Sonhos D’Ouro

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José de Alencar

I

O sol ardente de fevereiro dourava as lindas serranias da Tijuca.

Que formosa manhã! O céu arreava-se do mais puro azul; o verde
da relva e da folhagem sorria entre as gotas de orvalho, cambiando aos toques
da luz.

Frocos de névoa, restos da cerração da noite, cingiam
ainda os píncaros mais altos da montanha, como pregas de véu
flutuante, ao sopro da brisa, pelas espáduas das lindas amazonas, que
durante o verão costumam percorrer aquelas amenas devesas.

Seriam sete horas.

Um passeador solitário seguia a pé e distraidamente por um
dos muitos caminhos que se cruzam em várias direções
pela encosta ocidental da montanha. Levava ele embaixo do braço esquerdo
um álbum de desenho, naturalmente destinado à cópia das
magníficas perspectivas, que oferecem a cada passo as quebradas da
serrania.

Era moço de 28 anos. Seu rosto de traços nobres não
tinha decerto a beleza correta e artística do tipo clássico,
nem a faceirice de certos casquilhos, príncipes da moda: apresentava
porém uma fisionomia simpática e distinta. O olhar sobretudo,
que é o sol d’alma, lhe esclarecia a larga fronte pensativa de reflexos
inteligentes.

Trajava com extrema simplicidade. Tinha um vestuário completo, ou
no jargão parisiense dos alfaiates, um costume ainda bem conservado
e decente, apesar de um tanto fanado na gola. Notava-se a ausência completa
do ouro: a abotoadura era toda de marfim; e não se via sinal de relógio.

Depois de alguns minutos de passeio, o moço, cujos olhos iam percorrendo
com indiferença as bordas do caminho, de um e outro lado alternadamente,
desviou-se do trilho batido e seguiu por dentro do mato. Mal tivera tempo
de sumir-se entre a ramagem do arvoredo, quando ouviu-se o tropel de um cavalo
que passou a galope. Enfiando o olhar por entre as folhas, pôde ver
o cavaleiro, o qual era rapaz de 21 anos, de belo parecer e maneiras agradáveis.
Montava um cavalo castanho.

– Fábio!
– O cavaleiro colheu prontamente as rédeas, fazendo estacar a montaria,
e voltou-se duvidoso para ver se com efeito o haviam chamado, como lhe parecera.
A rapidez do galope e a repercussão do solo tinham impedido que ouvisse
distintamente a voz do passeador a pé:
– Que milagre!… Hoje madrugaste!…

– Ah! És tu, Ricardo?! Exclamou o cavaleiro retribuindo o sorriso.
Vou à “Vista dos Chins” com uns rapazes que estão
aí no hotel do Jourdain. Convidaram-me ontem à noite. É
um piquenique! Queres ir também?
– Só se partíssemos ao meio o “Galgo”, observou Ricardo,
alisando a linda anca do cavalo.

– Dou-te garupa! Replicou Fábio gracejando.

– Obrigado!… Luisinha teria ciúmes.

– Bem; vai romantizar com as flores, que os sujeitos estão à
minha espera. Talvez já chegue tarde! Digam lá o que quiserem.
Um homem deve se dar a respeito, e não comparar-se com os animais e
os carroceiros que deitam de dia e acordam-se de noite.

Atirando esse gracejo, Fábio deu de rédeas ao animal e partiu
a galope.

– Olha o “Galgo”, hem! gritou Ricardo.

– Com efeito!… nem de Bela tens tanto cuidado!
Ricardo sorriu e, acompanhou com os olhos o amigo até que sumiu-se
na volta do caminho. Não era porém o cavaleiro, apesar de elegante,
o que prendia a tenção do passeador, e sim o cavalo cuja fina
roupagem castanha brilhava aos reflexos do sol. A esbelteza das formas esgalgadas
e o garbo dos movimentos fáceis e vivos, lhe tinham merecido o lindo
nome dado pelo dono.

Quando o vulto airoso do cavalo encobriu-se por detrás da folhagem
de uma árvore que interceptou-lhe a vista, Ricardo, abafando um suspiro
involuntário, desviou-se novamente do caminho ao qual voltara para
falar com o amigo.

Às vezes o pensamento do moço vagava de um a outro objeto,
desta àquela moita, do ramo ao tronco, da folha à raiz, como
se procurasse um ponto qualquer onde se fixasse, distraindo-se das idéias
e recordações do íntimo. Outras vezes, depois de adejar
como uma borboleta, o espírito do solitário passeador recolhia-se
insensivelmente, e abstraía-se de quanto o cercava, para envolver-se
nos refolhos d’alma.

Alguma coisa porém chamou por momentos sua atenção.
Foi a pequena flor silvestre de um arbusto que se encontra nas matas da Tijuca.

Não sei o nome do arbusto, nem mesmo se já foi batizado pela
ciência. É natural que não tenha escapado às pesquisas
dos dois ilustres “freires” da flora brasileira, o Veloso e o Alemão;
mas, como apesar de tanto dinheiro esperdiçado pelo governo, as letras
andam entre nós abandonadas à indiferença e ao charlatanismo,
que são a medusa e o minotauro do talento, não me pude socorrer
à ciência dos dois célebres botânicos.

A este respeito Ricardo não era menos ignorante. O modo porque ele
admirava a pequena flor revelava o tato do artista ou do poeta. Seu exame
nada absolutamente se parecia com a fria dissecação que o botanista
opera nas diferentes partes de uma planta, para conhecer o seu gênero,
classe e família.

A flor tem a forma de um junquilho, mas é de uma bela cor de ouro,
e aveludada como a açucena. Falta-lhe o perfume, que é o coração
da flor, a sua respiração.

A corola tubular, com cinco lóbulos agudos de lança, surge
de um cálice que parece coralina. Cada haste sustenta comumente três
cálices dispostos como as aspas de um leque; aí dentro desses
cálices formam-se os botões, como pequenas pontas de ouro no
seu róseo engaste.

Pelo conhecimento que fizemos, a planta e eu, durante o verão passado,
notei-lhe duas particularidades. Talvez recebesse eu dela outras confidências
se não nos separássemos tão cedo, e tão no princípio
ainda de nossa amizade.

Os botões, que despontam em dezembro, por muito tempo se conservam
estacionários, sem crescimento aparente. É só dois ou
três meses depois, em fevereiro e março, que as gemas d’ouro
se elevam como aljôfares, e desabrocham para murchar em um dia. Mas
as três flores irmãs não crescem, nem abrem ao mesmo tempo;
vêm solitárias, uma depois da outra.

Eram estas justamente as observações que fazia Ricardo, examinando
a linda corola e os botões nascentes aninhados ainda no fundo do cálice
nacarado. Muitas vezes em seus passeios tinha ele notado o arbusto coberto
das lindas pérolas douradas. Cansado de esperar o desabrochar, supôs
a florescência já passada, e naquilo que via, o embrião
do fruto.

Depois de olhar a flor agreste com enlevos de artista, o moço, que
procurava qualquer modelo, lembrou-se de copiar o arbusto em uma das páginas
do álbum. Escolheu a posição, aproveitando os acidentes
do terreno em ladeira, para servir-lhe de mesa. De joelhos na grama, debruçado
sobre o declive de um barranco, traçou rapidamente a lápis o
esboço da planta.

Enquanto descansava, examinou de novo a flor do ramo que tinha quebrado:
– Que bela cor de ouro! murmurou.

Então com as impressões poéticas da flor agreste se
enlearam outras cismas que absorveram completamente o espírito de Ricardo.
Como a seiva exuberante de uma árvore, que rompe a casca e borbulha
aqui e ali pelo tronco em fios de resina, assim os pensamentos que enchiam
a alma do mancebo se escapavam de vez em quando nas palavras entrecortadas
de um monólogo.

– Ouro!… ouro!… És o rei do mundo, rei absoluto, autocrata de
todas as grandezas da terra! Tu, sim, tu reinas e governas, sem lei, sem opinião,
sem parlamento, sem ministros responsáveis!… Não tens nenhum
desses trambolhos que arrastam os soberanos constitucionais.

“Lei?… Que lei é a tua, senão o capricho com que escarneces
dos homens? Tu dizes ao pobre, cobiça; ao opulento, gasta; ao ladrão,
rouba; e a todos, grandes e pequenos, adorai-me…

“Opinião?… Quem faz esse rumor que nos atordoa os ouvidos
e a que chamam pomposamente opinião pública? Tu, que sustentas
os jornais, pagas os jantares, ofereces lindos presentes, estreitas as amizades,
e nutres a admiração e o entusiasmo!”
O monólogo expirou nos lábios do moço; porém a
expressão de seu rosto indicava que o espírito seguia mentalmente
o sucessivo desenvolvimento da idéia.

– Todos nós, bons ou maus, somos súditos de tua majestade,
com a diferença que os maus te bajulam e se arrastam a teus pés
para satisfação de ignóbeis instintos; enquanto que os
homens honestos te respeitam como um grande poder, te servem para se robustecerem
com tua força, mas não te sacrificam a dignidade e a virtude.

Um sorriso amargo pairou nos lábios de Ricardo:
– Por isso, como todos os reis, tu repeles quase sempre essas almas de rija
têmpera, que não se dobram a teus caprichos. Preferes os lisonjeiros,
os corações de cortiça, as almas de esponja, que à
vontade se embebem ou se encharcam daquilo que te apraz ou te repugna.

A sombra de algum pensamento mais desanimador perpassou-lhe na fronte, e
derramou-lhe pelo semblante uma expressão de melancolia. As pálpebras
cerraram-se como se a luz do sol ofendesse a penumbra d’alma em que dormiam
as mágoas íntimas e as queridas reminiscências:
– Minha felicidade, a felicidade de uma família inteira, depende de
ti, de um teu bafejo!… Vinte contos!… Uma migalha das tuas imensas riquezas.
Dizem que milionários já deram mais, muito mais, para terem
direito a um nome de cinco letras! Quatro contos cada letra! Há mulheres
que levam ao baile algumas noites, durante sua vida, jóias que valem
dez vezes mais do que essa quantia! Quanto não custa cada hora daquele
prazer! Entretanto não são cinco letras, são oito criaturas,
não são horas apenas, são anos, são vidas de amor
e ventura, que eu obteria com esta miserável quantia… miserável
para os opulentos; para mim um tesouro, um futuro!…

Sob a influência da profunda cisma, Ricardo tinha a pouco e pouco
mudado a posição, que tomara para desenhar. O corpo debruçado
anteriormente sobre o declive, que servira de mesa, inclinou-se insensivelmente
para o lado, firmando-se no cotovelo. Assim com a cabeça apoiada na
mão esquerda, quase deitado sobre a relva, como sobre um divã,
prosseguia o moço nos seus devaneios, com os olhos fitos na flor, que
embalançava-se lentamente aos movimentos dos dedos.

– Bastava uma tira de papel, um bilhete de loteria, ou uma carta de jogar,
para dar-me essa quantia, o preço de minha felicidade, a saúde
de minha mãe, o casamento de Luisinha e… Ah! Quantas vezes não
me tenho embalado nestas ilusões sedutoras, nestes sonhos d’ouro! São
como tu, linda flor, os meus sonhos d’ouro. Brota uma tênue esperança,
assim como o teu botão; vai crescendo lentamente, no meio de ânsias
e dúvidas; afinal desabrocha em flor; mas é flor do vento, que
logo murcha. Também tu não vives mais que um dia!… Nisto nos
parecemos bem; constante a preocupação; o sorriso efêmero;
tua preocupação é vegetar, a minha, pensar!
Decorrido um momento, o semblante de Ricardo expandiu-se:
– Há tanto tempo que vejo esta planta, e não lhe conhecia a
flor!… Quem sabe? Talvez seja o anúncio do primeiro sorriso da fortuna!
Logo zombou de sua lembrança, e da puerilidade daquela superstição.
Mas, longe de a repelir, embebeu-se na ilusão. Todos nós temos
em nossa alma um cantinho, que, apesar dos anos, da experiência e dos
trabalhos, fica menino até que enfim o homem volta à primeira
infância. Nesse cantinho dormem as ilusões ingênuas, as
esperanças infindas, a fé robusta e sobretudo certos laivos
de loucura que tonificam a razão.

É aí, é justamente nesse santuário da infância,
que a alma viril do homem costuma-se refugiar nos momentos de crise, quando
sustenta alguma luta com a fortuna; ou vencedora para fortalecer-se com a
seiva primitiva, e renovar o combate; ou vencida para escapar ao desespero,
que a invade.

Ricardo deixou-se ir à mercê da fantasia, que recortava arabescos
em seu espírito. Era um desses sonhos acordados, em que as noções
confusas se agitam num claro-escuro do espírito. Esse jogo da luz e
das sombras d’alma, junto à extrema volubilidade dos pensamentos, não
deixava destacar-se cada uma das idéias. Bilhete de loteria, jogo de
cartas, heranças inesperadas, a proteção de um milionário,
o trabalho abençoado por Deus, e mil rasgos e acidentes da fortuna;
tudo isto misturado com a imagem da flor se baralhava na mente de Ricardo,
apagando-se e luzindo alternativamente, como os fogos-fátuos em noite
escura. Mas todas essas fosforescências iam derramando n’alma como que
uma linda miragem, a abastança, a posse dos vinte contos de réis.

– Então!… Como havíamos de ser felizes, Bela! Que beijos,
minha querida mãe, que eu te havia de dar para te beber nas faces as
lágrimas de prazer! Porque tu havias de chorar de alegria, como choraste
de dor. E também a ti, Luisinha! A todos!…

A cada uma dessas palavras o moço, completamente possuído
e dominado por suas recordações, inclinava-se sobre a flor agreste
que tinha na mão, e beijava-a com ardor, vendo naquela gentil criatura
da natureza a imagem das pessoas a quem amava.

– Oh! então lhes pagaria em beijos as saudades que sentem por mim!..

O trino mavioso de um riso fresco e argentino arrancou subitamente o moço
à profunda cogitação.

Aturdido um instante pela completa alheação do espírito,
que andava bem longe dali, através dos mares, Ricardo voltou-se para
ver quem tão bruscamente o havia chamado à realidade.

O quadro que tinha diante dos olhos era digno de uma das folhas de seu álbum,
ornado de finas aquarelas.

II

Entre o arvoredo tecido de grinaldas amarelas aparecia uma esfera do azul
do céu, como tela fina de um painel, cingido por medalhão de
ouro. A sombra de uma nuvem errante infundia ao horizonte suave transparência.

Debuxava-se na tela acetinada o vulto airoso de linda moça, que montava
com elegância um cavalo isabel.

A alvura de sua tez fresca e pura escurecia o mais fino jaspe. Nem os raios
do sol, nem o exercício acenderam uma rosa mesmo pálida em sua
face, cândida como a pétala do jasmim. A seiva dessa mocidade,
o viço dessa alma, não se expandia no rubor da cútis,
mas no olhar ardente e esplêndido dos grandes olhos negros, e no sorriso
mimoso dos lábios, que eram um primor da natureza.

Admirando aquele rosto encantador, ninguém reparava na sua palidez;
ao contrário parecia que os tons rosados maculariam a alvura do lírio.
A alma que se derrama assim em ondas no olhar e no sorriso, está no
íntimo, no coração, donde se desprende em centelhas;
não pode tingir as faces.

Um roupão de caxemira verde-escura, debruado a cairel de seda preta,
com abotoadura de aço, moldava um talhe esbelto, que parecia talhado
em mármore, tal era a correção das linhas e a harmonia
dos contornos. O gracioso chapéu de castor cor de pérola, em
vez de cobrir-lhe a cabeça gentil, pousava como um pombo na rica madeixa
negra, que lhe descia caprichosamente pelo pescoço em opulentas cascatas.

Calçava luvas de camurça amarela, cujo longo canhão
afunilado cobria-lhe uma parte do braço, mas deixava admirar o pulso
delicado, cingido por um punho de cambraia lisa, igual ao colarinho rebatido
sobre a gola do roupão.

A mão esquerda sustinha as rédeas trançadas com bastante
firmeza, porém com a graça fácil que teria segurando
no baile o leque ou o ramalhete. A direita suspensa apertava pela haste um
chicotinho, cujo cabo de madrepérola parecia machucar nos lábios
o sorriso faceiro, que ali brincava, e de vez em quando trinava como um canário.

Da cintura de menina ou de silfo nasciam as amplas dobras do roupão
de montar, roçagante sobre os flancos do belo animal. Como na constante
ondulação do mar percebe-se, por uma inflexão mais forte,
a vaga nascente que se empola, assim no meio das largas pregas do vestido
sentia-se o relevo suave da perna esbelta e nervosa, que esticava o loro,
enquanto o pé, despeitado por não se mostrar, agitava impaciente
o estribo.

O cavalo era digno pedestal daquela estátua de Diana. Alto, airoso,
de uma estampa soberba, respirava a elegância altiva e serena, que lhe
imprimira a educação britânica. O cavalo do Cabo, de boa
raça, tem alguma coisa do lorde: a mesma fleuma aristocrática,
o mesmo garbo frio e impassível, a mesma sobriedade do gesto, caracterizam
os dois fidalgos.

Tenho para mim que um cavalo do Cabo olha para os cavalos de raça
diferente com o mesmo polido desdém que sentia Lorde Derby pela nobreza
das outras nações. O lorde inglês apropriou-se do antigo
mote dos senhores do mundo, civis sum. O cavalo do Cabo, parodiando a divisa,
diz equus sum; eu sou o cavalo por excelência, o fidalgo de raça,
o gentleman da estrebaria.

Por isso na atitude do lindo animal montado pela gentil amazona não
se via a impaciência fogosa, a vivacidade sôfrega, que sem dúvida
ressumbraria no filho da raça brasileira, apesar de muito afastado
de sua primitiva estirpe árabe. O lindo isabel, sentindo a doce pressão
das rédeas colhidas pela mão da senhora, estacara imóvel,
com a firmeza correta de uma posição acadêmica. As pernas
lançadas pisavam o chão com rígida elegância; a
cauda e a crina conservavam a artística ondulação que
lhes imprimira a mão do escudeiro; a cabeça erguida com a arrogância
inclinava-se ligeiramente para despedir o olhar oblíquo do orgulho
desdenhoso.

Pitt, o grande Pitt, parando no meio de um discurso eloqüente, ao influxo
da súbita inspiração de um epigrama, que seu lábio
sarcástico ia desferir contra Fox, devia ter no parlamento inglês
aquela atitude soberba.

Se a linda moça ficasse ali horas, creio que o seu impassível
cavalo não daria sinal de impaciência, nem levantaria a unha
aristocrática para escavar o chão. Podiam também as moscas
impertinentes pousar na anca; ele não se preocupava com a ralé.
Apenas, muito importunado, agitaria o corpo com um movimento semelhante ao
do fidalgo que levanta os ombros em sinal de tédio.

Eis o quadro original que Ricardo viu de relance. O vulto da moça,
esclarecido por um raio do sol coado entre a folhagem, se estampava no fundo
azul, com vigor de colorido e animação de tons admiráveis.
Através da névoa sutil que há pouco envolvia seu espírito,
o desenhista podia supor um instante que via uma paisagem de Delacroix através
da ilusão diáfana de um diorama.

Chegando-se ao arbusto para examinar-lhe a flor, não reparou o moço
que, seguindo por dentro do mato, se aproximara do caminho no lugar onde este
fazia uma curva. Deitara-se pois voltando costas ao trilho, que lhe ficava
a duas braças de distância.

A linda amazona, que vinha ao passo do animal, descobriu o solitário
passeador, e pressentiu nele algum desses eternos sonhadores que se chamam
poetas ou artistas: gente por quem as mulheres têm o mesmo fraco dos
meninos pelas bolhas de sabão; coisa para se ver um instante, enquanto
brilha.

Disfarçando a sua indiscrição com o pretexto de esperar
alguém que a acompanhava, fez a amazona parar o animal. O vento, volvendo
as folhas do álbum, mostrava as aquarelas, que os olhos curiosos tentavam
espiar, enquanto a mão afastava o longo véu cor de havana. Esguardando
os desenhos, não esquecera a moça o artista que, entregue a
seus pensamentos, murmurava palavras soltas.

Quando o viu beijar com ardor, uma e muitas vezes, a pequena flor agreste,
não pôde se conter, e deixou escapar-se a risada harmoniosa,
que ainda se desfolhava em sua boca travessa, como uma rosa desabrochada naquela
manhã. Debalde quis ela, pousando nos lábios o cabo de madrepérola
do chicote, trancar aquele cofre de pérolas e rubis: as jóias
se desfiavam rorejando as melodias de uma voz suave.

O riso fresco de uma linda boca, ainda quando borbulha dele alguma malícia,
é sempre doce e saboroso. Por isso Ricardo, apesar de reconhecer que
a moça ria-se dele, em vez de zangar-se, riu-se para ela.

O véu caiu imediatamente, ocultando em uma nuvem espessa o rosto
encantador. A uma vibração da rédea, o soberbo isabel
desatou o passo elegante em um trote largo, de suprema correção
hipiátrica. O quadro arrebatador se tinha apagado de repente, deixando
a tela azul erma da imagem sedutora.

Em compensação porém outro quadro mais cheio desenhou-se
no claro do arvoredo. Era formado por uma inglesa gorda, de meia-idade, dessas
mulheres que teimam em não envelhecer, e por um português magro,
desses homens que aos quarenta anos envelhecem sem cerimônia.

Estas duas criaturas eram o epigrama vivo uma da outra. Montada a cavalo,
com um chapéu de abas enormes, a inglesa parecia, relevem a comparação,
um queijo londrino posto em prato alto e coberto com a tampa de cristal. O
português, esguio e curvado sobre a mula que o levava, com um chapéu
afunilado, era a perfeita imagem de uma salsicha assada num espeto.

Para que o contraste fosse perfeito, a mulher falando ao homem, estropiava
o português de uma maneira horrível; e o homem, escutando-a atentamente
como se a compreendesse, arranjava de vez em quando no fundo da garganta um
grunhido que tinha pretensão de ser um yes, como uma careta tem a pretensão
de ser um sorriso.

Ricardo vendo o segundo painel sentiu na vista uma sensação
igual à do paladar que, saboreando a polpa deliciosa de um cambucá,
sentisse de repente o gosto do pepino. Fechou os olhos enquanto o mútuo
epigrama em carne e osso passava, acompanhado por um pajem de libré.

Um novo gorjeio de riso melodioso derramou-se pela solidão; porém
Ricardo não ouviu mais do que um eco remoto.

– De que se ri, menina? perguntou a mestra em inglês. Why do you laugh,
baby?
– Bonito romance, Mrs. Trowshy! respondeu a moça na mesma língua.

– Que título tem?
– Título!…replicou a moça rindo. Não está escrito
ainda! Se agora mesmo eu vi o primeiro capítulo!
– Não entendo.

– Ande lá, Mrs. Trowshy! E a senhora bem caladinha!…

– Mas o que é?
– Não viu um moço que estava recostado na grama ao lado do caminho?
– Onde?… Não vi nada!
– Sim? Não me engana! Pois o moço tinha uma flor na mão,
creio que era um girassol, e pensando que eu não o via, ou talvez que
era outra pessoa, dava tais beijos na flor, que de cada beijo comia um pedaço.

– Oh! Oh! engraçado! Exclamava a mestra com um riso puro cockney.

– Espere; o mais interessante é que ele não cansava de dizer
enquanto beijava o seu girassol: My love, my soul, my darling Harriet, my
pretty Mrs. Trowshy!
– Baby, baby!… repetia a mestra afogada em riso.

O português não entendera meia palavra do diálogo travado
em inglês; mas ele julgava que, sendo incumbido de acompanhar a moça
e a mestra na qualidade de criado grave, devia compor-se à feição
daqueles de quem estava constituído a sombra.

– Você tem idéias, menina!
– É sério, Mrs. Trowshy. Palavra que vi o moço. E a senhora
também; não disfarce.

A mestra voltou-se gravemente para o criado, e com os dentes cerrados para
destrinçar as palavras portuguesas, como se fossem cabeloiro, disse
mais ou menos isto:
– Senhor Daniel, nós ver young gentleman?
– Iuh!… iuh!… iuh!… respondeu o Sr. Daniel que ficara em branco.

– Não disse? exclamou a moça desatando a risada com extremo
prazer.

– Iuh!… iuh!… fez a mestra arremedando o português. Que quer dizer
iuh?…

Neste momento um cavaleiro a galope assomou na curva do caminho, e encontrou-se
de frente com a moça e sua comitiva. Era Fábio que voltava do
seu passeio gorado; ao avistar o grupo, moderou o andar do animal para melhor
examinar as pessoas, com especialidade a gentil amazona.

Cumprimentou respeitosamente a moça, que retribuiu-lhe com uma inclinação
da fronte, bastante graciosa para revelar a fina educação, mas
tão reservada e altiva que não permitia a quem recebesse dirigir-lhe
uma palavra, ou aproximar-se.

O “Galgo” e o formoso isabel também se cortejaram: o cavalo
brasileiro, vivo, ardente e prazenteiro, enfreando-se garboso e soltando um
ligeiro nitrido de prazer; o cavalo do Cabo, com o cumprimento protetor que
um ministro enfatuado se digna deferir a um deputado novel.

Como o jovem deputado, o jovem corcel, vendo aquela fatuidade, sentiu certo
prurido na pata, mas pelo respeito ao cavaleiro que o montava, pela decência
devida à boa sociedade, e sobretudo pela educação que
lhe dera o dono, desprezou a arrogância do colega.

– É este o moço, menina? perguntou a inglesa motejando.

– Não, Mrs. Trowshy. Este é outro: é rival do primeiro,
replicou a moça. Não viu que cumprimento lhe fez? Creio que
teremos duelo! É como há de acabar o romance!
E o riso que se escondera nas covinhas da face, quando se aproximara um estranho,
voltou de novo ao lábio da moça.

– Hop! hop! exclamou ela, desaparecendo em um tempo de galope.

III

A pouca distância, Fábio tendo apressado a marcha do animal,
ouviu uma voz sua conhecida que recordava à surdina um tema da Norma.

– Ainda estás por cá, Ricardo? disse ele. Parece que não
te lembras do almoço?
Ricardo, que estava embrulhando os lápis e fechando o álbum
para ir-se, ergueu a cabeça surpreso.

– Oh! E o piquenique?
– Ora! Não me fales! Os tais sujeitos fiaram-se uns nos outros, e afinal
querendo ser muito espertos ficaram todos logrados, e me lograram a mim. Apenas
percebi a coisa, mosquei-me a toda pressa para não perder o magro cafezinho
da tia.

– E vieste num galope desesperado? disse Ricardo passando a mão pelos
peitos do cavalo, umedecidos de suor, assim como o ventre.

– Qual? Isso é calor: o sol está muito quente e o “Galgo”
é tão fogoso! Sua por nada.

– Eu creio que tu ainda és mais fogoso que ele, Fábio! Disse
Ricardo ganhando o caminho na direção em que viera.

Fábio apeou-se, e atirando as rédeas ao pescoço do
“Galgo”, seguiu ao lado do amigo.

– Viste quem passou aqui?
– Uma moça? disse Ricardo sorrindo.

– Conheceste?
– Não.

– É a Guida!… A filha dos Soares.

– Soares… Um ricaço?
– Um milionário, um bezerro de ouro, uma espécie de Midas, que
tem o dom de transformar tudo em dinheiro.

– Começando pela própria consciência? observou Ricardo.

– Ah! Ele era capaz de vender-se aproveitando a alta, para comprar-se depois
na baixa, ganhando alguns contos de réis na operação.

– Já vejo que é uma grande cabeça em finanças.
É pena que não se aplicasse à política; seria
o criador de uma situação!
– Mas vem cá, Ricardo. No fim de contas hás de confessar que
isso de consciência é traste de pobre. Eu a comparo a uma mala
de couro, ou uma canastra de pau. Numa casa rica seria sumamente ridículo!…

– Queres então dizer…

– Entendo que ninguém pode enriquecer, deixando-se levar pelos conselhos
da tal velha rabugenta, que se agasta com a menor coisa e de tudo se aflige.

– Pois eu penso ao contrário que a consciência é indispensável
à riqueza, justamente para contê-la e coibir os seus excessos.
A pobreza tem para reprimir-se a própria fraqueza; mas a opulência,
servida pela justiça e até cortejada pela lei, carece de um
freio, a fim de não precipitar-se: esse freio é a consciência;
não há outro.

– Bela teoria!… A moral prática é muito diferente!
– Não decores com este nome a tolerância do abuso e a transação
cômoda que muita gente faz entre o seu interesse e o seu dever. A moral
prática não pode ser outra coisa, senão a virtude nos
atos da vida. Seriamente, me entristeço, Fábio, quando te vejo
defender o que no fundo de tua alma reprovas, estou bem certo!
– Foi um gracejo!
– O ouro é a pedra de toque da consciência; o prumo que lhe sonda
a profundidade. Creio que sou um homem honesto; mas não tenho a certeza
disso, porque ainda não me vi à prova, entre os escrúpulos
da probidade e os lucros certos de uma ação menos digna.

– Pois eu confio mais em ti, do que tu mesmo. Se por acaso o tal milionário,
o Soares, te oferecesse vinte contos de réis para comprometeres a causa
de alguns dos teus quatro clientes de meia cara, estou convencido que o repelirias
com indignação!
– Também creio, replicou Ricardo sorrindo. Entretanto tu sabes o que
vale esta soma para mim, para nós, Fábio.

– É verdade! Quando eu me lembro que para sermos felizes bastava-nos
o que esse Midas ganha enquanto dorme a sesta!
– Exageras também!
– Dizem que ele tem um rendimento anual de mais de duzentos contos, o que
dá vinte e cinco mil-réis por hora. Ora ele costuma dormir duas
horas, e três quando janta feijoada; portanto aí tens, cinqüenta
mil-réis, o que não ganharás, meu Ricardo, nem quando
fores ministro e senador.

– Estás bem servido!
– Hás de ser! Mas vê o que é este mundo. Viste o cavalo
do Cabo em que ia a Guida, um lindo isabel?
– É um bonito animal.

– Pois enquanto nós, dois cidadãos brasileiros, duas esperanças
da pátria, vamos almoçar o magro café com pão,
o tal fidalgo antes de sair a passeio já saboreou um pau de chocolate
fino.

– Chocolate? Ora, Fábio!
– Não é brincadeira; chocolate marquis! Ah! tu não conheces
a Guidinha. Um dia o tal cavalo do Cabo, que é delicado como um rapazinho
da moda, constipou-se aqui na Tijuca, numa manhã de chuva, e sobreveio-lhe
uma tosse. A menina entendeu que o seu querido isabel estava sofrendo do peito,
e que portanto devia tomar chocolate todas as manhãs.

– É luxo que o nosso “Galgo” não lhe inveja.

– Sim, mas o teu “Galgo” chegando à casa, se quiser enxugar
o corpo, há de rolar-se no chão: não tem como o fidalgo
a seu serviço um criado, melhor pago do que dois advogados do nosso
conhecimento. Esse criado, depois de enxugar-lhe o corpo, com uma toalha de
riço, veste-lhe uma camisa de brim de linho, mais fino do que o de
minha calça. Isto quando o isabel não transpira; porque nesse
caso vem uma garrafa de vinho para esfregar-lhe o pêlo: vinho generoso,
como nós só bebemos uma vez por outra, nalgum banquete.

– Admira-me que andes ao fato de tudo isto!
– Compreendes! Moça bonita e rica!…

– É uma celebridade, como a Lagrange ou a Ristori; pertence ao público,
que tem o direito de saber as particularidades de sua vida.

– Justamente; são os próprios amigos da casa que referem estas
coisas como prova da graça e espírito da moça. Queres
saber uma que me contaram há poucos dias?
– Dás tanta importância a esses caprichos?
– Rio-me; e acho uma fortuna quando os ricos nos divertem, e não nos
afligem como tantas vezes sucede. Mas ouve, que é engraçado.

– Conta.

– Foi com o doutor… Um dos primeiros médicos da corte… Esquece-me
agora o nome… o doutor…

– Não importa.

– Pois bem. Uma noite, seriam duas horas da madrugada, chovia a cântaros,
quando batem-lhe à porta. Era um chamado a toda a pressa para a casa
do Soares; a carta era instante; o carro estava à espera. O velho doutor
consultou todas as juntas do corpo para ver se não tinha algum travo
de reumatismo, que o desculpasse com o capitalista e a consciência.
Achando-se perfeitamente lépido, não teve remédio senão
erguer-se e partir.

– Fez sua obrigação.

– Sem dúvida. Chegando o doutor foi recebido pela Guida…

– A filha?
– Sim; a qual muito aflita comunicou-lhe que o incomodara àquela hora
da noite para ver Sofia, que estava muito mal, a decidir, de uma moléstia
do coração. O doutor conhecia melhor o dinheiro do que a família
do capitalista; não sabia pois de quem se tratava; pensou porém
que devia ser uma pessoa importante da casa. Acompanhou a moça a uma
alcova frouxamente iluminada por uma lamparina, onde havia um leito envolvido
em alvos cortinados de filó. O doente parecia uma criança; estendendo
a mão para tomar-lhe o pulso, sentiu o médico um pêlo
macio; aproximou a vela e então distinguiu perfeitamente uma cachorrinha,
deitada em travesseiros de cetim e coberta com uma colcha de damasco.

– Será exato isto?
– Asseguro-te que é. Faze idéia de como ficou o doutor, arrancado
à sua casa à uma hora da noite, e rebaixado do seu pedestal
de médico do que há de mais ilustre e elevado na corte, a médico
de cão. Se a graça fosse de qualquer outra pessoa, ele decerto
não a suportaria; mas era de uma moça bonita. O velho assentou
que o melhor meio de sair-se do caso era levá-lo em tom de galhofa…
“Ah! É sua maninha?” disse ele. Examinou com uma gravidade
cômica o doente, pediu papel e receitou neste gosto: “Récipe:
Uso interno: Maçada – 2 oit. Capricho de criança – 1 onça.
Misture e faça infusão para tomar às colheradas de hora
em hora. Uso externo: Gargalhada – 3 oitavas. Paciência – 1 libra. Faça
uma fomentação. Para a Srª. D. Sofia Soares. Dr. F.”
Entregou a receita à menina, e assegurou-lhe que D. Sofia se restabeleceria
brevemente.

– Era pachorrento o doutor.

– Que havia ele de fazer; dar a cavaco? Mas escuta o resto. É um
romance. A Guida mandou a receita à botica da casa. Podes bem avaliar
do como ficaria embaraçado o boticário para aviá-la:
nunca na sua vida tinha manipulado semelhantes drogas. Mas a menina fez-lhe
saber muito positivamente, que se não mandasse os remédios receitados
pelo médico perderia a freguesia. Nestes apertos passou-lhe o doutor
pela porta; contou-lhe o que sucedia; o velho desatou a rir. “Olhe; maçada,
é qualquer amargo. Capricho de menina, umas cócegas, como as
que produz o súlfur. Gargalhada, um pouco de muriato no pêlo
da cachorrinha, e verá que boas risadas ela dá. Paciência,
isso é um emoliente, farinha de linhaça.” O boticário
aproveitou a lembrança e aviou a receita. Se a Sofia tomou o remédio
não sei; mas ficou boa.

– Então é mais provável que não tomasse.

– Estou por isso. Tempos depois aparecendo o doutor em sua casa, a Guida
exigiu a conta da visita feita à Sofia. O velho, julgando-se autorizado
pelos sessenta anos e pelo gracejo da menina, disse-lhe que o preço
era um beijo. Nesse momento chegava à porta a mestra, uma inglesa gorducha
e míope.

– Naturalmente uma que vi passar…

– É a tal. A Guida corre a ela; inventa de repente uma história
da chegada imprevista do marido, uma alegre surpresa; e acaba mostrando-lhe
o vulto do doutor, que não entendia a conversa por ser em inglês.
A mestra precipita-se como uma bala de canhão, agarra-se ao pescoço
do velho, e cobre-o de uma chuva de beijos sonoros e cheios, verdadeiros beijos
de lei, pesando 24 quilates cada um.

– E o doutor?
– Quando se pôde desvencilhar dos braços e da boca da gorducha,
viu Guida que ria de sua triste figura: “Está vendo, doutor, como
eu pago generosamente as minhas dívidas. O senhor pedia um beijo, e
leva algumas dúzias deles”. O velho limpava a cara, enquanto a
inglesa esfregava os beiços como se lhes quisesse tirar a pele. Não
achas engraçada a anedota, Ricardo?
– Acho que essa moça tem pouco juízo.

– Juízo tem ela; mas é juízo de moça rica, muito
diferente do juízo de moça pobre. O velho Soares é uma
máquina de fazer dinheiro; vive no escritório. A mulher, esta
suporta a sua opulência como um cativeiro. Os outros filhos ainda estão
no colégio. Quem há de suar daquela riqueza e da posição
que ela dá senão Guida?
– Podia usar de uma maneira mais séria e mais útil.

– Não seria então uma criança de dezesseis anos?
– Mas é justamente por não ser uma criança que eu a censuro.
A travessura aos dezesseis anos é inocente; não tem a malícia
das comédias de mau gosto representadas por essa moça.

Fábio voltara-se cuidando ouvir um rumor. Os dois amigos conversando
ao lado um do outro tinham deixado a estrada e tomado um atalho que descia
pela encosta da montanha.

– No fim das contas, assim deve ser, acrescentou Ricardo. Ela é muito
bonita e muito rica; deve ter algum defeito; são os espinhos da rosa,
como diria um poeta, ou o azinhavre do ouro, como dirá naturalmente
o marido que lhe desfrutar o dote.

Conversavam os dois amigos de coração aberto, em voz clara,
como quem não se receia de ouvir o eco de seu pensamento; não
se lembrando que as folhas das árvores têm olhos, e as brisas
ouvidos sutis.

Expiravam as últimas palavras quando soaram distintamente no chão
batido do caminho, que lhes ficava sobranceiro, passos de animal. Erguendo
os lhos viram a linda amazona que passava lentamente de volta de seu passeio.

Não abaixou a cabeça nem voltou o rosto; mas um olhar cintilou
sob o véu espesso, como a luz de um relâmpago, e caiu sobre os
dois moços, apagando-se logo.

– Terá ouvido? perguntou Fábio rindo.

– É provável! disse Ricardo com indiferença.

– Nesse caso estamos comprometidos.

– Por que razão?
– Tinha uma idéia. O Soares está passando o verão aqui
na Tijuca. Sabes, assim no campo, tomam-se relações com muita
facilidade. Queria ver se nos apresentavam sua casa.

– Que lembrança! Havíamos de fazer uma bonita figura no meio
dessa gente que arrota ouro, nós dois pobretões!
– Talvez a riqueza pegue como a lepra!
– Pega; quando se tem mau sangue.

– Mas, fora de graça: é preciso fazermos relações,
adquirir amigos, do contrário nada alcançaremos.

– Não digo o contrário.

Continuando a conversa, chegaram os dois moços a um pequeno vale
escondido entre duas pontas da montanha. Um escasso ribeiro descia em cascata
rumorejando por entre as pedras, e serpejava à sombra das bananeiras.

No meio do vale havia uma pequena casa cercada por algumas fruteiras.

IV

Por entre duas linhas de cafezeiros aparecia a porta da casa; e em pé
na soleira, uma velhinha de cabelos brancos em carrapito, com vestido de chita
amarelo e um lenço vermelho de Alcobaça, cruzado ao peito.

Era D. Joaquina Sampaio, tia de Fábio e senhora de pequena propriedade.
Passava ela entre todos os parentes como rica, porque possuía esses
dois palmos de terra e uns três centavos. Com a sua rocinha, como ela
lhe chamava, ia vivendo, pobremente sim, mas tranqüila e feliz.

Tudo ali era velho: a casa, as árvores, a dona e os escravos. A mocidade
só brilhava no renovo das plantas e no semblante dos dois amigos, que
passavam habitualmente o domingo em companhia da velha.

– Vocês hoje não têm muita fome! disse D. Joaquina apenas
avistou os dois moços.

– Ao contrário, minha tia, tragos duas fomes em vez de uma, respondeu
Fábio.

– Pois não parece. Já o sol está entrando pela casa,
replicou a senhora mostrando a réstia no pavimento da sala.

– É tarde com efeito! disse Ricardo.

O moço levara maquinalmente a mão ao bolso do colete para
tirar o relógio; mas reprimiu o movimento involuntário, enquanto
um sorriso triste lhe fugia dos lábios. Tivera há dias necessidade
de pagar algumas dívidas impertinentes. Era preciso vender o cavalo
ou o relógio; preferiu desfazer-se deste último traste. Que
lhe importava saber com exatidão as horas, se elas não lhe traziam
nenhuma felicidade?

O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito
bem feito, três pães, um para cada pessoa, e excelentes bananas-maçãs.
Todos os domingos punha-se invariavelmente no meio da mesa uma grande manteigueira
de louça azul, como era o resto do aparelho. Fábio nos primeiros
tempos destampava sem cerimônia a manteigueira e empastava a fatia;
mas acabou-se a primeira porção e só restava a crosta
ligeira que fica aderente às paredes da louça. Ricardo fez-lhe
compreender que não deviam se tornar pesados à excelente senhora,
cuja hospitalidade era oferecida de tão bom coração.
Desde esse dia a tampa da manteigueira caiu como a lousa de um túmulo,
para não mais se abrir. Posta no meio da mesa ela não era mais
do que um símbolo ou um emblema; atestava a decência do almoço,
pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga.

No domingo em que estamos, D. Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes.
Havia quatro ovos quentes.

– Oh! exclamou Fábio alegremente. A Nanica brilhou desta vez.

– Estes sobraram de uma dúzia que estou guardando para tirar uma
ninhada.

– É verdade, minha tia. Havemos de fazer uma sociedade para ficarmos
ricos de repente. Conheço um americano que inventou uma máquina
de chocar ovos…

– Já sei; para tirar os pintos sem galinha.

– Ora! Isto não vale nada. A minha máquina é coisa
mais sublime; olhe, minha tia: mete-se um ovo, um ovo só. Três
dias depois abre-se a porta da máquina, e enche-se a capoeira de galos,
galinhas e frangos.

– Grandes?

– Pois então? Manda-se vender à cidade a primeira capoeira.
Mas como as galinhas antes de saírem da máquina puseram lá
os ovos, e estes já estão feitos galinhas, é um não
acabar!
A velha ria-se às gargalhadas das pilhérias do sobrinho; e assim
iam temperando o almoço com o sal da alegria e do prazer, que é
sem dúvida o melhor adubo.

A ligação íntima e sincera que havia entre os dois
moços era mais do que amizade, era uma afeição fraternal,
que o casamento de Fábio e Luisinha devia mais tarde consagrar. Pela
idade, como pela gravidade do caráter e superioridade de inteligência,
Ricardo exercia sobre o amigo a doce autoridade de um irmão mais velho:
a autoridade do exemplo e do conselho.

Estas relações tinham começado havia seis anos na cidade
de São Paulo, onde habitava Ricardo com sua família. No ano
em que o talentoso estudante ia concluir o seu curso e formar-se, Fábio,
muito mais moço, matriculou-se na faculdade. Apesar dessa circunstância
que os devera separar logo no princípio de seu conhecimento, a amizade
estreitou-se entre os dois. O meigo sorriso de Luisinha foi naturalmente o
fio dourado que teceu essa mútua afeição.

Havia três meses que Fábio se tinha formado. Para ele o prazer
que sempre desperta esse dia no coração do estudante, veio travado
de saudades. Sua pobreza não lhe permitia realizar o voto mais querido
de sua alma; tinha de separa-se de Luisinha, para recolher à corte,
ao seio da família. Ia trabalhar na esperança de adquirir uma
posição modesta, mas decente, para oferecer à companheira
de sua existência. Os dois corações sofreram com a ausência,
mas resignaram-se.

Ricardo de seu lado reconhecera que em São Paulo não poderia,
apesar de seu talento, obter os recursos indispensáveis para assegurar
o futuro da numerosa família que pesava sobre ele, depois da morte
de seu pai. Aproveitando a ocasião, veio com Fábio para a corte
tentar fortuna.

Estabeleceram-se ambos como advogados. Obtido o escritório, posto
o nome na porta e feitos os anúncios, esperaram pelos clientes. Nos
três meses decorridos conseguira Ricardo quatro causas gratuitas, que
por grande obséquio lhe arranjara um procurador. Apenas lá de
tempos a tempos, uma inquirição, ou algum requerimento, ia ajudando
a compensar as despesas.

Os dois amigos suportavam sua pobreza nobremente. Às vezes Fábio,
mais desabusado, sustentava umas idéias materialistas, como aquelas
que exprimira durante o passeio; mas Ricardo, que não transigia em
matéria de escrúpulo e honestidade, combatia tais aberrações
do espírito de seu amigo, e destruía a influência nociva
que o mal poderoso e laureado exerce sobre as almas cuja têmpera não
é bastante forte para resistir-lhe.

A semana passava-se na expectativa ilusória dos clientes que não
vinham, ou na meditação de um estudo obrigado e sem estímulos.
No sábado, os dois amigos tomavam a gôndola de Andaraí,
com o fim de aceitar de D. Joaquina uma hospitalidade oferecida com o maior
gosto e satisfação. Para a excelente senhora, enterrada viva
naquele retiro, a chegada de Fábio e seu companheiro era uma visita
do mundo àquela solidão, donde não saía senão
de ano em ano. O contato daquela mocidade a remoçava; ela escutava
com admiração a palavra inspirada do talentoso advogado, ou
ria das graças do sobrinho.

Ricardo possuía em São Paulo um cavalo, o “Galgo”,
ao qual muito se afeiçoara. Mudando-se para o Rio de Janeiro não
se animara a vendê-lo; trouxe-o consigo. Ignorava quanto é dispendioso
na corte o trato de um animal. Sem dúvida seria obrigado a separar-se
do “Galgo”, se Fábio não pedisse à tia para
conservá-lo na sua rocinha da Tijuca. Assim pouco se aproveitava o
dono do seu cavalo; porém obtinha conservá-lo, esperando melhores
tempos.

Os dois amigos partilhavam igualmente os serviços do cavalo, e o
“Galgo” parecia compreender essa comunidade, porque os considerava
a ambos como senhores, embora respeitasse mais a Ricardo.

No sábado, quando subiam a serra, um por seu turno montava o “Galgo”,
enquanto o outro ia a pé com a fresca, até que o cavalo tendo
chegado à casa, vinha-lhe ao encontro para poupar-lhe um resto de caminho.
Na segunda-feira pela manhã, voltando para a cidade, revezavam igualmente.

O domingo era repartido da mesma forma: um desfrutava o passeio da manhã,
o outro o da tarde. Se pois o “Galgo” descansava durante os quatro
dias da semana, nos outros fazia sofrível exercício.

Fábio, de gênio descuidado e folgazão, às vezes
abusava, fazendo proezas com o “Galgo”; mas Ricardo coibia as travessuras,
moderando o ardor do amigo. Disto nunca resultava menor desconfiança
entre ambos. Nessa boa e verdadeira amizade, um punha em comunhão o
sorriso, o outro o conselho; um era a alegria e a esperança, o outro
era a consolação e a fé.

Depois do almoço, enquanto a velha foi rezar, como de costume, Fábio
tomou a espingarda, Ricardo, sentando-se à janela, abriu o álbum
e entreteve-se a desenhar. Primeiramente coloriu a figura do pequeno arbusto,
parte de memória, e parte à vista do galho que tinha quebrado.

Enquanto se ocupava com esse trabalho, a mente repassava as recordações
da cena recente e da posição em que o surpreendera a moça
a cavalo; com estas lembranças vinham de envolta as saudade das pessoas
a quem amava, e de quem se achava ausente. Quando as veria para contar-lhes
todos esses pequenos incidentes de sua vida, para referir-lhes essa longa
história de uma esperança tão ansiada!
Como não se haviam de rir aqueles entes por quem se estremecia, quando
soubesses dos beijos ardentes que ele dera na florinha agreste, e da risada
desdenhosa que de repente o chamara à realidade!
Passou-lhe pela idéia traçar o quadro de Guida como ele vira.
Sua família teria curiosidade de conhecer essa moça de que Fábio
naturalmente havia de contar as travessuras. Insensivelmente o lápis
começou a traçar no papel o primeiro e leve esboço do
quadro que lhe ficara gravado no espírito plástico.

Ricardo nunca aprendera desenho com mestres de arte. Sentira em si a intuição
da forma, e cultivara essa disposição natural, guiado pelas
próprias observações. Não teve necessidade de
que lhe ensinassem as regras da perspectiva, pois as tinha diante dos olhos
nas paisagens que se desdobravam pelas lindas várzeas de São
Paulo.

Deus criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a
pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem da palavra,
a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração,
como à inteligência.

Ricardo era um poeta da forma; ele fazia versos com as cores. Suas impressões,
debuxava-as sobre o papel em imagens, retratadas ao vivo. Copiava-as da memória,
onde ficavam estampadas como em uma lâmina fotográfica; depois
a imaginação bordava a lápis com essas recordações
algum soneto ou alguma ode, corretos no desenho, brilhantes no colorido.

Os contornos gerais do quadro já estavam delineados; via-se em traço
quase desvanecido a moldura da folhagem entrançada de grinaldas amarelas,
a estampa do soberbo cavalo isabel, e o lindo perfil da amazona cujo véu
se enrolava ao sopro da brisa.

Sentindo que Fábio se aproximava, Ricardo voltou a página
do álbum e disfarçou esboçando figuras grotescas em uma
folha solta. Se o amigo visse o quadro, adivinharia quem era a moça;
seria necessário referir a cena dos beijos. Ora, Ricardo tinha vexame
de contar essa infantilidade de seu coração; e sobretudo a Fábio,
que ele considerava como um irmão mais moço. À sua mãe
não duvidaria contar, em um momento de ternura, e depois de decorrido
algum tempo. Um coração de mulher compreende certas delicadezas,
que parecem ridículas ao espírito de um homem; ainda mais quando
esse homem é um moço de gênio prazenteiro, como era Fábio.

O resto do dia passou como de costume, repartido entre a conversa, a leitura,
o banho, o jantar, e o jogo da paixão de D. Joaquina, a bisca cega.

À tarde, Ricardo, a quem tocou a vez, arreou o “Galgo”
e foi dar um passeio, enquanto Fábio saía a pé sem destino,
em busca de alguma companhia para passar a noite.

Seriam 6 ½ horas da tarde. Apenas um doce reflexo de ouro tingia
o cume das mais altas montanhas. A suavidade do crepúsculo derramava-se
na atmosfera. É encantador esse adeus do dia quando se despede da formosa
serraria da Tijuca. O céu, despindo o fulgor da luz, mostra a limpidez
e transparência do puro azul, seio infindo onde a alma se embebe, como
o filho no colo materno.

Ricardo vinha entregue ao enlevo da contemplação da tarde,
quando ao dobrar uma volta do caminho achou-se diante de um rancho de moças,
que andavam passeando. Entre todas distinguia-se, pelo talhe esbelto e gracioso,
uma, vestida de seda escocesa, desde a botina até as fitas do cabelo.

Diante dela corria, saltando e latindo, uma cachorrinha felpuda, muito alva,
com brincos de ouro e uma coleira de veludo; mas apenas percebeu o cavaleiro,
atirou-se ao “Galgo” para mordê-lo no jarrete.

Ricardo, tendo reconhecido a Guida, supôs que a cachorrinha era a
mesma da história contada por Fábio, a Sofia. Mais aborrecido
ficou ainda com o impertinente animal, que investia furioso contra as pernas
do cavalo.

A situação nada tinha de agradável; o caminho era estreito;
de um lado o despenhadeiro, do outro a montanha cortada a pique. O “Galgo”,
fogoso e irritado com a insultante ameaça do cão, encrespava-se,
lançando fogo pelas narinas. Ricardo, excelente cavaleiro, conseguiu
dominar o primeiro ímpeto, e tocando no chapéu, disse para as
moças que se tinham posto ao abrigo subindo a ribanceira da montanha:
– Acho bom chamar o cãozinho!
A Guida deu um estalo com os dedos:
– Cá, Sofia.

– Deixe! disseram as outras rindo.

Pensavam que Ricardo tinha medo do cavalo, e queriam divertir-se com a queda.
Não se lembravam, que naquele lugar, à borda de um despenhadeiro,
podia ser fatal.

Sofia ouvira a voz da senhora; mas, com o seu privilégio de cão
mimoso desobedeceu; e investiu contra o “Galgo” com maior sanha.
Ela estava acostumada àquele brinquedo; já tinha mordido o jarrete
de muitos cavalos, atirando ao chão os cavaleiros, para divertimento
da senhora e suas amigas.

Ricardo vendo a inutilidade de sua recomendação, deu largas
à cólera do “Galgo”. O brioso cavalo juntou, e atirando-se
para a frente de um salto, arremessou o coice. A cachorrinha foi cair no fundo
do precipício, sem tempo sequer de soltar um gemido de dor.

– Sem dúvida morreu! disse uma das moças.

Passando pelas senhoras, Ricardo cortejou:
– Queiram desculpar, minhas senhoras; este cavalo é um provinciano;
ainda não tem maneiras cortesãs.

À noite, antes de dormir, Fábio dava risadas gostosas ouvindo
o episódio do passeio.

V

Decorreu mais de um mês.

Durante esse tempo Ricardo passou com seu amigo três domingos na Tijuca.
De cada vez o acaso o fizera encontrar a Guida quando mal pensava.

A primeira vez foi na manhã do domingo que seguiu-se às cenas
referidas.

Ricardo saíra no “Galgo” a passeio. Tomando para o lado
da cascatinha, que as chuvas dos últimos dias tinham enriquecido, lembrou-se
o moço de subir até a Floresta, um dos mais lindos sítios
da Tijuca. O nome pomposo do lugar não é por ora mais do que
uma promessa; quando porém crescerem as mudas de árvores de
lei, que a paciência e inteligente esforço do engenheiro Archer
têm alinhado aos milhares pelas encostas, uma selva frondosa cobrirá
o largo dorso da montanha, onde nascem os ricos mananciais.

Viva a imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos, trabalho
e dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela cobiça
de um lucro insignificante! Aquelas encostas secas e nuas, que uma plantação
laboriosa vai cobrindo de plantas emprestadas, se vestiam outrora de matas
virgens, de árvores seculares, cujos esqueletos carcomidos às
vezes se encontram ainda escondidos nalguma profunda grota. Veio o homem civilizado
e abateu os troncos gigantes para fazer carvão; agora, que precisa
da sombra para obter água, arroja-se a inventar uma selva, como se
fosse um palácio. Ontem carvoeiro, hoje aguadeiro; mas sempre a mesma
formiga, abandonando a casa velha para empregar sua atividade em construir
a nova.

Ricardo pensava pouco mais ou menos nesse sentido, enquanto ganhava a ponte
da Cascatinha, com intenção de subir até a Floresta.
Mas essas preocupações se desvaneceram completamente diante
do quadro arrebatador que se oferecera a seus olhos.

Brancos lençóis de espuma se desdobravam pelas escarpas do
rochedo, como as pregas de alvo manto flutuando sobre as espáduas de
Agar, a africana. A vegetação se debruçando de um e outro
lado, derrama sobre a cachoeira uma sombra doce, que torna mais negra a pedra
e mais cândida a espuma.

Há cascatas muito mais ricas e abundantes do que essa, não
só na grande massa das águas, como na vastidão e aspereza
dos penhascos. Têm, sem dúvida aspecto mais soberbo e majestoso;
inspiram n’alma pensamentos mais graves e sublimes.

A Cascatinha da Tijuca, porém, prima pela graça; não
é esplêndida, é mimosa; em vez da pompa selvagem respira
uma certa gentileza de moça elegante; bem se vê que não
é uma filha do deserto; está a duas horas da corte, recebe freqüentemente
diplomatas, estrangeiros ilustres e a melhor sociedade do Rio de Janeiro.

Assim não se despenha ela com a fúria de uma serpente, mas
com a indolência com que uma senhora da moda se derreia no recosto do
divã.

Sua voz não é um trovão, mas um rumorejo que embala
docemente o coração. Perto dela sente-se no ar o hálito
fresco das águas que se esfrolam, e não a constante neblina
produzida pelos borbotões que se desfazem em pó com a violência
do choque.

O jovem advogado tinha contemplado muitas vezes a Cascatinha, e até
já possuía em seu álbum uma aquarela da formosa paisagem;
mas nunca a vira tão abundante d’água, tão enfeitada
e casquilha. Projetou voltar a pé, depois do almoço, para tirar
outra vista. Assim teria a Cascatinha em traje de festa e em desalinho.

Uma voz soou a pouca distância:
– Oh! beautiful! Very beautiful!
Ricardo estava no centro da ponte, com o cavalo atravessado, para ver de frente
a Cascatinha. Conhecendo que outras pessoas se aproximavam fez voltar o animal
para dar-lhes passagem. Este movimento colocou-o em face de Guida, que chegava.

A moça tinha o mesmo traje de amazona que no domingo passado; mas
em vez de serem de camurça amarela as luvas eram de peau de Suède
cor de castanha e o chapéu de palha arroz com um véu branco.
Salvas essas ligeiras modificações do vestuário, que
naturalmente escaparam aos olhos do moço, era a cópia viva do
quadro, que lhe aparecera à borda do caminho, oito dias antes. A moldura
sim, era diferente; os florões dourados dos corimbos da aroeira foram
substituídos pela negra e musgosa cercadura do rochedo.

Os olhos de Guida e Ricardo se encontraram.

Reconhecendo-a, o moço envolveu-a com o olhar, um desses olhares
ardentes e profundos, que embebem em si os objetos, como um molde, para depois
vazá-los dentro d’alma. Olhar de poeta ou de artista, que esculpe na
memória estátuas, os relevos e arabescos da natureza; donde
os copia depois a imaginação em poemas, em harmonias, em raios
de luz. Esse olhar tem alguma coisa do cinzel que talha, e da lava ardente
que se coalha e vitrifica sobre os objetos.

Guida, que trazia nos lábios o sorriso gracioso, perturbou-se, e
desviou a vista corando. Pareceu-lhe descobrir naquela expressão estranha
do olhar de Ricardo uma exprobração pela cena do domingo anterior.

Conhecendo que tinha vexado a moça, Ricardo arrependeu-se do seu
movimento de curiosidade artística. Da última vez que estivera
na Tijuca desenhara de memória a cena do seu primeiro encontro com
Guida; julgou porém impossível dar à figura da moça
os traços da fisionomia encantadora, que ele apenas vira tão
de relance. Oferecendo-se essa ocasião de ver Guida de mais perto e
demoradamente, quis decorar-lhe as feições.

A delicadeza d’alma do advogado compreendera o acanhamento da moça,
embora o atribuísse a causa diferente. Por isso cuidou em afastar-se
dali. Fazendo o “Galgo” voltar sobre os pés, cortejou de
longe e subiu na direção da Floresta.

Durante esta rápida cena, Mrs. Trowshy, enlevada diante da cascata,
não cessava de expandir a sua admiração em exclamações
patéticas, semelhantes às que lhe ouvimos em princípio.
A poética imaginação da inglesa quis infundir um raio
do seu entusiasmo no companheiro, o nosso conhecido Sr. Daniel; mas perdeu
seu tempo: o português era feito de músculo e osso; por conseguinte
impenetrável à poesia, como um capote de borracha é impenetrável
á água.

Foi no momento de afastar-se, que a inglesa reparou no moço:
– Este não é o sujeito que ia matando Sofia? perguntou em inglês.

– Creio que é!
– Que monstro! exclamou Mrs. Trowshy, com o horror que lhe inspiraria um tigre.

– Ele não teve culpa. Depois é que vi; podia o cavalo atirar-se
no despenhadeiro.

– Era bem feito; para que anda em um cavalo tão fogoso?
– Mas é muito bonito! Não acha, Mrs. Trowshy?
– Oh! Não tem comparação com “Edgard”!
– “Edgard” é um cavalo de preço, um cavalo de raça;
tem a estampa mais vistosa e elegante; porém acho o outro mais bonito!
Olhe a graça dos movimentos. Como é vivo e faceiro! Como brinca!
Está-se vendo a alegria nos seus olhos, e no garbo com que move o pescoço.

Guida falava seguindo com o olhar o “Galgo” que subia o primeiro
lanço da escada.

– Se não possuísse esse lindo isabel, havia de achá-lo
magnífico!
– Ora, Mrs. Trowshy! Não é por isso. Acho “Edgard”
esplêndido, incomparável: tudo que a senhora quiser; mas não
gosto desta frieza; um cavalo que não sabe brincar, sempre grave e
empertigado como um ministro em audiência.

– Dobrando o segundo lanço da estrada em ziguezague, viu Ricardo
que a moça tomava a mesma direção; naturalmente ia como
ele até a Floresta, ou mais acima ao pico da montanha que tem a forma
e o nome de Bico do Papagaio.

Essa coincidência incomodou o jovem advogado. Por quê? Se tivesse
de explicar, naturalmente não lhe acudiria a razão e por uma
circunstância muito simples, porque não existia. Com efeito não
fora um motivo distinto, suscetível de apreciação, o
que atuara em seu espírito; porém unicamente certas repugnâncias
que às vezes despertam em nosso espírito a respeito de um fato.
É uma espécie de antipatia.

A possibilidade de sucessivos encontros, a facilidade de se verem de longe,
subindo os lanços da estrada em ziguezague e, finalmente, essa comunidade
de passeio, embora fortuita, todas essas circunstâncias confusas, indistintas,
calaram no ânimo de Ricardo uma súbita contrariedade. Refletiu
que a Floresta era distante, e, a não ir de corrida, chegaria tarde
para o almoço; ora, passear, para ele, não era correr e sim
contemplar.

O resultado dessas reflexões foi apear-se o advogado e puxar o cavalo
para uma vereda que vai ter ao cimo da cascata. Aí oculto pela folhagem
ouviu o tropel dos animais que passavam. Quando presumiu que já estivessem
bem longe, tornou a cavalgar, e descendo o caminho da Cascatinha, foi acabar
o seu passeio interrompido na bela estrada que vai ter ao Jardim Botânico.

Fábio esperava-o para o almoço, deitado em uma esteira no
terreiro da casinha, enquanto D. Joaquina andava apanhando umas goiabas maduras
para a merenda. O praticante de advocacia tinha brilhado naquele dia: empregando
a manhã na caça de passarinhos, trouxera uma dúzia de
rolas, que chiavam no espeto, trescalando perfumes estranhos naqueles lares
acostumados às refeições frugais.

O outro encontro fora no mesmo lugar da primeira cena.

Subia Ricardo a pé, e tomara involuntariamente, pela força
do hábito, o caminho que seguira da vez passada. Chegando ao ponto
onde estivera desenhando sobre a grama, procurou o arbusto, que ainda estava
coberto dos seus botões de ouro; apenas duas flores desabrochadas brilhavam
sobre o ramo verde-escuro.

Notou o moço que junto à planta estava o chão pisado
por casco de cavalo; mas não deu grande atenção a essa
circunstância, tão vulgar em um sítio onde freqüentemente
andam animais soltos.

Abriu o álbum na página em que desenhara a cena do primeiro
encontro da moça; e cotejando-a com o sítio, corrigiu alguns
traços do arvoredo, não porque lhes prejudicassem a beleza do
quadro, mas por um capricho de artista. A paisagem era uma cópia e
não uma fantasia; queria que fosse o mais exata possível.

Tinha concluído esse trabalho e estava examinando os botões
de ouro e as flores abertas, quando repercutiu o tropel de uma cavalgata.
Eram com efeito diversas pessoas, senhoras e homens, que iam de passeio, rindo
e conversando.

Fitando os olhos no caminho, Ricardo viu a Guida, que também o percebera.
Ou fosse espanto de “Edgard”, ou descuido da gentil amazona no governo
das rédeas, ou qualquer outra circunstância, o lindo isabel ao
passar em frente ao moço tinha-se desviado do caminho, penetrando no
mato, com direção ao arbusto.

Descobrindo porém o moço, Guida com sua habitual destreza
corrigiu o desvio do cavalo, e fustigando-o com um movimento de contrariedade,
ganhou a frente da cavalgata, que desapareceu num turbilhão de poeira.

– E a flor, Guida? perguntou uma das moças.

– Não achei!
Ricardo compreendeu então o movimento da elegante amazona e a circunstância
que a princípio notara de rastos de cavalo junto ao arbusto; a ferradura
inglesa fina e um tanto oval estava denunciando a pata aristocrática
de “Edgard”.

Pensou que a filha do milionário também gostava da linda flor
agreste. E quem não se agradaria daqueles aljôfares graciosos?
Para ela sobretudo deviam ser de um encanto especial; não tinham a
cor do ouro, essa cor sedutora que a natureza destinou para o sol e o dinheiro,
os dois clarões que deslumbram, um a vista, outro a alma?
Naturalmente a moça já conhecia a flor antes do primeiro encontro;
passando procurava-a com os olhos, quando o descobriu, a ele Ricardo, na posição
ridícula de um namorado de novela antiga, beijando o cravo que lhe
atirou da janela a dama dos seus pensamentos.

Agora a Guida encaminhara o cavalo para o arbusto a fim de colher um ramo;
mas avistando o importuno passeador, desistiu, disparando a galope.

– Esta moça, disse Ricardo rindo-se interiormente, há de me
considerar como uma espécie de borboleta preta!
Depois do almoço, estando o sol muito quente, Fábio deitou-se
a ler no quarto, e Ricardo, tomando a sua caixa de tintas, foi trabalhar junto
à janela. Continuou a colorir o quadro que representava a Guida, e
cujos traços ele havia corrigido pela manhã. As feições
da moça, se não eram de uma semelhança perfeita, recordavam
sem dúvida a gentileza de sua fisionomia.

Seriam onze horas do dia; fazia uma calma abrasadora. D. Joaquina e as pretas
estavam recolhidas lá para o interior; Fábio, contra o seu costume,
lia tão placidamente que causava suspeitas. Tido na casa estava em
silêncio. Fora, o “Galgo” tosava uns tufos de capim melado;
e a Nanica ciscava no terreiro em companhia de um galo e de um pinto.

A janela junto da qual trabalhava Ricardo, era de tacaniça, onde
havia sombra; daí não se enxergava a frente da casa, nem a rua
de cafezeiros e abacates que ia dar à cancela da estrada; por isso
não pôde ele ver um grupo de cavaleiros que, parados no caminho,
espiavam para descobrir alguma pessoa da casa.

Afinal avistaram uma das pretas velhas que saíra a apanhar gravetos
para o fogo.

– Vem cá, mãe; você nos dá um pouco d’água?
disse um dos cavaleiros.

– Sim, meu senhor; pode entrar, respondeu a preta velha abrindo a cancela.

Os cavaleiros invadiram a propriedade de D. Joaquina; a maior parte porém
ficou à sombra das árvores; apenas alguns mais impacientes se
aproximaram da porta, a fim de esperar a água. Essa impaciência
não era produzida tanto pela sede que eles tinham, como pelo desejo
de cada um ser o primeiro a servir uma linda amazona, que esperava à
sombra de uma laranjeira.

– Duvido que a tal velha tenha água bastante para matar a sede de
tanta gente! observou um cavaleiro.

– Felizmente o rio passa perto.

– O melhor é irmos logo a ele; que dizes, Guimarães?
– Que espécie de copo nos trará a preta? Aposto que alguma xícara!
– Água em xícara!
– Senhores, esta casa está bem boa para uma fogueira de S. João.
Não acham?
– É mais velha que a Tijuca.

– Quem morará aqui?
– Alguma velha caraça do século passado.

– Segundo tomo da sujeita dos cambucás!
Estes ditos mais ou menos chistosos, entremeados de risos, eram proferidos
com intenção de divertir a gentil amazona. Mas esta, inteiramente
distraída, estivera olhando com atenção o “Galgo”
que se aproximara da cerca do pasto, apenas percebera a chegada dos outros
animais; depois examinara a casa com uma expressão de surpresa desagradável.

O cavalo, sentindo as rédeas frouxas, andara alguns passos, o que
o aproximara do canto da casa. Os olhos da moça caíram sobre
a janela, junto à qual Ricardo estivera trabalhando. O álbum
aberto ficara encostado à ombreira onde o desenhista o pusera para
secar as tintas, antes de dar-lhe os últimos toques. Não aparecia
o busto do moço; ao rumor das vozes na porta tinha-se ele voltado,
e procurava distinguir a fala das pessoas.

O primeiro movimento da menina foi recuar o cavalo; porém seu olhar
tinha descoberto na página aberta do álbum a paisagem recentemente
pintada. Ela teve um pressentimento; e correu a vista rápida por seu
talhe, verificando a semelhança que do primeiro relance se lhe afigurava.

Era o mesmo roupão verde-escuro, o gracioso chapéu de castor
cor de pérola, e as luvas de camurça amarela. A estampa de “Edgard”
completava a sua figura de amazona.

Nesse momento Ricardo, erguendo-se, descobriu o vulto da moça; ela
corou reconhecendo a sua indiscrição; mas não obstante,
um olhar afouto interrogou o semblante do advogado, fitando-se alternadamente
nele ou na paisagem
Ricardo cortejara polidamente a moça, mas com esse movimento chegou-se
quanto pôde à janela, e disfarçadamente ocultou o álbum.

– Estamos esperando a água que foram buscar! disse a voz maviosa
de Guida, como uma desculpa, ou um pretexto para sair da situação
em que o acaso a colocara.

– Ah! com muito prazer.

Voltando o álbum com o movimento que lhe imprimira furtivamente o
braço, Ricardo colocou-o fechado sobre a mesa e recolheu-se ao interior
para mandar trazer a água. Tudo isto foi executado de modo que se observaram
as delicadezas devidas a uma senhora.

Guida, apesar da curiosidade imensa que tinha de ver a aquarela, se afastara
modestamente.

Molhou os lábios no copo d’água que lhe apresentou um dos
cavaleiros; e lançando um último olhar à velha casa e
às velhas árvores que a rodeavam, partiu a todo galope. Debalde
os companheiros de passeio se esforçaram por alcançá-la.

No domingo seguinte, voltando Ricardo da “Vista Chinesa”, soltara
as rédeas ao “Galgo” que esticava os músculos em um
galope ligeiro.

De repente o animal retraiu as orelhas finas e vivas; tinha ouvido o tropel
de outro animal, que vinha atrás a alguma distância, e também
de galope. Pouco depois a estampa elegante de “Edgard” alongou-se
pelo lado direito, e a Guida passou rapidamente voltando-se para ver se o
cavaleiro a seguia.

O “Galgo” aceitando o desafio que “Edgard” lhe tinha
lançado na passagem, juntara para arrojar-se avante como uma flecha;
mas a mão firme do cavaleiro o sofreara, privando-o do prazer de dar
uma lição ao fidalgo.

Era a quinta vez que Ricardo inesperadamente, por uma singular combinação
do acaso, encontrava aquela moça. A Tijuca não é muito
extensa em verdade; mas oferece vários passeios e tem caminhos desencontrados.
Entretanto, em direções opostas, em horas diferentes, com intervalos
desiguais, uma coincidência estranha aproximava os dois desconhecidos.

– Se eu fosse algum dos muitos apaixonados que há de ter esta moça,
dizia Ricardo consigo e continuando o seu passeio, havia de empregar os maiores
esforços para preparar estes encontros casuais; andaria de relógio
na mão, espiando a hora em que ela costuma sair de casa, estudando
o programa habitual de suas excursões, a direção que
toma freqüentemente. E apesar de tudo isto, e das boas corridas que daria
a cavalo, muitas vezes havia de perder o meu tempo e a minha paciência.
Entretanto eu, que já não possuo relógio, que tenho apenas
uma metade de cavalo, que saio de casa sem me lembrar de semelhante moça,
não venho mais à Tijuca um só dia, que não a encontre
uma e duas vezes. Caprichos da fortuna!
O moço conjeturou que a mestra e o criado, comitiva habitual da filha
do milionário, tinham ficado atrás, e talvez a grande distância.
A Guida naturalmente seria obrigada a esperá-los; e portanto teria
ele um segundo encontro.

– Nada! pensou ele; e parou à sombra de uma árvore.

Mas a inglesa e o seu companheiro não apareciam; os minutos corriam;
e Ricardo, surpreso, não sabia o que pensar, repugnando-lhe admitir
a possibilidade de andar a moça sozinha por aqueles sítios desertos.
Teria decorrido um quarto de hora quando ressoou do lado oposto o galope do
cavalo.

– Querem ver que é ela que volta? Não há dúvida!
Era Guida com efeito; tendo passado o cavaleiro, estimulada pelo prazer vivo
da equitação, arrependeu-se de haver deixado tão distantes
os seus companheiros. Resolveu esperá-los. Naturalmente o moço
não tardaria a passar; aquele encontro, num ermo, a incomodava; mas
ela já o conhecia como um homem delicado; demais a mestra não
podia estar longe.

A demora inquietou-a. Temeu que alguma coisa houvesse sucedido a Mrs. Trowshy,
e que então se achasse realmente só naquela solidão.
Já não era de Ricardo que se receava, mas do isolamento.

Por isso retrocedia de corrida a caminho percorrido.

Ricardo, apenas se persuadiu que era com efeito a moça, disparou
a galope na direção da “Vista Chinesa”, a ver se escapava
a novo encontro. Chegando à “Mesa”, viu Mrs. Trowshy sentada
ao lado do Sr. Daniel conversando com o maior sossego.

O advogado passou como um raio, o que fez a inglesa fingir um desmaio, imaginando
algum jovem salteador que a vinha raptar. O Sr. Daniel assegurou-lhe que os
salteadores da Tijuca, chamados quilombolas, furtavam bananas, galinhas e
outras coisas leves, mas não inglesas que pesassem dez quintais portugueses.

Nesse dia Ricardo chegou tarde para o almoço; mas livrou-se de segundo
encontro.

VI

Do lado que olha para o mar, a Serra da Tijuca apresenta um aspecto muito
diferente. As encostas que descem para o Andaraí, como os vales e eminências
que se encontram pelo dorso da montanha, têm a fisionomia risonha e
pitoresca; são ondulações amenas ou recortes caprichosos,
que deleitam a vista.

Na outra face, a natureza é agreste; dir-se-ia uma terra convulsa.
O fogo subterrâneo ferveu nas entranhas da terra, e rasgando-lhe os
flancos, arremessou aqui e ali pelas encostas aqueles enormes calhaus ou maciços
de rocha, fragmentos da primeira carcaça do globo.

A superfície da terra conserva ainda um aspecto combusto e árido;
vê-se que por aí passou a lava em tempos remotos. De espaço
a espaço o trabalho do homem cobriu a encosta da montanha de plantações;
mas entre esses pontos cultivados destaca-se ainda mais a bronca aspereza
dos sítios agrestes.

No domingo em que estamos, Ricardo dirigiu o seu passeio a pé para
aquelas bandas. Já tinha algumas vezes feito essa excursão até
a “Cascata Grande”, um dos pontos mais freqüentados pelas pessoas
que passam o verão na Tijuca; naquele dia porém tencionava ir
mais longe, até a habitação de uma pobre gente, conhecida
de D. Joaquina, e às vezes por ela socorrida em suas misérias.
O saquinho da boa velha, apesar de escasso, tinha sempre uns vinténs
para as esmolas do sábado.

Justamente na véspera, D. Joaquina recebera por intermédio
de algum quitandeiro um recado da pobre gente e exprimira a intenção
de mandar-lhe qualquer pequeno socorro, como costumava. O advogado lembrou-se
disso, quis dar a seu passeio um fim caritativo; tinha na véspera recebido
dez mil-réis, como honorário por um requerimento. Estava rico;
podia pois aliviar dessa vez o saquinho de D. Joaquina daquela despesa.

Com este pensamento tomou às seis horas da manhã o caminho
da Barra.

Aí, próximo à Restinga, havia então, e talvez
ainda exista, uma cabana coberta de palha de sapé, com paredes de emboço.
Em muitos lugares porém tinha caído o barro, deixando entre
as varas grandes buracos, tapados com ramas secas.

Esta choça miserável ficava a algumas braças do caminho.
Para chegar à porta, Ricardo tomou uma vereda que rodeava uma quebrada
de terreno. Estendida em varas via-se a enxugar alguma roupa de chita e algodão,
muito bem lavada, mas aberta em crivo de tão gasta e rasgada que já
estava. Sobre o capim do terreiro estava emborcada alguma pouca louça
branca de beira azul, uma panela, uma frigideira e uma colher de pau.

Esse terreiro era, não chovendo, a lavanderia, a copa, a cozinha
e a sala da pobre gente. A choça tinha apenas um compartimento, onde
se acomodavam Simão, a mulher, e três crianças.

Esse homem sustentava sua família com o produto da pescaria e de
uma pequena plantação de bananas; assim iam vivendo pobremente,
mas sem grandes privações, quando de repente tudo começou
a desandar. O peixe fugia da tarrafa do pobre Simão; as bananeiras
começaram a mirrar; e até os ovos da galinha goravam ao menor
ronco da trovoada.

O pescador era homem ativo, incansável no trabalho, porém
caráter débil, que desanimava com os reveses. As contínuas
decepções o acabrunharam; caiu em uma prostração
moral, muito mais perigosa do que a enfermidade do corpo. Convenceu-se de
que o seu infortúnio era um castigo do céu por algum pecado
que cometera; e resignou-se a sofrer sem lutar.

– Não se resiste a Deus, mulher! dissera ele.

A Gertrudes porém atribuía a desgraça ao quebranto
que algum invejoso deitara à sua casa. Ela se lembrava que um dia passara
por ali e pedira água um inglês muito magro, sem dúvida
chupado pelas almas do outro mundo. Desde esse dia tudo andava às avessas,
dizia a mulher; porque o sujeito saindo zangado com o pequeno que o chamara
de gooden, deitara à casa uma figa.

Entrando na choupana, viu Ricardo o Simão deitado em uma esteira
sobre a cama de varas da altura de um palmo apenas. A magreza extrema, a atonia
e lividez do semblante, estavam indicando uma moléstia grave. A mulher,
sentada defronte em um toco de pau, cismava na sua vida enquanto descansava
um momento da lida de cada dia. Era ela quem valia agora à desgraçada
família com seu trabalho e sua diligência.

– Então que é isto? disse o moço correndo os olhos
do marido à mulher.

– O Simão anda bem doente!
– Que tem?
– Nada, nada, meu senhor. Isto vai assim mesmo até acabar de uma vez.

A mulher levantou os ombros:
– Ninguém lhe tira aquilo da cabeça.

– Mas o que sente? perguntou Ricardo ao doente.

– Eu sei!
– É assim uma fraqueza, que já nem se pode levantar, respondeu
a mulher. Há uma semana que está aí, nessa cama, que
nem ata, nem desata.

– Não tem tomado remédio?
– Que há de tomar, meu senhor?
Ricardo achou-se embaraçado na resposta; nada absolutamente entendia
de medicina, ciência aliás em que todos arranham seu tanto. Tirando
da carteira uma nota de dois mil-réis, pô-la na mão da
mulher do pescador.

– É D. Joaquina que lhe manda!
– Deus lhe há de pagar a ela as esmolas que nos tem feito, disse a
Gertrudes.

– E como vão agora? Têm sido mais felizes?
– Qual, meu senhor! O quebranto não nos deixa. A pescaria… não
se fala; depois que Simão caiu de cama, ainda eu fui deitar a rede
com o pequeno; mas é à toa! As bananeiras enfezaram de uma vez.
Se não fossem uns pintos… Que para bem dizer não foram os
pintos, mas a cachorrinha. Se não fosse isso, a gente já estava
morta de fome.

– Então sucedeu-lhe alguma coisa boa? Sinal de que a fortuna está
voltando.

– Foi boa e foi má; porém no final de contas saiu pelo melhor.
Imagine o senhor que a muito custo eu tirei uma ninhada de pintos, que estavam-se
criando muito espertinhos. Sempre eram uns cobrinhos… Mas um dia apareceu
aqui uma moça a cavalo, bem vestida, com uma velha gorda e mais um
português que é um espirro de gato. Eles já tinham passado
na véspera e estiveram falando com o pequeno. Então salta do
colo da moça uma cachorrinha, e vai-se aos pintos e mata a todos, um
por um.

– Uma cachorrinha branca felpuda, que tem brincos de ouro?
– Isso mesmo. O senhor conhece? É muito bonitinha; mas também
nunca vi uma demoninha assim.

– Então matou-lhe os pintos?
– Um por um. E a moça ria que era um gosto, dando estalinhos nos dedos;
mas depois que a cachorrinha acabou de matar os pintos, então a senhora
ficou muito zangada e ralhou bastante com ela. Disse que tinha pena do que
sucedera, e mandou entregar a Simão um dinheiro para pagar os pintos.
Foi dinheiro que chegou para a gente viver até agora.

– E depois? A moça?
– Esteve atirando no capim umas moedinhas de prata; a cachorrinha de aposta
com os pequenos corria para apanhar: aquele que achasse ganhava. Uma vez o
Pedrinho quis tomar da cachorrinha; mas ela ia mordendo-o na mão. Se
não fosse a moça que acudiu tão depressa com o chicotinho!
Enquanto Ricardo conversava com a Gertrudes, e o Simão ouvia mergulhado
no mesmo torpor, dois meninos e uma menina, acocorados a um canto, cochichavam
entre si. A penúria tinha apagado naquelas crianças a vivacidade
natural da infância. Havia no seu gesto e semblante um espasmo de tristeza,
que afligia.

Enfiando a vista pelo buraco da parede, as crianças se agitaram com
certa curiosidade tímida, despertada por alguma coisa que tinham visto.
O rumor de passos de animais indicava a chegada ou passagem de pessoas a cavalo.

– Mamãe! disse uma das crianças.

– A moça!… acrescentou a outra.

Gertrudes reclinou-se, para estender a vista pela abertura da porta. Ricardo
imitando seu movimento reconheceu Guida, acompanhada pela habitual comitiva.

O moço ergueu-se contrariado.

– Adeus. Voltarei depois.

– Não quer ver a moça? Ela é bem bonita.

– Já a conheço; e por isso não quero que me encontre
aqui. Sairei pelo fundo.

– Mas então o melhor é ficar aqui dentro porque ela não
se apeia.

Nisto a Gertrudes que se chegara à porta voltou ao moço:
– Ora, está vendo! Que artes desta moça!
A Guida tinha dirigido “Edgard” para o lugar onde estava a secar
a mesquinha louça da pobre gente, e o elegante cavalo divertia-se em
espedaçar desdenhosamente com a pata cada um dos pratos.

Os meninos assistiam à cena admirados; Guida ria-se como uma criança;
a inglesa despedia da garganta uma cascata de “ohs!” e o Sr. Daniel
impassível estava mentalmente calculando o custo da louça quebrada.

Ricardo viu esta cena pelas fendas da choupana. Quando não houve
mais nada a quebrar, Guida, sofreando com força o cavalo, exclamou
com um fingido assomo de mau humor:
– Este cavalo é insuportável! Está sempre fazendo destas!
Não posso mais aturá-lo!
A mãozinha afilada virou o chicote com força. “Edgard”
saindo se sua habitual impassibilidade, começou a pinotear, o que espalhou
a mestra, o português e as crianças cada um para seu lado. O
resultado dessa escaramuça foi atirar ao chão a vara da roupa,
que o lindo isabel despeitado pisou acabando de esgarçar com os cascos
aqueles andrajos.

– Tome, Daniel, dê a esta gente: é para pagar o estrago que
fez o cavalo.

A Guida tirara de uma carteirinha de tartaruga uma nota de cinqüenta
mil-réis.

– Mas agora me lembro: talvez eles não tenham louça para comer
hoje. Mande o moleque comprar!
– Não é muito, senhora?
– Sr. Daniel, eu não pedi a sua opinião.

O Daniel abaixou a cabeça.

– Onde está sua mãe? perguntou a moça a uma das crianças.

– Estou aqui, senhora dona.

– Já sabe o que fez este cavalo mal-educado?
– Vi, sim senhora. Foi como da outra vez a cachorrinha com os pintos!
– É verdade! Fiquei depois tão arrependida de a ter trazido!
Mrs. Trowshy atalhou em francês, com um olhar de exprobração:
– Allez! Vous l’avez fait exprès, par méchanceté!
– Mais non! Disse a Guida sorrindo; e voltou-se para continuar a conversa
com a mulher.

– Sabe? A Sofia depois daquela travessura quase morreu!
– De quê, gentes!
– Quis morder o cavalo de um moço que passava, e levou um coice que
a atirou da montanha abaixo.

– Jesus!
– Foi bem feito para não ser tão travessa. Ainda está
de cama.

– É como o meu companheiro. Vive ali espichado, que não se
levanta mais.

– Ah! Seu marido está doente? De quê?
– Ninguém sabe; depois que o peixe lhe fugiu da rede, começou
assim a desandar.

– Onde está ele? Chame-o.

– Qual! Não pode consigo.

– Chame sempre.

O Simão a custo arrastou-se até a porta da choupana.

– O senhor amanhã há de levar peixe em nossa casa. Olhe lá.

– O peixe conhece as minhas tarrafas! É à toa.

– Verá. Eu sou muito feliz; obtenho tudo que desejo. Basta que eu
lhe encomende o peixe, para o senhor tirar a rede cheia.

– Mas é castigo, senhora.

– Castigo de estar aí deitado, sem fazer nada, enquanto a pobre da
mulher de amofina de trabalhar.

– Mas ele está doente! acudiu Gertrudes.

– Doente de manha!
Guida lançou o cavalo contra o pescador, que, vendo-se ameaçado
pelas ferraduras de “Edgard”, arrancou-se à prostração
para recuar de um salto, com uma rapidez aliás desnecessária,
porque a mão firme da moça obrigara o cavalo a girar sobre os
pés.

– Não vê como ele salta? disse Guida soltando uma risada. Que
vergonha! Curtindo a preguiça enquanto os filhos e a mulher não
têm o que comer!
A moça chamou o menino mais velho:
– Venha cá, menino. Amanhã tome a rede e vá pescar, já
que seu pai de nada serve.

O pescador deu no ar um safanão; apanhou a tarrafa ao canto e foi
resmungando estendê-la na cerca ao lado da choupana; Daniel chegou-se
a ele para tratar a respeito da louça quebrada; e a Guida despedindo-se
partiu com a mestra.

Ricardo do interior da choupana ouvira todas as palavras da moça,
e por várias vezes enfiando os olhos entre as fendas da taipa, estudara
a expressão daquela fisionomia encantadora, que lhe aparecia então
como uma espécie de mito.

Havia com efeito nas ações e nas palavras da moça alguma
coisa de estranho e confuso, que escapava à compreensão do jovem
advogado, aliás espírito profundo e observador. A volubilidade
do pensamento, saltando dos gracejos infantis às coisas mais sérias;
o estouvamento que se notava em certas ocasiões, para logo ceder à
reflexão; e finalmente as liberalidades com que ela desculpava suas
travessuras, davam a essa fisionomia moral um caráter vago e indeciso.

Era um espírito leviano ou sensato? Era um bom ou mau coração?
Ou seria acaso uma e outra coisa: a luta perigosa da alma na transição
da infância à juventude? Nessa crise surgem as paixões,
que sopitam às puras crenças e as ilusões da inocência.
Se a alma tem para ampará-la a educação e os germes de
sã , oral, sai triunfante da luta: a virtude coroa a inocência.
Se porém o coração não é defendido nem
pelo princípio, nem pelo exemplo, sucumbe; e a flor da mocidade quando
brota da infância, vem já eivada.

À noite, quando conversavam esperando o sono, Ricardo disse a seu
amigo:
– Sabes, Fábio! Aquela Guida assim mesmo não é tão
má, como nós pensávamos.

– Por quê?!
– O advogado referiu a cena a que assistira pela manhã, e o que anteriormente
lhe contara a Gertrudes.

– O que pensa disso então?
– Penso que no meio das travessuras desta moça há um escrúpulo
de consciência, direi mesmo, um fundo de bondade. Estouvada, como é,
não pode resistir à vontade de brincar, e faz coisas de que
logo se arrepende; mas esse arrependimento pelo menos é generoso. Assim
as faltas que ela comete são ocasiões para uma liberalidade,
que talvez nunca lhe inspirasse espontaneamente o sentimento de caridade.

Fábio, que não apreciava as demonstrações fisiológicas,
tinha adormecido.

VII

No próximo domingo, Ricardo montado no “Galgo” descia da
Pedra Bonita, para onde naquela manhã dirigia o seu passeio.

A Pedra Bonita é uma rocha que se levanta sobre um cabeço
de montanha como um gorro de granito. Daí, dessa atalaia das nuvens,
goza-se uma vista soberba sobre o mar, e vê-se de perto o enorme cesto
da Gávea, habitualmente cingido de vapores.

Como todos os belos sítios da Tijuca, a Pedra Bonita é muito
freqüentada pelos filhos da loura Álbion, incansáveis exploradores
desse belo arrabalde do rio de Janeiro. Contam que um inglês aí
se perdera, ficando sobre o gigantesco pedestal de rocha, elevado à
condição de estátua, durante três dias, sem comer
nem beber. Foi-lhe o penedo o contrário do outeiro da Ilha dos Amores:
mais fácil de subir que de descer.

Também contam que nessa pedra, ou em outra que demora na mesma altura,
entre as nuvens, algumas senhoras tendo lá subido foram obrigadas,
para descer, a tirar os balões. O vento engolfando-se nas armações,
ameaçava arrebatá-las à terra, levando-as de uma vez
ao céu, pelo caminho do mar.

Os ingleses herdaram dos jesuítas um sétimo ou oitavo sentido,
que possuíam em alto grau aqueles mestres da vida: é o sentido
da higiene. Por onde passou a poderosa companhia, foi deixando conventos nas
situações melhores, tanto pela salubridade como pela formosura.
O inglês foi dotado do mesmo faro do belo e do saudável. Chegando
ao Rio de Janeiro, volve os olhos para a cinta de montanhas que cerca a cidade,
e considera isso um sobrado natural que a Providência construiu por
cima do escritório para alcova de dormir.

Pese embora ao nosso amor-próprio nacional, eles naturalizaram inglesa
a nossa Tijuca; fizeram daquela serra onde campearam os tamoios, uma Escócia
brasileira. O grito dos highlanders percorre as formosas encostas. Pelas grotas
onde reboava primitivamente o brado selvagem da pocema, ouve-se agora repetido
de vale em vale pela voz suave das amazonas o gracioso la-la-hi-ti.

Se quereis ver o que há de mais belo e encantador naquele arrebalde,
procurai o conhecimento de algum filho da Grã-Bretanha. Ele conhece
a Tijuca de uma à outra extremidade, desde a gruta mais funda até
o pico mais alto. Sabe não só dos vários passeios, como
do dia e da hora em que se deve apreciar cada um deles. Afinal, quando tiverdes
visto toda a Tijuca já descoberta e explorada, o inglês inventará
uma pedra ainda não conhecida e uma excursão pitoresca como
a de subir à Gávea por um caminho de lagarto.

Ricardo vinha pensando que felizmente naquele dia escapara de encontrar-se
com a Guida. Era este o quarto Domingo depois que a conhecera, e seria o primeiro
em que não a visse. O advogado não daria a importância
a esses encontros fortuitos se, além de serem eles contínuos,
não se houvessem dado as circunstâncias especiais, que já
conhecemos.

Felicitava-se porém o moço muito cedo. Numa curva da estrada
achou-se em face de numerosa cavalgata, que tomava-lhe a passagem. Guida,
que vinha na frente em companhia de algumas senhoras, exclamara:
– Ali está a flor, Clarinha. Não é tão linda?
– Aonde?
– Ali, um arbusto. Não vê? Disse ela indicando o lugar com a
haste do chicotinho.

– Vejo. Amarela…

– Cor de ouro.

Guida tinha parado, e todos os cavaleiros se gruparam de modo a ver o objeto
que lhes excitava a curiosidade. Ricardo, havendo-se adiantado na esperança
de passar, foi obrigado a demorar-se em frente do grupo.

– Onde vai a senhora, D. Guida?
Esta pergunta foi dirigida por um dos cavaleiros à moça, vendo-a
impelir “Edgard” contra o barranco do caminho para aproximar-se
do arbusto, que ficava cerca de duas braças ladeira abaixo.

– Já que nenhum dos senhores se lembrou de oferecer-me uma daquelas
flores, que eu acho tão bonitas, vou eu mesma buscá-la.

– Não faça isto!
– É uma imprudência!
– Eu não consinto!
Com efeito havia temeridade no intendo da moça. Quem já foi
à Pedra Bonita sabe quanto é abrupta aquela montanha; o caminho,
bastante íngreme, atravessa as costas rudes, cortadas em rápido
talude e profundamente sarjadas pelos sulcos das torrentes que descem do cimo
da serra quando chove. Seria sumamente perigosa a descida por semelhantes
barrancos, até mesmo para um animal solto.

Desprezando porém as advertências que lhe dirigiam suas amigas
e companheiras, a moça fustigou o cavalo, que refugara. Castigado asperamente,
“Edgard” descera alguns passos por um trilho, ou antes por um rego;
mas, reconhecendo o perigo que havia em continuar aquela descida quase a pique,
tomou rapidamente por outro rego que atravessava, e galgou o leito do caminho
com grande esforço.

– Vai, Guimarães! Disse um dos cavaleiros.

– Por mim, não tinha dúvida. Mas não há cavalo
capaz de fazer isto.

Ricardo que assistia à cena, de parte, esperando ocasião de
passar, não perdeu as palavras que pronunciara o Guimarães,
e sentiu despertar-se-lhe o zelo pelos brios do “Galgo”. Aos 27
anos, o homem é ordinariamente temerário. A vida não
representa ainda a seus olhos um cabedal, mas uma simples aspiração.

O moço avançou.

Por esse tempo continuavam os pedidos e admoestações a Guida
para abandonar seu projeto; mas ela, indiferente ao que diziam em torno, a
princípio rira do susto dos outros; mas agora, muito irritada contra
“Edgard” por ter recuado, castigava o animal que girava corcoveando.
A amazona, forcejando para trazê-lo à borda do barranco, afinal
o conseguiu, mas de uma maneira bem desastrada.

Com efeito, pungido ao mesmo tempo pelo freio e pelo chicote, perdera a
sua calma habitual; irritou-se, e obrigado a fazer o que lhe repugnava, caminhava
para o despenhadeiro, disposto, não a descer, mas a precipitar-se.

Felizmente Ricardo chegara a tempo. Inclinando-se, pôde segurar “Egard”
pelo freio, quando já levantava as mãos para pular. Obrigou-o
então a voltar-se para o leito da estrada, e disse simplesmente à
moça:
– Não desça!
Guida ficou imóvel acompanhando com os olhos o “Galgo”, que
descia com admirável agilidade e firmeza o sinuoso barranco. Só
havia para apoio do casco a estreita borda do sulco, por onde dificilmente
andaria um homem a pé: e contudo o cavalo desceu e subiu sem vacilar
um passo, com plena confiança na força e na elasticidade de
seus músculos.

Todas as pessoas que faziam parte da cavalgata acompanharam a descida e
ascensão com surpresa e interesse. Os mais nervosos estremeciam com
a idéia da desgraça, que podia acontecer ao desconhecido. Os
outros sentiam uma comoção análoga à que lhes
despertaria uma briga de galos, uma corrida de cavalos, ou talvez uma representação
no circo.

Ricardo tinha partido do arbusto duas ou três hastes com flor. Era
a mesma flor cor de ouro, que ele costumava colher nos seus passeios a pé,
e que já por duas vezes fora testemunha de seu encontro com a moça.

Quando o cavalo, correspondendo dignamente ao nome, galgou com ligeireza
o caminho, o advogado apresentou à moça o ramalhete que tinha
colhido, e fazendo um cumprimento geral, apartou-se rapidamente da alegre
cavalgata.

Ao passar entre os cavaleiros, ouviu uma voz que o chamava pelo sobrenome:
– Adeus, Nunes! Aposto que já não te lembras de mim?
O advogado reconheceu um de seus colegas de ano, a quem não vira desde
a formatura.

– Ah! Guimarães?
Trocaram um aperto de mão com algumas palavras banais, e separaram-se.

Entretanto Guida, tendo prendido o raminho de flores no peito do roupão,
continuara o passeio, acompanhada pelas outras senhoras e cavaleiros. Vendo
aproximar-se o moço que pouco antes falara a Ricardo, dirigiu-lhe a
palavra:
– Conhece este moço, Sr. Guimarães?
– É o Dr. Nunes. Foi meu colega de ano.

– Ah! Formaram-se juntos?
– E se não me engano, fizemos ato no mesmo dia.

– É bacharel?… disse Guida, como se completasse um pensamento interior.

Supunha talvez que Ricardo era um artista, algum pintor que percorria os
sítios da Tijuca para copiar perspectivas, que mais tarde lhe servissem
de assunto a algum quadro a óleo. O álbum de desenho, que o
moço trazia habitualmente nos seus passeios a pé, e a aquarela
em que ela se julgara reconhecer, deviam com efeito induzi-la àquele
engano.

– Foi um dos primeiros estudantes do nosso ano. Moço de grande talento,
porém muito pobre; dizem até que foi o tio, o Dr. Costa, quem
o ajudou a formar-se.

– Que faz ele agora? Perguntou a moça com interesse.

– Não sei. Creio que está aqui advogando; mas perde o seu
tempo; não faz nada.

– Por quê? Não tem talento?
– Mas de que lhe serve se ninguém o conhece? Servia-lhe mais ficar
com metade do talento que tem, e a outra metade de proteção.

– Como proteção?
– Ora: negociantes que lhe dêem boas causas e o recomendem a seus amigos.

A moça, lançando um olhar para o cimo da montanha que se desenhava
no horizonte, mudou de repente o tom e o assunto da conversa.

– A Pedra Bonita ainda fica muito longe? Disse ela nesse dúbio tom
que vacila entre uma interrogação e uma afirmativa.

– Falta um bom pedaço.

– Ainda não passamos o Carneiro. O melhor é voltarmos; já
está o sol tão quente! Hoje saímos muito tarde.

– Como quiser!
– Vamos voltar? perguntou a moça virando-se para consultar as amigas.

As opiniões dividiram-se; alguns desejavam a continuação
do passeio apesar do tempo perdido com o episódio da flor; outros porém
julgavam que era mais prudente voltar, à vista da hora adiantada e
do intenso calor.

– Que horas são? perguntou uma senhora.

– Meia antes do almoço, respondeu Guida sorrindo.

– Neste caso voltemos! Gritou a oposição.

Guida exagerava no interesse de sua causa. O almoço foi servido quarenta
minutos depois, às dez horas em ponto. Cercavam a mesa perto de trinta
pessoas.

Na cabeceira estava D. Paulina, a mulher do comendador Soares, senhora de
estatura regular, e bastante nutrida. Tinha na fisionomia um ar de bondade
e singeleza que lhe conciliava a simpatia geral. Seus gestos eram acanhados;
via-se que não estava a cômodo, nem se ocupava em desempenhar
o seu papel de dona-de-casa. Esta senhora, que nascera para uma vida modesta,
sentia-se acabrunhada ela riqueza e opressa por esse luxo de ostentação
que a envolvia e se apoderara até de sua pessoa. Seu vestido feito
no rigor da moda era uma túnica de Nessus para aquele gênio pachorrento.

Na extremidade oposta, ou na outra cabeceira, estava o comendador Soares,
homem de cinqüenta e cinco anos, de mediana estatura e talhe franzino,
mas vivo e ágil, respirando saúde e alegria no rosto prazenteiro
e no gesto animado. Trazia a barba raspada e o cabelo cortado à escovinha.

– Dr. Nogueira, não quer um pouco deste lombinho? Diz aqui o Bastos
que não está mau.

– Está magnífico.

A pessoa a que se dirigira o Soares, era um homem de trinta e seis anos
e parece distinto.

– Obrigado, comendador! Nada mais.

– Pois eu vou a ele. Quem me acompanha? Aposto que o Guimarães?
– Está dito!
– O Sr. Guimarães deve ter bom apetite. Fez um grande passeio a cavalo.

– É verdade!
– Onde foram? perguntou Soares.

– Íamos à Pedra Bonita; mas não chegamos até
lá. D. Guida quis voltar…

– Já era tão tarde!
– E perdemos muito tempo com a tal flor.

– Ai, que lá se vai o segredo.

– Que segredo?
– Ora; eu lhe conto, papai, disse a Guida. Queria apanhar uma flor, mas “Edgard”,
que é um poltrão, teve medo de descer…

– Sim; mas que ladeira! quase direita!
– Ora. O outro cavalo não desceu?
– Com que risco!
– No fim de contas “Edgard”, zangado, ia-se atirando da montanha
abaixo, quando um moço que passava, conhecido do Sr. Guimarães,
agarrou-o pelo freio, e desceu para apanhar a flor!
– Se não fosse ele, quem sabe o que sucederia.

– O Sr. Guimarães deve apresentar-nos o seu amigo, não acha,
papai?
– Decerto!
– Terei muito prazer. Encontrando-me com ele… ia respondendo o Guimarães.

Atalhou porém o Dr. Nogueira:
– A flor é naturalmente essa que a senhora tem no seio?
– Sim, senhor, é esta mesmo. Veja papai, como é linda!
– Muito! Quase que podias trazê-la como pingentes.

– Boa idéia, papai! Vou mandar fazer uns brincos deste feitio.

– Ficarão magníficos.

– E há de ser moda!
– Sr. Bastos, o senhor me há de fazer o favor?… disse a moça.

– Com muito gosto, D. Guida!
A flor corria de mão em mão; e teria se desfolhado afinal se
a dona não reclamasse com instância para restituí-la à
sua posição.

– Guida anda apaixonada por essa flor, disse D. Clarinha. Há mais
de um mês que me fala nela.

– Será pela flor? Perguntou o Dr. Nogueira com um sorriso malicioso.

Guida lançou-lhe um olhar, que era um alfinete embebido em aljôfar:
– Não é pela flor, não. É pelo senhor. Pois não
sabia?
– Ah! se fosse, D. Guida, eu seria o homem o mais feliz do mundo, acredite!
– Bravo, bravo! E então, D. Paulina?
– Guida sempre foi muito apaixonada de flores, respondeu a senhora, aturdida
por aqueles constantes diálogos que se cruzavam.

A moça respondera à fineza do Dr. Nogueira, inclinando altivamente
a fronte, e soltando um irônico – “obrigada!”
Quando aplacou-se o rumor das risadas e exclamações provocadas
pela declaração amorosa que, a título de fineza, lançara
o Dr. Nogueira tão à queima-roupa, o Soares, ocupado em despachar
conscienciosamente o lombinho de porco, pôde introduzir uma observação
que lhe acudira.

– Ande lá, Dr. Nogueira, creio que não é o senhor o
único. Há mais quem pense da mesma maneira!
– Decerto, disseram quase ao mesmo tempo o Guimarães e o Bastos, um
enrubescendo, o outro empalidecendo.

Talvez que outras exclamações mais submissas viessem aos lábios,
e outros rumores mais tímidos subissem às faces; mas não
se animaram a aparecer. Perderam-se nos aplausos com que foi recebida a observação
do dono da casa.

– Está bom, disse a Guida, a quem o tema da conversação
não agradava; ninguém quer saber disto agora, papai; mudemos
de assunto.

– Pois muda tu, que nisso de mudar, as mulheres estão no seu elemento.

– O que não é muito lisonjeiro para os homens.

– Conforme.

– Mas escute, papai. Estou resolvida a vender “Edgard”. Depois
do que me fez hoje, não posso mais suportá-lo. Quer comprá-lo?
– Não; eu cá, não deixo a minha mula paulista. Esses
cavalos da moda, que vocês apreciam por serem muito grandes e muito
caros, não me servem.

– Então compre para mamãe.

– Pois não! Que lembrança! acudiu D. Paulina.

– Nada. Contigo não quero negócio, replicou o Soares. Dizem
por aí que sou um espertalhão; mas ainda está para ser
a primeira vez que não me logres.

– Qual, papai! exclamou Guida sorrindo. É o senhor que se engana
a si mesmo; o pai logra o capitalista!
– Muito bem!
– Será isso então! replicou o Soares rindo com prazer.

Acabara o almoço. Guida, com uma cortesia geral, deu o exemplo levantando-se
da mesa.

Ela exercia esse direito por uma delegação tácita da
mãe, incapaz de tomar por si tão grave resolução.
O Soares, que podia adverti-la com um sinal, estava inibido de o fazer. Se
nos dias de trabalho o capitalista almoçava a vapor, nos domingos tinha
saudades da mesa e custava a separar-se dela.

VIII

Deixando a mesa do almoço, as pessoas reunidas em casa do Soares espalharam-se
pela sala, varanda e jardim, formando grupos.

As senhoras ficaram na sala, vendo álbuns e figurinos, conversando
sobre modas, ou tocando e cantando. Alguns cavalheiros resistiam ao perfume
do havana para gozarem por mais tempo da amável companhia das moças.
Outros, para voltarem mais cedo, saboreavam já o seu charuto, passeando
no jardim, defronte das janelas, por onde às vezes intervinham na conversação.

Na varanda os capitalistas e negociantes discutiam sobre o estado da praça;
apreciavam as transações mais importantes da semana finda; faziam
conjeturas sobre a alta e baixa do câmbio, caindo por fim no assunto
inesgotável de todas as conversas daquele tempo, por ser a preocupação
constante de todos os espíritos; a conclusão da guerra do Paraguai,
que o intrépido Câmara acaba de selar com a última vitória.

Além, desdobravam-se as mesas de jogo à espera dos apaixonados
do solo e voltarete; mais longe, se ajustavam passeios a pé e a cavalo,
ou visitas aos hóspedes do amável Sr. Bennett.

Em toda essa reunião de pessoas havia dois pontos para os quais convergia
a atenção; eram o Soares e a filha.

Os espíritos positivos, os homens de negócio, os soldados
da cruzada fanática do ouro, que é a grande preocupação
do século atual, esses infatigáveis obreiros do dinheiro contemplavam
o capitalista como um herói ou como um gênio, como o César
ou o Napoleão da praça. O comendador representava a seus olhos
o símbolo ou mito da riqueza, como Hércules o era da força.

A rapidez com que Soares, de simples dono de um armarinho, se elevara a
milionário por uma série de operações lícitas,
mas combinadas com tino superior e executadas com incrível arrojo;
o milagre dessa riqueza colossal honestamente acumulada em cerca de vinte
anos, enchia de admiração não só os neófitos
no culto do bezerro de ouro, como os mesmos negociantes já possuidores
de algumas centenas de contos.

As vistas fitavam-se com afinco no rosto franco e prazenteiro do capitalista,
que se lhes afigurava o dinheiro encarnado, o milhão feito homem. Estudavam
sua fisionomia, aprendiam seus menores gestos, decoravam suas palavras ainda
banais. O Soares tinha em si o grande segredo de ganhar dinheiro; talvez o
precioso condão da riqueza estivesse em alguma particularidade de sua
pessoa e fosse possível a um homem hábil surpreendê-lo.

Esforçavam-se pois em imitar aquele tipo de milionário improvisado.
Um tinha notado que ele trazia sapatões de bico espalmado, feitos em
uma tenda da travessa do Carmo. Pensando que o segredo podia estar nisso,
recorreu ao freguês antigo do capitalista para lhe fazer calçado
em tudo igual. Outro observara que o Soares trazia uma pequena caixa oval
cheia de rapé, não para tomar, mas simplesmente para cheirar.

Havia gente que não só copiava o milionário no vestuário
e nos hábitos, como até na comida. Um chegou a convencer-se
que o feijão-preto e o lombinho de porco tinham virtude aurífera;
e apontava a província de Minas como a prova do fenômeno.

De seu lado, Guida era naquele céu o astro da beleza, de que as outras
moças não passavam de satélites. Em torno dela giravam
os cavalheiros elegantes, todos aqueles que não tinham resumido a sua
existência no balcão e ainda se ocupavam de música, de
arte e de sentimento. Para esses o dinheiro não é um fim, como
para os primeiros, os cruzados do século; é meio apenas de obter
o gozo; é um engaste para o prazer. Assim uma mulher bonita na pobreza
parece uma crisólita embutida em estanho; na riqueza, torna-se uma
pérola cercada de diamantes.

Os olhares desta parte da sociedade acompanhavam os movimentos de Guida
com admiração e insistência igual à dos adoradores
do dinheiro encarnado na pessoa de Soares. Ela também representava
o mito do século, o milhão. Se o pai figurava o milhão
feito homem, ela era o milhão feito anjo; o ouro convertido em luz,
a libra esterlina transformada em estrela, o bilhete do banco adquirindo de
repente a graça diáfana da asa de borboleta.

Os etimologistas, gente que profetiza o passado e inventa o esquecido, dizem
que ouro, palavra de origem egípcia, significou primitivamente a luz,
o sol, passando a designar o metal precioso por analogia. Se assim foi, como
me parece racional, Guida personificava o ouro segundo a delicada comparação
da poesia oriental; era o sol esplêndido da fortuna; era a réstia
de luz coalhada em barra, o prisma bancário, o raio amoedado.

Entre todos os cavalheiros que se prostravam humildes ante o ídolo,
distinguiam-se três, ou pela assiduidade na adoração,
ou pela esperança que afagavam. Eram o Guimarães, o Bastos e
o Dr. Nogueira: pessoas que sem dúvida merecem alguma notícia,
pois um deles, segundo se dizia geralmente, teria de ser o feliz, o querido
da fortuna, o marido da mais rica herança e da mais bonita moça
do Rio de Janeiro.

Guimarães era um moço de vinte e sete anos, filho de um antigo
procurador muito ginja, que devia deixar-lhe uma legítima de uns seiscentos
contos de réis. O pai à custa de empenhos conseguira formá-lo
em Direito; mas só por luxo, para dar-lhe o título que tanto
invejara. Sucedeu porém que ninguém tomou ao sério a
coisa, nem mesmo o rapaz. Todos continuaram a tratá-lo pura e simplesmente
pelo nome, sem o competente doutor. Era tão profundo o esquecimento
da formatura do filho do procurador que seus amigos e camaradas acreditariam
mais facilmente que ele fosse um príncipe incógnito do que um
bacharel.

Guimarães tinha um exterior agradável: bem feito, de talhe
vantajoso, vestia-se no rigor da moda, mas ao gosto do alfaiate, e portanto
com todas as extravagâncias do figurino. Montava bem a cavalo; fumava
com garbo o seu havana; sustentava sofrivelmente uma dessas conversas de ninharias,
essenciais nos intervalos da quadrilha e em ocasiões de apresentação.

Bastos era um corretor, que aos trinta e quatro anos já havia feito
uma bela fortuna.

Soares o tinha no melhor conceito, e num círculo de íntimos
lhe profetizara o milhão aos quarenta anos. Ora, o milhão, segundo
o comendador, é o pólipo, que se reproduz com espantosa rapidez.

O corretor era o que se chamava um bonito homem; isto é, uma estampa
soberba para ganadeiro ou tambor-mor. Alto de estatura, porte robusto, mas
bem talhado, tinha um rosto de feições regulares, moldurado
por uma bela suíça negra. Vestia-se com a simplicidade do negociante
inglês; falava com acerto em assuntos comerciais; animava-se a discutir
política até com os mais notáveis estadistas; porém
numa roda de senhoras faltava-lhe a fluência, a menos que não
se tratasse de compras e encomendas, ponto em que mais ou menos entrava o
gênio mercantil.

O Dr. Nogueira advogava. Como todos os homens de talento, tinha-se envolvido
na política, esse terrível maelstrom que arrasta em nosso malfadado
país todas as grandes inteligências, como todas as ambições
ardentes. Sua posição não passava de uma espera na grande
caçada nacional. Apresentava-se candidato por sua província,
e cheio de entusiasmo acreditava que ia abrir-se a seu talento uma carreira
brilhante.

Ele tinha os dotes necessários: bela inteligência, palavra
fácil e elegante, que amenizava as mais áridas questões
e elevava os assuntos triviais; caráter dúctil, suscetível
de amoldar-se a todas as situações como de ligar-se a qualquer
indivíduo; caráter que se pode bem comparar ao estanho, de que
se faz a solda. Soares tributava ao advogado a maior consideração
e tinha plena confiança em seu futuro.

Apesar de magro e descarnado, o rosto do advogado tinha expressão
muito distinta, sobretudo quando falava com interesse; então a fisionomia
e o gesto desenhavam-lhe a idéia, antes que a palavra elegante viesse
dar-lhe o colorido. Quem o escutava recebia ao mesmo tempo pelos olhos e pelo
ouvido o seu pensamento, sempre elevado.

Cada um dos três candidatos a sol da bela estrela de ouro tinha mais
ou menos consciência das suas, como das vantagens dos competidores.
O Guimarães confiava na herança e na proteção
de D. Paulina, em virtude da amizade antiga que existia entre a mãe
da menina e a sua. Bastos descansava no conceito em que o comendador tinha
a sua habilidade comercial, e nos trezentos contos bem líquidos, fechados
na carteira em bilhetes do tesouro. O Dr. Nogueira contava com a consideração
que lhe tributava o comendador, mas sobretudo com as altas e brilhantes posições,
cujo prestígio sem dúvida fascinaria mais do que o dinheiro,
a um homem habituado como Soares, a nadar em ouro.

Estes eram os títulos que exibiam os campeões em relação
à escolha paterna; mas eles, que bem conheciam a Guida, sabiam quanto
era importante e necessária a escolha da filha. Por isso empregavam
todos os esforços para granjear o amor ou pelo menos a simpatia da
linda moça.

Quando se tratava de um passeio, de uma conversa fútil para fazer
rir as senhoras, de um brinquedo de sala, ou qualquer outra ninharia, Bastos
e Nogueira se arredavam deixando o campo ao Guimarães. Nenhum deles
seria capaz de disputar ao moço a palma da garrulhice banal e fofa,
que imita as farfalhas de seda, ou os floreios do leque. Quando se ouve discorrer
uma dessas nugas encasacadas, parece com efeito que não é um
homem que fala, mas um alfinete, um grampo, um colchete, qualquer dos objetos
indispensáveis ao vestuário feminino, que de repente adquirisse
o dom da palavra.

O Bastos ficava mudo e pasmo diante da volubilidade do Guimarães;
ele não compreendia que um homem tivesse essa propriedade de fazer-se
realejo, e repetir durante horas e horas o que dissera na véspera ou
ouvira dos outros. Quanto ao Nogueira, compreendia; mas, se alguma vez lembrou-se
de competir com o Guimarães, arrependeu-se e corou de si mesmo, porque
reconheceu o ridículo. Sua palavra era uma águia, pensava ele:
a águia da inteligência, habituada a planar entre as nuvens.
Como podia fazer dessa ave corpulenta uma abelha que borboleteasse entre as
florinhas de um jardim?
Para a asa altaneira só a flor gigante, a grande ninféia escarlate,
a rainha dos lagos, que os ingleses chamavam “vitória”, em
honra de sua soberana, mas eu chamarei “imperatriz”, em razão
de ser uma majestade brasileira. Dir-me-ão que não sou botânico,
e portanto não tenho autoridade para crismar essa espécie de
loto, que os indígenas chamavam “milho d’água”. Não
é decerto minha intenção invadir os domínios da
ciência. Podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino
lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das
inocentes criaturas para reduzi-las a sistema; mas as flores, como mimos da
natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia.

Onde me ia levando o pensamento? Voltemos à Tijuca.

O Bastos desforrava-se do Guimarães e do Nogueira, quando se tratava
de alguma encomenda, de qualquer dos pequenos serviços que uma senhora,
privada em nosso país da plena liberdade de sair só, tem necessidade
de exigir e aceitar. O Rio de Janeiro é sem dúvida uma cidade
de muito luxo, abundantemente sortida pela indústria estrangeira de
todos os artigos de moda e fantasia; mas, como as especialidades não
estão ainda bem distintas, em virtude da desigualdade e incerteza do
consumo, muitas vezes é difícil saber onde encontrar-se aquilo
que deseja.

O corretor tinha um perfeito conhecimento dessa topografia especial do comércio
a retalho. Quando se tratava de comprar uma fita de cor muito rara e perfeitamente
igual à fazenda; de procurar um objeto que não se encontrava
na rua do Ouvidor ou da Quitanda; de escolher um presente de gosto, novo,
ainda não visto; de descobrir uns botões ou enfeites de forma
original e esquisita, fantasiados pela imaginação de Guida,
o Bastos triunfava. Realmente fazia coisas admiráveis: ninguém
arranjava uma encomenda melhor, nem mais depressa e barato.

Nogueira e Guimarães não ousavam disputar-lhe essa superioridade.
O candidato, porque nem para si próprio sabia comprar; além
de que sua posição não lhe permitia descer ao papel de
comissário, nem mesmo de uma moça bonita. O Guimarães
não tinha jeito, nem dinheiro: a mesada que recebia do pai, e os presentes
que a mãe lhe fazia, não chegavam para operar os milagres de
barateza, inventados pelo corretor.

Batido pelo Guimarães nos divertimentos, e pelo Bastos nas encomendas,
o Dr. Nogueira tinha também seus momentos de triunfo: não eram
mui freqüentes, mas acreditava ele que deixavam profunda e longa impressão.
Quando a reunião se tornava mais solene, o que sucedia em ocasião
de alguma visita de consideração ou de algum jantar de cerimônia,
o advogado aproveitava algum assunto favorável para soltar as asas
à sua palavra fascinadora. Divagava com graça; e sobre o mais
pequeno fato tinha a arte de bordar anedotas curiosas, ditos chistosos, reminiscências
interessantes, que lhe fornecia uma sofrível lição histórica.
Havia em tudo isto muita afetação, e mais liga que ouro; porém
entusiasmava o seu auditório habitual.

Nestas ocasiões, Bastos e Guimarães afundavam-se em sua mediocridade.
Os elogios, que obtinha a cada instante o talento do Nogueira, os incomodavam
como um enxame da vespas; mas nada os esmagava como a atenção
com que Guida ouvia.

O candidato, vendo a moça presa de seus lábios, com os olhos
fitos nele, acreditava que essa alma gentil se abria inocentemente ao calor
de sua palavra, como a flor ao raio da aurora; e que ele penetrava-lhe no
seio, e a pouco e pouco tomava posse dela. Contudo não se desvanecia;
acreditava que não era ainda o coração da menina quem
o ouvia, mas apenas sua curiosidade.

Estas pretensões à mão da filha do milionário
eram conhecidas não só pela família e pessoas que freqüentavam
a casa, como pelos estranhos. Nenhum dos três pretendentes recatava
seus projetos; ao contrário, não perdiam ensejo de fazer ostentação
deles, nem se embaraçavam com o reparo dos indiferentes, quando podiam
colher uma vantagem sobre os rivais.

A sociedade habitual do comendador assistia a esse jogo matrimonial com
o interesse e curiosidade, com que os romanos apreciavam uma luta de gladiadores,
e os ingleses acompanhavam um steeple-chase. Dividiam-se as opiniões,
e também os votos e simpatias. Havia intermináveis questões
a respeito da preferência de Guida por algum de seus três adoradores.

Talvez excite reparo e tolerância do comendador Soares neste assunto,
que tão de perto lhe devia interessar como pai. Esse modo de proceder
não provinha de negligência, mas de uma resolução
bem calculada. Entendia ele que o casamento de uma moça é questão
vital tanto para os pais, como para ela; e portanto depende do consentimento
de ambas as partes. Em outros termos, assim exprimira chistosamente o seu
pensamento ao Nogueira, um dia em que este o sondou a respeito de suas intenções:
– Nesta matéria de casamento, meu caro doutor, eu sou a coroa, a Guida
é o parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-me
à sanção do veto. Assim o pretendente, quero dizer, o
ministro, se quiser orçamento, deve usar de toda a sua eloqüência
no parlamento para derrotar a oposição.

O comendador era pois um pai constitucional representativo. Assistia com
imparcialidade à luta dos partidos, reservando-se contudo o direito
de ensaiar habilmente o governo pessoal, quando fosse indispensável
ao bem público.

Além das três pretensões confessadas, havia no círculo
do Soares um grande número de esperanças em botão, que
não ousavam desabrochar; mas também não se resolviam
a murchar. Ah! a esperança é uma das plantas mais vivazes que
eu conheço; quando uma vez brotou no coração, não
há meio de extirpá-la: é como a urtiga. Embora o ferro
a corte, rebenta de novo. Só morre quando lhe esmigalham as raízes.

Assim, apesar de reconhecerem a impossibilidade de sua realização,
essas esperanças pululavam em torno da moça, como um bando de
besouros verdes nas pétalas de uma rosa. Quando à noite, depois
de algumas horas passadas na casa de Soares, se recolhiam, ao deitar-se balbuciava
cada uma em seu aposento, por este gosto mais ou menos:
– Este bigodinho!… pensava um, alisando diante do espelho o fino buço.
Têm-se visto coisas!
– O caso é que ela gosta bem de cantar comigo! sonhava outro, recordando
um dueto do Hernani.

– No fim de contas a elegância é o fraco das moças,
murmurava o terceiro, requebrando o talhe bem torneado.

– Um homem que valsa como eu, chama atenção num baile. E o
que é um baile senão a batalha campal, onde se conquista a beleza?
exclamava um jovem oficial que fez a campanha do Paraguai nas tertúlias
de Montevidéu.

– Que ela me acha engraçado, não há dúvida;
ora, o riso é o caminho do coração, dizia um repetidor
de pilhérias, espécie de bobo de sala, esfregando as mãos.

Estas e outras esperanças viviam de ar, como os camaleões,
e como eles, mudavam constantemente de cor: ora tinham o verde risonho da
folha que nasce, ora o amarelo bronzeado da folha mirrada pelo sol, que o
vento leva de envolta com o pó.

IX

Guida animava com a sua graça e gentileza os diversos grupos que se
tinham formado na sala.

No sofá, onde se conversava, ia sentar-se um instante para ouvir
e interromper, excitando a réplica e provocando o riso com suas travessuras.
No piano aparecia de repente, tocava ou cantava alguma coisa às pressas,
e aproximando-se da mesa, mostrava às pessoas, que folheavam álbuns,
lindas vistas da Suíça, da Escócia, de Sintra e da Tijuca.

O Guimarães, que estava naquele dia em veia de felicidade, acompanhava
a moça nessas evoluções com um certo ar pretencioso que
não escapava às outras pessoas. Decididamente parecia que a
preferência se manifestava pelo mais jovem e mais elegante dos pretendentes;
tal foi pelo menos a opinião das senhoras que nesta matéria
falam de cadeira.

O Dr. Nogueira, despeitado com o remoque da Guida, na ocasião do
almoço e a propósito da flor, conservava-se arredio; estava
ainda no jardim fumando o seu charuto. Entretanto, quem o observasse com atenção
conhecia que através das folhas das árvores ele não perdia
de vista as janelas da sala.

Bastos estava indeciso; não se animava a entrar em combate, nem se
resolvia a abandonar o campo. Recostado à sacada pela parte de fora,
mas completamente voltado para dentro, observava a moça, sem contudo
esforçar-se por atrair-lhe a atenção. Bem desejava obter
aquela ventura; mas sua imaginação ingrata não lhe suscitava
um meio de realizar seu desejo.

Teria decorrido cerda de uma hora depois do almoço, quando Mrs. Trowshy
mostrou a Guida a figura esguia do Daniel em pé na porta do interior.
A moça aproximou-se do criado, que lhe disse:
– Dei o recado; respondeu que há de escrever ao Sr. Comendador agradecendo.

– Escrever? Perguntou Guida.

– Sim, senhora.

– Então não vem?
– Pode ser.

– Bem!
Guida herdara do pai certa impetuosidade do desejo, que foi a origem da riqueza
do capitalista, e devia exercer na vida da filha notável influência.

Depois do último encontro com Ricardo, naquela manhã, teve
desejo de conhecer o advogado; desejo que revelou com franqueza na ocasião
do almoço, pedindo a Guimarães que o apresentasse. Não
confiando porém na promessa do moço, ao levantar-se da mesa,
tomou o braço do pai e preveniu-o de sua intenção de
mandar Daniel convidar a Ricardo da parte dele, Soares.

– Manda! respondeu o pai com indiferença, habituado a confiar todas
essas minúcias domésticas a mulher, que as abandonava à
filha.

O Daniel partiu imediatamente; e o resultado de sua incumbência acabava
ele de comunicá-lo à moça, com a sua imperturbável
gravidade.

– Is he coming? (Vem?), perguntou Mrs. Trowshy.

Guida disse que não, com um ligeiro aceno de cabeça.

– Why not? (Por que não?)
Novo aceno exprimiu a ignorância da moça a respeito do motivo
por que Ricardo não vinha. Contudo o tato de sua alma de mulher lhe
indicava, embora vagamente, a natureza daquele motivo.

– Ele é pobre, pensava ela, muito pobre; há de ser suscetível
portanto.

Talvez Ricardo se ofendesse com o convite, feito por intermédio de
um criado; e a sua resposta de que havia de “escrever agradecendo”,
manifestava bem seu pensamento: era mais do que um simples criado: era um
homem da confiança de seu pai. O convite por este intermédio
parecia-lhe tão delicado, como por carta, sem a solenidade que ela
justamente não lhe queira dar.

Se Guida desejava anteriormente a presença do moço em sua
casa, agora mais que nunca. Duas razões atuavam em seu espírito.
A contrariedade do obstáculo e a vontade de desvanecer uma ofensa involuntária.
O que fora até então uma lembrança delicada apenas, mudava-se
em capricho.

Capricho? Quem não sabe o que isso é? A palavra o está
dizendo. É a alma da mulher que se precipita sobre uma idéia,
com a mesma temerária vivacidade e petulância da cabra selvagem
a arremessar-se pelas arestas do despenhadeiro.

Guida sentou-se ao piano e começou a preludiar. Não tardou
que o Guimarães se aproximasse, atraído pelo ímã,
e bordasse sobre o tema da música uma dessas falas que parecem um crochê
de palavras de diversas cores. A moça tomou interesse na conversa,
e prolongou-a por algum tempo; mas interrompeu-se de repente como se lhe ocorresse
uma idéia:
– Não pretende apresentar hoje seu amigo, Sr. Guimarães?
– Como? Que amigo?
– Já se esqueceu? Com efeito!
– Ah! lembro-me. O Nunes. Mas hoje?
– Então quando há de ser?
– Qualquer outro dia.

– Se não for hoje, que ele está na Tijuca, nunca mais o senhor
achará uma ocasião para apresentá-lo. Amanhã estou
certa que já nem se lembrará disso!
– Sou esquecido, é verdade; mas da senhora, D. Guida, lembro-me até
demais.

– Pois lembre-se menos de mim, para se lembrar mais do que prometeu a meu
pai. Vá buscar o amigo!
– Agora?
– Neste momento, disse Guida levantando-se.

– Mas se não sei onde ele está!
– Daniel há de saber. Vou dizer-lhe que sele o seu cavalo e o acompanhe.

Chegando à porta, a moça deu as ordens necessárias.

– Mas, D. Guida, confesso-lhe que poucas relações tenho com
o Nunes; depois que nos formamos há seis anos, é a primeira
vez que nos encontramos. Mesmo em São Paulo, nunca fomos amigos; apenas
conhecidos. Chegou à corte, não o visitei. Não me julgo
pois com direito a procurá-lo assim de repente…

– Tudo isto o senhor devia ter pensado antes de se comprometer: agora tenha
paciência. Seu pai costuma dizer que dívidas não se perdoam.

– Ainda há uma razão. Eu sei que o Nunes pôs aqui um
escritório de advocacia, porque vi o anúncio; mas se procede
bem, se é homem fino, capaz de entrar na primeira sociedade, ignoro.
Não posso portanto tomar sobre mim a responsabilidade de trazer à
casa do comendador um moço que pode praticar algum ato…

Guida sorriu.

– Esse receio não tenha: eu o absolvo da responsabilidade.

– Mas o comendador?
– Fica por minha conta.

– Não! não devo abusar.

Guida olhou o moço com ar resoluto:
– O senhor não vai?
– A senhora fica zangada comigo?
– Oh! não; muito agradecida ao contrário!
Soltando essa frase cheia de ironia, a moça deixou o Guimarães
atordoado; e voltou-se para sua mestra, que lia nesse momento um número
da Illustrated London News.

– Mrs. Trowshy, a senhora hoje há de jantar perto do Sr. Guimarães.

Se ainda restava ainda alguma hesitação no espírito
do filho do procurador, desvaneceu-se de súbito e completamente diante
daquela terrível ameaça. Jantar perto da inglesa significava
o mesmo que ficar-lhe hipotecado pelo resto da tarde e por toda a noite. Para
evitar essa calamidade, Guimarães entendeu que não lhe restava
outra saída senão obedecer ao capricho da menina partindo em
busca do colega.

– Já vou, D. Guida!
– Ah! Esquecia-me dizer-lhe que seu colega tem um amigo, um companheiro; é
preciso convidar a ambos.

– Sim, senhora; cumprirei a sua ordem. Mas não me condene a jantar
perto da mestra.

– Se trouxer quem o substitua! disse Guida rindo.

– Fica a meu cuidado!
Guimarães montou a cavalo e partiu com o Daniel. Todo esse episódio
não escapou, nem ao Bastos recostado à janela, nem ao Nogueira
que passeava no jardim. O último não vira o diálogo trocado
entre a Guida e o Guimarães; mas bastou a partida deste, acompanhado
pelo criado da casa, para excitar-lhe apreensões.

Animado pela ausência dos dois competidores, só em campo, o
Bastos, mais desassombrado de espírito, descobriu afinal o meio de
solicitar a atenção da filha do milionário:
– D. Guida! disse ele com a voz um pouco trêmula.

– Chamou-me? Perguntou-lhe a moça voltando-se.

– Como há de querer então os brincos?
– Que brincos, Sr. Bastos?
– Pois não me pediu no almoço para mandar fazer-lhe uns brincos
do feitio dessa flor? Replicou o corretor rubro como um tenor sem voz quando
dá um dó de nariz.

– É verdade. Desculpe-me; não me lembrava assim de repente.
Depois lhe darei uma flor para servir de modelo.

– Esta que a senhora tem?
– Esta ou outra, é indiferente, observou a moça com intenção.

Bastos perturbou-se, e nesse intervalo a atenção de Guida
se desviou para outro lado, de modo que achou-se o corretor outra vez na mesma
posição cruel em que estava anteriormente, recostado à
janela e atado ao seu acanhamento, que era para ele um rochedo de Tântalo.

No meio das paixões que se agitavam em torno dela, Guida conservava,
devido a seu recato e altivez natural, uma grande serenidade. Quando alguma
vez uma palavra mais significativa ou uma alusão mais direta a vinha
provocar, ela a afastava com a sua ironia, ou com essa expressão de
indiferença que perturbava o Bastos.

Assim permanecia estranha à luta de que era objeto. Sua alma pura
planava como um astro sobre as vagas que a ambição ou o amor
sublevavam naqueles corações. As bonanças, como as tempestades,
desse oceano, se eram produzidas por sua influência celeste, não
a atingiam: ela brilhava sempre com o mesmo esplendor e a mesma limpidez.

Em princípio, suas palavras, seus olhares, seus menores gestos, eram
estudados por adoradores, como por indiferentes, e interpretados ao sabor
de cada um. A moça incomodava-se muito com isso; retraía-se;
tornava-se cada vez mais reservada, constrangendo sua jovialidade e franqueza.
Não obstante o círculo em que vivia, obstinava-se em dar a quanto
ela dizia ou fazia, uma significação oculta misteriosa.

Uma noite sucedeu dançar duas quadrilhas com o mesmo par; tão
indiferente lhe era o sujeito que não se lembrou de já ter dançado
com ele no princípio da partida. O fato foi muito comentado, até
por algumas amigas, que viram nele uma preferência manifesta. Guida
aproveitou a ocasião para de uma vez pôr termo a essa insistência
que a afligia.

– Tenho muito tempo para ser moça. Agora ainda sou criança
e quero sê-lo até dezoito anos. Não cuido nessas coisas
de que os outros tanto se ocupam; só penso em divertir-me. Para mim
é indiferente o par com quem danço, desde que for um homem delicado,
de boa sociedade. E assim quanto ao mais.

Estavam presentes Nogueira, Bastos, Guimarães, e muitos outros apaixonados
ocultos. Momentos depois as palavras da moça, repetidas em vários
grupos, eram conhecidas por todos.

Guida dizia a verdade. Se era já moça na flor da beleza e
na graça, tinha contudo a ingênua isenção da menina.
Seu coração ainda estava em botão; seus pensamentos,
embora alguma vez se embalassem nos sonhos azuis de um futuro risonho, eram
em geral absorvidos pelo estudo, ou pelo prazer dos passeios e divertimentos
inocentes.

Não brincava mais com bonecas, é verdade; suas bonecas eram
“Edgard” e “Sofia”, ou as flores de seu jardim. Mas também
ninguém a via tomar ares melancólicos e atitudes pensativas,
suspirar a cada instante, ou recitar poesias de amor, acentuando as frases
apaixonadas do poeta. Em uma palavra, não era romântica. Tinha
a suas amigas afeição sincera; mas não lhes emprestava
a linguagem ardente, que afetam certas moças, e que faz supor, sob
pretexto de amizade, a expansão de algum amor oculto, ou pelo menos
de um amor ideal criado pela imaginação.

Por isso dificilmente podiam os adoradores de Guida iludir-se a respeito
de sua indiferença. As palavras da menina não tinham sentido
ambíguo, nem misteriosa alusão; o olhar, o sorriso, o gesto
eram transparentes e não conheciam o jogo cruel de semear esperanças
e excitar desejos, para depois machucá-los, como as flores ou as fitas
que se trouxe no cabelo.

Assim o espírito sério de Nogueira não se deixava embair
por seu amor-próprio; ele acreditava que Guida não dava a menor
preferência a qualquer de seus adoradores; mas pensava que de repende
podia seu coração desabrochar, e nesse momento se despertariam
as impressões gravadas n’alma da menina. Toda sua tática se
limitava a imprimir no espírito de Guida, como em uma cera branda,
a admiração por seu talento e a confiança em seu futuro
brilhante.

Mas, apesar de hábil, o futuro deputado estava apaixonado pela moça,
e tanto bastava para tirar-lhe a calma necessária de seu plano. Assim,
na ocasião do almoço, ouvindo referir o incidente do serviço
prestado por Nunes, tivera uma suspeita; e para esclarecê-la fizera
a propósito da flor uma alusão que lhe valera a réplica
irônica da moça. Arrependera-se e esperava a primeira ocasião
para desvanecer a desagradável impressão.

Eram estas cismas que ainda o preocupavam no jardim, enquanto fumava o segundo
charuto:
– Quem será esse moço?… dizia ele consigo, arrancando distraidamente
as pétalas de uma rosa. Foi hoje a primeira vez? Guida passeia a cavalo
todos os dias; não o terá encontrado anteriormente?… Algum
romance começado… quem sabe! O Guimarães saiu com o criado.
Aposto que foi em busca do sujeito para apresentá-lo hoje mesmo. Não
há dúvida! Por que motivo ela daria tamanha atenção
àquele boneco, se não fosse o desejo de obter dele um serviço?
E o tolo prestou-se!…

Nogueira meditou alguns instantes, e por fim murmurou:
– A coisa desta vez é séria!
Atirando fora aponta do charuto, entrou na sala.

X

Enquanto sucediam estes fatos, Ricardo, a causa involuntária deles,
estava bem tranqüilo em casa de D. Joaquina.

De volta do passeio, saboreou com o amigo o frugal almoço da boa
senhora. Ainda estavam à mesa galhofando e rindo, quando ouviram o
som do búzio, e pouco depois apareceu-lhes o Simão pescador,
alegre, corado e bem disposto.

Trazia várias selhas de cipó cheias de peixe; uma delas era
destinada a D. Joaquina, a quem Gertrudes a mandava de presente.

– Oh! já está bom? Perguntou-lhe Ricardo.

– Ora, senhor; para bem dizer, não tinha moléstia; andava
banzeiro, mas a moça me trouxe felicidade. Depois daquele dia em que
ela ralhou comigo, o senhor bem viu, não há mãos a medir.
É peixe tanto, que a rede quase não agüenta.

– Está bom; estimo muito!
Depois de algumas palavras trocadas com a velha, o pescador despediu-se:
– Adeus, sinhá dona. Ainda vou levar este peixe à casa do comendador,
o pai da moça. Bom freguês!
Este fato deixou alguma impressão no espírito de Ricardo, que
lembrou-se da cena a que assistira domingo passado. Haverá criaturas
abençoadas, que tenham o dom de comunicar aos outros sua influência
propícia? pensou o moço.

Tendo a presença do pescador despertado a lembrança de Guida,
Ricardo contou a Fábio o seu encontro pela manhã e o incidente
da flor.

– Bem, creio que sempre tomamos a praça de assalto! exclamou Fábio.

– Não abandonas tua idéia!
– Ora, se fosse comigo o encontro desta manhã, agora estaria eu almoçando
em casa do Soares.

– E de que te servia isto?
– De quê?… É bom que o dinheiro vá-se acostumando conosco,
e o meio é chegarmo-nos àqueles que o têm.

– Receio ao contrário que nossa pobreza o importune, indo procurá-lo
no meio do luxo.

A discussão prolongou-se. Os dois amigos ainda estavam empenhados
nela quando chegou o Daniel com a incumbência que sabemos. Ricardo,
a princípio surpreso pelo convite que não esperava, não
hesitou na resposta que o português transmitiu a Guida. Fábio
tomando o amigo de parte instou com ele para aceitar a fineza do capitalista;
mas nada obteve.

– Decididamente, assim não iremos para adiante; é desenganar,
disse Fábio muito contrariado.

– Não tens razão; é justamente assim que podemos merecer
consideração, não aceitando uma posição
menos digna. Reflete bem: que figura ridícula não havíamos
de fazer naquela sociedade?
– A mesma que fazem os outros. Nem todos que freqüentam a casa do Soares,
são ricos.

– Decerto; mas os que não têm um tratamento correspondente
ou são amigos ou parasitas. Nenhum destes papéis nos cabe.

Fábio levantou os ombros. Tornou-lhe Ricardo:
– Não sou desses homens que ostentam um desprezo fingido pelo dinheiro
e odeiam os favoritos da fortuna. Ao contrário, quando a riqueza é
honestamente adquirida, eu a respeito e estimo, porque representa a meus olhos
o fruto, tão legítimo como brilhante, do trabalho; mas em caso
algum lhe sacrificarei minha dignidade: não me farei cortesão
dessa como de qualquer outra grandeza da terra. O lisonjeiro para mim é
um eunuco moral.

– Então um pobre não pode sem bajulação ter
relação com pessoas ricas? Que doutrina!
– Sem dúvida que pode, quando se estabelece uma certa igualdade social
por virtude de alguma causa, como, por exemplo, a amizade, o parentesco, uma
posição elevada, a consideração pública,
etc. Um escritor notável, embora nada tenha de seu, pode aceitar a
hospitalidade do milionário, porque trata de igual a igual; se este
é rei na praça, ele é rei na imprensa. Sua presença,
assim como a de todas as outras pessoas distintas, é honra que os ricos
solicitam.

– Neste caso, tu que tens talento e escreves bem, devias aceitar o convite;
era uma honra que fazias ao Soares.

– Obrigado pela ironia.

– Onde está a ironia?
– Somos dois pobretões obscuros; eu podia acrescentar de minha parte,
e desconhecido, por que realmente o sou nesta grande cidade. Em casa de um
milionário, no meio de uma sociedade habituada ao luxo e às
grandezas, qual seria nossa posição? Creio que a classifico
bem dizendo que faríamos o ponto de transição entre o
parasita e o criado; formaríamos o elo desses dois anéis da
cadeia.

– Com efeito! Modéstia tão requintada degenera em orgulho.
Entendes que não sendo dos primeiros, te rebaixas?
– É outra fragilidade que eu não tenho, Fábio, esse fofo
orgulho da pobreza, que serve de forro a um fingido desprezo da riqueza. Não
me envergonho de ser pobre, de parecê-lo e confessar em qualquer ocasião;
mas estou longe de fazer da minha pobreza uma espécie de dorna de Diógenes.
A falta de dinheiro pesa-me, sem contudo me acabrunhar; e justamente porque
ela me pesa, me elevo mais em minha consciência, sentindo-me incapaz
de cobiçar a fortuna adquirida por meios lícitos. Estás
portanto enganado, meu amigo; não tenho orgulho, mas dignidade.

– É a mesma coisa com diverso nome.

– Não: o orgulho é um impulso para elevar-se acima dos outros;
a dignidade é a firmeza, que não consente descer da posição
que nos compete. Ora, cada degrau que eu subisse da escada do Soares, era
um passo que descia do meu nível. Isolado no meio de tantos convidados,
desconhecido naquela sociedade habitual, perguntariam: “Que veio aqui
fazer este sujeito? – Prestou um pequeno serviço à filha do
comendador, responderia algum íntimo; se fosse um criado, dava-se uma
gorjeta; mas como é um pobre bacharel, convidaram-no a jantar”.

– Tu não conheces a sociedade do Rio de Janeiro; nunca a freqüentaste.
Julgas por São Paulo, ou por informações falsas.

– Conheço-a melhor do que tu, pela razão do provérbio
“que nos olhos dos outros vê-se o argueiro, e não se enxerga
no nosso o cavaleiro”. Bem sei que esses intrusos de que falo muitas
vezes, não só obtêm a tolerância, como se tornam
necessários; tocam quadrilhas, fazem dançar as feias, ou exaltam
as virtudes dos donos da casa. São os criados de galão amarelo
dos ricaços e banqueiros, ou um móvel de palácio, necessário
à comodidade e ao bem-estar, como um sofá de estofo, um tapete
aveludado, uma cadeira de balanço. Um traste, bem vês, que não
tem consciência do papel que representa; sai dali o tocador de quadrilhas,
por exemplo, acreditando que é um amigo da casa, e dos mais estimados.

– Se todos pensassem como tu, não haveria sociedade possível.

– Se todos pensassem como eu, a sociedade não seria o que é
hoje, uma floresta negra, onde o salteador de luva de pelica assalta o homem
honesto; onde o assassinato e o roubo tomam tantas vezes o nome de casamento
por amor e de aliança por amizade.

Já se vê pois quanto era difícil a missão de
que estava incumbido o Guimarães. Segundo todas as probabilidades,
o filho do procurador não escaparia naquele domingo ao recrutamento
a que Guida o condenara no caso de não apresentar substituto idôneo.
Tinha de sentar praça de cavaleiro servente de Mrs. Trowshy, pelo resto
do dia.

Para destruir os escrúpulos porventura exagerados de Ricardo, e demovê-lo
de sua primeira resolução, fora preciso um espírito hábil
e atilado, que sondasse os motivos de sua recusa e os abalasse. Ora, o Guimarães
era a mais positiva denegação dessas qualidades; só tinha
viveza para as frioleiras; incapaz de sentir, como de compreender as nobres
suscetibilidades da alma do colega, nunca poderia desvanecer-lhe a repugnância.

Ao contrário, nenhum tipo tão próprio para arredar
cada vez mais o jovem advogado da casa do Soares! O enfatuamento da riqueza,
a impertinência do herdeiro a quem a vida do pai retarda o gozo da legítima,
a ambigüidade dessa posição no meio de um passado de dívidas
e de um futuro de dissipação faziam daquele moço o contraste
vivo de quanto há de delicado no coração e de sensato
no espírito.

A presença, a simples presença daquele boneco, a torcer constantemente
o bigodinho, e a mirar-se todo em si mesmo, quando não encontrava um
espelho, produzia em um homem sério o efeito de uma lixa moral: eriçava
a epiderme d’alma. Essa fora a impressão que pela manhã, na
ocasião do passeio, o Guimarães deixara no ânimo do colega,
apesar de trocarem apenas algumas palavras.

Guida, pois, tinha errado. Querendo apressar a apresentação
de Ricardo, talvez a tivesse impedido. Se o Guimarães não fosse
à procura do moço, porventura um concurso de circunstâncias
levaria o jovem advogado à casa do comendador. Entretanto, agora, quem
sabe se a situação não se agravou, e a dificuldade mudou-se
em impossibilidade? a moça não podia prever todos os escrúpulos
de Ricardo; supunha que o obstáculo provinha apenas de uma questão
de forma. Entretanto, cumpre confessá-lo, não tinha ela plena
confiança na intervenção do Guimarães; o que até
então lhe parecera tão usual, uma simples apresentação,
agora se afigurava a seu espírito como um acontecimento, e quase tomava
as proporções de um lance dramático.

O Dr. Nogueira, sentando-se perto dela, tomara sobre a mesa um álbum
de paisagens da Suíça.

– Não tem vontade de passear à Europa, D. Guida? disse ele
folheando o álbum.

– Muita; por meu gosto já teria ido; mas papai prometeu-me que nestes
três anos me levaria.

– Há de ir antes, disse uma senhora sorrindo.

– É verdade! Acudiu outra que tinha compreendido a malícia
da observação. E sem o comendador!
O futuro deputado abaixara a cabeça, e parecia completamente absorvido
em ver as estampas. Recordava-se do incidente da flor, e não queria
provocar segundo motejo, quando procurava apagar a impressão do primeiro.

– Não entendo! dissera Guida fitando seu límpido olhar no
semblante da senhora.

– Casando-se, Guida. Agora é moda; as moças que podem vão
passar a lua-de-mel em Paris.

– É bem possível que me case antes de três anos, D.
Guilhermina; mas asseguro-lhe que não me lembro disso.

Guida pronunciou estas palavras com a maior calma. As contínuas alusões
a esse assunto, banalidades com que de ordinário se entretêm
as moças, a tinham habituado. Longe de corar ou perturbar-se, como
aquelas que sofrem desse fraco, ficava tão serena como se lhe falassem
do baile que havia de festejar os seus dezoito anos.

– Altdorf!… disse o Dr. Nogueira em meio solilóquio observando
a vista da cidade suíça. É a pátria do libertador:
de Guilherme Tell!
Guida lançara os olhos à estampa.

– A senhora recorda-se do fato? É o assunto de uma das mais belas
óperas do grande maestro, do imortal Rossini. Um elegante escritor
francês, Méry, observa com muito chiste, que esse primor de harmonia,
a música tão sublime do autor da Semíramis, foi escrito
sobre um libreto indigesto, sem merecimento e até sem gramática.
Isto prova, minhas senhoras, que o coração não precisa
para ser eloqüente nem de sintaxe, nem de retórica.

– Já se representou aqui no Rio de Janeiro essa ópera? perguntou
D. Guilhermina.

– Guilherme Tell? Sim, minha senhora; há muitos anos.

– Qual é o enredo?
– É com alguns episódios o fato histórico. Sabe que Gessler,
governador da Suíça e homem cruel, aborrecido com a fama de
bom archeiro que tinha um camponês, chamado Wilhelm, teve o bárbaro
capricho de obrigá-lo a atirar ao alvo em uma maçã colocada
sobre a cabeça do filho. Embora tivesse o archeiro plena confiança
em sua destreza, a idéia de que uma linha podia fazer dele um assassino
de seu próprio filho, o enchia de terror. Mas o que não pode
a vontade do homem? A flecha arrebatou a maçã da cabeça
do menino incólume. Contudo o pai já tinha outra embebida no
arco. “Para que esta segunda flecha?” perguntou o tirano.

– “Para ti, se eu tivesse a desgraça de ferir meu filho”.

– Bonito, não é, Guida?
– É com efeito admirável, continuou o doutor; entretanto a perícia
do alemão nada é a vista da destreza dos selvagens do Brasil.
Estes faziam coisas incríveis.

– Deveras?
– Furavam os olhos de um pássaro a voar; e flechavam o peixe dentro
d’água.

– Que vista! acudiu D. Guilhermina.

– Este ponto indica o lugar donde Guilherme Tell atirou. Aqui ele pronunciou
aquela palavra que foi o primeiro grito de liberdade de sua pátria.

– É então o Ipiranga da Suíça? disse Guida sorrindo.

– Justamente; mas o nosso Ipiranga não tem uma fonte, nem sequer
uma lápida, que comemore o dia 7 de Setembro. Bajulam-se os reis e
os grandes; mas não se honra a nação. Quando eu for deputado,
hei de advogar esta causa, que é a dos brios nacionais.

O doutor voltou a página:
– Esta é Friburgo, célebre por sua ermida, que um homem só,
cavou na rocha viva trabalhando 25 anos; verdadeiro milagre de fé e
paciência. Já ouvi contar um fato análogo, sucedido em
Minas; mas esse, a ser verdadeiro, é mais para admirar porque foi um
aleijado dos braços que trabalhava com os pés, e assim construiu
uma capela. Desta cidade de Friburgo assim vieram os primeiros colonos que
fundaram a nossa cidade do mesmo nome.

– Ah! Nova Friburgo. O ano passado lá estivemos! exclamou uma travessa
menina.

– Eis Genebra e o seu belo lago; é a pátria de Rousseau, de
Calvino, de Staël e outros personagens ilustres.

Continuou Nogueira por algum tempo essa viagem a vôo de pensamento
pelas montanhas da pitoresca Helvécia, que ele tinha visitado havia
três anos. Descreveu o aspecto dos campos e bosques durante o inverno,
e aquela natureza áspera e desabrida, que educa o homem para os grandes
cometimentos, ensinando-lhe o trabalho, como uma defesa contra o frio e a
fome.

Guida e as senhoras o escutavam embebidas, quando o Guimarães passou
defronte da janela.

– Onde iria o Guimarães? Perguntou o doutor com indiferença.

– Foi convidar a pessoa que ele ficou de nos apresentar, respondeu Guida
com a maior naturalidade.

A moça ergueu-se para saber o resultado da comissão. O Guimarães
vinha nadando em satisfação; de ordinário o porte do
moço e a sua compostura manifestavam o enlevo que ele sentia da própria
pessoa. Naquele momento, porém, era uma aleluia viva.

A filha do comendador e o Nogueira conjenturaram que o Guimarães
fora bem sucedido, mas cada um a seu modo.

– Vem; pensou a moça.

– Não vem, felizmente! cogitou o doutor.

O Nogueira não sabia da penitência que estava reservada ao
Guimarães; por isso entendia que o motivo de sua satisfação
era ver-se livre do novo e temível competidor, depois de haver delicadamente
condescendido com o desejo da moça.

– Então? perguntou Guida ao filho do procurador.

– Às quatro horas cá está.

– Obrigada, disse a menina apertando-lhe a mão.

Estava satisfeito seu capricho; não pensou mais nisso. Poucos instantes
depois, Nogueira encontrou-se com Guimarães:
– Já sei que foi infeliz em sua embaixada.

– Nada. Fiz como Napoleão; foi só ir, ver e vencer.

– Tenho ouvido atribuir estas palavras a César, replicou o doutor;
mas naturalmente há erros nos historiadores.

– César ou Napoleão, é a mesma coisa, com a diferença
de falar um o latim e o outro o francês.

– Neste caso as palavras que citou devem ser de algum César em português.
Mas então o sujeito vem? E o senhor chama a isto vencer? acrescentou
Nogueira chasqueando.

O Guimarães tinha com efeito vencido; mas não como ele dizia,
à maneira de César, em três tempos – veni, vidi, vici.
Havia nisso modéstia de sua parte. Fora mais do que César; mais
do que Alexandre: cortara o nó górdio com um revés da
língua. Não tivera tempo de chegar, nem de ver, e já
tinha vencido; bastou-lhe abrir a boca.

A coisa se passara deste modo. Próximo à casa de D. Joaquina,
Guimarães encontrou Fábio; este o desenganou. Atordoado, saiu-se
o Guimarães com uma pachouchada:
– Quem sabe se o Nunes não pregou algum calote no comendador e…

– Boa idéia! Atalhou Fábio a rir. Sabe que mais! Lá
vamos comer o jantar do homem.

– Olhe lá!
– Com certeza!… Eu me incumbo do negócio.

– Então às quatro horas?…

– Sem falta.

XI

Tinham dado três horas da tarde.

Guida recolhera a seu aposento; era o momento de vestir-se para o jantar.

Sentada defronte do toucador, percorria com os olhos os dois guarda-roupas,
cheios de vestidos de vários gostos e padrões. Conhecia-se que
estava embaraçada na escolha, e esperava alguma inspiração
para improvisar a ode de gaze, seda e rendas, que escrevem cada dia as senhoras
elegantes.

Há duas espécies de faceirice.

Uma é inocente e pura expansão da beleza. A mulher bonita
obedece a uma lei da natureza, revelando-se na plenitude de sua graça;
enfeita-se, como a flor desabrocha, como a estrela cintila, como o céu
se anila. Deus criou tais primores para serem admirados.

Esta faceirice é casta, sem afetação; seu desejo resume-se
em ser natural, em revelar a gentileza própria no maior brilho. É
a poesia de Horácio, a música de Bellini, a pintura de Rafael,
copiadas no traje da mulher formosa.

A outra faceirice consiste em uma orgulhosa ostentação da
beleza. A mulher não cede à força espontânea de
seu organismo, mas ao estímulo da vaidade. Adorna-se como o cristal
que imita o diamante, ou como a centelha que se afigura uma estrela na treva
da noite. É linda. Mas pretende ser esplêndida.

Esta faceirice vive da afetação, que transforma uma criatura
humana em um aleijão da moda. Não se contenta com ser admirada;
exige a adoração, o culto ardente de todos que a contemplam,
embora tenha de pagar com olhares e sorrisos o incenso que lhe queimam aos
pés.

Guida não tinha decerto esta faceirice de mau cunho, espécie
de ouro-pel da beleza; mas sentia, como toda a moça bonita, o desejo
inato de ser castamente admirada. Naquele dia esse desejo adquiria a intensidade
que costuma em ocasiões de espetáculos, festas e bailes.

Entretanto nada disso havia em casa do comendador Soares. Era o jantar habitual
dos domingos, talvez menos concorrido do que em semanas anteriores. Afora
as pessoas que tinham assistido ao almoço, ninguém mais se esperava
além dos dois bacharéis; mas a presença destes não
dava decerto o caráter de uma festa àquela simples reunião
campestre.

Quem pudesse acompanhar o pensamento de Guida, nessa ocasião, conheceria
sem dúvida a causa de seu embaraço na escolha do vestuário.
A menina, recostada na cadeira, tinha começado a calçar um par
de botinas cor de pérola; mas de repente se distraíra, permanecendo
na mesma posição, com o pezinho mimoso cruzado sobre o joelho
e os olhos fitos no espelho, onde parecia rastrear a sombra das cogitações
que lhe perpassavam na fronte pura.

Guida lembrava-se de seu primeiro encontro com Ricardo, e da série
de impressões que se tinham gravado em seu espírito desde aquele
momento.

Rindo-se da atitude de namorado em que vira o moço, e aproveitando
o pretexto para brincar com sua mestra, a menina pouca importância deu
àquele pequeno incidente; e já o tinha completamente esquecido,
quando, na volta do passeio, ouvira casualmente um trecho da conversa dos
dois amigos.

Como todas as pessoas que vivem na alta sociedade e em posição
superior, Guida estava acostumada à maledicência. Já não
estranhava, quando via uma ação ou uma palavra acremente censurada
pela mordacidade e pela inveja. Ela própria na sua qualidade de dote
milionário, disputado por tantos adoradores, não era um altar
onde se queimavam como incenso tantos despeitos e ciúmes?
Entretando a palavra grave de Ricardo, a opinião severa desse desconhecido,
pronunciada com a calma e firmeza da razão, traspassou a alma da moça
de uma sensação desagradável. O olhar que ela deixou
cair sobre os dois moços, foi de desdenhosa altivez; mas a eletricidade
do lampejo bem indicava que o coração se confrangera, e o céu
dessa alma pura se toldara.

– Ora! dizia Guida interiormente ao chegar à casa, que me importa
a opinião desse moço a meu respeito! Não tenho juízo?…
Mas não ando aos beijos com as flores que encontro! Não pareço
uma criança, apesar de ter dezesseis anos?… Se há homens que,
mesmo de cabelos brancos, ainda são meninos… Não é
de admirar…

Durante o resto do dia não se lembrou do incidente; mas à
tarde, a cena provocada por “Sofia” avivou as impressões
da manhã, dando-lhes porém novo aspecto. O mancebo, que lhe
aparecera de manhã como um pensador grave, mostrava-se agora elegante
cavaleiro; por outro lado, ela, que se queixara interiormente da censura do
desconhecido, não acabava de a justificar arriscando a vidad e um homem
com um de seus caprichos, a posse da cachorrinha mal-educada?
Quando Ricardo desapareceu na volta do caminho, uma voz murmurou num cantinho
da consciência:
– Ele tinha razão!…

Depois estas preocupações se afogaram de novo no entretenimento
da conversa e da música. Só ressurgiram um momento, antes de
adormecer, nesse crepúsculo da alma entre a vigília e o sono,
quando as impressões do dia flutuam vagamente diante do espírito
como objetos que se imegem na sombra.

A imagem de Ricardo beijando a flor perpassou no meio da visão. Nessa
hora em que a travessura do gênio alegre já estava sopitada,
o coração expandiu-se. Guida pensou que devia ser ardente e
sincero aquele amor que exalava, no ermo, à face de Deus; talvez fosse
um amor infeliz.

Se eu pudesse saber a sua história!
Adormeceu; e sonhou que encontrara a florzinha agreste cor de ouro, e que
esta lhe contara a razão por que o moço a beijava. Mas de manhã
não se lembrava mais da história; só lhe ficara a imagem
fugitiva do sonho.

As moças afagam muito os sonhos, quase tanto como costumam as mães
aos primeiros filhos. A razão é porque os sonhos são
os primeiros filhos da imaginação da menina que chega à
adolescência. Os desejos vagos, as tímidas esperanças,
os perfumes do coração, que não se animam a exalar-se
durante o dia, rescendem à noite, no abandono do sono, como o aroma
de certas flores que só abrem com o orvalho.

Guida ocupou-se durante o dia com o seu sonho; e passando pelo mesmo lugar
onde na véspera encontrara Ricardo, desejou ver a flor e conhecê-la.
Viu com efeito; achou-a muito linda; desde esse dia ficaram amigas. Sempre
que vinha desses lados quebrava alguns ramos, que levava consigo.

A lembrança de Ricardo se apagara completamente do espírito
de Guida, e do primeiro encontro não restava outro vestígio
senão a afeição à linda florzinha agreste, quando
o encontro na “Cascatinha” veio debuxar outra vez a reminiscência
fugitiva. Guida, que já havia notado o garbo e a beleza do “Galgo”,
pôde então contemplá-lo a seu gosto; e a estampa do lindo
cavalo foi a recordação que lhe ficou desse domingo.

Mais tarde o acaso lhe deparou a ocasião de ver a aquarela do álbum
de Ricardo. A suspeita ou pressentimento de que o desenho representava seu
vulto a cavalo, excitou-lhe vivamente a curiosidade. Ela daria sem hesitar
o mais querido dos seus caprichos, “Edgard” ou “Sofia”,
para ver aquela paisagem.

A imagem de Ricardo, passada a primeira impressão, desmaiava a pouco
e pouco. Os últimos encontros já não lhe destacavam os
contornos: o vulto do desconhecido permanecia vago, indistinto, no fundo das
reminiscências da moça. Fora um homem, um homem qualquer, que
passara um momento no horizonte de sua existência, e só lhe aparecia
agora como uma sombra.

O que estava bem gravado na alma de Guida, o que ela afagava em algum momento
de cisma, não era o moço, não; mas coisa muito diversa.
Era a linda flor agreste, a quem amava; era o formoso cavalo, que desejava
ardentemente possuir; era finalmente a aquarela do álbum, que ansiava
por ver Ricardo não figurava nas recordações da menina,
senão como um amigo da flor amada, como o dono do cavalo cobiçado,
e o autor do desenho misterioso.

Sem dúvida era agradável ao espírito de Guida que a
pessoa ligada a ela por essas relações, fosse um moço
distinto pela inteligência e educação. Nas poucas vezes
que de relançe vira o advogado, a moça tinha reconhecido ou
antes pressentido nele com o tato da mulher os dotes do espírito e
do coração. Por isso consentia que a lembrança do desconhecido
se associasse em sua memória aos objetos de seu desvelo.

O encontro daquela manhã não mudara a situação
do espírito de Guida. Ricardo dera novamente provas de delicadeza e
galanteria; deixara de ser um desconhecido, para assumir a posição
digna que lhe davam um grau científico e uma profissão nobre;
mas seus títulos ao interesse especial da menina continuavam os mesmos.
Se não fosse a flor, o cavalo e o desenho, passaria desapercebido aos
olhos da filha do milionário, ante a qual de curvavam diariamente tantas
distinções do talento, da posição e da riqueza.

Guida estimou bastante que Ricardo estivesse nas condições
de ser apresentado em sua casa, e que as circunstâncias facilitassem
essa apresentação. Mas por quê? Seja embora desconsolador
para o romance o motivo que influía no coração da menina,
não podemos ocultá-lo.

Desde que se estabelecessem relações com o moço, podia
ela satisfazer sua curiosidade de ver a aquarela, preparava a aquisição
do lindo animal, e teria um cavaleiro destro para dirigi-la no caso de ser
o “Galgo” fogoso demais para montaria de senhora; finalmente conversaria
sobre a flor querida, com alguém que também a amava. Mais tarde,
quem sabe? Saberia a história daqueles beijos ardentes; mas isso era
menos importante, já pertencia à imaginação e
não ao coração.

Realmente não há poesia que resista a essa fria autópsia
da alma e dissecação do sentimento.

Quando se devia esperar que os encontros românticos de uma moça
rica e bonita com um mancebo pobre, mas de grande talento e nobre caráter,
gerassem no coração virgem uma paixão poética
e generosa; quando se podia contar com um idílio gracioso bafejado
pelas auras suaves da Tijuca, perfumado pela fragrância das flores agrestes,
embalado pelo canto das aves de envolta com o murmúrio das águas,
e aljofrado pelos orvalhos daquele céu azul, o romancista não
acha mais do que um capricho de criança, uma curiosidade infantil,
um desejo de menina travessa.

Felizmente Ricardo não amava Guida, nem sentia por ela a vaga inquietação,
que anuncia crises de coração. Felizmente: porque do contrário
teria de sofrer a angústia de uma cruel decepção.

Depois de repassar estas reminiscências, o pensamento da menina voltou
ao objeto que as tinha provocado, à escolha do traje para aquele dia.
Precisava, queria agradar a Ricardo, e por isso estudava o meio, não
de excitar-lhe a admiração, deslumbrando-o como brilho da beleza
ou da opulência, mas sim de atraí-lo pela simpatia.

O resultado se sua cogitação foi repelir o par de botinas
que tinha na mão, um primor de arte: duas jóias de camurça
trabalhadas pelo Guilherme. As persianas da alcova cerraram-se, derramando
no aposento um doce crepúsculo. A beleza casta é violeta, que
só abre na sombra.

Ainda não eram quatro horas quando Guida apareceu na sala.

Tinha um vestido branco de extrema simplicidade, fitas no cinto e no cabelo,
botinas de duraque preto, e uma gargantilha de veludo da mesma cor, com um
medalhão de jaspe. Era de jaspe também a pulseira, ofuscada
pela alvura do braço mimoso, que surgia dos folhos da manga, como uma
magnólia dentre frocos de neve.

Só no andar se revelava a deusa, disfarçada com esse traje
modesto e comum. Apenas assomou na porta da sala, todos os olhares se fitaram
nela, e a alma de cada um de seus apaixonados desdobrou-se sobre o tapete,
para ter o sumo gozo de ser pisada por aquele passo airoso, que se desenvolvia
como a ascensão de um astro.

As senhoras porém não puderam conter a surpresa. Onde a filha
de um milionário, a moça mais elegante do Rio de Janeiro, conhecida
pelo seu luxo e bom gosto, onde fora buscar aquele traje comum, que uma menina
pobre aceitaria para chegar à tarde à janela, mas não
traria por certo em um domingo, quando houvesse visitas em casa? Algumas não
acreditariam uma hora antes que a filha do Soares possuísse em seu
guarda-roupa os acessórios precisos para criar um adereço tão
vulgar e rococó.

Guida conseguira portanto realizar seu pensamento. Achando em suas recordações
a imagem de Ricardo, como a de um moço pobre e de um caráter
austero, compreendeu, com a admirável intuição da sensibilidade
feminina, que o meio de atrair essa alma não era decerto a ostentação
d sua formosura e opulência; ao contrário, por esse modo aumentaria
a repugnância que levara o advogado a declinar o primeiro convite, e
sem dúvida o afastaria de sua casa.

Era preciso não magoar o pudor da pobreza, não irritar as
suscetibilidades de um espírito severo, para conciliar sua benevolência
e obter a sua estima. Bem quisera Guida eliminar em torno dela, da casa, das
salas, do jantar, dos convidados, o aparato da riqueza a que estava habituada;
mas, não sendo isso possível, desejou ao menos que sua pessoa
fosse um protesto contra o luxo que a cercava, e uma delicada fineza ao hóspede
esperado.

As fitas que ela trazia no cinto e no cabelo eram da cor do traje com que
andava ordinariamente o jovem advogado. Eu que descrevi esse traje no primeiro
encontro, já não me lembrava dele; mas Guida o achara no fundo
de suas reminiscências quando pouco antes estivera cismando. Não
há como as mulheres para guardarem estas arestas sutis no coração.

No seio, onde as bandas do corpinho se cruzavam, formando o níveo
regaço, brilhavam algumas flores e botões de ouro, colhidos
pelo advogado no passeio daquela manhã. Havia também nisso uma
fineza a Ricardo, um agradecimento à delicadeza com que satisfizera
o seu capricho de menina.

Inocente criança! Não pensava no mal que podia resultar desses
galanteios infantis.

Dentro em pouco devia chegar à sua casa um mancebo, a quem ela encontrara
por diversas vezes, e afinal abrira as portas de sua casa. Esse coração
jovem, ardente, podia notar as identificações da alma da moça
com a sua, expressas por uma combinação de cor ou pelo gosto
de uma flor: aí estava a centelha da paixão, a faísca
do incêndio que ela ia atear se querer.

Guida descera antes de quatro horas; queria assistir à chegada de
Ricardo, não só para evitar a solenidade de uma apresentação
em plena sala, como porque sentia que sua presença era indispensável
para desvanecer o acanhamento natural de quem pela primeira vez é introduzido
em uma sociedade desconhecida.

Davam quatro horas, quando Ricardo e Fábio com pontualidade escrupulosa
entravam na casa de Soares.

XII

O comendador Soares jogava a manilha com seus parceiros habituais, três
velhos amigos e camaradas.

O primeiro, à direita, era o barão do Saí. Natural
de Minas, onde começara a vida como tocador de tropa, em uma de suas
viagens à corte arrumou-se de caixeiro no armazém de mantimentos
do consignatário.

Aos cinqüenta anos achou-se o João Barbalho possuidor de algumas
centenas de contos; e convencido que não era próprio de um grande
capitalista chamar-se pela mesma forma que um moço tropeiro, trocou
por um título à-toa aquele nome que valia um brasão;
fidalgo brasão, se já o houve, pois era o do trabalho e perseverança,
e tinha por timbre e divisa a probidade.

O parceiro da esquerda fazia com o precedente o maior contraste. Curto,
esguio e encarquilhado, quanto o outro espaçoso e amplo, as mínguas
do corpo sobravam-lhe nas mãos e nariz, ou como diziam os malignos,
nas garras e no bico. Tudo o mais era miniatura.

O visconde de Aljuba começara a sua vida mercantil na escola, onde
exercia o mister de belchior. Livros, lápis, roupa, tudo ele comprava
por bagatela aos meninos, em princípio como agente de um negociante
de cacaréus da esquina, e depois por conta própria.

Quando o deram por pronto na escrita e tabuada, arranjou ele uma espelunca,
chamada casa de penhor, onde emprestava dinheiro especialmente aos pretos
quitandeiros. A pouco e pouco elevou-se a clientela, até que pôde
fechar em sua carteira as primeiras firmas da praça do Rio de Janeiro.

Foi então que, de repente, o Camacho transformado em visconde, sem
que ninguém pudesse atinar com o meio por que obtivera, logo de supetão,
aquele título, quando o costume era começar por barão.
Diziam uns que fora comprado, outros que lho tinham dado.

– Nem dado, nem comprado! acudia o Soares em tom de pilhéria. O velhaco
do Camacho empalmou o aljube, que lhe tinham dado de penhor, e fez-se visconde.
Com todo o direito! Não resta dúvida.

Os ouvintes riam; e o visconde, imperturbável, metia as mãos
nos bolsos e repetia com certo sonsonete que lhe era próprio, um dito
muito conhecido:
– A alma do negócio é o segredo.

Os amigos mais íntimos do Soares, sobretudo o barão do Saí,
por vezes lhe tinham feito observações a respeito da privança
a que ele admitia o visconde, cuja reputação dava para um excelente
herói do romance galote, atualmente na moda.

Mas o Soares, que lhe sabia as anedotas, galhofava.

– É preciso lidar com essa gente, para aprender-lhe as manhas, se
não corre-se o risco de ser-se enganado a cada instante. E quem as
conhece melhor do que o bicho?
Por isso o Soares, que era um gaiato de conta, a toda a hora, no jogo ou em
negócio, chamava o visconde de – “meu mestre”; com o que
este se lisonjeava, pois tinha para si que não era pequena glória
dar lições de velhacaria a um espertalhão daquele trope.

O último dos parceiros, que ficava fronteiro ao comendador, mostrava
uma figura respeitável. Poucas fisionomias possuem aquela sisudez,
tocada por uma expressão de mansuetude, exalação, ou
eflúvio d’lama, a ameigar as asperezas de uma consciência rígida
e austera.

Nada mais enganador porém do que esse prospecto de homem importante,
conhecido por Conselheiro Barros. Dentro, o que havia, era um desses entes
ambíguos, destinados a viver em perpétua irresolução,
almas bonachas e inertes, a quem a natureza de em vez de cabeça um
cabo, em lugar de coração uma azelha, para serem empunhados
por outrem, sem o que não se movem, nem se abalam.

Em casa, o Barros era manejado pela mulher; se ela não tinha de véspera
à noite apartado sobre um cabide a roupa necessária para o dia
seguinte, ele não se vestia, e era capaz de ficar até meio-dia
de chambre e chinelas, como já lhe acontecera. Nunca sabia quando tinha
fome, e seria escusado perguntarem-lhe; era D. Guilhermina quem lhe regulava
o apetite, o sono, e até a moléstia. Uma ocasião, ardendo
ele em febre, a mulher o persuadiu de que estava perfeitamente bom; levou-o
a um passeio em que apanharam sol e chuva. À noite, quando se recolheram,
o homem nada sentia.

Fora de casa, não saindo com ele, entregava-o a mulher a um lacaio
de confiança, que o levava a visitas e negócios indicados no
rol; ou o conduzia direito ao escritório, onde tomava conta dele o
seu jovem sócio e “suplente no mercantil e doméstico”,
segundo o maligno visconde da Aljuba.

Filho do consignatário, onde se arrumava em rapaz João Barbalho,
quando deu demão ao ofício de tocador de tropas, herdara o Barros
bom patrimônio, o qual se lhe multiplicava na burra, sem que ele se
apercebesse do como isso se fazia. Quando o sócio no fim do ano lhe
atestava com o balanço os grandes lucros da casa, não se imagina
o pasmo em que ficava por muitos dias.

Chegado o tempo de entrar para a roda dos figurões, lembrança
que bem se vê não partiu dele, mas da mulher, e entabulada a
negociação, tratou-se da escolha do título. D. Guilhermina
tinha paixão pelo de condessa, e achava que uma coroa de três
castelos ia às maravilhas com as tranças opulentas de seus cabelos
negros.

Desta vez, porém, o marido quis ter voto e ser homem. Preferiu o
título de conselheiro; e turrou de modo que não houve meios
de arrancá-lo daí. Nem a mulher, nem o sócio, nem mesmo
o Soares, que era um oráculo para ele, o demoveram do seu propósito.
Essas almas de gelatina têm isso de particular, que em se inteiriçando,
tornam-se guascas; não dobram mais.

Foi o único momento, em que esse homem, habituado desde a sua vinda
ao mundo a ser qualquer, foi eu. Toda a energia que devia ter despendido a
pequenas doses durante quarenta anos, acumulou-a para empregá-la de
um só jacto. Debalde tentaram persuadi-lo que podia ser conselheiro
e conde ao mesmo tempo contando que pagasse em proporção. Na
paga, não havia dúvida de sua parte; mas a prática do
mundo lhe ensinara que o conde mata o conselheiro; e se ele caísse
em afidalgar-se, ninguém o trataria jamais por “conselheiro Bastos”,
que era a sua grande ambição.

A maior concessão, a que chegou, foi consentir que a mulher se fizesse
condessa, ela só, ficando ele conselheiro. Neste sentido, a instâncias
de D. Guilhermina, deram-se os passos necessários; mas o governo, depois
de ouvir os mestres da lei, decidiu que uma condessa só pode ser mulher
de um conde.

Resignou-se pois D. Guilhermina, com o maior pesar, ao seu nome de batismo;
mas não perdeu de todo a esperança. Consta que apelou para a
emancipação das mulheres, idéia de que era ardente sectária,
e com razão, porque de seu casal foi ela sempre em contestação
o cabeça.

Já agora aproveitemos a ocasião para completar o quadro, com
alguns traços biográficos do Soares.

Era ele paulista; e dos quatro o mais moço, e mais rico ele só
do que todos os outros juntos. Viera ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos
onze anos de idade, tocando uma porcada, que trazia ao mercado seu tio, velho
roceiro de Lorena.

Naquele tempo as porcadas percorriam as ruas, como ainda hoje os bandos
de perus. Estando parados em uma rua, enquanto o velho comprava chita, um
moleque à sorrelfa introduziu no ouvido de um leitão uma bicha.
Ao estalo do foguete, espirrou o bacorinho, e ei-lo a correr espavorido. O
rapazinho barafustou atrás, para atar-lhe a corrida.

Mas corrida foi aquela que o meteu por um labirinto de ruas, onde a cabo
de uma hora achou-se às tontas, sem novas do bacorinho nem do tio.
Quanto mais procurava orientar-se, mais se atrapalhava; e todo o resto do
dia levou a quebrar esquinas, até que exausto de fome e de cansaço,
acocorou-se no vão de uma porta, a engolir as lágrimas que lhe
queriam saltar aos bugalhos.

Passava um menino de volta do colégio, acompanhado de seu pajem,
que sentindo lhe puxarem pelo jaqué, voltou-se e viu o lapuzinho, de
mãos postas a implorá-lo.

– Que tem você? perguntou-lhe com pena.

– Me perdi!
O menino era Barros, filho do consignatário, onde já estava
de caixeiro João Barbalho. Levou o caipirinha para a casa; e a família
compadecida o agasalhou, mandando em busca do velho roceiro, que não
foi possível encontrar apesar de todas as pesquisas. Resolvido a encarreirar
o rapazito, o consignatário o arranjou de caixeiro em casa de um cambista;
e aí começou ele a carreira que devia levá-lo ao apogeu
da riqueza.

De gênio franco e jovial, tinha Soares uma fonte perene de alegria,
com que orvalhava as agruras da vida; mas através dos risos e pilhérias,
seu espírito pronto e seguro trabalhava com a inflexibilidade da moda
de aço que move as figuras de um realejo.

Suas melhores operações, combinava-as no meio de um jantar
ou de uma partida de jogo, e executava-as a galhofar. Brincava com seus milhões,
como um menino com seus trebelhos.

Sendo de todos o mais rico, era para notar-se que fosse o menos graduado.
A comenda era uma história, e vale a pena saber-se.

Quando a riqueza de Soares tornou-se sólida e incontestável,
até para os invejosos, começaram a chamá-lo de comendador,
e por mais que o milionário metesse a coisa a ridículo, defendendo-se
contra a honraria, por tal modo vulgarizou-se o tratamento, que não
houve meio de resistir-lhe. O público soberano entendeu que um homem
tão recheado de ouro não podia existir sem que fosse ao menos
comendador, como qualquer troca-tintas.

– Ora pois! dizia o Soares, eis-me comendador por unânime aclamação
dos povos. Mas há de ser da ordem do bacorinho!
Essa referência à humildade de sua origem, ele a fazia freqüentemente;
e percebia-se que tinha sua vaidade em ter subido de tão baixo àquela
sumidade financeira. Custava-lhe a compreender o vexame do barão do
Saí, quando aludiam ao começo de sua carreira, e por isso estava
sempre a apoquentar o amigo chamando-o de barão do lote, com o que
este se resmoía.

Ficou pois o Soares comendador, por uso e cortesia, como tanta gente boa;
e ninguém havia nesta corte imperial que não o acreditasse inscrito
no grande livro das ordens; no que de todo não erravam, pois era ele
terceiro de São Francisco de Paula. Mas este Santo não consta
que fosse cavaleiro, e palmilhava como qualquer plebeu sem esporas, nem prosápias.

Em cartas, sobretudo nas de empenho, em listas de acionistas de banco, chapas
de diretores, e gazetilhas, lá vinha estampado o infalível “comendador”;
que aderira ao nome do Soares, como uma dessas alcunhas implacáveis
que perseguem certos indivíduos toda a vida, e afinal colam-se à
geração, criam raízes e transmitem-se a toda a descendência.
O público é um tirano, e bem gaiato às vezes.

É bem possível, pois, que à imitação
dos mais, já o trataste eu de comendador e continue a fazê-lo.

XIII

A partida estava empenhada. O Barros fizera a vaza; cabia-lhe a mão.

– Quem joga? perguntou Soares.

– É o conselheiro! respondeu o Barão.

– Então podemos ir jantar. Temos tempo, e ainda chegaremos cedo.

De fato o Barros, na forma do costume, esperava que o concílio dos
sujeitos que o estavam aperuando, decidisse a grande questão da melhor
carta a jogar.

– O homem quer abarrotar-nos? observou o visconde. Está pensando.

– Anda conselheiro, instou o Soares; se pensas tanto, ficas em branco para
outra vez.

O banqueiro queria bem, do fundo d’alma, ao filho de seu falecido benfeitor,
e por ele faria todos os sacrifícios. Mas a veia sarcástica,
que ao próprio dono não poupava, às vezes sem ele o querer,
beliscava o inofensivo e pachorrento amigo. Nunca o Soares pudera tomar ao
sério o título de conselheiro do Barros; e por isso inventara
aquele termo mais apropriado, pela etimologia idêntica à de cabeleireiro.

Impassível como sempre, o Barros nem se ressentiu, nem se apressou.

Foi nessa ocasião que aproximou-se o Guimarães, acompanhado
de Ricardo e Fábio, a quem fora receber na entrada:
– Sr. Comendador, tenho o prazer de apresentar-lhe os meus amigos, os Srs.
Dr. Nunes e Dr. Araújo!
– Tenho muito prazer em conhecê-los! Esta casa está sempre ao
seu dispor, quando queiram. Nada de cerimônias. Estamos em família!
Estas palavras, Soares as proferiu soerguendo-se da cadeira, no tom de cortesia
e amabilidade corriqueira, de que na sua qualidade de milionário era
obrigado a fazer gasto freqüente com a turba de parasitas e gaudérios,
que assaltam as casas ricas.

Depois do usual aperto de mão, voltava à partida que fora
um instante distraído, e já esquecera os novos hóspedes,
em cujas feições nem reparara, quando sentiu no ombro o doce
toque da mão de Guida:
– Papai, é o Dr. Nunes que esta manhã encontramos no passeio.

– Ah! exclamou o milionário erguendo-se e abandonando a mesa do jogo.

Notara Guida de parte a desagradável impressão que deixara
na fisionomia de Ricardo aquele acolhimento de carregação que
lhe fizera o banqueiro; e por isso indiretamente advertira o pai de que tratava-se
de um hóspede especial, e não de um intrometido.

– Eu é que devia primeiro visitá-lo, doutor, para agradecer-lhe
seus obséquios; mas os velhos merecem desculpa dessas faltas, não
é assim?
– Quando as há; mas neste caso, só vejo uma extrema fineza da
sua parte, Sr. Comendador.

– Perdão! Não tenho comenda de qualidade alguma; é
uma intriga de certa gente. Não faça caso. Chame-se Soares,
sem mais.

– Queira desculpar, acudiu Ricardo. Eu não sabia, Sr. Soares.

– Sem dúvida, nem vale a pena falar mais nisso. Quero apresentá-lo
à minha mulher. Onde está tua mãe, Guida?
– Na sala.

Apresentando Ricardo a D. Paulina, o Soares deixou-o em companhia das senhoras.

– Desceu muito depressa a Pedra Bonita? disse Guida ao advogado. Nós
voltamos logo depois e já não o avistamos.

– Estavam à minha espera.

– E o seu cavalo é muito bom!
– Está acostumado aos morros. É um bonito passeio o da Pedra
Bonita; não o tinha feito ainda.

– Que pena! Não chegarmos até acima! disse D. Clarinha.

– Iremos outra vez! acudiu Guida.

– Depois que o encontramos, o senhor não faz idéia, Guida
ficou impaciente por voltar! disse a sonsa da Clarinha.

– O sol estava muito quente! observou Ricardo.

– Não foi por isso; o passeio tinha perdido a graça para mim,
respondeu a altiva menina com serena candidez.

Fábio conversava com D. Paulina, que ria-se dos seus gracejos. Guida,
que se afastara do grupo das senhoras para sentar-se perto da mãe,
tomou parte na conversa; e à hora do jantar estavam, ela e Fábio,
muito camaradas um do outro.

Na ocasião de passarem à sala da comida, Fábio aproximando-se
de Ricardo, disse-lhe rapidamente ao ouvido:
– Então ainda achas que fiz mal?
Ricardo encolheu os ombros. Fábio o tinha resolvido contra vontade
a aceitar o convite do Soares. Para isso foi necessário afiançar-lhe
que dera sua palavra de honra a Guimarães, e o fizera para esmagar
a calúnia de que ele se tornara eco.

Era Ricardo dos homens para que não há bagatelas em matéria
de probidade. Desde que exigiam dele um sacrifício em nome dos escrúpulos
de consciência e do respeito à palavra de honra, era certo obtê-lo
ainda que se tratasse de uma ninharia. Assim exprobrando a Fábio de
se haver comprometido sem o consultar, e quando já conhecia sua repugnância,
se resignou à humilhação de que bem desejava poupar-se.

O primeiro acolhimento de Soares foi como uma nomeação que
ele recebesse, ali ante toda gente, de parasita da casa. O sentido daquelas
palavras feitas em amabilidade, à guisa de filhoses de algodão,
ele bem o compreendeu: “Entra; eu te admito no rol dos gaudérios
desta casa; come, diverte-te, intriga; arranja teus negócios; caloteia
os meus amigos; namora nossas filhas; desfruta-me por todos modos. Dou-te
licença para tudo, até para falares mal de mim; contanto que
mobilies minha casa com decência. Tenho grandes salas, ricos tapetes,
cadeiras de estofo, soberbos jantares; mas preciso de gente de casaca, para
encher estas salas, pisar esses tapetes, sentar-se nessas cadeiras, e comer
estes jantares.”
A Ricardo não surpreendeu a recepção: ele a esperava.
Todavia incomodou-o tanto a realidade que decidiu eclipsar-se no meio da confusão,
e retirar-se antes do jantar, sem prevenir Fábio.

Demoveu-o desse intento a distinção com que logo depois o
tratou Soares e a família. As prevenções que trazia,
se de todo não se dissiparam, ao menos emudeceram, diante do caráter
franco do banqueiro, da singeleza ingênua de D. Paulina, e na natural
e graciosa isenção de Guida, que parecia flor exótica
naquele áureo clima do milhão.

Sentiu que deixara de ser um número de rol, um anônimo perdido
na turba; e por conseguinte não tinha já o direito de se escapar,
sem dar satisfação. A delicadeza, e também o assomo ainda
vago dum desejo a espontar, exigiam que assistisse ao banquete do Soares.

– Chamam-nos para jantar! disse o dono da casa convidando com um gesto seus
hóspedes a passarem ao salão.

A Ricardo estava destinado um lugar à direita de D. Paulina; quanto
a Fábio, como não se lembravam dele, e pela simples razão
de já haver tomado conta da casa, a igual de conhecido velho, foi colocando-se
ao lado de D. Guilhermina, que mostrava-se encantada com a lábia cintilante
e espirituosa do bacharel.

– Doutor Nunes, cuide de si! disse o Soares logo depois de tomada a sopa,
senão minha mulher deixa-o com fome.

– Fico prevenido! respondeu Ricardo sorrindo.

– Está sempre a brincar! Observou D. Paulina, respondendo ao sorriso
do moço.

– Como quer começar? À francesa pelo peixe, ou cá à
nossa moda brasileira pelo cozido? tornou o dono da casa.

– Já estou servido.

Um criado acabava de trazer o prato de peixe, que lhe servira a Guida fazendo
como de costume as honras da casa.

No correr do jantar conversando com D. Paulina, Ricardo sentia um prazer
íntimo, como que um aroma das rosas guardadas no seio d’alma. Era que
o aspecto sereno da senhora, a efusão de bondade que ressumbrava de
toda a sua pessoa, e especialmente as maneiras tão lhanas, lhe estavam
retratando na imaginação o aspecto venerável de sua mãe,
e mostrando a tal como havia de ser, se a fortuna a colocasse no pináculo
da riqueza.

Às vezes, Guida sentada à cabeceira e atenta a seus deveres
de dona-de-casa, que ela exercia com exímio tato, intervinha com alguma
observação na conversa de D. Paulina; e Ricardo recordava-se
de Bela, tão linda como a filha do banqueiro, embora lhe faltasse o
garbo que dava ao talhe da última supremo realce.

Falando a mãe dos vários sítios da Tijuca, a moça
disse para Ricardo:
– Domingo, havemos de ir à Vista Chinesa!
– Com muito prazer.

– É um passeio agradável! observou D. Paulina.

– A vista é soberba; mas como passeio, a Barra.

– E tem razão; é mais pitoresco! replicou Ricardo.

– Por que então não convidaste antes o Sr. Dr. Nunes para
ir à Barra?
– Por quê?…repetiu Guida a sorrir. O caminho do Jardim é melhor
para galopar.

– Travessa! disse D. Paulina com bondade.

– Gosta muito de andar a cavalo? perguntou o advogado.

– Muito! É minha paixão!…

Ao exíguo visconde, sumido atrás do enorme peru, não
escapavam as várias impressões que se manifestavam na fisionomia
do banquete, sob o ruído da conversa banal travada de uma à
outra ponta da mesa, e acompanhada do tinir dos cristais e ranger dos talheres.

“O prato é o homem”; tradução livre do axioma
de Brillat-Savarin: “Dis-moi ce que tu manges, je te diirai ce que tu
es”. Diante do visconde erguia-se um coculo de iguarias; mas era um cúmulo
usurário e avarento; compunha-se de uma nica de cada coisa. Servia-se
do primeiro ao último dos acepipes; mas só tirava o juro: uns
magros 3%.

Com dois daqueles pratos enciclopédicos, estava jantado.

Nesse momento comia ele rapidamente, resmoendo com um dos tais bocados esta
palavra, que lhe restava a fazer cócegas nos lábios:
– Que álgebra!… Que álgebra!…

Na linguagem peculiar do visconde “álgebra” significava
uma dessas operações intrincadas de juros acumulados e múltiplos,
inseridos em cláusulas aleatórias e onzeneiras, que fulminam
o mísero caído nas garras de um capitalista mitrado.

Notara o modo atencioso com que o Soares, depois da sutil advertência
da filha, tratara a Ricardo; também a fineza de o colocarem à
direita de D. Paulina; e por último o gesto sério e meigo com
que lhe falava a Guida, para os outros sempre desdenhosa com o remoque a frisar-lhe
o lábio.

Lobrigou nesse concurso de circunstâncias um plano de casamento, que,
bem conduzido, podia ao cabo de um ano tornar Ricardo o feliz possuidor de
um dote milionário, com o acessório de uma galante pequena.

E o capitalista, que houvesse fornecido ao noivo em projeto os fundos necessários
para sustentar a posição, poderia retirar da operação
um lucro prodigioso.

No meio deste monólogo que reproduzimos sem o sainete de seu estilo
financeiro, o visconde começou a calcular, como se fossem algarismos,
os grãos de ervilha que espetava no garfo:
– Vamos ver: 500$ por mês, para o patife lordear por aí e meter
num chinelo a rapaziada da rua do Ouvidor; em um ano, temos 6:000$, dois anos
que digamos, 12:000$. Para o alfaiate, charutos, carro e o diabo, ponhamos
8:000$, sem falar dos calotes que ele há de pregar à grande.
Aí temos 20:000$. Com um juro magro, de 3%, acumulado de mês
em mês, vai ficar-me o tal boneco um tanto salgadete. Mas pode render
uns duzentos contecos…

Nesse ponto o visconde foi interrompido por um incidente.

O Dr. Nogueira observava o enlevo de D. Guilhermina a escutar os floreios
que Fábio murmurava-lhe a meio tom; derreando-se no encosto da cadeira,
passou por fora da mesa ao Bastos, colocado três lugares mais longe,
uma observação maliciosa.

O Guimarães que de passagem apanhara o dito, percebendo pelo riso
do Bastos que havia espírito, assentou de aproveitá-lo.

– Meus senhores, uma novidade!
– A firma Barros e Cia vai admitir um sócio de indústria, gritou
repetindo textualmente e dito do Nogueira.

Felizmente poucos lhe davam atenção; mas nestes o pasmo foi
geral. Percebendo pelo espanto quanto era crespa a graça, o Guimarães
tratou logo de tirar de si a responsabilidade.

– Foi o Dr. Nogueira que disse!
– Não costumo falar por procurador, meu caro! acudiu o candidato, carregando
na palavra.

O Guimarães, que se envergonhava da profissão do pai, amoitou-se,
remexendo-se na cadeira.

XIV

Que luzida companhia desfila pela estrada do Jardim?
Assim é conhecido o caminho que serpeja pelas encostas da serra da
Tijuca, e contornando a base da montanha desde a Cruz, no alto da Boa Vista,
vai morrer das praias de Copacabana.

Cerca de dez cavaleiros, entre os quais elegantes amazonas, baralham-se
na marcha ligeira e trote dos fogosos cavalos, soltando à brisa da
manhã e aos ecos das quebradas, exclamações de prazer,
réplicas joviais, e o saboroso riso da alegria descuidosa.

A uma quadra de distância aparecia outro pequeno grupo, do qual cavaleiros
e cavalgaduras faziam com o primeiro absoluto contraste.

Era figura proeminente nele Mrs. Trowshy, flanqueada à direita pelo
visconde da Aljuba, e à esquerda pelo Sr. Benício, um dos mais
assíduos comensais da casa do comendador. Seguia-os à cola o
Sr. Daniel, como sempre metido naquele sério e empertigado, que lhe
servia de estojo.

Os quatro iam montados em mulas baias, que no mais cadente chouto os chocalhava
dentro das roupas e da pele, como sacos metidos em bruacas. Por vezes Mrs.
Trowshy, amiga da palestra, buscou travar conversa com o visconde; mas a voz,
já prestes a sair da boca aberta, com o solavanco afundou-se-lhe pela
garganta abaixo; e não houve meio de tirar senão um gorgotão.

Condenados assim ao silêncio forçado, e sacolejados até
o âmago, os quatro companheiros de passeio, temendo esbroarem-se com
o trote infernal, haviam tentado cada um por sua conta moderar o ardor à
respectiva mula; mas fora baldado o intento. As baias estavam postadas, e
não havia modo de dobrar-lhes os queixos, por mais que puxassem dos
freios.

Se uma parasse, todas a imitariam; mas aí estava a dificuldade, que
nenhuma queria ser a primeira; entendiam lá entre si que a sua dignidade
burresca sofreria com semelhante condescendência.

Afinal a inglesa não pôde mais com o vascolejo, que estava
por um tris a sacudi-la pela boca fora; pediu socorro ao Sr. Daniel, que também
se via nos mesmos apertos.

– Se…nhor, nhor, nhor… Da…ni, ni, ni…

Ouvindo afrautar-se a voz de Mrs. Trowshy à maneira de fuga entre
bemol e sustenido, pensou o criado que a mestra ensaiava alguma ária
italiana, onde figurasse um tenor com o seu nome, o que lhe fazia lá
por dentro umas cócegas mui gostosas.

Foi quando a última sílaba de seu nome, depois de gargarejar
algum tempo na solnora laringe da professora, e rompendo afinal dos queixos
britanicamente cerrados como uma bala raiada, vibrou um grito de angústia,
que o Sr. Daniel, subitamente arrancado ao seu enlevo, compreendeu o susto
da mestra.

No trêmulo olhar que lhe permitia o chouto valente da mula, viu o
grosso volume da inglesa aos trambolhões na sela, e por tal modo, que
ia a despencar-se ao chão, e só por milagre escapara até
aquele momento.

Bem quis o Daniel parar a mula e apear-se para acudir a tempo; mas ainda
uma vez convenceu-se que nem sempre governa o de cima. Quando ruminava essa
reflexão filosófica, ouviu-se um gemido, e a inglesa adernando
então completamente como uma corveta inglesa de quarenta canhões,
despenhou-se da sela abaixo.

Deu-se nesta ocasião, porém, um incidente, que precisa de
explicação.

As mulas em que vinham os quatro companheiros de passeio, eram as baias
do tiro do comendador Soares, acostumadas a trabalhar juntas, quando a vitória
ia à Tijuca ou ao Jardim, puxada a quatro. Naquela manhã, crescendo
o número dos passeantes, foi necessário recorrer a esses animais,
que passavam por dar sela.

A “Gatinha”, que era a mão da primeira parelha, tocou a
Mrs. Trowshy; e a “Sinhá”, sua companheira, ao Daniel. Da
Segunda parelha deram a da mão ao visconde, que por exceção
naquele Domingo arvorou-se em passeante, e meteu-se no meio da rapaziada;
a da sela ficou para o Benício.

Ora, desde o princípio do passeio que as mulas procuravam emparelhar-se,
como de costume; mas a “Gatinha”, fustigada pela inglesa, metera-se
entre as duas da outra parelha; e a “Sinhá”, a quem o Daniel
trazia bem esticada a rédea, era obrigada a ficar atrás.

Com o susto, soltou o criado de todo a rédea; de modo que a “Sinhá”,
metendo o focinho, alongou-se pelos ilhais da companheira, e tão a
tempo, que o busto respeitável da matrona, ao virar de querena, encontrou
o toro magriço mas rijo do Daniel, que lhe serviu de espeque.

Emparelhadas e de rédeas soltas, as duas mulinhas despregaram pelo
macadame um trote bonito, que era o orgulho do cocheiro do Soares, mas nesse
momento causava o desespero do Daniel, agarrado ao arção para
escorar a rotunda que desabara sobre ele.

Todavia, ao cabo de alguns instantes sentiu que ele próprio ia aluir-se
ao peso da carga; na sua aflição gritou aos outros:
– Acudam, ó senhores, que eu só não agüento!
O visconde e o Benício, cuja parelha trotava no coice da outra, como
se a prendessem os tirantes e guias da carruagem, não pediam aos céus
outra coisa senão que lhes fosse dado parar as mulas e pôr um
termo àquele chouto formidável, que ia com certeza esmoer-lhes
os ossos e bater-lhes manteiga dos miolos amassados dentro da cachola.

– Então, senhores! Exclamou o Daniel já esmagado, mas tentando
um surto. Deixam cair a mestra de D. Guidinha?
O principal cuidado do ilhéu era a sua esposa, ameaçada seriamente
de ser despenhada com aquele desabe humano que por seguro o achatava em terra.

Na impossibilidade de sofrearem as mulas e fazê-las parar a fim de,
apeados, acudirem ao Daniel e ampararem da queda a inglesa, os dois acólitos
tiveram nesse transe supremo um rasgo heróico. Estendidos, quase deitados
ao pescoço das baias, cada um inteiriçando o braço direito,
meteu a mão a trambolho luso-britânico e o afincou na sela.

Afinado cada vez mais no trote largo e cadente, o tiro das mulas despejou
o caminho às braçadas, conduzindo em charola a grotesca penca
dos quatro; e com pouca demora apanhou a luzida comitiva, que já tinha
moderado o primeiro ardor.

Ao dar com o grupo cômico, digno de uma farsa eqüestre em circo
de cavalinhos, despregou-se o riso de todos os lábios, e uma gargalhada
estrepitosa rolou pelas quebradas da serra, como a cascata grande da Tijuca
a espadanar por entre os fraguedos.

Topando com outros animais, as baias moderaram o entusiasmo e afinal estacaram,
pois a um aceno de Guida alguns cavaleiros tinham saltado ao chão a
tempo de apararem na queda a cambulhada humana, que já de todo pendurada
sobre as ancas da “Sinhá” ia finalmente despencar-se.

Concertada a marcha da comitiva, continuou ela a passo por algum tempo,
não só para dar respiro à batida dos animais, como sobretudo
para que Mrs. Trowshy e os seus companheiros de tiro tornassem a si da esfrega
e pudessem de novo soldar-se na sela.

Na frente ia Guida, montada no “Galgo”, que ela governava com
a mesma elegância e correção do costume, mas com certa
prevenção que se revelava na firmeza do gesto e vivacidade do
olhar. Ela sentia que não tinha de haver-se com a arrogância
aristocrática do filho de Álbion, mas com a briosa independência
do árdego curitiano.

Perto da moça vinha Ricardo em “Edgard”, conversando com
D. Clarinha. Aos lados, Guimarães e o Bastos disputavam a direita ou
a esquerda da moça, conforme as sinuosidades do caminho e evoluções
da cavalgada.

No segundo plano notava-se D. Guilhermina a par com Fábio, que se
desempenava em um soberbo cavalo campista, cujo defeito único era ser
um tanto pesado. Seguiam-se outras moças e cavaleiros, sem contar a
bagagem pesada, que fechava agora o bando.

Eram sete horas da manhã, e pouco havia que o rancho alegre partira.

Conforme o ajuste do domingo precedente, Ricardo às seis horas se
dirigira à casa do Soares. Não lhe causava o mínimo alvoroto
esse passeio; dispunha-se a ele, como ao cumprimento de um dever de cortesia.

Guida o convidara para obsequiá-lo; e ele, que reconhecia-se injusto
nas prevenções que nutrira contra o banqueiro e sua família,
considerava-se obrigado em consciência a aceitar de rosto alegre o agasalho
que lhe faziam nessa casa. Era o único meio que tinha de agradecer
a fineza.

Todavia, não foi esse o principal motivo. Da conversa de Fábio,
percebeu ele que o amigo ardia em desejos de tomar parte no passeio, e não
faltaria por certo, se o “Galgo” pudesse dividir-se em dois ou estivesse
em moda a garupa.

Desde então Ricardo, que tinha suas razões, não hesitou
mais; e decidiu-se a ir ao passeio, para evitar que Fábio o substituísse.

Muito cedo, pois, chegou à casa do Soares. Grande porém foi
a sua surpresa, e não menor a contrariedade, avistando no pátio,
entre o grupo de senhoras e cavaleiros, que se preparavam para montar, a Fábio
ocupado em apertar a cilha do cavalo de D. Guilhermina.

Madrugando nesse dia, contra o costume, o sobrinho de D. Joaquina se aprontara
e saíra a passeio para o lado da Boa Vista. Afagava-o uma esperança.

Em caminho encontrou D. Guilhermina que voltava do banho com outras:
– Então não vai à “Vista dos Chins?” perguntou
ela.

– Não arranjei animal! respondeu Fábio.

– Que desculpa! Eu lhe empresto um. Venha!
Fábio acompanhou as senhoras à casa do Soares. No pátio
já estavam arreando os animais. D. Guilhermina chamou um escravo:
– O cavalo do Sr. Lima aqui para o Sr. Dr. Fábio.

– Sim, senhora.

– Este castanho é o seu? perguntou Fábio.

– Acha bonito?
– Soberbo!
Guida, que descia os degraus da escada, viu Ricardo apear-se, e foi-lhe ao
encontro:
– Como passou?
Saudara ao moço com estas palavras e um aperto de mão; mas o
olhar cheio de afagos foi para o “Galgo”. Havia nesse olhar a angélica
voluptuosidade com que a moça cobiça um capricho, e a menina
uma boneca.

“Edgarg” estava pronto e esperava pela senhora. O estribo de Guida
era feito de modo que lhe permitia montar sem auxílio de banco, apesar
da altura do cavalo. Era um simples invenção de seu gênio
travesso, a qual o melhor corrieiro da corte, o Lambet, se incumbira de pôr
em prática. A volta do loro passando na mola atravessava o suadouro
e prendia-se no outro lado a um pequeno gancho pregado na armação
do selim e elegantemente disfarçado por uma aba de couro.

Antes de montar o loro frouxo descia o estribo até o ponto de não
constranger; elevando-se rapidamente sobre esse apoio, de um salto a moça
galgava o selim; e recolhendo o loro, prendia-o mais curto, encaixando o ilhó
no gancho.

Assim tinha ela a liberdade de apear-se quando queria, durante o passeio,
e montar sem auxílio estranho.

Já estava com o pé no estribo, e a ampla saia do roupão
mostrava a ponta da bota castanha a brincar sobre o disco de aço quando,
tomada de súbito a desgosto, afastou-se de “Edgard”:
– Aborrece-me este cavalo!… disse ela com enfado. Pedro!…

O preto acudiu.

– Não há outro animal para mim?
– E o alazão? perguntou o preto embasbacado e apontando para o “isabel”.

– Não quero este!… É muito feio.

– Oh! que injustiça! disse Ricardo sorrindo.

– O senhor acha bonito?
– É um soberbo animal.

– Pois vá nele.

– E a senhora?
– Eu irei em qualquer.

– De modo algum. Se o “Galgo” não fosse tão esperto!
– Por isso não! Mas o senhor não se há de privar por
minha causa. Não; eu fico, vou passear a pé.

Depois de alguns escrúpulos mais por parte de Guida, a instâncias
de Ricardo, fez-se a troca; e partiu enfim a passeata.

XV

Em uma aberta do mato que borda o caminho, avistaram os passeantes ao longe
a barra da Tijuca, ao longo da qual estendia-se o cordão de espuma
das vagas, como uma franja de arminho, guarnecendo o manto de cetim do oceano,
a embeber o azul do céu.

Os passeantes saudaram com uma exclamação de prazer o quadro
encantador daquela marinha, tocada pelos raios do sol nascente, que aveludava
as cores mimosas da palheta americana.

Com um pouco, dobraram o “Canto da saudade”, e os olhos desafogados
do arvoredo que vestia a orla do caminho, se desdobraram ávidos pelos
horizontes abertos, recreando-se com a paisagem de várias chácaras,
derramadas no vale, ou alteadas pelas assomadas das fronteiras colinas.

Entre estas notam-se principalmente duas, a do Moke, por ser das residências
mais antigas que se estabeleceram nesse aprazível sítio; e a
do Dr. Cochrane, arranjada à feição de um modesto parque
inglês, o que lhe atraía outrora grande número de visitantes.

Aqueles dos passeantes, que mais conheciam o prédio por tê-lo
percorrido freqüentes vezes, apontavam de longe os vários pontos
de recreio:
– Olhe, lá está o lago!
– E a ilha!
– Ali, por aquele caminho vai sair-se na “Cascatinha”.

– Lá naquele morro é a “Vista do mar”.

– Como se chama a ilha?
– Malacoff.

E outras exclamações.

Talvez nessa ocasião percorria o escritor destas páginas as
bordas do lago sereno, em seu passeio matinal, bem longe de imaginar que teria
de referir a comédia, cujas figuras principais passavam ao longe, sem
que ele as percebesse.

Entre todos os alegres companheiros, só Ricardo mostrava-se reservado,
como já era naturalmente fora da intimidade, e ainda mais quando tinha
preso o espírito de uma constante preocupação.

Seu olhar inquieto se repartia entre Guida, que ia perto, mas pouco adiante,
e Fábio, que o seguia a pequena distância, do lado oposto.

Percebendo o desejo de Guida, o moço insistira em satisfazer-lhe
inocente capricho, com o oferecimento do “Galgo” para aquele passeio.

Causava-lhe tão íntimo prazer a circunstância de poder
ele, um pobretão, prestar um obséquio no meio daquela sociedade
cosida a ouro, que os primeiros receios sobre o animal se desvaneceram com
a segurança da gentil amazona.

A caminho, porém, conheceu Ricardo que embora Guida se mostrasse
tão destra, como era elegante cavaleira, todavia o seu pulso delicado,
que cerrava o canhão da luva de camurça amarela como a corola
de um jacinto a desabrochar, teria o vigor necessário para domar a
impetuosidade do generoso corcel?
E o “Galgo” nessa manhã estava nem de propósito em
um de seus momentos de fogo. A presença dos outros animais excitava-lhe
os brios generosos; e o ar puro da manhã, que ele hauria às
golfadas para lançar das narinas em fumo ardente, parecia repassá-lo
da ligeireza e mobilidade do vento.

Ricardo, sabedor das travessuras e floretas com que nessas ocasiões
costumava o “Galgo” divertir-se, e lembrando-se de quanta firmeza
de rédea e agilidade carecia para evitar que estes folguedos se transformassem
em revoltas sérias e cóleras indomáveis, Ricardo estava
em constante sobressalto e arrependido de haver consentido na troca.

Acompanhando a garbosa inflexão da mão esquerda de Guida,
a cada instante passava-lhe prudentes avisos sobre o manejo do animal, advertindo-a
dos sestros e modo de os corrigir ou abrandar. Guida ouvia-o com indiferença,
quase distraída, e apesar de sua afabilidade com o advogado, bem se
conhecia que essa solicitude beliscava-lhe o amor-próprio; pois a moça
tinha presunção de ser perfeita cavaleira.

Não escapava a Ricardo essa contrariedade; mas, ainda com risco de
desagradar, não poupava as observações, toda a vez que
as julgava necessárias, embora por último já procurasse
um disfarce para as dissimular.

Se tirava os olhos do “Galgo” e da elegante amazona, era para
relanceá-los ao lado oposto, onde Fábio brincava com D. Guilhermina.
Já no domingo anterior notara a assiduidade do amigo junto à
mulher do conselheiro; mas supôs que não passava de um galanteio
sem conseqüência.

O noivo de sua irmã, bem sabia o advogado, era dos tais de coração
andejo e buliçoso, que não podem ficar quietos, como crianças
que são; mas estão sempre a bisbilhotar quanta boneca lhes cai
no goto. E o pior é impedi-los de traquinar, pois são capazes
então de estrepolias diabólicas.

Na manhã do passeio, contudo, entendia Ricardo que o galanteio já
ia entrando demais pelo recato de uma senhora casada.

Fábio não só tinha servido de escudeiro a D. Guilhermina
para suspendê-la do banco, meter-lhe no estribo o pé elegante,
e arranjar-lhe as dobras da saia de montaria, como continuara pelo caminho
a exercer o mesmo agradável mister.

Era ele quem levava o chapeuzinho de sol, o lenço, as flores, o leque
e até o chicotinho de madrepérola da senhora, que lhe confiara
de boa vontade todos esses objetos, não só pela comodidade de
os trazer à mão em um cabide ambulante, como para dar ao moço
o prazer de os guardar.

Se precisava do lenço para enxugar os lábios úmidos
do sorriso, como um lilás ressumando orvalhos; se tinha fome, como
o colibri dos perfumes de seu ramo de violetas; se os dedos cativos na luva
de pelica bronzeada sentiam ímpetos de se agitarem, como os passarinhos
de voar, e queriam divertir-se a cortar os talos das folhas com a vergasta
do chicotinho, Fábio prontamente lhe passava o objeto desejado, e nessa
troca, repetida de instante a instante, as mãos se tocavam uma e muitas
vezes no meio dos risos causados pelos desencontros.

Quando o sol montando as assomadas fronteiras começou a castigar
o caminho, Fábio apressou-se em abrir o chapelinho de sol para resguardar
o rosto da formosa senhora, que de bom grado prestou-se a essa fineza oriental
como uma sultana a receberia de seu escravo.

Assim, tendo necessidade de conchegar o animal para melhor interceptar o
sol, sentia Fábio roçar-lhe pelo braço a linda espádua,
cujo tépido conchego o trespassava. Nestas ocasiões um ligeiro
rubor repontava na face aveludada da moça; mas desfolhava-se logo em
um riso desdenhoso, como uma rosa a que a chuva arranca as pétalas.

Esse jogo mútuo de ademanes e brincos, Ricardo o considerava não
mais simples amabilidade, porém namoro formal e já escandaloso
para uma senhora casada.

Nisso mostrava Ricardo o seu atraso nas regras da boa sociedade. Ainda estava
pelo antigo rojão, quando se reparava em tais bagatelas, e fazia-se
mau juízo da senhora que desse a qualquer moço, ainda mesmo
um íntimo, tanta liberdade.

Atualmente é a moda; a moça solteira ou casada, que não
tiver essas maneiras distintas, certamente não passa por elegante.

Outra circunstância muito incomodava a Ricardo: era a facilidade com
que Fábio insinuava-se nessa sociedade, onde ambos se deviam considerar
apenas como hóspedes de arribação, prontos a deixá-la
ao cabo de algumas horas. Ao contrário, o amigo já começava
a desfrutar os favores com tal desembaraço, que pouco faltava para
entrar no rol dos íntimos, espécie de parasitas da pior casta,
porque não só devoram os jantares e ceias, estragam os cavalos,
carruagens e móveis, mas babujam a reputação, quando
não a honra.

Eis os motivos que traziam tão preocupado o jovem advogado durante
o passeio.

Outra pessoa porém perseguia a Fábio com olhares furibundos;
era o Benício, que por vezes tentara aproximar-se, mas tivera de ceder
à baia, rebelde ao freio, e mais teimosa que ele!
Estaria o Benício também apaixonado por D. Guilhermina?
E por que não? Apesar as compridas pernas, do longo talhe em abóbada,
e da cabeça a três quinas, pode um homem ter o coração
sensível.

XVI

Próximo à crista da montanha, onde o caminho talhando-lhe o
cimo, começa a descambar para a vertente, deu-se um pequeno acidente
que só notaram três pessoas, além daquelas entre quem
se passou.

– Pode fechar! disse D. Guilhermina para Fábio indicando-lhe com
o olhar o chapéu de sol. O senhor deve estar cansado!
– Por tão pouco? Não me prive deste prazer.

– Deveras? Acha que é um prazer trazer um chapéu de sol aberto?
perguntou a moça com remoque.

– Para abrigá-la do sol?… Decerto que o é!
– Neste caso deixe-me também experimentar. Faça-me o favor de
passar o meu!
Fábio quis desobedecer e retorquiu; mas, insistindo a senhora, deu-lhe
o chapelinho de cetim verde e contentou-se com apertar-lhe a ponta dos dedos,
que não fugiram a tempo de escaparem à cilada.

D. Guilhermina tinha casualmente, por duas ou três vezes, encontrado
o olhar perscrutador de Ricardo; e sentindo-se alvo da atenção
do moço, também teve de seu lado curiosidade de observá-lo.

O chapéu de sol de Fábio interceptava-lhe o olhar; afastou-o
pois, e adiantou o cavalo de modo a não perder os movimentos do moço,
sem deixar contudo que ele o percebesse.

D. Guilhermina era bonita, e tinha consciência de sua formosura, que
estava então no esplendor.

Teria vinte e oito anos; de desenvolvimento tardio, como uma dália
a que faltasse por algum tempo o sol, essa idade que para outras começa
a desfolha, para ela, depois de dez anos de casamento, era a mais brilhante
floração.

A tez aveludada de seu colo; o fresco e delicioso encarnado das faces; olhos
rasgados como duas favas de baunilha e afogados em cristal de leite; a oca,
talvez grande, mas primor de graça, cheia de seduções
irresistíveis; e as formas encantadoras do talhe modelado com a maior
correção e harmonia; tudo nela estava respirando o viço
dessa plenitude da mocidade que é o apogeu da mulher.

Como era natural, essa beleza, tão reputada nos salões, supôs-se
o objeto de uma admiração ardente, e talvez mesmo já
envolta em sentimento mais terno. Qualquer dúvida desapareceu no espírito
da moça, apenas notou a expressão de desgosto que se derramava
na fisionomia franca de Ricardo, ao surpreender um requebro ou ademane namorado
de Fábio.

Desde então procurou o olhar de Ricardo e encontrando-o tentava retê-lo
com um lânguido volver do seu. Uma vez demorando-se muito tempo em aspirar
o perfume das violetas com os olhos fitos no mancebo, deixou depois cair a
mão que segurava o ramo, e este escorregou ao chão.

O chapelinho de sol, faceiramente inclinado, ocultou esta mímica
às acesas vistas de Fábio; e um relancear rápido e vivo
indicou a Ricardo a queda do ramo de violetas.

O primeiro assomo do advogado foi ditado pela cortesia; as rédeas
colhidas de pronto sofrearam a marcha do animal. Mas logo após retraindo,
mostrou-se de todo alheio ao incidente; nem suspeitou sombra de provocação,
onde só via mero acaso.

D. Guilhermina porém parara de repente procurando em si um objeto
que lhe faltasse.

– O que é? perguntou Fábio solícito. Perdeu alguma
coisa?
A resposta demorou-se um instante à espera que Ricardo se voltasse;
mas este afastava-se.

– Meu ramo!
– Caiu sem dúvida; vou procurá-lo.

Fábio retrocedeu à cata do ramo; mas já o Benício
o tinha apanhado, e para não machucá-lo, o trazia a pé,
puxando a mula.

– Faz favor! Disse Fábio.

– Nada, meu senhor; quero entregá-lo à dona.

D. Guilhermina que esperava parada, o recebeu, mui contrariada.

– Pode seguir, Sr. Benício, disse Fábio que desejava aproveitar
a ocasião de ficar só com a moça.

– Não se incomode! Talvez D. Guilhermina tenha outra vez necessidade
de meus serviços.

A mulher do conselheiro percebendo a impaciência de Fábio e
receando que ele tivesse algum desaguisado com o pachorrento Sr. Benício,
pôs o cavalo a meio galope.

– Viva!! disse o moço contentíssimo por livrar-se do sujeito.

Mas o homem, soltando o chouto à mula, aí estava rente com
eles e os acompanhou até apanharem os outros.

A Guida não escapara a provocação de D. Guilhermina,
e vendo Ricardo render-se no primeiro assomo, sorriu. Era a ocasião
de subtrair-se à vigilância contínua que o dono do “Galgo”
exercia sobre ela.

– Bravo, D. Guidinah!…

– Nem a rainha do ar.

Estas exclamações do Bastos e Guimarães festejavam
as escaramuças com que a moça se divertia à beira do
profundo despenhadeiro.

Voltando-se, viu Ricardo as curvetas do “Galgo”, e adiantou-se:
– Confesso-lhe que estou arrependido da troca! Pensei que a senhora não
fosse tão…

– Tão estabanada!… Pode dizer!… acudiu a moça.

– Queria dizer imprudente, apenas.

– Muito obrigada! retorquiu com um sorriso de gentil motejo. Tenho eu culpa
das estrepolias de seu cavalo?
– Mas eu preveni-a do quanto ele é árdego! Não suporta
certas birrazinhas que a senhora costuma fazer a “Edgard”! É
um caipira, como eu.

– Está o senhor também querendo fazer o “Galgo”
pior o que é! Não o acho tão feroz como o pinta o dono!
– Em todo o caso eu lhe peço, não o irrite!… disse Ricardo
alisando a anca do animal para acalmá-lo.

– Eu estou bem quietinha, vê! disse a moça com as mãos
cruzadas sobre o gancho do selim. Ainda quer mais? acrescentou atirando a
Ricardo um sorriso cheio de malícia.

– Por que não chega mais para o meio? Vai muito na beira do barranco!
– Ah! Também faz mal? Pode cair a ribanceira? Não é?
Mas lá; se a montanha vier abaixo?
Ricardo não respondeu.

– Que diz?
– Zombe a seu gosto!… Divirta-se à minha custa, contanto que deixe
o “Galgo” sossegado, tornou Ricardo gracejando.

– Está bom, não quero que tenha queixa de mim.

E inclinando as rédeas, fez o “Galgo”, já apaziguado,
tomar o meio da estrada.

– Está satisfeito?
– Se continuar assim…

– O senhor está prevenido contra mim. Quem sabe se não me
fizeram alguma intriga? Pois engana-se, tenho um gênio de água
morna.

– Não supunha, acudiu Ricardo; mas depois do que tenho visto esta
manhã, posso jurar!
– Não é verdade?… Estamos quase no fim do passeio e ainda
não dei um galope!
– O galope não é das piores coisas.

– Ah!… Então o galope não faz mal?
– Conforme; num cavalo manso, o galope é agradável e não
tem o menor risco; mas em um animal arisco, como o “Galgo”, não
convém a uma senhora.

– É perigoso? perguntou Guida com um modo cândido.

– Pode tornar-se.

– Deveras!
– Se não acredita…

– Ao contrário, acudiu Guida.

– Uma tarde destas e neste mesmo caminho esteve a atirar-se com Fábio
pela montanha abaixo.

– E como escapou?
– Esbarrando contra os bois de um carro que por felicidade estava atravessado
na estrada.

– Ahh!… O tal senhor “Galgo” faz dessas estrepolias!… repetia
Guida afagando o pescoço do animal com a mãozinha enluvada.

De repente um sibilo cortou os ares; e o “Galgo” se arremessou
no espaço como m turbilhão, no meio do qual mal se distinguia
o torvelim da saia de Guida, agitada pela corrida impetuosa.

Fora o chicotinho que, vibrado pela mão nervosa, fustigara cruelmente
o brioso corcel; ao passo que a menina inclinando a cabeça desdenhosamente
sobre a espádua, soltara estas palavras no momento de abandonar-se
ao ímpeto do animal.

– Quero ver!…

Surpreso, Ricardo olhou um instante o vulto da moça que voava, soltando
aos ecos da montanha o seu mote típico:
– Hep!… hep!… hep!…

Cobrando-se logo do enleio causado pelo imprevisto arrojo, Ricardo largou
rédeas a “Edgard”, que partiu à desfilada no encalço
do “Galgo”, e sem dúvida o alcançaria, pois, contido
pelo freio, já o curitibano moderava o primeiro ímpeto.

Mas Guida ouviu o estrupido; e voltando-se, conheceu que Ricardo a seguia
e talvez a alcançasse. O chicotinho sibilou nos ares, semelhante a
uma víbora que se enrosca; e o “Galgo”, alongando-se como
uma flecha, devorou o espaço.

No meio daquele turbilhão, pareceu ao moço que o talhe esbelto
da menina oscilava na sela, e buscou afirmar a vista, quando um grito de terror,
que se escapara fremente dos lábios de Guida, cortou os ares.

Fincar esporas no isabel e dispará-lo com um tiro de canhão,
foi para Ricardo um movimento maquinal, que ele executou antes de pensar.

Estendia-se por diante o lanço do caminho, que fazendo, volta na
extremidade corta o cabeço da montanha, e ocorre alguma distância
entre dois taludes profundos para surdir já na outra encosta da serra,
no ponto chamado “Mesa”.

Havia nesse lugar uma longa mesa, feita de paus toscos e ensombrada por
espesso bambuzal. Talvez já o tempo a tenha consumido; há três
anos ainda a vi, reparada dos primeiros estragos e já outra vez carcomida.

Quantos piqueniques não tem visto o memoroso bosque dos bambus? Que
segredos não guardam em hieróglifos e datas os verdes troncos
das taquaras, que a foice do trabalhador da estrada não cortou ainda
para empalhar o rancho? Que banquetes dados aquela rude estiva de varas, sem
toalha nem serviços de prata, mas tão opíparos de contentamento
e prazer?
Passando à direita do bambuzal, alonga-se o caminho pelo lançante
da montanha, e ao cabo de algumas braças derrama-se por uma pequena
esplanada, que serve como de rampa ao magnífico cenário.

Aí, à esquerda, no socalco do caminho, está a palhoça
onde pousavam os colonos, que abriram o caminho do Jardim e deram nome ao
sítio. Conhecido a princípio o lugar pela simples indicação
de “Rancho dos chins”, a imaginação popular enlevada
pela brilhante perspectiva, de lembrança fantasiava alguma das pinturas
diáfanas e aveludadas que vira debuxadas em papel de arroz; e daí
o nome de “Vista chiensa”.

XVII

Devorou Ricardo em completa disparada o lanço do caminho, até
a garganta onde sumira o “Galgo” levando a moça, talvez já
de rasto.

Ao entrar no estreito passo, ainda pôde ver de relance o vulto de
Guida que passava como uma sobra, por defronte do bambuzal. Ferrando de novo
as esporas em “Edgard” admirado daquela aspereza, o mancebo, sem
perder a calma de que tanto precisava, fez um último esforço
para alcançar o “Galgo”, cortar-lhe a dianteira, e evitar
a desgraça iminente.

Mas nenhuma esperança tinha de o conseguir; bem conhecia seu cavalo,
e avaliando do isabel pela amostra, via que não era ele para bater
o corredor paulista, em condições iguais, quanto mais com tal
partido.

O espaço desaparecia; e Ricardo via aproximar-se com espantosa rapidez
a rampa da montanha, donde o “Galgo” ia precipitar-se arrastando
a infeliz moça.

Já não restava mais que dois trancos do galope, quando arrebatado
pela mão destra da amazona, que o suspendeu no ar, o “Galgo”,
rodando sobre os pés, com as mãos no ar e quase vertical, retrocedeu
a disparada em que ia, e sofreado veio esbarrar-se contra “Edgard”,
que seguia a vinte braços de distância.

Com tamanha rapidez fora executada esta evolução, que antes
de Ricardo voltar a si da surpresa, assomou-lhe em frente o rosto mimoso de
Guida, animada pelo ardor da corrida, como pela galhardia da sua proeza eqüestre.

– Não sou tão má cavaleira, como pensava! disse-lhe
a moça desfolhando um riso fresco e argentino.

– Não acho a menor graça nisto! retorquiu o moço com
um modo sério e displicente.

– Assustou-se?… Por uma pessoa indiferente!… Se fosse uma irmã
ou alguém que lhe interessasse!
– Não é nada agradável sair-se a passeio, e ter-se de
assistir a uma catástrofe. Se me houvesse convidado para uma representação
eqüestre à borda de um precipício, eu por certo não
me acharia aqui; e sobretudo não concorreria de alguma forma para estas
brilhaturas.

– Quer dizer que não me emprestava o seu cavalo? Então pensa
que eu precisava dele para atirar-me da ladeira abaixo, se me viesse à
fantasia experimentar essa emoção? Está enganado. Para
isso preferia “Edgard”, pois com sua fleuma britânica, só
obrigado por mim ele se precipitaria, mas friamente, como um cavalo que se
respeita; e não desastradamente, e às cegas, como o seu “Galgo”
que não tem maneiras.

– Em todo o caso, a senhora há de permitir que tire de mim a responsabilidade
que tomei, sem a avaliar, disse Ricardo em tom firme, embora envolto em um
modo cortês e polido.

– Pois não! Aí o tem, o seu mimoso! exclamou Guida saltando
da sela, com extrema agilidade.

– Desculpe-me…

– Por quê? Por exigir o que lhe pertence? Estava em seu direito. No
que não estava, e eu não lhe desculpo, é na idéia
que fez de mim.

Dos lábios da moça desprendeu-se um riso sarcástico,
prelúdio de sua palavra irônica:
– Pensa o senhor que tendo-o convidado para um passeio, era eu capaz de dar-me
ao desfrute de correr um perigo qualquer, como por exemplo, o de atirar-me
da montanha abaixo, para que o senhor, como um herói de romance, chegasse
a tempo de salvar-me? Pois saiba que nada me aborrece tanto como esses romantismos,
já tão vistos e corriqueiros. Além de que seria incômodo
para nós ambos: o senhor teria de suportar todo o peso da minha gratidão;
e eu de combater a cada instante os escrúpulos de sua modéstia
e delicadeza. Imagine o agradável divertimento que teria cada um de
nós, o senhor, esmagado pela minha riqueza e generosidade, eu, crivada
pelos espinhos de sua dignidade. Ao cabo de um mês não poderíamos
nos ver; e faríamos um do outro a mais triste idéia.

Ricardo ocupado em trocar os selins dos cavalos, ouvia impassível
essa loqüela. Reprimida a primeira contrariedade, conseguira dominar-se
e estava resolvido a não interromper a moça; que melhor meio
de apagar o fogo àquele despeito feminino?
Passeando de um para outro lado, Guida falava, abatendo com a chibata os largos
rofos da saia de montar; na ida e vinda lançava a Ricardo um olhar
impaciente por causa do silêncio com que ele a escutava.

– Não sabe o conceito que havíamos de fazer um do outro?
– Não, senhora.

– Eu lhe digo; mas permita que nos substitua por outros quaisquer para haver
mais franqueza. O herói do romance teria e heroína na conta
de uma criatura sem alma, nem coração; espécie de mulher
de ouro, para quem o sentimento é cálculo, e que só conhece
uma linguagem, a moeda. A heroína consideraria o salvador como um presunçoso,
que aproveitara-se de um mero acaso para se guindar ao pedestal de herói,
e humilhar os outros com o seu desdém. Pensa que exagero?
– Ao contrário, acudiu Ricardo firme no seu propósito de não
chocar o melindre da moça.

– Já se vê que fez uma idéia muito errada a meu respeito.
Não tenho queda para romântica, nem jeito para representar de
musa suplementar, e como Safo atirar-me do rochedo abaixo, a pé ou
a cavalo. Sou filha de banqueiro, e deram-me educação inglesa.
Devo ter pois o espírito positivo, e saber o valor do tempo, o que
quer dizer, da vida. Para mim não há homem neste mundo que valha
um suspiro, quanto mais um suicídio!
Nesse momento chegava o rancho dos cavaleiros, cujo primeiro susto se desvanecera
com esta observação, que, se tivesse acontecido alguma desgraça,
Ricardo houvera gritado por socorro.

O Benício correu direito ao paulista, ocupado em mudar os arreios,
e atirou-se ao chão como uma bala:
– Sucedeu alguma coisa?… Tenho aqui meu estojo! Se precisa furar… Olhe,
aqui está! Quem sabe se a excelentíssima não se machucou.
Eu tenho aqui arnica! É uma coisa que trago sempre comigo! Então!…

Vendo aproximarem-se os companheiros de passeio, Guida afastou-se deixando
Ricardo às voltas com o Benício, e foi contemplar o esplêndido
cenário que se desdobrava em face dela.

Além, na extrema, campindo os horizontes do soberbo painel, o oceano
calmo e sereno que se vinha desdobrar até babujar com branca orla de
espuma as praias de Copacabana e de Marambaia. Era a tela onde se estampava
com vivo colorido, sobre o campo azul, a magnífica paisagem.

Um jardim encantado, como se desenha à imaginação,
quando lemos aos vinte anos os contos das Mil e uma noites; um sonho oriental
debuxado em porcelana ou madrepérola; tal era o quadro deslumbrante
que debuxavam aquelas encostas.

Lá, no mar, as ilhas que fingem ninhos de gaivotas, a se balouçarem
ao reflexo das ondas. Na praia junto à Lagoa, as alamedas do Jardim
Botânico, recortando em losangos os maciços da folhagem; e as
palmeiras imperiais meneando às brisas da manhã os seus verdes
cocares.

Não vês junto ao sítio aprazível um enorme caramelo,
servido sobre uma taça da mais pura safira, como a promessa dos regalos
que a natureza americana oferece aos que visitam suas plagas?
É o Pão de Açúcar, no esforço a que o reduzem
a distância e a eminência, donde o avistamos.

A nossos pés, o gigante da pedra, o prócero Corcovado, que
o nauta em demanda da barra antolha-se como o guarda desse Jardim das Hespérides
e daqui parece agachado, como um anão, à base da grande montanha
que nos serve de pedestal.

O que porém dava a essa perspectiva um aspecto fascinador, era sobretudo
a diáfana limpidez do ar e uma plenitude de luz que estofava os objetos,
cobrindo-os com uma espécie de áurea expansão. Não
se podia chamar resplendor, porque não reverberava nem deslumbrava
os olhos; era antes uma pubescência, doce e aveludada, onde se engolfavam
os olhos com delícia.

Derramaram-se os passeantes pela borda da esplanada para melhor apreciar
os vários pontos de perspectiva, e cruzaram-se as observações
de toda a casta, e as réplicas ou risos que elas provocavam.

– É o reino das fadas, disse Fábio a D. Guilhermina, mostrando-lhe
o admirável panorama. Está a senhora nos seus domínios.

– Se assim fosse, eu encantava-o já, respondeu a moça a sorrir.

– Em quê?
– Nesta flor! tornou mostrando-lhe uma violeta que prendeu ao seio.

A esse tempo dizia o Guimarães:
– Não sei o que acham demais neste lugar! Abalar-se a gente para ver
morros trepados por cima doutros!
– Pretexto para o almoço, homem, disse o Bastos, a quem o passeio afiara
o apetite; contando que não se demore o farnel.

Era o nosso corretor desses homens cujo estômago professa a maior
independência em relação ao coração e à
cabeça: imagem de uma república bem organizada, com perfeito
equilíbrio dos poderes.

– Fairy!… Fairy! exclamava entretanto Mrs. Trowshy, estatelada diante
daquela magnificência.

– Oh! Guimarães! gritou um dos elegantes da comitiva.

– Que é lá?
– Eras capaz de virar uma cambalhota daqui no Jardim?
– Abraçado contigo.

No seu entusiasmo travou a inglesa do braço do Benício, que
estava engomando com a mão a calça amarrotada pelo burro.

– Look, Sir, how beautiful!
– É Botafogo, sim, senhora! respondeu o homem sem desconcertar-se.

Á parte, o visconde parecia enlevado ante a cena maravilhosa; tal
concentração de espírito mostrava sua atitude contemplativa.

– Está admirando, Sr. Visconde? perguntou-lhe Guida.

– Estava parafusando uma coisa.

– Não se pode saber? insistiu a moça com malícia.

– O terreno que Deus desperdiçou para fazer mar!
Guida voltou-se com um sorriso para Ricardo que escutara o diálogo:
– É dos meus!
Chegaram à “Mesa” os copeiros com os petrechos do almoço,
que formavam a carga de um burro. O Bastos e o Benício foram dos primeiros
a avistar o farnel e deram as alvíssaras aos mais.

Dirigiram-se então os convidados ao bambuzal, onde os esperava um
lauto almoço.

O visconde da Aljuba não perdeu seu tempo. Enquanto devorava o improvisado
almoço, ia resmoendo os seus cálculos. Anexara-se à passeata,
com surpresa de todos, unicamente para julgar por si da posição
do Ricardo em relação a Guida.

Os rapazes, que não podiam nem remotamente perscrutar a intenção
do refinado usuário, cuidaram que estava apaixonado por Mrs. Trowshy,
e pretendia disputá-la ao Sr. Benício, o cavaleiro servente
da inglesa.

O velho deixava-os rir à sua vontade, e ia lançando na memória,
como em um borrador, as observações que depois contava tirar
a limpo.

Assim não lhe escapou o afastamento que de repente, depois da disparada,
havia entre Ricardo e a moça.

– Arrufos! dizia consigo o visconde polvilhando de pimenta-do-reino os camarões.
Isto arde, mas abre o apetite!
E ria-se por dentro da pachouchada.

Depois do almoço, cada um quis deixar nos bambus uma lembrança
do passeio. Escreveram uns o nome e a data; outros a simples inicial; D. Guilhermina
foi desse número, e Fábio cercou o dístico de um traço
fingindo um coração espetado em um F.

Durante esse tempo o Sr. Benício, depois de ter fornecido à
direita e à esquerda canivetes e tesouras para os dísticos,
à sorrelfa tirava os arreios da baia e passava-os para o machinho da
carga, sem que os copeiros, ocupados a devastar as ruínas do almoço,
dessem pela barganha.

Ricardo gravou o nome da Luísa, sua irmã, talvez na esperança
de pungir com aquela recordação a alma de Fábio; mas
este nem se apercebia de sua presença ali, tão enlevado o tinham
os olhos da mulher do Barros.

O visconde, armando-se de um garfo, marcou um bambu com um enorme cifrão;
o que inspirou a Guida um enigma pitoresco. Com um grampo desenhou a moça
na casca verde da taquara um cifrão dando braço a um xis rechonchudo,
o que todos aplaudiram com risadas descobrindo a alusão aos requebros
da inglesa com o usurário.

Às onze horas montaram a cavalo para a volta. Ricardo, a pretexto
de arranjar os arreios do “Galgo”, deixou-se ficar, resolvido a
separar-se da companhia, tomando pelo caminho de baixo.

XVIII

Quando supôs que o farrancho devia ir longe, Ricardo montou no “Galgo”
e seguiu passo.

– Decididamente esta sociedade não me convém, e eu estou fazendo
aqui uma triste figura: a figura de um estafermo num baile de máscaras,
ou de um enfermo em dieta à mesa do banquete. Há certas loucuras
e vícios da sociedade, em que o homem deve tornar-se cúmplice,
sob pena de passar por grosseiro ou imbecil. A mim nem ao menos resta a consolação
do dilema; na opinião desta gente já tenho direito incontestável
à dupla qualificação. Imbecil, porque me falta o jeito
para explorar as boas relações com um milionário; grosseiro,
porque não aplaudo à esperteza de uns, ao descaro de outros,
e finalmente aos caprichos de uma menina presunçosa e mal-educada.

Desatando indiferente estes pensamentos à brisa, com os frocos da
fumaça de seu charuto, feriu-lhe o espírito uma recordação
amarga:
– Pobre Luísa!… Não me quiseste crer, quando te mostrei o
caráter de Fábio, como ele é, homem do dia ou antes do
momento, sem elos no passado, nem cuidados no futuro. Esses homens são
na sociedade a imagem das plantas aquáticas, vivendo à flor
d’água, sem raízes na terra, nem ramas no ar, ervas sempre,
como são meninos sempre aqueles homens. Cobrem-nas lindas flores, uma
folhagem sempre viçosa; mas não há aí tronco,
nem âmago. Bem me compreendeste, e tua alma te disse que eu tinha razão!
Mas tu já o amavas.

Afundou-se ainda mais em suas reflexões:
– E agora? Agora que se atira à sociedade, faminto dos prazeres e divertimentos
que tanto cobiçou, quererá ele, ou poderá, nunca mais
voltar ao amor obscuro, suave e calmo da família?…

No meio de suas cogitações foi Ricardo surpreendido pelo galope
de um cavalo que lhe vinha no encalço, e não tivera o tempo
de voltar-se quando “Edgard” flanqueou o “Galgo”.

– Não me esperava, aposto! disse Guida com um gesto garrido.

Perturbado com o gracejo da moça depois do que entre eles houvera,
e sobretudo com aquele a sós em um caminho deserto, não soube
Ricardo que responder.

– Errou o caminho? perguntou ao cabo de alguns instantes.

– Não! Quis ficar atrás; e escondi-me.

Era a verdade. Reparando na demora de Ricardo, suspeitou da intenção
do paulista, que ela sabia quanto era desconfiado. Sentindo-se culpada, e
ré de seus assomos altivos, assentou de apagar aquele ressentimento.

Pronta em suas resoluções, lançou o cavalo a todo galope,
e desaparecendo à vista dos companheiros, ganhou sobre eles uma grande
distância. Chegando ao ponto onde cruzava uma picada que vai ter ao
Moke, apeou-se e escondeu-se no mato com “Edgard”.

Daí viu passar o rancho, e notando a ausência de Ricardo, esperou
que este passasse, para alcançá-lo.

Os dois moços seguiam ao lado um do outro, mudos, e enleados daquele
encontro. Afinal Guida, revestindo-se da sua gentil petulância, rompeu
o silêncio:
– Eu sou uma estouvada! disse ela voltando-se para Ricardo com expressão
adorável.

E como ele não respondia:
– Confesse! Não é esse o juízo que forma de mim?
– Nem tanto, replicou Ricardo no mesmo tom. Se dissesse caprichosa e travessa,
eu não reclamaria.

– Entretanto minha avó me chama de “Santinha”.

– Talvez as santas sejam assim quando meninas.

– Que quer? Estou habituada a me fazerem todas as vontades!
– O que é bem perigoso.

– Como assim?
– A vontade?… É a fera mais indomável que eu conheço,
bem entendido, para aqueles que a têm, porque não dou esse nome
ao influxo que dirige certos indivíduos, como o vento impele o navio.
A vontade é a soberania d’alma, a acentuação de sua superioridade
moral; é o rei que temos em nós, e que pode tornar-se de repente
um déspota, contra o qual não há nem o recurso da república.
Nas senhoras, este autócrata chama-se capricho, como outrora em Roma
lhe deram o nome de imperador, moda que pegou. O capricho é um tirano
do gênero de Augusto. Ama o despotismo brilhante de luxo e galas, representando
no tom da alta comédia, por bons autores, e com rica decoração!
Ah! perdão que estou falando política!… exclamou o advogado
interrompendo-se a rir.

Ricardo aproveitara o primeiro tema, para quebrar com uma conversa banal,
mais ou menos salpicada do sal e humor do espírito, o acanhamento da
singular situação em que se achava, só com essa moça,
em sítio ermo.

– Que tem? Eu gosto da política… para rir, bem entendido.

– É para o que ela serve.

– Mas quanto ao capricho, não concordo com sua opinião.

– É natural; as posições são tão diversas!
– Ou os gênios.

– E o que é o gênio senão o molde que a sociedade imprime
n’alma desde o berço, pela educação primeiro, e depois
pela opulência ou pobreza, pela grandeza ou humildade de condição?
– Então acredita que não é a natureza, porém o
mundo, que nos faz o que somos? Creio que se engana. Há pessoas que
vivem deslocadas na posição em que a fortuna as colocou, e a
quel essa posição não pode transformar a alma que receberam
de Deus.

– Exceções raras. As almas que resistem ao ambiente que as
cerca, e não tomam a conformação do mundo onde se desenvolvem,
mas conservam sempre sua feição original; essas almas são
privilegiadas. Sua missão é reformar, rompendo as cadeias, que
manietam as vocações. Quantas vezes porém não
sucumbem? E o mundo nem se apercebe das vítimas desse eterno martirológio
social.

– É verdade! disse Guida gravemente, curvando a fronte pensativa.

Com essa inflexão e o formoso semblante tocado de uma doce tinta
de melancolia, continuou o caminho em silêncio, e como esquecida do
companheiro.

A posição tornou-se de novo incômoda para Ricardo, que
em vão excogitava um meio polido de romper esse encontro comprometedor
para a moça.

Felizmente que veio tirá-lo daquele embaraço o gênio
obsequiado de uma pessoa, a quem não prestamos ainda a devida consideração.

Surdindo de um desabe do talude onde se metera com o machinho para abrigar-se
da soalheira, o Sr. Benício saiu ao encontro de Guida, com um respeitável
chapéu de sol, empunhado à guisa de pendão de irmandade.

– Aqui está o guarda-sol, excelentíssima!
– Obrigada, Sr. Benício, respondeu Guida arrancada a suas reflexões
com um ligeiro sobressalto.

– Mas o sol está tão quente!
– Basta-me o véu, respondeu a moça desdobrando o filó
verde do chapéu.

– Faça favor, D. Guida?
– Não posso com o peso da sua barraca, Sr. Benício, disse Guida
com um remoque.

– Por isso não, eu carrego, respondeu imperturbável o homem.

– Dispenso! acudiu a moça.

– Com licença! tornou o Benício metendo os calcanhares no
machinho a fim de guardar a moça do sol.

– Ora deixe-me!
– A excelentíssima pode ficar doente.

– Não tenha susto!
– Então neste tempo em que há tanta febre por aí!…

Guida começou a solfejar o buona sera do Barbeiro de Sevilha.

– A Srª. D. Paulina não há de gostar, quando souber o
sol que a excelentíssima apanhou. A senhora já está tão
afogueada!
– Decerto! replicou a moça.

– É o calor!…

– É o seu guarda-sol que me está irritando os nervos.

– A excelentíssima há de ver, se amanhã não
está com sardas na pele. E será uma pena!
Colhendo as rédeas “Edgard”, com gesto de impaciência,
fez Guida uma evolução rápida, e fustigando a valer a
anca do machinho em que montava o Sr. Benício, despachou-o a trote
largo pela estrada fora.

Sacudido pelo chouto cadente, o homem agarrado ao arção da
sela voltou-se ainda para reiterar o oferecimento, que era escandido em uma
espécie de soluço causado pelo vascolejo.

– A excel (uf)… lentíssima(uf)… faz mal (uf)… Aposto que (uf)…
chegan’a (uf)… cas’a’sta com… (uf) dor de cab’ça…

E mais diria, se não desaparecesse na sinuosidade da estrada.

Era o Sr. Benício a encarnação de um tipo muito usual
de nossa sociedade, o do “homem serviçal”, uma das encarnações
do aresko de Teofrasto.

A maior satisfação desse homem era obsequiar; não pensava
em outra coisa, não tinha ocupação. Tanta arte e perícia
punha nesse mister, que o elevara à importância de uma profissão,
embora ninguém a tenha exercido com o mesmo zelo e amor.

É certo que tinha um empreguito no tesouro, se não era nalguma
secretaria de estado. Mas esse não passava de um pretexto para receber
os magros vencimentos, e de um meio de exercer com maior proveito a sua vocação
irresistível de obsequiar.

Aparecia às vezes na repartição para tratar do negocinho
do seu amigo o conselheiro A. ou de seu amigo barão B.; e aproveitava
o ensejo para assinar o ponto e pôr-se em dia com os atrasados. Essa
regalia, o chefe não a permitiria a qualquer; e se o fizesse, havia
de coçar-se com a mofina que sem falta os empregados teriam o cuidado
de atiçar-lhe nos jornais.

Mas a um homem tão serviçal como o Sr. Benício, quem
podia recusar essas liberdades; e quem teria ânimo de censurá-las?
Achava-se o amanuense em toda a parte, mas sobretudo onde havia pessoas a
obsequiar; só em dois lugares era ele incerto, e até mesmo vasqueiro;
na repartição e na casa de morada. Afora estas exceções,
ficava-se tentado a crer que o homem tinha o dom da ubiqüidade.

Trazia habitualmente uma grande sobrecasaca de pano azul-ferrete, que era
menos uma peça de vestuário, do que um agregado de bolsos. Tinha
quatro: dois nas abas e dois no peito, mas de tais dimensões que se
tocavam, acolchoando todo o forro, com o chumaço de papéis,
lenços, carteiras, fósforos e mil outros objetos de que andava
sempre munido, para ter o sumo de prazer de obsequiar.

Usava chapéu de copa baixa e abas largas. Esse traste característico
tinha pregado por dentro uma folhinha-cartão, um horário da
estrada de ferro, o mapa da partida dos correios, e os sinais de incêndio;
tudo isto por baixo do forro volante de tafetá.

Ninguém o via, de dia ou à noite, a pé ou de carro,
sem o enorme chapéu de sol verde-gaio a que dera Guida o próprio
nome de barraca. A esse traste precioso, devia ele o inefável prazer
de preservar os aldores de canícula, ou da chuva repentina, o seu velho
amigo senador C. quando atravessava o campo, e o outro seu velho amigo o desembargador
D. ao sair da relação.

Se ao sair ameaçava chuva, ou os calos lha tinham anunciado à
noite, munia-se por precaução de um par de galochas de borracha,
que sumia na profundeza de um dos quatro bolsos insondáveis. Achava-se
sempre modos de aparecer a propósito para resguardar da lama os pés
de alguns personagens desprecatados.

A essa previsão deveu ele a preciosa amizade do monsenhor E. Vendo-o
um dia entrar no bonde com sapato fino e meia carmesim, acompanhou-o até
Botafogo, e aí teve a satisfação de encaixar-lhe o par
de galochas, com que a excelência patinhou no mingau do macadame, sem
mácula das insígnias prelatícias.

Outros objetos constituíam o indispensável do Sr. Benício
e sem os quais não saía de casa: eram os jornais do dia, uma
provisão de lenços brancos e de rapé, um papel de palitos,
caixas de fósforos, e um estojo de viagem no qual havia tesoura, canivete,
alfinetes, preparos de costura, e até dois frasquinhos, um com arnica
e outro com éter.

Perdemos de vista nestes últimos tempos ao digno St. Benício;
mas apostamos que ele introduziu no seu necessário mais um frasquinho
para a “hesperidina”.

Assim armado de ponto em branco, lançava-se o nosso homem na labutação
do costume; por onde ele passava, não perdia ocasião de obsequiar:
era médico, modista, agente, recadista, alfaiate, folhinha, gazeta,
almanaque, guarda-roupa, estojo, paliteiro e tudo enfim que fosse preciso,
contanto que desse largas a seu gênio serviçal.

Entre duas e três horas, Benício era infalível na rua
do Ouvidor. Se a família de seu íntimo amigo
O general F. queria avisar a este do lugar onde o estava esperando; se o seu
ilustre amigo o conde G. ao chegar ao largo de São Francisco de Paula
não encontrava o carro e precisava que o fossem chamar; se a sua respeitabilíssima
amiga a baronesa H., que andava às voltas com encomendas, procurava
alguma casa de pechincha; se finalmente o seu bom amigo o camarista I., ou
o almirante K., ou o marquês L. queriam perder-se em certas ruas abstrusas
e enganar-se de porta: aí estava rente o incomparável Benício;
era ele o homem da situação.

Em um ápice dava ele com o general em certa barraca de campanha,
que este gostava de contemplar, lá para as bandas do Mercado, efeitos
da nostalgia guerreira; farejava o lacaio do conde na barraca do largo da
Sé onde o brejeiro jogava o pacau por conta do senhor; conduzia a matrona
a uma casa misteriosa, onde ia todo o mundo grande, mas ninguém confessava;
e por último tais voltas dava com o camarista, o almirante e o marquês,
que eles perdiam-se por detrás de umas rótulas…

O Benício tinha não só um, como diversos abecedários
de amigos; mas entre esses escolhia uma dúzia, que eram os do peito.
Havia neste último número suas disponibilidades necessárias,
como outrora no conselho de estado. Assim era de rigor que aí estivesse
o presidente do conselho certo e o provável, para o que ninguém
tinha melhor faro do que o nosso amanuense; e isso provinha da sua privança
com um particular de São Cristóvão, o filho, senão
o mesmo, que tivera certa contestação com o Dr. França,
o velho. Destas anedotas, já não se fazem hoje em dia.

Para estes amigos do peito era o Sr. Benício o Petrus in cunctis,
o pau para toda a obra. Por isso lhe pagava o estado um conto e seiscentos
como amanuense.

Tal era pelo menos a convicção em que estava o nosso homem.

Incorporando-se ao passeio, não tivera o Sr. Benício outro
fim senão dar pasto ao gênio serviçal. A princípio
a fogosa mula baia o impedira de aproveitar as ocasiões; mas para a
volta tivera o cuidado de passar os arreios para o machinho cargueiro.

XIX

Com a arrancada do machinho, bem a contragosto do Benício, ficaram
outra vez sós os dois moços.

Mas a poucos passos de distância cruza a volta que desce para o vale.

– Aqui, peço licença para separar-me, disse Ricardo.

– Não passa o dia conosco?
– Há de me desculpar; tenho necessidade de estar em casa.

– Já vejo que não esqueceu!
– O quê?
– A impertinência de há pouco.

– Oh! minha senhora!
– Tem medo de outra cena igual.

– Que idéia!
– E eu me não posso queixar.

– É uma injustiça que me faz, D. Guida.

– Há um meio de convencer-me.

– Qual?
– Passe o dia conosco.

Ricardo hesitou um instante.

– Passarei, disse naturalmente.

Refletiu que se persistisse em retirar-se naquele momento, deixaria no espírito
da moça a convicção de o haver ofendido, e o desgosto
que sempre causa a suspeita de ter decaído da estima de um homem sisudo.

Que necessidade tinha de humilhar essa moça, de quem afora um instante
de contrariedade naquela manhã, só recebera amabilidades e delicadezas?
Eram mais algumas horas de constrangimento, que lhe custava essa condescendência.

– Agradeço-lhe de coração, respondera Guida. Em outro
dia sua companhia me seria agradável, como sempre.

Ricardo inclinou-se:
– Hoje se não jantasse conosco, eu ficaria triste, acrescentou a moça
com um cândido sorriso.

– Então fique alegre, replicou o moço retribuindo o gracejo.

– E estou!
Uma terceira voz misturou-se ao diálogo:
– Então a excelentíssima não quer aceitar?
Era, não carecíamos dizer, o incansável Sr. Benício,
que tendo afinal conseguido sofrear o chouto do machinho, voltara atrás;
e aproximando-se sem que o percebessem, ali estava de espinhaço arqueado
e braço estendido, a empunhar o guarda-sol, em posição
de archeiro.

Desta vez Guida não respondeu-lhe e seguiu adiante. Voltou-se então
o Benício para Ricardo e apresentou-lhe a veneranda barraca:
– Sr. Doutor, V. S. é servido?
– Não; obrigado.

– Olhe que o sol está pelando.

– Nem por isso! Ao contrário, acho bem fresca a manhã! Fizemos
um passeio magnífico. Não gosta da “Vista dos chins”?…

– Faça favor! Insistiu o obsequioso Sr. Benício com o guarda-sol.

– É um panorama admirável; não creio que haja no mundo
uma tela igual, a não ser uma que eu conheço de fundo verde-gaio,
por detrás da qual se desenha a figura de Mefistófeles. Não
a que representa no drama de Goethe, mas uma que aparece na farsa do Judas
em Sábado de Aleluia.

– Tenho muito gosto! acudiu imperturbável o Sr. Benício metendo
à cara do advogado o chapéu de sol.

O riso cristalino de Guida que, ao remoque do moço, trilara como
um colar de pérolas a desfiar-se, desatou em risada com a réplica
do amanuense.

Ricardo tinha dois fins, travando conversa com o Benício, e falando-lhe
em linguagem que para este era grego ou hebraico.

Conseguia em primeiro lugar reter junto de si aquele algarismo social, que
tinha naquele momento a grande importância de uma unidade; somada ao
número dois fazia três.

Além disso defendia-se da serrazina dos oferecimentos com que o ia
apoquentar, e nada obstava a que tratasse de rir-se em vez de amofinar-se.

– Olhe! não me incomoda.

– Já conhecia a “Vista chinesa”, Sr. Benício?
– Vim uma vez, o ano passado, e por sinal que fazia um sol de abrasar como
agora, e eu ofereci o meu guarda-sol ao Dr. Nogueira, o que valeu-lhe bem!
Aceite, tome o meu conselho!… concluiu o amanuense enristando de novo a
cana para investir contra o advogado.

Apanhado de surpresa, quando pensava que o Benício ia devagar, protestou
Ricardo não cair mais no logro de escutá-lo; e tomando a palavra
começou a fazer ao companheiro a descrição pitoresca
da Tijuca.

– Mais bonito do que a “Vista chinesa”, é o “Bico
do papagaio”. Ali é que eu o queria ver, Sr. Benício, para
comparar os dois picos. No de lá há justamente por cima do nariz
da pedra uma árvore que finge bem um chapéu de sol!
– Não faça cerimônia, Sr. Doutor! atalhou o Benício
voltando à carga.

O amanuense divertia à maneira das caricaturas, que depois de vistas,
se tornam monótonas.

Assim era o nosso homem quando ele exibia algum de seus perfis, de um cômico
irresistível; mas à força de reproduzir-se com a regularidade
de autômato, caía em uma insipidez esmagadora.

Não tardou que Ricardo sentisse invadi-lo o tédio a ponto
de não poder mais suportar nem a vista do amanuense. Para subtrair-se
a esse foco de aborrecimento, apressou o animal:
– É de primeira força! disse Guida lendo-lhe no rosto.

– Com efeito! Não imaginava!
– Há pouco não dizia o senhor que a vontade ou o capricho é
um rei? Pois tem destes cortesãos!
– Ah! É preciso! São os cortesãos que vingam os oprimidos;
quando não comprometem, intrigam ou traem os soberanos, ao menos lhes
moem um pouco a paciência.

– Não duvido da utilidade dos cortesãos, respondeu sorrindo
a moça. Mas quanto à sua comparação, não
a acho exata. A respeito de capricho há de concordar, que devo entender
alguma coisa.

– Muito!
– Por uma simples razão! Sou muito caprichosa.

– Não acredito!
– Se eu confesso!
– Por isso mesmo.

– Há de mudar de opinião.

– Bem, pode ser. É a moda.

– O capricho está bem longe de ser rei. É apenas o valido,
o primeiro-ministro ou presidente de conselho, a quem o rei eleva acima dos
outros súditos para ter o prazer de o contrair, de picar-lhe a vaidade,
de crivá-lo de alfinetes como ao Sr.***
Guida pronunciou o nome; eu porém que não estou para divulgar
a malignidade, e comprometer-me com gente poderosa, substituo-lhe a reticência
estrelada.

– Mas quem é o rei desse valido? perguntou Ricardo.

– O rei? É o mundo, e portanto qualquer pessoa. Pode ser o senhor,
por exemplo.

– Eu?
– Por que não? Vou lhe confessar uma fraqueza minha. Eu tenho nestes
momentos três desejos… Não cuide que são os da caixinha
do jogo de prendas.

– Ainda bem; eu já me tinha lembrado do Sr. Benício e de seu
chapéu de sol.

– Qualquer desses três desejos depende do senhor; entretanto eu estou
certa que não é capaz de satisfazer a nenhum.

Estava Ricardo surpreso ao último ponto da direção
que tomara a conversa; mas o modo natural de Guida, e a garridice com que
falava, o punham a gosto.

– Está me metendo em brios, notou o moço a rir.

– Também tenho a minha diplomacia.

– Mas enfim sem conhecer os tais desejos, é que nada posso dizer.

– Decerto! Há quase um mês, que estão me tentando! E
eu perderia esta ocasião de acabar com eles; pois bem, convencida de
que não posso satifazê-los…

Guida levou a mão aos lábios e soltou um arrulo gracioso,
que pareceu, com o gesto, desfolhar nos ares:
– Prrr!… solto-lhes as asas e… Adeus, pombinhos!
– Quem sabe?… A senhora está figurando a coisa como muito difícil,
para sazonar o gostinho. Aposto que eu vou, como a lâmpada de Aladino,
realizar esses grandes desejos, o primeiro dos quais eu já adivinhei.

– Ah!
– É tirá-la da sombra implacável de um monstro verde-gaio…

– Ora! Eu já nem me lembrava disso.

– Bem; já vejo que não sou forte na adivinhação;
o melhor é escutar.

– E não interromper; porque já estamos perto de casa. Quem
sabe se não é também diplomacia para ganhar tempo?
– Estou mudo como um reposteiro.

– Pois ouça. O primeiro desejo era, note que eu não digo é;
era que o “Galgo” fosse meu.

– Não vejo a impossibilidade.

– Eu lhe mostro. Se papai quisesse comprá-lo, o senhor recusaria
vendê-lo.

– Certamente.

– Era o único meio.

– Perdão; há outro.

– Não há mais nenhum. O senhor não podia nem pensar
em oferecê-lo a pessoas com quem não tinha relações
íntimas; e menos agora, depois desta confissão. Portanto é
impossível.

– Assim, decerto.

– Passemos ao segundo.

– É verdade, ainda restam dois desejos.

– O meu segundo desejo… Promete não desconfiar? disse Guida voltando-se
para ele com gentileza.

Ricardo teve uma suspeita de que a filha do banqueiro o estava debicando,
como costumam as moças bonitas e prendadas, para mostrarem espírito
e darem expansão à natural petulância de um coração
de dezoito anos. O primeiro impulso foi retrair-se; mas não se deixou
levar dele; seu caráter sério não o inibia de aceitar
com a moça esse desafio de garrulice.

A borboleta queria voejar, ostentando suas roupagens magníficas e
farfalhando as asas sussurrantes. Não havia ali flor, que libasse;
pois seria ele o pretexto desse inocente devaneio, do qual também de
sua parte contava participar.

– Desconfiar?… Fique descansada; não quero passar por provinciano
duas vezes no mesmo dia.

– Lembra-se da primeira vez em que nos encontramos? perguntou Guida.

E fitou no moço um olhar, que esperava a resposta da interrogação.

– Foi aqui mesmo na Tijuca! disse Ricardo.

Assomou à face um leve rubor, que o olhar de Guida evitou, mal o
percebeu.

– O senhor estava muito embebido a olhar a florzinha amarela…

– Sim; a da Pedra Bonita?
– Essa mesma.

– Admirava. É um mimo essa flor.

– É uma jóia, é; mas deixemos a flor por enquanto.
Eu também tenho paixão por ela e a admiro. Mas o senhor admirava
e fazia outra coisa.

– Não me recordo.

– Eis um recurso de que não precisa.

– Tem razão. E por que hei de negar? Beijava-a: está satisfeita?
Guida fez com a fronte um aceno afirmativo.

– Cuidei que essa poesia do sentimento, que faz conversar com uma estrela,
beijar uma flor, adorar uma lembrança, já não se encontrava
hoje em dia, a não ser nos romances. Se alguma vez se misturava com
o prosaísmo desta nossa vida fluminense, era a moda de comédia
de sala: para divertir as moças da moda, que chegaram aos dez anos
e já não podem mais suportar as bonecas. Ora, desta última
suposição, está claro que não se trata. A causa
portanto é seria.

– Muito séria, acudiu Ricardo.

– Confessa?
– Há nada mais sério e real do que a fragilidade humana? Eu
lhe conto a história dos “Sonhos d’ouro”. É assim
que chamo a florzinha amarela…

– O nome é bonito!
– Se tem outro, não sei, dei-lhe este. É bonito e lembra uma
coisa muito agradável. “Sonhos d’ouro”!… A senhora não
pode ter esse prazer; Deus, dando aos ricos a opulência, negou-lhes
a ardente esperança de a obter, e reservou-a como uma compensação
para nós, os pobres. É somente para nós que essa fada
incomparável levanta os suntuosos castelos, os jardins encantados,
os paraísos na terra. Quando a senhora me viu, eu entrava no mais belo
de meus castelos, à vista do qual o rico palácio que seu pai
tem nas Laranjeiras é um albergue; subia as escadas de pórfiro
marchetadas de ouro. Abriam-se de par em par as portas de rubi da sala da
saudade; e minha mãe aparecia-me sobre um trono de safiras. Atirei-me
a ela, que recebeu-me em seus braços, beijei-lhe os olhos, coalhados
de lágrimas, e… A senhora acordou-me.

– Ah! Compreendo. Lembrava-se de sua mãe. Nessa poesia também
eu creio, disse Guida com terna expressão.

– Dirá a senhora que é uma infantilidade cair assim um homem
feito, um doutor, a sonhar com o sol alto e os passarinhos a cantar. Mas a
isso respondo, que a natureza humana é esta mesma contradição.
O menino tem “homenices”… Não repare no termo; tenho um
mau costume de inventar uma palavra quando não acho outra já
feita para exprimir meu pensamento. Mas dizia eu que o menino tem suas “homenices”
que o tornam insuportável; portanto era preciso que o homem tivesse
suas “meninices”, que o tornam ridículo.

– Pensar em sua mãe ausente é uma coisa tão santa!
– Mas creio que ainda falta um desejo?
– Ainda; não me esqueci. Ia perguntar-lhe o que representa o desenho…
Sabe; aquele que o senhor fazia à janela?…

– Não adivinhou?…

– Não.

– Quis mandar à minha mãe uma lembrança de meu sonho.
Se eu tivesse talento de retratista reproduziria suas feições.
Fantasiei uma moça da corte.

– Favoreceu o original, observou Guida. Galanteria de artista.

– Não era possível. Ainda que eu fosse Rafael.

– O melhor juiz sou eu. À vista do desenho…

– Eis a dificuldade. Já ele está em São Paulo.

Foi interrompida a conversa pelo encontro com o rancho dos passeantes, a
poucos passos de distância da casa.

Talvez tenha alguém a curiosidade de saber o que era feito do impertérrito
Sr. Benício durante todo esse tempo.

Em posição e a jeito de proteger os dois moços com
o formidável guarda-sol verde-gaio, acompanhou-os passo a passo sempre
da banda do poente.

Refocilando no gosto incomparável de obsequiar o próximo,
caíra numa espécie de êxtase. Imaginava-se, não
em cima do machinho a trotar, mas recostado nas almofadas de um coche, acompanhando
um casamento.

Que glória não seria a dele, quando dissesse aos convidados:
– Eu os resguardei com o meu chapéu de sol, no primeiro dia do seu
namoro!

XX

Terminara o jantar em casa do Soares.

O crepúsculo da tarde cambiava-se com o frouxo lampejo da lua que
assomava por trás das serras.

Erguendo-se da mesa, os convidados espalharam-se pelo jardim, uns para gozarem
da frescura e beleza da ave-maria campestre; outros para se recrearem com
o passeio e o movimento; alguns maquinalmente, por imitação.

Mrs. Trowshy traçando o braço de Guida e recitando-lhe uns
versos de Shakespeare atravessou o jardim:

Come, gentle night, come, loving, black brow’d night,
Give me my Romeo, and when he shall die,
Take him, and cut him out in little stars,
And he will make the face of heaven so fine,
That the world will be in love with night
And pay no worship to the garish sun.

Encontrando Ricardo, a mestra parou para dizer-lhe em francês:
– Veja que injustiça, senhor doutor, Guida não gosta destes
versos.

– Ouça! disse Guida, e repetiu os versos.

– Se os lesse, poderia dizer alguma coisa, respondeu Ricardo.

– Pois eu pensava que tinha excelente pronúncia, acudiu a moça
com ar zombeteiro. Minha mestra diz que pareço uma inglesa; salvo quando
eu repito o nome dela – “missis Trixa”. Aí acha-me horrível.

– Trowshy! emendou gravemente a mestra que pouco entendia de português.

– Mas a culpa não é de sua pronúncia: é do meu
ouvido que ainda não se habituou, nem creio que se habitue nunca, a
essa língua mais de engolir que de falar!
– Pois eu vou traduzir-lhe os versos ao pé da letra, se me permite;
“Vem, gentil noite, vem, amável noite, vem, amável e escura
noite; dá-me o meu Romeu e quando ele morrer, tomai-o, cortai-o em
estrelinhas, e ele tornará o céu tão belo, que todo o
mundo se apaixonará pela noite, e não pagará mais tributo
ao garrido sol”. Não são magníficos?
Ricardo sorriu:
– São originais, pelo menos.

– Suponha o senhor que um poeta brasileiro fizesse alguma índia falar
semelhante linguagem, e pedir à noite que picasse o seu amado em estrelinhas,
não de massa, mas de papel dourado. Que risadas não dariam os
ingleses e como não encheriam a boca de nonsense? Mas é Shakespeare…
o grande mestre…

– The immense, the prodigious Shakespeare!… interrompeu Mrs. Trowshy no
plenilúnio de seu entusiasmo.

– Talvez o poeta quisesse exprimir por esse modo a ingenuidade infantil
de Julieta, que era quase uma criança.

– E não achou um modo mais delicado? O senhor escreveria semelhantes
versos?
– Não sou poeta.

– Ora! Quem não o é hoje em dia? O senhor conceberia Julieta
pedindo a Deus para fazer duas estrelas dos olhos de Romeu; ou para mudar
os seus cabelos em raios de luz, como os de Berenice; mas para cortá-lo
a ele em pedacinhos… Shocking! disse a menina pedindo ao inglês a
expressão de seu sarcasmo.

A rir afastou-se Guida com Mrs. Trowshy, pelo caminho da “Cascatinha”
que era o ponto do passeio.

O Dr. Nogueira aproximara-se de Ricardo e lhe oferecera um dos seus “regalias”
convidando-o a fumar no canto mais afastado. Ali via-se uma fonte de ferro
esmaltado representando a náiade do jardim dentro duma concha, e banhar-se
nas próprias águas que vertiam-lhe dos olhos como torrentes
de lágrimas.

Desde o primeiro dia Ricardo notara o Dr. Nogueira, cujo nome já
conhecia pela reputação de talento que o cercava, e desejou
aproximar-se dele. Deteve-o porém a expressão de fria arrogância
que esticava o perfil e o talhe do candidato. Esse empertigamento moral revelava
a afinidade que havia entre a alma do candidato e a vaidade feminina. Era
alma que não dispensava os arrebiques e espartilhos ainda mesmo em
casa.

Foi pois com prazer que Ricardo aceitou o charuto e a palestra, que lhe
oferecera o Dr. Nogueira.

O candidato, como alguns homens de talento, longe de desdenhar os gozos
materiais, entendia que é a carne que faz o espírito, o apura
e lhe dá o nervo. Assim apreciava ele depois de um excelente jantar
a febre sibarítica, perfumada com as fumaças do melhor tabaco
de Havana, e embalada pelo burburinho da água trepidando na fonte ou
pelo ruge-ruge das folhas das palmeiras.

E na forma do preceito de Horácio – miscuit utile dulci – aproveitou
aquelas horas voluptuosas do quilo, para conhecer o adversário com
que tinha de bater-se na campanha matrimonial, em que se achava empenhado.

– Aqui estaremos perfeitamente, disse Nogueira sentando-se na ponta do banco
e indicando a seu lado um lugar ao moço. Gosto de fumar neste canto
o meu charuto depois de jantar. O barulho da fonte, misturado com o dos coqueiros,
derrama uma ligeira sonolência, quanto basta para não pensar;
mas não tanto, que se deixe de sentir e gozar.

Notou Ricardo que o devaneio desse espírito, como a sua amabilidade,
tinham às vezes umas quinas ásperas: eram como tela de painel,
que uma lasca da madeira estofa. Uma circunstância mínima lhe
revelou esse traço fisiológico. O termo “barulho”
para indicar o burburinho d’água, empregado por homem de tribuna e
eloqüente, mostrava um defeito de educação. Como sucede
à maior parte dos talentos que figuram em nosso país, não
tinha Nogueira o polimento literário, e embora sentisse depois de certo
tempo a necessidade de dar à sua palavra certo verniz de estilo, contudo
notava-se ainda muita falha, em que através da arrogância do
figurão, percebia-se a crosta do filho das ervas. A palavra é
para esses mercenários o instrumento do ofício, a trolha de
pedreiro.

– Temos demais a vantagem de livrar-nos da algazarra, que por lá
vai. Esta gente avalia do espírito, como do champanha, pelo estouro;
e então desafiam-se a quem dará as mais descompostas gargalhadas,
para chamar a atenção.

– No fim das contas, parece que eles têm razão. É o
rumor quem governa o mundo.

– Quer dizer a opinião.

– Não é mesma coisa?
– Há a sua diferença, impôs dogmaticamente o Nogueira,
e passou adiante. A tarde está quente!… A estas horas costuma correr
alguma brisa, mas hoje está abafado. Neste ponto Petrópolis
é preferível à Tijuca. Eu, se não estivesse preso
a esta gleba da cidade, é onde passaria o verão.

– V. Ex.ª é advogado? perguntou Ricardo para dizer alguma coisa
e encher a pausa que lhe deixara o Nogueira.

– Tenho um escritório com o nome na porta, mas é para constar…,
serve de ponto de palestra aos amigos. A advocacia já não é
uma profissão.

– Perdão; eu a conto entre as mais nobres.

– Assim devia ser. Mas aí, como em tudo, o fato insurge-se contra
o princípio. Não é esta a história do século
dezenove, ao contrário do século dezoito, que foi a revolta
da idéia contra o abuso e o prejuízo? A advocacia não
passa de um pretexto; é um título de apresentação
na sociedade. No foro inventou-se outrora um nome decente para certas indústrias,
que se não confessam; certos réus ou testemunhas interrogados
aos costumes, declaram que vivem de “suas agências”. Pois
a palavra “advogado” tem o mesmo préstimo, com a diferença
de serem os agentes mais graduados e as agências mais gordas.

– E V. Ex.ª pertence a esta classe? observou Ricardo com ironia.

– Por que não? Charles Nodier dizia no princípio deste século
– Je ne connais qu’un métier à décrier, celui de Dieu!
O Nogueira, que tinha presunção de falar bem as línguas
estrangeiras, pronunciou a citação francesa com uma afetação
ridícula e um sotaque que devia ferir o ouvido normando.

– Pois eu creio que em França nenhum ofício caíra em
maior descrédito, observou com muito a propósito o paulista.

– Deixemos de parte a religião. É ponto que não discuto,
atalhou categoricamente o candidato e prosseguiu.

Mas Ricardo interrompeu:
– Não chamo religião essa exploração da consciência
a que o escritor francês dava com muita propriedade o nome de ofício.

Custou a Ricardo inserir no discurso do Nogueira esta pequena observação.
Foi necessário cortar-lhe a palavra, e arrostar o gesto desdenhoso
e magistral do candidato que desviava a réplica, dum revés do
rosto.

– Em país algum é tão verdadeiro o dito de Nodier como
em o nosso, continuou o Dr. Nogueira com o tom amplo e sobranceiro de que
servia-se para abafar as interrupções. Há coisa que mais
se tenha ridicularizado do que sejam as altas posições políticas,
e sobretudo o cargo de ministro? E não obstante todos caminhamos para
lá.

– Nem todos! constestou Ricardo.

– Sou advogado, pois, como serei deputado amanhã e mais tarde ministro
e senador. Em toda a parte onde se reúnem i animali parlanti, por força
que há de haver o deus e a besta. Ensinam as Santas Escrituras que
o Criador formou o homem do lodo, amassando o barro e inspirando-lhe a centelha
divina. Pois não é de admirar que em se chocando uns com outros,
a lama de certas figuras se desmanche, e então que remédio têm
os outros homens, senão patinarem nela, se querem passar adiante?
– Os ambiciosos vulgares, não duvido que tenham pressa de chegar e
não escolham caminho, nem companheiros de jornada. Mas há quem
se desvie com asco do charco, embora se resigne a não passar adiante.

– O senhor formou-se ultimamente? perguntou o Nogueira com um sorriso protetor.

– Há cinco anos.

– E é advogado também?
O protesto que em tom veemente acabava de fazer contra as doutrinas do Nogueira,
não o pudera conter o jovem e brioso paulista. Mas, arrependido, prometeu-se
não tomar ao sério as excentricidades do Dr. Nogueira, o qual
sem dúvida sofria de um sestro, que ataca muito os homens vaidosos
de seu talento, o sestro do paradoxo.

Assim como as damas, desvanecidas de sua formosura, inventam modas esquisitas
e farfalhadas, penteados incríveis, anquinhas atentatórias da
moral pública, escandalosos falbalás e cinturas extravagantes,
assim os talentos fátuos se deleitam em provar absurdos.

– Aspiro a sê-lo; mas não como V. Ex.ª o entende, respondeu
Ricardo com polida ironia à pergunta do Nogueira.

– Pensa então o senhor, que a ciência do mundo aprende-se nas
escolas e academias? Se conheço hoje a nossa sociedade, não
foi pelo que me ensinaram em Olinda, mas pelo que aprendi em um curso mais
longo, em cerca de vinte anos de experiência. Na sua idade também
tinha a cabeça cheia de utopias, e o coração abarrotado
de ilusões. A advocacia representava para mim o sacerdócio da
justiça, a nobre independência do talento. A imprensa, eu a considerava
como uma realeza, e a mais legítima, porque tinha o seu trono na opinião.

– Mas isso não passava de uma abusão?
– Completa, meu colega. Quando tiver alguma prática do foro, há
de reconhecer que são as boas causas as que mais freqüentemente
se perdem. Quem sustenta um pleito justo, confia no direito; mas o seu adversário
emprega todos os recursos: e ganha. Quanto à independência, não
passa de uma burla; todos nós, que mais somos do que uma cadeia de
fuzis? Cada um segura-se ao anel de cima, e por sua vez suspende o anel de
baixo; e assim trabalha a corrente do guindaste.

– Não confunda V. Ex.ª a independência com a barbaria,
ou ainda com a misantropia. A sua virtude consiste justamente em manter o
caráter no meio das colisões e embates que o abalam. Aí
está a dignidade do homem, lutar e vencer; isolar-se do mundo, parece
mais covardia.

– Devaneios, replicou Nogueira com desdém. Isso que chama dignidade,
meu colega, é nada menos que um crime e grave; vale tanto como uma
insurreição, ou uma revolta. Todos a condenam; ninguém
perdoa. Se o caluniarem, aparecerá um poder chamado moderador, que
fará presente de sua honra ao pasquineiro; mas para o insulto que o
senhor fizer a uma cidade corrompida, afrontando-a com os seus brios, para
esse delito de lesa-sociedade não há graça; ao contrário,
toda a severidade amassada nas altas regiões desfechará sobre
o réu convicto do pundonor e integridade!
– Neste ponto não duvido que tenha razão. Como Circe que transformava
os seus amantes em barrões, a política namora os mais belos
talentos, e nada lhes recusa, contanto que fossem.

– Gosta da fábula? disse o candidato com um leve toque de pedantismo.
Pois eu prefiro a história, a grande mestra. A política é
em nosso país o mesmo que tem sido em toda a parte, uma cortesã.
Quando recebe na alcova…

– No gineceu…

– Na alcova os Péricles e os Sócrates, torna-se Aspásia;
mas, se entrega-se aos gladiadores e servos, cai em Messalina.

– Se V. Ex.ª permite uma observação…

– Sem dúvida.

– Não foi Péricles quem fez Aspásia; ao contrário,
depois que morreu o grande Ateniense, ela casou-se com uma casta de barão
daqueles tempos, um rico marchante, e conseguiu tirar desse lixo de ouro um
grande orador.

O Nogueira, que não se deixava derrotar, ainda mesmo nos seus eclipses,
acudiu pronto:
– Acredita nisso? É uma galantaria do historiador, se não foi
do próprio Lisicles, que para lisonjear a mulher, atribuiu-lhe o que
só devia a seus esforços.

– Acredito, sim; porque não o dizem somente as tradições
de Atenas: é a história eterna da humanidade. Por toda a parte
a mulher é a alma do homem.

Deixou o candidato cair a conversa um instante para repousar a palavra,
e ao mesmo tempo imprimir outra direção ao diálogo.

XXI

Tiradas as últimas fumaças do “regalia”, e metida
a ponta do charuto em um talo da palmeira, com o respeito que o verdadeiro
fumante vota às cinzas desse companheiro e confidente de mágoas
como de prazeres, ergueu-se o candidato, deu alguns passos pelo jardim e voltou
para o mancebo que o esperava apoiado ao esteio do caramanchão:
– Uma coisa lhe asseguro, meu colega. Se os moços de talento, que vão
começar a sua carreira, ouvissem o conselho de minha experiência,
não desbotariam por certo a flor de sua inteligência nesse mister
ingrato, de urdir enredos forenses, e desbastar autos, consumindo a mocidade
na incessante labutação de borrar o papel e a consciência.

– O que fariam então?
– Para que se matarem a construir pedra a pedra uma posição
às vezes bem medíocre, se podem tomar de assalto o futuro, e
conquistar a reputação d’un coup de main, como fazem por aí
os espertos? O processo é simplíssimo. Marca-se entre os vultos
notáveis do país aquele que mais convém à ambição
do pretendente: um estadista, se o fuão destina-se à política;
um literato, se o fuão aspira a escritor. Escolhido o alvo, assesta
o sujeito contra ele toda sua metralha: a mentira, a injúria, o insulto
grosseiro. A cidade ocupa-se imediatamente do escândalo. “Quem
é?… Quem é que ousa atacar o homem eminente?” Conhecidos,
mas principalmente os amigos, correm açodados à compra do pasquim;
comentam as insolências e vão com uma caramunha de jesuíta
propalando a notícia… O autor, de fuão que era na véspera,
torna-se personagem; todos inquirem dele, apontam-no quando passa, repetem
seu nome como um epíteto do caráter por ele agredido e atassalhado.
Assim abre-se caminho até à celebridade, que é a base
de toda a grandeza. Obtido esse pedestal, “o temível”, ou
o parvenu, como o chamam os franceses, pode-se deitar à espera das
honras e pepineiras que lhe chovem a mancheias. Só lhe falta um casamento
rico, para coroar a obra de sua rápida fortuna. O casamento rico é
em verdade um achado da maior importância. Se o indivíduo não
tem pátria, nem família, dá-lhe uma apresentável;
se já possui esses trastes, ficam-lhe duas, o que não é
para desprezar. São duas amarras para tudo; lá e cá,
diz-se com toda a cerimônia, “nosso país”. Além
disso traz o casamento a fortuna patrimonial, que tem sempre uma certa respeitabilidade,
e serve para decorar umas vergonhas e misérias do passado. Ora, a um
homem de recurso não é difícil, desde que trepou ao pedestal
da celebridade, ou por outra, desde que se tornou um “temível”,
não é difícil arranjar uma aliança nessas condições.

Sustando a palavra um instante para observar-lhe o efeito na fisionomia
de Ricardo, que o escutava com repugnância, concluiu o Nogueira:
– Eis, meu colega, como um hábil pelotiqueiro de um passe escamoteia
parte da reputação por outros laboriosamente adquirida; e com
esta sorte edifica um brilhante futuro. Experimente!
Ricardo até ali escutara apenas com tédio o que ele tomava por
sarcasmo pungente; à última palavra alteou a fonte com indignação:
– O senhor não fala seriamente!
Desfechou o Nogueira uma gargalhada cromática:
– Decerto! Como se há de falar seriamente, quando é tão
grotesca a verdade? Não lhe expendi opinião minha; referi o
fato; olhe ao redor de si, e vê-lo-á talvez bem de perto.

– Explique-se V. Ex.ª; não o compreendo.

– Quando abrir os olhos, compreenderá.

E Nogueira solfejando a sua risada dirigiu-se para a casa.

Enquanto a um canto retirado do jardim se travara tão interessante
conversa entre os dois colegas, do lado oposto se havia formado uma roda,
a que servia de eixo ao Bastos.

O piquenique derrotara o nosso corretor, que mostrava-se um tanto amarrotado,
nas feições e nas esperanças.

As barbas já não tinham aquela simetria irrepreensível
que dava-lhes a imobilidade do postiço. Uma bomba na praça não
houvera estrompado nosso pretendente, como aquele maldito passeio à
“Vista dos chins”.

Quando, adiantando-se à comitiva, chegara à casa na esperança
de ali encontrar a filha do banqueiro, achou-se em branco. Retrocedeu já
um tanto azoado, e de todo ficou, vendo aparecer na volta da estrada Guida
e Ricardo em conversa animada.

Foi um golpe para o corretor que viu a bancarrota iminente sobre sua empresa
matrimonial, que na véspera ainda parecia-lhe tão próspera!

Jantou mal, pensando no quanto é vária a fortuna, e incerta
a carreira do comerciante.

Contudo não descoroçoava ainda o Bastos; tinha fé no
jeito e habilidade do Soares, que bem sucedido sempre em todas as transações,
não havia de errar a boa mão, justo em negócio tão
do peito, e do qual dependia a sorte de sua filha.

Ao levantar da mesa, tratou o corretor de colher informações
exatas acerca do passeio; queria saber ao certo o ponto a que já tinham
chegado as coisas, para desde logo pedir a intervenção paterna,
se as circunstâncias reclamassem esse extremo curso, ultima ratio dos
pretendentes repelidos pela noiva.

Os companheiros de passeio, moços do comércio, ou porque em
verdade nada tivessem observado de suspeito, ou para consolarem o corretor,
mostraram-se convencidos de que não havia da parte de Guida para Ricardo
mais do que amabilidade de uma moça espirituosa e, quando muito, uma
pequena dose de coquetterie. Assim falavam eles; eu diria: coquetismo em linguagem
da moda, e faceirice, À nossa maneira.

O Guimarães não tomou a coisa ao sério:
– Ora, estão vocês aí com histórias! A Guida o
que fez hoje no passeio, assim como no Domingo passado, foi debicar o tal
caipira de São Paulo. Aquilo é um pratinho soberbo, nem vocês
imaginam!…

E soltando um ritornelo da sua implicante risada, lá se foi o moço
bonito a borboletear entre o círculo das moças, amolando as
guias do bigodinho assassino, e mirando-se em falta de espelho n’água
cristalina que enchia a bacia de mármore dos repuxos.

Convencido de estarem todas aquelas meninas morrendo por possuí-lo,
passava lá consigo que era uma crueldade causar tantos infortúnios
para satisfazer a paixão de uma só, de Guida. Mas não
obstante o desengano, sabia que não podendo resistir à sedução,
ardiam em desejos de se fartarem de beijos naquela boca tentadora; imaginando
que já o perseguiam as míseras namoradas sem ventura, por faceirice
furtava-se o rapaz às suas carícias. E com efeito, às
vezes interrompendo o giro pelo jardim, fazia uma pirueta à vista das
senhoras.

Entretanto na roda do Bastos, continuava a investigação dos
pormenores do passeio com relação ao ponto importante. Chegara-se
o Lima e sabendo do que se tratava, quis também das a sua opinião,
fundada em informações verídicas:
– Esteja descansado, disse ele ao Bastos. Não há nada!
– Deveras! Você me assegura?
– Pode escrever.

– Mas como sabe? perguntou o visconde da Aljuba, que até aí
se tinha contentado em ouvir.

– É verdade. Você não foi do passeio.

– Eu lhe digo o como sei melhor do que todos que lá foram. Conversando
com D. Guilhermina, antes do jantar, falei a respeito dessa novidade que os
senhores trouxeram.

– Eu não! repetiu meia dúzia de vozes.

– Creio que foi o Sr. visconde!
– Se fui eu, do que não me lembro, é que alguém me disse,
respondeu sem desconcertar-se o homúnculo.

– Quer saber o que respondeu D. Guilhermina? – “Qual, Lima, não
acredite! Deixe-os falar! A Guida nem pensa nisso. Pois não vê
que se houvesse alguma coisa, ele não trataria o Ricardo com tanta
familiaridade e sem acanhamento, como eu trato o Fábio, por exemplo?”
– Esta última razão, acrescentou sonsamente o visconde, não
me tinha lembrado. É de arromba! Está decidido que não
há nada absolu…

Não acabou o Aljuba de debulhar tranqüilamente as sílabas
do seu advérbio, porque foi de repente arrebatado à terra, e
depois de uma ascensão curta e rápida se achou sentado no jardim,
sem compreender ainda como isso acontecera.

A causa do fenômeno ali estava em carne e osso. Era o Sr. Benício
que, passando casualmente pela próxima alameda, a farejar no jardim
o que não descobrira na sala, isto é, “uma pessoa a obsequiar”,
bispou de longe a figurinha do visconde aprumada sobre a base.

– O Sr. visconde de pé!… exclamou o Benício.

O incomparável obsequiador possuiu-se de um horror que talvez não
lhe causasse o visconde, se em vez de ter-se direito, como a a natureza o
fizera, pusesse as mãos na areia, e fazendo cauda d’aba da casaca,
imitasse o gambá, de que tinha seus traços fisionômicos.

Em dois saltos o homem serviçal galgou a escadaria de pedra, arrebatou
da sala uma cadeira, e arremessando-se com ela ao jardim, foi cair precisamente
no meio da roda. Aí fincando com a mão esquerda a cadeira na
areia, com a direita empunhou o exíguo visconde pelo pescoço,
como o faria ao gargalo de um moringue, e assentou-o em cheio na cadeira .

Esta rápida operação foi acompanhada da seguinte jaculatória:
– V. Exª. de pé, Sr. visconde! E eu sem ver! Oh! desculpe-me,
excelentíssimo. Aqui tem V. Exª. uma cadeira! Mas não se
incomode, excelentíssimo, por quem é! Deixe, eu mesmo o sento!
Pra que ter este trabalho! Assim; esteja a gosto; não precisa mais
nada?
– Nada, nada! obrigado, muito obrigado, Sr. Benício, mil vezes obrigado!
pôde afinal responder o visconde, fincado na cadeira, e desdobrando-se
como um couro amarrotado.

– Aqui está quem pode dar boas informações! disse um
da roda.

– Oh! o Benício deve saber. Pois era ele quem os acompanhava, acudiu
o outro.

– Não vêem como está bem penteadinho! tornou o primeiro
alisando as falripas do amanuense.

– O quê? O quê, homem? Dizia no entanto o Benício.

– Estávamos aqui numa dúvida de que só você pode
nos tirar.

– Vamos a ver! Para o que é servir aos amigos, eu estou pronto sempre.

– O que acha o senhor? A Guidinha está deveras mordida?
– Heim?
– Deu corda ao bicho?
– Ai, que os amigos querem se divertir à minha custa!
Interveio o visconde:
– Não seja desconfiado, homem. Estes senhores desejam saber se pelo
que observou esta manhã no passeio, especialmente quando acompanhou
a D. Guida, percebeu que ela tinha sua quedinha pelo tal Ricardo.

– Ah! é isso?…

O homem serviçal não tinha observado coisa alguma, nem era
capaz de semelhante exerção de espírito. Acompanhara
os dois moços absorvido na satisfação de obsequiar dois
mortais a um tempo; e isto bastava para ocupar toda a atividade moral de que
era capaz o seu indivíduo. É certo que lá num refolho
escuro daquele miolo animal despontava um grelo de idéia. O homem tinha
uma bronca intuição de estar obsequiando os dois moços,
não só com a sombra do chapéu de sol, mas com a sombra
da cabeleira.

Agora, metido na roda, entre as galhofas dos rapazes, e com as explicações
do visconde, o grelo da idéia lhe abrolhara no cérebro; percebeu
do que se tratava, ainda mais dando com a cara amarrada do Bastos.

O amanuense tinha especial birra ao corretor. A emulação é
achaque de que padecem os talentos. O empenho do Bastos em incumbir-se das
encomendas de D. Paulina, de Guida e outras senhoras, despertara justo zelo
no amanuense, que tomava aquelas obsequiosidades por verdadeiras usurpações
de suas ocupações privativas. Entendia o “homem serviçal”,
que, dando-lhe uma sinecura, o governo lhe concedera privilégio exclusivo
para obsequiar o próximo, e ninguém podia privá-lo dessa
honra.

Em sua qualidade de animal daninho tem o homem um faro para vingança.
Doutro modo não se explica o que passou na cachola do Benício:
– Cá pra mim é negócio decidido, respondeu impavidamente
o amanuense. Esta manh&atatilde; quando tive a honra de segurar o chapéu
de sol para os noivos, bem me estava lembrando que amanhã tenho de
visitar o meu amigo monsenhor. É bom a gente andar prevenido; e como
eu é que hei de ser incumbido de arranjar os papéis na Conceição!…

– São histórias do Benício, atalhou o visconde metendo
à bulha o amanuense. Que o maganão não pilha a moça,
nem o dote, por essa fico eu, e se quiserem uma apostazinha…

Não obstante a confiança na sagacidade do Aljuba e sobretudo
em sua avareza, que não havia de arriscar a aposta sem plena certeza
de a ganhar, a balela do casamento da filha do banqueiro continuou a correr
entre os convidados, e não se falava em outra coisa no salão,
quando ali entrou Ricardo.

Todas as vistas fitaram-se nele procurando-lhe no semblante a ufania do
triunfo; e tal é o poder da imaginação, que muitos a
viram desdenhada em uma fisionomia onde os paradoxos do Nogueira haviam deixado
traços bem expressivos de tédio e desgosto.

Notou Guida essa expressão de Ricardo, que distraidamente e sem precebê-la,
sentara-se a seu lado.

– Sabe a novidade? perguntou a moça.

– Qual?
– Ainda não lhe deram os parabéns?
– Por que motivo?
– Deveras não sabe?
– Entrei agora mesmo na sala.

– Pois então, deve-me as alvíssaras. O senhor está
para casar comigo.

– Não entendo! respondeu Ricardo fugindo ao gracejo.

– Parece-me que é bem claro. Depois do jantar não se tem falado
aqui de outra coisa.

– Mas é uma indignidade! Exclamou o mancebo, mal contendo a revolta
dos brios.

– Faça como eu! acudiu Guida sorrindo. Não se importe! A princípio
também me incomodavam essas impertinências; agora estou habituada;
e ainda agradeço quando não me dão por noivo algum bobo
ou algum traste, como já tem sucedido.

– Mas eu não lhes dei o direito de se divertirem com meu nome!
– E dei-lhes eu acaso? tornou Guida. Tenha paciência; amanhã
me inventarão outro noivo; e o senhor ficará descansado. Eu
é que infelizmente não tenho quem me tire da berlinda.

Ditas estas palavras em tom que flutuava entre o motejo e a contrariedade,
a filha do banqueiro ergueu-se para dirigir-se ao piano, onde a chamara D.
Clarinha.

XXI

Terça-feira seguinte, estava Ricardo como de costume em seu escritório.

Seriam dez horas passadas. Reinava na pequena sala, dividida a meio em dois
cubículos por um tabique de pinho, um silêncio desanimador, sem
dúvida propício à meditação, porém
pouco prometedor a respeito de clientela.

Sentado à clássica mesa de vinhático inteiramente limpa
de autos, Ricardo, trabalhador infatigável, escrevia desde as nove
horas da manhã em que habitualmente chegava ao escritório.

Lembrara-se de fazer algumas traduções para distrair as horas
enfadonhas do estéril plantão, nutrindo a esperança de
tirar daí alguns parcos recursos com que fosse atamancando as necessidades.

Ricardo bem sentia que não tinha real vocação para
a profissão forense; a aridez desses estudos, que os rábulas
costumam amenizar com desbragadas verrinas, não conformava por certo
à sua inteligência brilhante, colorida por
uma imaginação de artista.

Mas o mancebo, não obstante, aceitava essa carreira como um dever,
pela impossibilidade de escolher outra que lhe proporcionasse os meios de
subsistência e os recursos para manter a sua família, que se
achava em circunstâncias
precárias.

Um camarada de São Paulo se lhe oferecera para obter alguma colaboração
em um dos jornais da corte. Mas até então nada conseguira; as
pequenas empresas não podiam pagar; as grandes entendem que o verdadeiro
redator de uma folha que se respeita, é o soberano público à
razão de tantos réis por linha.

O livro que Ricardo traduzia era de Balzac: Eugênia Grandet. Esperava
achar um editor para a obra-prima do ilustre romancista francês; coisa
bem duvidosa.

Às vezes deitava a pena sobre a bandeja do tinteiro, e derreando contra
o recosto da cadeira, perdia-se em cogitações que o trabalho
interrompera, e agora com a pausa voltavam a eito.

Conhecia-se-lhe pelo aspecto que tristes eram aquelas cismas; ressumbrava
em seu olhar apagado o desalento que iam derramando-lhe nos seios d’alma.

A expressão habitual do mancebo era a sisudez afável, que
nem se arruga na carranca, nem se descompõe no frouxo do riso. Nesse
dia porém mostrava-se grave e preocupada sua fisionomia.

O dinheiro, esse azoto social, sem o qual não se vive nas cidades:
eis a grande questão, que se debate nas ruas e praças, desde
o mendigo até o rei, um esmolando os magros vinténs, o outro
distribuindo os milhões nacionais.

Era essa também a preocupação de Ricardo naquele momento.
As circunstâncias do mancebo de dia em dia se tornavam mais estreitas.

Morava ele com a mãe de Fábio, que o agasalhara como o futuro
cunhado de seu filho; já essa posição de hóspede
o constrangia, apesar dos contínuos protestos da boa senhora, a repetir
todos os dias, que a despesa de casa não
aumentara um real por sua causa, e que longe de incomodar-se, tinha ela ao
contrário o maior prazer com tão agradável companhia.

Ainda quando assim fosse, e Ricardo procurava tornar-se o menos pesado, acanhava-o
essa dependência de alheio favor, e repugnava-lhe viver a expensas de
outrem, apesar da amizade de Fábio e dos laços que breve deviam
ligar as duas famílias.

Mas o que exacerbara naquele dia estas nobres suscetibilidades de Ricardo,
era a posição especial em que se achava com relação
a Fábio, desde o último domingo.

Já anteriormente não gostara do desembaraço com que
o noivo de sua irmã se portara em casa do Soares; disfarçara
contudo, fazendo-lhe apenas ao de leve alguns reparos, a que o outro não
deu importância.

Foi porém no dia do passeio à “Vista Chinesa” que
Ricardo se recolheu contrariado ao último ponto, não só
pela semcerimônia com que se intrometera o Fábio na roda dos
convidados, filando o cavalo do Lima, como pelo namoro
escandaloso que travara com D. Guilhermina.

Sentia Ricardo a necessidade de ter com o amigo uma prática séria,
na esperança de coibir a tempo aqueles ímpetos e evitar futuros
dissabores, senão verdadeiros desregramentos, que trariam a infelicidade
de duas famílias.

Fábio porém evitava as ocasiões em que o assunto pudera
muito naturalmente vir a talho, trazido pela divagação de uma
palestra entre amigos. Um emprazamento emprestaria à conversa ares
de solenidade que seriam de mau
prenúncio.

Podia o noivo de Luísa enxergar nas palavras do amigo uma exprobação
de quem já se arrogava autoridade de chefe de família; e irritando-se,
persistir no caminho que levava.

Razão tinha Ricardo para recear esse resultado; pois desde a primeira
visita à casa do Soares sentia que o espírito de Fábio,
arrastado pela sedução daquela sociedade, subtraía-se
à sua influência.

O menor arrefecimento nas relações dos dois moços teria
conseqüências graves, pois determinaria a retirada de Ricardo para
São Paulo, desvanecendo a esperança por tanto tempo afagada
de fazer carreira na corte, e preparando para Luísa uma decepção
cruel.

Tais eram os pensamentos que nessa manhã carregavam a fronte do jovem
advogado de uma nuvem de tristeza. Eram dez horas e meia, e Fábio ainda
não chegara ao escritório. A sua mesa, colocada do outro lado
da sala, estava intacta como ele a deixara sábado.

Nos dois cantos viam-se as rimas de autos velhos, que o moço pedira
aos escrivães a pretexto de estudar certas questões; mas realmente
para dar à sua banca o aspecto forense.

Esses cartapácios faziam as vezes de uma tabuleta.

– É capaz de não vir hoje, como já não veio
ontem, disse consigo Ricardo.

E ia voltar à tradução, quando ouviu passos na escada;
momentos depois na porta de comunicação entre os dois repartimentos
surdiu a figurinha encarquilhada do Visconde de Aljuba:

– Pode-se entrar?

– Oh! Sr. visconde!… Faça favor.

Ricardo, surpreso da visita, ergueu-se para oferecer ao Aljuba uma cadeira
a seu lado.

– Custou-me a dar com o escritório. Também foi procurar uma
rua tão esquisita. Nada; isto não serve. É preciso arranjarmos
quanto antes uma sala aí na rua Direita, ou mesmo na da Quitanda…
– Ainda não é para mim, e quem sabe se o será algum dia.

– Ora qual! disse o visconde com seu riso fagoteado e batendo no ombro do
moço. Você breve está aí recheado! Veja o que lhe
digo.

Uma das particularidades do visconde era familiarizar-se com as pessoas
que tratava a ponto de chamá-las por você desde o primeiro dia.
Entendia que o dinheiro lhe dava essa liberdade, como lhe dera a excelência
com que o
abarrotavam a cada canto.

Ricardo não gostou do modo achavascado; mas disfarçou.

– Dito por V. Exª., é um bom agouro.

– Oh! Eu cá nunca me engano. Sujeito que tem de ser apatacado, eu
o descubro logo pela pinta. Olhe o Soares. Foi vê- lo, e conhecer logo
que aquele patife acabava podre de rico.

– Então acha-me com jeito de homem apatacado?

– Tem todos os sinais.

– Quais são eles?

– Eu cá sei. Mas vamos ao que serve. Para começar, temos aqui
uns dois negocinhos… Meu procurador há de passar por cá depois.
Trouxe os papéis para explicar-lhe bem a coisa.

Tirou o visconde do bolso um maço de papéis preso por um elástico,
e pô-lo na ponta da mesa.

– Este é uma escritura de hipoteca dum sujeito que me deve seis contos.
A casa há de valer uns vinte; ainda tem uns escravinhos; bem tangida
a embroma, como os senhores sabem fazer, podemos passar a mão em tudo.

– Engana-se; eu não sei fazer desse milagres, disse Ricardo, já
não podendo conter o sarcasmo.

– Ande lá, ande lá! Isto agora é uma letrinha dum rapaz,
um peralta que já esbanjou a legítima do pai, e está
à espera da herança da mãe. É preciso pôr-lhe
em cima o ano do nascimento e andar com a tramóia depressa para arranjar
uma sentençazinha, que fique na gaveta bem guardada à espera
do bolo. Enquanto o marreco anda na pinga, não olha para estas coisas,
nem dá o cavaco, sobretudo caindo eu com uns cobres, que ele anda seco.
Mas assim que meter-se na herança, é capaz de vir com histórias
de que são falsas as letras, que ele as aceitou quando já estava
declarado pródigo, e outras petas.

– Desculpe-me, Sr. visconde, não posso me encarregar destes negócios,
disse Ricardo com fria gravidade, carregando sobre a última palavra.

– Por que então?

– Permita-me que reserve para mim os motivos de meu procedimento, tornou
Ricardo no mesmo tom.

– Ora já sei! É sobre isso mesmo que eu vinha falar-lhe; mas
precisava antes de apalpar o terreno… Compreende, heim!

Foi Ricardo quem dessa vez ficou surpreso do desembaraço do usurário.

– A coisa está bem encaminhada! Você é um finório!
continuou o visconde apertando o joelho de Ricardo. Mas, olho vivo, que anda
uma súcia de galfarros à cola da rapariga. Então o Nogueira
e o Bastos? Dois velhacos de marca.
Deixe-os por minha conta, que os conheço; têm de haver-se com
um macaco velho. Lá o Guimarães não mete medo, é
um pateta.

– Explique-se melhor, Sr. visconde, eu não o entendo.

– Faça-se de inocente! Ah! managão?! Quem não sabe
que a rapariga está pelo beiço! Você é um ladrão
feliz!

– De que rapariga me fala o senhor?

– Ora de quem há de ser senão da Guida, a filha do tratante
do Soares? Domingo na Tijuca, todos conheceram como ela se derretia… E tinha
razão! Olé se tinha.

– Não admito gracejos a este respeito, Sr. visconde.

– E esta! Não costumo gracejar com os negócios.

– Então é um negócio que o senhor veio propor-me…

– E que negócio!… Magnífico!… Olhe; um namoro com uma
rapariga como a Guida, custa caro! Eu conheço aquela sujeitinha! Está
acostumada a atirar fora as notas do banco como se fossem papéis de
bala! Além disso há de ser
preciso sustentar por muito tempo, um ano seguramente, a tamóia, o
que fica um tanto salgadete.

O visconde hesitou um momento, calculando uma última vez as probabilidades
da especulação. Ricardo, mantendo com esforço a calma
de um frio desprezo, desviava com desgosto o olhar da fisionomia grosseira
e astuta do usurário:

– Pois, meu amigo, eu forneço todo o dinheiro necessário para
o nosso negocinho… Já sabe, com a condição de tirar
a minha fatia do bolo. Que diz? Vamos ao ajuste; sempre é bom.

– Creio que terminou a sua proposta? perguntou Ricardo com a voz contida.
Cabe-me agora responder.

– Sem dúvida.

– Não tenho pretensões à filha do Sr. Soares; nem existe
entre nós mais do que relações do acaso, que vão
como vêm. Enganou-se, pois, Sr. visconde; não é a mim
que devia dirigir-se, para a sua especulação.

Deu o aljuba um saltinho na cadeira.

– Ahn! Não quer? Percebo a embroma. Fia-se na rapariga? Olhe lá,
não se arrependa…

– Queira poupar-me à necessidade de dar-lhe a resposta que merecia
sua proposição; mas o senhor força-me…

– Isso de mulher, não há que fiar, insistiu o visconde receoso
de que lhe escapasse a pechincha. Então aquela que é o diabo
de saia, ou o pai, o Soares, que tudo é um. Aposto que já o
engazopou…

Ergueu-se Ricardo afinal ao impulso da indignação que por
muito tempo recalcara; abotoou o visconde pela gola do casaco, e arrastou-o
até a porta da rua. Executada esta expulsão em silêncio,
apenas interrompido por algumas interjeições do visconde, Ricardo,
vendo que lhe ficara sobre a mesa o chapéu do miserável, atirou-lho
do alto da escada. Só então reparou ele na presença de
Fábio, que se ocultara na janela para deixá-lo passar com o
visconde a reboque.

– Ouviste?

– Tudo! O sujeito esteve impagável!

– E sabes quem é o culpado do que acontece?

– Sou eu, se te parece!… Ora, pois, arranja-me daí já um
processo. Servirá para praticares no crime. Código, artigo 264.
Mete-me nessa tarrafa policial! Anda; um estelionato, de cumplicidade com
o visconde!

– Não estou de veias para gracejos. Conversemos seriamente, Fábio.
Desde ontem que desejo esta ocasião.

– És difícil de contentar. Queres coisa ainda mais grave do
que o Código Criminal e um bom processo de estelionato? Sem atender
às facéias do amigo, Ricardo continuou:

– São estas as conseqüências do passo errado que me obrigaste
a dar, indo à casa do Soares.

– Com esta lógica sou capaz de Ter provar que, se não viesses
de São Paulo, não estarias aqui; e portanto o visconde não
te pilhava.

– Se todo o mal recaísse unicamente sobre mim!… Porém a
minha pobre irmã Luísa também tem o seu quinhão.
Mal sabe ela que as suas meigas saudades andam aqui desfolhadas ao vento do
prazer, e quem sabe se já não calcadas aos pés de alguma
falsa deidade!

– Meu caro Ricardo, estás hoje tétrico, como o Saião
Lobato na Câmara. Aparece-te de repente o Vasques, disfarçado
em visconde, para representar uma cena cômica, e tu em vez de dares
boas gargalhadas e te divertires à custa do velho ginja, tomas o caso
ao sério, e cais no dramático! Até aí, enfim passe.

Na cena da “ejaculação” tocaste o sublime. Farme-ias
lembrar o Rossi, se eu o tivesse ouvido. Mas depois de te haveres levantado
a essas alturas épicas, desceres assim ao sentimentalismo corriqueiro
de um poeta de sala, eis o que eu na minha qualidade de crítico, de
amigo, e de futuro irmão, não posso tolerar.

– Queres fazer o favor de me ouvir? disse Ricardo, atalhando aquela volubilidade
jovial, que em outra ocasião o faria rir de boa vontade.

– Espera; deixa acabar. O patife do visconde é um refinado tratante,
um velhaco de tal quilate, que logo ao nascer logrou a natureza fazendo-se
homem em vez da ratazana, para que ela o destinara. Mas para ter boas idéias,
não há
como essa gente. Aproveita a que ele te deu, que é excelente, e logra-o…

– Fábio! exclamou Ricardo com severidade.

– Que maior prazer pode ter um homem honesto do que o de “flambar”
um velhaco?… Pensa nisso, que aproveitas mais o tempo do que lendo o farelório
do Lobão. Até logo!

Ditas estas palavras, o peralta do rapaz ganhou a porta da escada, e desapareceu.

XXIII

Havia grande banquete no palacete do Soares, à praia de Botafogo.

Era dia de anos. Guida entrava nos dezenove; o que anunciava para breve
um grande acontecimento.

Sabia-se que o pai prometera deixar à filha toda a liberdade para
se divertir até dezoito anos com a condição de casarse
logo depois. Chegado o dia, Guida sofismou a promessa, declarando que se deviam
entender os anos completos: pois até a véspera de fazer dezenove,
ela se considerava na casa dos dezoito.

– É assim que nós as moças contamos os anos, disse
ela para o pai.

O pai condescendera, e a época do grande acontecimento foi prorrogada
até o dia em que fizesse os dezenove anos. Esta circunstância
produzia nos convidados certa emoção se a moça tivesse
de fixar naquele dia a sua escolha.
Quando a curiosidade excitava tais abalos, imagine-se do que não sentiriam
os pretendentes, receando ver de repente se desmoronar o edifício de
suas fagueiras esperanças.

Corria o mês de abril.

Uma semana antes deixara a família do Soares a Tijuca, e voltara
à sua residência habitual de Botafogo, onde com a passagem para
o inverno já não havia a temer os grandes calores. Não
se esquecera Guida de convidar Fábio, que tinha continuado a freqüentar
a casa; e nessa ocasião pediu-lhe transmitisse o convite a Ricardo,
porque este não voltara à Tijuca desde o passeio à “Vista
chinesa”.

– Ele está mal conosco? disse a moça a rir.

– Era preciso que fosse um herege, D. Guidinha.

– Pois então peça-lhe que não falte.

– Prometo trazê-lo.

Os salões enchiam-se de convidados; mas eram em geral parentes, íntimos
e pessoas de pouca cerimônia, com quem o Soares não se constrangia.
A festa aristocrática, à qual concorria todo o alto coturno
fluminense, era o baile à noite. Fábio acabava de entrar e aproximou-se
para cumprimentar Guida.

– Seu amigo? perguntou-lhe a menina.

– Não veio, murmurou o mancebo.

No rosto gentil da filha do banqueiro pintou-se uma faceira expressão
de desdém e enfado.

– Eu não devia apresentar-me aqui sem uma certidão de óbito
em devida forma, acudiu Fábio em tom galhofeiro; mas ainda creio que
me seria mais fácil trazer o sujeito a modo de convidado de pedra do
que em carne e osso.
– Ele terá suas razões, disse a moça com indiferença.

– O que ele tem é uma sem-razão, tornou Fábio no mesmo
tom.

No jantar achou-se Fábio colocado à esquerda de D. Guilhermina,
como de costume. Havia entre os dois um arruo, que já durava alguns
dias.

– Sinto me tivessem reservado este lugar, que outrora era minha ambição,
disse o mancebo com sentimento.

– E que hoje lhe aborrece! tornou D. Guilhermina.

– É verdade; pela certeza que tenho de a estar incomodando.

– Engana-se!

– Tem razão; uma criatura de todo indiferente não pode incomodar
aqueles que nem se apercebem de sua presença.

– O senhor é muito injusto! murmurou a moça com inflexão
queixosa.

– Que direi eu? será justo roubar a alma e a vida de um homem, e
não conceder-lhe sequer a mínima consolação?

– Uma entrevista só, à noite, no jardim… Se eu me prestasse
a esse capricho, o senhor havia de ser o primeiro a reprovar consigo mesmo
essa imprudência e a condenar-me.

– Para que fingir, D. Guilhermina? A causa, eu a conheço! Está
defronte de nós! E o olhar do moço fitou-se no Lima, sócio
do conselheiro.

– Então o senhor pensa?…

– Eu não penso. É o que se ouve por toda a parte; é
o que diz todo o mundo, tornou Fábio.

– Assim, o senhor também acredita?… balbuciou D. Guilhermina com
lágrimas na voz. O mancebo, comovido, receou que o soluço rompesse
do seio opresso da moça.

– D. Guilhermina! exclamou com voz submissa e suplicante. Podem reparar!

– Que mal faz!… Para eles, como para o senhor, não sou uma… desgraçada.

– Para mim!

– Não confessou que também crê no que se diz por toda
a parte?

– É diferente!… Pode-se ter uma afeição…

– Mas é falso!

– Assegura-me?

– Juro!

– Em vez do juramento, dê uma prova.

– Qual deseja?

– A que eu lhe pedi.

D. Guilhermina hesitou.

– Quer me perder em vez de salvar-me? disse a senhora com a voz repassada
de tristeza.

– Não quero prova alguma; acredito, atalhou Fábio.

Acabado o jantar, quando os convidados derramaram-se pela sala de bilhar
e jardim, Fábio encontrou-se com Guida:

– O senhor há de me dizer uma coisa.

– Muitas e com o maior prazer.

– Que razão é essa pela qual o Dr. Nunes deixou de freqüentar
a nossa casa?

– Pois há uma razão?

– O senhor disse-me quando chegou.

– Perdão, D. Guidinha; se bem me lembro, eu disse que havia uma “sem-razão”.

– Ou isso! tornou Guida a rir.

– É muito diferente.

– E essa sem-razão não se pode saber?

– Guarda segredo?

– Inviolável.

– Eu desconfio que é o visconde da Aljuba.

– Como? exclamou Guida na maior surpresa.

Ela não compreendia de que modo pudesse o usurário arredar
a Ricardo de sua casa.

– Aí está o enigma!

– Brigou com o visconde?

– Não; briga não houve. Apenas Ricardo enxotou-o do escritório.

Guida aplaudiu com riso franco.

– Mas por quê?

– Decifre. Não lhe disse que é um enigma?

– Vamos a ver.

– O tal visconde é um especulador terrível. De tudo faz negócio.
Nascimentos e óbitos, casamentos e divórcios, heranças
e dotes, nada lhe escapa. Não foi debalde que ele começou por
belchior! Pois o homem parece que lembrouse de propor um dos seus “negocinhos”
a Ricardo.

– Ah!…

– Paulistas, a senhora sabe como são desconfiados. Ricardo não
quis ouvi-lo; mas como o homem valeu-se de seu nome… disse Fábio
hesitando.

– Acabe! Instou Guida com autoridade.

– Está acabado. Ricardo apanhou-o pela gola e sacudiu-o na rua, como
se faz com uma barata, para não sujar as mãos.

– Creio que já decifrei. Mas vou pensar ainda, respondeu Guida com
um sorriso, onde borbulhava o desprezo pela infâmia do usurário.

– Não me comprometa!

– Esteja descansado.

O Soares conversava no terraço com o conselheiro Bastos, o barão
do Saí, o visconde da Aljuba, Nogueira e outros.

– Papai, escute!

Soares afastou-se com a filha.

– Hoje é dia de meus anos, creio que não se esqueceu?

– Tu terias o cuidado de lembrar-me?

– Entretanto ainda não me deu o presente de anos!

– Ah! E esta pulseira de esmeraldas que aí tens no braço?
Aposto que nem imaginas quanto custou no Farani? Eu tenho vergonha de confessar!
Cinco… Não digas que foram contos… Cinco histórias…

– Isto foi presente do banqueiro; e o pai?

– Nada de espertezas!… Eu cá sou um só; a obra não
tem dois volumes. Por conseguinte deixa essa rabulice para o fisco, que reparte
um homem em vários inquilinos para cobrar-lhes diversos impostos pessoais.

– Neste caso, aqui tem sua pulseira, disse Guida calcando a mola do bracelete
para tirá-lo. De meu papai eu quero amor e não dinheiro.

– Bem! O que tu queres é pedir-me alguma coisa, e estás com
estes rodeios. O que é?

– Faz?

– Se não for um impossível.

– Não deixe que o visconde venha à nossa casa.

– Por quê?

– Insultou-me!

– Que fez ele, Guida?

– Especulou com meu nome.

– Como sabes?

– É meu segredo.

– Tens certeza?

– Toda.

Um instante depois o Soares trançando o braço ao visconde
levou-o até o quarto dos chapéus, e disse-lhe:

– Visconde, você sabe o provérbio: “Duro com duro não
faz bom muro”. Nós somos dois espertalhões; não
podemos embaçar-nos um ao outro; portanto cada um seu rumo. Aqui está
seu chapéu.

– Isto quer dizer que me despede?

– É conforme a maneira de entender. Sou em quem se despede de suas
relações. Boa noite.

Meia hora depois Fábio tornava à casa onde ia preparar-se
para o baile. Ao passar pela rua da Ajuda, lembrou-se o moço de alguma
coisa, que o fez retroceder o espaço de dois ou três edifícios,
e penetrar em um corredor escuro. No fim havia uma escada, que chegada ao
tope no primeiro andar, voltava para cima. Subindo a correr os dois lanços,
achou-se em um sótão baixo e pequeno, composto de duas peças,
uma das quais abria
para a escada. Estava apenas cerrada a porta; não foi preciso bater.

Ricardo escrevia à luz de uma lamparina de querosene.

Uma semana havia que Ricardo se instalara em sua nova habitação.
A fortuna lhe enviara um sorriso, bem escasso ainda, que não obstante
luziu como aurora na sombria perspectiva de sua existência.

Conseguira ao cabo de muita paciência a tradução de um
folhetim, que lhe deixava uns setenta mil-réis por mês; e tivera
uns dois processos policiais que, pagos mesquinhamente, lhe tinham metido
no bolso uma nota de duzentos.
Finalmente, procurando um cômodo, achara na Rua da Ajuda aquela metade
de sótão mobiliado, a trinta mil-réis por mês incluída
a comida; mas a dona da casa, uma senhora viúva, vendo que tratava
com pessoa instruída, propôs-lhe como pagamento ensinar suas
três meninas e dois rapazes; o que Ricardo prontamente aceitou.

Fábio opôs-se à mudança, na idéia de que
o amigo fosse levado pelo receio de ser pesado; mas Ricardo demonstroulhe
que daquele modo promovia seus interesses. Além de não custar-he
o cômodo nada, senão trabalho, gênero de que tinha boa
provisão, podia entre os conhecidos da viúva obter novos discípulos.

– E te sujeitas a isso? perguntara-lhe Fábio admirado.

– O trabalho honesto honra; e este de ensinar é dos mais nobres,
respondera simplesmente o paulista.

No momento em que entrava o amigo, Ricardo escrevia à sua mãe,
e confirmava-lhe as boas notícias que até então apenas
lhe deixara entrever, receoso de afagá-la com falaz esperança.

– Trabalhando sempre! disse o trêfego fluminense recostando-se na
marquesa de vinhático.

– Estou escrevendo para São Paulo, respondeu Ricardo com uma inflexão
triste na voz.

– Oh! diabo!… É verdade, amanhã sai o vapor. Espera!

De um salto chegou-se à mesa, tomou uma pena, e escreveu no primeiro
bocado de papel que achou, estas palavras: La vita uniti

Transcorreremo.

– Toma; mete isso em tua carta!

E acendendo o charuto, voltou à marquesa, onde espichou-se cantarolando
o dueto da Traviata. Passado um instante ergueu-se; olhou indeciso para Ricardo
que lhe dava as costas escrevendo; passeou a esmo pelo estreito aposento,
e aproximou-se da mesa:

– Queres um charuto?… É fazenda superfina!… Duque!… Já
vês que para fumá-los é preciso ser príncipe pelo
menos. Mas o Soares, que trata este mundo de resto, abarrota com eles aquela
súcia acostumada ao trabuco de vintém! Fazia dó ver como
atolavam as mãos nas bandejas de prata dourada!… Toma, não
queres provar?

– Deita-o aí, respondeu Ricardo metendo a cara na capa, e pondo-lhe
o sobrescrito.

Secou-se a musa ao Fábio com aquela indiferença do amigo;
deu outra vez algumas voltas pela casa, e afinal decidiuse:

– Podes ouvir-me um instante?

– Acabada esta carta; é a de Luísa e Bela.

Fábio fez um trejeito de homem pilhado na esparrela.

– Podes falar.

– Sem preâmbulos. Queres fazer tua felicidade?

– Para isso trabalho eu há dez anos.

– Pois não é preciso mais trabalhar: basta que estendas a
mão.

– Achaste a lâmpada de Aladino, e me queres fazer presente dela?

– Não; mas descobri que o anel da Guida que é mais precioso
do que o de Giges, foi feito para teu dedo. Ah! Assim me servisse ele!

– Já te pedi que não repitas esse gracejo.

– Não estou gracejando; falo sério, mais sério que
a burra de bronze de teu futuro escritório. A Guida gosta de ti, acabei
de convencer-me hoje.

– Não suspeites da pureza de uma menina sisuda, e com má intenção,
disse Ricardo abrindo um livro para cortar a conversa.

– Assim recusas! Quando a riqueza e a felicidade te procuram e vêm
tirar-te desta boceta que por uma metáfora atrevida e arriscada, como
dizia o Padre Fidélis, chamam sótão, e onde vives empalado,
tu a enxotas como uma
importuna? E não te lembras de tua mãe, de tua irmã,
dos teus, sobre quem se derramaria a tua felicidade como um benefício
do céu?… És um egoísta, Ricardo!

Ricardo ergueu-se.

– É pena realmente que o anel não sirva em teu dedo, Fábio!
Pois tu não hesitarias em sacrificar-te para a felicidade de todos
nós, inclusive a de Luísa!

– Sem dúvida!

– Ao menos tens o mérito da franqueza, tornou Ricardo com ironia
repassada de desgosto.

– Ora! tu não me pareces um advogado da corte! Não há
estudante de São Paulo que não saiba ao terceiro ano o que é
um caso de força maior, e quais são os seus efeitos jurídicos.
Pois, meu caro Ricardo, um dote de um milhão com a perspectiva de outro
por herança, em matéria de amor não é só
força maior, é uma fatalidade.

– Vejo que aproveitaste bem o teu curso!

– Se que que amo Luísa, e estou na obrigação de amá-la
toda a vida, salvo o caso de força maior, a esquecesse para casar-me
aí com qualquer outra moça, seria decerto um ingrato, um monstro
de perfídia. Mas sendo para casar sem amor, por cálculo, com
uma boneca do valor de um milhão, daria um exemplo sublime sacrificando
a paixão aos ditames da razão. Os heróis da história
e da fábula são todos feitos por esse modo. O coração
fica intacto; e dentro dele, como a lâmpada do santuário, arde
sempre o primeiro e eterno amor. Eis como eu penso.

– E Luisinha pensará do mesmo modo?

– Deve, porque me ama.

– A razão é original!

– Julgo-a por mim. Sabes que amo tua irmã. Pois bem; aparecesse um
casamento milionário para ela, e eu seria o primeiro a dizer-lhe: “Luísa,
eu não sou o nec plus ultra dos homens; mas um pobre mortal com algumas
qualidades e
muitos defeitos. Como eu, se encontram aí pelas ruas às dúzias.
Um milionário porém, meu anjo, é uma espécie rara,
um animal exótico, um fenômeno social; vale a pena dar a gente
um molho de esperanças que afinal murcham como o alecrim, para ter
o prazer de possuí-lo”.

– Não me admira essa linguagem da parte de um homem que ama à
tua maneira.

– É outro ponto em que discordamos. Tu tens a fidelidade do frade,
eu a do soldado; tu foges, eu combato. Quando um homem conta à mulher
amada suas conquistas e as seduções que sacrificou à
sua beleza, ela deve ter legítimo orgulho.

– Guarda o teu espírito para o baile, Fábio; não o estejas
esperdiçando nesta cela, onde só cabem as tristezas e preocupações
da vida. Melhor farias se me respondesses seriamente a uma pergunta. Fábio
calou-se surpreso da severidade do olhar de Ricardo.

– Donde te vem o dinheiro que despendes nesta vida de luxo?

– Ora! Uma ninharia!

– Vês; tu coras e evitas responder-me.

– Emprestaram-me.

– Quem?… Ela?…

– Ricardo!… Que idéia fazes de mim?

– Desculpa-me!… Conheço teu caráter; mas no mundo em que
andas agora, é tão fácil um deslumbramento, um eclipse!…

– Tens razão! Prometo abandonar semelhante vida… Irei ao baile
desta noite porque estou obrigado.

– Vai e diverte-te, disse Ricardo, que desejava apagar no espírito
do amigo o travo de sua injusta suspeita.

– Não queres vir também?

– Tenho muito o que fazer.

E despediram-se

XXIV

Estamos em junho.

Às onze horas saía Ricardo de seu escritório, já
melhor situado, na Rua do Rosário, e dirigia-se à casa da Relação,
onde dava audiência a 3ª vara municipal.

Tratava-se de um processo-crime importante; uma falsificação
de firma. O negociante, vítima da fraude, tinha procurado Ricardo para
incumbi-lo de promover a acusação com energia, pois era mister
um exemplo.
Por avanço dos honorários deixara-lhe sobre a mesa naquela manhã
um conto de réis.

Não era este o primeiro cliente importante que o jovem paulista vira
aparecer-lhe de repente. De um lado chegavam as propostas, que exigiam para
resolvê-las um jurisconsulto, ou pelo menos um provecto advogado. Do
outro, minutas de contratos e escrituras. Sentia Ricardo, que seu nome granjeava
entre os comerciantes um favor, que não sabia explicar.

Agora mesmo, descendo a Rua do Ouvidor, perscrutava ele debalde a causa do
conceito que subitamente adquirira como advogado na corte, onde tantos existem
e tão ilustres.

Não podia atribuir o fato ao seu mérito, ou à voga
artificial que se arranja por meio de anúncios, e até de escândalos.

Também não se oferecera para advogado de alguma beneficência
estrangeira, com o fim de captar a clientela dos sócios.

Lembrava-se de ter visto muitos desses novos clientes em casa do Soares;
e quis supor um instante fosse tudo efeito da amizade de Fábio, que
naturalmente falava naquela roda a seu respeito com o entusiasmo do costume.
Mas não tardava em repelir essa suposição. Ricardo tinha
experiência e sabia que a palavra sincera e convencida é pedra
solta e não edifica neste país; é preciso pôr-lhe
um comento: o medo, a comodidade, o lucro, a paixão, etc.

Quando, fatigado de excogitar em vão, punha o ânimo à
larga, espraiando a vista pela Praça de São Francisco de Paula,
aonde saía naquele instante, deu com os olhos em Guida. Diante dele
acabava de parar uma meia vitória, tirada por duas mulas possantes.

O lacaio, saltando da almofada, em vez de correr a abrir a portinhola, foi
tirar questão com o cocheiro de uma diligência, que impedia a
vitória de chegar à boca da Rua do Ouvidor.

– Psiu, olá, patrão, deu fundo aí?

– O largo é bem grande, respondeu o outro empoleirado.

– Não vê que é o carro do Sr. comendador Soares? Retorquiu
o moleque com a insolência do lacaio de um milionário.

– É melhor que os outros?… Se tem muito dinheiro, guarde-o, que
passa-se muito bem sem ele.

– Dobre a língua, sô atrevido, gritou o moleque pronto a saltar-lhe
às bochechas.

D. Paulina e a filha debalde chamavam o pajem, receando que a rezinga desse
em briga; Guida porém julgou que o mais expedito era descerem ali mesmo,
fazendo cessar a causa da altercação e obrigando o lacaio a
acompanhá-las.

Reclinou para abrir a portinhola, mas Ricardo antecipara-se:

– É o Dr. Nunes, mamãe!

Apearam-se as duas senhoras e receberam os cumprimentos do moço.

– Ora estimei muito encontrá-lo, disse D. Paulina com sua habitual
singeleza. Quero fazer um presente ao Soares; mas ele não gosta que
lhe dêem coisas de luxo, que não tenham utilidade. Incomoda-se!

– Acho-lhe razão! disse Ricardo por delicadeza e para mostrar interesse
na conversa.

– E eu não lhe acho nenhuma, acudiu Guida voltando-se: um presente
é uma lembrança, e não um fornecimento de víveres,
roupa ou qualquer outro necessário.

Ricardo fitou a moça para conhecer-lhe pelo rosto se fora sua intenção
dar-lhe uma lição de urbanidade; mas ela dobrava distraída
o canto da Rua do Ouvidor, deixando sozinha a mãe.

– Disse-me o Bastos que a “Notre Dame” tem camisas de homem
muito bonitas. Quero ver o seu gosto. Vamos, é perto.

Lembrou-se o advogado da inquirição; mas tinha meia hora e
o recurso do tílburi. Condescendeu, pois, tanto mais que seria pouco
delicado deixar ali só no meio da rua a mulher do banqueiro, sem a
filha que desaparecera, e o pajem que ainda grazinava com o conheiro.

– Com muito prazer, minha senhora, ainda que não me posso demorar
muito.

– É um instante!

Entraram na Rua do Ouvidor, onde Guida os esperava.

– Há tanto tempo que o senhor não aparece, Sr. doutor; está
mal conosco?

– As minhas ocupações, D. Paulina, não me permitem.

– O Sr. Dr. Nunes trabalha muito, mamãe! observou Guida voltando-se.

– Seu amigo gosta mais de se divertir. Como vai ele?… Ah! aqui estão
as camisas.

E D. Paulina mostrou a Ricardo a vidraça do “Notre Dame”,
onde se viam as caixas de camisas francesas com toda a sorte de punhos e colarinhos.

A casa da “Notre Dame” é uma espécie de secretaria
da moda fluminense; há naquele ministério do luxo diversas seções,
e diretorias, melhor regidas talvez do que a dos correios, dos telégrafos,
e outras.

D. Paulina e Ricardo entraram na sala da roupa branca, lingerie; e apesar
da condescendência do advogado, disposto a conformar-se plenamente com
a escolha de D. Paulina, para mais depressa libertar-se, um quarto de hora
foi
consumido no cotejo, nas indecisões, e mil rodeios, com que as senhoras
costumam deliberar em conselho de estado pleno sobre a magna questão
da compra de uma fita, por exemplo.

Durante esse tempo, Guida na próxima repartição, a
das sedas, soierie, fazia desmoronar-se, a um aceno da ponteira de seu chapelinho
de sol, as rimas de caixas e pacotes, que atopetavam os armários.

Tinha prazer em ver se desdobrarem assim aquelas ondas de seda e veludo;
em contemplar as galas da moda, examinar as mais esplêndidas seduções
do luxo, e sentir-se calma e indiferente.

– Não me agrada!

Esse dito desdenhoso, o repetia ela de cada vez que afeitavam-lhe diante
dos olhos um corte de nobreza rutilando aos toques da luz, os nimbos da tarlatana
orvalhados de pingos de cristal, ou os flocos da gaze de Chambery flutuando
como nuvens d’ouro.

Debalde os caixeiros excediam-se na lábia francesa, com a qual não
compete nem o puff inglês, nem o humbug americano.

Foi impossível excitar na moça a cobiça por qualquer
das últimas novidades e fantasias da moda.

– Quero comprar alguma coisa, para não dar-lhes trabalho à-toa.

Nesse momento aproximaram-se D. Paulina, e Ricardo que vinha despedir-se.

– Já vai? perguntou a moça com indiferença.

– Se me permite!… Devo achar-me às onze horas na Relação.

– Ah! O senhor já sabe? acudiu a moça pondo-se a contraluz
de um rico vestido de gorgorão para ver-lhe o efeito: o visconde da
Aljuba não freqüenta mais a nossa casa. Qual acha mais bonito,
o azul ou o verde?… Este?… É também o meu gosto.

Voltou-se para o caixeiro:

– Mande-me este a Comaitá.

Depois tornou a Ricardo:

– Como algumas pessoas não gostavam de encontrar-se com ele… por
isso lhe previno.

– Eu nunca lhe dei atenção.

– Ah! pensei.

– É verdade, acudiu D. Paulina. O senhor há de jantar conosco
Sábado. Não falte; promete?

– Terei esse prazer, disse Ricardo.

– Mas olhe que é segredo.

– Ah! é um banquete político?

– É uma conspiração, observou Guida.

Saindo de “Notre Dame”, não viu Ricardo duas pessoas
recostadas no guarda-vidraças de metal dourado.

Eram o visconde da Aljuba e o Dr. Nogueira, que enfiando os olhos pela vidraça,
acompanhavam os movimentos da Guida, fazendo a propósito algumas observações.

– O farsola é capaz de lograr-nos! dizia o visconde designando Ricardo.

– Já lhe tomei o pulso, respondeu o Nogueira com a peculiar jactância:
está muito calouro ainda!

– E a sua candidatura, como vai? É uma coisa que havia de ajudá-lo
muito.

– As coisas estão bem dispostas, mas sem algum dinheiro…

O visconde pulou à semelhança dum martelinho de piano, quando
lhe tocam na tecla:

– Não creia nisso. Eleição, meu doutor, é o
governo que a faz; o mais são petas. Quando ele perde, é de
propósito para pregar o mono a certos sujeitos. Se o senhor tem o governo
por si, deite-se a dormir, não precisa de mais nada; se não
o tem perde seu tempo e seu cobre. É cuidar noutra coisa.

– Não é tanto assim…

Nesse momento saíra Ricardo da loja.

– Chegou a sua vez, disse o visconde ao Nogueira empurrando-o amigavelmente.
Vá emgambelar a rapariga. Arde, ponha para fora toda a sabença
e desbanque-me o tal bonifrate! Eh!eh!…
E trinando o seu riso em falsete, o Aljuba lá se foi a trote miudinho,
rua acima, para o escritório.

Entretanto cismava Ricardo no segredo do jantar para que fora convidado;
e dois dias depois, na manhã de sábado, ainda ocupava-se com
esse capricho de senhoras, muito inclinado a abster-se do convite, apesar
de o haver aceitado por delicadeza.

Achou porém em seu espírito boas razões, que o dispuseram;
e às quatro horas da tarde apeava-se do tílburi no palacete
de Botafogo. A reunião era mais numerosa que de costume. Além
dos infalíveis, notava-se grande número de capitalistas e negociantes,
a creme da praça. Aí estavam todos os nossos conhecidos, menos
o visconde da Aljuba.

Havia na sala a atmosfera moral que se forma pela expectativa e curiosidade
do desconhecido. Os amigos encontrando-se inquiriam da novidade e perdiam-se
em conjeturas acerca da reserva com que se tinham feito os
convites, do segredo recomendado, e da surpresa que sem dúvida estava
preparada para o banquete. Sintoma bem significativo da importância
dessa reunião, que sob a aparência de festa ocultava talvez um
acontecimento, era a presença de D. Leonarda Torres, a avó materna
de Guida, ou a “avozinha” como a chamava a menina.

A mãe de D. Paulina, velha de sessenta anos, nunca aparecia na sociedade;
o defeito de uma perna proveniente de reumatismo gotoso, e o gênio a
retinham constantemente em casa.

Nesse dia, Guida conseguira arrancá-la de seu retiro para fazê-la
assistir à festa. E o que não obteria a gentil menina da velha,
que morria-se de amores por ela?

À chegada de Ricardo, Guida o levou para junto da velha, sentada
à parte em uma cadeira de roldanas:

– Avozinha, aqui lhe trago uma pessoa para conversar. É o Dr. Nunes.

– É médico? perguntou a velha.

– Não, respondeu Guida sorrindo-se por adivinhar o pensamento da
avó, que era falar de seus achaques. Mas é filho de São
Paulo.

– Está bom!

– Fale-lhe de sua terra! disse Guida voltando-se para Ricardo. Ela passou
lá muitos anos, quando menina; e ainda tem saudades.

– Ah! morou em São Paulo algum tempo? disse Ricardo. Na capital mesmo?

– No Brás. Não conheces a casa de D. Belmira de Leme Torres?

– Muito; minha família e a sua visitam-se.

– Pois estimo bem. É minha prima.

– Agora, disse Guida alisando os cabelos brancos da velha, não se
há de aborrecer mais. Tem quem a distraia; não é assim?
E deixou os dois em conversa.

De todas as pessoas na sala nenhuma estava tão desnorteada, como
ficou o Soares que ao voltar do escritório para o jantar caseiro e
o repouso da sesta, encontrou o palacete em festa, cheio de amigos com que
decerto não contava achar-se naquele dia.

– Que história é esta? perguntou o banqueiro que tudo levava
em ar de brincadeira. Querem ver que o Aljuba espalhou que eu ia pôr-me
ao fresco, e vocês pelo seguro vieram cercar-me a casa? Finórios!…
Também tu, conselheiro! Vieste agarrar o teu velho camarada!

– Que dizes?… Não vão bem os teus negócios? acudiu
o Barros amornando a sua fria e pachorrenta gravidade. Bem sabes que até
onde eu puder!…

Soares abraçou-o com efusão, mas logo afogou esse impulso
na perene galhofa:

– Estás sonhando, meu velho! Nunca me correram tanto à feição
os negócios, como depois que o farsola do visconde me anda a agourar.
Tu sabes, praga de urubu… Mas deveras que vieram vocês a fazer? Quem
os chamou cá?

– É boa! Pois não nos convidaste para jantar!

– Eu! Vocês querem divertir-se.

– Foi o recado que recebemos.

– Hum!… Não passa de invenções da senhora minha filha!
Não resta dúvida!

O banqueiro levou o dedo à boca:

– Esperem que vou tenteá-la.

Nisto apareceu Guida:

– Sim senhor, papai, muito bonito! convida a cidade do Rio de Janeiro em
peso para jantar, sem prevenir a mamãe, nem dizer a pessoa alguma!
Pois isto se faz?

– Henh! estão vendo, vocês! disse o Soares disparando a rir.

– Ora não disfarce, papai. Todos estes senhores receberam seu convite,
e com a recomendação de guardar segredo!

– É verdade?

– Então!… Mamãe e eu íamos sair, quando começam
a chegar convidados. Os senhores hão de ter paciência e desculpar.
Um banquete não é um discurso, que se improvisa.

– É pena que não se possa mudar de sexo, Guida. Tu serias
o primeiro banqueiro do Rio de Janeiro.

– Esse lugar já está tomado, papai.

– O jantar!… gritou o Daniel na porta.

– Brejeira! murmurou Soares fazendo cócegas nas faces de Guida.

Sentaram-se os convidados à mesa, onde o cozinheiro teve o talento
de concentrar os espíritos na mais séria das preocupações
da vida àquela hora crítica do jantar. Assim já poucos
se lembravam que ali tinham ido para outra coisa
que não fosse apreciar a boa mesa do Soares.

– Aposto que está muito curioso de saber o segredo? disse Guida a
Ricardo que lhe ficava ao lado.

– Confesso que tenho alguma curiosidade; mas por um motivo que não
supõe.

– E se eu adivinhar?

– Tem muitas prendas para que lhe desse mais essa a natureza.

– O senhor suspeita que o segredo é uma brincadeira, um logro.

– Pior do que isso. Antes de ter o prazer de conhecê-la, ouvi falar
da anedota de um médico, que se mandou chamar de madrugada a toda a
pressa para ver uma cachorrinha.

– Ah! contaram-lhe isso? tornou Guida a rir; mas sem dúvida não
disseram que foi uma aposta!

– Em todo o caso…

– Papai duvidou que eu fosse capaz de fazer o doutor ir a um baile ou coisa
que se lhe parecesse; eu apostei. Arranjei uma partida em nossa casa, mas
com o maior segredo.

– Como o jantar de hoje.

– Tal e qual; às onze horas, quando as salas estavam cheias escrevi
ao doutor, em nome de meu pai, a carta chamandoo para ver minha querida “Sofia”,
que estava gravemente enferma. Ele veio; levou a coisa de brincadeira; e ao
retirarse teve de sair pelas salas, pois não havia outro caminho. Aí
as minhas amigas, que já estavam prevenidas, rodearamno com muitas
festas, e tanto fizeram que o velho dançou uma quadrilha para recobrar
a liberdade. Eu ganhei a minha aposta e meu pai deu-me “Edgard”.
Bem vê que lucrei com a travessura.

– Já não me admira que faça tantas.

– Fiz; tinha dezesseis anos apenas; é verdade que, se não
as faço ainda hoje, não é por falta de vontade, mas por
acanhamento. Já tenho dezenove e contudo ainda me sinto menina. Nesse
momento ergueu-se comovido o barão de Saí.

– Meus senhores, vou fazer um brinde.

Compreenderam todos como por uma repercussão moral que era chegado
o momento da explicação; e abriu-se profundo silêncio.

Guida e Clarinha, a filha do barão, trocaram um olhar de inteligência
que não passou desapercebido a Ricardo. O barão propôs
a saúde nestes termos:

– Ao meu velho amigo Soares, ao homem honrado que se fez por seu trabalho,
e a quem o povo despachou comendador por aclamação, antes que
sua Majestade houvesse por bem nomeá-lo. Aqui está o decreto.

O velo com gesto solene abriu o pergaminho, onde se via uma assinatura de
quatro contos de réis; as outras eram bagatela.

Ao mesmo tempo D. Clarinha, a filha do barão, prendia ao peito do
Soares a venera da Rosa cravejada de brilhantes. Patenteou-se o segredo; e
as explicações correram ao redor da mesa.

Uma semana havia que no Jornal do Comércio começara a aparecer
uma mofina concebida nestes termos:

“COMENDADOR CHENCHÉM”

“Um marreco bem conhecido na praça, por suas especulações
e trapaças, assentou de fazer-se comendador de meiacara. O título
‘soa’ e não custa cinco ‘rés’ ou ‘réis’.

O banqueiro, quando lhe mostraram o jornal, riu-se:

– São as unhas do tratante do Aljuba… Não resta dúvida.

– É um desaforo! diziam-lhe os amigos.

– Pois eu tomo a coisa às avessas. É uma fineza, que ele me
faz diferençando-nos.

Quem mais se incomodou com o caso foi o barão de Saí, que
no maior segredo tratou de comprar a comenda para seu velho amigo, a fim de
malograr a vil mofina. D. Paulina e Guida, de combinação com
ele, prepararam a surpresa, a cujo desfecho acabamos de assistir.

Muitos dos convivas não se tinham apercebido da mofina, pela indiferença
com que passam os olhos por essa arena da imprensa, onde se esgrime, de envolta
com idéias e sentimentos nobres, toda a casta de paixão.

Valeu-lhes o Benício, que ninguém jamais apanhou desprevenido.
Submergindo a mão pelas profundezas do bolso, tirou dois ou três
retalhinhos de jornal; eram exemplares da mofina que tinha o cuidado de cortar
cada dia para apresentá-la cheio de pesar e indignação
a quantos encontrava, aproveitando a ocasião para fazer o pomposo elogio
de seu íntimo amigo, o Soares, que, isto é dele, “metia
no chinelo todos os comendadores havidos e por haver”.

– A mofina?… Querem ver o desaforo?… Aqui está, essa pouca-vergonha!
dizia o homem serviçal obsequiando aos vizinhos.

Erguera-se o Soares:

– Meus amigos. Isto nada vale por si, disse com o chasco habitual, pondo
o dedo na venera; nada, nem como comenda, nem como jóia. Como “comenda”,
é uma “encomenda”, que já não “recomenda”
ninguém. Como jóia, eu tenho no coração do meu
velho João, e dos amigos aqui presentes, um diamante de melhor água
e quilate do que qualquer destes. Mas a intenção, essa é
um tesouro; é a alma de um homem honrado e amigo dedicado.
Sentiu-se que o Soares estava comovido.

– Guida, minha filha, vem cá. Toma esta jóia; ela te há
de servir de broche. Em teu colo todos hão de admirá-la; e tu
podes ter orgulho, minha filha, de adornar-te com a probidade de teu pai!
Guida lançou os braços ao pescoço do Soares.

Romperam os aplausos. A comoção era geral. Havia na reunião
a eletricidade moral dos espíritos em ebulição, que só
esperam uma centelha, para se inflamarem. A cena aí estava aberta;
desenhada a situação; faltava só a palavra
eloqüente, que a exprimisse.

Algumas vozes proferiram o nome do Dr. Nogueira, como o homem do momento.
Ele hesitou: não tinha previsto o lance; podia arriscar a sua reputação;
era mais prudente deixar-se ficar na penumbra desdenhosa de seu incontestável
talento. Foi então que Ricardo exaltando-se com aquela cena onde vibravam
as cordas mais nobres e generosas do coração, ergueu-se num
assomo de entusiasmo, e sua voz sonora, palpitando aos impulsos do sentimento,
arrebatou a atenção geral.

XXV

Trila o piano. As notas frescas, brilhantes e vivazes de um romance de Schubert
se escapam em enxames pelas janelas, voluteando, como os coleiros que esvoaçam
pelo jardim, entre os ramos floridos dos resedás.

Eram onze horas.

Mrs. Trowshy, sentada junto à mesa carregada de livros, mapas e outros
objetos, espera gravemente que Guida se resolva a começar a lição;
mas a menina inteiramente embebida na execução da música,
nem se lembra da mestra.

– Alons, Guida.

Afinal conhecendo, depois de três advertências inúteis,
que perdia seu tempo, aproximou-se do piano e abriu o livro da música
sobre a estante, para evitar que a discípula tocasse de cor.

Guida levantou-se logo do tamborete; e a mestra pensando que ela cedia-lhe
o lugar para vê-la tocar a peça e corrigir algum engano, sentou-se
ao piano e executou, com o maior escrúpulo, a linda composição
de Schubert.

Mas Guida que ela supunha à sua beira, acompanhando atenta a sua
lição, estava bem sentada à mesa, onde abrira a sua caixa
de tintas e coloria uma aquarela, mas a seu moo, pintando a folhagem de encarnado,
os bois e os carneiros de verde, e a água de amarelo.

Dando a mestra por falta da discípula a seu lado, tornou à
mesa para observar a pintura da moça:
– What horror!… exclamou ela espantada com o disparate das cores.

– A senhora não tem bom gosto, Mrs. Trowshy, disse Guida. Não
sabe apreciar a originalidade!
A inglesa disparou a rir, passando com extrema volubilidade do horror à
gargalhada:
– How funny!… How funny!…

– Não se ria, Mrs. Trowshy! Isto que a senhora está vendo
é uma obra-prima! Que vigor de colorido! Que tons brilhantes!… Os
versos de certos poetas, se fosse possível pintá-los, saíam
assim.

A mestra divertida com a travessura da menina, tomou tão vivo interesse,
que segundo o seu costume entrou logo em colaboração. Mas Guida
não estava de veia nesse dia, pois abandonando-lhe o pincel e a cadeira,
esqueceu aquele divertimento e foi à cata de outro.

Deu duas voltas pela saleta, sem lembrar-se de coisa em que esperdiçasse
o tempo, porque de lição, não queria ela saber naquele
dia, e tinha resolvido na sua fantasia um sueto.

No fim de contas foi “Sofia” quem deu o tema para a nova travessura.
Sentou-a Guida em uma cadeira defronte de si, com as patas dianteiras erguidas;
e abrindo seu costureiro de pau-de-cetim embutido de ébano, dispôs-se
a cortar para a felpuda cachorrinha um vestido de cauda à Pompadour,
com dois tremendos pufos.

– Que está fazendo, Guida?
– O enxoval para “Sofia”. É verdade: ainda não lhe
comuniquei o seu próximo casamento com um gentledog que está
apaixonadíssimo do seu dote!
Nesse momento Soares apareceu à porta e chamou:
– Guida!
– Papai ainda não foi para o escritório?…

– Chegaram visitas, quando ia sair, e trouxeram umas novidades que te hão
de interessar!
– Ah! São figurinos? perguntou Guida ocultando sob um remoque a súbita
emoção.

– É outra espécie de novidade.

Travando-lhe da mão, Soares levou-a até o gabinete, e aí
fê-la sentar perto dele na sua secretária.

– Lembras-te da conversa que tivemos aqui neste mesmo lugar há perto
de quatro anos?
– Era tão criança então!… Se ainda hoje sou! atalhou
Guida gentilmente.

– Esperta! acudiu Soares beliscando-lhe o beiço; já estas
preparando a retirada!
– Ah! então é um ataque? Foi bom prevenir-me!
– Pois defende-te! Essa conversa, que tivemos há quatro anos, veio,
recordo-me bem, por causa do susto que te causaram, com a invenção
de que eu ia te casar antes de um mês com o Bastos.

– Susto que ainda me faz estremecer, observou em aparte Guida.

– Então eu te prometi duas coisas: primeira, que antes de completares
dezoito anos, eu não te falaria nem por sombras em casamento; segunda,
que tu mesma, de tua livre vontade e a teu gosto, escolherias um marido.

– Disso me lembro perfeitamente, e o trago bem guardado; pois é a
maior prova do bem que me quer e da confiança que tem em sua filha.

– Ela merece tudo e mais, tornou Soares; mas a essas duas obrigações
contraídas por mim correspondiam duas cláusulas a que de teu
lado te submeteste.

– Vamos a ver.

– De tua parte, me prometeste que em completando os dezoito anos farias
logo tua escolha; e no caso de não concordar eu, por estar um de nós
enganado, te sujeitarias durante um ano às provas a que eu submetesse
o escolhido, para conhecer-lhe o caráter a arrancar a minha ou a tua
ilusão. Foi isto?
– Literalemnte.

– Bem. Os dezoito anos se completaram há perto de três meses:
e a escolha?… Está feita?
– Não, papai.

– E quando se faz?
– Quando aparecer aquele a quem eu devo escolher. Não posso inventar
um noivo, papai! Tenho eu culpa se todos esses que me cercam nos bailes, e
me perseguem com sua corte, me são indiferentes? Se nenhum desperta
em mim a menor emoção, que se pareça com a afeição
terna e pura da mulher por seu marido? Se os acho banais e ridículos,
e me fazem rir, quando não me aborrecem?
– Eis aí, replicou Soares; tu dizes que não podes inventar um
noivo, no que eu plenamente concordo; e entretanto não cuidas de outra
coisa senão desse invento. Fantasiaste como toda a moça um homem
à tua idéia, como não se encontra neste mundo; e cotejando
os outros de carne e osso com o teu exemplar, os achas a todos uns bonecos
sem graça.

– Não é isto, papai; não sou romântica; bem ao
contrário; se há coisa ridícula para mim, é o
ideal desses heróis de romance que sabem tudo, podem tudo, e tudo adivinham.
Para uma pobre moça como eu, seria um traste bem incômodo. O
que desejo é um homem de caráter nobre, que me ame, e por quem
eu sinta verdadeira estima e afeição, para desculpar seus defeitos
e não ver suas fraquezas. Parece que não peço muito!
– Mas, Guida, até agora não pudeste encontrar este homem? Em
nossa casa vem a flor do Rio de Janeiro; e se falta alguém, é
porque assim o queres. Bastava uma palavra tua. Tu freqüentas os melhores
bailes, conheces toda a sociedade escolhida da corte.

– Ainda é cedo! disse Guida.

– Cedo!… Agora vive-se depressa, minha filha; essa palavra quase que está
eliminada do vocabulário da época. Dezoito anos é a mocidade
da mulher, como os cinqüenta e cinco que já estão cá,
são a velhice do homem. Amanhã pode ser tarde para nós
ambos.

– Deixe-se dessas idéias, papai!
– Há quinze dias, me pediste para romper com o visconde por andar ele
especulando com teu nome. Não me quiseste dizer de quem se tratava.
Ontem me avisaram de um infame ajuste feito entre ele e o Nogueira, sob a
garantia de teu dote.

– Eu já sabia, disse Guida.

– Tu sabias, sim; mas pensa qual deve ser a minha tristeza lembrando-me
que te posso deixar só no mundo, à mercê de semelhantes
infâmias. Se fosses pobre, a tua virtude bastava para defender-te; mas
rica!… Serias o prêmio da especulação, a vítima
das trapaças, o alvo de todas as ambições, que te disputariam
como um privilégio de bondes, ou um monopólio d’água.
Não te horroriza esta idéia, e não avalias das inquietações
de teu pai?
Guida reclinou sobre a mão a fronte pensativa e Soares ergueu-se ao
impulso da comoção que o abalava:
– Essa imensa riqueza, que me invejam, de que me serve, pois em vez de garantir,
compromete o futuro de minha filha? Se com um milhão, dois, tudo quanto
possuo, pudesse criar um homem digno de ti…

– Não se aflija! disse Guida meigamente passando-lhe a mão
ao pescoço. Prometo escolher.

– Sério?… E quando?…

– Em um mês.

– Deus te abençoe, como eu, e te inspire.

O pai estreitou a filha ao coração.

– Mas, tornou Soares de súbito, é por tua vontade!
– Inteiramente!
– Sem constrangimento!
– Nenhum.

– Vou descansado.

Guida acompanhou o pai até o portão, onde o esperava o carro
para levá-lo ao escritório. Pelo caminho folgavam os dois como
camaradas de colégio ao sair da aula em véspera de feriado.

Ficando só, a moça foi esconder-se a um recanto do jardim,
em um nicho de trepadeiras; e aí ficou cismando cerca de uma hora.
A mágoa que disfarçara em presença do pai, derramava-lhe
agora no lindo semblante uma doce tinta de melancolia.

À tarde Guida lembrou-se de ir ver a avó no Andaraí.

Aí vivia D. Leonarda retirada na chácara, onde nascera, no
meio de uma récua de crioulas e um bando de moleques de todos os topes
e de todas as cores. Aquela criação pululava e crescia à
manga lassa, como bezerros do sertão sem freio e sem educação.

D. Leonarda, desde que a serviam nos poucos misteres para os quais bastava
uma criada diligente, deixava a troça das mucamas na mais completa
liberdade, até nove horas, em que punha-as todas, mães e avós
de filhos, debaixo de chave, como donzelas recatadas; e nessa conta tinha-as
a todas, crendo realmente enjeitados pelas vizinhanças os moleques
que lhe enchiam a casa.

Além da sua perna e das contas do seu procurador, D. Leonarda não
se ocupava doutra coisa senão dos moleques, de coser para eles, distribuir-lhes
um vintém para cocada, e ensinar-lhes a rezar.

Quando o carro de Guida parou na frente da chácara, correu ao portão
o enxame de moleques e a troça das mucamas, gritando e saltando para
festejar a chegada da menina.

Era sempre assim.

A entrada de Guida na casa da avó produzia o mesmo efeito que um
sol de abril rompendo a bruma depois de uma manhã de chuva, ou para
empregar imagem menos rústica e poética, o de uma música
de batalhão passando em rua escura e retirada.

O rancho das raparigas e moleques corria ao portão. D. Leonarda,
a coxear, arrastava-se com o arrimo de uma bengala até a porta, onde
acabava de aparecer. Não se pinta a expressão de júbilo
que afogava o semblante da velhinha, com as alvíssaras da chegada de
Guida.

Para a velha, aquela criança era todo o amor, como toda a alegria;
ou antes, a criança era ela, que se deixava acalentar pelas carícias
e meiguices da neta; e bebia-lhe nos lábios mimosos o doce riso que
ainda iluminava-lhe as faces pálidas, e o prazer que lhe orvalhava
as tristezas e achaques de velhice.

Subiu Guida ligeiramente os degraus da escada de pedra e apertou nos braços
a avó, beijando-lhe os cabelos brancos e amimando-a com a graça
que espargia-se em seu menor gesto, mas com uma ternura, que mui rara transpirava,
como perfume de flor cerrada, a qual só rescende na soledade.

Entretando Mrs. Trowshy, ao descer do carro, como de costume tapou os ouvidos
com as mãos para tornar-se impenetrável à algazarra da
molecada, e soltando um esplêndido brrrrrr da genuína escola
inglesa, foi acabá-lo numa cadeira de balanço da saleta, onde
arreou-se como uma bala de algodão no bojo dum saveiro.

– Há que tempo, ingrata! disse a velha.

– Oh! avozinha! Não tinha com quem vir! Mrs. Trowshy andava com os
seus faniquitos.

Depois de ter acarinhado a seu gosto a avozinha, Guida levou-a na sua cadeira
de roldanas para o vão de janela que abria sobre o jardim, e aí
de joelhos sobre a ponta do banquinho, o busto reclinado ao braço da
poltrona, começou a falar baixinho ao ouvido da velha com extrema vivacidade.
Dir-se-ia que receava encontrar-se com suas próprias palavras, pois
as despedia mui depressa, e às escondidas.

Algumas vezes parava para observar a fisionomia de D. Leonarda, onde através
do embevecimento que lhe causava a voz querida, espontava uma leve surpresa.

– Como há de ser? perguntou a velha uma vez.

– Escute, respondeu Guida.

E tomando entre as mãos a cabeça da velha com um gesto gracioso,
conchegou-a a seus lábios, no intento de tornar ainda mais íntima
e reservada essa confidência, que se não roseava-lhe a face nívea
imaculada, alvoroçava-lhe os espíritos, a arder nos olhos e
a arfar no seio.

– Pois sim! disse a velha dando-lhe um beijo. Arranja tudo.

Guida chamou um pajem:
– Vá à casa do Sr. Benício, sabe?
– É o procurador de sinhá velha?
– Esse mesmo. Dize-lhe que venha falar com a avozinha amanhã à
noite sem falta.

– Sim, nhanhã Guida.

– Então vens amanhã? Perguntou a velha contente.

– Por força!

XXVI

Meio dia.

Abrasa o sol a rechã onde se desdobra o bairro do Andaraí,
precintado por um cordão de montanhas que lhe interceptam a passagem
das brisas do largo.

É um desses dias de verão, que chofram de repente no meio
de frias temporadas como vedetas ou postos avançados do estio a explorar
as névoas do inverno, e fazer experiências no barômetro
dos calos e reumatismos dos velhos fluminenes.

Um tílburi pára no portão da chácara de D. Leonarda;
e dele apeia-se um mancebo trajado com a severa elegância, que revela
o espírito superior, irisado pelo prisma brilhante da imaginação,
mas contido pelo recato da dignidade.

No fim do curto passeio de murtas apareceu um negrinho que dobrava o outão
de casa; logo após outro pirralho, e outro, até que formou-se
uma pinha dos tais diabretes.

O mancebo caminhou a eles para confiar a um o seu cartão de visita;
mas não tinha dado três passos, que a alcatéia alvoriçou,
dispersando-se pelo terreiro afora e escondendo-se por trás da casa.

Abrira-se porém a porta de entrada, e apareceu no patamar uma mucama:
– O senhor é S. doutor Ricardo?
– Ricardo Nunes, confirmou o advogado.

– Pode entrar.

Acha-se o mancebo na sala de visitas, extensa peça, embora um tanto
estreita, com cinco janelas rasgadas sobre o jardim, cujas ramadas lhe cobriam
as portadas de verdes sanefas, por onde envolta com a fragrância do
jasmim coava-se a luz, peneirada no crivo das folhas e roseada pelo reflexo
dos lilases.

Esta sombra luminosa, como a chamara Mílton, derramava no aposento
uma tinta de serena e doce quietude, que repassava a alma de um indefinível
enlevo, especialmente ao surdir-se das torrentes de um sol tropical. Sentou-se
o mancebo à espera, com alguma curiosidade de conhecer ao justo o fim
de sua vinda ali.

Dois dias antes lhe aparecera no escritório o obsequioso Sr. Benício;
depois dos usuais oferecimentos, sacara do bolso as três clássicas
e enormes carteiras, colocara-as diante de si em cima da mesa, esvaziara dois
dos profundíssimos bolsos, tornara a atopetá-los baldeando a
carga da direita para a esquerda, e afinal depois de toda essa pesquisa como
não a faria melhor a polícia aduaneira, desenterrou das cavernas
de uma algibeira uma nota de que deu leitura ao advogado:
– “Dr. Ricardo de Melo Nunes, advogado. Escritório, rua do Rosário,
27.” É isto?
– Deve ser! respondeu Ricardo a rir, senão o senhor cá não
chegaria.

– Eu cá trago estas coisas em ordem, tornou o amanuense; e acabou
de ler a nota. – “Negócio de D. Leonarda.”
Depois dessa formalidade explicou Benício ao mancebo que a sogra do
Soares o incumbira de pedir-lhe o favor de achar-se em sua casa terça-feira
ao meio-dia em ponto, para na qualidade de advogado aconselhá-la em
negócio importante e até mesmo arranjar certos papéis
necessários.

Assegurou Ricardo que as ordens de D. Leonarda seriam cumpridas; e ali estava
exato no dia e hora que lhe fora designado. Viera o mancebo com certa emoção
incompreensível, que ainda naquele momento não pudera dominar
ao todo, e menos assinar-lhe a causa.

Atribuía à curiosidade. Que lhe queria a senhora? Teria ele
de penetrar nos segredos de sua vida? Pretendia a velha incumbi-lo de redigir
seu testamento? Ia ele tornar-se o confidente de alguma dessas dissensões
intestinas que às vezes lavram no seio das famílias?
Abriu-se a porta; e Guida apareceu em companhia de Mrs. Trowshy.

A moça trajava nesse dia com extrema simplicidade. Estava toda de
branco, e a alvura de suas vestes de cambraia sob a nívea cútis
dava-lhe a serena transparência da luz mate. Sua bela estátua
parecia flutuar nesse éter diáfano onde brilhavam com vivo fulgor
os olhos negros e as tranças opulentas de seus cabelos. O lábio
talvez pálido em outro semblante menos puro, no seu era folha de rosa
nadando em leite; e por ele perpassava um sorriso merencório como deve
ser a pétala aveludada da flor quando se despede da luz, de que embebia-se.

Ao vê-la entrar na sala como uma doce visão de manhã
de abril, Ricardo, imaginação de artista, com o culto da forma
e o entusiasmo do belo, não pôde conter os raptos de seu espírito;
e esteve por alguns momentos no enlevo da admiração.

– Está cansado de esperar? disse Guida saudando o advogado.

Feitos os cumprimentos, Mrs. Trowshy foi sentar-se na outra parte da sala,
no vão duma janela, com um volume de Dickens. Os dois moços
ficaram onde estavam, Guida no sofá, e Ricardo na cadeira do lado.

– Minha avó está arranjando sua papelada. Talvez se demore,
e por isso incumbiu-me de uma coisa bem difícil; distrair-lhe a impaciência.

– A senhora dispensa o cumprimento? perguntou Ricardo gracejando.

– Decerto; cumprimentos a esta hora entre o advogado e seu cliente… Porque
eu estou aqui representando minha avó. Não é verdade?
– Assim o entendo; e eu não seria advogado se não houvera aprendido
a fundo a paciência; além de que, não tenho pressa. Consagrei
o dia de hoje à Srª. D. Leonarda.

– Então não lhe incomoda esperar?
– De modo algum; antes me dá o prazer…

– Ai! ai!… que lá se vai o advogado.

– É verdade!
– Estimo bem que não estivesse aflito por ir-se, porque minha avó
é muito vagarosa, coitada, tão doente; e eu não sabia
como fazer-lhe passar desapercebido esse tempo. O piano… Se ainda tivesse
cordas, podia tocar-lhe o Capenga não forma. Mrs. Trowshy quando se
agarra com seu romance, ninguém conte com ela. Então Dickens!
– É o seu autor favorito?
Acenou a moça que sim.

Não estava Guida, essa manhã, no seu natural, que era uma
doce jovialidade, salpicada às vezes de ironia, e outras de meiga afabilidade.
Em seu vulto perpassava, como na face cristalina de um lago, as mutações
do pensamento.

Ao entrar tinha ela a atitude séria e concentrada, porém ao
mesmo tempo decidida e serena, de quem atravessa um momento difícil
da vida, mas arrima-se, para transpô-lo, a uma resolução
inabalável.

A conversa tirou-a dessa reserva, sem contudo dissipar-lhe de todo na fronte
a sombra da preocupação. Buscou reassumir o seu gentil e gárgulo
sorriso, mas a harmonia e a graça dessa mimosa expressão ressentia-se
de uma ligeira crispação. As fibras nervinas desse delicado
organismo, alguma forte comoção as tinha percutido.

Agora, em meio de um gracejo, deixava-se colher por súbita distração,
como se o pensamento, transformado em uma borboleta, lhe fugisse pela janela
a farfalhar entre as flores do jardim; mas, a ser assim, depressa achara a
idéia que buscava, pois tornou logo à conversa.

– Dickens?… É o autor de sua paixão, disse afinal confirmando
o aceno, e com uma ligeira confusão.

Delicadamente Ricardo fingia observar Mrs. Trowshy, para não se mostrar
apercebido do enleio da moça.

– Gosta dos romances ingleses? perguntou Guida.

– Poucos tenho lido. A literatura francesa nos invadiu; e por algum tempo
foi nosso único fornecedor de idéias. Das outras apenas conhecíamos
as obras-primas, os grandes poetas. Ultimamente já entramos em comércio
com outras literaturas; mas a mim falta-me o tempo e o gosto.

– Alguns acham os romances ingleses muito insípidos.

– É natural. Somos uma raça tão diversa! Eles hão
de achar os nossos extravagantes.

– Oh! quanto à extravagância, quero contar-lhe o desfecho de
um que li há tempos; creio que é de… Não me lembro!
disse Guida com certo assomo nervoso.

Fitou a moça os olhos nas grinaldas que pendiam da janela, acompanhando
o volutear de um colibri que chupava o mel das flores. Deste modo não
se podia cruzar o seu olhar com o do advogado.

– O título… não me lembro. Era uma moça, filha de
um banqueiro muito rico. Quanto à descrição, imagine
o senhor, que sabe desenhar: o romancista a dá como bonitinha; não
era nenhum primor; bem longe disso.

– Aí está-se revelando a escola inglesa, observou Ricardo.

Riu-se Guida maliciosamente da observação do moço,
e continuou:
– O pai tinha declarado à filha quando ela tornou-se moça, que
a não constrangeria, mas ao contrário lhe deixava plena liberdade
para escolher um marido; contanto que chegando aos dezoito anos se casasse.
Também é inglês, não lhe parece?
– Genuíno.

– Vai ver o resto. Chegou a moça aos dezoito anos; e completou os
dezenove. O pai exige o cumprimento da promessa.

– E ela casa-se! exclamou Ricardo com vivacidade, levado por estranho impulso.

Retraiu-se porém o moço e desfolhou dos lábios um irônico
sorriso. Guida, que deixara suspensa um instante a exclamação
do moço, continuou galanteando:
– O senhor quer precipitar o desenlace. Não seja tão sôfrego.
Ouça; temos muito tempo. Avozinha não vem tão cedo.

Guida parecia recobrar sua habitual isenção a garridice:
– O pai exigiu o casamento; mas a moça não tinha escolhido.

-Ah!
– E não só não tinha, como não podia escolher.
A ninguém amava; não conhecia um homem por quem sentisse as
doces emoções, os estremecimentos, que fazem a felicidade conjugal.
Donde provinha isto, não sabia explicar o romancista, e menos eu. Não
teria coração essa moça, ou se lhe havia cegado? Era
isso feito da educação, ou da sociedade em que vivia, cercada
de galanteios ridículos, de cálculos vis, e de grosseiras afeições?
Pode ser que sucedesse à alma da moça o mesmo que a um botão
de cacto, quando há tempestade: choca e não abre em flor. Pode
ser!
– Mais tarde. Quem sabe! disse Ricardo sorrindo.

– É a minha…

Atalhou-se Guida em cujas faces espontava um vislumbre de púrpura.
Ricardo olhava-a com emoção.

– “É minha esperança”, repetiu Guida pausadamente.
Assim disse a moça, uma vez que lhe acudiu esse mesmo pensamento. Mas
os dezoito anos eram passados; fugia o tempo, e seu pai que a amava extremosamente,
afligia-se com a idéia de a deixar só no mundo à mercê
da especulação. Reconheceu a moça que era forçoso
o sacrifício; e não hesitou em jogar seu destino ao azar, para
sossego de quem morria-se por ela. Escolheu.

Ricardo recolheu-se todo em si como se tivesse de assistir a uma importante
revelação.

– Não careceu escolher, continuou Guida. Conhecia o moço,
que fora algumas vezes à sua casa; tinha plena confiança em
seu caráter e na sua educação. Era um homem probo e delicado.
Podia confiar-lhe o seu destino. A primeira vez que o encontrou, confessou-lhe
tudo; disse-lhe que, se não lhe tinha afeição, ou nunca
a teria por ninguém, ou só ele a podia inspirar.

Guida que falava sôfrega, moderou-se.

– “Se pois não lhe repugna aceitar a mão de uma mulher
nestas condições, e pensa que ela vale a pena de arriscar a
sua independência, o senhor me salva da maior humilhação”.
Eis o que ela disse, concluiu Guida.

Os olhares dos dois moços se encontraram e fugiram-se.

– Não considera extravagante este procedimento? disse Guida rindo,
para disfarçar a emoção.

– Está fora do comum; é novo, excepcional, como as circunstâncias
que o determinaram; mas não há nele que repreender. Admiro a
energia e espírito dessa moça, que em tão difícil
conjuntura de sua vida, não sucumbiu à debilidade de seu sexo
e teve coragem para decidir ela mesma e deliberadamente de sua sorte. Surpreende-me
esta iniciativa, que atribuo à educação; e ainda assim
parece difícil de vê-la produzir-se na vida real.

– Pois há de ver, disse Guida meia voz.

– Como?
– Mas o senhor que aprova o procedimento da moça, no caso de ser a
pessoa por ela escolhida, o que responderia?
– Eu não podia ser essa pessoa, disse gravemente Ricardo.

– Por quê? perguntou Guida com afã.

– O homem a quem essa moça se dirigiu estava livre; podia dispor
de seu coração e de sua vida!
– Ah!
Descaiu-lhe, à Guida, a fronte abatida, Ricardo olhou-a um instante
com uma ternura melancólica. Depois, reclinando para não arrancá-la
à sua posição, fez-lhe a confidência de sua vida
em breves palavras:
– É uma afeição de infância. Brincamos juntos,
e aprendemos a amar-nos. Esperava formar-me, mas tendo falecido meu pai, fiquei
único arrimo de uma família pobre e endividada. Meu tio, o pai
de Bela, adiou o nosso casamento, apelando para minha honra. Que futuro reservava
eu para sua filha, pobre também? Parti para a corte; vim pedir ao trabalho
os recursos indispensáveis para desempenhar a velha casa onde mora
minha mãe, e que é nosso único patrimônio.

– E é preciso muito dinheiro? perguntou Guida com interesse. Quanto?

– Acanho-me de falar-lhe dessas particularidades.

– Não adquiri esse direito fazendo-lhe minha confidência? tornou
a moça com meiga exprobração.

– Tem razão.

E Ricardo completou a breve história de sua vida; e contou-lhe, como
o faria à sua mãe, as ânsias dos seis longos meses passados
no Rio de Janeiro, os desânimos que tantas vezes dele se apoderavam;
até lhe escaparam as mágoas causadas pela volubilidade de Fábio,
e os receios epla ventura de Luísa, sacrificada com tamanha ingratidão.

– Avozinha está-se demorando. Com licença, vou saber a causa,
disse Guida.

Ficando só na sala, pois Mrs. Trowshy continuava ausente, na Inglaterra
onde se passa a ação do romance que lia, buscou Ricardo compenetrar-se
da realidade dos fatos em que tomara parte, e não pôde. Seu espírito,
ainda atônito pela estranheza do episódio em que se envolvera
imprevistamente sua existência, não recobrara a reflexão;
tudo quanto podia no meio da surpresa, era recordar-se.

A espera foi breve. D. Leonarda veio finalmente à sala, acompanhada
por Guida.

– Aqui tem os papéis, senhor doutor, disse a velha depois dos cumprimentos
usuais, e volvendo a miúdo os olhos para Guida. Quero que examine bem
para ver quem tem direito, porque não desejo questões, sobretudo
com vizinhos.

– É então uma questão de limites? Perguntou o advogado.

– Não sei… É isso mesmo, respondeu a velha corrigindo-se
ao aceno da menina.

– O senhor me permite? Eu lhe explico. O vizinho da esquerda pretende apoderar-se
de um pedaço de terreno, que foi sempre de minha avó. O senhor
doutor leva os papéis, para examiná-los; depois dará
sua opinião. Não é melhor, avozinha?
– Eu acho que é! disse a velha batendo com a cabeça.

Na ocasião de se despedirem disse Guida ao advogado, em cujo semblante
não se apagara a tinta de melancolia que derramara a cena anterior:

– Não se aflija. O romance que eu lhe contei, acaba alegre.

E para confirmar o dito, o seu lindo semblante banhou-se em um riso feiticeiro.

XXVII

Logo depois que Ricardo saiu, mandou Guida prepara o carro para voltar à
sua casa.

– Então está decidido? perguntou a velha ao ouvido da menina.

– Ainda não, avozinha. Ficou para outro dia.

– Ora! fez a velha com um gesto displicente.

No carro Mrs. Trowshy, que também era curiosa, indagou nestes termos
do êxito da conferência a que assistira de parte.

– Que disse o advogado? Ganha o processo?
– Está perdido, respondeu Guida a rir.

– Não é possível.

– Completamente.

– Oh! que pena!
Chegando a Botafogo, às três e meia, esperou Guida na saleta
que seu pai voltasse do escritório, para receber o beijo que lhe costumava
dar na face, em retribuição das festas e carinhos com que era
acolhido.

– Que milagre; está-me nascendo uma rosa entre meus jasmins! Exclamou
o Soares reparando no vislumbre de púrpura que roseava a face da moça.

– Há de ser do calor; cheguei do Andaraí.

– Ah! e como vai a avozinha?
– Na mesma.

Subiu o Soares ao sobrado brincando com a filha, que ria-se das pilhérias
do pai, e tornava-lhe os folguedos e as meiguices com o mesmo contentamento.

No topo da escada separaram-se.

Foi ao entrar no seu toucador, que o esto d’alma rompeu, como a onda por
muito tempo comprimida. A moça levou as mãos ao seio que arfava
a estalar na ânsia, e caiu sobre o leito, escondendo o rosto nas fronhas
de cambraia, comprimindo nas almofadas os quebros soluços.

No seu desespero, espedaçou o vestido que a estringia como uma forma
de bronze, e arremessou para longe de si os trapos da seda. Sobre as espáduas
nuas desdobraram-se as cascatas dos opulentos cabelos negros, com que ela
envolveu o colo e os seios, conchegando-se com um gesto pudico.

Afinal saltaram-lhe as lágrimas ardentes dos olhos, que logo debulharam-se
em pranto abundante. Foi serenando a violenta comoção, que subvertera
os seios dessa alma; e Guida ergueu-se a custo, abatida pelo abalo que sofrera,
mas surpresa e atônita da crise que de repente a acometera.

Apoiando sobre a almofada a curva do braço mimoso, reclinou a face
na mão, e ficou pensativa:
– Será isso o amor? perguntou a si mesma.

E entrando de novo em si, penetrando nos refolhos d’alma, sentindo vibrarem
novas cordas no seu coração, e derramar-se no íntimo
uma luz que nunca até aquele dia resplandecera em seus sonhos de menina
e moça, Guida compreendeu que era realmente amor, essa agitação
indefinível que perturbara sua vida serena e tranqüila.

A alegria inefável, o júbilo que teve, não os podem
conceber aqueles que nunca duvidaram de si, nem jamais em horas de desânimo
se tiveram por deserdados do coração. Parecia à moça
que outra vida, não essa de flor ou de passarinho que vivera, mas a
da poesia e da paixão, a vida da mulher, acabava de surgir para ela
naquele instante.

Estas lágrimas aljofradas, que seus dedos mimosos estalavam nas faces,
eram os orvalhos de uma aurora. Raiasse ela embora entre os abalos de uma
tormenta, era bem-vinda; era a luz criadora, o raio celeste, que afinal luzia
em sua alma.

O espírito de Guida não se demorou na idéia da impossibilidade
de seu amor. Que valia isso na história de sua existência, senão
um pequeno acidente material? O grande acontecimento era o despertar de seu
coração virgem e indiferente, era a revolução
que se acabava de consumar em seu organismo, selando enfim a infância.

A magia das novas e deliciosas sensações que iam acordando
em seu ser, o infindo prazer de se lhe povoarem de flores, de magnificências,
de harmonias e perfumes, o ermo ingrato e sáfaro que poucos momentos
antes assolava sua alma, a possuíam tanto e tão intimamente,
que não bastavam as forças de sua natureza para essa ventura
suprema de sentir-se outra e saciar-se dessa nova existência, ainda
não vivida.

Eram horas do jantar.

Vestiu-se a moça rapidamente, com a costumada simplicidade, mas sem
o esmero costumado, para o qual não havia tempo. Entretanto nunca o
seu bom gosto combinou melhor o traje, nem este realçou-lhe tanto a
beleza nativa, como naquela tarde.

Mas o encanto desse vestuário não estava no delicado padrão
do simples vestido de organdi, e na forma elegante e original do penteado.
O que a ornava era sobretudo o brilho suave dos olhos, a meiga auréola
da fronte, o sorriso delicioso dos lábios, e a graça inefável
do gesto.

Essa beleza até agora mimosa, gentil e garrida, tinha trocado o seu
lirismo pela brilhante epopéia do coração. Já
não é o colibri borboleteando entre as flores, ou o raio de
luz irisando-se na gota de orvalho. Agora é a mulher; é o anjo,
que agita as asas de fogo, com os olhos no céu e a voragem a seus pés.

– Como estás bonita! exclamou Soares vendo a filha.

– Ela sempre foi! disse D. Paulina.

– Sempre; mas hoje!…

– Foi o passeio! disse Guida com um sorriso, que era um enlevo de graça.

– O passeio… repetiu o banqueiro. Não duvido.

E fitou o olhar vivo e perscrutador da filha, cujo enleio velou-a com uma
encantadora expressão de melindre que lhe dava um encanto irresistível.

Depois do jantar desceu Guida ao jardim, e percorrendo lentamente as alamedas,
seus olhos acariciavam as flores, que dantes a deleitavam apenas como as fitas
e outros enfeites.

Lembrou-se da flor rústica da Tijuca, a que Ricardo dera o nome de
“Sonhos d’ouro”. Havia o jardineiro trazido mudas, que arranjara
em um alegrete, ao lado da casa. Não tivera a moça ainda a curiosidade
de ver a planta, depois da sua volta a Botafogo.

Nessa tarde, porém, apertaram-lhe as saudades. Não tinha flores
o arbusto, que só em novembro cobre-se de botões; alisou-lhe
a moça com a mão as folhas glabras, afagou-as com o olhar; e
tamanha era a efusão de ternura, que teve ímpetos de beijá-las,
e arrancando uma, colou-a aos lábios ardentes.

Pungiu-lhe o coração uma dor viva e intensa, como o cravar
de uma lâmina. Recordou-se da primeira vez que vira Ricardo; e compreendeu
então o arroubo e veemência de sua alma na contemplação
da florinha agreste.

– Ele amava!… balbuciou Guida. Lembrava-se de Bela!…

E invejou a felicidade de sua rival, sem contudo querer-lhe mal. Ao contrário,
sentia curiosidade de conhecê-la; e acreditava que havia de Ter-lhe
amizade.

Durante alguns dias viveu Guida no embevecimento de sua paixão. Sentava-se
ao piano, e escolhia as músicas ternas e sentimentais, que tocava com
muita alma e expressão. As notas, que tantas vezes tinham ressoado
a seus ouvidos apenas como agradável harmonia, feriam-lhe agora as
cordas mais íntimas, e percutiam todo seu organismo, como uma vibração
elétrica.

Outras vezes esquecia-se a cismar, com os olhos engolfados no azul do céu,
onde rutilavam as primeiras estrelas; ou enlevada a contemplar uma flor, cujos
perfumes derramavam-se dentro d’alma com uma fragrância celeste e cujo
matiz aveludado afagava-lhe a vista, como um beijo da luz.

Não raro se tingiam esses devaneios de uma sombra de melancolia,
quando o espírito da moça voltava-se para o futuro e o via tão
esplêndido submergir-se em um abismo inexorável, o impossível.

Mas amava, sentia-se viver no seu amor; e o pensamento, recolhendo-se a
esse limbo suave de sua nova existência, esquecia o mundo, o tempo,
a sorte, para embeber-se de felicidade e exaurir-se nesse gozo supremo da
paixão.

Foi Soares que a arrancou a esse longo êxtase.

Uma tarde que ela cismava no jardim, o pai viu-a da janela, e foi-lhe ao
encontro com ar brincão:
– Ai, minha sonsinha!… Temos novidade, hem! E não me queres dizer?
– O quê, papai? perguntou Guida arrancada à sua cogitação.

– Como disfarça! Pediste um mês para escolher; mas creio que
estes olhinhos andaram mais depressa. Nessa idade eles pulam… Desconfiei
logo; quando te vi pelos cantos, toda sorumbática, percebi. O bichinho
está fazendo artes lá no coraçãozinho da minha
Guida. Não é verdade?
Estas palavras brincadas, e envoltas na ternura risonha do pai, retalharam
a alma da moça. No meio do enlevo de seu amor, quando não vivia
senão desse afeto, por ele e para ele, vinha surpreendê-la a
realidade e reclamar sua existência, para votá-la ao mais atroz
dos sacrifícios, que pode sofrer a mulher: para atá-la como
a um poste de infâmia, ao homem a quem ela despreza.

– Adivinhei, confessa. Tu já escolheste.

– Já, papai, disse com veemência; infelizmente já; mas
aquele a quem amo, não me pode amar.

– Ora! fez o Soares com o sorriso de um homem que sabe quanto pode.

Guida abanou a cabeça:
– Não, é impossível! Todo o dinheiro do mundo não
bastaria para comprar-me a felicidade.

– Quem é ele? perguntou Soares, sentindo apoderar-se de si o desânimo
da filha.

Contou Guida ao pai a simples história de seu amor, botão
que desabrochara recentemente em flor, ainda impregnado de vivos perfumes.

– Estava resolvida a casar-me já para seu sossego e tranqüilidade,
papai; a saudade, que eu teria de minha vida de solteira, me havia de pagar
com usura e felicidade de o ver contente.

– Guida! exclamou o velho enternecendo-se.

– Mas com esta afeição, não posso, papai; o sacrifício
excede minhas forças. Parece-me que me insultaria a mim mesma, casando-me
com outro homem. Seria uma degradação…

– Não falemos mais disso, minha filha!
– Deixe-me esquecer, deixe-me sufocar esse coração que eu julgava
morto, e que reanimou-se por meu mal. Daqui a um ano terá passado.

– Tudo o que tu quiseres, respondeu Soares, contanto que não fiques
triste. Brinca, diverte-te bem. Inventa novas travessuras. Ainda que me custem
muito dinheiro, muito… Para que prestará ele, se não for para
te distrair?
– Há uma coisa que, eu sinto, me havia de fazer muito bem, disse Guida
timidamente.

– O que é?
– Ele é pobre… Sua felicidade depende de vinte contos… Eu daria
meus alfinetes…

– Criança. Não estou eu aqui? A dificuldade, desconfio que
será obter dele que aceite…

– É verdade.

Nesse momento parou um carro ao portão; e com pouco apareceram D.
Guilhermina e o marido.

– Havemos de achar um meio; pensa tu de teu lado, que eu não me descuidarei.

O banqueiro foi ao encontro do conselheiro e subiu com ele à varanda,
enquanto D. Guilhermina passeava no jardim com Guida.

XXVIII

Depois de algumas voltas pelo jardim, as duas amigas sentaram-se em um banco
de grama, próximo ao gradil da rua, onde enramava-se uma trepadeira
de flores escarlates.

Houve na conversa breve pausa. D. Guilhermina espreitava disfarçadamente
pelos claros do gradil; e Guida com o sobrolho levemente rugado parecia refletir
observando distraída o gesto da amiga.

– Sabe, D. Guilhermina, esse moço… o Dr. Nunes…, disse Guida
com indiferença.

– O amigo do Fábio?
– Está justo para se casar com uma prima em São Paulo.

– E anda por aqui divertindo-se?
– Que injustiça! Veio na esperança de ganhar alguma coisa para
pagar as dívidas da mãe, e casar-se então; porque a noiva
é tão pobre como ele.

– Coitadinha!
– E não é muito dinheiro de que precisam. Vinte contos apenas!
– Não é qualquer bagatela, Guida!
– Ora! Você não gasta mais do que isso por ano?
– Sim; mas em minha posição!…

– Pois esse dinheiro que nós deitamos fora em vestidos, jóias
e luxo durante um ou dois anos, bastava para fazer a felicidade de tanta gente
e por toda a vida.

– Que gente?
– O Ricardo tem uma irmã, D. Luisinha que também está
para casar com o amigo…

Guida sentindo a inquisição suspeitosa do olhar de D. Guilhermina,
disfarçou a colher uma flor e concluiu:
– Com o Fábio!
– Ah!… Quem lhe disse? exclamou a mulher do Barros mordendo os beiços.

– O Dr. Nunes!
– Não sabia que estava tão íntimo com você, Guida!
– Eu o estimo pelas suas qualidades e sisudez.

Erguera-se D. Guilhermina, e a pretexto de olhar para a rua, afastou-se
um momento para dominar a comoção produzida pelas palavras da
amiga, e que no primeiro instante contida, a estava sufocando.

De seu lado favorecendo-lhe os desejos, Guida aproximara-se da casa, fingindo
que a chamavam; mas realmente para deixar a outra em liberdade.

Quando de novo se encontraram, os olhos de D. Guilhermina estavam magoados,
e as faces conservavam a marugem das lágrimas. Guida que se teria rido
um mês antes, compreendeu aquela dor e respeitou-lhe a mudez, mostrando-se
inteiramente alheia.

– Eu, se pudesse, disse Guida reatando a conversa, teria um prazer imenso
fazendo-os felizes e realizando de repente os seus lindos sonhos!… Deve
a gente sentir-se no céu, quando faz-se instrumento da graça
e misericórdia de Deus!…

O profundo sentimento que ressumbrava nestas palavras de Guida, o fervor
de seu gesto e o esplendor que iluminou seu lindo perfil, surpreenderam D.
Guilhermina que fitou admirada o rosto da amiga; a cintilação
dessa luz que manava o coração, filtrou-lhe n’alma; ela compreendera.

– Também eu! murmurou corando.

– Pois ajude-me!
– Como?
– É preciso conhecer as particularidades da família… O Dr.
Nunes, se eu lhe perguntar, desconfiará e com certeza há de
recusar, mas o Fábio…

– Ele nunca me falou na família do Ricardo.

– Porque não lhe tocou nisso.

– Hei de perguntar-lhe!
– Talvez ele apareça aqui esta tarde.

– Não deve tardar… Isto é, creio que ele vem, corrigiu a
tempo a moça com vexame.

Mas Guida não fez reparo; e afastou-se na direção do
gradil, olhando para a rua através dos recortes da folhagem. Momentos
depois voltou pressurosa ao lugar onde ficara D. Guilhermina triste e pensativa:
– Aí está ele.

Efetivamente chegava Fábio ao portão; e avistando as senhoras
ao atravessar o jardim, foi-lhes ao encontro.

Depois dos cumprimentos e banalidades usuais, Guida trocando com a amiga
um olhar de inteligência, procurou um disfarce para deixá-la
só com o Fábio.

– O senhor nunca me disse que seu amigo Fábio tinha uma irmã?
foram as primeiras palavras que D. Guilhermina dirigiu ao moço, interrogando-lhe
a fisionomia com o olhar.

Ficou passado o Fábio. Apesar de sua leviandade, evitava com o maior
cuidado tocar no que tinha relação com sua vida de São
Paulo, pelo receio de divulgar o seu ajuste de casamento com Luisinha.

Imagine-se pois do atordoado que estaria, vendo a pessoa de quem mais desejava
esconder essas particularidades, tão ao corrente, e sentindo assim
evaporar-se de repente o seu castelo encantado.

– Não sabia que a senhora tomava tanto interesse por meu amigo! respondeu
o moço buscando uma evasiva nessa ponta de ciúme.

– Mais do que o senhor pensa; e tanto que desejo pedir-lhe certas informações
a respeito dele.

– A mim!
– Sem dúvida. Não é o senhor amigo íntimo do Dr.
Nunes?
– Por isso mesmo, deve compreender quanto as suas palavras me fazem sofrer.

– Não vejo motivo. Conheço uma pessoa, que, sendo infeliz
no seu casamento, consola-se quando pode fazer a felicidade dos que se amam.

Vinham estas palavras envoltas em um suspiro e perfumadas de suave melancolia.

– E recusa fazer a minha, quando sabe a paixão com que a adoro!
– Essa pessoa soube, não sei como, que o Ricardo tinha um casamento
ajustado em São Paulo com uma moça a quem ama; mas sua felicidade
depende de uma soma necessária para o pagamento de certas dívidas…

– Sua felicidade dependia de um escrúpulo. Hoje nem isso!…

– Deixe-me acabar. O que eu desejo que o senhor me diga, pois está
no segredo da família, é o modo de pagar essas dívidas,
sem que seu amigo saiba, nem desconfie, senão depois de tudo acabado.
Assim não haverá mais impedimento à felicidade dele…

A voz da bela senhora afogou-se na reticência de uma lágrima.

– E à sua! disse afinal com emoção. O senhor poderá
casar-se com aquela a quem ama, Luísa, não é o nome?
O primeiro assomo de Fábio foi a negativa; mas à sua alma, nobre
no meio da volubilidade e extravagância da mocidade folgazã,
repugnou essa apostasia de sua primeira afeição.

– Eu amo Luisinha, confesso; mas também a amo, D. Guilhermina, e
com paixão!
– Essa paixão é impossível.

– Porque a senhora a despreza.

– Eu devo-lhe as únicas alegrias de minha vida, condenada a um triste
desencanto. Deixe-me guardar estas recordações doces e puras
dos dias passados; não devemos envenená-las com um crime que
faria a infelicidade de duas pessoas e a nossa.

Fábio travara da mão da senhora e a beijava. D. Guilhermina
retirando-a enternecida, chamou a amiga para romper o a sós que a estava
comovendo:
– Guida!…

– Cruel!…

– Ainda não satisfez o meu pedido sobre a dívida de seu amigo.

– Oh! isso é fácil. O pai de Ricardo deixou a chácara
hipotecada na casa bancária de Gavião Peixoto pela quantia de
dez ou doze contos de réis; mas com os juros já monta a dívida
a vinte. Desembaraçada a casa, podia D. Benvinda viver com a família
modestamente sem pesar sobre o filho.

– O senhor me há de dar por escrito uma lembrança de tudo
isto, com os nomes…

– Para quê? tornou o moço com escrúpulo.

– Já lhe disse.

– Para apressar o casamento de Ricardo com Bela?… Mas é inútil.

– Deveras? perguntou D. Guilhermina lançando um olhar para Guida
que se aproximava.

– Foi uma surpresa! Ontem, quando menos esperava, recebeu Ricardo uma carta
de São Paulo. Abriu; era de Bela, que lhe participava seu casamento
com o Lemos, outro primo.

Ouviu Guida essa notícia, ao aproximar-se; e vacilou com a emoção
que abalou o seu talhe esbelto. Felizmente passava naquele momento por uma
estátua de bronze representando Flora, cujo pedestal lhe serviu de
apoio e também de refúgio para esconder a alteração
do gesto, pois Fábio colocado do lado oposto não podia perceber-lhe
o vulto.

Notando o soçobro da amiga, a arfagem violenta do seio, que se expandira
com o ímpeto d’alma, e a contração do rosto ao esforço
da vontade a reprimir o grito que rompia do seio, D. Guilhermina voltou-se
para o outro lado, o que obrigava o moço a imitá-la, desviando
assim os olhos da estátua.

– O que dizia a carta? perguntou a mulher do Barros.

– Não devia Ter dado a notícia, disse Fábio arrependido;
mas como sempre se havia de saber…

– Decerto. Que mal faz?
– Quanto à carta, não posso. Ricardo não me perdoaria.

– Essa é a confiança que lhe mereço? disse D. Guilhermina
queixosa.

– Se fosse meu, não hesitaria. Mas este segredo não me pertence.

– E pertencia-me a mim a afeição que lhe dei?
– Direi, com uma condição.

– Por negócio, dispenso.

E a moça deu ao talhe uma lânguida inflexão que era
o irresistível condão de sua beleza.

– Pois bem, à senhora eu conto, disse o moço correndo o olhar
em torno.

Guida, já sobre si, tivera o cuidado de colher a cauda do vestido
e ocultar-se por trás do pedestal de bronze, de modo que Fábio
não se apercebeu de sua presença.

– Pode falar, disse D. Guilhermina. Ninguém nos ouve.

– A carta era muito curta. Bela dizia a Ricardo que, não podendo
fazer sua felicidade, cedia aos desejos do pai aceitando o esposo que tinha
escolhido.

– E o Ricardo, como recebeu a notícia?
– Tem sentido muito. Ele amava sinceramente a prima; era uma afeição
de infância.

– Mas há de consolar-se.

– Que remédio!
– Os homens esquecem depressa!
– As injustiças que lhes fazem aquelas a quem adoram.

– Há de ver que daqui a um mês o Ricardo amará outra.

– Duvido, disse Fábio. Eu o conheço; é dessas almas
concentradas, onde tudo, afeição, idéia, lembrança,
cria raiz funda. É preciso tempo!
– Veremos!
Deixara D. Guilhermina cair essa palavra do lado da estátua, afastando-se
para deixar a Guida retirar-se sem que a percebesse Fábio. Aproveitou
a moça o momento, e deu uma volta para encontrar-se mais longe com
os dois.

Ao tomar pela alameda que prolonga-se com o gradil, viu uma pessoa que entrava
o portão e que dirigindo-se à escada de mármore, parou
de repente em meio caminho.

Reconheceu Ricardo, e notou sua perturbação; no gesto e olhar
traía-se a perplexidade do espírito. Após breve luta,
voltou ele sobre os passos; e saindo novamente o portão, afastou-se
apressado para o lado de São Clemente.

Teve Guida ímpetos de chamá-lo; mas faltou-lhe o ânimo.
Já não possuía a sua antiga isenção.

Chegaram D. Guilhermina com Fábio:
– Sabe quem passou por aqui? disse Guida com uma voz que apesar do esforço
tremia: seu amigo.

– Ricardo?
Acenou Guida que sim, fitando um olhar fagueiro em D. Guilhermina.

– Por que não vai chamá-lo? disse a mulher do conselheiro
a Fábio. Se ele soubesse que o senhor estava aqui, com certeza entrava.

– Maçado como anda?
– É bom que se distraia, disse a senhora, e voltou-se para Guida:
– O Dr. Nunes teve um desgosto.

– Ah!
– Mas não quer que se saiba, acudiu Fábio.

– Esteja descansado, que ninguém vai tocar-lhe nisso. Não
se demore.

– De que lado tomou?
– Seguiu para São Clemente, respondeu Guida.

Fábio saiu naquela direção. A pequena distância
encontrou o amigo, que naturalmente já vinha de volta, pois não
tardou que as duas moças, através da folhagem, os avistassem
a ambos, passando em frente ao gradil.

Em um irresistível assomo de júbilo, Guida abraçou
a D. Guilhermina, que retribuiu-lhe afetuosamente a carícia, murmurando:
– Você pode ser feliz!
Sentiu Guida o egoísmo de sua alegria, e apagou com um beijo o sorriso
triste que abrira nos lábios da amiga.

XXIX

Na linda várzea do Brás, onde se desdobra um dos mais pitorescos
arrabaldes da capital de São Paulo, há uma chácara extensa,
cujos terrenos bordam a margem esquerda da estrada de ferro.

A casa é grande, abarracada, ao gosto paulista, e bem antiga. Cercam-na
vastas hortas e largos tabuleiros de flores.

No mesmo dia em que Ricardo recusava a mão de Guida, por volta de
seis horas da tarde estavam reunidas várias pessoas na varanda daquela
casa, em volta da mesa de jantar, onde acabavam de colocar dois castiçais
com velas de estearina.

A senhora idosa, de agradável parecer e porte refeito, que sentava-se
à cabeceira da mesa, era a mãe de Ricardo, D. Benvinda. Com
as mãos cruzadas ao peito, no trepasse do lenço vermelho que
trazia aos ombros, escutava com religiosa atenção a leitura
de uma carta.

A seu lado estava uma linda moça, tipo dessa beleza plástica
e serena, que distingue as paulistas, e à qual só falta um nada
da petulância que têm as fluminenses às vezes em demasia.
Era bela, essa moça; e ao vê-la no repouso de sua formosura correta
e imaculada, compreendia-se o culto de Ricardo que tinha em alto grau o sentimento
artístico.

A Bela seguia-se Luisinha, e depois os irmãos e irmãs. Era
a fisionomia de Ricardo, reproduzida sete vezes, em traços mais indecisos;
neste perfil, com a suavidade do contorno feminino; naquele, com a alacridade
da travessura infantil.

E dias de chegada de paquete, como esse, Bela que morava perto da matriz,
vinha passar a tarde com a tia, para receber notícias da corte, e ouvir
as longas cartas que Ricardo escrevia com recados para todos, especialmente
para ela.

Acabava Juca, um dos filhos de D. Benvinda, de chegar do correio, trazendo
duas cartas, uma delas bastante volumosa e portulada com um batalhão
de estampilhas. Pelo sobrescrito conheceu logo a velha que a do filho era
a mais pequena.

Abriu-a, e disse com um suspiro ao passá-la à Luisinha para
ler:
– Tão curta!
– É mesmo! repetiu Luisinha com a doce voz arrastada. Ele sempre escreve
tanto!
A carta continha apenas estas palavras:

“Minha boa e querida mãe.

De prevenção e à pressa lhe envio estas linhas. Estou
ocupado com um trabalho importante, que devo concluir até amanhã;
e receio me roube o tempo que eu destino para conversar com aquelas a quem
amo.

Mas trabalhando, não tenho eu sempre vivas em minha alma, para dar-lhe
coragem, a sua imagem, minha querida mãe, a de Bela, de Luisinha, de
todos aqueles por cuja felicidade eu rogo a Deus todos os dias?
Abençoe-me, querida mãe; e dê a Bela o santo beijo que
eu de longe não posso receber.

Seu filho
Ricardo
18 de agosto de 1871.”

Quando Luisinha terminou a leitura da breve carta duas lágrimas rolavam
pelas faces de D. Benvinda, que parecia absorvida na imagem do filho ausente.
Bela se erguera, e enxugando com o lenço de cambraia as faces da velha,
dobrou os joelhos para receber na fronte o beijo de Ricardo, ungido pela bênção
materna.

Entretanto Luisinha voltava de todos os lados a carta volumosa, em cujo
sobrescrito reconhecera admirada a letra de Fábio, o qual raras vezes
escrevia e sempre de afogadilho, por desencargo de consciência.

– E esta é de Fábio? perguntou D. Benvinda.

– Não sei, respondeu Luisinha vermelha como lacre. Creio que é.

– Basta ver a letra, disse Bela.

– Desta vez desforrou-se! observou D. Benvinda contando as laudas da carta
que tinha aberto. Toma, Luisinha; vamos ver o palavreado do rapaz. Já
estou-me rindo!
– Leia você, Bela, murmurou Luisinha com as faces a arderem.

Era o costume. As duas noivas trocavam a vez nessa leitura.

A carta de Fábio era uma garrulice de estróina, mas não
destituída de chiste e boas lembranças.

Suprimidos os nomes próprios, e metida em meia dúzia de colunas,
aquela prosa caseira e do cote, podia bem gozar das honras do folhetim, e
não teria que invejar aos mais asseados e domingueiros que aí
aparecem.

Ao escrever essa carta passava o noivo de Luisinha por um desses momentos
de plenitude moral, em que o espírito, como o coração,
transbordam, e carecem de vazar a afluência de vida. Durante seis meses
fartara-se de prazeres, divertira-se a não poder mais, gozara do mundo,
era amado por uma mulher bonita e do grande tom. Estava cheio.

Retido em casa à espera de uma resposta que devia trazer-lhe dinheiro,
o moço lembrou-se, para disfarçar a impaciência, de escrever
à sua futura sogra, e começou neste belo teor:

“Minha futura mãe e respeitável senhora.

Há tempos recebi uma carta sua em que me perguntava como ia na advocacia.
Deixei passar alguns meses, antes de responder, para dar-lhe uma informação
mais segura.

Agora posso dizer-lhe tudo que há a tal respeito e não é
muito. O nosso Ricardo está com um escritório já bastante
acreditado; tem clientes magníficos; e vai ganhando sofrivelmente.
Eu só apareço lá, de longe em longe, para não
espantar a caça; mas vou-lhe mandando as causas que posso. Sou um jornal
vivo; mas jornal de sala, que é mais aristocrático, e mais barato.”

Neste gosto continuava a carta, que Bela ia lendo no meio das risadas de
D. Benvinda e dos muxoxos de Luisinha. Chegou, porém, um ponto, em
que redobrara a atenção das três senhoras:

“A Bela deve estar orgulhosa do noivo que tem. Se ela soubesse até
que ponto Ricardo a ama!… Ele, estou certo que nada lhe dirá; mas
eu é que não sou caixeta de segredos; e este me está
fazendo cócegas.

Aí vai, no ouvido, de cochicho, que não o ouça uma
certa sonsinha, cujo pecado é a curiosidade.”

– Isto é com Luisinha! Disse D. Benvinda.

– É o que ele sabe me dizer.

Imagine-se a curiosidade com que foi ouvido o trecho seguinte, que leu Bela
com a voz palpitante de emoção:

“Há aqui na corte uma moça, que é a rainha da moda;
chama-se Guida; é filha de um homem que não sabe quanto possui;
tem dezenove anos e muito espírito; a respeito de beleza e elegância,
não se fala; é o tipo: ninguém a excede.

Imagine quantos sujeitinhos andam-lhe arrastando a asa, apaixonados ao mesmo
tempo pelos olhos pretos e os milhões amarelos dessa peregrina formosura.

Todo o alto coturno comercial, político, literário, inscreveu-se
neste concurso; e cada um espera que lhe toque o anel.

Mas ela não faz caso de nenhum destes pretendentes; e o seu fraco
é por um certo advogado paulista, que nem dá fé das provocações,
tão voltado anda para essas bandas da ínclita Paulicéia,
onde lhe ficaram os olhos e o coração.

Bastava-lhe querer para em pouco tempo estar senhor de uma riqueza colossal
e marido da mais bonita moça do Brasil, já se sabe, depois das
duas que não é preciso mencionar. Mas ele sacrifica tudo à
constância.”

– É bem meu filho! Interrompeu D. Benvinda com assomo de orgulho materno.

” É verdade que não é ele o único; pois
também outra pessoa tem sofrido sem pestanejar o fogo rolante dos mais
feiticeiros olhos do Rio de Janeiro; mas, etc., etc., o resto pelo seguinte
vapor.”

Terminada a leitura, quanto Luisinha e a mãe se inclinaram para acariciar
Bela e regozijar-se com ela por mais essa prova do profundo amor de Ricardo,
viram, ao retirar-lhe o papel ainda aberto diante dos olhos, que tinha o rosto
banhado de lágrimas.

– Está chorando, Bela! exclamou Luisinha.

– É de felicidade, menina; também eu tenho os olhos cheios
d’água, disse D. Benvinda.

Desde criança, de envolta ainda com os brincos da infância,
começara Bela a amar Ricardo, com a efusão de uma alma que se
entrega sem reservas de todo e para sempre. Estava em sua natureza querer
com esse abandono de si mesma, sem pedir nem esperar retribuição.

Quando Ricardo formou-se, não lhe permitindo as apertadas circunstâncias
da família realizar desde logo seu casamento, Bela resignou-se a esperar,
com plácida confiança, e possuída da inalterável
convicção de fazer a felicidade daquele que a amava.

Freqüentes vezes insistiu seu pai em convencê-la da necessidade
de casar-se com o Felício Lemos, outro primo seu, também formado,
que desde a infância a disputava a Ricardo, mas preterido sempre. Aos
reiterados pedidos opunha a moça uma repulsa doce, magoada, quase súplica,
mas inflexível. Ela julgava-se um bem de Ricardo; acreditava que deus
a reservara para fazer a ventura desse coração, que ela admirava.
Não discutia pois, não se defendia; refugiava-se em seu amor.

Ao ler a carta de Fábio, no meio do espanto que produzia-lhe o tom
leviano do estouvado a profanar as coisas mais santas, pela primeira vez uma
dúvida cruel traspassou-lhe a alma. “Não era ela a única
mulher do mundo que podia fazer a felicidade de Ricardo? Havia para esse homem
outra ventura, outro futuro, outra existência, além que de lhe
devia dar o seu amor?”
Com o soçobro causado por essa primeira percussão d’alma, arrasaram-se-lhe
os olhos de lágrimas sem que ela mesma soubesse por que chorava. Assim,
quando ouviu a explicação que D. Benvinda deu a seu pranto,
disse com um sorriso contrafeito:
– Há de ser de alegria mesmo!
Momentos depois recolhia-se Bela à sua casa e achou na sala o pai,
o Dr. Lopes, em companhia de Felício Lemos.

– Estávamos falando em você, Bela, disse o pai que dobrava
um papel.

– Meu tio! Vm. prometeu-me que não contaria a Bela, disse o Lemos
com exprobração.

– Mas é necessário que ela saiba, para perder a ilusão
em que vive; portanto dispense-me da palavra que lhe dei.

– Perdão, meu tio, eu o respeito muito, mas neste ponto não
devo condescender. Bela pode suspeitar que são meios empregados para
demovê-la de sua resolução.

– Todos sabem que você é incapaz disso.

– Embora; não quero ser portador de más novas.

– Mas o que é, meu pai? perguntou Bela. Alguma notícia triste?
– Eu lhe digo. Ao passo que você espera com uma constância nunca
desmentida ao homem a quem prefere sem razão, o ingrato lá na
corte está tratando de arranjar um casamento rico.

– Ricardo? disse Bela com sublime confiança. É impossível,
meu pai.

O Dr. Lopes desdobrou a carta que tinha em mão e apresentou-a à
filha.

– Ainda duvida? pois leia, Bela!
– O senhor me compromete! disse Felício com reproche, afastando-o do
lado da janela.

Surpresa, e cerrado o coração de pressentimentos, correu Bela
os olhos pelo papel.

A carta escrita ao Felício por um colega da corte, repetia os boatos
da Rua do Ouvidor que davam Ricardo como pretendente assíduo da filha
do banqueiro Soares e o preferido entre todos pela moça.

– Então? perguntou o Dr. Lopes à filha quando esta acabou
de ler.

– Ricardo não falta à sua palavra, meu pai.

E deitando a carta sobre a mesa, recolheu-se à alcova.

– Breve se há de desenganar! exclamou o pai irritado com aquela cega
confiança.

Decorreu uma semana, durante a qual a alma de Bela, como um vaso de jaspe
onde a custo filtra a essência, levou a embeber-se dos acontecimentos,
que vieram perturbar o sereno remanso da sua vida de amor e saudades.

Outra vez chegou o correio, mas nesse dia a moça não foi como
de costume para a casa da tia esperar cartas; e desculpou-se com uma enxaqueca,
esse grande recurso diplomático das mulheres. Por volta de “ave-maria”
trouxeram-lhe da parte de D. Benvinda uma carta.

De longe, apenas a viu na mão do portador, Bela adivinhou que era
de Ricardo.

À frouxa luz do crepúsculo, recostada à ombreira da
janela, com os olhos úmidos e a alma tomada de um indefinível
sobressalto, leu a moça as palavras afetuosas que lhe dirigia o noivo.

“Minha querida Bela.

Deus ouviu suas preces, as preces de um anjo, e abençoou os meus
esforços.

Breve estaremos reunidos e para sempre. Viveremos na pobreza, a que a sorte
nos condena; mas não é só a opulência que tem o
direito de ser feliz neste mundo; ao contrário, muitas vezes ela não
acha no meio de seu luxo um instante da alegria que enche a casinha do pobre.

Teremos de passar ainda por grandes provanças, minha querida Bela;
não devo iludi-la. A vida é difícil para aqueles que
trilham a áspera vereda, e não se deixam arrastar pelas brilhantes
equipagens, que passam cobrindo-os de pó!
Não me assusta a luta; conto, para dar-me coragem, com o nosso amor,
que tem sido e há de ser o conforto de minha vida.

Às vezes perdido neste turbilhão da corte, minha querida Bela,
têm-me vindo também a mim sonhos d’ouro, castelos encantados
como fazem todos que têm imaginação. A riqueza para certos
indivíduos não passa de uma indigestão de dinheiro, é
na mão de quem compreende um dom sublime, quase celeste, porque transmite
ao homem um influxo da Providência: enxuga as lágrimas da miséria,
fortalece a virtude vacilante, e anima os nobres cometimentos.

Mas eu os espanco, a esses silfos tentadores, que agitam sussurrando suas
asas de ouro, e me refugio nos meus sonhos de amor. Sob as tuas brancas asas,
e me refugio nos meus sonhos de amor. Sob as tuas brancas asas, meu anjo da
guarda, estou com Deus; e posso desafiar o mundo. Sei para sempre. Ricardo.”

Soavam trindades na torre fronteira da matriz.

Ajoelhou-se Bela para rezar a “ave-maria”. As andorinhas esvoaçavam
pela fachada da igreja, retalhando os ares com vôos intermitentes. Já
caía a noite quando duas se encontraram diante da janela, beijando-se
com alegres chilidos, que assustaram a moça.

Ainda Bela não tinha rezado, tão absorvida estava em seus
pensamentos.

XXX

No dia em que Ricardo recusara a mão de Guida, espontaneamente oferecida,
chegou à casa de volta de Andaraí, atordoado ainda pelo procedimento
singular, como pela decisão de caráter dessa moça.

Eram três horas.

O jantar o esperava, e durante ele, a conversa com a dona da casa e a tagarelice
das crianças o distraíram da preocupação que trazia
e à qual desejava arrancar o espírito.

À tarde, fumando um charuto e sentado à janela do sótão
donde avistava as verdes encostas de Santa Teresa e mais longe o Corcovado,
o moço deixou-se ir à discrição do pensamento
que o levava para os acontecimentos daquela manhã. Não tardou
o envolvesse um desses castelos encantados de que falava na carta a Bela.

Imaginou-se outro homem, que não ele. Um moço pobre, de alguma
inteligência, lutando corajosamente com a sorte, mas sem o vínculo
de uma afeição, que o prendesse para sempre. Caminhava curvado
ao peso do trabalho, quando uma voz celeste o chama. Ergue os olhos, e vê
descer das nuvens a moça mais gentil, deslumbrante de beleza, cintilando
graça e espírito que lhe diz:
“Minha alma é virgem e pura, como o sorriso de que Deus a formou.
Nunca amei; não sei que mistério é esse da criação.
Ensinai-me vós a amar; acordai em mim as doces emoções
dessa felicidade que eu não conheço. A linguagem dos anjos que
eu falava no céu é doce; mas quero aprender em vossos lábios
outra linguagem mais suave e maviosa, a que entende o coração.
Eu sou a flor que nasce, cheia de fragrância, que toda guardei para
derramar em vosso seio: colhei-me.”
E o moço ficava enlevado a admirar a esplêndida formosura, não
podendo crer que Deus houvesse formado aquela sublime criatura e a conservasse
imaculada no regaço do céu, para enviá-la de repente
a ele, como um anjo, que o inundasse de felicidade. Mas interrompendo um instante
o afã, ajoelhava para admirar a peregrina imagem.

“Erguei-vos, dizia-lhe a moça. Meu senhor não há
de calcar o pó da terra. Tenho riquezas sem conta para dar-lhe. Quero
ser querida em um palácio, entre as magnificências do luxo, cercada
de tudo quanto seduz e deslumbra. Quero ser amada assim para que, no meio
de todos esses esplendores, ele só busque meus olhos, só deseje
meu sorriso.”
Desfraldando as asas, a imaginação de Ricardo bordou sobre o
gracioso tema um desses arabescos orientais, cheios de encantamentos e fascinações,
como são os contos árabes.

Quando ele surpreendeu-se no meio desse devaneio, teve um remordimento;
e para fugir aos enlevos da fantasia, asilou-se nas recordações
das puras afeições da família e dos santos amores de
sua infância.

Tomou a pena e escreveu a Bela a carta que este lera à janela, na
hora da ave-maria; depois conversou longamente com sua mãe, em duas
folhas de papel, renovando as reminiscências dos tempos que tinham passado
juntos em São Paulo antes da separação.

No dia seguinte recomeçou Ricardo a lida do escritório; e
o trabalho, que é o mais forte detersivo do coração,
apagou os vestígios da alucinação que sofrera. Todavia,
quando uma circunstância lhe recordava Guida, sentia-se o mancebo tomado
por um terror indizível, e estremecia com a idéia de cair outra
vez no sonho, ou antes no pesadelo d’ouro, que já uma vez fizera presa
nele.

Antes de findar a semana, estando Ricardo em seu escritório, recebeu
do carteiro sua correspondência de São Paulo. Dentro da carta
de D. Benvinda, que dava notícias de todos os seus, achou uma de Bela;
e guardou-a para a ler em casa, a sós, sem risco de o interromperem.

Avalia-se do espanto de Ricardo ao ler estas poucas linhas:

“Meu primo.

Um pressentimento, que não engana, diz-me que sou um obstáculo
em sua vida; e portanto o meu dever é afastar-me para que você
possa livremente seguir a brilhante carreira que lhe prometem seus talentos
e virtudes.

Outra, mais prendada e escolhida por Deus, fará sua felicidade, oferecendo-lhe
toda a sorte de alegrias e encantos, que eu não poderia dar, eu que
apenas tenho um coração. Esse o acompanhará de longe
com seus votos; e creia, meu primo, que outros não haverá mais
ardentes pela sua ventura.

Desde que nos separamos, meu querido pai insta para que aceite uma união,
que ele sempre desejou. Ocultei-lhe este segredo de família para não
afligi-lo, em compensação de tantos sacrifícios que você
aí sofria só; era justo que tomasse para mim unicamente essa
contrariedade.

Enquanto me julguei necessária à sua felicidade, tive forças
para resistir a meu pai; agora faltam-me, e também o direito de opor-me
à sua vontade, e recusar o destino traçado por ele, quando outro
não me resta, nem eu tenho mais que esperar do mundo.

Quando receber esta carta, já estará partido o vínculo
que nos unia; pois vou dar a meu pai o consentimento que me pede há
tanto tempo.

Sua prima e amiga
Isabel Lopes
20 de agosto de 1871.”

Por diversas vezes, Ricardo retrocedeu ao princípio da carta e releu
os períodos, para compenetrar-se do pensamento, que exprimiam essas
palavras. A surpresa e pasmo produzidos por tão inesperado teor tinham-lhe
embotado a compreensão; com os olhos fitos no papel, havia momentos
em que não via as letras, ou vendo-as, não sabia soletrá-las.

Passado o primeiro abalo, quando o mancebo pôde coligir as idéias
e refletir sobre o caso, sua mente procurou naturalmente a a explicação
do estranho acontecimento; e certo de a ter encontrado, deleitou-se em passá-la
e repassá-la no espírito.

Foi um consolo.

Para Ricardo a carta de Bela não era senão um engenhoso meio
de justificar sua ingratidão e perfídia. Cansada de esperar,
a moça de coração volúvel, resolvera casar com
o Felício Lemos, que além de arranjado, estava à mão.

A indignação do mancebo, a revolta do seu caráter em
face de tal procedimento, sobrepujou a mágoa de se ver esquecido, e
a dor de perder as mais doces ilusões de sua vida.

– E foi por essa mulher, que eu recusei um coração virgem,
e o futuro mais brilhante que podia sonhar em meus arroubos de imaginação!
À noite Ricardo saiu à procura de Fábio, a quem encontrou
na Rua do Ouvidor. Conseguiu trazê-lo à casa, para mostrar-lhe
a carta de Bela, e vazar em seio amigo a exuberância de sua alma.

Fábio informou-se do que havia, tratou o ocorrido com a sua habitual
leviandade, consolando Ricardo dessa insignificante derrota, que às
vezes, dizia ele, era o princípio dos mais esplêndidos triunfos.

– Vem dar um passeio comigo ao Carceler. Um sorvete e um charuto de Havana,
são os melhores específicos para esses achaques. O primeiro
apaga um incêndio mais chibantemente do que o coronel dos bombeiros;
o segundo desfaz em fumo a paixão a mais descabelada. Ontem ouvindo
o Rossi, fiz esta reflexão, que tem escapado aos mais profundos pensadores:
Se Otelo fumasse, não estrangulava Desdêmona, e Shakespeare não
poderia escrever aquela cena sublime do final; ficaria reduzido ao soco inglês.

Não ouvia Ricardo as pilhérias do amigo, nem deu fé
quando ele, no meio da sua parolice, eclipsou-se pela escada do sótão,
para ir pautear pela calçada do Carceler e Rua do Ouvidor, na esperança
de encontrar a mulher do conselheiro Barros.

No dia seguinte, recordando o golpe que na véspera sofrera, e estava
ainda aberto dentro n’alma, teve Ricardo uma veleidade, um desejo, um impulso…
Ver Guida. Para quê? Sob que pretexto? Em que intuito? Nem ele o sabia;
nem lembrou-se de inquirir de si próprio; pois logo repeliu essa idéia
como uma extravagância do espírito.

Durante as horas do trabalho, a agitação da cidade, o movimento
dos negócios, o rumor das ruas, distraíram o moço. À
tarde, porém, a lembrança que despontara pela manhã,
tornou-se em necessidade imperiosa: e ele não pôde resistir.

Deixou-se levar à toa, como um batel que voga ao fluxo das águas.
Chegando à praia de Botafogo, apeou-se do bonde e seguiu a pé
até o portão do palacete. Foi depois de entrar, que se lhe apresentou
a estranheza do passo.

Só a convite, e de longe em longe, viera à casa do Soares;
nunca tinha freqüentado as reuniões de todas as noites, nem mesmo
as partidas semanais do banqueiro. Que explicação tinha pois
essa visita avulsa e sem causa?
O resultado da reflexão foi sair apressadamente, receoso de que o vissem.
Não tinha porém dado cem passos, que já se arrependera
de não haver realizado o primeiro intento, e moderou o andar, pensando
em retroceder.

Avistou Fábio que saía nessa ocasião; foi-lhe ao encontro.
Aí estava o pretexto da visita.

– Vi-te passar. Estava em casa do Soares, no jardim; vem comigo; passaremos
lá a noite.

– Tens razão, respondeu Ricardo apertando-lhe a mão. Neste
momento preciso muito daquele gramo de loucura, com que o poeta manda temperar
o juízo; e que realmente é o melhor sal da razão, pois
a preserva de corromper-se.

Começava o crepúsculo.

Apesar da sombra que já havia no jardim, sobretudo onde copava o
arvoredo, perceberam as duas moças a profunda alteração
da fisionomia de Ricardo, não que estivessem descompostas suas feições,
mas havia nelas a impressão digna e fria da dor vencida após
uma luta heróica.

Guida envolveu em seu olhar compassivo o rosto do mancebo e murmurou dentro
d’alma:
– Como ele a amava!
Entretanto, D. Guilhermina procurava reanimar a conversa:
– É um milagre, vê-lo, já não digo em nossa casa,
porque a não ser uma visita de cartão, não lhe merece
mais; mas aqui! Nem passando lembrou-se de entrar.

– Tenho desculpa, minha senhora. Falta-me o tempo.

– Agora não a tem!
– Agora, por quê? perguntou Ricardo volvendo um olhar suspeitoso para
Fábio, que se eclipsou.

Guida estremeceu; e D. Guilhermina mordendo o beiço com um riso malicioso,
afastou-se do lado que tomara Fábio, tanto para evitar um novo lapso,
como para deixar os dois em liberdade.

Apoderou-se de Guida um enleio invencível, quando se viu a sós
com Ricardo, no jardim; e mais crescia sua perturbação com o
silêncio do moço, que de seu lado também parecia tomado
de súbito constrangimento.

Nesse momento, as salas iluminadas derramaram sobre o jardim o clarão
das janelas; e um murmúrio de vozes na entrada anunciou a chegada das
visitas habituais, que vinham passar a noite em casa do Soares.

– É melhor entrarmos, disse Guida; e correu ao encontro de Clarinha,
que passava com o barão de Saí.

Ricardo a acompanhou de longe, e instantes depois procurava nas conversas
e burburinhos da sala, aquele grão de sal de que ele carecia para serenar
a sua tristeza.

Mais de uma vez chegou-se para a filha do banqueiro com intenção
de lhe dirigir a palavra; mas alguma força oculta o tolhia, que afastava-se,
disfarçando o primeiro movimento.

Não escapou a Guida esta perplexidade. Convencida de que Ricardo
lhe desejava falar, mas retraía-se na presença das pessoas que
a cercavam, afastou-se um instante da roda das moças e cavalheiros
a pretexto de ir ao interior; na volta chegou-se ao piano, e demorou-se em
escolher uma peça para tocar.

Ricardo, recostado nesse momento ao vão de uma janela, foi talvez
a única pessoa que seguiu os movimentos da moça, enquanto ela
folheava o álbum, e não chamava a atenção ferindo
as teclas do instrumento.

Guida colocou o livro na estante, e afastando o banco com a ponta do pé,
volveu os olhos para Ricardo. Encontrando os dele, sentiu expandir-se a alma,
que veio abrir-se em flor num sorriso fagueiro.

Esperou ainda um momento e sentou-se. Debaixo de seus dedos mimosos cantaram
as teclas a súplica maviosa do dueto final de Romeu, escrito por Vaccai:
“Vieni, ah! vieni,
Mio bene, mia speme;
Fugiamo insiemi,
Amor ci condurra”.

Ricardo não ouviu as notas, como não vira o sorriso.

Vexado de que lhe surpreendesse a moça o olhar ansioso, dissimulara,
com intenção de aproximar-se logo depois, como atraído
pela música.

Com efeito assim fez, mas ao mesmo tempo que ele, chegava Clarinha, o Guimarães,
e todo o enxame de adoradores cercava o piano, levando o advogado a arredar-se,
o que aliás fez de bom grado.

Pouco depois era meia-noite. As famílias se retiravam; D. Paulina
com a filha as foram acompanhar até o portão, como de costume,
por fineza aos hóspedes e por passeio.

Guida, de braço com Mrs. Trowshy, aproximou-se de Ricardo:
– Como está a noite serena! disse a moça. Havemos de Ter uma
bonita manhã para ir a Andaraí, Mrs. Trowshy.

– E a lição de harpa?
– Que tem isso?
Voltou-se para Ricardo:
– É verdade! Quando leva aqueles papéis à avozinha? Creio
que ela precisa deles.

– Já devia ter ido… Talvez amanhã.

– Eu a prevenirei para esperá-lo.

Este curto diálogo passou desapercebido no meio do gorjeio das moças
que se despediam.

XXXI

No dia seguinte, às onze horas e meia, chegou Ricardo no Andaraí.

Achou na sala de visitas D. Leonarda recostada no sofá; Guida sentada
a seus pés na almofada desenhava à aquarela sobre uma mesinha
de charão para divertir a avó; e Mrs. Trowshy fazia “frivolidade”
( frivolité).

Guida estava triste.

A efusão de alegria que tivera na véspera a ver Ricardo, quando
já o sabia desobrigado da promessa que o separava dela, essa primeira
expansão de sua alma desvanecera-se mais tarde, durante a vigília.

Como uma gota de fel, caiu-lhe do espírito no coração
uma idéia, que a amargurou. O afã com que Ricardo aproximava-se
dela, logo depois da decepção, e sem dar tempo à alma
não já de esquecer, mas de acalmar-se, não estava revelando
o plano de uma vingança ou de um cálculo sôfrego?
Esteve a não ir ao Andaraí; mas pensou que o melhor era não
demorar essa crise de sua vida.

Viera; não com a alma cheia de enlevos e ternuras como a tinha na
véspera quando tocava Romeu, porém no desencantamento de um
coração que sente fanar-se morno bafo do aquilão, a primeira
bonina, que apenas começava a florir.

Desculpou-se o advogado na demora da restituição dos papéis;
elogiou a aquarela de Guida, o que levou a conversa para os desenhos de Ricardo
e as recordações do verão passado na Tijuca. Falou-se
da beleza das pitorescas montanhas, dos encantos de sítios tão
aprazíveis; e uma doce tinta de saudade ressumbrava nessa conversa
de passatempo.

Depois de um quarto de hora ou mais, vendo Ricardo que não havia
mutação de cena, e perdendo a esperança de uma longa
e íntima efusão, como ali tivera Guida com ele vinte dias antes,
ergueu-se com intenção de sair.

– O senhor ainda não viu a chácara da avozinha? É muito
bonita.

– Qual! disse a velha. Já foi, agora está maltratada.

– Quer dar um passeio? perguntou a moça.

– Com muito gosto! respondeu Ricardo.

– Vamos, Mrs. Trowshy.

A mestra estava pronta sempre para passear.

Querendo facilitar a Ricardo a entrevista, que ele desejava, e sentindo
ao mesmo tempo vexame de achar-se de todo a sós com o mancebo, Guida
escolhera o passeio, que lhe deixava toda a liberdade de movimentos para dissimular
as emoções e interromper a conversa a propósito.

O bando de moleques disparou adiante, como um rebanho de cabritos, quando
o soltam do redil pela manhã, e espalhou-se pela chácara, a
pretexto de apanhar frutas para nhanhã Guida, mas realmente para as
comerem eles e fazerem mil diabruras.

Mrs. Trowshy, que despedira da cancela pela rua afora, como bala de canhão,
e lá se fora em passo de carabineiro inglês assaltando um reduto,
depois de três voltas sentara-se esbaforida à sombra de uma jaqueira,
a debulhar um cacho de uva para refrescar-se.

Em frente da jaqueira passava uma rua de mangueiras, por onde vinham Guida
e Ricardo a par, em um silêncio que os embaraçava a ambos; mas
nenhum queria rompê-lo com banalidades, receando afastar o momento da
confidência e talvez impedi-lo.

Animou-se Ricardo afinal:
– Lembra-se do que me disse aqui nesta casa, há quase um mês,
quando nos despedimos? Que seu romance acabava alegre.

– É verdade! respondeu Guida. Eu disse e…

A moça conteve-se, receando lhe escapasse o segredo das lágrimas
que tinham orvalhado seu amor ao nascer.

Ricardo esperou um instante, mas vendo que o silêncio ia outra vez
envolvê-los, continuou:
– Pois o meu acabou triste, bem triste.

– Conte-me, disse Guida com bondade.

– Não vale a pena. Uma afeição de infância, que
lutou anos contra a adversidade para ser traída e ludibriada no momento
em que lhe sorria a esperança! Quem dá valor a estas futilidades
do coração? concluiu o mancebo em tom amargo.

– Compreendo quanto deve doer a perda de uma ilusão, observou a moça.

– Não é a perda de uma ilusão, mas a ruína de
minha vida inteira. O coração está morto; é uma
terra sáfara onde não brotará nunca mais a flor de uma
afeição. E é esta a maior felicidade que Deus me pode
conceder ainda neste mundo!
Volveu Guida um olhar tímido e queixoso.

– Por quê?
– Amar outra vez? Seria martírio incessante. Não me animaria
jamais a oferecer àquela a quem eu amasse os destroços de uma
vida despedaçada pela traição, os bocejos de uma alma
devorada pela dúvida. Oh! não! Se isso acontecesse por minha
desgraça, eu havia de adorá-la em silêncio, no mais recôndito
de minha consciência, quando não conseguisse arrancar do coração
esse espinho doloroso.

Com a fronte inclinada e o seio palpitante, escutava Guida as palavras de
Ricardo, que as proferia com o olhar vago, receando pousá-lo no semblante
da moça. Timidamente observou:
– Não conheço os mistérios do coração.
Mas penso que não pode haver maior júbilo do que seja esse de
reviver um coração morto, de apagar um passado triste, e criar
para aquele a quem se… estima, uma nova existência!
– Quantos encontraram no mundo um anjo como esse? perguntou Ricardo.

Guida não respondeu.

– Quando recebi a carta, que deu o golpe à minha vida, a princípio
não pude entender. Pensei estar louco. Li e reli; aquilo excedia minha
compreensão. Enfim a certeza penetrou-me como um raio, e senti-me como
arremessado do alto de um rochedo, que me dilacerara a alma. Reneguei tudo
quanto respeitava; descri das coisas mais santas; cheguei a duvidar de minha
mãe!… Era a vertigem; a dor veio depois, e atroz. Carecia de um coração
amigo, com quem desabafasse. Aqui só tinha Fábio; mas com ele
era profanar a minha desgraça. Lembrei-me da senhora. Talvez não
devesse; mas acreditei que me havia de compreender.

– Não se enagnou.

– E, não sei por quê, tinha um pressentimento de que isso me
havia de fazer bem: e fez. Estas poucas palavras que trocamos restituíram
a calma a meu espírito. Sentia vacilar-me a razão a modo de
ébrio; parecia-me que a consciência faltava-me, como a terra
embaixo dos pés; e agora estou outra vez seguro de mim; perdi as ilusões
e as crenças, mas conservo a possessão do eu; já não
receio que uma paixão ou um vício me arrebate na correnteza
como às alforrecas, que o mar lança à praia.

– Mostre-me a carta! murmurou Guida.

– Aqui a tem; eu a trouxe pensando que desejasse vê-la.

Recebeu Guida o papel com a mão trêmula, e procurou o abrigo
de uma mangueira, cujo grosso tronco a escondia, para ler sem despertar a
curiosidade da mestra. Ricardo voltou-se para não vexá-la.

Estava a moça comovida e palpitante. Aquele momento ia decidir de
seu destino; e era preciso que ela tivesse ainda uma vez a energia de curvar
a fortuna a seu império, e vencer ela mesma, de iniciativa própria,
os obstáculos.

Sua alma superior compreendia agora o assomo confuso, obscuro, travado de
hesitações e arrojos, que desde a véspera impelia Ricardo
para ela, sôfrego de abrir-lhe o coração. O fenômeno
que o mancebo não podia bem discernir em sua própria consciência,
ela o penetrava com a luz pura de seu nobre coração.

Com as mãos apertadas ao seio para recalcar a efusão de seu
júbilo, murmurou consigo:
– Ele me ama, sem o pensar. Quando viu-se livre, lembrou-se que nada o separava
de mim. Mas eu sou rica e o mundo não acredita que se possa amar uma
mísera criatura de carne, de preferência a uma barra de ouro!…
Ricardo duvidou de si, ele mo disse há pouco; julgou-se arrastado para
mim, não pelo afeto mas pelo interesse. Então, revoltando-se
contra si mesmo, em vex de me dizer: – “Sou livre, aceito” – ao
contrário, procura cavar um abismo que o separe para sempre de mim,
a fim de não sucumbir à tentação. Não pode
mais amar? Pertence à outra para sempre? Pois bem! Assim é que
eu o quero, para afastá-lo tanto desse pesadelo vivido sem mim, que
não se lembre de ter jamais amado a outra mulher.

Estes pensamentos não os alinhou Guida em palavras na mente, mas
desenhavam-se como figuras de painel iluminadas de repente por um jato de
luz. Também não duraram senão o tempo de abrir a carta
de Bela, que a moça amarrotara entre as mãos, quando comprimira
a arfagem do seio.

Leu Guida uma e duas vezes. Na Segunda, sua mão caiu-lhe desfalecida.
Compreendera tudo: divisara naquele papel mudo o pensamento de Bela como perscrutara
pouco antes o segredo do advogado através de suas palavras confusas.

Dobrou a moça a carta enquanto se dominava e aproximou-se de Ricardo:
– Bela o ama, como eu pressinto que havia de amar, se Deus não me houvesse
retirado sua graça.

– E esta carta?
– É uma sublime abnegação. Bela acreditou que era ela
quem a condenava à pobreza e à obscuridade. Enganaram-na certo,
asseverando que o senhor tinha outra afeição; fez o que devia:
renunciou à sua felicidade para não sacrificar aquele a quem
ama.

Ricardo abriu a carta que a moça lhe restituíra, e leu-a de
novo. Ali estava a alma de Bela, a santidade daquele coração
em todo esplendor. Fora preciso que a palavra pura e nobre de Guida lhe dissipasse
a névoa dos olhos para que ele visse.

Erguendo os olhos, pousou-os brandamente no rosto de Guida.

– A senhora que lê no coração de Bela, inspire-me! Que
devo fazer?
Guida voltou-se e colheu uma folha de avenca, nas fendas de um velho muro.
Era um disfarce para ocultar o soluço que rompia-lhe o seio.

– O seu dever. Bela espera a resposta; é ela que vai decidir de sua
sorte. Vá, vá a São Paulo e…

Pareceu que a voz de Guida afogava-se num soluço. Ricardo olhou,
e viu-a sorrindo acabar a frase:
– E seja feliz!
A moça foi ter com Mrs. Trowshy e instantes depois, terminado o passeio,
retirava-se Ricardo.

– Ela não pode amar-me!… pensou o moço em caminho para a
cidade. E eu… eu tenho medo de amá-la!
Dois dias depois partia o vapor de Santos. Ir a São Paulo, como lhe
dissera Guida, foi idéia em que não se demorou o ânimo
do advogado; não o permitia o escritório, nem o estado de seu
espírito. Resolveu porém escrever a Bela em termos que a demovessem
da suspeita de não ser amada, como o fora sempre.

– Serei eu quem me sacrifique à sua felicidade.

No momento de pôr a pena no papel corou: nunca poderia escrever o
que não sentisse; não falou a linguagem do coração,
mas a da razão.

“Bela

A vida é uma coisa bem séria, que não se deve fazer tema
de caprichos e arrufos.

Amamo-nos desde a infância, e juramos unir-nos para sempre. Pertencemo-nos
pois um ao outro, e nada neste mundo a não ser a violência pode
jamais separar-nos.

Vi em sua carta uma suspeita, que não devia demorar-se em seu espírito.
Considero-me seu marido perante Deus; e conheço meu dever.

Adeus, etc.

Ricardo”

Esta carta fria e austera ainda mais confirmou Bela na convicção
de que já não era amada como o fora outrora. Documento do nobre
caráter de Ricardo, tinha a secura do pergaminho.

Contudo a moça não precipitou o desfecho do drama íntimo
de sua vida, e deixou escoar-se o tempo, até que decorridos uns três
meses e insistindo seu pai em favor do Felício, arrancou-lhe o consentimento
para essa união.

XXXII

Depois da entrevista de Andaraí, Guida e Ricardo encontraram-se freqüentemente
na sociedade.

O advogado, cujo escritório rendia para lhe permitir mais que a decência,
sem sacrifício de alguma economia, procurava nas salas e reuniões
o sossego de espírito que não encontrava em seu gabinete de
trabalho, e nos passeios solitários pela calada da noite.

Não via Guida sem emoção; e se não cedia à
atração que a gentil menina exercia sobre ele, também
não a evitava como anteriormente, quando o acaso os aproximava. Ao
contrário, nessas ocasiões, se alguma circunstância não
o vinha distrair, ou se a moça não se afastava, ele se esquecia
com ela em alguma dessas conversas cintilantes, que lembrava-lhe o seu passeio
à “Vista dos Chins”.

Não se falava porém mais entre eles da matéria sentimental;
esse capítulo estava cancelado. Nenhum se animava a folheá-lo.

Como um homem, que tem consciência de sua força, e conta com
uma vontade inflexível para sofrear os mais veementes impulsos, Ricardo
permitia-se aquele inocente devaneio, que lhe caía nos seios d’alma
como orvalho celeste. Não tinha receio de trair-se; e pois bebia o
doce cordial como um enfermo, que precisa restaurar as forças.

Sabia retrair-se a tempo, e afastar a taça dos lábios, quando
sentia a primeira névoa da ebriedade desse amor impossível,
que ele rejeitara, mas não podia extirpar.

De seu lado Guida, se algumas vezes cedia ao embevecimento dessas conversações,
não despia a reserva com que tratava ultimamente a Ricardo; reserva
que era tão-somente o pudor de sua afeição, como o receio
de afagar um amor condenado, que devia morrer desconhecido, como tinha vivido.

Assim decorreram três meses.

A notícia do casamento de Bela, que se realizou em poucos dias, produziu
nas relações de Guida e Ricardo uma alteração
sensível.

A princípio a moça deixou-se influir um assomo de altivez.
Entendeu que não devia aceitar o sacrifício de Bela, por lhe
parecer humilhante. Preferia matar seu amor, sufocá-lo no seio, a profaná-lo
em um casamento frio, e rejeitado por outra.

Mais tarde, mudou completamente. Não vendo Ricardo, adivinhou que
era a dor da perda de Bela que o afastava dela, e teve ciúmes. Outra
vez sentiu o impulso generoso de disputar esse nobre coração
ao desânimo e à descrença, de povoar com seu imenso amor
o deserto daquela alma assolada pela desgraça.

Ricardo porém sucumbia ante a perda irreparável da mulher
a quem amara; e só então conheceu a profundeza do golpe que
sofrera. Por muito tempo ele pertenceu exclusivamente à mágoa
que enlutara sua vida e à saudade do passado amor.

Quando Guida o viu, desfigurado e pálido, respeitou a santidade dessa
dor, e aprendeu nela a resignar-se.

A continuação de se tratarem freqüentemente, depois de
gastas as primeiras expansões da mútua, mão não
correspondia afeição, tornou-os ao cabo de algum tempo indiferentes.
Encontravam-se já em emoção, como sem enleio.

No verão passado Guida passou em Petrópolis os dois meses
de mais forte calor. O pai deixou-lhe a escolha; ela não quis a Tijuca,
de que tanto gostava anteriormente.

Nessa ocasião espalhou-se a notícia de estar justo o casamento
de Guida com o Bastos. O Soares interpelado riu-se; e Guida já não
correspondeu às perguntinhas das amigas com um remoque, segundo o seu
costume.

Grande mudança se tinha operado no corretor. O Soares uma vez depois
do jantar enfiara-lhe o braço, e lhe dissera brincando:
– Meu caro Bastos, o que seduz as borboletas são as flores e não
os frutos. Já tens bastante dinheiro. Trabalha menos, e agrada mais.

– De que modo?
– Vês esta pedrinha? disse o Soares apontando para um seixo reluzente
entre a areia do passeio. Foi a correnteza d’água que a poliu; atira-te
na correnteza dos homens. A massa é boa, por força que há
de sair alguma coisa.

Saiu um homem elegante, de bom senso e inteligência elevada, que,
embora não dado a estudos teóricos, pôde desenvolver-se
com acerto e superioridade em qualquer assunto.

O Guimarães foi à Europa gastar a henrança do pai;
e o Nogueira, atordoado com a dissolução inesperada que lhe
gorou a candidatura, vai-se consolando na advocacia administrativa da sua
dupla derrota, a política e a matrimonial.

Mrs. Trowshy anda muito contente com a esperança de voltar breve
à Inglaterra na companhia de Guida, a qual naturalmente logo depois
do seu casamento fará uma viagem à Europa.

Fábio casou-se; mora em São Paulo, e tem um projeto de estrada
de ferro para Santo Amaro, primitiva colônia alemã, onde se faz
boa manteiga fresca, igual à de Petrópolis. Já requereu
o privilégio, e conta ganhar uma centena de contos, para vir gozar
da corte, de que tem saudades.

O visconde da Aljuba, consta que anda arranjando um escritor para zurzir
o autor deste livro, por tê-lo copiado tão ao vivo; portanto
prepare-se o público para ler as rajadas que não tardam a aparecer
por aí em estilo de níquel.

Informaram-me também que o Sr. Benício já foi à
cocheira do Porto, examinar o mais rico dos cupês de gala, a fim de
estar preparado para encomendá-lo apenas se marque o dia do casamento
de Guida.

Por seu gosto não seria Bastos o noivo; pois o bom do amanuense não
perdeu ainda o teiró que tomara ao corretor pela concorrência
ativa que este lhe fazia antigamente no artigo das encomendas. Mas, quando
se tratava de obsequiar, não havia sacrifício que fizesse recuar
o heróico Sr. Benício.

Assim terminaram estes “sonhos d’ouro”, tão parecidos com
os outros que a cada instante por aí acendem e se apagam, como os arrebóis
da tarde.

FIM

CARTA AO EDITOR

Ilmo. Sr. Garnier

Se ainda não tirou a lume a Segunda parte dos Sonhos d’ouro, peço-lhe
o favor de mandar imprimir o incluso pós-escrito que leva a última
notícia de nossos personagens.

Amigo e atento venerador

SÊNIO

S.C. 6 setembro, 1872

PÓS-ESCRITO

Há quinze dias teve Ricardo de assistir a uma vistoria, em questão
de terras, para o lado de Jacarepaguá.

Na volta lembrou-se de visitar D. Joaquina, a quem não via desde
muito. Achou a casinha e a dona no mesmo estado: velhas como as deixara, mas
contentes e sossegadas.

A tia de Fábio recebeu o advogado com muita festa e agasalho; perguntou
notícias do sobrinho e da nova sobrinha; e pediu a Ricardo que lhes
mandasse muitas e muitas recomendações, quando escrevesse.

Eram duas horas. Já D. Joaquina tinha jantado; mas havia carne assada
e improvisou-se uma fritada, que Ricardo aceitou de bom grado, para Ter o
prazer de passar com a velha o resto da tarde. O advogado comeu com apetite;
e não trocaria o copo d’água cristalina, que bebeu depois do
melado, pelo mais esquisito champanha.

– O senhor é que ainda não quis casar? disse D. Joaquina,
preparando-lhe uma chávena de café.

– Creio que fiquei para tio, disse Ricardo sorrindo.

– Qual!… A dificuldade é encontrar aí algum peixãozinho
que lhe ponha um feitiço; como um que veio aqui outro dia.

– Não tenha receio, trago uma figa, que me livram do quebranto, tornou
Ricardo no mesmo tom.

– Deixe ver, disse a velha.

– Estão lá dentro, no coração.

A velha riu-se. E o advogado acendendo o charuto saiu a dar uma volta de
passeio a pé, enquanto se ia buscar ao pasto o “Galgo”, que
naturalmente andava também matando saudades, pois desde muito tempo
residia na corte à Travessa do Espírito Santos, n. 19, cocheira
do Viana.

Tomou Ricardo pelo mesmo caminho em que à primeira vez o encontramos,
e não tinha dado vinte passos que as recordações de outros
tempos surgiram para envolvê-lo como o aparato de uma cena armada de
improviso.

Ouviu tropel de animal; reconheceu o “Galgo”; viu passar Fábio;
trocou palavras com ele; perdeu-se entre os tufos do arvoredo; sentiu o sobressalto
que tivera outrora, despertado por um riso argentino; e contemplou com entusiasmo
de artista, e um enlevo que então não sentira, o gracioso vulto
da gentil amazona.

Depois correram as vistas; novas cenas sucediam-se; e a imaginação
as povoava de recordações vivazes, que entretanto pareciam extintas.

Este volver ao passado incomodava Ricardo, que pensou escapar-lhe fugindo
àquele sítio.

Ao voltar uma curva descobriu duas senhoras, que se aproximavam lentamente
pelo mesmo caminho; e qual não foi seu espanto reconhecendo Guida acompanhada
de Mrs. Trowshy.

Desde certo tempo a saúde de Guida se alterara. Não se queixava,
nem tinha mesmo incômodo ou mal determinado. Perdera a alegre vivacidade;
e sentia invadi-la um abatimento indefinível. Sua vida nos meses últimos
não era mais do que um lento delíquio; parecia-lhe que estava
desmaiada. As flores, se é que têm sensibilidade, devem experimentar
uma impressão igual quando murcham.

Ultimamente o desfalecimento chegara ao ponto de inquietar a família;
os médicos receitaram as duas panacéias do costume, o casamento
e o campo. Pobres dos médicos! Queixam-se deles. Ah! Se tivessem na
sua farmacopéia certas drogas preciosas, como o amor, a ambição,
a glória, que de curas milagrosas não fariam!
Quando se tratou de escolher o arrabalde, Guida pediu a Tijuca; não
que ela esperasse tirar proveito para a saúde. Bem longe disso; era
um desejo recôndito de rever aqueles sítios, e saciar-se das
reminiscências que eles guardavam. Matassem embora essas árvores,
como a mancenilha; queria embriagar-se de seus perfumes.

Lembrava-se da Africana que vira representar ultimamente; e invejava aquela
morte, ela que dois anos antes, naquelas mesmas montanhas, zombava de Safo,
a mais ilustre entre as mártires do amor.

Guida trajava naquela tarde um vestido cinzento e, sobre ele, um casaco
preto guarnecido de marta. A alvura imaculada de seu rosto destacava-se nesse
trajo escuro, entre os negros cabelos, com uma lividez que assustava: parecia
o perfil de uma estátua em alabastro.

Reconhecendo Ricardo, teve a moça uma violenta comoção,
e tomou para suster-se o braço da mestra, que atribuiu o choque a susto
e debilidade da moléstia.

– Não sabia que estava na Tijuca, disse Ricardo.

– Viemos há oito dias.

– Ela tem andado doente; o doutor mandou tomar ares, disse Mrs. Trowshy
em português arrevesado.

– Há de fazer-lhe bem a Tijuca, tornou Ricardo.

– À saúde?… perguntou Guida.

E abanou a cabeça desfolhando um triste sorriso. Foi então
que Ricardo reparou o estado de abatimento da moça. O talhe, tão
esbelto e grácil, retraía-se como o cálix do lírio
do vale quando fana-se, e os olhos de embaciados, só intercadentes,
como o trepidar da estrela, rutilavam para desferir lampejo febril.

Não se concebe a comiseração que sentiu Ricardo notando
aquele deperecimento lento de uma beleza, que ele vira tão esplêndida.
Lágrimas umedeceram-lhe os olhos; e teve impulso de ajoelhar-se aos
pés da mártir, sacrificada ao paganismo social.

Lembrou-se da conversa que tivera com a moças dois anos antes, pouco
distante daquele sítio. Guida era uma das vítimas desse martirológio
da família, que poucos sabem e ninguém compreende. Nascera rica;
educaram-na para a opulência; e a grandeza sufocava.

Havia um meio de salvar-se; era esfarfalhar sua alma pelas salas em afeições
efêmeras; tornar-se a moça da moda, faceira, namorada, perseguida
e disputada por um enxame de adoradores. A dignidade inata fechou-lhe essa
válvula do coração.

Guida o guardara virgem e intacto para o seu primeiro amor; porém
este não o encontrara no mundo. Por quê? Não havia um
homem que a merecesse? Guida estimava o homem, mais do que ele valia, porém
na pureza do ideal; por isso os indivíduos da espécie lhe pareciam
escorços, senão caricaturas.

– Por que não sou eu o homem que ela sonha, disse Ricardo; por que
não me deu o criador um raio do fogo sagrado para reanimar esta vida
que se extingue, para reter na terra esta bela mulher que se está transformando
em anjo?
Guida sentara-se à beira do caminho, numa leiva coberta de relva, e
acompanhava o recorte das nuvens com o olhar mórbido, que às
vezes eclipsava sob os longos cílios e volvia rápida e sutilmente
ao rosto de Ricardo.

– Deve passear! disse Ricardo para romper o silêncio.

– Ela não gosta mais de sair como dantes, observou Mrs. Trowshy.

– Fatiga-me tanto! tornou Guida. Já três vezes viemos para
este lado; e ainda não pude chegar até a outra volta.

– Quando estiver mais forte.

– Tenho tanta vontade! Mas hoje hei de ir; já descansei. Venha conosco!
disse pousando o olhar súplice no semblante do moço.

Não era longe a volta a que a moça desejava chegar.

– Lembra-se? perguntou a Ricardo. Aqui nos encontramos pela primeira vez.

– Não esqueceu?
– E a nossa flor… Ainda estará no mesmo lugar?
Ricardo rompeu o arvoredo, e procurou:
– Aqui está ela!
Guida aproximou-se.

O arbusto, reverdecido com as águas do inverno, começava a
florescência. Nas pontas dos renovos germinavam já os lindos
cálices de nácar, com os pjngos d’ouro.

Roçou Guida as mãos pelas folhas glabras do arbusto como para
sentir-se acariciada pelo doce frolido:
– Sonhos d’ouro! murmurou.

– É verdade! exclamou Ricardo sorrindo.

– Nem se lembrava! disse Guida com leve exprobração.

– Não culpe a pobre florinha, se o vento da tempestade a mirrou e
cobriu de pó, tornou Ricardo apanhando os secos despojos da passada
floração.

– Estes morreram, murmurou Guida olhando as flores murchas, mas vão
nascer. E os meus?
A voz da moça expirou nos lábios, e exalou-se em um suspiro:
– Os meus nasceram aqui também, porém morreram para sempre!
Ergueu Ricardo surpreso os olhos, e viu o semblante da moça banhado
em lágrimas.

– Guida! exclamou ele.

E cingiu-lhe a cintura com o braço para ampará-la, porque
a via desfalecer.

– Eu queria morrer aqui! balbuciou ela descaindo-lhe a fronte ao ombro de
Ricardo, e reclinando o talhe ao peito onde conchegou-se hirta, sem movimento.

Mudo e estático, Ricardo não sabia o que fizesse; não
tinha forças para separa de si o corpo desfalecido, nem ousava observar-lhe
o semblante, temendo nele ver a máscara da morte.

Foi rápido o lance, e durou enquanto Mrs. Trowshy, que duas vezes
investira com o arvoredo, mas fora repelida por causa da sua rotundidade,
fazia volta para aproximar-se.

– Guida! repetiu Ricardo aflito.

A moça ergueu a fronte e engolfando-se no olhar que banhou o rosto
do mancebo, sorriu:
– Cuidei que morria… e era feliz!
Ricardo pousou um beijo casto na fronte da moça.

– Há de viver!
– Para quem?…

– Para mim!
– Por ele e para ele, meu Deus! disse ela ajoelhando com as mãos erguidas
ao céu.

– What!… gritou a mestra vendo Guida naquela posição.

Ergueu-se Guida com um sorriso:
– Estava agradecendo a Deus a bênção que me enviou.

E abraçando-a com efusão, cobriu-a de beijos.

– Child! Dear child!… exclamava a inglesa esmagando as lágrimas
nos olhos.

***

À última hora.

O casamento de Guida com Ricardo efetua-se qualquer destes dias.

O Bastos consolou-se com a sociedade que lhe deu o Soares em sua casa bancária.

O Benício anda em uma dobadoura: da modista para o Carceler, da florista
para a cocheira. Ninguém lhe encomendou cousa alguma; mas ele se julgaria
desonrado se não tomasse parte ativa no grande acontecimento.

FIM DO FIM

OS SONHOS D’OURO

Suscitou este livro, recentemente publicado, duas censuras ao distinto folhetista
do Diário do Rio.

Nada aproveita mais à propagação das boas letras do
que seja a crítica leal e inspirada pelo sentimento artístico.
A mim deleitam os certames literários.

Argúi o ilustrado crítico de personagens estrangeiros as duas
figuras principais do romance.

“Guida, a jovem caprichosa e aristocrática, Ricardo, o homem
dos devaneios e do orgulho intelectual, são tipos naturais da nossa
sociedade íntima, tão franca e democrática?”
Eis sob a forma da interrogação a primeira censura.

Antes de tudo, não disse o autor que ia esboçar os seus personagens
pelo prisma da vida íntima. Bem ao contrário, os apresenta ele
a maior parte das vezes fora da intimidade da família, em passeio ou
na convivência de pessoas estranhas.

Feita esta observação, entro com a crítica.

Por que razão não apresentará nossa sociedade, a mundana
ou a íntima, o tipo de uma menina caprichosa e aristocrática?
Não há capricho no Brasil?
Aqui as rosas são, como dizia Mílton das do Éden, sem
espinhos (without thorn)?
Também será deserdada de toda superioridade esta raça
brasileira, a ponto de não sentirem os espíritos elevados quaisquer
assomos da aristocracia natural que não vem da linhagem, mas de alguma
preeminência social, chame-se esta dinheiro, talento ou posição?
Desconhece a vida fluminense quem negar a existência do que se chama
entre nós a “alta sociedade”, embora sem o esplendor do grand
monde em Paris e da high life em Londres.

Se o ilustrado crítico chegasse à janela da sua tipografia
em um dia de festa, veria passar-lhe diante dos olhos não uma, senão
muitas moças mais caprichosas e aristocráticas do que a Guida.

Mas onde está a aristocracia de Guida?
Não nos diz o ilustrado crítico, e pois força-nos a conjeturar,
o que será longo e fastidioso. Podia forrar-nos a esse trabalho apontando
os fatos.

Estará a aristocracia de Guida no passear na Tijuca em cavalo do
Cabo? Em trazer roupão de caxemira e luvas de peau de Suède?
Em Ter uma governanta e criado estrangeiro para acompanhá-la?
Creio que a sociedade fluminense em peso protestaria contra semelhante apoucamento
de nossa corte. Não é preciso ser filha de capitalista para
ter semelhante tratamento.

Talvez que o severo crítico sentisse o ressaibo de estrangeirismo
no fato de trazer Guida em sua carteira uma nota de cinqüenta mil-réis
para fazer com ela uma esmola disfarçada por uma travessura.

Se ainda não desapareceu em todas as zonas da sociedade fluminense
o tempo do “papai me dá um vintém”, não é
menos certo que um melhor princípio de educação doméstica
já condenou aquela tacanha e mesquinha inquisição familiar,
que excedia-se em preparar a massa dos hipócritas, dos avaros e dos
perdulários.

É indispensável habituar um homem desde criança a lidar
com esse tóxico perigoso, que se chama dinheiro; do contrário
corre o inexperiente o risco de embriagar-se com ele; e essa embriaguez produz
em de dous efeitos: o delirium tremens da prodigalidade, ou o idiotismo da
avareza.

Atualmente é comum das famílias ricas terem as filhas seus
alfinetes, e nas pobres, quando as posses dos pais não chegam para
essa verba, as moças laboriosas formam com os seus trabalhos de agulha
os pequenos pecúlios, com que vão acudindo às exigências
do toucador, sem a necessidade e o vexame de estarem a cada instante importunando
os pais com o pedido de dinheiro para uma fita, um grampo, um crochete. (Deixem
passar essa aclimação que é irmã do colchête,
melhor do que crochê.)
Que resta da inculcada aristocracia de Guida?
Uns desperdícios feitos pela moça, que dava chocolate a comer
ao seu cavalo e mandava-o lavar com vinho em vez de aguardante.

Estas e outras extravagâncias não são ditas pelo autor,
mas referidas por uma das personagens, em cujas palavras ele por certo não
jura. Bastava este simples reparo para não se tomar a rigor aquelas
coisas, dando ao contrário o desconto à exageração
habitual dessa murmuração social que serve de tema às
palestras.

Mas prescinda-se da atenuação. Em um país onde tanto
se esbanja com extravagâncias, onde homens sérios queimam centenas
de contos em baboseiras, não se concebe que a filha de um banqueiro
pudesse ter quejando capricho? Será necessário ir às
sociedades da velha fidalguia para encontrar exemplos dessas dissipações?
Ao contrário, o traço brasileiro está aí se revelando.
Desses caprichos não se lembraria Guida se, apesar de rica, não
se ocupasse com os arranjos de casa e não tivesse as chaves da despensa.

Passemos a Ricardo.

Em que é que os devaneios e o orgulho intelectual repugnam com a
sociedade brasileira, aponto de não poderem germinar em seu seio?
Não nos disse a crítica e era o essencial.

Neste país dos trópicos, onde a própria natureza devaneia
nas cambiantes da luz, no capricho das formas, nos contrastes do belo; nestas
naturezas meridionais de imaginação vagabunda, cismar será
acaso uma aberração?
O orgulho da inteligência também não vinga nesta terra
onde ele se ostenta todos os dias desde o legítimo brio do talento
laborioso até a fofa vaidade da “suficiência” lerda
e obesa, que refocila na reputação mal ganha?
Nem um nem outro destes dois senões tinha-os Ricardo que entretanto,
como homem ou como personagem, não estava isento de defeitos.

Longe de ser o “homem dos devaneios”, Ricardo é o homem
prático, preocupado dos interesses positivos da vida, compenetrado
de sua grave responsabilidade como chefe de uma família não
pequena e paupérrima que tem nele o único arrimo.

Professa a advocacia, donde espera tirar recursos; luta com uma corajosa
tenacidade contra as dificuldades do tirocínio. Nas horas de lazer
não faz verso, desenha, como eu costumo fazer às vezes, à
toa e por desfastio, sem nunca ter aprendido; e confesso que esses grosseiros
empastes me divertem.

Aí vai esse neologismo, feito com a nossa mobília cá
de casa (do verbo empastar) para traduzir o pastiche, que os franceses trouxeram
do italiano pasticcio.

Quanto a orgulho de inteligência, é coisa de que o moço
não tinha nem sombras. Em suas palavras não há uma alusão
à sua capacidade; não trai aspirações literárias
nem políticas; não sonha com a glória. Sua preocupação
é, para o coração, o amor da família e a afeição
de uma moça; para a razão, a posse de vinte contos, necessária
para assegurar o bem-estar dos seus.

São dois colegas que de passagem e em ocasiões diversas fazem
alusão “a seu talento”; pois ele o tinha, se o autor não
se enganou em dar o nome a alguma dessas fosforescências que usurpam
aí pelo mundo esse título.

Creio ter exaurido a primeira pecha de estrangeirismo; e se alonguei-me
foi pelo sistema da crítica, incômodo e laborioso para o autor,
que deseja defender o seu livro, pois, além da tarefa de arcar com
a habilidade do crítico, é obrigado a adivinhar-lhe os motivos.

Tachando as duas personagens principais de estrangeiras, deu a entender
que destoavam da nossa “sociedade franca e democrática”.

Mas não será franca e democrática a sociedade onde
se passam as cenas do romance? Onde dois moços pobres e desconhecidos
são convidados a jantar, logo depois de rápido conhecimento,
feito pela manhã em um encontro? Onde a fidalguia é representada
por titulares de carregação, como um barão que foi tropeiro,
um visconde que foi belchior, e um conselheiro que tem casa de consignações?
Uma observação ainda.

No romance de costumes, e não sei se os Sonhos d’ouro podem levar
tão alto suas pretensões, nem todas as personagens são
tipos, nem todas figuram na “comédia social”, de que o autor
aproveita um ato ou um trecho.

As principais na grande parte dos casos são atores no drama, que
formam o esqueleto do livro, e lhe tecem o enredo, fibra vital dessa espécie
de obra cujo fim é antes de tudo o conto, a fábula, que pretende
o espírito e o deleita.

Divaguem como queiram os modernos discípulos de Aristóteles:
aquele é o escopo do romance, o mais não passa de acessórios
e ornatos, às vezes é certo, de tão subido preço,
que sobrepujam o todo, como os diamantes de que se bordam as vestes.

Nem Guida, nem Ricardo são tipos, mas caracteres formados pelas nossas
condições sociais, idiossincrasias, como outras que aí
estão se reproduzindo ao infinito, sob a influência de um concurso
qualquer de circunstâncias.

A diferença entre um tipo e um caráter não careço
de a determinar, pois não a ignora o ilustrado crítico. O tipo
é moral; o caráter é psicológico. Este só
contraste basta: dá-nos ela outra importante aferição.
O tipo forma-se exteriormente pelo molde social; o caráter é
uma criação espontânea, que se produz internamente pelas
modalidades da consciência.

O marinheiro, o soldado, o estudante, o advogado, etc., são tipos
de maior ou menor relevo. O avaro, o egoísta, o ambicioso, são
caracteres que variam como as folhas de uma árvore e os logaritmos
de uma mesma forma natural.

Fazendo aplicação destes prolegômenos da crítica
a nossas personagens, não será difícil discernir o que
pertence ao caráter e o que ao tipo, em cada uma delas.

Em Guida a altivez do gênio, a elegância fidalga, os caprichos
dissipadores, a isenção da alma, tudo isto é do caráter,
no qual sente-se a leve impressão da educação inglesa.
O que há de típico nessa figura é a forma de que se revestem
suas travessuras, a garrulice brasileira desse lábio malicioso, o impulso
de caridade que se expande traquinando, o modo por que apesar da riqueza vive
sem luta no meio de uma sociedade que lhe não convém.

Em Ricardo o caráter revela-se nos escrúpulos de probidade
e no pudor da pobreza, que os afasta dos círculos onde arrota-se ouro,
não por orgulho ou inveja, mas pelo recato da dignidade.

O homem que não jantou, curte sua fome em casa e não vai espiar
a mesa farta dos ricos, sob pena de ser um mendigo de casaca. A vida é
um banquete, onde nem todos são convivas, como disse com lúgubre
ironia o infeliz Gilbert; porém muitos ficam à porta.

Ricardo pensava por esta forma; se bem, se mal, é o que a crítica
filosófica devia decidir, mas absteve-se.

A profissão de advogado, única esperança de decente
ganha-pão para ele que não tinha proteções, nem
se encaminhara a outras profissões igualmente independentes, como o
comércio e a indústria; as recordações de S. Paulo
e as amizades e os amores ali tecidos com as noitadas do tempo de estudante;
o tom da amizade escolástica e fraternal que o liga a Fábio;
o seu modo de viver; eis o que há de típico em Ricardo, e não
o viu o ilustre crítico por estar sob o domínio de uma prevenção.

Havemos de chegar a ela, a seu tempo.