pernambucanas.
O primeiro choque dessa luta de supremacia política datava do ano de 1685. Desde sua fundação padecera Olinda da falta de boa água potável, reduzida a péssimas e raras cacimbas, pois o Beberibe, que lhe banha as fraldas e podia prove-la em abundância, era então alagado até muito acima pela enchente da maré.
Desvelados os moradores em remediar esse achaque, avisaram meios de trazer água de longe. Primeiro abriram um valado de légua para encanar uma levada do Paratibe; mas não surtiu bom efeito, porque era o terreno de muitas areias que frustravam o trabalho, sumindo a água.
Outra vez intentaram obra semelhante no Beberibe, tomando-lhe a veia acima da maré e não tiveram melhor resultado, porque as enlameavam os gados soltos na várzea. Quando estavam empenhados em aperfeiçoar a obra, substituindo a lavada por um aqueduto de pedra e cal; sucedeu a invasão holandesa.
Depois da restauração, e logo que se restabeleceram os moradores dos maiores estragos de suas fazendas, curou a Câmara de Olinda de prover aquela necessidade de boa água, mas por um novo arbítrio que o engenho, ensinado das muitas lições da experiência, veio a sugerir.
Em 1685 com boa diligência se levou a efeito o plano que consistia em tapar o rio Beberibe com um reparo de pedra no ponto onde ele costumava secar na baixa da maré, e por isso chamado Varadouro.
Com esse dique, em forma de ponte ou passadiço, impedia-se a água salgada de subir além, enquanto que a represa do Beberibe formou um vistoso lago que despejava as sobras por dezoito canos, fartando a cidade de água doce, como da grande cópia de peixe que ali se criava.
Desta obra se aproveitaram também os do Recife, que mandavam em canoas encher as vasilhas nas bicas do Varadouro, especialmente para as aguadas dos navios; pois suas cacimbas, como as de Santo Antônio, eram salobras e cheias de limo.
Não obstante foi a ponte, na frase do cronista, uma figa para os mascates, os quais não podendo sofrer que Olinda se lograsse de tal vantagem sobre o Recife, buscaram traça para a desforra, que em má hora lhes trouxe a fortuna adversa.
Aconteceu, seis meses depois, que abrindo-se uns barris chegados de São Tomé dias antes, estivesse a carne que traziam corrompida a ponto de matar logo ali de pronto com o ramo da peste o tanoeiro e mais quatro que o ajudavam, desenvolvendo-se em seguida uma devastadora epidemia.
Entrou o povo do Recife a clamar que todo o mal proviera da tapagem do Beberibe, pois estagnadas as águas onde cresciam tantas ervas, era de prever que se envenenassem aquelas com a podridão destas, infeccionando os ares de toda aquela redondeza.
Sem mais demora levaram os mercadores sua queixa a El-Rei, que mandou ouvir sobre o caso os médicos de sua real câmara. Parece que naquele tempo a higiene pública estava tão adiantada em Lisboa como no Rio de Janeiro, c que os físicos-mores do Senhor D. Pedro II de lá não tinham que invejar aos do Senhor D. Pedro II de cá.
Reuniu-se em junta a mestrança e conveio que efetivamente a peste provinha da represa do rio. Houve quem notasse a coincidência de terem aparecido os primeiros casos da moléstia na ocasião de abrirem-se os barris de carne, assim como a circunstância de não se haver manifestado a epidemia em Olinda, que tinha o Varadouro à beira.
Não toscanejaram os preclaros rabichos, e decidiram verbis magistri que era urgente romper-se o dique e deixar que o rio despejasse livremente como dantes a correnteza de suas águas, com o que cessaria o contágio. E assim o mandou El-Rei em carta à Câmara.
Imagine-se como receberiam os moradores de Olinda essa ordem estulta, que vinha destruir o fruto de tamanhos esforços e economias; e quanto podiam o respeito e obediência à régia autoridade, pois sopitaram a revolta dos brios e dos direitos oprimidos desses povos leais.
Ficou, porém, no coração pernambucano um entranhado ressentimento, e crescendo todos os dias o desprezo com que os nobres tratavam a gente do Recife, passaram a designá-la pelo epíteto de mascates.
Esse termo, derivado do nome de um reino da Índia cujos naturais eram dados ao comércio, significava em princípio entre os portugueses de Goa o mesmo que mercador ambulante que percorria várias terras à maneira do Oriente.
Com o andar dos tempos veio a servir unicamente para exprimir o mister baixo e desprezível de bufarinheiro ou regatão que apregoa pelas ruas. Tão afrontoso era dar-se tal nome a um mercador desse tempo, como seria hoje em dia chamar em estilo clássico de traficante a um homem de negócio.
Retaliaram os do Recife com a alcunha de pés-rapados que puseram aos naturais, não só pela circunstância de andarem eles descalços e à ligeira, com o que se desembaraçavam no manejo das armas e na celeridade da marcha entre o mato fechado, como por alusão à estreiteza de muitos fidalgos caídos em completa penúria.
Soberbos os mercadores com a primeira vitória na questão do Varadouro, puseram a mira em cousa de maior monta, como era o foral de vila para o Recite, o qual uma vez independente de Olinda e com governo próprio, não tardaria em derrotar a velha cidade que lhe estava sugando a seiva.
Razoaram os advogados, pois já naquele tempo os havia políticos e administrativos, como se vê da crônica desta guerra que talvez nunca rompesse, se eles não a tivessem por forma enredado, que não houve mais jeito de a desatar.
Foram procuradores a Lisboa com boas propinas e o preciso para azeitar as molas da máquina régia, seguindo no mesmo navio uma representação em que o governador D. Fernando de Lencastro expunha a El-Rei a conveniência de erigir-se o Recife em vila.
Desta vez, porém, não lograram os mercadores a diligência. Ou porque D. Pedro II de Portugal também adotasse a máxima política – uma no cravo e outra na ferradura; ou porque ainda não se tinha de todo apagado na corte lusitana a memória do heroísmo pernambucano na restauração da capitania, resolveu Sua Majestade pela carta régia de 28 de janeiro de 1700 que de maneira alguma se devia por em prática esse arbítrio de separar o Recife da cidade de Olinda, recomendando que para conservação dela, ai fizessem assistência o governador e ministros como em repetidas ordens havia determinado.
Todavia não esmoreceram os mercadores; desenganados de obter por enquanto a realização do primeiro intento, cuidaram de se insinuar na governança da terra, esperando mais tarde com a popularidade de suas doblas e patacões, apossarem-se dos cargos principais da vereança.
Hoje em dia usa-se traficar à boca do cofre com os títulos e as comendas, naqueles tempos menos adiantados não se faziam as cousas com a simplicidade moderna. Os mercadores que juntavam grosso cabedal compravam os serviços de algum fidalgo rafado de quem se justificavam parentes com testemunhas quejandas às que ora servem para fazer moço fidalgo de quatro costados a qualquer beldroegas. Com essa papelada requeriam para Lisboa um hábito de Cristo em que se enfunavam tanto como os excelentíssimos de agora.
Assim besuntados dessa nobreza postiça, julgavam-se os mais ricos dos mascates idôneos para os cargos de oficiais da Câmara. Mas saíram-lhe os pernambucanos com embargos, pela razão de não serem naturais aos quais somente competia o governo das terras, não podendo nela ingerirem-se forasteiros que vinham de fora buscar fortuna.
Durou este pleito até l703 em que mandou El-Rei admitir aos pelouros todos os habitantes da cidade, sem diferença de naturais e vindiços, uma vez que estivessem nas condições da Ord. do liv. 1º, tit. 67, e Leis de 12 de novembro de 1611 e 6 de maio de 1649.
Triunfantes com a decisão régia, os mercadores empenharam quanto podiam na primeira eleição e conseguiram alguns oficiais e almotacés. A conseqüência não se fez esperar: armado da vara branca, o Sr. Simão Ribas foi taxando por preço excessivo tudo que vendiam os taberneiros, seus patrícios; e as frutas e víveres que traziam os matutos, pô-los a real.
Foi geral o clamor em Olinda. Reunido o Senado, representou sem mais tardança a El-Rei mostrando o perigo de se admitirem na governança os forasteiros.
Por essa ocasião lembraram os pernambucanos a El-Rei que ainda estavam pagando os chapins da Senhora Infanta D. Catarina, e portanto se devia ter alguma contemplação com tão leais vassalos, não os privando dos poucos meios de que tiravam para se quitarem dessa finta, com sacrifício de sua subsistência.
Essa história dos chapins merece um comento. Costumavam os reis de Portugal, quando lhes nascia filho ou casavam filha, lançarem um tributo sobre os povos de certas cidades ou vilas a pretexto de compor-lhes o enxoval.
Casando-se a Infanta D. Catarina em 1661 com Carlos II da Inglaterra coube às possessões do ultramar fornecer à noiva os chapins, o que ainda estavam fazendo os pernambucanos quarenta e dois anos depois.
Dignos filhos daqueles pais somos nós brasileiros que nascemos, uns para trapaceiros e outros para cangueiros. Ainda hoje o nosso bom e paternal governo finta-nos com os impostos da Guerra do Paraguai; e já nos ameaçam com outra guerrinha de que ficou pejada aquela.
Acudiu D. Pedro II a seus vassalos pernambucanos, declarando que não podiam servir cargos da vereança os mercadores, visto ser esse um ofício peão, na conformidade das leis do reino; depois, entrando a governar como regente na moléstia de seu pai a Infanta D. Catarina, Rainha de Grã-Bretanha, a tal senhora dos chapins, aproveitou a ocasião para agradecer a condescendência dos pernambucanos.
Pela provisão de 8 de.maio de 1705 declarou que por mercadores se havia de entender unicamente os que assistissem de loja aberta, vendendo, medindo e pesando ao povo.
Sendo em número limitado os mercadores de grosso cabedal que já se não ocupavam com o meneio de seus negócios, mercando no balcão ou trapiche, ficaram os de Olinda tão superiores ainda, que já não podiam temer-se dos contendores na eleição.
Quanto aos mascates, essa última derrota não fez senão aferrá-los ainda mais à primeira idéia da separação,. na qual desde ai trabalharam sem descanso, dispondo na capitania, como na metrópole, os elementos para o favorável despacho de sua pretensão.
Foi nestas circunstâncias que a 9 de junho de 1707 tomara conta do governo da capitania Sebastião de Castro Caldas.
Como de costume, os nobres de Olinda e os mercadores do Recife porfiaram em obsequiar o novo governador à sua chegada, com a mira de ganhá-lo a seu partido. Durou mais de ano essa cortesia hospitaleira, pelo jeito com que soube o fidalgo trazer ambas as parcialidades embaladas em esperanças.
A saliência do caráter político de D. Sebastião de Castro Caldas era uma suscetibilidade de proeminência. Elevado ao alto posto de capitão-general de Pernambuco, sob uma aparência de filosofia e abnegação, ele não tolerava em torno de sua pessoa vultos que pudessem disputar-lhe uma parcela mínima do respeito e até mesmo do embaimento público.
Qualquer superioridade fazia-lhe sombra, e sua preocupação incessante era abatê-la, não derrocando-a, pois era avesso ao estrondo e a violência, mas aluindo-a aos poucos. Essa obra subterrânea, seu espírito a prosseguia com uma tenacidade fria e inflexível, apesar da indecisão e maleabilidade de que pareciam envoltos os seus atos.
Se algum homem granjeava por seu merecimento a estima geral, cuidava logo D. Sebastião de o chamar a si, não só para que aos olhos da gente essa elevação parecesse mero efeito de uma liberalidade que ele podia retirar quando lhe aprouvesse, como para respirar o puro incenso das almas superiores. Além de que assim ficavam-lhe essas papoilas a jeito de ceifar.
Desde os primeiros tempos que através das mostras de respeito e termos corteses sentiu o governador a têmpera do caráter altivo e independente dos pernambucanos, os quais prezando-se de súditos leais, tinham o nobre e legítimo orgulho de haverem pelo esforço de seu braço restituído à coroa portuguesa esse importante estado ultramarino.
Brios e escrúpulos eram asperezas que arranhavam a cútis moral de Sebastião de Castro. Ele não se acomodava senão com as almas flácidas e dúcteis, que tomam todas as feições e prestam-se à guisa de pelica para uma luva como para um chinelo. Destas gostava de apossar-se, a ponto de torná-las aderências da sua.
De tal quilate, não faltavam exemplares entre os mascates, pois o balcão era o berço onde se criavam, como o dinheiro o leite de que se amamentavam. Por isso, continuando a favonear a nobreza, o novo governador prelibava o suave prazer de fazer do Recife um espinho para cravá-lo no orgulho de Olinda.
Em segredo representou a El-Rei mostrando a urgência da separação do Recife; e tão avisadas foram suas razões que, finalmente, por carta régia de 19 de novembro de 1709 foi criada a vila.
Digamos em abono da verdade que foi essa uma medida de toda justiça. O Recife, a primeira praça de guerra do Estado do Brasil, como se pode ver do inventário feito em 1654, ao tempo da sua evacuação e entrega pelos holandeses; o ponto comercial mais importante ao norte do Cabo de Santo Agostinho, com uma população de cerca de oito mil almas, e as melhorias que lhe tinham ficado do domínio flamengo quando era corte do Conde de Nassau; o Recife não devia com a restauração ter perdido o seu título de cidade.
Mas apesar de todas estas razões políticas, Sebastião de Castro descobriria alguma conveniência para adiar a criação da vila, se não estivesse nisso empenhado o seu amor-próprio.
CAPÍTULO III
ONDE SE LOBRIGA O VULTO DO BISBILHOTEIRO QUE ESCREVEU O ALFARRABIO
ENCONTRADO PELO SACRISTÃO
A criação da vila do Recife, tão porfiada pelos mercadores, devia ser o desfecho dessa contenda em que os dois povos rivais andavam empenhados, havia mais de dez anos.
Com outro governador assim teria acontecido; mas com Sebastião de Castro não passou de uma fase nova da luta, que tornou-se mais ardente pelo despeito de um partido e a arrogância de outro.
A indignação dos moradores de Olinda, quando entre eles estourou a nova como uma bomba fulminante, não guardou termo e prorrompeu em ameaças e assuadas. O que mais revoltava aos pernambucanos era a falsa fé com que o governador, adormecendo-os na confiança inspirada por palavras insinuantes, havia sorrateiramente obtido do conselho ultramarino a separação do Recife.
Em verdade era completa a segurança dos pernambucanos. Conversando o velho Capitão-Mor João Cavalcanti uma tarde em palácio com o governador, e trazendo a prática para o ponto que mais lhe interessava, teve em resposta estas formais palavras: -“Sobre este particular pode ficar descansado, senhor capitão-mor. O Recife, pelo que ouvi em Lisboa, tão cedo não será vila.”
Estas palavras, referiu-as textualmente João Cavalcanti aquela mesma noite, no serão costumado, e ninguém houve que se não tranqüilizasse com o penhor dado por Sebastião de Castro ao venerando ancião. Não conheciam ainda a polpa do homem que os governava.
No meio do geral espanto, causado pela noticia, interrogavam-se todos acerca daquela promessa; e os principais acercavam-se do capitão-mor para ouvir dele os pormenores do caso e a repetição fiel da asseveração do governador.
Não ocorria ao velho fidalgo que pudesse alguém duvidar de sua palavra; mas incomodava-o a só idéia de haverem faltado à fé por ele assegurada. Além de que essa fé também lhe fora dada a ele por quem se prezava de cavalheiro e como cavalheiro lhe devia contas severas.
Recobrando um assomo do antigo vigor, montou o capitão-mor a cavalo e sem mais acompanhamento do que um pajem, deitou-se a galope para o palácio do Recife onde estava o governador inquieto com o alvoroto de Olinda.
Nessas ocasiões em que se embrulhava a política, se não mente a crônica, o fígado de Sebastião de Castro, como o de César, sofria a repercussão do abalo moral; mas a bílis, prontamente corrigida, nunca perturbava a fleuma desse organismo.
Já àquela hora andava o Ajudante Negreiros num corrupio, despejando ordens pelos fortes e quartéis, enquanto o governador em conferência com o Secretário Barbosa de Lima combinava nos panos quentes e cataplasmas com que se devia acudir ao desmancho.
Pressuroso saiu Sebastião de Castro ao encontro do capitão-mor a quem recebeu com desusada afabilidade, mas com isso não desarmou a carranca do velho, que foi direito e rijo ao ponto.
Não podia o governador ocultar a parte que tivera na criação da vila, pois a carta régia se referia positivamente à sua informação; mas ainda quando houvessem omitido essa circunstância, não a negaria ele. Em sua opinião a mentira é um expediente grosseiro, que somente empregam os espíritos frouxos e indolentes.
Ouvida a queixa, se não amarga exprobração do velho Cavalcanti, respondeu-lhe o governador sem alterar-se:
– O que disse ao senhor capitão-mor e mantenho, foi ter ouvido em Lisboa a quem o devia saber, a asseveração de que tão cedo não seria vila o Recife.
– Mas não se dirá…
Impetuoso como sempre interrompera João Cavalcanti ao fidalgo para retrucar-lhe sobre a contradição de seu procedimento. Atalhou-o o governador:
– Quanto a haver eu representado em favor da criação da vila, compreende o senhor capitão-mor, como cavalheiro que é e leal súdito, que eu faltaria ao meu dever de governador desta capitania, não informando a El-Rei das necessidades da terra, para que Sua Majestade as proveja de remédio. Nem podia deter-me neste particular o muito que me merece a nobreza, pois contava infalível o indeferimento.
Os Césares modernos que se deixam vencer pelos ministros quando lhes convém enfeitar-se de suas lentejoulas democráticas, não responderiam com maior dignidade e abnegação a algum favorito sacrificado: “Sou seu amigo, mas lembre-se que também sou rei constitucional.” O que em gíria cortesã quer dizer: “Se agora para guardar as aparências fui obrigado a despedi-lo como um importuno, com jeito posso fazê-lo sota-rei mais tarde.”
– O caso é que os mascates lograram afinal o que em dez anos não puderam.
Estas palavras soltou-as o capitão-mor com um tom morno, pois dissipado o primeiro assomo, já se lhe relaxava a fibra.
Sorriu-se o governador:
– Lograriam…? disse ele com uma entonação que não se podia afirmar se era de interrogação, se de reticência.
– Pois Vossa Excelência ainda o põe em dúvida? exclamou o capitão-mor.
– Por linhas tortas escreve-se direito, em havendo arte.
– Confesso que não atino.
– Mandou-me El-Rei criar vila no Recife; mas a vila não está criada, e pode bem ser que se não chegue a criar; entretanto que, embalados nesta esperança, os mercadores se aquietarão.
– Lá diz o ditado – “que entre a boca e a mão vai o bocado ao chão.” E assim acontecerá se tivermos por nós a Vossa Excelência que em respeito a seus brasões, como grande fidalgo, se deve à nossa causa que é a da nobreza contra a ralé.
– Neste posto de governador, devo-me a El-Rei primeiro, e aos povos depois, sem distinção de nobreza e peonagem. Mas não careceis de escudo, com os títulos que tendes. Do que precisais é de moderação e tolerância para atrair à nobreza pessoas abastadas e preponderantes.
– Não se costuma entre nós, senhor governador, repelir os que vêm como amigos, ainda quando não trazem cabedais, que mercê de Deus não cobiçamos.
– Será então falso quanto me referiram?
– Ignoro o que fosse.
– Que o alferes Vital Rebelo requesta uma sobrinha vossa, a qual lhe corresponde ao afeto; mas vós, ou os vossos, a tendes por modo defesa, que ao valente namorado custa-lhe um assalto d’armas cada vez que se avista de longe com a formosa dama?
– Há razões particulares, respondeu João Cavalcanti reservado.
– Estas razões, senhor capitão-mor, são desarrazoadas. Se o pai de Vital Rebelo ficou senhor do engenho e mais haveres do finado Luís Barbalho, marido de vossa sobrinha, mais pela prodigalidade deste do que pela usura daquele, que melhor meio de reparar esse revés da fortuna do que devolver por rima acertada aliança, ao casal donde saíram os bens dissipados?
Calou-se o capitão-mor.
– Que dizeis a isto? insistiu o governador.
– Digo que pode bem ser esteja a razão da parte de Vossa Excelência.
– Neste caso, por que não ma dá o senhor capitão-mor fazendo o que lhe aconselho?
– É do agrado do senhor governador o casamento?
– Penso, respondeu o governador elevando a voz como para acentuar melhor o seu alvitre, que será de grande proveito ao partido e à família a aliança de sua sobrinha D. Leonor Barbalho com Vital Rebelo, pois é este, além de cavalheiro de muitas prendas, homem de dotes superiores.
Desde algum tempo, que um dos toma-larguras do palácio andava rondando sôfrego de bispar alguma cousa da prática. Não escapou-lhe uma só das últimas palavras do governador, que alteara a voz a talho de ser escutado.
Nessa mesma tarde Vital Rebelo sabia do que a seu respeito dissera o governador.
Foi extrema a surpresa do mancebo.
Apesar de filho de mercador e partidário do Recife, não era ele dos que estavam nas boas graças de Sebastião de Castro; bem ao contrario, tinha impulsos de dignidade e altivez que deviam beliscar o orgulho do fidalgo.
Assim não lhe dava excelência, tratamento que não competia aos governadores, mas que eles recebiam de todos com prazer em vez da chata senhoria, havendo-os que o impunham de preceito, bem como outras cortesias a que não podiam pretender, pois eram prerrogativas da majestade.
Guardando ao governador a reverência que julgava devida, o alferes cortejava-o com o chapéu quando o encontrava, mas não ficava de cabeça ao tempo, como usava a gente principal, que não se cobria nem voltava as costas estando ele presente e até o perder de vista.
Também não era Vital assíduo em palácio onde compareciam habitualmente todos os que tinham oficio público ou posto de milícia e ordenanças. Alguma vez que lá ia de longe em longe, levava<) mera urbanidade e não lisonja.
Passava Sebastião de Castro por filósofo e desabusado acerca dessas maneiras palacianas. do que muito se lastimavam os oficiais de sala, então como agora mais realistas do que o rei. Todavia nunca se lembrou o fidalgo de acabar com tais práticas, no que bem mostrava não lhe serem desagradáveis e menos incômodas.
Mas por cima dessas esquisitices veniais, tinha Vital Rebelo pecado mortal. Uma ou outra vez em discurso com o próprio Sebastião de Castro, e muitas nas práticas dos mercadores, chegara a dizer que os governadores abusavam do, seu regimento, já ingerindo-se nas cousas de justiça, já provendo postos que não cabiam em sua alçada.
E não andava ele mal informado, pois ao próprio Sebastião de Castro mandou El-Rei estranhar asperrissimamente por se intrometer nos negócios de justiça, e também por exigir que a Câmara de Olinda lhe desse o tratamento de Senhor, a igual da majestade. Prova isto que o rei-povo é menos que o rei-só zeloso de suas prerrogativas, e mais bonachão com seus governadores e ministros.
Com tais antecedentes não havia reparar na surpresa de Rebelo ao saber do conceito em que o tinha Sebastião de Castro e do empenho que tomava pela realização do mais ardente voto de sua alma.
– Fui injusto! É homem de ânimo generoso, e um nobre coração! disse o mancebo penhorado da fineza.
Havia então no Recife um letrado que vivia dos provarás, porém mais da rigorosa economia, a que se acostumara. Chamava-se Carlos de Enéia e era homem de meia-idade, metido consigo, que o mais do tempo levava a rabiscar papel.
Há suspeitas de que seja o incógnito autor da crônica manuscrita donde extraíram-se estas memórias, e na qual porventura se refugiava o advogado do nojo pelas misérias públicas que o rodeavam.
Fora Enéia algum tempo secretário de Sebastião de Castro, quando este governara o Rio de Janeiro, bem que não se demorara no cargo, pois ele, como de D. João de Castro disse Jacinto Freire, “podiam sofrê-lo como vassalo, mas não como criado”.
Do pouco tempo de serviço lhe ficara larga experiência do natural de Sebastião de Castro, de quem algumas vezes costumava dizer: “que era varão insigne, porém no posto a que o subira a fortuna, andava desencontrado, desgovernando tudo pela ânsia de muito governar”.
Ligava Rebelo ao letrado uma afeição que nascera da conformidade no temperamento de suas almas. Estando à noite com o amigo, referiu-lhe o alferes o ocorrido, mostrando-se rendido à galhardia de Sebastião de Castro.
Sorriu-se Enéia, citando um verso de Sírus:
– Nisi qui sit facere, insidias nescit metuere.
– Que queres dizer com isto? tornou Vital.
– Que vês a imagem alheia no espelho de tua alma; mas eu, que a vejo à luz da experiência, descubro sombras que te escapam.
– E quais são elas, não me dirás?
– O elogio é um meio muito usado, mas sempre novo, de render a vaidade; e neste caso tem outra serventia, qual é convencer-te da gentileza de quem os faz. Se até agora nutrias uma prevenção contra Sebastião de Castro, de hoje avante vai ele tentar-te pela mais perigosa das seduções, que é a da virtude. Acatando nele, já revestido das dignidades do governo, um modelo de honradez e símbolo de justiça, que não exigirá de tua veneração que tenhas força para recusar? Serão em começo cousas de pouca monta que não assustarão teus escrúpulos; mas esse caminho é assim talhado, que em tropeçando nele, já ninguém se pode erguer, e para subir não há outro jeito senão ir de rastos ou às gatinhas.
– Estou à prova! disse Vital com sobranceria.
– Ainda não; por ora pertences ao amor, que é capaz de todos os raptos e entusiasmos como de todas as loucuras, que faz herói ao cobarde e mártir ao egoísta. É na idade da ambição que se prova a têmpera aos homens.
– E qual é essa idade? Não dirás que seja a tua, pois nela te condenas ao esquecimento.
– Não se trata de mim, que já não pertenço ao mundo, nem cuido senão de mirrar a múmia deste espírito para deixá-la à posteridade. Não que eu creia nisso que se chama pomposamente a justiça da história; mas creio no sarcasmo retrospectivo do futuro; creio no desprezo póstumo pelas torpezas que já não aproveitam, e nessa gargalhada eterna que desde o princípio do mundo atravessa as idades fustigando como um látego todas as grandezas ridículas e grotescas.
Caindo em si, o advogado reprimiu esse rasgo, como homem que já não permitia à sua palavra austera as flores da eloqüência:
– E eu a falar de mim, quando é de ti e do governador que me devo ocupar! Quer-te ele casado…
– Também entra nisso um plano? perguntou Rebelo gracejando.
– E o mais perigoso. Moço, rico, benquisto, brioso, ornado de prendas tão luzidas que o próprio Sebastião de Castro não as pode esconder, és um manjar de rei. Tua altivez já passa a escândalo e faz sombra em palácio. Neste momento não tem o governador com que fascine teu coração de namorado. Suas insígnias de capitão-general não valem para ti o requebro d’olhos e o sorriso de tua dama. Mas casado e com uma fidalga de Olinda, tu, mercador e filho de mercador, podes responder por tua isenção?
– Juro-te que sim; e se me conhecesses, não o duvidarias.
– Não te conhece ele, e por isso espera que tua mulher será a chave com que os Cavalcantis te abrirão a consciência e se apossarão dela até fazerem de ti uma criatura sua. Eis por que Sebastião de Castro se empenha por teu casamento.
– Tenho na melhor estimação o teu voto em tudo, mas neste ponto cuido que exageras a habilidade do homem; não o suponho capaz de tal argúcia, e nisso faço menos justiça à sua virtude, do que ao seu engenho.
Estavam os dois amigos no gabinete do advogado, que seguia a prática andando de um a outro lado. Passava ele por diante da livraria e acertou de cair-lhe sob os olhos um volume.
– Conheces este livro? perguntou apontando o rótulo com o índex.
– O Príncipe?
– Anda em moda compará-lo com Sebastião de Castro; e já ouvi de alguém, que o governador não era senão o livro encadernado em pergaminho humano. Com essa maledicência cuidam deprimi-lo, e o absolvem. Maquiavel foi o político de seu tempo, como este o é de sua escola. Observa-se em ambos a estranha fusão das máximas severas da moral com os manejos de uma astúcia desabusada. Agora a dedicação ao bem público; logo após um frio egoísmo. A razão disto, querem sabê-la? É que para eles, que têm os povos em conta de crianças, pois os conheceram assim, o governo do Estado não é outra cousa senão a arte de enganar os homens para o bem de todos.
Essa convicção robusta não deixou de abalar o mancebo, que movido em parte dela e em parte da deferência com que tratava ao amigo, disse-lhe em ato de despedir-se:
– Que me aconselhas então?
– Nada. Segue teu caminho; serás iludido por tua vez e aprenderás à tua custa. Aqui hás de tornar cedo, porque não és dos que aprendem a grimpar e se agacham para subir.
CAPÍTULO IV
SISTEMA DE NAMORO QUE A POLICIA NÃO CONSENTIRIA NOS TEMI’OS DE AGORA
Foi um dia de Corpo de Deus que Vital Rebelo viu a primeira vez D. Leonor, e ali ficou preso de seus encantos.
A gentil donzela, debruçada ao balcão da janela, acompanhava com os olhos a procissão que passava nesse momento; e o mancebo parado defronte enlevou-se na contemplação de seu formoso semblante.
Quis o acaso que um laço de fita se desprendesse do toucado da donzela e caísse na rua alcatifada de lambéis. Correu pressuroso o namorado mancebo a apanhá-la, e beijando-o cortesmente com os olhos na dama, pregou-o ao peito do gibão como uma divisa.
Acompanhara Leonor com a vista ao seu tope azul até o momento de o levar aos lábios o cavalheiro; então uma onda de rubor lhe subiu ao rosto. Foi quando tornou a si desse desmaio que reparou a furto no galante cavalheiro, e não se pôde esquivar de achá-lo gentil e airoso.
Mas, agastada pela vergonha que lhe causava, não repôs nele os lindos olhos negros, ainda que não deixou de volver-lhe uma e muitas vezes a vista de relance.
Nessa hora decidiu-se o destino de Vital Rebelo.
Outras donzelas tinham o Recife e Olinda, e das mais formosas, que suspiravam entre as persianas do balcão vendo passar no seu garboso ginete o prendado mancebo, e cuja mão de esposa bastaria um desejo seu para obtê-la.
Mas havia ele de prender-se àqueles negros olhos, que, se lhe prometiam meigos rendimentos, deviam custar-lhe tantas ânsias e aflições, como lhe estavam reservadas na triste sina de amante, que depois de esposo, tornou ao que era, porém desventurado.
Desde aquela tarde de Corpo de Deus avistou-se Vital muitas vezes com Leonor, ou no bakão da casa, ou na Sé em hora de missa, ou na rua por entre as cortinas do palanquim; e parecia-lhe que de cada vez se apagava aquela esquivança, como que de princípio fugiam os olhos da donzela de encontrarem-se com os seus.
Uma tarde em que ficou a donzela só por um instante no balcão, Vital, que andava espreitando essa ocasião, chegou a todo o galope do ginete, o qual ao manejo do destro cavalheiro empinou-se quase direito apoiando as patas na parede.
Baixos como eram naquele tempo os andares, pode o ágil mancebo erguer-se na sela a jeito de oferecer a Leonor um cravo encarnado menos formoso todavia que os dois abertos àquele instante nas aveludadas faces da donzela.
Não se animava a tímida moça a tomar a flor da mão do cavalheiro, e foi preciso que este lha deixasse na manga do vestido que abria-se em volta do mimoso braço, como a folha a cingir o cálice do lírio.
Nesse momento assomou à janela André de Figueiredo, que suspeitoso observara de dentro a ousadia do cavalheiro e a indulgência da dama. Lançando mão à flor arremessou-a contra o rosto de Vital, enquanto com o braço esquerdo arredava a sobrinha da janela, falando-lhe de um modo áspero:
– Recolha-se, Leonor!
Entretanto Rebelo que apanhara a flor no ar, trouxe outra vez o brioso ginete contra a parede.
Então com admirável agilidade alcançou o parapeito do balcão e saltou na janela, ao lado de Figueiredo.
Quando este apercebeu-se do lance, estava sujigado à portada pela mão robusta de Rebelo, que desembainhando a adaga disse para Leonor:
– Tomai-me este cravo, senhora, e prendei-o ao peito de vosso justilho, por que se o deixais cair, à fé de Deus e da muita adoração que me mereceis, juro-vos que o plantarei no coração deste cavalheiro com a ponta de meu punhal.
Leonor espavorida obedeceu maquinalmente, e Rebelo, deixando o capitão ainda sufocado da gargantilha viva que lhe cerrara o pescoço, saltou na sela e afastou-se a galope.
Tão rápida correu esta façanha, que já o alferes desaparecera no fim da rua quando André de Figueiredo se debruçava na sacada furioso, com os dentes a ranger e os lábios trêmulos de ira.
Estava temeroso assim o capitão, que já de si era, ainda mesmo em sossego, de aspecto duro e carrancudo. Dobrando a meio sobre o parapeito a alta estatura, devorava com o fero olhar o espaço em busca de Vital.
Era Leonor filha única de D. Antônia de Figueiredo, a qual depois da morte de seu marido Luís Barbalho de Vasconcelos, viera habitar nas casas do irmão André de Figueiredo, onde também morava sua irmã viúva, D. Lourença de Holanda.
Foi essa família um ramo dos Holandas, a cujo tronco se prendia por Agostinho de Holanda Vasconcelos, terceiro filho varão de Arnault de Holanda, que fundou em Pernambuco essa linhagem, casando-se com D. Brites Mendes de Vasconcelos.
Pelo casamento de Cristóvão de Holanda, primeiro filho varão de Arnault de Holanda com D. Catarina de Albuquerque, filha de Filipe Cavalcanti, fidalgo florentino, começou a aliança das três casas dos Holandas, Cavalcantis e Albuquerques, a qual daí em diante se foi ainda mais estreitando com o volver dos tempos por novas uniões.
Com a morte do pai de Leonor, tomara-lhe a autoridade o Capitão André de Figueiredo, como cabeça da família; pois além de três irmãs, ainda tinha de dois irmãos mais moços, o Tenente Antônio Tavares de Holanda e o bacharel José Tavares de Holanda, que já encontramos à ceia do capitão-mor.
Deixou o finado Luís Barbalho em pobreza mulher e filha, tendo-lhe devorado o jogo tudo quanto pôde apurar de seu patrimônio e da fazenda que levara-lhe a esposa, pois para acudir às perdas e dívidas de honra, fez barato das suas propriedades.
O capitão-mor que porventura poderia, com a autoridade dos anos e da chefia, pôr cobro a esse desmando, abstinha-se, apesar dos rogos da sobrinha D. Antônia de Figueiredo, mãe de Leonor.
Foi sempre o jogo uma das fidalguias dos Cavalcantis; por isso o velho pecador, que não era homem de pregar como Frei Tomás, desconversava o caso.
Sucedeu que os prédios queimados por Luís Barbalho fossem comprados, uns diretamente e outros em segunda mão, por Manuel Rebelo, pai de Vital e negociante de grande giro, que havendo acumulado cabedal, não perdia ocasião de dar-lhe seguro e vantajoso emprego.
Outro, se ele não se propusesse, haveria os bens e por mais vil preço. Não obstante, aquela coincidência fortuita tornou-se crime aos olhos dos parentes propensos a buscar um bode expiatório para as culpas de seu conjunto.
Ainda Vital não era conhecido de Leonor, que já esta aprendera da mãe a abominá-lo, como o herdeiro, no nome e no rancor, do usurário que arruinara seu pai, reduzindo à extrema pobreza sua casa. Mas estas sementes de malquerença em coração de menina são arriscadas, porque em vez dos abrolhos, acontece as mais das vezes brotarem rosas.
Já se vê que André de Figueiredo não podia ver de boa sombra que sua sobrinha fosse requestada por um Rebelo, que além de pífio mercador, indigno de levantar os olhos para uma descendente dos Holandas e dos Cavalcantis, era figadal inimigo da família.
Não disfarçara Rebelo os obstáculos com que tinha de afrontar-se o seu afeto; e todavia não se abateu o ânimo esforçado.
Sua condição de homem sem nascimento, ele a aceitara como uma injustiça da sociedade; e desde muito moço foi seu timbre destruir essa barreira que os prejuízos antepunham às nobres e legítimas aspirações de sua alma.
Podia como outros comprar um hábito de Cristo ou algum ofício dos que traziam nobreza. Mas sua fidalguia, não a queria ele mercada e somente conquistada por seus feitos. Assim foi que adquiriu todas as prendas e gentilezas de cavalheiro, e com tal realce, que não havia nobre em Pernambuco senão em todo o reino, capaz de lhe disputar a primazia em qualquer exercício de corpo ou de espírito.
Daí provinha o seu justo orgulho de se haver feito a si próprio grande fidalgo, sem necessidade de brasão e linhagens, pelo único estímulo de seus brios generosos. E tinha um pressentimento de que sua Leonor o estimaria mais assim, filho de suas obras, do que alapardado em ridículos pergaminhos.
Desde aquela tarde do cravo, cada vez que Rebelo queria avistar-se com a dama de seus pensamentos, custava-lhe isso, como dissera o governador, um assalto d’armas ou uma batalha campal.
Tinha ele mensageiros que o traziam informado dos passeios de Leonor, e o avisavam das ocasiões em que a mãe lhe consentia estar à janela, ou a levava fora, em passeio e visitas.
Então corria o mancebo a Olinda, se já ali não estava oculto em casa do alvissareiro, e acompanhado de dois acostados de sua confiança ia-se ao enconntro de Leonor, para cortejá-la com o respeito devido a uma rainha e significar-lhe com o gesto singelo da mão esquerda sobre o coração, que ela continuava a reinar ali como soberana.
As mais das vezes, antes de aproximar-se da donzela, tinha ele de romper através das espadas e adagas de André de Figueiredo e sua comitiva; outras tomava-os de surpresa, e era na retirada que se travava a peleja.
Nessa porfia andavam tão tribulados amores, quando a carta régia da criação da vila do Recife levou a palácio o capitão-mor, donde resultou a intervenção de Sebastião de Castro em favor dos dois amantes.
Bem que penhorado pela ação generosa do governador, não se deixou Rebelo afagar pela travessa esperança que lhe roçava o coração com as asas verdes.
Sabia ele de que têmpera era a soberba dos Cavalcantis, como o ódio de André, de Figueiredo: não bastava para dobrar esse aço o favor de algumas palavras. embora de pessoa de tamanha valia.
Três dias depois, sobre tarde, Vital Rebelo encaminhou-se a cavalo para Olinda, ansioso por ver Leonor, em cujos formosos olhos se não tinha mirado desde muitos dias.
Passou a ponte do Varadouro, subiu a ladeira, e entrou na Rua de São Bento. Estava a donzela à sacada, e debruçou-se ao avistar o galante cavalheiro, pendendo-lhe da mão mimosa uma cândida e formosíssima teia de Cambray, cercada de rendas de Flandres.
Quando passava o mancebo por baixo da janela, soltou-se o lenço que Vital Rebelo, recebeu na palma, beijando-o uma e muitas vezes, sobretudo nos emblemas que trazia bordados a fio de seda pelas mãos de Leonor, e eram um cravo encarnado ao qual servia de vaso um coração.
Tornando a casa, ainda enlevado, agradecia o alferes a Sebastião de Castro sua ventura; pois aquela prenda. trabalhada por Leonor nas horas de saudade, não teria ela nem ânimo nem liberdade de oferecer-lha, se não houveram cessado a severidade e vigilância de que a cercavam.
De feito, o que Vital não ousara esperar veio a realizar-se, ainda que não em muita relutância e acerbas contestações.
Relatara o capitão-mor aos principais da família quanto passara em palácio, e para todos ficou evidente que o governador querendo proteger Vital Rebelo, por quaisquer motivos, fazia do casamento deste com Leonor a condição do prometido favor de protelar a criação da vila do Recife, e frustrá-la sendo possível.
Sebastião de Castro tinha para si que nada prometera, e ficara senhor de proceder como julgasse mais acertado de futuro, em face das circunstâncias. Era essa uma das sutilezas do fidalgo: persuadir aos outros de empenhos que, além de não tomar, ele costumava ressalvar por umas palavras ou reservas mentais a que se não dava atenção.
Largamente se discursou no sofá acerca do que havia a fazer em tal emergência. Logo em princípio preponderou o alvitre de repelir sem mais exame a possibilidade de uma aliança degradante para a nobreza e em particular para os Cavalcantis; e as razões dos mais políticos sobre a necessidade de derrogar um tanto no lustre da nobreza pernambucana para salvar-lhe a suma que eram as regalias e privilégios, retrucavam que se não havia mister de tal sacrifício, quando podiam fazer que o Senado de Olinda embargasse a execução da carta régia obtida ob e sub-repticiamente.
Destes últimos eram os mais assomados, como de razão, André de Figueiredo que as públicas estimações juntava as particulares das afrontas recebidas, e também o ouvidor Arouche. No outro partido estava o Sargento-Mor Cristóvão de Holanda, que era de natural brando e conciliador.
Acudiu então Filipe Uchoa com o seu peco de reduzir diferenças e sugeriu o alvitre de se não embaraçar pelo enquanto o casamento, sem todavia aceitá-lo definitivamente, e assim ganhando-se tempo, o que era de toda importância para o caso, diferia-se a dificuldade que mais tarde se resolveria como pedissem as circunstâncias.
Era o bacharel camarada de Vital Rebelo ou inculcava-se aí; mas esse favor de Sebastião de Castro pelo alferes estava-lhe fazendo cócegas à vaidade, pelo que maquinava cinzar ao governador o qual nessa bisca da política era homem para dar-lhe sota e ás.
Tão vários e encontrados pareceres, ouvia-os João Cavalcanti com semblante de juiz que pesa o pró e o contra. Às vezes, embora raras, cobrava esse ânimo alquebrado o vigor primitivo, e mostrava a efígie do galhardo e leal cavalheiro que fora.
Tomou ele a palavra com autoridade, e todos o escutaram reverentes.
– Se nesse casamento está o penhor de nossa vitória e portanto da conservação de Olinda e de sua nobreza, que muito é tão pequeno revés em comparação da desafronta de nossos brios enxovalhados pela mascataria do Recife? E uma vez que havemos de passar por essa prova, cumpre sofrê-la com ânimo de cavalheiros, sem despeitos nem subterfúgios.
Neste ponto Filipe Uchoa corando ao de leve, enfrestou o olhar por cima dos óculos para examinar o efeito que produzira no semblante dos outros a indireta do tio.
– Esse Rebelo, continuou o capitão-mor, não é nobre; mas também por seus cabedais e trato de vida já se não pode dizer um peão. E os descendentes dos Cavalcantis, Coelhos, Albuquerques e Holandas, temos fidalguia demais, que sobra sem dúvida para repartir com os maridos de nossas filhas e sobrinhas:
Ficou pois decidido que se deixaria o campo livre ao mancebo para cortejar a donzela, com o que ele infalivelmente se afoitaria a pedir-lhe a mão, sôfrego da honra insigne dessa aliança, ainda mais do que dos arrebatamentos da paixão.
Não se atreveu André de Figueiredo a opor-se de frente ao capitão-mor. Arrancou desabridamente, como quem se não podia conter, e entrando por casa, foi-se à irmã:
Querem casar Leonor com o filho do judeu que desgraçou-lhe o pai. Com o meu Voto, nunca o fareis. E também vos digo que, eu vivo, aquele vilão não passará a soleira desta casa. Nem jamais terei por meu sobrinho e vosso filho o perro que eu jurei de coser com esta adaga.
Parece que D. Antônia contou ao tio as ameaças do irmão, pois nessa mesma tarde, antes de montar a cavalo, buscou o capitão-mor a André de Figueiredo.
– Sabereis, meu sobrinho e senhor Capitão André de Figueiredo, que me veio ao conhecimento vossa intenção de desafiar-vos com Vital Rebelo; e então ocorreu-me dizer-lhe que doravante, visto ser por minha vontade que o rapaz corteja Leonor, não é com ele, mas comigo, que vos tereis de haver, do que vos dou aqui por ciente.
Estas palavras as proferira o velho desempenando o grande talhe com o garbo marcial de outros tempos; e rematou-as batendo com a palma da mão direita nos copos da espada suspensa ao quadril. Depois cortejou, tocando com donaire na aba do chapéu:
– Ao seu dispor, senhor capitão.
André de Figueiredo, de cabeça baixa, não abriu boca, temendo ao descerrar os lábios que lhe rompessem, não palavras, mas todas as pragas do inferno que lhe ferviam no coração. Quando se foi o tio, rugiu de cólera, arrancando um punhado de barbas.
Desde esse dia sumiu-se de casa. Soube-se depois que partira para seu engenho do Cairá, onde conservou-se por muito tempo fermentando sua ira.
Tais eram as ocorrências que nos dias anteriores haviam conduzido os amores de Vital à feliz conjunção em que ele os achara na sua ida a Olinda, e em que permaneceram até o dia dos desposórios.
CAPÍTULO V
UM ECLIPSE DA LUA-DE-MEL, COM QUE NÃO CONTAVA O GOVERNADOR, O QUAL SE
PRESUMIA DE SABER DE TUDO, ATÉ DE ASTROLOGIA
Marcou-se para as bodas o dia 1º de setembro de 1709, que veio a cair em domingo.
Fora preciso a Vital a muita paciência que ele tirava de seu grande amor para suportar até aquele dia as impertinências e arrogâncias da família Holanda. Começara pelo sim, que só lhe deram depois de mil negaças, havendo o cuidado de encarecer-lhe sobre medida a honra que recebia com essa aliança à qual se tinham movido por comiseração às súplicas de Leonor.
Dissimulando a revolta de seus brios, soube Rebelo, todavia sem quebra da cortesia, rebater-lhes a arrogância.
– Podeis guardar esta certeza, senhores. Tão precioso tesouro é para mim, irmão de D. Leonor, que a nobreza de Pernambuco não tem cousa que o valha, nem eu o trocaria por todas as fidalguias do mundo. Por isso não canso de agradecer a Deus, Nosso Senhor, a ventura de ma ter concedido.
No dia marcado, e à noite, como era então o costume, celebraram-se as bodas nas casas de João Cavalcanti, com a pompa e luzimento adequados à fidalguia da noiva e riqueza do noivo.
Leonor estava deslumbrante sob os cândidos véus que lhe nublavam de tênue sombra diáfana a imagem formosa, tocada pelas vivas tintas do rubor, e lhe perfumavam a lindeza de uma graça angélica.
O nosso amigo Lisardo de Albertim, no epitalâmio que teve de recitar à mesa do banquete, na sua qualidade de poeta familiar da casa, comparou a gentil noiva com a Aurora, a deusa da luz descendo dos céus, aljofrada de orvalhos, para abrir com os clássicos dedos de rosa as portas do Oriente:
Envolta nos puros véus,
Qual Aurora prazenteira
Que meiga desce dos céus
Ao raiar da luz primeira,
De per’las vestindo o manto luzente
Para abrir as do Oriente
Rijas portas de rubim;
Ela, a dríade formosa destes prados,
Com seus dedos de rosa e de jasmim,
Abre os pórticos dourados
Do templo do himeneu.
Era feliz o Albertim nas suas comparações. Ali, no meio da sala, se repimpava D. Severa, a ninfa olindense, que esticada por um vestido verde-gaio a ponto de verter sangue da cara, estava retratando o madrigal do poeta, como a viva imagem de uma roseira de Alexandria.
Desde o principio da noite que se poderia observar na sala entre os parentes da noiva um continuo apuridar-se que não era consoante em companhia de amigos e para fim tão prazenteiro como aquele.
Não deixou Vital Rebelo de fazer esse reparo, assim como de notar que o centro daquela trama de cochichos que se estava urdindo ali, era o bacharel Filipe Uchoa, pessoa a quem apesar de camarada ele já não via com boa sombra pela indizível repugnância que lhe causavam aqueles ademanes refolhados.
Reclamado pela cerimônia religiosa, que ia fixar a sua sorte e prende-lo por laços indissolúveis, não prestou mais atenção àqueles manejos senão à hora do banquete em que eles se tornaram mais inquietos, porventura com a aproximação do momento esperado.
Sentiu o mancebo um vago e indizível receio travar-lhe do coração, que nesse instante se engolfava na ventura de achar-se unido para todo o sempre à sua Leonor. Era como o pressentimento de uma nuvem que pudesse toldar de repente o céu límpido dessa felicidade tão ansiada.
O Capitão-Mor João Cavalcanti, depois de ter rendido o preito que um bom fidalgo devia a tão suntuoso banquete, levantou aos noivos o brinde de honra fazendo voto para que lograssem unidos muitos e longos anos de felicidade; no que foi acompanhado por todos os convivas, mas sem efusão.
Preenchido esse ato do cerimonial que lhe competia de juro como chefe da linhagem, eclipsou-se o capitão-mor da casa do banquete e recolheu-se aos seus aposentos de dormir, pois era chegada a sua hora habitual.
Era então costume, que se acabou com a recente invasão das modas francesas, continuar a festa das bodas até ao romper da alvorada.
No maior calor do baile e das folganças, os noivos iludindo a vigilância e dicho dos convivas maliciosos buscavam esgueirar-se furtivamente, azo que nem sempre se lhes deparava.
Não sofria a gravidade dos Cavalcantis esses remoques ou. não o tinham por conveniente naquela ocasião. Assim que, pouco tempo não era passado desde a saída do capitão-mor, quando o Tenente-Coronel Antônio Tavares tomando a direção da festa, falou alto do meio da casa:
– É hora, senhores, de acompanharmos os noivos.
Chegou-se Vital Rebelo, que viu a todos os convivas em alas à espera que fosse ele dar o braço a Leonor, para tomar a frente do préstito.
– Não vejo à porta o palanquim de D. Leonor, nem os nossos cavalos.
Os parentes, a essa observação, entreolharam-se um tanto confusos, e Filipe Uchoa desdobrando pichosamente o seu fino lenço de batista, passou a limpar o vidro dos óculos, com o apuro que ele punha em todas as minudências.
Afinal, como Vital se não movia, à espera da resposta, decidiu-se Antônio Tavares a falar:
– E para que palanquins e cavalgaduras?
– Pois não vedes que a minha senhora D. Leonor e estas damas não podem ir a pé até o Recife? tornou o mancebo surpreso.
– Mas se não vamos ao Recife! acudiu o Tavares com despacho.
– Não vamos ao Recife?… E porventura não é aí que moro eu, senhores, e que tenho casa preparada para receber-nos? exclamou Vital que sentia aproximar-se a tormenta.
Nesse momento adiantou-se o licenciado José Tavares, que era o lampião da irmandade e tomou a palavra. O Filipe Uchoa deixou-se ficar na penumbra, pondo os óculos para apreciar o modo por que o primo ia desempenhar o seu papel.
– Assentamos, a senhora D. Antônia de Figueiredo Barbalho e seus irmãos, em que sua filha e nossa, pois como tios lhe fazemos as vezes de pai, ficasse estes primeiros tempos aposentada em nossa companhia, e nesta conformidade mandamos preparar na casa vizinha os alojamentos precisos, que estão prontos para recebê-la e a seu noivo.
– Ah! E a quem devo tão fina lembrança? Quero apostar que ao nosso amigo, o senhor bacharel Filipe Uchoa?
Proferindo estas palavras com um sorriso de ironia, Vital procurou com o olhar ao bacharel, o qual estava então muito entretido em provar a D. Severa que os encantos nela aumentavam com os anos e que em vez de invernos a ninfa podia afoitamente contar cinqüenta primaveras.
Não se enganara Rebelo. Fora com eleito Filipe Uchoa quem urdira essa conspiração nupcial, com aquela destreza que Sebastião de Castro tanto prezara outrora, quando não havia ainda bem experimentado a do Barbosa de Lima.
Obrigados da necessidade e respeito ao capitão-mor a consentir no casamento de Leonor com o filho do mascate, a mãe e tios da moça não podiam esconder o seu descontentamento. Deste se aproveitou o bacharel para tecer o seu plano cuja suma o José Tavares acabava de anunciar.
Fazendo que Vital Rebelo, rendido aos encantos da noiva, se deixasse ficar na companhia da sogra, seqüestrava-se o novo parente à ralé donde infelizmente procedia, e contava-se com a sedução de Leonor e os conselhos dos tios. para essa regeneração, que se podia consumar com a mercê régia de algum hábito de Cristo.
Desta sorte transformado o mascate do Recife em nobre de Olinda, não somente se apagava a mancha nos brasões da família, mas ainda por cima se ganhava um partidista de grande valia, por seus dotes pessoais, como por seus na veres; e assim pelejariam o inimigo com esse forte reduto, que ele não soubera defender.
A urdidura deste estratagema e o seu discurso foram, como dissemos, de Felipe. Uchoa que excedeu-se em pô-la por obra, encarecendo-lhe as vantagens e ensaiando os vários papéis. Mas a inspiração ou traça primeira parece ter saído do Paço de Santo Antônio.
Entre as boas manhas, de que era tão prendado Sebastião de Castro, uma em que muito se apurou, foi a de insinuar no ânimo de outrem uma idéia, mas de forma e com tal sutileza, que nem ele a exprimia, nem o seu interlocutor poderia asseverar que a ouvira.
Tinha ele diversos métodos para esta sorte, sendo mais freqüente o de por exclusão de partes sugerir no ânimo alheio, por modo que parecia espontâneo, aquilo que tinha em mente, e que não lhe convinha comunicar por palavras sempre arriscadas.
Assim, querendo nomear certo sujeito para algum ofício, se lhe não fazia conta mostrar sua predileção, entrava a achar pecha em todos os indicados, dando uns sinais de quem serviria ao caso, até que o Ajudante Negreiros soletrava-lhe o nome do tal, e ele o acolhia como uma surpresa.
A verdade é que foi na volta do palácio, uma noite, que Filipe Uchoa concebeu o seu engenhoso plano.
Apesar da raiva que tinham a Sebastião de Castro e da linguagem solta que usavam a seu respeito, não deixavam os principais de Olinda de comparecer uma vez por semana no Palácio das Duas Torres, para cumprimentar o governador, pelo qual eram acolhidos com as mostras do mais especial agrado.
Como bom político, pensava o fidalgo que a nau do Estado devia por sua grande monta andar sempre a duas amarras. Com esta máxima significava que se devem distribuir os favores entre os partidos, de modo que tocando a um as mercês, ao outro fiquem os afagos.
Por isso era o governador o primeiro antagonista dos mascates, de quem se rodeava, assim como o primeiro apologista dos nobres, que não perdiam ocasião de feri-lo.
Estando pois em palácio os principais de Olinda, acertou-se de falar do ajustado enlace de D. Leonor Barbalho com Vital Rebelo; e tomando o governador interesse na prática, alongou-se esta pela noite adiante.
Haverá quem repare em ocupar-se longamente do casamento de uma moça, um governador, cujo pensamento deve estar sempre preocupado de negócios de suma gravidade. Mas, além de contar-se o talento das minudências entre ápices régios, atenda-se a que naqueles tempos idos a arte da governança ainda se praticava por esse teor da política de aldeia.
Demais, tenho para mim que no alfarrábio donde se vai extraindo esta crônica anda metida muita alegoria, com que o letrado Carlos de Enéia, seu apócrifo autor, quis significar certos enredos de governo por contos de amor. figurando talvez interessado na sorte das damas quem somente se movia pela vaidade das honras e ambição do mando.
De envolta com boa cópia de banalidades, deixou Sebastião de Castro escapar a suposição de que Vital, aliando-se à família Holanda, seria atraído insensivelmente para o partido dos nobres com o que estes muito ganhavam.
Esta semente lançada em tão boa terra, e com o amanho de Filipe Uchoa, por força que havia de dar fruto. E a prova aí estava no plano tão bem tecido para reter em Olinda o noivo de Leonor.
Compreendeu Vital de pronto o desígnio dos novos parentes e a desvantagem de sua posição. Como última concessão ao orgulho dos nobres, e também para não expor ao desdém e motejo seus amigos mercadores, não os convidara o noivo a suas bodas, e se acompanhara nelas unicamente de um amigo, o Capitão Eusébio Monteiro, que estava a seu lado.
Não se deteve, porém, o brioso mancebo, e erguendo a fronte com serena altivez, atirou aos nobres estas palavras:
– Pois, senhores, com bastante mágoa vos digo eu que de D. Leonor Barbalho, enquanto donzela, podiam sua mãe e seus tios dispor a belprazer; de D. Leonor Rebelo, minha esposa e senhora, não dispõe ninguém mais senão ela, e porque dando-me sua mão, aceitou-se por minha companheira e dona de quanto me pertence, é de razão que a conduza a sua casa.
Voltando-se então para o amigo:
– Capitão Eusébio Monteiro, mandai vir o palanquim de D. Leonor e os cavalos que meus criados devem ter à mão aqui perto.
Enquanto saía o capitão a satisfazer o pedido, Leonor aproximou-se tímida e vergonhosa de seu noivo para suplicar-lhe que fizesse a vontade à mãe.
Pelos olhares que trocava a donzela com D. Lourença, enquanto balbuciava palavras trêmulas, se estava conhecendo que ela desempenhava uma parte que lhe fora destinada naquele drama de família.
Ao ver com que respeito Vital escutava Leonor e o mimo de suas maneiras buscando dissuadi-la da idéia de condescender com a vontade da mãe, os parentes tinham por certa a vitória. Cuidavam eles que às delícias de uma noite de noivado, não havia tenção que lhe resistisse.
Da porta, Eusébio Monteiro fez sinal ao amigo, que sua ordem estava cumprida.
– Vamos, D. Leonor! disse Vital oferecendo a mão à sua noiva.
Ainda chegou a donzela a roçar os dedos afilados na palma do cavalheiro: mas retraiu-se logo sob o olhar de sua mãe e a um movimento da tia D. Lourença, que lhe puxara pela manga.
Voltou-se o mancebo, sentindo que a donzela retraía-se:
– Então, senhora?
– Não posso! balbuciou Leonor.
– Não podeis acompanhar-me à vossa casa do Recife? insistiu Vital empalidecendo.
Pôs o mancebo os olhos cheios d’alma em sua amada e disse-lhe com a voz repassada de tristeza:
– D. Leonor, acabastes de jurar a Deus neste mesmo momento de me acompanhar por toda a vida, como eu a vós, e sermos eternamente um do outro; ainda se não apagou o eco destas palavras, e já em vossa alma se apagou a lembrança delas, que recusais seguir o esposo e entrar em vossa casa para ficar na alheia?
– Nunca lhe será alheia a casa em que nasceu, acudiu D. Antônia de Figueiredo.
– Sabe Deus, senhora, continuou Vital dirigindo-se à noiva, quanto me mereceis; sabe o quanto fiz para obter vossa mão e o muito mais que faria. Tudo pareceu-me pouco, e ainda me parece neste momento. Só uma cousa vos não dei nem a posso dar, que sem ela não seria digno de vosso amor. Mas essa, que é a honra, ninguém a deve mais resguardar do que a por quem, sobre todos e sobre mim, a prezo e estimo.
– Pretende o Senhor Rebelo que lhe é desonra nossa companhia! observou Felipe Uchoa.
– Desonra seria renegar dos meus e bandear-me a outros, tornou o mancebo indiferente à ironia. Não posso ficar em Olinda, D. Leonor, sem quebra de meu nome, que por não ser de nobre, não o é menos para mim, pois vos pertence. Deixar-me-eis partir só, e vos negareis desta sorte àquele a quem vos destinou e vós mesma vos concedestes?
Decorreu um instante no mais profundo silêncio. Com os olhos fitos em sua noiva, Vital esperava uma palavra, um gesto de aquiescência.
– Adeus, senhora! disse afinal com uma voz em que se lhe partia a alma.
E caminhou para a porta.
Este desfecho não o esperavam os parentes que tomados de surpresa, se foram ao primeiro assomo de despeito. Antônio Tavares, primeiro, e os outros após, arrancaram das espadas com brados de sanha:
– Daqui não saireis!
Lançou-lhes Vital um olhar de frio desprezo.
– Se eu não estivesse em casa de fidalgos, cuidara ter caído em uma emboscada. Quereis forrar-me ao desgosto de deixar-vos? Tendes um meio certo, que é tirar-me este resto de vida, com o que me fareis grande amizade, própria de parentes que sois.
Com estas palavras amargas, cruzara os braços o mancebo afrontando sereno as ameaças dos nobres, que já cobrados do primeiro arranco, se retraíam confusos e desconfiados.
A agitação que houvera na sala não deixou ver o arrebatamento de Leonor, a qual no momento de sacarem seus tios das espadas, se arremessou para defender com o corpo o peito do marido. D. Antônia e D. Lourença, lhe estavam ao lado, reprimiram este generoso movimento.
Como se tivessem de todo reportado os nobres, deixando-lhe franco o passo, atravessou Vital vagarosamente a sala, e voltou-se do limiar da porta para dizer ainda uma vez:
– Adeus, senhora!
Leonor desmaiara, mas não o viu o marido, que já tinha desaparecido no corredor da saída.
CAPÍTULO VI
NO QUAL SEBASTIÃO DE CASTRO PÕE OS PONTOS NOS II, E DÁ UMA LIÇÃO MESTRA NO ALFERES VITAL REBELO
Os dias que seguiram-se à noite das bodas, a vida de Vital Rebelo não foi senão a longa e aziaga modorra, em que apagou-se o sonho inefável de sua ventura.
Todavia, um só instante não se arrependeu do que havia feito. Tinha ele uma alma dessas para quem a virtude não é a cousa banal que o mundo chama dever; mas um supremo enlevo da consciência, que sente-se divinal quando triunfa das próprias paixões.
Para os homens deste temperamento a honra não consiste em vanglórias que insufla a vaidade; e sim no íntimo contentamento de si mesmo, que é a seiva robusta de que se nutre sua existência.
Resolvendo ficar em Olinda, Vital não teria rompido o fio dourado de sua felicidade, e estaria àquela hora gozando as primícias do amor terno e mavioso de sua Leonor. Mas no estado das cousas, aquele passo o rebaixara em sua própria consciência; e desde então, sob a vergonha dessa humilhação, já sua ventura não teria a pureza. imaculada que o enchia de júbilo; as carícias de sua noiva perderiam o sabor celeste com o travo deste pensamento, que ele as comprara por uma vileza.
Perdera tudo quanto podia embelezar-lhe a existência, mas salvara-se a si, e podia-se dizer o homem que fora, e não um desses espólios d’alma que, abandonados de sua própria individualidade, andam no mundo como vasilhas humanas, onde se despejam e fermentam as paixões alheias.
Nos primeiros tempos o tédio que tomara ao mundo, tornando-lhe grata a solidão, o levara pelos sítios escusos onde parecia-lhe que o entendiam os rumores do bosque sussurrante.
Por vezes na volta destes passeios encontrava-se com a cavalgada de Sebastião de Castro, que vinha também da sua costumada excursão. Respondia o governador com muita urbanidade à cortesia do mancebo; e correspondia-lhe de um modo tão afetuoso, que metia inveja aos da comitiva.
Estas repetidas mostras de apreço, significativo a ponto de traduzir-se nos apertos de mão e zumbaias da gente de palácio, despertaram no espírito aborrido de Vital Rebelo uma idéia que, repelida à primeira e outras vezes, tornava sempre com insistência.
Fora o governador quem arranjara seu casamento pela recomendação que fizera ao Capitão-Mor João Cavalcanti; e pois bem podia ele, que vencera a maior dificuldade, cortar agora a mínima exigência que sem propósito faziam os tios de Leonor.
Logo, porém, arredou este pensamento, pela aversão que sempre tivera de solicitar favores. Mas tratava-se de sua felicidade, porventura de sua vida; quando o governador lhe dava tantas provas de apreço, parecia-lhe demasiada sobranceria, senão desatino, desprezar os bons ofícios que já uma vez tanto haviam aproveitado.
No meio desta perplexidade resolveu consultar Carlos de Enéia contando que o amigo o dissuadiria da idéia. O contrario aconteceu.
– Não só procedes com acerto falando a Sebastião de Castro, como no teu caso é o que de melhor podes fazer, respondeu o letrado.
– Pensas então que obterei por seu intermédio chamar à razão os tios de Leonor.
– Alguma cousa com certeza obterás deste passo, disse Carlos de Enéia com um leve sorriso de ironia que apagou-se logo na habitual expressão do semblante melancólico.
No seguinte dia foi Vital Rebelo a palácio.
Sebastião de Castro o recebeu afetuoso, e indagando com vivo interesse dos pormenores da cena que passara na noite das bodas, pôs o mancebo a caminho do pedido que lhe vinha fazer.
– Fiado na muita bondade de Vossa Senhoria, que já uma vez foi servido interessar-se por minha sorte, venho rogar-lhe a continuação do favor que espontaneamente já mereci, na esperança de que tão valiosa intervenção porá um termo à birra malfadada dos parentes de D. Leonor.
O prazenteiro semblante do governador fechava-se ouvindo o mancebo:
– E por que recusa o senhor obstinadamente morar em Olinda, na companhia de sua mulher? Não lhe acho razão; nem admira que os Cavalcantis se mostrem ofendidos com o seu procedimento.
– Sabe Vossa Senhoria quem eu sou! respondeu Vital com altivez, e compreende que os meus brios não me permitem ficar em Olinda. É ponto de honra e não acinte.
Tinham certas palavras a propriedade de arranhar o ouvido fidalgo de Sebastião de Castro; essa de brios era uma das tais.
Pelas colisões freqüentes em que o colocava o seu sistema de governo, e pelo hábito de transigir com as dificuldades em vez de as remover, adquirira ele a admirável maleabilidade com que sabia ajeitar-se a todas as circunstâncias.
Dai provinha que as melhores têmperas d’alma, como o sejam a firmeza, a coerência, a perseverança, eram cruezas de que se julgava ele isento, e que tachava nos outros como graves defeitos que os tornava inábeis para os cargos da República.
Tomara a sua fisionomia um gesto desdenhoso ao ouvir as últimas palavras do mancebo, a quem redargüiu nestes termos:
– O senhor ainda está muito moço. Com os anos hão de passar esses verdores do ânimo exaltado; e então aprenderá por experiência que se não sacrificam cousas de mor ponderação a melindres e enfados do ânimo por demais suscetível.
– A idade há de quebrar-me as forças do corpo e do espírito, que tal é nossa humana condição; mas esta isenção que Vossa Senhoria apelida melindres nasci com ela e com ela morrerei.
– Quer um conselho de amigo? tornou Sebastião de Castro com um modo insinuante. Faça a vontade à sua sogra; vá para a companhia de seus parentes, e fio-lhe eu que se não arrependerá.
– Esse alvitre é impossível; e por estar disso bem convencido foi que resolvi buscar a intervenção de Vossa Senhoria.
Fechou-se então de todo o fidalgo:
– Como governador desta capitania, encarregado de prover às necessidades da República, veda-me o meu regimento intrometer-me no sagrado da família, retrucou Sebastião de Castro.
– Neste caso não devia o senhor governador ter trazido as cousas ao ponto a que chegaram.
– Naquela ocasião o vosso casamento resolvia graves dificuldades, e acabava com uma rixa, que turbados como andavam os ânimos, podia ser o facho da guerra civil; estava pois na minha alçada, pois que daí dependia a paz da capitania. Agora não é assim; realizou-se a aliança, e só do senhor depende mantê-la.
– Todavia, esta semana passada, certo rapaz que desinquietara uma rapariga lá para Santo Amaro, foi obrigado a casar por ordem de Vossa Senhoria.
– Não há tal. Seria por ordem do meu ajudante, e sem conhecimento meu.
Tinha Sebastião de Castro esta balda de lançar à conta dos subalternos a culpa dos atos que praticava, quando sobre eles cala a censura. Por este modo arranjava para si o cômodo rojão do rei constitucional, que não pode errar; mas pouco lhe valeu isso contra os ataques dos olindenses e mais tarde contra o achincalhe dos mascates.
Apesar do que dizia o discreto Secretário Barbosa de Lima, e do que trovejava o farfalhudo Ajudante Negreiros, era corrente que não se movia uma palha na governação da capitania sem licença de Sebastião de Castro, o qual entendia com tudo, até com a ração da tropa e o bê-a-bá dos meninos na escola.
De volta de palácio, passou Vital por casa de Carlos de Enéia, para contar-lhe o malogro que ele em grande parte imputava ao amigo por havê-lo animado a esse passo, longe de o dissuadir.
– Disso que sucede agora, te preveni há tempos, mas não me quiseste crer.
– Entretanto ainda ontem me prometias que alguma cousa eu obteria de ir ao governador, replicou Vital surpreso.
– E avalias em pouco a lição que recebeste? Depois do que ouviste em palácio, já não duvidarás que Sebastião de Castro quando arranjou o teu casamento com Leonor, só teve em mira quebrar-te o orgulho, amarrando-te ao cepo de humilhação que te preparavam os parentes de tua mulher; porque tem como certo, que essa conspiração de alcova é obra insigne de nosso homem.
– Presumes isso? exclamou Vital tomado de igual suspeita.
– Ex ungula leonem; pela trama conheço a aranha que teceu a rede. Ele deu o fio e o teu bom amigo o urdiu com a sua consumada perícia.
– Disso tenho certeza, ainda que não posso atinar com o interesse que pudesse ter ele em magoar-me.
– O de agradar ao governador, ao passo que te privava de um bem de que ele não podia gozar; queres incentivo maior do que esse da ambição abraçada com a inveja?
Vital calou-se, tomado do tédio que lhe inspiravam estes manejos, e Carlos de Enéia continuou:
– Se aceitasses com a precisa coragem a prova a que Sebastião de Castro submeteu a tua docilidade, ficava teu amigo, e não tardaria muito que atirasse fora o ajudante como um sapato acalcanhado para calçar-te ao pé. Como porém te mostraste exaltado, intolerante, sem traquejo e até malcriado, podes contar que doravante estás no índex expurgatório.
Desde então Vital Rebelo não contou senão consigo, e buscou modo de falar a Leonor para concertar nos meios de tirá-la da casa de André de Figueiredo, onde se achava guardada com a maior vigilância.
Ao recordar os acontecimentos da noite fatal de suas bodas, doía ao mancebo no fundo d’alma a fraqueza com que se houvera Leonor. Supunha-se querido com mais ardente afeto, desse que faz as heroinas do amor. Esperava, porém, que a donzela, livre da sujeição em que a trazia a mãe, havia de ser a esposa carinhosa e terna que ele sonhara.
Uma tarde, Leonor, aproveitando um instante de liberdade, saiu à cerca e estava a cismar à sombra do arvoredo, quando apareceu-lhe de repente Vital Rebelo que ajoelhou a seus pés.
Como se ante ela houvera surgido um espectro, a mísera donzela espavorida e fora de si deitou a correr para a casa, sem dar tempo a que lhe dissesse o marido uma palavra.
O abalo que sentiu Vital escureceu-lhe a vista; arrimou-se ele ao tronco de uma árvore e permaneceu imóvel o espaço de muitas horas, a ver se vinha alguém que o acabasse ali onde se acabara a sua esperança. Quando dai tornou, era no seu pensar um viúvo; e desde esse dia trouxe luto por seu amor. que se finara.
Ignorava que André de Figueiredo, já de volta a Olinda, protestara a Leonor matá-lo, a ele Vital Rebelo, à sua vista, se ela tivesse a infelicidade de dirigir-lhe uma palavra ou consentir que ele se lhe aproximasse.
Esta ameaça que não lhe saía da mente, obrigara-a a repelir com horror o único bem que lhe haviam deixado, a doce esperança de rever o marido. Assim que, no momento de avistá-lo depois de tão longa ausência, o que a dominou foi a idéia atroz de que sucumbisse aos golpes traiçoeiros.
Correram os meses e completou-se um ano depois do casamento de Vital Rebelo; durante esse período, em vez de se disporem as causas para uma solução favorável, ao contrário mais se baralhavam com as complicações políticas e as animosidades entre os nobres e os mascates.
Não era Rebelo e nunca fora dos empenhados na luta, porque cedo aprendera a desgostar-se dos partidos que são uma amálgama de toda a casta de gente e de paixão. Mas não obstante carregava para os nobres com a culpa dos mercadores, a quem não quisera renegar.
Por esse tempo foi que veio à noticia do mancebo um aviso de terem os Holandas mandado a Roma impetrar do Papa um breve de anulação do seu casamento.
O pensamento cruel de que Leonor livre podia pertencer a outro venceu o ressentimento de Vital. Voltou a Olinda, onde não fora desde oito meses, e achou nos grandes olhos castanhos de Leonor a mesma ternura de outrora, ainda que tocada de uma sombra merencória das saudades tão longamente curtidas.
Tornou uma e mais vezes, e se nem sempre era tão feliz que encontrasse Leonor á janela, ou a visse de longe na cerca, com uma troca de sinais rápidos e quase imperceptíveis chegaram os dois namorados esposos a combinar a entrega do bilhete em que Vital pedia a entrevista.
André de Figueiredo soubera das vindas de Vital Rebelo a Olinda; mas o Capitão-Mor João Cavalcanti, apesar do que havia ocorrido, proibira que se tirassem razões com o marido de sua sobrinha, que seu sobrinho era, salvo se ele formalmente as provocasse.
Por isso o capitão. roendo o freio com impaciência, redobrava de vigilância à espreita do momento da desforra da vingança.
CAPÍTULO VII
D. SEVERA ACOMPANHADA DE SEU PAJEM PROPÕE-SE PELA PRIMEIRA VEZ A REI’ARAR
UM TORTO DONDE IA SAINDO UMA TORTA
É tempo de voltarmos à entrevista em que deixamos Vital Rebelo na casa do trem.
O riso escarninho e a voz que ameaçara, bem os reconheceu o alferes, e compreendendo o passo arriscado em que se achava, cuidou em defender a vida, ou vendê-la caro aos inimigos.
Houve um momento de silêncio tão profundo, como era a treva que enchia o vasto armazém; mas com pouco rangeram os gonzos de uma porta, e apareceram dois escravos com tocheiros acesos.
O seu baço clarão que derramou-se pelo aposento mostrou a Vital o Capitão André de Figueiredo à frente de seis sequazes armados, com as espadas desembainhadas e prontos a atacá-lo ao primeiro sinal.
O mancebo mal teve tempo de reclinar sobre um velho baú que lia via ali perto, encostado à parede, o corpo desmaiado de sua querida Leonor, e cair em guarda contra as seis catanas que o assaltavam.
André de Figueiredo, de parte, com as mãos apoiadas na cruz da espada que fincara no chão, assistia ao combate imóvel; mas via-se-lhe no semblante a violência que fazia sobre si em conter os ímpetos de seu gênio arrebatado.
– Bem vejo que isto é uma emboscada, disse Vital Rebelo com desprezo, defendendo-se galhardamente. Eu sabia que os fidalgos de Olinda eram peritos em armá-las, desde os tempos dos judeus holandeses, seus ilustres antepassados; mas os daquele tempo usavam pelejar nelas, e não se resguardavam como os de agora.
A lâmina da espada de André de Figueiredo vibrou com o estremeção que lhe imprimiram as mãos convulsas, mas ainda pôde o capitão dominar este assomo, com a idéia de humilhar seu inimigo pelo desprezo.
– Estais enganado; isto não é emboscada, mas obra de justiça; é execução que se costuma fazer em réu de morte, respondeu entre um riso de mofa.
Com um corrupio da espada fez Rebelo recuar os assaltantes, alguns dos quais já tinham no corpo a marca do ferro; e aproveitou da aberta para replicar ao capitão:
– Ah! é obra de justiça? Mas parece que o carrasco não sai do ofício, pois está aí feito um estafermo em vez de manejar o seu cutelo.
– Não quero manchar a minha espada de cavalheiro; hás de morrer à mão de tua laia, tornou o capitão com gesto de asco.
– Tem razão o nobre fidalgo; só esqueceu um ponto e é que para dizer destas cousas, se precisa de ter a espada mais comprida do que a língua, senão…
Neste ponto, operou-se tal mutação da cena, que não é possível descrevê-la sem cortar o fio à palavra de Vital.
Desde o primeiro assalto, curando o mancebo de tomar a melhor posição para a defesa, aproximou-se de um grande armário encostado ao fundo do aposento, cerca do qual havia algumas arcas e canastras espalhadas pelo pavimento.
Assim, tendo as costas guardadas de qualquer surpresa com as canastras, que ia arranjando a mão esquerda enquanto a direita combatia, fez ele uma espécie de trincheira que lhe resguardava meio corpo; e sobre ela debruçava-se para atirar o bote certeiro da sua espada a algum dos sequazes menos prontos em recuar.
Quando André de Figueiredo lançou-lhe o último insulto, ao rechaçá-lo, mediu o mancebo com o olhar a distância que o separava do inimigo, e quase tão rápido como esse olhar, saltou em cima de uma das arcas, dela em outra mais alta, e arremessando-se com pasmosa agilidade, veio cair em face do capitão, antes de aperceber-se este do que se havia passado.
Tudo isto porém sucedeu com tamanha velocidade, que foi apenas uma reticência na resposta de Vital.
– Senão, acabou ele, corre-se o risco de sofrer logo em cima da palavra a correção de sua insolência.
Soaram estas palavras ao mesmo tempo que a lâmina da espada de Vital, batendo de chapa no ombro do capitão. Era à face que a destinara o impetuoso mancebo aceso em ira; mas seu valente adversário, apesar do repente, logrou desviar-se a tempo.
Além de mais pronto e destro, tinha Rebelo nesse momento sobre o capitão a superioridade do enleio em que o pusera a sua investida. E foi aproveitando-se dessa vantagem que de um revés da espada ele desarmou o adversário e prostrando-o, calcou-lhe o pé sobre o peito, em ação de traspassar-lhe a gorja.
Atalhou-o porém um grito de angústia.
Leonor, que pouco antes cobrara os espíritos, mas ainda no torpor do deIíquio, via, sem compreender, aqueles vultos a agitarem-se ao clarão baço das tochas, de súbito recordou-se do lance em que se achava, ao encarar o vulto ameaçador do seu marido prestes a desfechar em André de Figueiredo o golpe mortal.
O sangue de seu tio, do irmão de sua mãe e que lhe fazia as vezes de pai; esse sangue derramado pela mão do marido, era a separação eterna, e mais do que isso, a morte de seu amor, que ela já não poderia sentir, embora apartada, pelo homem que lançasse o luto no seio de sua família.
Esta idéia horrível perpassou como um relâmpago o ânimo da donzela, que arrojou-se para deter o braço de Vital; mas faltando-lhe as forças ao impulso, caiu ali mesmo de joelhos, estalando-lhe a alma no grito da aflição.
Voltou-se Vital; vendo sua mulher, com os cabelos em desordem, os olhos alucinados e o semblante convulso, adivinhou o pensamento que a espavoria. Poupar a vida ao inimigo naquela conjuntura, era entregar-lhe a sua; mas de que lhe servia esta, se cavasse um abismo de ódio entre ele e Leonor?
Um instante não hesitou. Ergueu a ponta da espada, e recuou deixando o capitão livre e escapo da morte.
Os seis sequazes, que atacavam Rebelo, ficaram a princípio atônitos com o desaparecimento do mancebo, que alguns deles julgaram ter caído por detrás das canastras. Outros porém que haviam confusamente entrevisto o salto, cuidaram que fora um ímpeto de fuga.
Quando afinal descobriram o aperto em que se achava André de Figueiredo e corriam a acudi-lo, esbarraram-se com Rebelo que já de volta buscava a primeira posição. Não a pôde alcançar, que os espoletas lhe cortavam a retirada, colocando-o dessa arte em um passo difícil, pois atacado em número tão desigual pela frente, ia sê-lo de costas pelo capitão.
À têmpera d’alma sucede o mesmo que à têmpera do aço; em sendo boa, quanto mais se lhe calca, mais forte ela brande. Com tamanha afouteza investiu Rebelo a troça, que abriu caminho através; e recuperou o primeiro posto junto ao armário.
A este tempo erguera-se André de Figueiredo; com a sanha de um tigre correu ao combate.
– Arredem-se, que este vilão me pertence; não quero que lhe toquem, pois ainda é pequeno para me fartar de cortá-lo.
Rebelo não respondeu à bravata, senão com um sorriso de desprezo. Tolhido como estava de matar este homem, e com a saída embargada pelas grossas portas de jacarandá, o alferes reputava-se perdido; pois afinal se lhe esgotariam as forças e seria obrigado a traspassar-se com a própria espada, para se não render ao inimigo.
Todavia não o abandonara ainda a confiança que tinha na afouteza de seu ânimo, como na força de seu braço. Empenhando o combate com o capitão, ele concentrou-se para dividir a atenção entre o manejo da espada e a pesquisa de algum meio de salvação.
Por diversas vezes se precipitara Leonor para implorar o tio em favor do marido; mas a um aceno de André de Figueiredo, um dos sequazes conduzira a donzela a seu mau grado para o outro extremo do aposento, colocando-se por diante para tirar-lhe a vista do combate.
Entretanto este prosseguia, sanhudo e furioso da parte de André de Figueiredo, sereno e atento da parte de Rebelo, que, pronto em parar os golpes, mas desdenhando as abertas que lhe oferecia a imprudência do inimigo, não cessava de perscrutar os recantos do aposento.
Tinha este duas portas, uma de saída exterior, por onde havia entrado o mancebo; outra de comunicação interior; por onde viera D. Leonor. Ambas estavam fechadas à chave, com trancas atravessadas; e eram champrões de lei impossíveis de arrombar. Por esse lado, pois, não havia esperança de escapula; menos por outro qualquer, pois não se via nas paredes, e nem mesmo no teto, qualquer fresta ou buraco por onde pudesse passar um homem, ainda que ele tivesse o privilégio da enguia.
Nesta estreiteza, em que o ânimo de Vital já se repartia por tantos cuidados, o da sua Leonor a lamentar-se do outro lado, o da guarda a que o obrigavam os amiudados golpes do capitão, e o da busca de um meio de salvação, ainda assim lhe não escaparam os movimentos dos cinco sequazes, que apuridavam-se conchegados entre si e apartados a um canto.
Sussurrou ao ouvido sutil do mancebo a palavra mosquete, e com ela uns ruídos significativos, que lembravam o tinir da vareta no cano de uma arma de fogo. Se lhe restasse dúvida, certos movimentos de um braço meio oculto pelo grupo lhe denunciariam a obra em que se mostravam tão empenhados os sujeitos.
O quer que era estava pronto, pois voltando-se continuaram os marotos a assistir ao combate como simples espectadores; mas notou Vital que o quinto ficara atrás dos outros, e que no ombro do primeiro, mais à frente, aparecia um óculo negro que lhe estava olhando o peito.
No ânimo do mancebo surgiu uma idéia: saltear de repente a André de Figueiredo forçando-o a recuar por modo que se interpusesse à mira do mosquete, com o que não só o faria de escudo contra o tiro, mas livrava-se do inimigo sem o ferir nem tocar, sendo menos difícil então acabar com os outros.
Mas em todo o caso não lhe imputariam a ele só a morte do capitão, e com ela não se levantaria um túmulo para separá-lo de sua Leonor?
Quando ele cogitava nesta dúvida, de chofre bateu o cão do mosquete, e ao disparar-se o tiro, ouviu-se grande estrondo, maior do que se devera esperar da explosão da arma, ficando o aposento sepultado nas trevas.
Para explicação deste acidente, que vinha complicar o caso, carecemos de ir em busca da cavalheiresca D. Severa.
Tinha-se a dona recolhido à sua câmera, e achava-se então justamente em vestes de ninfa, com a insignificante diferença de uma anágua em vez da faixa clássica. Acabara de ler, como costumava, um capitulo do Palmeirim, e repassava na fantasia as aventuras do cavalheiro da fortuna.
Nisto ouviu grande rumor no pavimento térreo, e sobre curiosa, inquieta, vestiu as pressas uma cabaia amarela com que saiu fora a inquirições, levando a candeia na mão.
Se a visse naquele instante, com a capa de seda que na ausência das anquínhas se lhe pregava ao corpo como um estojo amarelo do qual saíam os dois joelhos que serviam de castões aos caniços das pernas, abandonaria com certeza o inspirado Lisardo a comparação da rosa, e buscaria no seu armazém poético outra imagem mais apropriada; por exemplo a flor da abóbora, ainda que esta naquele tempo não tinha entrada no Parnaso.
O corredor estava tranqüilo; pelo que animou-se a ninfa a chegar ao topo da escada por onde vinha o rumor.
– Quem esta aí? perguntou com desplante, ouvindo passos.
A pessoa que era galgou aos saltos a escada; e D. Severa reconheceu o Nuno, seu pajem desde a véspera.
– Acuda, senhora D. Severa, que senão acabam de matar o Vital Rebelo!
– Pois ele está aqui?
– Na casa do trem. Não ouve? Estava a falar com a mulher, a D. Leonor, quando o Sr. Capitão André de Figueiredo, que se pusera de espreita com os seus homens, deu sobre ele, e lá andam aos botes de portas fechadas.
– Leonor?
– Também lá está encerrada, que lhe ouvi as aflições, uma vez, no meio do barulho.
– Coitada!
– E o Rebelo, senhora, que gentil cavalheiro! Sete contra um! Ele só é homem para fazer frente a todos, mas era preciso que estivesse em campo raso. Assim de emboscada, com certeza o acabam.
– Não há de acontecer essa desgraça.
– Se já não aconteceu agora mesmo que lhe falo. A senhora consente que se mate a traição, aqui dentro da sua casa, a seu sobrinho, porque ele o é?
Estava precisamente a D. Severa pensando que era aquele um dos casos em que uma dama, segundo as regras da cavalaria andante, devia intervir em favor do oprimido; pelo que tomando a generosa resolução, disse para o Nuno, com o tom senhoril de uma castelã:
– Ide armar-vos, pajem, enquanto me adereço para amparar nossa formosa sobrinha e salvar-lhe o esposo.
– Mas, senhora; se perdeis um momento, chegaremos tarde.
– Quereis que me apresente neste desalinho, acudiu D. Severa pudicamente; e vós sem armas, que ajuda podereis dar?
Só então reparou Nuno no fresco atavio de ninfa em que se achava D. Severa; e pronto a replicar acerca da sua armadura da véspera que o esperava embaixo, não achou argumento contra a necessidade que tinha a dama, de um traje mais avaro de seus encantos serôdios.
Força foi ao moço, resignar-se durante meia hora em que, roído pela impaciência, descera dez vezes a escada para escutar à porta do armazém, e dez vezes subira para espiar no camarim da dama se ela acabara de adornar-se.
Afinal saiu D. Severa em grande paramento, de anquinhas, cauda, trunfa, pluma e leque, pois não dispensava em ocasiões solenes nenhum desses atavios fidalgos.
Podia o marido de Leonor ter morrido vinte vezes no tempo despendido com esse adereço; mas ela é que não podia derrogar nos seus deveres de dama da primeira nobreza pernambucana.
Desceu a senhora com um andar pomposo ao rés-do-chão, onde o Nuno enfiou apressado a couraça e a cervilheira que deixara ao pé da escada para mais ligeiro correr acima e abaixo.
Depois que o pajem bateu debalde uma e muitas vezes na porta do armazém, lembrou-se D. Severa que do outro lado havia uma janela, por onde mais facilmente poderiam penetrar.
Deram volta, e à sumida luz da candeia, que o vento açoutava, acharam sem mais demora o que procuravam.
Precisamente nessa ocasião, Vital atento ao mosquete prestes a disparar, desviara-se para o lado esquerdo do armário, a fim de no momento dado abrigar-se com a quina do móvel.
Feriu-lhe o ouvido o ceceio das vozes de D. Severa e seu pajem que avisavam no modo de penetrarem no aposento. Notando que esse murmúrio saía da fresta que ficava entre o armário e a parede, adivinhou o mancebo a existência de um vão de janela ou porta naquele ponto. Com um olhar calculou a posição de seus adversários, a distância em que se achavam os to cheiros, e traçou um plano.
Ao disparar o mosquete, arrojou-se ele ao canto do armário, e metendo o braço entre o fundo e a parede, empurrou com tal força o pesado traste que este despenhou-se no chão, causando um temeroso estrondo e apagando as tochas com a violenta deslocação do ar.
Aproveitando-se da escuridão, o. intrépido mancebo encontrou às apalpadelas a janela; cuja aldraba facilmente abriu. Com o baque do armário, D. Severa soltara a candeia, ficando o corredor às escuras; mas percebia-se no fundo uma nesga. de céu.
Por ali desapareceu Vital.
Ao saltar a janela, encontrou resistência que logo cedeu, e ouviu um grito; mal suspeitava que duma peitada tinham virado de cambalhotas,. um sobre o outro, a respeitável D. Severa e seu pajem.
Mas o pior foi que, nesse rolo, a ponta do chifarote de Nuno ia vazando o olho direito da dama, que nessa ocasião provou a. vantagem de possuir um sofrível nariz.
CAPÍTULO VIII
UMA AMOSTRA DA GERINGONÇA POLÍTICA DE NOSSOS AVÓS
Pouco faltava para soarem trindades na torre da Madre de Deus.
Era um sábado, 15 de outubro, e portanto dois dias depois da aventura de Vital Rebelo em Olinda.
Havia essa tarde o ajuntamento do costume na calçada do mercador Viana, que morava como já se sabe à Rua da Moeda, para as bandas do Forte de Matos.
Aos dois e três iam chegando os principais da mascataria, e outros que não tinham voz ativa, mas serviam para fazer número.
Percebia-se que era de ponderação o negócio, não só pela maior companhia, como pela preocupação que se mostrava em todos os semblantes.
Junto a uma das janelas estava sentado o Viana, pai do nosso Nuno, e com quem ainda não tivemos ocasião de avistar-nos.
Era uma formidável amostra de homem, com sofrível estampa, e uma dessas caras sediças, ornadas do clássico passa-piolho, como se encontram a cada volta entre os nossos irmãos de além-mar, e que são vulgarmente conhecidas caras de mestre de barco.
No mais, boa pessoa, um tanto pachorrento e descansado na voz como nos gostos; marroaz, amigo da chelpa que para ele fora sempre a melhor política, o Sr. Miguel Viana passava entre os amigos no físico e no moral por um perfeito pé.de-boi.
Incomodara ao mercador a peraltice do Nuno que já ele sabia estar metido com os nobres em Olinda; mas devemos confessar que o desgosto do pai com a marotice do filho não foi tão grande quanto a mofina do patrão, por ver-se de repente sem caixeiro na loja.
À medida que vinham chegando os parceiros, erguia-se o mercador para os saudar, e também para alcançar dentro da casa os tamboretes que oferecia aos recém-chegados, os quais se iam abancando em roda.
A parte feminina da família entrava para a sala, onde estava a Senhora Rosaura para as receber com mil requebros em que nestas ocasiões se desfazia o seu corpo rechonchudo com sério risco de sua respeitável trunfa.
Já havia chegado com sua cara-metade e a menina Marta o digno almotacé, o Sr. Simão Ribas, que estava abancado à direita do Viana, e nesse momento apontara na esquina o importante almoxarife, Domingos da Costa Araújo, que se aproximou com um andar grave e enfático.
Era o Costa Araújo um dos luminares da mascataria e sem contestação o mais bem falante. Em arranjar um vistoso ramalhete de bonitas frases, ninguém levava-lhe a palma. No mais não se cansava; toda a ciência dos negócios, cifrava-a em ter por si o homem, fazendo-lhe como aos meninos se costuma as pequenas vontades.
Quando moço, tinha ele tomado ao sério essa nigromancia apelidada política, e prodigalizara grande soma de talento, de entusiasmo e de atividade, na defesa dos povos contra a prepotência dos governadores. Fora um dos precursores da democracia brasileira, que um século depois devia suscitar o Martins, o Miguelinho e outros mártires pernambucanos.
Nesse fervor dos anos escrevera uma filípica, no gênero de Demóstenes, contra a raça bragantina, o que lhe valeu a ira dos adversários, e o receio dos amigos que temiam-lhe o contágio.
Recebeu a lição e aproveitou-a. Conheceu que os povos, por quem se havia sacrificado, eram animais domésticos: à liberdade preferem o quente aprisco onde os reis os põem à ceva.
Desde então mudou de rumo; passou a. viver nos melhores termos com os governadores, que tinham em grande conta os seus conselhos; pelo que o proveram no cargo de almoxarife, além de outras mercês. Rosnavam os invejosos de um ato de contrição feito a D. Sebastião de Castro. Vinha o boato da mordacidade de um dos tais amigos, que se valem da intimidade para melhor beliscarem: são como os gorgulhos que se metem dentro do grão para lhe roerem a flor.
No físico, não fora a natureza tão liberal com o Costa Araújo como no moral; mas sabia ele dar à sua quadratura um tom apresentável. Se neste século de espiritistas em que se tiram fotografias às almas do outro mundo houvesse curioso que se lembrasse de pintar a estampa de alguma figura de retórica das mais bochechudas, como por exemplo a prosopéia, teríamos o retrato ao vivo do nosso pomposo almoxarife.
A seu lado o Simão Ribas fazia as vezes de um solecismo junto de uma oração de Cícero; e todavia não tinha o almotacé menos engenho que ele, avantajando-se-lhe assaz na cópia dos conhecimentos que havia colhido nas várias províncias literárias; pois era de muito e constante labor, tão versado nos livros quão pouco nos homens.
Tomou o Costa Araújo assento à esquerda do Viana, e depois das urbanidades usuais e de uma anedota contada pelo almoxarife, que apreciava esse acepipe literário, assoou-se o almotacé e temperou a garganta para abrir a conferência:
– Sabem os amigos e companheiros que se está seliamente cuidando no suplemo da cliação da nossa vila do Lecife; mas alguns senholes andam inquietos com a demola e então quiselam que se fizesse uma junta para se avisal no que mais convém e conceltal os meios de aplessal o nosso tliunfo. É pol isso que estamos aqui, cada um dos senholes melcadoles dilá seu palecei; o meu é que devemos confial no suplemo e espelai que a alta sabedolia da govelnação do Estado ploveja como entendel, que há de sel semple pelo melhol.
Compreenderam os circunstantes o sentido da arenga, pois além de muito habituados ao lambdacismo do Simão Ribas, sabiam que suplemo era uma expressão mística para designar o governador, tendo ele por míngua de respeito indicá-lo nominalmente.
Seguiu-se uma pausa formada pela hesitação daqueles que desejavam também dar sua colherada, mas tolhia-os o enleio. Um desses era o marreco do Capitão Miguel Correia Gomes que trazia decorado um farelório do Padre João da Costa, com a intenção de impingi-lo à assembléia, mas agora suava como um caldeirão a ferver.
Havia chegado momentos antes o Vital Rebelo, que apeara-se do cavalo e recostado ao selim ouvira a fala do almotacê. Percebia-se no seu gesto a indiferença que lhe inspiravam essas assembléias, onde se burlava a sinceridade de muitos em proveito da ambição ou comodismo de alguns.
– Como seja lícito a cada um dar seu voto por mais desencontrado que pareça, direi eu o que penso. Esta vila do Recife vai fazer em novembro um ano que El-Rei a criou; e pois que o governador por ele mandado a esta capitania tem deixado de cumprir a carta régia, mostrando-se rebelde, nosso dever de fiéis vassalos é obrigá-lo à obediência que deve a seu príncipe e senhor; e sendo preciso, erigirmos nós, os povos em conselho, o padrão da vila. Se estais por isso, contai comigo; mas das negaças em que andais às voltas com o governador, não entendo, nem quero saber.
O venerando almotacé, que tinha por costume ir todas as tardes ao benedicite em palácio, e que não punha taxa, nem julgava coima, sem levar antes a D. Sebastião de Castro um rascunho para receber a correção do mestre, azoou com aquela insólita linguagem, e apuridou ao Viana que ficara impassível, resguardado como estava contra esses sobressaltos pela espessa crosta de sua pachorra.
O almoxarife, porém, que viu retratada a sua petulância de outrora naquela isenção do mancebo, sorriu-se de um modo significativo, e pensou consigo como aos cinqüenta anos se não havia de espantar o Rebelo de seus arrebatamentos juvenis.
Nisso é que se enganava o Costa Araújo. Homens há, e ele era um, em quem o desengano gera o cepticismo. Em outros, porém, a fé é tão profunda e tão de raiz que não há extirpá-la; não podendo arrancá-la, o que fazem a ingratidão e deslealdade é que, à força de a abalarem, deixam ali uma chaga que se está magoando a cada instante contra as misérias do mundo. Era deste cadinho a alma de Vital.
– Aquilo é despeito! rosnou o Padre João da Costa.
– Como o governador não o fez capitão! … acrescentou o Miguel Correia , enfunado da sua gineta.
Tomou então a palavra o Doutor Antônio de Sousa Magalhães, que foi um dos letrados de maiores créditos entre os mascates. Era meão de corpo e estatura.
Não tinha fisionomia, mas uma cara insossa e desbotada sem a menor expressão. Só num traço reparava-se: era nos olhos pequenos, por causa das pálpebras sem pestanas e debruadas de vermelho que pareciam casas de botões.
Nos primeiros tempos dizia o Magalhães que o seu lote neste mundo o queria em ouro. Com a experiência, porém, foi aprendendo que o ouro é precioso sobretudo pela ductilidade, e conheceu quanto ele se prestava a todos os misteres, à cobiça, à ambição e até à beatice.
Era o nosso advogado um dos que mirravam-se com o desejo de pilharem um lugar na secretaria do governador, mas como a sombra fugia-lhe, inculcava-se de impossível, e não perdia ensejo de rufar a sua abnegação.
Foi insigne beato. Ouvia missa com exemplar devoção, e rezava todo o ofício da Semana Santa ajoelhado, de ripanço em punho; até fazia novenas e terços em casa. Mas a sua carolice não se reduzia a essa parte ascética; freqüentava o refeitório da Madre de Deus nos dias da peixada e apreciava as moquecas e pastelões que lhe mandavam de mimo em salvas de prata os padres Mendicantes do Seráfico São Francisco.
Passou o Dr. Magalhães por grande retórico, e poucos no seu tempo tiveram tanto jeito para engordar essa simpleza do vulgacho, que hoje em dia se decora com o pomposo nome de opinião pública e que melhor se chamaria de pasmaceira pública.
O que distinguia especialmente a facúndia do nosso homem era a entonação com que ele pronunciava as palavras. Essa espécie de eloqüência retumbante tem sido cultivada por outros, mas ninguém ainda levou-lhe a palma. Darei aqui um exemplo de sua força nesse gênero.
Em uma das arengas que ele freqüentemente fazia nas rodas dos mascates contra os nobres de Olinda, querendo pintá-los sob uma face odiosa que produzisse impressão no auditório, exclamou: Vivem atolados no pirão, na rapadura e na cachaça.
Um seu êmulo diria esse rasgo com uma voz estentória capaz de estremecer os alicerces; outros lhe dariam inflexões enfáticas; mas nenhum era capaz de a pronunciar como o Magalhães, percorrendo três escalas cromáticas desde a primeira nota do tiple até a última do baixo profundo.
A frase, começada no nariz, descia-lhe pela garganta aos burburinhos e ia roncar nas profundezas do ventre. Assim, quem o ouvia falar conhecia logo que o homem não só tinha grande papo, embora invisível, como que era insigne ventríloquo.
Quando o Dr. Magalhães e o Padre João da Costa se encontraram pela primeira vez, sentiram-se mutuamente atraídos por uma simpatia irresistível. Agora achavam-se estremecidos; e dizia o reverendo que muito breve haviam de ver o advogado ao serviço do Filipe Uchoa e da gente de Olinda.
Para rebater o alvitre do Rebelo, desfiou o Magalhães uma longa perlenga, cheia dos costumados borborigmos, e arrebicada de uns revirados de olhos com que ele pretendia dar à feição insulsa umas borradelas de ironia. Ao cabo, passada toda essa loqüela por um cantil, não ficava senão o bagaço do que havia dito o Simão Ribas.
Assim o venerando almotacé aplaudiu; o Viana remexeu os ombros, o que nele era sinal de grande comoção, e o Costa Araújo fez com a cabeça um gesto gongórico de aprovação.
Aqui terminou a junta, com o maior desprazer do Miguel Correia que foi obrigado a embuchar a perlenga, e do Campelo que não sofria lhe disputassem a glória de incensar o governador, cujo panegírico já tinha escrito, bem longe de pensar que teria de cantar-lhe a palinódia.
Vital Rebelo fora-se, e com ele a maior parte dos que tinham acudido ao convite. Nada se resolvera, mas era esse precisamente, e não outro, o fim da junta que se fizera para acalentar as impaciências de alguns sôfregos e exagerados. Falara o almotacé que todos sabiam da privança de D. Sebastião; e os mais exigentes voltavam satisfeitos.
Reduzida a roda aos íntimos, tornou-se geral a palestra, travando-se os colóquios a trecho.
– Eu cá, disse o Campelo, do governador não suspeito, não; mas o Barbosa de Lima não é homem em quem se possa a gente fiar.
– E o tal ajudante, que me tem cara de coveiro? E com certeza o é, que ainda se não meteu em empresa que a não desandasse, acudiu o Brás da Silva.
– Está muito atrasado o Campelo! acudiu o Padre João da Costa a rir. Pois o Barbosa de Lima é o que D. Sebastião quiser; que o seu grande talento é este de ser todos, menos ele próprio, que nunca o soube, nem pôde.
– É a pura verdade, acudiu o Miguel Correia, que tinha por devoção apoiar o seu confessor e amigo.
– E senão vejam, continuou o reverendo: o que disse o Padre Leitão domingo passado quando pregou na festa de N. Senhora do Rosário?
– O que foi então? perguntou o Seara.
– Que o secretário tão fácil qual Lucano se encarecia, como qual Proteu se fingia e transformava.
Parece que deu-lhe no goto ao Padre Antônio Gonçalves Leitão a frase, pois ela se encontra textualmente na história da Guerra dos Mascates quando fala do Capitão Barbosa de Lima, querendo aludir ao ouro dos mascates de que a inveja e a maledicência o diziam cosido, bem como á versatilidade de gênio.
É achaque este de todos os tempos, que são os amigos quem primeiro e com maior empenho se incumbem de dar voga aos aleives e epigramas dos contrários.
Assim, não trazia o Cosme Borralho, de Olinda, nenhum desaforo contra este ou aquele dos mascates, para o insinuar à esconsa no ouvido de alguns dos seus fregueses, que à noite não tivesse corrido todo o Recife.
Interviera no diálogo o Zacarias de Brito:
– Pois para mim, o Capitão Barbosa de Lima é homem de muito conceito que vale o seu peso, e não só para mim como para todo o Recite.
– Ninguém diz o contrário, observou o Campelo, ressalvando em tempo o destempero da língua.
– Por certo. Quem o nega? acudiu o Miguel Correia.
– Esses mexericos que por aí andam, donde vêm senão da raiva que têm os de Olinda de o haver perdido, sem contar a inveja de outros que não podem sofrer as suas boas partes?
Este Senhor Zacarias de Brito, seja aqui dito entre parênteses, queria ser contratador do sal, boa fatia que esperava arranjar.
Não havia naquele tempo a maquia dos agenciamentos de voluntários e privilégios lucrativos, com que os ajudantes de um governador-filósofo recompensassem os obséquios do amigo, as carícias de alguma bela dama, e a paciência dos camaradas impertinentes; mas já então existiam os estancos e monopólios com que se esfomeava o povo para enricar aos mimosos da terra.
Nenhum dos circunstantes fizera reparo em uma velha de mantilha, que desde o começo da palestra levara a passar pela frente da casa do Viana, quando não se escondia no canto do outão. Embora não tivesse a conferência cousa de comprometer, tanto que a faziam na calçada, todavia se percebessem o manejo da sujeita, é de crer que não consentiriam nessa bisbilhotagem.
Cansada de espreitar, a velha deitou-se a trote miúdo para as bandas do Corpo Santo e foi ter a uma rótula, onde aparecia a mais emaranhada grenha que já lastrou em cabeça de mulher. A dona deste cipoal mal se podia conter à gelosia; pois lhe estavam saindo a língua e as melenas pelas grades e o corpo pela adufa.
– Deus me perdoe! Querem ver que foi esta excomungada que se alambazou com a minha mantilha! Ladra do inferno! Espera que eu te ensino!
Proferindo esta praga, a sujeita que deitara os gadanhos ao pescoço da velha puxou-a para dentro onde, com espanto seu, desembrulhou-se da mantilha a cara velhaca do nosso muito conhecido Cosme Borralho.
– Eu logo vi que eram artes deste peralta! Que anda você fazendo por aí com a minha mantilha?
– Nada; foi para divertir-me com os rapazes.
– E por causa das suas brejeiradas me deixa aqui presa quando me estão esperando na casa da Rosaura a que prometi não faltar! Ai que não sei onde estou, marotinho, que te não arranco esses olhos de cabra morta!
– Ora, não se zangue, prima Inacinha, disse o Cosme com ar magano, que eu tenho um segredinho para lhe contar.
– De Olinda? perguntou a Inácia em cócegas. O que é?
– Escute!
Conchegaram-se os dois a um canto, e pôs-se o Cosme a cochichar no ouvido da prima, que estava num formigueiro com a pressa de ir-se ao serão ajustado, e o prazer da novidade que levava.
Acompanhara o gaguinho o tal segredo de um acionado original, e de uns requebros de corpo, com que se enroscava pela Inacinha, a qual não se agastava com essas licenças oratórias do escrevente.
Acabou o Cosme dando à prima um papelinho, que ela meteu no cabeção e traspassando a mantilha, enfiou pela porta fora, como galinha poedeira à cata do ninho onde largue o ovo.
CAPÍTULO IX
DESCOBRE-SE O CASUS BELLI COM QUE NÃO ATINARAM OS CRONISTAS DA GUERRA DOS MASCATES
Há quem pense que nada se move neste mundo sem licença da mulher.
Do mais não sei; mas de guerra posso afirmar que nunca as houve, nem é possível haver, quando não o queira a soberana saia.
Podia desfiar aqui um rosário de provas tiradas da história, além de um milhão de argumentos fisiológicos; mas isso nos levaria muito longe, e para o nosso caso basta o que se passava àquela hora aí na casa do Miguel Viana.
A sala estava cheia do mulherio que se atulhara pelos estrados, como era uso naquele tempo, e não motejem as moças de agora dessa moda de sentarem-se as nossas bisavozinhas com as pernas cruzadas, que se elas cá tornassem, não se haviam de rir menos vendo suas bisnetas ainda franguinhas e já repimpadas em cadeiras de alto espaldar como se fossem umas abadessas.
Sentada em tamborete baixo, a Senhora Rufina presidia ao areópago feminino.
– Mas, gentes, não acham que já é tempo de dar uma esfrega nessa súcia de pés-rapados? dizia a Senhora Rosaura que estava mordida com a escapula do filho.
– Não se agonie, senhora, que havemos de ensiná-los em regra; mas é preciso fazer as cousas com jeito, porque lá de barulhos não me falem. São capazes de meter os nossos homens na alhada, e tirar-lhe por aí a cabeça de uma cutilada! Então o meu, que já é tamaninho!
– Enquanto isso, vão os de Olinda roubando a seu salvo nossos filhos porque não têm quem lhes vá à mão! retorquiu a Senhora Rosaura com azedume.
– Ora, comadre, isto foi uma vadiagem do traquinas do rapaz que é mesmo da pele do cão. Outro dia, que não fez o demoninho lá em casa? Se ele tem bicho carpinteiro, sou capaz de jurar. Pois não, senhora!
– É mesmo! O capetinha não é capaz de assentar o sim-senhor um instante que seja, disse a velha Engrácia.
Carecemos de advertir ao leitor, que a Senhora Engrácia tinha uma linguagem um tanto espevitada; costumava empregar alguns termos em uma acepção peculiar sua.
Muitas locuções pitorescas que ainda hoje vogam pelo norte foram inventadas pela Senhora Engrácia, que até do português pouco sabia, e dizem certos sabichões que para cunhar palavras, se precisa saber latim, grego, e ser versado nas línguas vivas e mortas. Que tarelos!
Agora o que ela chamava sim-senhor, adivinhem se puderem, que a crônica neste ponto é omissa.
– Mas deixe estar, continuou a Rufina, que tudo se remedeia; eu já falei ao primo. Rebelo, que prometeu-me trazê-lo pela orelha; porém, não consinta que lhe ponha mais o pé em casa; de lá mesmo é arrumá-lo no primeiro navio que sair para o reino.
– É o que o Sr. Miguel Viana ia fazer por conselho do Ajudante Negreiros, quando o capetinha parece que desconfiou, e escafedeu-se; e logo para meter-se com aquela gente! Assim o agarre eu, como vai direitinho para Lisboa.
Ouviu-se um suspiro, que fez a Senhora Rufina lançar uma olhadela para o canto donde se escapara aquela tímida queixa. Ali estavam juntinhas a Marta e a Belinhas, que encontravam-se essa tarde pela primeira vez depois dos importantes sucessos de que foram teatro a janelinha do sótão e a rótula do beco.
Imagine-se pois o que não se tinham a contar as duas camaradas, e como eram curtos os momentos para sua garrulice. Cada uma começou dez vezes a história que a outra, impaciente, interrompia para continuar a sua; e assim aos pedaços, alinhavando aqui e cerzindo ali, conseguiram ambas dizer, não quanto queriam, mas bastante para o caso.
Acabava Belinhas de comunicar à amiga que o Lisardo àquela hora devia estar ao pé da cerca esperando vê-la na rótula; e Marta lembrava-se do Nuno que andava por longe, quando a ameaça da Senhora Rosaura de mandar o filho para Lisboa, arrancou-lhe aquele mavioso suspiro.
– Eu cá, se o caso fosse comigo, havia de remeter o pequeno para Lisboa, mas era depois de ter dado o troco aos tais fidalgos de meia-tigela.
Essa observação vinha da velha Engrâcia, que era uma das mais decididas do mulherio recifense.
– O troco, eles o hão de ter, que lho há de dar o governador, e com usura, tornou a Rufina como quem lambia por dentro.
Não se rendeu a Engrácia:
O governador é um trapalhão que não ata nem desata. Olhe, senhora, o verdadeiro era untarem as unhas ao Camarão, e então veriam a pisa que lhes ele assentava, na cabralhada de Olinda, e não lhe doessem as mãos, que é do que eles andam muito carecidos.
– Que o governador é remanchão, isso é, acudiu a Josefa do Cartacho em tom de importância. Fosse ele outra casta de homem que já o Recife estava cansado de ser vila.
– Apelo eu! tornou Rufina. Que estas cousas assim de supetão, senhora, sempre saem aferventadas. O D. Sebastião de Castro, fique com esta que eu lhe digo, é manhoso, e sabe o nome aos bois, como diz o meu homem. De mais a mais, enquanto ele estiver por nós, ainda que vá empalhando, somos do partido do rei, que sempre serra de cima. Por isso é que eu sustento, minha gente; nada de barulhos; que tudo se há de arranjar com jeito e paciência. Quem é que vai meter seu gadanho no fogo, quando pode tirar a sardinha com a mão do gato?
Um zumbido de aprovação acolheu o discurso da mulher do almotacé, prova de que predominava no concílio feminino o partido da paz. Efetivamente as recifenses, apesar de seu vivo desejo de verem criada a sua vila, não dissimulavam que os maridos, pais e irmãos, destros em manejar a vara e o côvado, fariam triste figura com as armas na mão; além de que não eram de todo insensíveis à galhardia dos mancebos de Olinda, os quais preparando-se a vencer os mascates, se rendiam aos requebros dos olhos feiticeiros das lindas mercadoras.
– Tá, tá, tá! treplicou a Engrácia, oposicionista acérrima. Vá-se fiando no bicho, que depois eu lhe contarei uma história. Olhem, gentes, eu sempre enquijilei com homem sonso.
Neste ponto barafustou pela casa dentro a Inacinha, a quem vinha comendo a língua a novidade que trazia.
– Ora muito bem chegada! disse a Rufina.
– Mais vale tarde do que nunca! observou a Rosaura a rir.
– Para a nova que trago, antes nunca chegasse! tornou a Inacinha com ar de importância.
– Que nova é essa, mulher? perguntou a Rufina.
– Que é?… Que é?… Ora adivinhem!
– Despache-se de uma vez, criatura. Não esteja ai a resmoer a gente! acudiu a Rosaura, que já se achava sobre brasas.
– Que há de ser? Um desaforo!…
– Da ralé de Olinda?
– De quem mais?
– Mas então que foi?
– A cousa é de cantiga. Eles mandaram pôr em trova… Já me esquece o nome do cujo… Mandaram pôr em trova para andar na boca do mundo.
– Ó mulher de meus pecados, não falarás?
– Que estou eu fazendo, dés que entrei? Agora se não me deixam acabar, não tenho eu a culpa.
– Pois acabe..
– Diga a trova.
– Isso, não digo. Então a gente mete assim no caco de repente uma embrulhada de versos?
– Neste caso o que trouxe você, gente? perguntou a Rufina.
– Está o que é! disse a Inacinha apresentando o bilhete que tirou do seio.
– Ah!
Murchou a. orelha ao mulherio que estava à escuta, com as ouças afiadas para a novidade. Naquele tempo ainda não se contava entre as prendas de uma boa dona de casa, o saber ler e escrever: era isso luxo fidalgo, que não chegava a todos. Não se estranhe pois o logro que sofreu nesse momento a curiosidade feminina.
– Marta! disse a Rufina, passado o primeiro pasmo. Toma este papel e lê o que está aí.
Ergueu-se a menina para obedecer à mãe, e aproximou-se da cantoneira onde bruxuleava a candeia. Belinhas acompanhara a amiga e por cima do ombro a ajudava a soletrar as palavras escritas em bastardinho.
Estavam ambas trêmulas e com as faces a arder; principalmente a que tinha de fazer a leitura.
Não era qualquer bagatela esta exibição. A travessa Marta não sentiria tão grande acanhamento, se mocinha de hoje, no dia seguinte ao deixar o colégio e as calças curtas, fosse obrigada a cantar em sala de baile a mais difícil cavatina de Rossini.
Decorrido o tempo necessário para que as duas meninas soletrassem todas as palavras e chegassem ao fim do papel, a Rufina interpelou a filha:
– Anda, menina!
– Senhora mãe!… balbuciou Marta.
– Lê!
– É uma cousa muito feia!
– Mas o que é? perguntaram as outras tinindo de curiosidade.
– Eu não sei!
Que fazes ai com os olhos no papel?
– Lê tu, Belinhas!
– Eu! Deus me defenda!
– Marta, deixa-te de dengos. Lê, que te mando eu.
Quis obedecer a menina; mas a palavra que lhe espontava no lábio gentil, recolheu-se num assomo de pudor.
– Não posso!
– Oh! buginica! disse Rufina ameaçando de longe a filha com um coque.
– Olhem lá, gentes, não seja alguma brejeirada! observou prudentemente a Josefa.
– É mesmo! Pode sair daí uma sujidade!
– Que partes são estas agora! acudiu a Inacinha. Eu cá sou mulher de andar com porcarias?… AI o que tem demais é uma história cabeluda!
– Estão vendo!… Tem história cabeluda, senhora! exclamou a Josefa.
– Tenha o que tiver, há de ler, ou eu não me chamo Rufina, gritou a mulher do almotacé levantando-se.
– Eu pelo sim, pelo não, vou tapando meus ouvidos, disse a Josefa que estava latejando por saber.
– Agora é que te quero ver, sirigaita! dizia a Rufina ameaçando a filha com um beliscão. Se tiveres o atrevimento de me respingar, com certeza te meto no convento, não sei que diga! Anda, deita já para aí.
Afinal decidiu-se a Marta, que dum fôlego, antes que se arrependesse, leu de afogadilho o conteúdo do papel.
Todo o mascate é patife,
Labrego, cara de Judas;
E as mulheres do Recife
Tem as pernas cabeludas.
– Desavergonhados! gritou a Senhora Rufina.
– Desaforo!
– Já se viu um atrevimento igual?
A grazinada de um bando de maritacas, em roçado de milho, quando lhe disparam um tiro, pode dar uma idéia da algazarra que levantou no congresso feminino a quadra fatal, que ia conflagrar Pernambuco.
Chamar os mascates de patifes, labregos, judas e cousa pior, era sem dúvida uma insolência; mas não havia estranhar na canalha de Olinda que ela se despicasse dos epítetos afrontosos que também não lhe poupavam os recifenses.
O que, porém, não tinha nome e tomava as proporções de um atentado sem exemplo, era dizer-se que as damas do Recife tinham pernas cabeludas. Todos os tratos da inquisição não bastavam para punir este crime inaudito, que só podia ser expiado na fogueira.
Enquanto serena o alvoroço produzido pela leitura, aproveitamos para dizer a origem daqueles versos.
O Nuno, que era um grande abelhudo, certo dia espiando pelo buraco da fechadura, tinha visto na alcova da mãe uma perna tão cabeluda que a princípio lhe pareceu de tamanduá. Mas logo com espanto descobriu que pertencia a certa pessoa que nesse dia estava de visita em casa da comadre e fora ao quarto para concertar a saia.
Passando-se a Olinda onde a D. Severa o atanazava de perguntinhas, escapuliu ao rapaz a descoberta da perna cabeluda, que a dama muito apreciou encarregando logo ao Lisardo de a pôr em verso. As torturas por que passou o nosso poeta nessa ocasião não se descrevem; tentou ele em princípio descorar o epigrama, mas a ninfa olindense obrigou-o ponto por ponto a rimar aquela quadra em que ofendia a formosura sem par da sua adorada Belisa.
A rima foi recitada no serão do Capitão-Mor Cavalcanti e muito aplaudida. No outro dia teve o Cosme vento da cousa e logo tratou de a meter no bico da gente do Recife, na esperança de ir assim cada vez mais turbando as águas onde contava pescar. Do como o fez, já sabemos.
– Só enforcados! dizia a Josefa.
– Qual enforcados, senhora! Ainda picados como cabidela para fazer pastéis, ou assados na grelha do Santo Oficio, não pagam esse desaforamento, exclamou a Rufina.
– Eu como não tenho perna cabeluda!…. disse a Inacinha.
– Quem fala nisso agora, mulher? exclamou a Rufina furiosa. Tenha ou não, é o mesmo! Há de andar como as outras na boca do mundo.
– Mas quem foi o renegado que fez este verso?
– Espere!… Não me lembro mais do nome!
– Pois indague, que ele é quem há de tirar a prova do pelourinho de nossa vila. Já me estou regalando de o ver açoitar!
– Eu, se o encontrasse, arrancava-lhe os olhos com estas unhas!
No meio da tempestade levantada pela rima do Lisardo, tinham-se esgueirado da sala as duas meninas, que foram direitas ao quarto de Belinhas.
– Você não disse que ele está esperando? perguntou a Marta.
– Penso que está! respondeu corando a outra.
– Então é chamar?
– Eu, Marta?
– Pois, Belinhas, quem há de ser?
– Tenho vergonha!
– Então eu chamo por você.
E a Marta caminhou para a rótula com ar decidido.
– Está bom; eu vou! tornou Belinhas mais animosa.
Com efeito entreabriu a rótula, e viu junto ao oitão uma sombra.
– Anda, Belinhas!
A menina deu um psiu tão sumido que não se ouviu a dois passos. Marta, porém, repetiu o sinal com força muitas vezes.
O nosso Lisardo, assim avisado de repente, esteve a abalar dali, tonto com a aventura. Mas a voz impaciente da filha do almotacé o colou à parede.
– Venha!…
O nosso poeta ficou imóvel.
– Venha já!…
Parou-lhe a respiração:
– Senão fico zangada!
Foi preciso despachar a Benvinda para trazer à fala o poeta, que só depois de mil sustos e arrependimentos resolveu-se a acompanhá-la.
Quando ó Lisardo penetrou na alcova, a Belinhas o esperava encostada na cabeceira da cama, e a Marta escondida por trás do cortinado ficara de espreita, para animar a amiga a quem ensinara o recado.
Saiu porém a cousa ás avessas; porque o Lisardo depois de duas topadas que deu ao entrar, e que o iam levando ao chão, embutiu-se no canto do trumó como se fosse uma figura de pau; e a Belinhas repuxando as sanefas do cortinado, foi-se enrolando de modo que não se lhe via senão a ponta do pé.
Nesse jeito achou-se Marta descoberta, e vendo que os dois namorados não tugiam, assentou ela de tomar a si a tarefa e com a sua natural e graciosa petulância dirigiu-se nestes termos ao Lisardo imóvel e cabisbaixo.
– Saiba o Senhor Lisardo de Albertim que não veio aqui para ficar assim amuado num canto. Quando Belinhas o chamou foi para experimentar os seus extremos, porque tendo vindo lá de Olinda uns versos em que se dizem cousas muito ruins das moças do Recife, ao senhor, que se rendeu à formosura de uma dessas tão maltratadas, cabe responder.
Estremecera o Lisardo lembrando-se da quadra que a D. Severa o obrigara a fazer, e julgou-se perdido. Marta continuou, mostrando-lhe os aviamentos de escrever postos sobre o trumó.
– Ai está a pena e todo o mais recado de escrita. Arranje-se, que daqui não sairá sem estar pronta a rima. Há de ser uma cousa que belisque as tais bugínicas de Olinda. O senhor há de dizer, ouça bem, que elas são magras como um fuso; e que todo aquele espalhafato que mostram não é nada senão uma gaiola coberta de panos. Está entendido, senhor poeta? Pois trate de desempenhar-se da obrigação; e veremos então se os seus rendimentos por Belinhas são sinceros, e qual recompensa merece a sua fineza.
Inclinou-se o Lisardo ao trumó, e a musa da pirraça, sob a figura travessa da gentil Marta, inspirou-lhe contra D. Severa estes versos que, embora alusivos a todas as olindenses, eram todavia mentalmente dedicados à ninfa:
Escorridas como um fuso,
As damas de Olinda são;
Por fora aquele esparrame,
Por dentro é só armação
De pano, d’osso e arame.
Tendo lido a quintilha, a Marta aplaudiu com uma risadinha brejeira, e puxando de dentro do cortinado a mão de Belinhas, que resistiu de leve, a deu a beijar ao nosso poeta.
– Isto é para o senhor; agora para o Nuno.
A menina tirou do seio um raminho de alecrim, que entregou ao poeta, mas logo pareceu arrepender-se:
– Não, não lho dê; guarde para si.
Sentiu umas cócegas a Belinhas, que entreabrindo o cortinado acudiu mui pronta:
– Dê ao Nuno, dê sim, senhor, que isso não lhe pertence.
– Pois dê, se quiser; mas não que eu mande.
Partiu afinal o Lisardo; e as meninas voltaram à sala.
Quando ali entraram, acabava o congresso feminino de resolver a guerra a todo transe, distinguindo-se entre as mais belicosas a Senhora Rufina, que pouco antes se mostrara tão prudente e conciliadora.
Mas a história da perna cabeluda posta em verso tinha abespinhado a venerável matrona, que desde esse momento não respirou senão vingança, e tanto fez que terminou por desencadear a guerra dos mascates, apesar de todas as manhas de D. Sebastião.
CAPÍTULO X
O COSME BORRALHO MOSTRA COMO JÁ NAQUELE TEMPO SUAVA-SE PARA ARRANJAR
UM TABELIONATOZINHO
Enquanto se davam estas ocorrências, a magna questão da criação da vila do Recife não adiantava uma polegada nos conselhos de. D. Sebastião.
“Marcar o passo” – era a manobra favorita do novo Fábio, que dissipava o tempo em marchas e contramarchas, deixando-se no meio de suas irresoluções governar pelos acontecimentos, em vez de os governar, como devem e costumam os homens superiores.
Tinha Sebastião de Castro acenado aos nobres de Olinda com a protelação no cumprimento da carta régia que mandara criar a vila; e dessa política de inércia contou ele tirar dois proveitos: o de engodar os pernambucanos, arrefecendo-lhes os assomos de revolta; e o de trazer pelo cabresto aos mascates, que o cumulariam de bajulações, para terem-no a favor.
Ordenava a carta régia de 19 de novembro de 1709 que o governador da capitania com o ouvidor-geral fizessem o termo que entendessem podia caber ao distrito da vila. Essa intervenção do magistrado era um freio salutar que o Rei pusera ao arbítrio de Sebastião de Castro.
Este, porém, achou jeito de iludi-lo, como fazem modernamente os reis constitucionais com os parlamentos, que se não deixam corromper de rosto alegre pelas tetéias e boas propinas. Mandam-nos passear como importunos. Assim o fez D. Sebastião com o ouvidor, como veremos no decurso dos acontecimentos.
Servia então o cargo de ouvidor-geral da Capitania de Pernambuco, o Dr. José Inácio de Arouche, que os de Olinda encareciam por honradíssimo, de ânimo reto e mui imparcial; mas não vem fora de sazão advertir que o magistrado foi acérrimo sequaz dos pernambucanos.
Era o Dr. Arouche sujeito meão, seco, e teso de porte. Os ossos repuxavam-lhe a pele encarquilhada, porque desde moço que a inveja o mirrava. Não perdia ocasião de engramponar-se na sua integridade e longa prática, o que não o impedia de render-se às próprias paixões.
Não atendia a amigos, porque não os tinha, nem os egoístas sabem a significação dessa palavra, que para eles é apenas um sinônimo de criado. Mas costumava apaixonar-se de tal sorte nos feitos, que não era a sua consciência, senão a sua irritabilidade quem julgava.
Pouco tempo depois de recebida a carta régia, chamou Sebastião de Castro a palácio o ouvidor para ouvi-lo sobre a demarcação do novo termo. Pediu o Dr. Arouche tempo para meditar o assunto; e dias depois apresentou seu parecer, opinando que se não podia dar à vila maior termo do que do Forte do Brum à Ponta dos Afogados.
A antiga vila de Olinda, que então abrangia quase todo o território da atual província, se compunha de doze freguesias, das quais três urbanas. Ora, segundo o parecer do Dr. Arouche, vinha o Recife a criar-se em vila com sua única freguesia, o que não estava no espírito da carta régia, e menos no bem dos povos. Mas que se importava o ouvidor com os povos, desde que agradasse a seus amigos, os quais lhe conheciam o fraco e não se cansavam de proclamá-lo magistrado integérrimo, tipo e modelo de juizes?
Inteirado do parecer do ouvidor, e depois de o haver meditado em todas as suas partes, fez Sebastião de Castro ao magistrado esta observação:
– Noto que o senhor ouvidor-geral, pela demarcação que dá ao termo, deixa apenas aos povos do Recife o direito de apanhar mariscos em só metade do rio!
– Nem outro alvitre seria justo; pois também os povos de Olinda, que são tão bons como os povos do Recife e como eles comem mariscos, só ficam com o direito de o apanhar em a outra metade do rio.
O argumento era de estucha; mas D. Sebastião tinha sempre uma avenida por onde se espacava.
– O rio pertence ao Recife, senhor ouvidor.
– Pertencerá se lho derem, e não há de ser com o meu voto, que por ora pertence a Olinda, cujo deve ser em parte igual.
– Está bem. Ainda não tenho juízo assentado sobre este particular, que se carece mui estudado e refletido, como objeto que toca tão de perto à pobreza.
Nesta conformidade resolveu Sebastião de Castro ouvir acerca da questão ao provedor da fazenda e outros ministros da capitania; porque era homem que se não decidia sem meter-se antes em uma barrela de conselho, para lavar da consciência todos os escrúpulos.
Opinaram os informantes que se formasse o novo termo com as quatro freguesias do Recife, Cabo, Moribeca e Ipojuca; mas não era a porção de território e a comodidade dos povos o que mais preocupava o ânimo do governador, e sim a magna questão do marisco.
Parecia que, sendo o marisco objeto de tamanha importância, era de justiça, como dizia o ouvidor, reparti-lo entre a pobreza das duas vilas; mas isso que se figurava tão simples, enredava-se com mil filigranas no espírito do governador a ponto de tornar-se um inextricável labirinto ou outro nó górdio impossível de desatar…
As consultas de tantos informantes consumiram os dez meses decorridos; para dar a última demão ao negócio chamara Sebastião de Castro os ministros e principais a conselho para rever a matéria e assentar-se definitivamente no melhor alvitre.
Mas, durante esse lapso de tempo, não dormia o governador sobre o caso.
Por ordem sua se lavraram às ocultas e de noite no Forte do Matos as pedras de cantaria para o novo pelourinho; de modo que, sendo preciso, se pudesse erigir a vila de um dia para outro.
Naquele tempo não se criavam cidades e vilas como hoje, com uma penada; era indispensável a picota, erguida na praça concelheira, às aclamações do povo, como padrão do governo da terra.
Com o seu peco de ingerir-se em tudo, ia o governador regularmente nos passeios da tarde ao Forte do Matos examinar o andamento da obra, e ai entendia com os canteiros sobre o corte das pedras, a ferramenta e outras minudências do ofício; pois foi ele um enciclopédico, que em tudo falava de Cadeira e dava quinau.
Esse negócio do pelourinho era um segredo que não passava do Secretário Barbosa de Lima, do Ajudante Negreiros, do almotacé, além dos canteiros, o. quais estavam prevenidos de que a menor indiscrição os lançaria nos subterrâneos das Cinco Pontas.
Sucedeu porém que na volta da casa do Viana, a Senhora Rufina, que vinha tinindo, disse para o marido:
– Fique com esta que lhe digo, Senhor Simão: que o tal governador é um papa-açorda.
A verdade histórica obriga-nos, bem a nosso pesar, a repetir as palavras descabeladas da virago recifense, sem que por isso deixemos de catar o respeito devido à memória de D. Sebastião.
O almotacé, que nem por sombra suspeitava do epigrama feito à perna cabeluda de sua cara-metade, ficou estupefato.
– São modos, senhola, de falal do excelentíssimo goveinadol, o blaço de El-Lei nesta capitania?
– Eu cá, tornou a matrona fincando o punho no quadril, não tenho papas na língua, o senhor bem sabe; nem estou mais para aturar as lérias do paspalhão de seu amo; que tão bom é um como o outro!
O Sr. Simão Ribas, zonzo com essa desenvoltura de língua, de que apenas damos a amostra, assentou de aplacar o fogacho que ameaçava perturbar a paz conjugal; e não achou melhor meio do que revelar à sua digna esposa o segredo do pelourinho, recomendando-lhe, porém, inviolável sigilo.
Ora, a Rufina, que ruminava no modo de atiçar o governador contra os olindenses, viu logo todo o partido que podia tirar do negócio do pelourinho, e no dia seguinte bem cedo aprontou-se para ir à Inacinha.
Tratava-se de levar a Olinda a notícia do que se estava fazendo no Forte do Matos. Era uma pedra que metia no sapato dos nobres, com a esperança de os instigar contra o governador e assim obrigar este a deixar-se de panos quentes.
Ao entrar na cadeirinha que a esperava no corredor, correu a menina Marta dizendo:
– Senhora mãe, veja uma cousa que agora mesmo atiraram da janela!
– Que é isto?
– Um papel, respondeu a menina mostrando. Veio assim embrulhado, e tem umas cousas escritas.
– Pois destrinça lá isso! ordenou a Senhora Rufina que estava com pressa; mas logo arrependendo-se estendeu a mão para tomar o papel. Não, que pode haver ai alguma brejeirada!
– Não tenha susto! respondeu Marta sorrindo.
– Então sabes o que está aí?
– Se eu já li! disse a maliciosa menina. Quer a senhora mãe ouvir?
E sem esperar resposta, leu a Marta desta vez com o maior desembaraço a redondilha que na véspera fizera o Lisardo.
– Da cá, da cá, menina! exclamou a Senhora Rufina nadando em júbilo. Agora é que as tais remelosas se vão esconjurar! Isso não passa de artes do Padre João da Costa. Ele não é trovista; mas anda metido com o Tunda-Cumbe que tem o seu jeito, o diacho do galego! Eu só estou imaginando a cara da tal Severa! A arrenegada então, que é mesmo um pau de virar tripas!
Meteu-se afinal a Rufina na cadeirinha que partiu levada por dois pretos carregadores; e pouco tempo depois parava à rótula da Inacinha. Quem acudiu ao bedelho foi o Cosme Borralho, que reconhecendo a mulher do almotacé, quis recolher-se; mas era tarde.
Felizmente veio tirá-lo dos apertos a prima, correndo a receber na porta a Senhora Rufina, enquanto o Pisca-Pisca à esconsa enfiava a garnacha que havia enforcado no garabato da candeia, e compunha um tanto a frescalhota, pois o nosso escrevente estava, com o devido respeito, de cuecas, e estas ornadas de dois rombos enormes nas partes mais rotundas do seu indivíduo.
Não escaparam à mulher do almotacé esses pormenores, que franziram-lhe a testa, afilando o nariz já de natureza pontudo e daquele molde que o povo na sua linguagem pitoresca chamou com muita propriedade nariz de sovela.
Vendo a Inacinha arriscada sua boa fama de viúva recatada, arranjou logo uma peta para explicar a presença do Cosme em sua casa àquela hora e com tamanha sem-cerimônia,
– Este é meu primo, que está de escrevente de cartório; e como chegou agora muito cansado lá do Monteiro, onde foi por uns papéis, e como estava pingando de suor, coitado!… Então eu lhe disse que tirasse a chimarra para refrescar.
Nesse momento não mentia a viúva, que o Pisca-Pisca suava deveras para acertar com a mão na manga direita, cuja cava lhe fugia quando cuidava acertar, tão atrapalhado estava ele com a presença da esposa do almotacé. Também de seu lado ele via perdida, não a fama, do que pouco se lhe dava, mas a prebenda que esperava alcançar dos mascates como prêmio de seus préstimos.
A Senhora Rufina ouvira de pescoço teso e ar empertigado a esfarrapada mentira que lhe pregara a viúva, sovelando com o canto do olho ao pobre do Cosme Borralho que estava em termos de desconjuntar o ombro e enfiar-se duma vez ele todo pela manga da garnacha, como o mais pronto meio de sumir-se!
– Senhora desavergonhada!… gritou afinal a Rufina crescendo para a viúva.
Desabava a borrasca, e bem o conheceu a Inacinha que, sem dar-se por achada do epíteto que a outra lhe acabava de pregar na bochecha, achou modos de arredar o temporal desfeito que vinha sobre ela.
Pondo-se na ponta dos pés, alcançou o ouvido da Rufina, que não teve tempo de afastar-se.
– Foi ele que trouxe o verso de ontem.
Operou-se na atitude da mulher do almotacé súbita mudança; não que ela desengatilhasse de todo o carão engravitado pela sua pudicícia arrufada; mas já não ameaçava disparar numa descalçadeira, como as sabia dar a matrona recifense.
– Então este sujeito tem partes com os de Olinda? perguntou em tom de juiz, que ela tinha mais que o marido almotacé.
– Pois se é escrevente do cartório! E também copia os papéis do licenciado, o Davi de Albuquerque, que é o trampolineiro-mor dos tais pés-rapados. A senhora não sabe?… O maldito do entrevado, que antes Nosso Senhor lhe tivesse mirrado a língua e encarquilhado a mão para não fazer o mal que está fazendo, e que o há de levar direitinho ao inferno. Oh! se há de!
Enquanto falava a Inacinha, o Cosme que afinal se havia composto, fazia-lhe do canto sinais de silêncio; mas ela ia por diante sem importar-se com os esgares do rapaz.
Quanto à mulher do almotacé, prestando à tagarelice da Inacinha ouças distraídas, estava ruminando no caso.
Era a Senhora Rufina um politicão de primeira força; basta que, não tendo nada de bonita, antes sendo sofrivelmente feia, conseguia meter o seu gadanho na governança por meio do marido. Assim no tráfego da sua quitanda entravam, com os coentros e repolhos da horta, uns oficiozinhos de justiça ou fazenda, e patentes das ordenanças.
A resulta das cogitações da matrona foi que não devia transtornar o seu plano por causa de uma pouca vergonha que lhe estava inchando os bofes, mas que ao cabo não lhe tocava de perto. Fez ela o que atualmente estão fazendo todos os dias os chefes de partido. que no interesse de sua ambição servem-se do talento prostituído de um insigne tratante, com quem se atrelam e convivem na maior familiaridade, como amigos e compadres.
Pensam eles que mais tarde, quando deitarem fora esse torpe instrumento, podem lavar a mão que o manejou; mas enganam-se, que essa lepra moral da corrução não há lixívia que lhe apague a mácula.
– Diz você, mulher, que foi o moço quem trouxe aquele desaforo da canalha de Olinda!
– E juro, senhora! Pelas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, se não for verdade, eu não me arrede daqui! Ele está aí, que o diga!… terminou a viúva apontando para o Cosme, que encolheu-se como a ostra na casca.
– Estas cousas não se falam tão alto! observou o Pisca-Pisca em tom submisso, indo à rótula espreitar pelas reixas se alguém estava à escuta.
– Pois ele que trouxe o desaforo há de levar a resposta, tornou a Rufina. Caiu-me a sopa no mel. Eu vinha mesmo por este particular. Chegue cá, moço!
Aproximou-se o Cosme ainda sarapantado; mas sempre embiocado na ronha, que não o abandonava nos transes mais arriscados.
– Ora, exclamou a Senhora Rufina, é o Cosme Borralho, o moço do entrevado!
– O próprio. senhora de minha veneração.
– Pois melhor. Ouça cá!
Ouviu o Cosme sornamente o recado da Senhora Rufina.
– Eu… eu… Cos… Cosme Borralho, disse o escrevente que gaguejava quando lhe fazia conta; eu sou o mais humilde servo… servo dos servos… da Senhora D. Rufina, muito digna e excelente esposa do senhor juiz almotacé; e sempre que precise da insignificância do meu préstimo. me verá a seus pés, como o último de seus cativos para receber as ordens, que é uma honra servir a tão virtuosa dama.
Aqui o Cosme deu um torcicolo e fez uma caramunha de lástima:
– Mas veja a senhora que eu, que não tenho eira nem beira, vivo da rasa do cartório e mais de alguns magros vinténs que tiro de copista do licenciado. Ora, se lá desconfiam que eu ando metido nas contendas dos senhores mercadores com os pernambucanos, com certeza me põem na rua a ver navios, sem ter com que comprar um bocado para a boca.
– Não tenha medo, que não desconfiam, disse a Rufina.
– Eu também acho! acrescentou a Inacinha.
– Se já eles andam de orelha em pé por certas cousas!… Agora se… se a Senhora D. Rufina, senhora da minha maior veneração, que pode tudo por seu honrado esposo, o qual é pessoa principal da terra: se a minha rica senhora quisesse… quisesse ser madrinha deste pobre coitado, para lhe arranjar um dos ofícios da vila que se vai criar, então… então… já eu estava mais descansado e podia fazer as cousas com jeito.
– Está dito. Faça o que lhe mando, e conte com o oficio, que se há de arranjar.
Feita a avença, o Cosme Borralho recebeu as últimas recomendações da Senhora Rufina, e como fosse uma dessas a presteza, botou-se a rótula para ganhar a rua.
– Espere lá, moço! E a trova? disse a mulher do almotacé.
– Pois a senhora não me deu para a levar? perguntou o escrevente espantado e metendo a mão no peito da garnacha onde guardara o papel.
– Dei, sim; mas é que a gente fica sem saber o verso, e depois, como se há de espalhar?
– Tira-se uma cópia.
Sacou o Pisca-Pisca do bolso da garnacha um desses tinteiros portáteis, feitos de chifre, como usavam então, e ainda se viam nas escolas pelos princípios deste século. Consistiam em uma boceta alta, que tinha no tampo um canudo onde se introduzia a pena para molhar-lhe os bicos.
Os outros petrechos de escrever, trazia-os também naquele bolso, que era uma carteira ambulante. Só a pena, aquela faceira pena com a rama matizada de várias cores, estava ali provisoriamente, pois o seu lugar era na orelha direita onde fazia as vezes de insígnia ou bandeira.
Mas tendo de pôr-se à fresca, segundo a versão da Inácia, ele acomodara a sua inseparável na algibeira.
Sentando-se no poial da janela, com a pena em cruz, e o joelho levantado para servir-lhe de banca, abriu o Cosme o papel que lhe dera a Rufina para o ler e copiar. Foi pôr-lhe os olhos e pestanejar de modo que bem justificava o apelido de Pisca-Pisca.
– O que é? perguntou a Rufina desconfiada.
– Não… não é… não é nada. Está engraçado o remoque!
– Não… acha? Elas vão arrenegar-se! É bem-feito! Para que se metem?… Repita lá para a Inacinha, que ainda não ouviu!
As duas aplaudiram e comentaram com muitas risadas os versos, enquanto os copiava o matreiro do Cosme, que tendo conhecido a letra do Lisardo, ficou-se com o original, dando à Rufina o traslado.
– Por que não leva o seu? perguntou a matrona.
– Podem conhecer-me a letra.
Esse receio não o tinha o Cosme porque dos três caracteres de letra que ele dava como seus, nenhum empregara na cópia, tendo ao contrário o cuidado de imitar o do nosso Lisardo, que mal sabia da tormenta que estava-se armando.
– Ah! outra cousa, moço!… disse de repente a Rufina atalhando a salda ao Cosme. Quem foi que fez o desaforo daquela trova que você trouxe?
– Quem… quem… quem… fe… fe… fez… a… a… qua… qua… qua…
– Sim, sim, a quadra! gritou a Senhora Rufina a quem estava agastando os nervos aquela amolação.
– Não… não sei!
– Por força que há de saber. Você que a trouxe.
– Eu… ju…ju… ju…. eu ju…
– Estou vendo, homem, que você não serve para escrivão; gagueja que não se entende! disse a Rufina em tom decidido.
– Eu não sei, tornou o Cosme, cuja língua desprendeu-se; mas ouvi dizer que foi um Lisardo de Albertim, um trovista, que é todo lá dos Cavalcantis.
– Lisardo?… É um camarada do Nuno?
– Isso mesmo!
– Conheço muito! acudiu a Inacinha. Um aluado que anda sempre a olhar as estrelas! Ele passa por aqui todos os dias com um gibão de veludo já muito surrado, que perdeu a cor; por sinal tem dois batoques nos cotovelos. Logo vi que havia de ser um cousa à-toa.
– Pois eu prometo-lhe fazer presente de um gibão novo, mas há de ser de veludo verde de cansanção, que é mais chibante.
– Ele não fez por mal! observou o Cosme. Tanto que os seus rendimentos são cá para o Recife, onde está a dama de seus afetos.
– E quem é esta buginica?
– Ele a chama em verso Belisa, que é o anagrama de Isabel.
– A filha da Rosaura do Viana? perguntou a Inacinha.
– Ah! ah!… É a minha afilhada. E ela tem dado confiança a esse malandro?… Diga-me, diga-me, que lhe quero já negar a bênção.
– Não; eu penso que ela nem sabe! retorquiu o Cosme apalpando no bolso o papel da redondilha.
E antes que viesse novo aperto, abriu a rótula, e pôs-se a trote.
CAPÍTULO XI
COMO O NUNO FOI ACRESCENTADO DE PAJEM A ESCUDEIRO, E O LISARDO REBAIXADO DE
POETA A VAGABUNDO
A sala principal da casa de André de Figueiredo estão reunidas várias pessoas.
Da banda fronteira à entrada vê-se D. Lourença Cavalcanti, sentada em cadeira de espaldar, tendo junto de si um bufete pequeno coberto de colgadura roxa que arrasta no chão. Aí estão os recados de que serve-se a dama naquele momento para escrever cartas.
Do outro lado do bufete, a irmã D. Antônia Barbalho, mãe de Leonor, fia em uma roca de braúna as alvas pastas de algodão que enchem o cabaz de palha posto a seus pés. Em seu benigno semblante está pintada a alma tíbia e frouxa, que as irmãs dominam e afeiçoam como uma cera.
À esquerda, no intervalo das janelas, lá está em tamborete raso, para se dar ares de donzela, a ninfa olindense, a formosa Clélia, nome este por que era conhecida no Pindo a Senhora D. Severa de Sousa. Ocupava-se ela com a leitura de seu livro favorito, o Palmeirim de Inglaterra.
À direita, no longo estrado forrado de panos de arrás com figuras e ramagens, estão de tarefa as moças da casa e parentas, entre as quais distingue-se Leonor, pela formosura como pela melancolia; pois enquanto as outras vão chilreando risos e segredinhos ao ouvido, ela, de cabeça baixa, absorve-se no seu trabalho.
Um escravo de libré postado em cada porta para qualquer chamado e o mais que for preciso espera as ordens.
Leonor trabalha em uma touquinha de renda, que destina à neta recém-nascida de sua velha ama, a Brites. Está agora enfeitando-a de rosas de maravalhas, e essa ocupação lhe encaminha o espírito para umas saudades, que ela esconde no refólho d’alma para não nas adivinharem, e que são menos o recordo de uma ventura fruída do que a viuvez de uma doce esperança.
Sem que ela se apercebesse, tão distraída estava, começou-lhe o seio a desafogar em suspiros, e após eles veio um como murmúrio de intenso queixume que se foi desprendendo a pouco e pouco em suave e terníssima endeixa. Cantava em voz submissa as coplas de um romance antigo que lhe trouxera. à memória certa conformidade de pensamentos:
Filha, filha da minha alma,
Com que te batizaria?
As lágrimas de meus olhos
Te sirvam d’água da pia.
Chamar-te-ei minha Rosa,
Rosa, flor de Alexandria,
Que assim se chamava d’antes
Uma irmã que eu queria.
Aqui a voz feneceu para tornar pouco depois repetindo já coplas de outra cantiga em que então se enleava a fantasia da donzela:
Nada em dor, em dor criada,
Não sei isto onde irá ter.
Vejo-vos, filha, formosa,
Com olhos verdes crescer.
Não era esta graça vossa
Para viver em desterro;
Mal haja esta desventura,
Que pôs mais nisso que o erro.
– Que há de você, Leonor, estar sempre a amofinar-se á toa, com umas tristezas tão sem propósito! disse D. Lourença interrompendo a cantiga da sobrinha com um tom de repreensão.
– Eu?… exclamou a donzela confusa.
– Ora, que tem que a menina desafogue suas mágoas, D. Lourença? Antes cante ela suas endeixas, que os zéfiros vão desfolhando pelos ares, do que as congele no seio para se derreterem em aljôfares de sentido pranto.
Assim falou a D. Severa, que bem mostrava na linguagem alambicada o comércio poético, que entretinha com o Lisardo.
– Se já é um sestro desta menina fingir-se desventurada e viver só a lastimar-se desde que o dia amanhece? Não sabe outras cantigas senão essas que falam de desgraças, de pranto, e de quanta cousa há de triste?
– Nisso de cantiga não há para mim como a da Donzela Guerreira! exclamou D. Severa com entusiasmo; e soltando a voz de flautim começou a gargantear estas coplas:
Sete anos andei na guerra
E fiz de filho barão,
Mas ninguém me conheceu,
Só se foi meu capitão.
Conheceu-me pelos olhos
Que por outra cousa não;
Foi meu capitão na guerra,
Agora o fiz meu barão.
Ouviram-se uns risos abafados, de que não fez o menor caso a ninfa olindense.
Leonor, que tivera tempo de recobrar-se da perturbação, cuidou em disfarçar o verdadeiro motivo de sua mágoa.
– Pois, minha tia, não temos nós todos razão para afligir-nos com as desgraças que ameaçam esta terra?…
– Que desgraças são estas agora? perguntou D. Antônia à filha.
– Ainda ontem, minha mãe, a velha Brites me esteve contando que pela Quaresma, em noite clara, se viu a lua partida pelo meio em duas bandas, uma no seu natural alumiando o céu, e a outra coberta de sombra que parecia um dó, no que bem estava mostrando as guerras que hão de acontecer entre Olinda e o Recife, e o luto em que ficará uma das partes.
Estas palavras da moça causaram viva comoção no ânimo das pessoas ali reunidas.
– Tal e qual sucedeu! disse D. Francisca, mulher de André de Figueiredo.
– Eu vi com estes olhos! acrescentou D. Genoveva, casada com Antônio Tavares.
– Que tem isto? acudiu D. Lourença. Guerra havemos de fazer, que assim é preciso para defender os foros da nobreza; e sem ela decerto que não poderemos ganhar a vitória e abater a grimpa dos mascates. Nem outra cousa significa essa conjunção dos astros, senão a glória de Olinda por um lado, e a ruína do Recife pelo outro.
– Mas há quem diga, minha tia, replicou Leonor, que a parte escura ficava para as bandas de Olinda.
– Não acredite em abusões, menina; que esta lua é pernambucana e não prognostica males aos filhos que nasceram em sua terra.
– Olha, Leonor, que tua tia sabe estas cousas dos astros, como ninguém.
– Sei, minha mãe, sei que a tia D. Lourença é muito versada em todas as sete artes liberais, mas tenho uma cousa que está me dizendo… E então quando me lembro da milagrosa imagem de Nossa Senhora do Ó, que o ano passado, na véspera de Sant’Ana, suou sangue, o que todos disseram logo ser presságio de grandes perturbações, com guerras, mortes e toda a sorte de desastres!.
– E por sinal, que se passou a sua imagem do altar que teve na Igreja de São João para a Capela do Santo Cristo da Sé, disse D. Francisca.
– Para ver se aí, perto do Senhor Crucificado, ela intercedia com seu bento Filho para arredar de nós estas calamidades, acrescentou D. Genoveva.
Ouvira D. Lourença as razões da sobrinha e das cunhadas com o modo grave e refletido que lhe era natural; tanto mais porque os presságios de que tratavam as damas eram tirados de fatos notórios e atestados por pessoas de toda a fé.
Ainda hoje dura a tradição, conservada por Sebastião da Rocha Pita e o Padre Manuel Leitão, que deles dão notícia pelo mesmo teor ou com pouca diferença.
– Sem dúvida que muitos males estão a cair sobre esta terra, disse D. Lourença; e antes dos prognósticos divinos, já era dado aos prudentes antevê-los nos humanos desígnios, pela soberba e arrogância dos mascates nestes últimos, tempos. Mas esses males vêm mandados do céu para castigar a culpa de agasalhar miseráveis aventureiros, e para expurgar a nossa terra dessa praga vil de forasteiros, que a está danando. Nossa Senhora do O, que é pernambucana e tem altar erguido nesta terra que regamos com o nosso sangue para a arrancar aos hereges e flamengos, e conservá-la ao Padroado de Cristo; Nossa Senhora do Ó e sua corte celeste não hão de desamparar os defensores da fé e cavaleiros da cristandade. Se ela suou, a milagrosa imagem, não foi de lástima por nós, mas sim de pesar e tristeza por ver que se estão abatendo os antigos brios pernambucanos, por modo tal que já não haverá quem preserve esta terra de ser presa dos franceses, se, como se afirma e eu creio, andam eles correndo a costa e preparando-se com grandes empresas a acometê-la, que, isto dizem, já chegou aviso de Lisboa ao governador.
Por esta amostra imagine-se o papel importante que devia representar D. Lourença nas assembléias políticas dos parentes. Se vivera em nossos dias, com a sua literatura e disposições para a oratória, com certeza já se teria mandado anunciar a rufos de tambor para a próxima conferência popular.
– É desenganar, senhora, acudira D. Severa. Enquanto não aparecer nesta terra de Olinda outra heroína como D. Clara, que arvore a gineta das damas, os negócios hão de andar baralhados. Mas não tarda muito que não vejam aparecer aqui mesmo em Olinda uma Ala das Donzelas com seu capitão, que há de escurecer a fama de Mem Rodrigues e da sua dos Namorados.
– O capitão, já se sabe quem é? tornou D. Lourença com um sorriso em que a acompanharam as outras,.
Não lhe respondeu D. Severa, porque voltando-se para chamar o seu pajem de estrado, o qual como se devem recordar não era outro senão o brejeiro do Nuno, que de mascatinho virara donzel, apercebeu-se a dama da ausência do rapaz. Levantou-se logo e foi-lhe na pista.
Pouco havia que saíra da sala, e ainda as outras se riam dos arreganhos marciais da ninfa, quando o lacaio da entrada veio com recado de segredo a D. Lourença, a qual deitando os olhos para o corredor, viu aparecer no fio da porta fechada a meio, um pedaço de cara de fuinha que se havia de jurar ser a do Cosme Borralho.
– Está aí o moço do senhor licenciado Davi de Albuquerque, disse o escravo à puridade.
– Leva-o para o oratório, que já ai vou, respondeu a dama.
D. Lourença deu tempo a executar-se sua ordem e saindo por uma porta do interior, dirigiu-se ao lugar indicado que era o mais reservado e onde se tratavam os negócios de monta.
Entretanto D. Severa corria toda a casa á busca do Nuno, mas não lhe viu nem a sombra.
O brejeiro do rapaz, que era um azougue, aborrecido da estação a que o obrigava a D. Severa, em pé atrás de sua cadeira como pajem de estrado, não perdia ocasião de escafeder-se e ganhar a rua ou quintal. Naquele dia achando aberta a casa do trem, aproveitou a ocasião tão suspirada, e armando-se de uma grande catana, começou a esgrimir contra uma armadura completa que, posta no meio da casa e enfiada no seu cabide, parecia um guerreiro antigo armado de ponto em branco.
Saltava o endemoniado moço como uma pulga em volta da panóplia e desfechava-lhe cada cutilada, que feria logo na coiraça e sobretudo no capacete.
– Defende-te, vilão… gritava ele. Que senão te corto em talhadas com esta espada como uma melancia! Em guarda, ajudante das dúzias! Olha este golpe terçado!… Zás!… E este de ponta!… Traspassado, barbudo do inferno!… Rende-te ou morre, negro, negreiro, negrão!…
No meio deste fero combate em que o Nuno imaginava estar pelejando com o Ajudante Negreiros, o homem de sua especial birra, ouviu ele um rumor do lado da escada, e receando que lhe andassem à cata e o pilhassem na embrechada, foi espiar ao corredor, e bispou o Cosme que subia os primeiros degraus.
Veio-lhe a curiosidade de saber que novidade trazia o Pisca-Pisca àquela casa, onde ele afirmava que não punha os pés; e separando-se pesaroso da catana ficou de espreita ao escrevente a quem viu entrar para o oratório, onde com pouco foi ter a D. Lourença.
Não podendo escutar o que passava dentro, pôs-se de plantão na escada para cortar a retirada ao Cosme e falar-lhe; sobretudo desejava ter novas do que ia pelo Recife depois que de lá se partira.
Infelizmente a D. Severa que voltava desenganada de o achar, veio esbarrar com ele e arrecadou-o:
– Ora, muito bonito! Estou eu a procurá-lo, e o senhor a peraltear! Fique sabendo que um pajem bem ensinado deve estar sempre junto da dama cujo é, como seu caudatário e donzel, para defendê-la e servi-la a um seu aceno.
O Nuno recebeu o sabonete de cara murcha, mas assomando-lhe a natural petulância, levantou a crista contra as pieguices da dama que pretendia fazê-lo de menino.
– Saiba também a senhora que eu estou pronto a servi-la e tenho nisso muito gosto, mas há de ser como seu escudeiro e homem d’armas; que lá essa história de pajem e donzel é para os pirralhetes de quatorze anos, e eu cá já sou um homem.
– Quede a barba?
– A barba! Isso arranja-se, ainda que se pode bem dispensar, e a prova é que D. Antônio Filipe Camarão, que foi insigne capitão, não tinha um fio, nem a sua descendência; e mais eu posso comprar dois mustachos bem fornidos para compor o rosto, como o moço que faz de Ferão Brigoso, na farsa do Juiz da Beira.
– Mas não vê você, Nuno, que um pajem é mais próprio para uma dama?
– Pois eu de pajem não fico, nem que me serrem!
– Está bom! Fica sendo meu escudeiro.
– Isso é outra cousa.
Nisso esgueirou-se pelo corredor o Cosme que saía do oratório, e desceu as escadas a trote miúdo. Quando o Nuno se pôde desembaraçar e lhe foi no encalço, já não o avistou.
D. Severa entrou na sala ao tempo em que D. Lourença, de volta do oratório e sentando-se de novo ao bufete, lia um papel que trouxera. Era a fatal redondilha que a menina Marta obrigara o Lisardo a escrever na câmera de Isabel.
D. Lourença, não se podendo chamar gorda, era uma senhora reforçada, que no seu porte cheio de dignidade dava uma idéia da matrona romana. Os versos não se podiam pois referir a ela; o que a dispôs a achar-lhes chiste.
Olhou sorrindo para a D. Severa que lhe andava sempre a disputar as primazias.
– Quer ver, prima D. Severa, até onde chega o desaforo da ralé dos mascates? Pois não mandaram pregar nas esquinas estas rimas desavergonhadas?
Ouça:
Escorridas como um fuso,
As damas de Olinda são;
Por fora aquele esparrame,
Por dentro é só armação
De pano, d’osso e arame.
Foi grande o escândalo das damas, especialmente das magras; nenhuma, porém, como D. Severa, que erguendo-se de golpe e atirando para trás com um couce a longa cauda, enristou a trunfa e bateu o pé:
– É uma vingança daquele vilão descortês!… Do tal Sebastião de Castro!… Como não achou entre as nobres damas de Olinda os requebros das descocadas lá do Recife, manda-nos agora difamar por seus rimadores. Mas ele que não se meta!
Nesse instante soou na rua tropel de cavaleiros. Um troço de gente armada parou à porta da casa de André de Figueiredo, e o Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti, com seu filho Manuel, subiram ao sobrado em busca do capitão.
Entretanto o Nuno, que voltava da caça que em pura perda tinha dado ao Pisca-Pisca, avistou lá do outro lado, à esquina da Ladeira do Varadouro, o Lisardo que vinha em busca da casa, mas que avistando a cavalgada, arrepiou caminho.
Esperou o mascatinho que o poeta se resolvesse a ganhar a casa, cosendo-se à parede; queria comunicar-lhe a grande nova de ter sido pela D. Severa acrescentado de pajem a escudeiro e homem d’armas.
O Lisardo, porém, vinha triste e abatido, para o que tinha sobras de razão. Na véspera, à ave-maria, fora como de costume fazer de pé de muro no beco, em adoração à rótula de seus amores; mas quando ele esperava aquele rufo suavíssimo de unhas rosadas nas reixas de madeira, e aquele coar da luz de uns olhos feiticeiros através das grades, abriu-se a gelosia com ímpeto, para logo fechar-se, batendo-lhe três vezes com tanta ira, como se o estivesse castigando. Era o que se chama vulgarmente bater com a porta na cara.
Nessa manhã repetira-se a crueldade da rótula, mas com um suplemento que pôs o remate à desventura do nosso trovador; e foi que, insistindo ele em abrandar com a humildade de sua paciência e a melancolia de sua compostura os rigores da tirana gelosia, veio de embaixada a negra Benvinda despachá-lo por este teor:
– Moço, siga seu caminho, aqui no Recife tudo tem perna cabeluda!
Foi um relâmpago que ofuscou a alma do Lisardo; quando caiu em si, a negra se tinha sumido e a rótula fechada estava muda como uma campa, e o era, de seu finado amor.
Belisa lera a quadra que ele havia feito por ordem de D. Severa, e com razão se julgava ofendida. Como, porém, soubera ela do autor, é o que não atinava o Lisardo, que estava bem longe de suspeitar das inteligências do Cosme Borralho com a Senhora Rufina no Recife e com a D. Lourença em Olinda.
– Que te aconteceu por lá, que me pareces um farricoco, carregando tua própria tumba, pois a cara que trazes não é doutra cousa? disse o Nuno ao poeta com a sua costumada galhofa, que desta vez era o disfarce da comoção ao ver o semblante abatido do amigo.
– E não te enganas, Nuno! É uma tumba, o que estás vendo e não mais o infeliz que ontem era. É a tumba de uma alma que nasceu para a dor, e não viveu senão para começar desde o primeiro instante a morrer aos poucos. Uma esperança a consolava na sua agonia e a prendia a este mundo por um tênue fio de ouro. Esse fio rompeu-se, e a alma acabou por finar-se.
Nuno abraçou-o com efusão.
– Mas dize-me, que houve que assim te mortifica?
– Belisa aborrece-me.
– Juro eu que não!
– Aborrece-me, e tem razão, porque a ofendi.
Ia o Lisardo referir ao amigo sua desventura, quando apareceu no saguão, onde já então se achavam os dois moços, D. Lourença, que andava no tráfego da casa, dispondo o agasalho para os acostados de seu primo Leonardo Bezerra, que lhe pediu o aboletasse ali até a noite.
Avistando o poeta, repuxou-se a barbelha de D. Lourença, com o assomo imperioso que tomava o seu colo nos momentos de rigor; aproximou-se a dama com um modo tão severo que os moços estremeceram:
– Os ingratos são como as varejas, pois assim como estas empeçonham o corpo que as sustenta, eles vendem os protetores que os agasalham. Você, Lisardo, que tantos anos foi um familiar desta casa onde nunca lhe faltou o necessário, acolhido pelos nossos com bondade, esqueceu todos estes benefícios, e fez-se com suas rimas fâmulo e serviçal dos mascates, a troco de alguma vil espórtula.
O Albertim, sucumbido, quis protestar neste ponto; não lho deixou a matrona.
– Tão negro procedimento devia arredá-lo para sempre desta casa cujas portas dora em diante lhe estão fechadas. Se foi para ouvi-lo que tornou, pode desde já ir-se; e é o mais prudente, porque em chegando o Capitão André de Figueiredo e sabendo da sua gentileza, não há de ter a moderação de que usei.
Albertim sorriu-se, como deviam sorrir os mártires através das chamas da fogueira e, curvando a cabeça, afastou-se com a dignidade da resignação, que é mais respeitável do que a do orgulho.
Nuno estava atônito; não atinava bem com o que se passava ali diante dele; parecia-lhe que expulsavam o Lisardo, mas por que motivo? Nesse estado apenas pôde balbuciar uma palavra ao ouvido do amigo quando este lhe passou junto:
– Espera-me lá foral
Logo que D. Lourença arredou-se, correu o rapaz à rua; mas apesar de todas as pesquisas não descobriu Albertim.
CAPÍTULO XII
NO QUAL SE DESEMBRULHA O EMARANHADO E PROFUNDISSIMO CASO DO MARISCO
Estamos em frente ao Palácio das Torres.
Assim chamava-se naquele tempo os paços que o Conde de Nassau, príncipe da casa de Orange, fez construir para sua residência na cidade Maurícia, e que depois da restauração ficaram para habitação de recreio dos governadores portugueses.
Ocupavam na ponta setentrional da antiga Ilha de Santo Antônio o mesmo sítio onde se acha atualmente o palácio da presidência, em que sucessivas reparações e acréscimos transformaram a primitiva construção.
Naquela época ainda apresentava o aspecto senhoril de um castelo torreado, no estilo flamengo e de arquitetura superior na elegância e solidez à grosseira alvenaria que introduziram no Brasil nossos avós, os portugueses, já na decadência de sua efêmera civilização.
Compunha-se o edifício de um corpo quadrado, em dois altos pavimentos alumiados por grandes arcadas. A frente era defendida por um reduto com duas cintas de canhões, uma ao longo da escarpa e outra a cavaleiro.
De cada lado projetavam-se dois pavilhões com as suas canhoneiras também guarnecidas, e após eles elevavam-se em quatro pavimentos as duas torres quadradas cujos coruchéus dominavam todo o vale do Beberibe, desde os outeiros de Olinda até as veigas de Santo Amaro.
No mais alto sobrado viam-se as atalaias; e logo abaixo nas ameias dormiam os morteiros que haviam defendido outrora contra o valor lusitano a cidadela flamenga.
Tal era o Palácio das Torres, como o pintam as estampas daquele tempo. Aí, nas casas ainda adereçadas com luxo de príncipe, faziam os governadores constante residência, o que foi o primeiro escândalo para os nobres moradores de Olinda.
O Senado representou a El-Rei, o qual expediu várias cartas régias ordenando que os governadores assistissem na cidade com os ministros; mas estas ordens do rei velho tiveram o mesmo efeito que hoje produz a soberania do povo menino.
Os governadores continuaram a morar no Recife e só iam a Olinda para tomar ares ou para assistir às festas de Estado que celebravam-se na catedral, e à qual mais de um fez-se conduzir debaixo de pálio.
Atravessemos a ponte levadiça abaixada sobre o largo fosso, e que mais parece dormente a julgar pela ferrugem das correntes que a prendem às colunas da frontaria. Entremos o pórtico do castelo e passando pelo saguão em abóbada vamos ter à sala d’armas. Deixando à direita as portas de comunicação para o pavimento térreo e em frente à arcada que abre sobre o pátio, subamos a escada que fica à direita, e que nos leva em dois lanços a uma antecâmara do sobrado.
Aí estão os lacaios do governador que dirigem os visitantes à próxima alpendrada corrida em volta do pátio sobre colunas de jacarandá tão bem torneadas e burnidas, que figuram basalto.
Três lados dessa galeria estão desertos e silenciosos; no quarto, porém, começam a enxamear entre os oficiais de sala do governador, a gente da governança, e muita outra da principal da terra que vinham ao jube domine, sem falar da chusma interminável de pedintes que nesses dias caiam sobre o governador como um mosqueiro sobre uma fôrma de açúcar.
São nove horas da manhã.
A concorrência era mais numerosa ainda que de costume, porque sendo este dia marcado pelo governador para a junta na qual se havia de decidir definitivamente a questão da vila, que era um caso de monta, ou como se diria hoje uma questão de gabinete, aguçara-se a curiosidade, e todos que tinham entrada no palácio lá foram na esperança de colher alguma cousa.
Enquanto não aparece D. Sebastião, aproveitemos a ocasião para dar uma ligeira notícia do que eram então as antecâmeras de um palácio.
No lanço da galeria franqueado aos estranhos viam-se grupos de moradores que rodeavam alguns dos oficiais de sala, para ouvir desse oráculo do governo as novas de importância ou para simplesmente participar do contacto palaciano, o qual para certa gente é um estofo indispensável.
Oficiais de sala chamavam-se então certos indivíduos que os governadores nomeavam para ficarem de estado à sua pessoa; e como esse oficio não tinha assento na folha, e por conseguinte não vencia salário nem propinas, eram para ele escolhidos de preferência os que tinham praça na milícia, ou que desfrutavam alguma tença e mercê.
Esses oficiais tinham aposento no paço, serviam ao mesmo tempo de camareiros e escudeiros para fazerem sala ao governador, como para o acompanharem em qualquer cerimônia e a passeio. Daí vinha sua designação, a que eles correspondiam à risca desfiando as longas horas do dia naquela galeria ou nos repartimentos baixos, sem ocupar-se em cousa, senão útil, ao menos séria.
O tempo que lhes deixava de folga o plantão da sala, despendiam-no em medir com o compasso das pernas os soalhos alcatifados, recontando pela centésima vez umas anedotas palacianas que já tinham mofo, mas em que eles achavam sempre um chiste particular que provinha de forte sabor cortesão.
A não ser que chegassem novas do reino, o único assunto da prática desses plastrões era D. Sebastião de Castro. – “O homem acordou.” – “Está almoçando.” – “Vai aos fortes”. – “Ainda não jantou.” – “Sai a passeio.” – “Entrou para o gabinete.” Tais eram os graves acontecimentos que preocupavam exclusivamente esses indivíduos, muitos dos quais tinham família.
Se acontecia que D. Sebastião espirrasse, esse fenômeno tornava-se o tema da palestra por muitos dias. “Estará enfermo o homem, cuja saúde robusta não conhece achaques?” – dizia um. – “Quem sabe se esse intempestivo defluxo não trará alguma perturbação grave no regime do palácio?” exclamava outro. – “A reuma é traiçoeira, e não seria mau chamar-se logo o físico em tempo”, opinava terceiro. – “Os grandes desastres nascem muitas vezes de pequenas causas, e deste catarro pode provir a perda da capitania, que os pichelingues andam na costa”, prognosticava o quarto. – “Fora com os agouros; o espirro sempre foi um sinal de boa saúde”, concluía o quinto.
D. Sebastião de Castro, afora os oficiais do costume de seus antecessores, nomeara mais uns dois ou três que tinham outra incumbência especial, além de fazer sala. Esses espalhavam-se pelas ruas do Recife e Olinda, onde sua posição lhes dava entrada em qualquer casa; correndo a coxia, iam colhendo quanta novidade e mexericos topavam no caminho, e com essa bagagem voltavam a palácio.
Era pela diligência de tais alvissareiros que D. Sebastião andava sempre bem informado de tudo quanto ocorria nos dois povoados e do mais que inventava a maledicência. Assim, àquela hora, já ele tinha de cor as duas trovas do Lisardo, e sorria-se do paralelo que faziam a perna cabeluda da Rufina com o caniço da D. Severa.
Apreciava Sebastião de Castro em alto grau os seus oficiais da sala. Não os podia dispensar. Quando saía a cavalo a percorrer as fortificações, para fazer mostra e alardo de sua atividade, levava-os de roldão, à desfilada, por barrocas e corcovas. Fazia-os apanhar sol e chuva, de cabeça exposta ao tempo, sem a menor consideração. à calva dos pelados ou às cãs dos velhos. Deixava-os a curtir fome e sede, enquanto ele examinava uma frandulagem qualquer que encontrava em suas excursões.
Mas quem penetrasse no interior de Sebastião de Castro conheceria que para o fidalgo esses oficiais, com raras exceções, não eram homens, porém uma cousa entre o criado e o animal: uma espécie de mobília de palácio. Não lhes tinha a menor estima; quando muito sentia por eles a afeição do hábito que tomamos a um traste pela comodidade que nos presta.
Se algum morria, era uma contrariedade e nada mais. Mandava por um companheiro dar os pêsames à família, e à noite para distrair-se comparecia ao sarau da nobreza ou dos mascates.
Entretanto contava-se que, se acontecia adoecer algum dos seus criados de quarto, saía ele com toda a comitiva, pondo de parte as cousas do Estado, para visitá-los ao leito. Estes fatos eram depois referidos e comentados com muitos louvores à caridade do fidalgo.
Na extremidade da galeria estava uma sala com as paredes cobertas de lambéis e alcatifada com um tapete da Turquia e cadeiras estofadas de veludo de Utrecht: restos já rafados das galas primitivas. Para esta sala entravam os homens da governança, que deviam compor o conselho e iam ali esperar as ordens do governador.
Estavam todos mais ou menos impados e repletos de sua importância como homens que tinham de dar o seu voto sobre a profunda, intrincada e campanuda questão do marisco.
D. Sebastião estava naquele momento à mesa do almoço, que ele despachava com a presteza de um soldado. Essa particularidade, junta a seus hábitos frugais, apesar da profusão e variedade do serviço, tinha desde o princípio de seu governo causado reparo.
O Padre João da Costa, quando soube que o fidalgo tinha esse costume de que lhe resultava ficar afrontado depois da comida, augurou mal do governo porque em sua opinião um homem que não comia bem, e não digeria melhor, não podia conduzir convenientemente a nau do Estado.
Sebastião de Castro, a quem freqüentemente damos o dom que ele não tinha, apesar de ser da primeira fidalguia dentre Douro e Minho, mas que de todos recebia por unânime aclamação, era exemplar no seu viver privado. Das virtudes que fazem o homem de bem, nenhuma lhe negara a natureza, apesar de já lhe ter o atrito do governo gasto algumas.
Logo ao romper d’alva estava a pé; e depois de composto fechava-se no gabinete que tinha em uma das torres, onde empregava no estudo as primeiras horas do dia. Se dermos crédito a Sebastião da Rocha Pita, era muito versado em cousas de guerra, que aprendera com seu tio Diogo de Caldas Barbosa, nas lutas da liberdade do reino.
– Algumas vezes saía muito cedo a visitar os fortes e prover sobre o regimento da terra, no que era de uma atividade incansável; mas com a sofreguidão de tudo ver por si e remediar, acontecia, o que é muito comum, catar os argueiros nos olhos dos pequenos e não enxergar as traves que lhe metiam pelos seus o secretário e o ajudante.
Na mesa era sóbrio. Seu prato usual consistia em um frangão cozido com papas de arroz à moda da Índia, e que lá chamavam canjas, mas não entrava nelas caril ou alguma outra especiaria. Raro bebia vinho; e seu postre não passava de goiabas, confeitas à maneira da marmelada, doce que já então se fabricava em Pernambuco de superior qualidade.
Ergueu-se Sebastião de Castro da mesa, e dirigiu-se à galeria. Um criado disparou para correr-lhe o reposteiro e anunciá-lo; mas não lhe deu tempo o fidalgo, que apareceu de repente no meio dos ministros reunidos para a junta, produzindo neles uma confusão e atarantamento de que se não mostrou apercebido.
Recebendo a cortesia que lhe vinha apresentar cada um deles, e retribuindo com igual atenção, passou à galeria onde o esperava a chusma de visitas e pretendentes. Ai ouviu de pé o recado ou peditório de cada um, com uma pachorra, que raros teriam em sua posição. Quando se pôde desvencilhar dessa interminável audiência, encaminhou-se à sala do governo onde já estava reunida a junta a que ia presidir.
Era um vasto aposento sobre o comprido, esclarecido por janelas que davam para o rio e das quais se gozava a pitoresca vista de Olinda. Uma longa mesa coberta de arrás verde corria de uma à outra ponta; na cabeceira via-se a cadeira de espaldar reservada para o governador e aos lados bancos rasos cobertos de estofo, onde já estavam sentados os ministros que se ergueram à entrada de D. Sebastião.
À direita do governador ficava o Secretário Barbosa de Lima que expandia-se como uma papoula aos raios do sol. À esquerda, o Ajudante Negreiros, sempre de viseira caída. Seguiam-se desta e daquela banda uns escreventes ou amanuenses que o governador tinha a fantasia de chamar a pretexto de ajudarem ao secretário, e cujo real préstimo era tomar os rinzes ao Barbosa de Lima se, por um caso estupendo, ele se lembrasse de soltar os panos. Um desses era imberbe; os outros já tinham sua barbica; mas não se induza daí que saiam da adolescência, pois já estavam maduros.
Nesse traço havia sem duvida uma predestinação; pois a barba é o emblema das virtudes viris, como sejam a independência e energia.
Sentado D. Sebastião, mandou ao Barbosa de Lima que expusesse a questão, e este desempenhou-se da tarefa com a sua habitual facúndia, mostrando a suma gravidade e ponderação do negócio do marisco, pois era o principal recurso da pobreza do Recife, que, em ocasiões de penúria, daí somente tirava o alimento.
Acabada a exposição, fez o governador um leve sinal com a cabeça; e os ministros, cada um por sua vez, começando pelo almotacé, disseram seu parecer acerca do caso. Enquanto falavam, D. Sebastião ocupava-se em encher uma folha de papel de grutescos de toda sorte, onde se viam de envolta ramagens esboçadas, cabeças de passarinhos e outras bobagens.
Não daremos aqui a íntegra das tenções de cada ministro, como no-la transmitiu a crônica, pois consumiria muito papel. Basta saber-se que o almotacé provou com farta cópia de textos que, sendo o marisco aquático de sua natureza, devia caber de direito aos povos do Recife, os quais habitavam as praias, e não aos povos de Olinda que era uma cidade montanhosa. O almoxarife, fundado na opinião de Avincena e Trincaveili, foi de voto que o marisco era um alimento indigesto e pouco nutritivo, pelo que não tinham os povos de Olinda justo motivo para reclamarem a outra metade do rio; antes deviam agradecer o beneficio que lhes faria Sua Excelência, preservando-os de cruezas de estômago, flatos e outros achaques. O provedor tratou o caso ab ovo e demonstrou cabalmente com a autoridade de insignes gramáticos, que o marisco era fruto do mar, como estava dizendo a palavra marisesca, ísca do mar; e, estabelecido esse ponto, concluiu que todos os crustáceos do rio provinham do oceano e entravam pela barra do Recife, pelo que só ao Recife competia apanhá-lo. Quanto ao Viana, na sua qualidade de provedor dos defuntos, discorreu largamente, com a tal voz de carretão; mas ninguém percebeu o que disse; devia ser cousa muito profunda e digna da maior ponderação, porquanto os ministros ali mesmo julgaram necessário dormir sobre o caso.
Nesse ínterim o Ajudante Negreiros ouvindo desusado rumor na praça, obtida a vênia do governador, ergueu-se da mesa e assomou-se à janela para inquirir da causa dessa agitação.
Fronteiro a palácio estava postado um cavaleiro petiço e magriço, armado de todas as peças, capacete, gorjal, couraça, grevas, espaldeira braçais e guante, com o ginete estacado e a lança em punho. No elmo trazia ele por timbre uma aspa de vermelho com cinco estrelas de ouro, e na cota de malha o escudo dos Barros, campo vermelho, três bandas de prata e sobre o campo nove estrelas de ouro.
Outro cavaleiro também armado de todas as peças, e das mesmas cores, se adiantara até o pórtico e batendo três vezes no escudo com o conto da lança, clamou em voz alta:
– Ouçam todos este repto. O cavaleiro das estrelas, por mim, seu escudeiro, te desafia a ti D. Sebastião de Castro Caldas a combate singular, onde te provará à lança e à espada, a pé e na estacada,. que és um cavaleiro desleal, pois não sabes guardar a cortesia às damas.
O escudeiro, retrocedendo, foi colocar-se atrás do cavaleiro das estrelas; donde com pouco avançou de novo para repetir o repto. Foi da terceira vez que o ajudante chegou e o ouviu.
Depois disso o cavaleiro com o escudeiro deu três voltas à praça, e de cada uma delas, parando em frente à janela de palácio, gritou com uma voz esganiçada:
– Perante todos proclamo covarde D. Sebastião de Castro, que não se atreve a sustentar o seu dito em combate leal.
Esta cena a principio passara desapercebida para os oficiais de sala e mais gente que estava em palácio; quando lhe deram atenção, foi tal a surpresa, que ninguém se lembrou de intervir, e já se retiravam cavaleiro e escudeiro, quando o ajudante que descia as escadas de tropel, montou a cavalo e foi-lhes no encalço.
Tomando a dianteira ao cavaleiro, gritou-lhe o ajudante:
– Levanta a viseira!
– Se vens da parte de D. Sebastião para conhecer o cavaleiro diante de quem ele fugiu, olha!
E levantada a viseira, o Negreiros ao ver a cara bem sua conhecida de D. Severa, disparou às gargalhadas, e deu de esporas ao cavalo para tornar a palácio e contar o caso grotesco ao governador. Mas entornou-se-lhe o caldo, porque ao passar rente com o escudeiro, este, que não era outro senão o brejeiro do Nuno, agarrou-o pelo tacão da bota e o revirou da outra banda.
Ao mesmo tempo com a ponta da lança picava o rapaz a anca do cavalo de D. Severa, e partiam ambos à disparada. Mas inda assim podia sair-lhes salgada a graça, se no momento em que o ajudante erguia-se do tombo, esbravejando como um touro, não desembocasse da ponte uma numerosa cavalgada. que se aproximava cercada de grande ajuntamento de gente a pé.
Descobrindo à frente da cavalgada o pendão da cidade de Olinda, nas mãos do procurador do Senado, Estêvão Soares de Araújo, conheceu o ajudante que havia novidade, e adiando para mais tarde a desforra do desacato inaudito que sofrera, tratou de inquirir do motivo do acompanhamento.
Acabava Sebastião de Castro de levantar a junta, declarando que à vista dos pareceres resolveria em tempo, quando chegou açodado o ajudante a comunicar-lhe que aí vinha o Senado de Olinda com as varas dos ofícios e pendão alçado para representar sobre negócio de urgência, o qual ele suspeitava ser o próprio da criação da vila do Recife.
Saiu o governador a receber os juizes e oficiais; com eles vinha o Ouvidor Arouche e alguns nobres de Olinda dos mais exaltados, além do povo com seus procuradores em frente.
Então o Coronel Domingos Bezerra Monteiro, vereador mais velho que servia de juiz ordinário, adiantou-se e falou nestes termos:
– Senhor governador, aqui vem o Senado da cidade de Olinda, com a nobreza e povo, por seus procuradores nomeados, representar contra a deliberação que tomou Vossa Senhoria de criar vila no Recife, para o que sabe-se com bom fundamento que se estão lavrando em segredo no Forte da Madre de Deus as pedras do pelourinho.
Não pôde de todo ocultar Sebastião de Castro a contrariedade ao ver devassado o seu plano; mas sem desconcertar-se, ouviu impassível e com uma compostura cheia de dignidade todo o arrazoado do juiz de fora.
Sua resposta foi breve e consoante com a autoridade de que se achava revestido:
– Como governador desta capitania hei de cumprir as ordens de El-Rei, meu senhor, a quem o Senado e povo de Olinda devem obediência e sujeição, e o senhor juiz ordinário, primeiro que ninguém. está na obrigação de encaminhá-los a este preceito.
Aqui o sargento-mor, Leonardo Bezerra Cavalcanti, rompeu com um desabrimento impróprio do lugar e da pessoa a quem se dirigia.
– Pois fique sabendo Vossa Senhoria que, se pode por seu arbítrio erguer o pelourinho do Recife, podemos nós os pernambucanos com a justiça que nos assiste derrubá-lo, e assim o protestamos.
Logo acudiu o Alferes Manuel Bezerra em reforço ao pai, e seguiram-se outros discursos sediciosos e palavras de arruído, com insólito desacato à autoridade do governador.
Sebastião de Castro recolheu-se ao interior do palácio, e logo após quando retirava-se o Senado de Olinda, à porta do palácio, apresentou-se o Ajudante Negreiros com uma ronda de soldados da guarda:
– À ordem do senhor governador e capitão-general, prendo ao Sargento-Mor Leonardo Bezerra Cavalcanti e seu filho, o Alferes Manuel Bezerra Cavalcanti.
Momentos depois do ajuntamento, que passava pela ponte de volta a Olinda, ergueu-se uma voz a cantarolar esta quadra muito conhecida então:
O Mendonça era Furtado,
Pois dos paços o furtaram;
Governador governado,
Para o reino o despacharam.
A chusma repetiu a copia em coro, e outra voz alternou:
A peste já se acabou:
Alvíssaras, ó gente boa!
O Xumbregas embarcou,
Ei-lo vai para Lisboa.
Estas coplas eram de uma cantiga popular, em voga uns quarenta anos atrás, e alusiva ao Governador Jerônimo de Mendonça Furtado de cujo apelido os garotos e praceiros tinham feito remoques e trocadilhos.
Esse, o quarto governador da capitania, se malquistara com a nobreza e povo pelas muitas extorsões que praticava; sobrevindo a peste das bexigas, a miuçalha entrou a chamá-la pela alcunha de xumbregas, que tinha o sujeito. Chegou a ponto a animosidade da gente da terra, que na tarde de 31 de julho de 1666 ao sair o governador do palácio de Olinda, tomou-lhe o passo o juiz ordinário que o prendeu, fazendo-o recolher a palácio em custódia, até que o remeteram para Lisboa com o sumário da devassa.
Foi este fato que deu tema à cantiga, a qual o popular nunca mais esquecera e gostava de repetir sempre que se desavinha com os governadores, como aviso do que podia suceder.
CAPÍTULO XIII
EM QUE O NUNO SE PREPAROU PARA CAVALARIAS ALTAS A CUSTA DO ENXOVAL DE D. SEVERA
No quintal de André de Figueiredo, para o Carmo um lanço mais comprido da por baixo das janelas que deitava casa, havia grande rebuliço.
Aí estavam cerca de dez homens. Todos eles dessa casta mestiça de sangue indígena e africano, com sua mescla de europeu, a qual pela petulância e agilidade mereceu dos colonizadores o nome de cabras, de que fizeram depois os vindiços um epíteto afrontoso para os naturais, os quais lhes responderam conforme a artinha no mesmo caso com a alcunha de chumbos, por alusão ao pezunho do galego e à sua chanca de meia arroba.
Felizmente já lá vão longe estes ciúmes, e queira Deus que não tornem, para que possamos, ambos os povos, auxiliar-nos na obra do progresso da humanidade e da regeneração de nossa raça, a quem a Providência não reservou debalde a mais rica porção da América.
Vestiam estes homens bragas estreitas de lona, e sobre elas uma espécie de albornoz de bertangil sem capuz e de mangas curtas; por chapéu um cofo de palha de coco e por calçado a sola do pé, que sem dúvida não cedia na rijeza à melhor alpercata de couro de anta.
Quem estudasse bem esse trajo veria nele já muito pronunciada a transição do clássico vestuário peão do século dezessete para a camisa e ceroula do nosso matuto, mais em harmonia com o clima e os costumes indígenas.
Essa gente ocupava-se em vários misteres, mas análogos; estes esfregavam com cinza, areia e limão o metal de velhos jaezes para tirar-lhes a espessa crosta de ferrugem, enquanto aqueles untavam de sebo o correame, que de seco e rijo menos parecia couro do que pau. Outros malhavam sobre uma bigorna portátil, desfazendo as mossas dos terçados e arneses, os quais bem mostravam o serviço que tinham prestado na guerra holandesa.
À parte, alguns aparelhavam cabos que metiam nas choupas para fazer chuços e virotes. Mais adiante os últimos pensavam os cavalos, e iam-nos arreando à medida que os outros davam prontos os jaezes.
Além dessa gente, havia ali, mais para dentro do alpendre, uns três rapazes que pelo jeito eram algibebes ou pelo menos arranhavam no ofício, porque um deles armado de enorme tesoura cortava sem dó por uma peça de serafina vermelha que rolava pelo chão, e atirava os retalhos aos dois companheiros, os quais desunhavam-se a coser ou antes alinhavar com ponto de palmo.
Finalmente no meio desta labutação, dirigindo a faina e acudindo a todos os grupos, andava o nosso Nuno, arvorado em escudeiro de D Severa, e empenhado em mostrar que, apesar de filho, neto e bisneto de mascate, não nascera para caixeiro, mas sim para homem de armas e brigador. O brejeiro tomara uns ares de importância e caminhava tão empavonado na sua categoria de escudeiro, que ninguém reconheceria nesse soldado arrogante e desempenado o antigo moço, que andava pelas ruas de borjaca ao lombo e côvado embaixo do braço.
– Ó sô homem dizia dali um cabra.
– Escute cá, dom escudeiro! gritava outro.
– Que é isto lá? perguntava o Nuno.
– Para que serve toda esta trapalhada de freio, brida e não sei que mais? Eu cá, dê-me um cabresto, e verá como tenteio o bicho, sem precisar disto.
– Eu também não me ajeito com esta camisa de ferro. .. Parece que está a gente enfrascado!
– Pois quem não quiser assim, bradou o Nuno impaciente, vá despejando o beco. É o que não falta por ai, mariolas que estejam morrendo por um pataco.
Em vista deste argumento peremptório, os cabras embucharam as suas razões, mas ficaram resmungando contra essas invenções de arneses e couraças de que eles não compreendiam o préstimo, destros como eram a cavalgar em pêlo e a brigar quase nus.
Esta azáfama em que estava o Nuno, carece de uma explicação.
Já vimos como D. Severa, vestida de cavaleiro e acompanhada de seu escudeiro, lançara três vezes em frente de palácio um desafio a D. Sebastião de Castro pela afronta feita às damas de Olinda, mandando pregar pelas esquinas do Recife a redondilha descortês e chocarreira: ato este que a ninfa olindense qualificara de vilão, e de sua alta recreação atribuíra ao governador, pela razão de que na súcia dos mascates nada se fazia senão por vontade dele.
Dessa façanha da ninfa olindense ninguém soube em Olinda porque ela teve o cuidado de arranjar um passeio ao engenho da tia,. e em caminho, no casebre de uma velha cabocla, operou a sua transformação com a. armadura e aviamentos que levara o Nuno à garupa em uma burjaca.
De volta a Olinda, o Nuno se propôs demonstrar a D. Severa que nesses tempos rústicos aquela cavalaria andante tornava-se muito arriscada, porquanto podia sair-lhes ao encontro um terço de gente armada, que sem nenhum respeito às regras da nobre arte da esgrima, os iria monteando a tiro de arcabuz; e a prova ai estava no risco por que passaram de serem filados pela guarda do governador, que acudira em auxílio do ajudante.
O melhor alvitre era armar D. Severa uma companhia de que ela seria o capitão, e ele Nuno o alferes, e com a qual além de muitas outras proezas poderiam uma tarde prender o Sebastião de Castro, numa volta do passeio, como fizera outrora o tio da dama, o André do Rego Barros, com o Mendonça Furtado.
Achou D. Severa excelente a lembrança. do moço escudeiro, e abrindo os cordões da bolsa, tirou do mealheiro reservado para o enxoval do casamento três das doze moedas que lá dormiam desde trinta anos e entregou-as ao Nuno para a leva da companhia. Com esse dinheiro assoldara o escudeiro os dez cabras, comprara em um armeiro aquela velha ferragem, e tratara um algibebe de Olinda para enroupar a sua gente.
Enquanto o Nuno andava atarefado com os aprestos da companhia, D. Severa, debruçada à janela, assistia à faina, deleitando-se já com a idéia de comandar ela esse esquadrão e reviver a fama de D. Clara Camarão.
Ao lado da dama apareceu Leonor que ficou surpresa da lida em que achou a tia e assustada com os preparativos guerreiros.
– Não me dirá, minha tia, para que é esta leva de gente armada?
– É para desagravar-nos a nós, damas de Olinda, já que os cavaleiros de hoje esquecem o que devem a seus brios e ás regras da ilustre ordem da cavalaria, tão desprezada agora em nossa terra!
– Então vamos ter briga?
– Se tanto carecemos dela! A guerra, menina, é que faz os heróis e as heroinas.
– Jesus! tia, não diga tal. A guerra traz tantas desgraças!
– Maiores proviriam da relaxação em que vivem os pernambucanos e que acabaria por entregar a terra aos hereges.
Neste ponto foi o diálogo interrompido pelo súbito aparecimento de um velho que surgiu no terreiro, sem que soubesse alguém donde saíra ele.
– Deus o guarde, senhor escudeiro!
– Que procura, meu velho?
– Saberá o senhor, que dizendo-me ali um rapaz da ribeira, que sua mercê anda assoldando gente para uma companhia, eu então vim me oferecer também…
– Para quê? perguntou o Nuno.
– Para o que for preciso.
– Enganou-se, meu velho, nós cá precisamos de soldados e não de aio para crianças.
A resposta do Nuno tinha seu chiste, pois o velho, além das cãs que lhe cobriam as têmporas e o carão bamboleava sobre as pernas trôpegas, batendo com a cabeça como um cameleão.
– Ora o caruncho querendo fazer-se de duro! disse um dos cabras.
– Sua bênção, pai avô! acudiu o outro.
E todos de rir e galhofar:
– Folguem, rapazes, folguem; que estão na sua vez. Também eu já fui moço. Este surrão velho, que estão vendo, no seu tempo, ninguém lhe fazia frente. Pois a guerrilha do Capitão Rebelo, chamado o Rebelinho, era toda de gente escolhida…
– Visto isto, foi você soldado do Rebelinho? observou o Nuno.
– Como diz, senhor escudeiro. Um dia, ainda me lembro como se fosse hoje, o capitão tinha lá sua aventura, que isso de mancebos, e mais ele que era um guapo cavalheiro, acerca de amores é como rosa de Alexandria que nunca está sem flor.
– É galante o velho! disse D. Severa.
– Mas o Rebelinho? perguntou o Nuno.
– Sim, como ia dizendo, tinha lá sua aventura; e então uma noite chamou. me: – “Anda cá.” “Pronto, meu capitão.” – Calçar as patas dos cavalos com botas de palha, foi um instante e toca a todo o galope. Era madrugada quando chegamos. Os flamengos andavam de refestêlo. O capitão não titubeou; foi um raio que passou entre eles. Quando correram sus, acharam a porta guardada, que lá estava eu; e trás, zás, zás, era um sarilho de espada como nunca se viu. A dama, que tivera aviso, logo saiu da câmera, já apercebida para a jornada, de sorte que o capitão foi tomando-a nos braços, saltando a janela e cavalgando.
– Disto já se não vê nestes tempos de agora! disse D. Severa para a sobrinha. Leonor que desde o princípio ao ouvir o nome de Rebelo, sentira-se presa de uma comoção estranha e não tirava a atenção do velho, estremecera mais de uma vez sob o relance d’olhos que lhe deitava aquele em certos pontos de sua narrativa.
– Foi-se o capitão com a dama, e você como safou-se?.
– Dois botes de espada, um à direita, outro à esquerda; e um pontapé na candeia! Aí ficamos todos da cor de seu mestre…
– Lá dele!
– E eu, este é meu caminho!
– Já vejo que você foi um Ferrabrâs de Alexandria.
– Não digo tanto; mas fui um soldado que sabia seu ofício, e ainda não o desaprendeu. Tome-me o senhor escudeiro a seu serviço, que se não há de arrepender.
– Águas passadas não movem moinho. Você, que é antigo, deve de conhecer o rifão. Não há de ser com as bravatas do tempo dos holandeses que havemos de ensinar os mascates, senão com boas cutiladas…
– Este braço, apesar da tremura, ainda arranha!
– Vá-se andando, meu velho, que temos mais que fazer.
– Sempre quero mostrar que ainda não estou molambo que se bota fora.
E o velho apanhando uma das catanas que rolavam pelo chão, apanhou-a como quem entendia do ofício e fez com a espada um molinete que ninguém por certo esperaria de semelhante podão.
Riu-se Nuno desses floreios, e levando a mão à cinta, cruzou o ferro, certo de em dois tempos desarmar o velho, mas saiu a cousa às avessas, pois foi a sua espada que saltou-lhe da mão.
– Oh! senhor escudeiro, não dê barrigadal
– E então, o velhinho não é da carepa?
Apanhou o Nuno a espada e vinha cego sobre o velho para despicar-se, mas este, como se o grande esforço que fizera o houvesse extenuado, se abordoara a um tronco d’árvore para não cair, e mal podia tomar fôlego.
– Eis em que dão as fanfarronadas! disse o Nuno.
O velho, como que envergonhado da sua bravata, foi-se esgueirando pelo corredor, não sem lançar um olhar significativo a Leonor cujas faces se cobriam de uma lividez mortal.
Sob aquele disfarce, reconhecera a donzela Vital Rebelo, sobretudo quando brandindo a espada, o velho perfilou o talhe; da aventura do tempo dos holandeses compreendeu ela que o marido se preparava a arrancá-la do poder de seus parentes, e dava-lhe aviso por aquele meio em falta de outro.
E não se enganara. Vital não contando senão consigo, resolvera libertar sua mulher do cativeiro em que a traziam e, antes de levar a cabo a empresa, julgou prudente explorar o campo e dar aviso a Leonor. Com esse fito se disfarçou, valendo-se do pretexto que lhe ofereceu a leva do Nuno.
Deixando Olinda, foi o alferes em busca de seu cavalo, que ficara oculto em uma palhoça de pescador perto do Brum, e só à tarde ganhou o Recife. Ia dispor as cousas para realizar o seu plano naquela mesma noite.
Vital receava que de um momento para outro as cousas políticas se baralhassem de modo a trazer um rompimento entre os nobres e os mascates; o que não deixaria de estorvar-lhe a empresa, pelo reforço de que se haviam de cercar os moradores de Olinda.
Naqueles dias passados o negócio parecia ter chegado ao desenlace com a imprudência do Leonardo Bezerra e seu filho, de que se tratou no capitulo anterior. Quando chegou a Olinda a notícia da prisão dos dez pernambucanos, a voz geral foi pelo levante.
Mas um oficial de sala do governador fora a visita em casa do capitão-mor, e ai afirmou que Sebastião de Castro não se tinha decidido ainda a favor dos mascates, pelo que fora rematada indiscrição dos olindenses o provocarem a medidas de rigor. Acrescentava que, ainda assim, a prisão dos dois Bezerras não tivera por causa o desacato de palácio, mas um homicídio que eles haviam perpetrado na noite antecedente.
A última acusação, sabia-se em Olinda que tinha todo o fundamento, pois fora para tomar uma vingança bárbara de pretendidas ofensas que o coronel e seu filho tinham na véspera chegado à casa de André de Figueiredo com um troço de gente armada.
Essas insinuações de palácio serenaram os ânimos, e os trouxeram à concórdia. O sargento-mor e o filho tiveram carta de seguro para se livrarem soltos da querela, e as cousas voltaram ao pé em que anteriormente se achavam, e nas quais as desejava por muito tempo ainda Sebastião de Castro que era avesso a toda complicação ou crise, como se diz na atual aravia política.
Os mascates, que já contavam infalível o despique do governador contra a arrogância dos nobres de Olinda, ficaram de orelha murcha. A Senhora Rufina, essa, quando soube que o seu plano tinha gorado, enfiou, e arregaçando o vestido até à canela, calçada com meia azul de Guimarães, exclamou:
– Aquilo é um songamonga de um papa-açorda! Mas deixá-lo comigo, que eu lhe chegarei a mostarda ao nariz!
Bem nos pesa trasladar para aqui estes destemperos de língua da varoa recifense, mas a verdade histórica assim o exige.
– Era a Senhora Rufina mulher decidida. Se ela tinha cabelo na perna, como o abelhudo do Nuno andou enredando das recifenses lá por Olinda, não sabemos; mas que o tinha na venta, isso podemos assegurá-lo.
Sem mais rodeios mandou chamar o Tunda-Cumbe que lhe viesse falar àquela mesma tarde.
Esse Tunda-Cumbe era um labrego, há anos chegado do reino, sem eira nem beira, nem ramo de figueira. Chamava-se ele Manuel Gonçalves, e tinha a cara lanhada por um gilvaz, troféu de certas façanhas pelas quais deixara na terra fama de parteiro jubilado.
Apenas desembarcado, os patrícios o arranjaram de feitor para o engenho Cumbe, do Sargento-Mor Matias Vidal, em Goiana, e aí tais artes fez, que os negros um belo dia o amarraram a um toco de pau e assentaram-lhe tremenda pisa, que eles na sua língua de Angola, chamam tunda. E dai veio ficar o Manuel Gonçalves batizado por Tunda-Cumbe.
A sova de pau não o desgostou do oficio de feitor, que ainda serviu por algum tempo na Várzea; depois fez-se almocreve de peixe, que ia comprar à ribeira e andava pelas portas a vender em um cargueiro. Mas como era homem de dar e tomar, e dessa última qualidade fazia prova plena a tunda de Goiana, ocupava-se o latagão em outros negócios, que lhe rendiam mais que a regatice, embora lhe custassem às vezes um arranhão na pele ou alguma escovadela no lombo. Para isso tinha ele o couro rijo, e a fêvera maciça.
Em todos os tempos agitados há dessa estofa de gente, que a fortuna se compraz de agarrar pela orelha e atirar no meio dos acontecimentos, donde não é raro vê-los subir pelos degraus das honras e do poder. O nosso Manuel Gonçalves estava fadado a representar um papel importante na Guerra dos Mascates, e a história, que o viu almocreve de peixe naquele ano de 1710, devia dois anos mais tarde encontrá-lo coronel e cavaleiro do hábito de Cristo, com as congratulações que da parte de El-Rei lhe dirigiu o governador.
Tal foi o homem com quem teve a Senhora Rufina larga prática no telheiro da cacimba; do que aí se passou, não reza a crônica.
Isto ocorria dias antes daquele em que Vital Rebelo disfarçado em soldado velho fora a Olinda, e que se contava 17 de outubro.
CAPÍTULO XIV
DA ESPÉCIE DE MOSTARDA QUE A SENHORA RUFINA LEVOU AO NARIZ DO GOVERNADOR,
E DO ESPIRRO QUE SAIU
Quando Vital chegou à porta do Recife, pouco faltava para quatro horas.
Morava ele da outra banda do rio, lugar que fora outrora o Carmo Velho, e que os holandeses chamavam Boa Vista, de uma quinta que aí construiu o Conde Maurício de Nassau, nome esse que os nossos conservaram.
Para ganhar a casa atravessou o Recife e veio sair à Porta de Santo Antônio, donde passando a ponte tomou para o Rosário na direção de Cinco Pontas, que era então o caminho da Boa Vista, pois ainda não existia a ponte, e a passagem se fazia pelo aterro dos Afogados.
Ao voltar para o Rosário, avistou o mancebo uma cavalgada que atravessava de São Francisco para as Trincheiras.
Era o Governador Sebastião de Castro e sua comitiva. Saía ele ao costumado passeio da tarde e dirigia-se para as Cinco Pontas pela Rua das Águas Verdes.
Ao chegar por meio dessa rua. e no momento em que o fidalgo voltava-se para falar ao Barbosa de Lima, ouviu-se a detonação de dois tiros disparados de uma rótula onde ainda se pôde ver um froco de fumaça.
Os oficiais e soldados da guarda arremeteram contra a rótula, mas nada encontraram. A casa desabitada desde muito tempo, estava deserta.
Todavia, se tivessem corrido logo ao quintal, ainda avistariam dois vultos de cara pintada que escaparam-se pela cerca com os mosquetes fumegantes, e que momentos depois eram vistos atravessarem de corrida da Rua do Horta para o Rosário na direção da Praia, onde, a ser verdade o que espalhou-se mais tarde, os esperava uma canoa.
O governador estava ferido; o que, derramando o susto e a consternação nas pessoas da comitiva, dera azo à fuga dos espoletas. Apenas se pôde obter uma liteira, foi ele transportado para palácio e entregue aos cuidados dos físicos da terra.
Os ferimentos eram na coxa direita, onde viam-se quatro escoriações, que não pareciam ter a menor gravidade por serem quase superficiais. Não pensavam porém desta sorte os garnachas que abanavam magistralmente a doutoral guedelha resmungando um latinaço:
– Vulnus intoxicatus!…
Com o alicate, um dos da mestrança, extraia das escoriações partículas brancas e cristalizadas, que aproximava à luz da janela, onde cada um, limpando as canastras e cavalgando-as de novo no beque, procedia ao profundo e escrupuloso exame.
– Mercurius sublimatus corrosivus! disse afinal o deão dos guedelhas erriçando as grossas sobrancelhas como dois acentos circunflexos.
– Ita vero! afirmou o segundo, alongando à guisa de ponto de admiração a já esguia caraça.
– Sane quidem! ecoou o terceiro esparramando as bochechas na mais doutoral interjeição.
Elucidado devidamente o abstruso caso com formidável reforço de latim e suculentas ilustrações de Boheravio e outros luminares da cirurgia, foi decidido pela junta dos físicos, e anunciado em boletim, “que o estado de Sua Excelência, o Senhor Capitão-General D. Sebastião de Castro, devia se considerar melindroso e gravíssimo, visto como os ferimentos, embora rasos, eram feitos por balas ocas, cheias de um veneno terrível, o sublimado corrosivo com que os sicários contavam empeçonhar o precioso sangue do excelentíssimo governador, e assim assegurar por uma morte infalível o êxito de seu nefando e sacrílego trama, mas a Divina Providência, que vela sobre os destinos dos povos, permitiu que os assassinos não empregassem nos mosquetes a carga suficiente, de modo que, sendo as feridas superficiais. restava essa esperança de salvação para o excelentíssimo enfermo, sendo ela todavia tão precária que a sapientíssima junta não se animava ainda a formular um diagnóstico favorável”.
Para que o leitor possa aquilatar bem desta sandice doutoral, vamos confiar-lhe um segredo, que até agora escapou às laboriosas investigações do Instituto Histórico, deixando na sombra a verdade sobre o fato culminante da Guerra dos Mascates.
O tal sublimado corrosivo que a mestrança achou na perna de Sebastião de Castro, aqui à puridade, não era outra cousa senão sal de cozinha, com que o Tunda-Cumbe e seu companheiro tinham carregado os mosquetes a mandado da Senhora Rufina. A mulher do Simão Ribas, que no fundo e apesar dos epítetos um tanto pitorescos com que o mimoseava, não tinha raiva ao Sebastião de Castro, e só inquijilava com ele por quere-lo mais homem e mais governador, especialmente depois do desaforo da perna cabeluda; a digna almotacé, bem longe de atentar contra a vida do fidalgo, maquinara nesse meio de despertar-lhe os espíritos vitais, fustigando-lhe a pele. O sal aí fazia a vez da pimenta: com a diferença que a aplicação do primeiro era mais consoante com a dignidade do cargo.
Hoje em dia, dado o desconto aos costumes, ainda se usa do mesmo processo empregado pela Senhora Rufina para intrigar um partido com o supremo dispensador das graças. Em vez de tiros de sal dados de emboscada na esquina da rua, faz-se isso mais limpamente com artigos mascarados de gazetas anônimas.
Ao tempo em que a mestrança destrinçava o caso cirúrgico, os estadistas jubilados proviam ao caso político. Foi sumária a deliberação, pois urgiam as circunstâncias melindrosas da república, que é a cousa de nós todos.
O Barbosa de Lima que por gosto e necessidade falava português correntio, abriu a conferência com um texto latino, res vestra agitur, que arregalou o olho ao Negreiros, o qual dando um puxão à memória, sacou o exemplo da artinha do Padre Mestre Antônio Pereira: Vita, decus et anima nostra in dubio sunt. O almotacé que era rigorista acrescentou – ou in dubio est. Quanto ao almoxarife, não ajustando-se ao caso o único texto de Tácito que ele salvara do naufrágio de seu latinório, apoiou com a cabeça.
Ficou assentado que em desagravo do negro, infame e execrando insulto que sofrera a Majestade na excelentíssima pessoa do senhor governador e capitão-general, seu braço régio, cumpria dar um exemplo tremendo que ficasse para memória; e como medida preliminar ordenou-se a prisão imediata dos principais de Olinda. Esta providência era ainda reclamada pela salvação comum; pois quando os rebeldes ousavam atacar a primeira autoridade da capitania, o que não atentariam contra os subalternos?
Bem se vê que os estadistas não ficavam atrás dos físicos. Se estes haviam pressuposto a existência de balas para afirmarem que eram ocas e cheias de sublimado corrosivo, aqueles davam por averiguado que os autores do bárbaro desacato eram os nobres de Olinda.
Entretanto a notícia do atentado se havia derramado pelas ruas, incutindo na população o espanto, acompanhado do vago terror que pressagia as catástrofes.
Os animosos pensavam nas conseqüências funestas desse crime que ia acender a guerra civil e cobrir de luto e ruínas a já decadente Capitania. Os pusilânimes só pensavam na própria segurança e estremeciam ao menor rumor, cuidando que os pés-rapados, depois de terem ferido o governador, se espalhavam pelas ruas decididos a deixarem tudo raso.
Entre estes últimos distinguia-se o nosso Capitão Miguel Correia, que apesar do lombo maciço e da gineta das ordenanças, não podia de modo algum vencer a instintiva repugnância por tudo quanto lhe cheirava a chamusco. Por isso, quando veio a primeira nova surpreendê-lo na rua, tratou de meter-se em casa do mercador Viana, onde além das paredes, contava ele com os esconderijos do vasto armazém.
Na sala encontrou a Senhora Rosaura e a filha, que também estavam assustadas com a notícia, e espiavam pela rótula à espreita de algum conhecido para inquirir sobre os pormenores do caso. O mercador ao primeiro aviso correra a palácio, donde ainda não voltara; e assim, em falta do Nuno, tinham enviado como batedor a Benvinda.
A chegada do capitão foi pois acolhida com satisfação até pela formosa Belinhas, que de ordinário o recebia de longe com uma graciosa carranca, mas nesse momento chegava-se perto com o rostinho alvoroçado de curiosidade. Se não fossem uns calafrios que lhe corriam pelo fio do lombo e uns repuxamentos que lhe pregavam a barriga no espinhaço, o nosso Miguel Correia se animaria a desejar novos barulhos, que lhe trouxessem esses ares da graça de sua futura.
– Diga-nos o que sabe, Sr. Miguel Correia? foi a pergunta com que a Rosaura lhe abriu a porta.
– Eu, senhora, só sei dos tiros, e que o senhor governador lá foi ferido .para palácio.
– Talvez a esta hora esteja com Deus.
– Que me diz, senhora? exclamou o capitão cujas pernas começaram a abanar.
– Não ouviu tocar ao Santíssimo? Pois foi para o senhor governador. Pelo que falava uma gente que passou, parece que envenenaram as balas.
– Jesus! Que malvados!
– O senhor então ainda não foi a palácio? perguntou Belinhas com reparo.
– Ainda não… Eu… eu quis ir… mas como havia de ter muita gente, pensei que… que não era bom… podia atrapalhar.
– Pois deve ir! tornou a moça.
– A senhora acha?
– Um capitão de ordenanças! Para que serve então esta espada se não é para defender o seu general? disse a moça com desdém.
A Senhora Rosaura, que tinha corrido à rótula por ouvir um burburinho, exclamou:
– Ai, minha Nossa Senhora, que lá vem uma tropa!
– E é para cá! disse Belinhas lançando os olhos à rua.
– Para cá?… balbuciou o capitão procurando com a vista a porta do interior.
– Será dos nossos? Deus o permita! tornou a Rosaura.
– Há de ser, há de ser, disse o Miguel Correia recobrando-se com essa idéia Aposto que foi o Viana que pediu ao ajudante para guardar sua casa…
– Ó mãe, gritou Belinhas, é de Olinda!… E estamos cercados.
O bando de homens armados, em número de vinte, desembocando na Rua da Moeda, dirigiu-se rapidamente à casa do mercador Viana, onde acabava de pôr cerco, apeando-se logo um cavalheiro que parecia o cabo.
Esta esquadra não era outra senão a que o Nuno estava na manhã daquele mesmo dia esquipando e arreando no quintal da casa de André de Figueiredo. O que de mais notável havia nela eram os trajos. Vestiam os sujeitos uma pantalona, como ainda há pouco tempo se via nos palhaços dos circos, o que lhes dava o aspecto de marmanjões de sungas vermelhas, marchetados de estrelinhas de amarelo fingindo ouro.
A cabeça traziam-na coberta com uma carapuça de lã azul, que esticada por dentro com arames, tomava a feição de um funil. Quanto às pernas e pés, não usavam meias nem sapatos, mas uma espécie de polaina preta de original invenção.
Fora o caso que não querendo os cabras admitir cousa que se parecesse com calçado, pois era o mesmo que peá-los, aventou o Nuno metê-los até o joelho em um tijuco preto que depois de seco fingia botas de longe, sem estropiar os seus soldados.
Tendo concluído os aprestos de sua companhia, lembrou-se o escudeiro da D. Severa de sair com ela para adestrá-la desde logo; e seriam quatro horas da tarde quando aquela mascarada desfilou pelas ruas de Olinda com grande alvoroço da meninada, que tomou a cousa por festa mourisca.
Seguiu o bando pelo istmo com direção às portas do Recife, onde o Nuno queria dar mostra da sua luzida esquadra.
Antes de chegar ao Forte do Brum, há no istmo uma pilastra conhecida por Cruz do Patrão que serve de baliza aos mareantes quando demandam o porto.
Passando por ali, ouviu a tropa alguma cousa que excitou-lhe a atenção. Era uma espécie de salmo ou recitativo, pronunciado por uma voz débil e extenuada. Dir-se-ia um canto de igreja, talvez um responso, tão lúgubre eram os acentos daquele ritmo.
Os cabras se benzeram, esconjurando o mau agouro; e Nuno, um tanto agitado apesar da sua temerária impetuosidade de rapaz, adiantou-se para averiguar o caso.
Sentado no respaldo da pilastra, pela face do mar, via-se um homem com o olhar engolfado no vasto horizonte que se abria pela imensidade do oceano. Seus olhos pasmos e hirtos pareciam exalar os últimos lampejos d’alma que se estava desatando do seu espojo mortal, para embeber-se no céu. Moviam-se frouxamente os lábios desatando aqueles salmos tristes, em que de perto se reconhecia a cadência soluçante de uma trova.
Era só o que a vida ainda não desamparara nesse corpo já quase morto, que a não ser a pilastra onde se derreava, estaria rojando no chão. Mas esse mesmo crepúsculo da vida, que ainda pairava nos olhos e nos lábios do infeliz, bruxuleava já, apagando-se intermitente como o clarão de lâmpada a extinguir-se. Ao ver-lhe o semblante que jaspeava a lividez da morte, Nuno deu um grito, e apeando-se rijo correu ao moribundo.
– Lisardo!
O poeta não pôde volver os olhos para o amigo; mas um raio perpassou-lhe no rosto, como a luz de um sorriso.
– Acudam! gritou o Nuno para sua gente. Depressa! É preciso salvá-lo! Vão buscar o licenciado!
Um dos cabras mais decididos aproximou-se, e tirou do cós da pantalona uma borracha delgada e comprida que facilmente se acomodava ao corpo à guisa de cinta, e na qual trazia a inseparável branca, sua fiel companheira. Para ele, como para muita gente, esse era o elixir milagroso capaz de ressuscitar um morto.
Assim tratou sem mais cerimônia de introduzir o gargalo da borracha na boca do poeta e despejar-lhe um gole. Reanimou-se de súbito a fisionomia do moribundo, mas logo após caiu ele estorcendo-se de dores e soltando gemidos pungentes no meio dos quais escapou-se afinal uma palavra que parecia sair das entranhas dilaceradas:
– Fome!.,. A fome!
– Morto de fome, meu Deus! gritou o Nuno. Corram! A Olinda… Voem!… Ah! Lisardo!… Pois, não me tinhas a mim!
CAPÍTULO XV
O NUNO ESTRÉIA-SE NA CARREIRA DAS ARMAS PELO RAPTO DAS SABINAS
Com pouco chegou um dos camaradas trazendo um coco verde, que apanhara ali perto. A água e depois a geléia reanimaram o Lisardo, e deram-lhe forças para esperar a refeição que veio de Olinda, e constava de uma açorda e vinho.
Instado por Nuno, o poeta referiu-lhe em poucas palavras o segredo de sua desesperada posição:
– Naquele mesmo dia, em que à tua vista me correram de Olinda, como um ingrato e falso, tornando ao Recife. para beber nos olhos dela um conforto de que precisava, fui também despedido a seu mandado como um mendigo importuno!
– Belinhas?…
– Ela!.
– Soube não sei como, que eram meus os versos contra as damas de Olinda… E eram; mas tinha-os feito por ordem de D. Severa; e jamais com intenção de ofender aquela que eu adorava como a luz de minh’alma.
Nuno cogitava.
– Então, concluiu o poeta, pensei que já não tinha que fazer na terra e chegando aqui, me deixei morrer. Por que me chamaste de novo a este mundo, onde nada mais sou do que um espectro?
– Hás de ser marido de Belinhas, que o mando eu! exclamou o Nuno com um entono picaresco.
Um dos camaradas passou para a garupa do outro, e no cavalo devoluto acomodou-se o Lisardo, que apesar da fraqueza pôde manter-se na sela.
Por ordem do azougado rapaz, seguiu a esquadra para o Recife, que achou em alvoroto com a nova do horroroso insulto feito ao governador.
Em vez de hesitar no plano que traçara, o Nuno ao contrário mais se apressurou.
Já vimos como chegou à casa do pai, onde não o conheceram nem a mãe, nem a irmã, por causa da viseira que trazia descida; pois o escudeirinho não relaxava a couraça e capacete, que apesar de já não serem da moda, davam-lhe ares mais guerreiros.
Foi reconhecendo Lisardo, que a menina Belinhas soltara o grito de espanto, que afugentou da sala, como sombras que se evaporam, a Senhora Rosaura e o insigne Capitão Miguel Correia.
A. menina, porém, deixou-se ficar ainda que trêmula e perturbada. Apesar do susto, sentia uma vontade irresistível de saber o que desejava ali aquela tropa que tinha por um dos cabos o Lisardo.
Entrou na sala o Nuno, com um tremendo espalhafato guerreiro, de arrastado de espada, batido de esporas e roncarias de peito, puxando pelo braço o Lisardo que fazia o possível por desvencílhar-se da corriola.
– A Senhora Isabel Viana, ou a menina Belinhas, que no Parnaso é conhecida por Belisa, está presa à minha ordem por ter praticado certa ingratidão com o seu poeta e adorador aqui presente. E como tão bárbaro crime não há de ficar sem punição, vai a ré deste passo acompanhar o Senhor Lisardo de Albertim á primeira igreja, onde conjugará com ele o verbo matrimônio. Tenho dito.
Belinhas, que havia conhecido a voz do irmão, riu-se mau grado das garotices do rapaz; e consentiu, toda envergonhada, que ele pusesse na mão fria e trêmula do Lisardo a ponta de seus dedos mimosos. Pensava ela que tudo aquilo não passava de uma comédia, e tinha razão; mas. a comédia não acabava ali.
Enquanto na sala isto ocorria, os cabras, entrando no armazém por ordem de Nuno à busca de uma liteira, deram com uma pipa de torneira assentada sobre o tendal a jeito de escorrer o líquido.
Um dos cabras logo pôs-se de gatinhas a mamar naquela teta apojada e os outros impacientes esperavam sua vez. Um, porém, mais sôfrego deitou os olhos ao redor e descobriu um pichel de lata:
– Isso de bica atrasa muito. Eu cá vou com o. púcaro à fonte.
Dito e feito. Trepando no cavalete para deitar o tampo dentro, viu com surpresa que já a pipa fora arrombada; porém maior foi seu espanto descobrindo ali uma cabeça.
– Olá, temos conserva!
– Que história é essa?
– Uma cabeça de molho!
– Um corpo inteiro!
– Oh! diabo!
– Não me matem! murmurou a pipa. Eu prometo…
Sabidas as contas, era o nosso Capitão Miguel Correia que se pusera de conserva na pipa do vinho.
O que lhe valeu foi a pressa com que estava o Nuno, a quem não fazia conta a volta do pai. Bem desejava ele dar um abraço à mãe, porém temia as ternuras da velha.
Dois cavalos da tropa foram metidos nos varais da liteira, que em poucos momentos ficou prestes.
– Toca a andar. Senhor Lisardo de Albertim, ofereça o braço á sua dama.
O nosso poeta, que ainda não proferira uma palavra, estava alheio a quanto se passava em torno e enlevado na contemplação de Belinhas.
– Onde me quer você levar, Nuno?
– À casa de Marta.
– Sem a mãe?… Não vou.
– Vais, te digo eu, que não estou para ver o Lisardo morrer segunda vez!
– Ele?… balbuciou a menina lançando ao amante um olhar de exprobração.
– Quem traz dentro de si morta toda a esperança, já não é mais homem., é só fantasma de uma alma penada que pede a sepultura, disse Lisardo.
A menina enxugou uma lágrima, e Nuno aproveitando-se da comoção, tomou-a nos braços quase sem resistência e levou-a à liteira, que logo partiu para Santo Antônio.
A menina gritou pela mãe; esta, porém, escondida na cozinha, não a ouviu.
A casa do Perereca estava fechada. Ao rijo bater da lança do Nuno acudiu um escravo, que ficou espantado vendo a patrulha.
– Arreda, tição, quero entrar.
– O senhor não está aí
– E a mulher?
– Também foi com ele para palácio.
– E a filha?
– Essa está ai, sim senhor.
– É quanto basta.
Entrou o Nuno com o costumado arreganho e esparrame na sala onde estava Marta.
– Venho buscar a menina por mandado de sua mãe.
– Para palácio?
– Sim! roncou o cavaleiro.
Marta, aborrecida e assustada de estar sozinha em casa, preparou-se logo e entrou na liteira onde ainda mais contente ficou por encontrar Belinhas.
Nesse momento um vulto que viera da Penha e esbarrara com a casa cercada de gente armada se esgueirava ao longo da cerca. O Nuno o descobriu e deu ordem de agarrá-lo:
– Que é isto, Cosme? Foge dos amigos?
– Eu… eu… Nuno…
– Tenho que agradecer-lhe umas amizades que fez aqui ao nosso Lisardo. Ponham-no de garupa; e olho no meco.
A tropa de novo pôs-se de marcha, mas em vez de tomar para o lado do palácio, seguiu pela praia na direção dos Afogados; e pouco depois atravessava a Boa Vista, caminho de Santo Amaro. O Nuno preferira para voltar a Olinda esse rodeio que era mais seguro.
Marta, que já sabia pela amiga quem era o façanhudo cavaleiro armado de ponto em branco, e desconfiava da embrechada, vendo assomarem as torres do palácio ao longe, pela esquerda, abriu a cortina da liteira:
– Oh! senhor, este não é o caminho do palácio.
– Não; mas é o da Igreja de Santo Amaro.
– E que vamos nós lá fazer?
– A senhora vai desposar-se com o escudeiro Nuno, Peitod’Aço; sua amiga com Lisardo de Albertim, nobre trovador olindense.
– Eu não quero, não quero, não quero! disse a menina batendo com a mãozinha fechada na borda da liteira.
– Quero eu; e basta.
– Eu te mostrarei!
E a gentil menina escondeu-se amuada dentro da liteira, para fugir ao olhar do Nuno, que nesse momento ela detestava.
Entretanto chegava o pelotão a Santo Amaro, e acampava em frente da ermida.
Tinha anoitecido, mas fazia um desses luares esplêndidos do Norte que parecem auroras boreais.
O Nuno despachou dois cabras em busca do capelão, ou de qualquer outro padre mais próximo, com ordem terminante de trazê-lo ali, ainda que fosse amarrado.
Enquanto se fazia a diligência, deixou ele o Lisardo com alguns homens de guarda à liteira, e afastou-se com o Cosme Borralho e um dos cabras para o mato vizinho. Ali chegando, mandou pelo camarada cortar um grande molho de cansanção.
– Cosme Borralho, meu amigo, você desde certo tempo a esta parte anda cheio de maus humores.
– Não há tal!… acudiu o escrevente.
– E por falta de mezinha, essa reima está-lhe atacando a língua com achaques de enredeiro e maldizente.
– É um falso testemunho, Nuno; não acredite!
– Pois eu não hei de acreditar que você anda achacado? Se não fosse por moléstia, o Cosme, nosso camarada, havia de andar intrigando o Lisardo aqui no Recife e em Olinda?
– Juro que não fui eu!
– É doença, não digo? Sou seu amigo, Cosme; quero curá-lo dessa ruim praga. Dispa-se até ficar em pêlo para levar uma fricçãozinha com que você sara logo.
– De cansanção? exclamou o escrevente sarapantado.
– É uma planta medicinal; produz na pele umas coceiras que acabam com as comichões da língua.
– Está bom, Nuno, já você se divertiu com suas chacotas; agora deixe-me ir.
– Alto lá! Desate os calções.
– Nuno!
– Deixe-se de sestros. Se você não quer que eu, seu amigo, lhe sirva de enfermeiro, e lhe aplique o emplastro com todo o cuidado, então deixo-o nas mãos deste machacaz e com ele se avenha.
O Cosme engrolou, sofismou, e remanchou quanto pôde; mas afinal fazendo boa cara à má fortuna resignou-se a levar a surra de cansanção, que o Nuno administrou-lhe conscienciosamente.
– Vá consolado, Cosme, que você agora fica são como um pero.
O escrevente fez uma careta de raiva, mas não a viu o Nuno, cuja atenção nesse momento foi reclamada por clamores que partiam do lado da povoação. Correu ele à ermida, inquieto acerca da liteira.
Ao chegar à praça a achou cercada por um bando armado; e viu que uma peleja renhida se travara junto à liteira, onde o Lisardo esgrimia uma catana com o desespero de um cego. De um salto achou-se o rapaz ao lado do amigo, pronto a morrer com ele.
Nesse ponto, porém, um cavaleiro que escoltava uma formosa dama apareceu na praça.
– Que temos? perguntou o cavaleiro com o tom imperioso.
Os assaltantes dominados por aquela voz recuaram, suspendendo o combate; e as cortinas da liteira abriram-se de repente, mostrando o lindo rostinho de Marta, amarrotado do susto:
– Primo Vital Rebelo, acuda-nos!
– A menina Marta?
– A própria.
– Que faz por aqui?
– Isso é uma história.
Do como ai se achava o Rebelo, vamos sabê-lo.
Testemunha do insulto que sofrera o governador, Vital depois do primeiro momento dado à surpresa e desgosto que lhe causava o triste acontecimento, pensou que seu plano ficaria frustrado se o não realizasse imediatamente. Correu à sua casa da Boa Vista,, fez montar a gente que já tinha preparada, e correu a Olinda.
A nota do desacato já ai tinha chegado e a todos deixara atônitos. O bispo, os principais da nobreza, e entre eles André de Figueiredo, tinham acudido pressurosos a palácio para visitar o governador e dar solene testemunho de que não tinham a menor parte no criminoso intento.
A escolta de Vital Rebelo chegou à Rua de São Bento sem o menor contratempo. Leonor estava à janela. Vital subiu, arrebatou a esposa nos braços e desceu à rua. Ai montou-a no palafrém que a esperava, e partiram de Olinda pelo caminho de dentro para evitar encontros.
Na frente ia uma ronda para segurar o caminho, e evitar a Leonor o susto de achar-se envolvida em alguma peleja. Foi essa vanguarda que, vendo gente armada no pátio, cercou-o com intenção de aproximar-se à liteira, ao que se opôs o Lisardo.
Sabedor das façanhas do Nuno, o Vital mais ou menos atinou com a explicação daquela salsada; além de que o Nuno não se fez rogado para confessar. A pergunta do que ali fazia àquela hora respondeu:
– Estou à espera de um padre para casar Belinhas com Lisardo, e Marta comigo.
– E o consentimento de meu primo Simão Ribas e do Senhor Viana, já o deram?
– Em tempo de guerra, não há necessidade disso. Estas damas foram libertadas por mim e podem dispor livremente de sua mão.
Riu-se Vital.
– Pois que estamos em tempo de guerra, declaro-os meus prisioneiros, e ponho estas damas sob a proteção de minha esposa. Vinde D. Leonor, que vos apresento uma linda priminha, a quem não conheceis, e sua amiga, que não é menos formosa. Vereis que no Recife também como em Olinda viçam, as rosas.
A resistência era impossível. Nuno o reconheceu vendo os seus sequazes agarrados pela gente de Vital, mais numerosa e melhor armada. Assim teve ele de entregar-se prisioneiro como o Lisardo, e acompanhou a liteira à casa do alferes na Boa Vista.
Marta, que estava desesperada com a diabrura do Nuno, ficou um tanto desconsolada por não ver até onde iria o atrevimento do rapaz, e Belinhas a acompanhava nesse pesar.
Por aquele tempo eram presos ao sair de palácio o Capitão André de Figueiredo e Luís Barbalho, escapando de igual sorte muitos outros dos principais de Olinda, que lograram fugir a tempo.
CAPÍTULO XVI
NO QUAL SE ACABA A CRÔNICA JUSTAMENTE QUANDO IA COMEÇAR A GUERRA DOS MASCATES
Amanhecera o Recife em alvoroço.
Os moradores desde o nascer do sol percorriam as ruas em bandos, com ares festivos e trajos domingueiros.
A maior afluência era para o Largo da Cadeia, no centro do qual via-se uma fábrica recente, à semelhança de coluna, que se havia erguido durante a noite, e ali estava coberta por um grande pano de rás desde o cimo até a sapata.
Esse objeto excitava no mais alto ponto a curiosidade da populaça que parecia contemplá-lo corno um troféu. Nesse momento, nenhum dos arruadores lembrava-se da infâmia e dos tratos com que o ameaçava talvez o sinistro monumento.
Era um pelourinho..
Depois do desacato à sua pessoa, decidiu-se o governador a castigar a rebeldia dos pernambucanos, a quem seus íntimos injustamente imputavam o crime. Ameaçados de sorte igual à de André de Figueiredo e outros os principais da nobreza tinham fugido de Olinda e andavam foragidos pelos engenhos, onde os buscavam as escoltas que Sebastião de Castro lhes mandara no encalço.
Uma das medidas em que logo se cogitou como a mais própria para bater a arrogância dos nobres, foi a da imediata criação da vila do Recite e como as pedras do pelourinho desde muito estavam lavradas no Forte da Madre de Deus, dispuseram-se as cousas para a cerimônia.
Era este o dia destinado para a festa da proclamação da vila e por isso o poviléu do Recife, ancho e presumido de si regozijava-se pelo triunfo que haviam alcançado sobre a velha e fidalga Olinda.
Por volta das oito horas da manhã, desfilou pela Rua de São Francisco o préstito que saía do palácio e dirigia-se a Praça da Cadeia. Abria a marcha, sobre o seu andor, a imagem de Santo Antônio, o padroeiro da futura vila a que se ia levantar a povoação do Recife.
Seguiram-se logo as irmandades das duas freguesias com seus guiões e balandraus, e após elas o Santíssimo Sacramento que o vigário de São Pedro Gonçalves conduzia debaixo do pálio, acompanhado pelos ministros de El-Rei, oficiais, milicianos, e mais pessoas da governança da terra Sebastião de Castro, ainda enfermo dos ferimentos não assistia a cerimonia e fazia se representar pelo Secretário Barbosa de Lima e o Ajudante Negreiros.
No couce, os terços de infantaria, em um dos quais o dos homens brincos empunhava a gineta de capitão o nosso Miguel Correia, bizarro e desempenado como devia ser um guerreiro curtido em vinho da Figueira.
Chegada a procissão em frente á cadeia, deu três voltas ao redor do largo, e entrou a cerimônia religiosa. Em um altar volante que se levantara em face do pelourinho, e onde foi depositado o sacrário, celebrou-se a missa que terminou com a bênção do padrão da vila.
Concluindo a consagração, o ministro segurou uma ponta do pano de rás, que abrindo-se descobriu o pelourinho. Então o Dr. Luís de Valenzuela Ortiz que substituíra na ouvidoria ao Dr. Arouche, subiu. os degraus de pedra, e do alto aclamou a vila com as palavras do costume:
– Real, real, por El-Rei de Portugal!
Repetido mais duas vezes este brado, e em todas correspondido pela multidão, disse afinal o ouvidor:
– Está criada a vila de Santo Antônio do Recife!
Ai prorromperam os vivas e clamores festivos, subindo ao ar os fogos de artifício que se dispararam de vários pontos da cidade, e os repiques alegres dos sinos de todas as igrejas.
Passou-se a lavrar o auto da criação, e para esse fim arrumaram junto ao pelourinho uma banca onde veio aboletar-se a figura sempre esconsa e refolhada do Cosme Borralho. O Pisca-Pisca tocara a meta, obtendo por empenho da Senhora Rufina a serventia do ofício de tabelião do novo concelho.
Nessa qualidade fora chamado para fazer na cerimônia as vezes de escrivão da Câmara, enquanto se não elegia quem servisse o ofício. Já de todo livre dos efeitos do cansanção, o Cosme enfronhado em garnacha nova, trazia a cavalo na orelha direita uma pena de ganso com a rama tão garrida e matizada, que parecia uma bandeira.
Lavrado o auto, lido perante o povo e assinado pelos ministros, oficiais e gente principal, mandou o ouvidor apregoar a conselho chamando os vizinhos e moradores para a eleição dos juizes, vereadores, almotacés e mais oficiais da nova Câmara.
Juntos na casa do concelho os homens bons da nobreza e povo, que se tinham dado a rol anteriormente, procedeu-se à escolha dos eleitores que deviam formar os pelouros, servindo neste ato de juiz ordinário o Simão Ribas, por nomeação do ouvidor.
Teremos outra vez ocasião de assistir a uma eleição do tempo do rei velho, e então veremos que as tricas e manejos da cabala têm origem mais antiga do que geralmente se pensa.
As janelas estão abertas; há dentro alegre burburinho, e toda a casa respira tal ar de festa que até a parede da frente parece mais sarapantada, ou para usar da frase do estudante, mais perereca do que de costume.
Se a miuçalha que se apinha na frente e invade as portas e janelas, nos deixasse olhar para dentro da sala, veríamos duas filas de damas e meninas, todas no maior apuro, com roupas de seda e cintos broslados de prata e ouro.
Felizmente abre-se neste momento a chusma para dar passagem ao Sr. Simão Ribas, o qual volta do conselho, onde acaba de ser eleito juiz ordinário, e vem entufado como um peru de roda. Acompanham-no seus amigos, o Viana e o Costa Araújo, que também saíam do pelouro de vereadores, e o Rev. Padre João da Costa, além de outros mercadores da primeira plana.
Entremos após eles, com o nosso Cosme Borralho, o qual vem ao cheiro do banquete com que o chefe dos mascates se propõe a festejar a sua eleição.
Passada a primeira confusão produzida pela entrada do dono da casa e açodamento com que o foram receber à porta seus hóspedes e parentes, podemos dar uma breve descrição da sala que apresenta todas as mostras de grave cerimônia.
Em frente acha-se o venerando almotacé, como seus dignos colegas e amigos, enfronhado em um gibão carrança de belbute, com uma volta de laçada, cujas tiras pendentes ao peito têm as amplas proporções de toalhas.
Traziam todos a indispensável cabeleira ruça e alto bengalão de rotim com castão de prata dourada, o que naquele tempo era um traço imprescindível no trajo senatorial. Com essas cabeleiras e bengalas, a crermos o autor dos Mártires Pernambucanos, tinham os respeitáveis senadores de serem escovados algumas semanas depois pelo Capitão-Mor Pedro Ribeiro da Silva.
A esquerda alinha-se pelo estrado uma fila de damas entre as quais, além de Leonor cuja formosura cativa a atenção, distinguem-se logo a Senhora Rufina pelo seu empertigamento, e a Senhora Rosaura pela pachorrenta gordura. Entre as respeitáveis matronas ficavam suas filhas, nesse dia mais lindas que nunca. Ambas tinham a cabeça baixa, mas uma não tirava a vista do chão, e era Belinhas, enquanto os olhinhos travessos de Marta andavam bisbilhotando todos os cantos da casa.
À direita estava arrumada de pé a chusma dos convidados Via-se aí toda a espécie de cara, como toda a casta de vestuário, desde o casquilho alfacinha e o folgazão do minhoto até o arrevesado galego, que ainda não tivera tempo de polir-se ao atrito da boa roda.
Também lá apareciam no meio dessa galeria reinícola os tipos da terra, como fossem o sertanejo e o matuto, representados em alguns exemplares preciosos que os mascates haviam atraído a seu partido.
Quando o venerando ex-almotacé e agora juiz ordinário tomou assento, Vital Rebelo que se achava na sala e havia saudado à chegada, foi ao interior da casa, donde logo voltou, guiando dois mancebos, em que apesar do trajo garrido, fácil era conhecer o Nuno e o Lisardo.
O ex-escudeiro de D. Severa tinha perdido todo o seu arreganho marcial e caminhava sobre brasas, enquanto o tímido e sensitivo poeta expandia-se nessa atmosfera de sala para a qual nascera sua alma.
Seria fazer pouco na perspicácia do leitor, supor que ele já não percebeu do que se trata. Todavia sou capaz de apostar que ainda não atinou com a verdade inteira; e se assim não é, feche o livro, pois sabe mais do que ele.
A noite em que Vital Rebelo de volta de Olinda com sua noiva aprisionou os dois casais de namorados em Santo Amaro, não cuidou senão em dar-lhes hospitalidade, e de tão boa vontade e por modo solícita, que se não lembrassem eles nas horas mortas de bater a linda plumagem, sobretudo o Nuno, afamado por suas estrepolias.
O mais do tempo, consagrou-o à sua felicidade. E quem, depois de um ano tão curtido de amarguras e desesperos, lhe podia pedir conta dessas poucas horas de egoísmo? E demais, devia ele deixar só naquela noite a sua Leonor, a esposa querida que acabava de conquistar ao ódio dos parentes? Não seria expô-la a qualquer temerário arrojo dos nobres, excitados pelo sentimento da vingança e pelo rebramo do orgulho ofendido?
No outro dia, cedo; depois de tomar todas as precauções necessárias para defender sua habitação de qualquer assalto de fora, como para guardar a saída aos seus prisioneiros, partiu ele a cavalo para casa do primo Simão Ribas, com quem teve uma longa prática.
O resultado dessa prática foi partirem imediatamente as Senhoras Rufina e Rosaura para a casa de Rebelo; e trazerem em cadeirinhas bem fechadas as filhas, que já choravam perdidas ambas, supondo-as roubadas pelos pés-rapados, sedentos de vingança contra os mercadores.
Quanto ao Nuno e ao Lisardo, continuaram hóspedes de Vital Rebelo até aquele dia em que o mancebo, fornecendo-lhes trajos de gala e cavalos ajaezados, os trouxera à casa do Simão Ribas, onde os achamos neste momento.
Vital Rebelo tomou pela mão ao Nuno e levou-o á presença do Viana, que o esperava com severa carranca. Ajoelhou o filho aos pés do pai, e balbuciou algumas palavras pedindo-lhe perdão de sua culpa e a restituição da bênção.
– Está perdoado, disse o Viana em barítono, dando ao filho a mão a beijar. Levante-se, e agradeça ao Sr. Vital Rebelo que intercedeu em seu favor.
Voltou-se o Nuno para o alferes o qual lhe deu um abraço. O Viana continuou.
– A pedido do mesmo Sr. Rebelo consinto que sente praça na milícia com o posto de alferes que ele cede em seu benefício.
Desta vez foi o Nuno que abraçou com entusiasmo seu protetor.
Agora chegue-se cá, moço, disse a Senhora Rufina, e ouça-me bem. Você está muito criança ainda para casar…
– Dezoito anos… quis protestar o Nuno.
– Dezesseis, menino! acudiu a Senhora Rosaura.
– Está vendo. Lá para os vinte, se comportar-se como homem, não digo que não. Até então pode ver sua noiva, na missa aos domingos, ou aqui em casa nas quatro festas do ano.
Marta, ao ouvir falar em noiva, fez-se de lacre e Nuno escondeu a careta que lhe merecera o programa da Senhora Rufina.
Entretanto Rebelo, que não concluíra ainda a sua missão de patrono dos namorados, fora buscar o Lisardo para apresentá-lo ao Viana.
– Quanto ao senhor, disse o mercador, fica em minha loja no lugar de caixeiro que deixou o tonto de seu camarada, e nessa qualidade, se me servir bem e for regrado, trabalhador e econômico, prometo-lhe a mão de minha filha Isabel aqui presente.
-Poltanto, acrescentou gravemente o Simão Ribas, não plecisa mais fazel velsos.
– Contra os de Olinda, pode fazer, acudiu a Senhora Rufina.
– Nada de versos; tornou o Viana. Aprenda-me a fazer contas e a conhecer o valor dos algarismos. Com isso sabe-se tudo.
– Tem lazão, tem muita lazão o meu lespeitável amigo. Vamos pala a mesa que nos espela.
Deixemos que o excelente Senhor Simão Ribas e seus convidados festejem nas delícias do suculento banquete o triunfo alcançado pelos mascates com a criação da vila; e aproveitemos estas últimas páginas para dar alguma breve noticia dos outros personagens da crônica.
Toda a nobreza abandonara Olinda e se refugiara nos engenhos, onde preparava-se não só para a resistência, como para a desforra que em poucos dias ia começar com o levante do Capitão-Mor de Santo Antão, Pedro Ribeiro da Silva.
D. Severa acompanhara os parentes, inconsolável pela perda de seu poeta e de seu escudeiro, porém ainda mais por não ter podido chamar Sebastião de Castro a combate singular, onde se despicasse da afronta que ele mandara fazer à sua beleza.
Poucos dias depois da criação da vila do Recife, Vital Rebelo aproveitando a saída de um navio para a Bahia, levou a sua querida Leonor às pitorescas assomadas do Salvador, onde se deslizou serena e florida a sua primavera nupcial.
Induziu-o a esta viagem, não somente o desejo de desvanecer no espírito de Leonor a lembrança da oposição de seus parentes, como a previsão dos sucessos que iam enlutar. a capitania, e nos quais, ele presente, não podia eximir-se de tomar uma parte dolorosa ao coração de sua esposa.
Efetivamente, a revolta dos pernambucanos tomara de dia em dia maior incremento.
Sebastião de Castro, já de todo restabelecido dos ferimentos, começava a sentir em palácio o isolamento, infalível sintoma dos desastres iminentes. As catervas de homens têm o mesmo instinto dos rebanhos que pressentem o temporal, e fogem ao perigo.
Ele reconheceu, então já tarde, o erro. Seu imenso poder e a sua política dissolvente haviam tudo esmagado e diluído em torno dele; de modo que no dia da provança, quando se julgava cercado de amigos e aliados, não viu ao redor senão miragens de sua própria vontade, que ele animara com seu prestígio e com este se apagavam.
Não eram homens aqueles vultos que ainda povoavam as salas do palácio; e sim os manequins do governo ainda movidos pela mola da ambição e da cobiça. Mas como a corda do maquinismo estava prestes a acabar, já os movimentos eram frouxos e incertos.
O Barbosa de Lima acompanhou-o até o último instante com uma fidelidade nunca desmentida; mas continuou no cargo de secretário, e nele atravessou todo o período da guerra dos mascates, até 1712 em que partiu para Lisboa.
Espalharam então que fora a mandado dos mascates e ganhando pingue espórtula, mas isso não passou de uma das muitas calúnias tão freqüentes naquele tempo e a que não escapou o próprio Sebastião de Castro, apesar de seu proverbial desinteresse.
Não é este o momento de referir os sucessos que puseram termo ao governo de Sebastião de Castro Caldas, e que pertencem à crônica seguinte. Esta termina com o primeiro e efêmero triunfo dos mascates, e com a instalação da vila do Recife.
Anteciparemos porém este ponto: que Sebastião de Castro mostrou-se na adversidade o varão forte de Horácio, a quem as ruínas de seu fastígio não esmagam, mas ao contrário exaltam, como um pedestal.
É o destino dos homens fadados para a dominação. O poder e a fortuna os expande; e eles absorvem ou repelem quantos se lhe aproximam. O revés e a desgraça os concentra, e então eles acham dentro em si um mundo onde se isolam.
Na noite em que Sebastião de Castro embarcava na rampa de palácio para transportar-se a bordo do navio que devia conduzi-lo à Bahia, diversas pessoas o acompanhavam.
Destas, algumas eram os principais mercadores que, temendo as represálias dos nobres, fugiam à má fortuna; outras eram gente da governança e oficiais de sala que desempenhavam pontualmente uma obrigação de seu ofício, vindo prestar ao fidalgo aquele último dever.
Só uma era estranha ao governo, e desconhecida para aquela gente. Sebastião de Castro Caldas reconheceu Carlos de Enéia, seu antigo secretário, e compreendeu que o trazia ali o desejo de render a homenagem de seu respeito à adversidade, já que, não lhe era dado conjurá-la.
FIM
José de Alencar
Fonte: www.falares.hpg.com.br