As Viagens – Olavo Bilac

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Olavo Bilac

I

Primeira migração.

Sinto as vezes ferir-me a retina ofuscada
Um sonho: – A Natureza abre as perpétuas fontes;
E, ao dano criador que invade os horizontes,
Vejo a Terra sorrir à primeira alvorada.

Nos mares e nos céus, nas rechãs e nos montes,
A Vida canta, chora, arde, delira, larada.
E arfa a Terra, num parto horrendo, carregada
De monstros, de mamuts e de rinocerontes.

Rude, uma geração de gigantes acorda
Para a conquista. A uivar, do refugio das furnas
A migração primeira, em torvelins, transborda.

E ouço, longe, rodar, nas primitivas eras,
Como uma tempestade entre as sombras noturnas,
O estrupido brutal dessa invasão de feras.

II

Os fenícios.

Ávida gente, ousada e moça! Ávida gente!
Desse estéril torno, desse areal maninho
Entre o Líbano e o mar da Síria, – que caminho
Busca, turvo de febre, o vosso olhar ardente?

Tiro, do vivo azul do pélago marinho;
Branca, nadando em luz, surge resplandecente…
Na água, aberta em clarões, chocam-se de repente
Os remos. Rangem no ar os velames de linho.

Hiram, com o cetro negro em que ardem pedrarias,
Conta as barcas de cedro, atupidas de fardos
De ouro, púrpura, ônix, sedas e especiarias.

Sus! Ao largo! Melcarte abençoe a partida
Dos que vão de Sídon, de Gebel e de Antardus
Dilatar o comércio e propagar a Vida!

III

Israel.

Caminhar! caminhar!… O deserto primeiro,
O mar depois… Areia e fogo… Foragida,
A tua raça corre os desastres da vida,
Insultada na pátria e odiada no estrangeiro!

Onde o leite, onde o mel da Terra Prometida?
– A guerra! a ira de Deus! o êxodo! o cativeiro!
E, molhada de pranto, a oscilar de um salgueiro,
A tua harpa, Israel, a tua harpa esquecida!

Sem templo, sem altar, vagas perpetuamente.
E, em torno de Sião, do Líbano ao mar Morto,
Fulge, de monte em monte, o escárnio do Crescente:

E, impassível, Jeová te vê, do céu profundo,

Náufrago amaldiçoado a errar de porto em porto,
Entre as imprecações e os ultrajes do mundo!

IV

Alexandre.

Quem te cantara um dia a ambição desmarcada,
Filho da heráclia estirpe! e o clamor infinito
Com que o povo da Emátia acorreu ao teu grito,
Voando, como um tufão, sobre a terra abrasada!

Do Adriático mar ao Índus, e do Egito
Ao Cáucaso, o fulgor do aceiro dessa espada
Prosternava, a tremer, sobre a lama da estrada,
Ídolos de ouro e bronze, e esfinges de granito.

Mar que regouga e estronda, espedaçando diques,
– Aos confins da Ásia rica as falanges corriam, Encrespadas de fúria
e erriçadas de piques.

E do sangue, do pó, dos destroços da guerra,
Aos teus pés, palpitando, as cidades nasciam,
E a Alma Grega, contigo, avassalava a Terra!

V

César.

Na ilha de Seine. O mar brame na costa bruta.
Gemem os bardos. Triste, o olhar por céus em fora
Uma druidisa alonga, e os astros mira, e chora
De pé, no limiar de tenebrosa gruta.

Abandonou-te o deus que a tua raça adora,
Pobre filha de Teut! César aí vem! Escuta
O passo das legiões! ouve o fragor da luta
E o alto e crebro clangor da bucina sonora!

D05 Alpes, sacudindo as asas de ouro ao vento,
As grandes águias sobre os domínios gauleses
Descem, escurecendo o azul do firmamento…

E já, d0 Interno mar ao mar Armoricano,
Retumba o entrechocar dos rútilos paveses
Que carregam a’ glória o imperador romano.

VI

Os bárbaros.

Ventre nu, seios nus, toda nua, cantando
Do esmorecer da tarde ao ressurgir do dia,
Roma lasciva e louca, ao rebramar da orgia,
Sonhava, de triclínio em triclínio rolando.

Mas lá da longe Cítia e da Germânia fria,
Esfaimado, rangendo os dentes, como um bando
De lobos o sabor da presa antegozando,
O tropel rugidor dos bárbaros descia.

Ei-los! A erva, aos seus pés, mirra. De sangue cheios
Turvam-se os rios. Louca, a floresta farfalha…
E ei-los, – torvos, brutais, cabeludos e feios!

Donar, Pai da Tormenta, à frente deles corre;
E a ígnea barba do deus, que o incêndio ateia e espalha, Ilumina
a agonia a esse império que morre…

VII

As Cruzadas.
(DIANTE DE UM RETRATO ANTIGO.)

Fulge-te o morrião sobre o cabelo louro,
E avultas na moldura, alto, esbelto e membrudo,
Guerreiro que por Deus abandonaste tudo,
Desbaratando o Turco, o Sarraceno e o Mouro!

Brilha-te a lança à mão, presa ao guante de couro.
Nos peitorais de ferro arfa-te o peito ossudo,
E alça-se-te o brasão sobre a chapa do escudo,
Nobre: – em campo de blau sete besantes de ouro.

"Diex le volt!" E, barão entre os barões primeiros

Foste, através da Europa, ao Sepulcro ameaçado.
Dentro de um turbilhão de pajens e escudeiros…

E era-te o gládio ao punho um relâmpago ardente!
E o teu pendão de guerra ondeou, glorioso, ao lado
Do pendão de Balduíno, imperador do Oriente.

VIII

As Índias.

Se a atração da ventura os sonhos te arrebata,
Conquistador, ao largo! A tua alma sedenta
Quer a glória, a conquista, o perigo, a tormenta?
Ao largo! saciarás a ambição que te mata!

Bela, verás surgir, da água azul que a retrata,
Catai, a cujos pés o mar em flor rebenta;
E Cipango verás, fabulosa e opulenta,
Apunhalando o céu com as torres de ouro e prata.

Pisarás com desprezo as pérolas mais belas!
De mirra, de marfim, de incenso carregadas,
Se arrastarão, arfando, as tuas caravelas.

E, a aclamar-te Senhor das Terras e dos Mares,
Os régulos e os reis das ilhas conquistadas
Se humilharão, beijando o solo que pisares…

IX

O Brasil.

Para! Uma terra nova ao teu olhar fulgura!
Detém-te! Aqui, de encontro a verdejantes plagas,
Em carícias se muda a inclemência das vagas…
Este é o reino da Luz, do Amor e da Fartura!

Treme-te a voz aleita às blasfêmias e às pragas,
Ó nauta! Olha-a, de pé, virgem morena e pura,
Que aos teus beijos entrega, em plena formosura,
– Os dous seios que, ardendo em desejos, afagas…

Beija-a! O sol tropical deu-lhe à pele doirada
O barulho do ninho, o perfume da rosa,
A frescura do rio, o esplendor da alvorada…

Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira!
E farta-te de amor nessa carne cheirosa,
Ó desvirginador da Terra Brasileira!

X

O Voador.

"Padre Bartolomeu Lourenço de
Gusmão, inventor do aeróstato,
morreu miseravelmente num
convento, em Toledo, sem
ter quem lhe velasse a agonia."

Em Toledo. Lá fora, a vida tumultua
E canta. A multidão em festa se atropela…
E o pobre, que o suor da agonia enregela,
Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua.

Agoniza o Voador. Piedosamente, a lua
Vem velar-lhe a agonia, através da janela.
A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela,
E entre as névoas da morte uma visão flutua:

"Voar! varrer o céu com as asas poderosas,
Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,
Os continentes de ouro e fogo da amplidão!…"

E o pranto do luar cai sobre o catre imundo…
E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão…

XI

O Pólo.

"Pára, conquistador intimorato e forte!
Pára! que buscas mais que te enobreça e eleve?
E tão alegre o sol! a existência é tão breve!
E é tão fria essa tumba entre os gelos do norte!

Dorme o céu. Numa ronda esquálida, de leve,
Erram fantasmas. Reina um silêncio de morte.
Focas de vulto informe, ursos de estranho porte
Morosamente vão de rastros sobre a neve…"

Em vão!… E o gelo cresce, e espedaça o navio.
E ele, subjugador do perigo e do medo,
Sem um gemido cai, morto de fome e frio.

E o Mistério se fecha aos seus olhos serenos…
Que importa? Outros virão devassar-lhe o segredo!
Um cadáver de mais… um sonhador de menos…

XII

A Morte.

Oh! a jornada negra! A alma se despedaça…
Tremem as mãos… O olhar, molhado e ansioso, espia,
E vê fugir, fugir a ribanceira fria,
Por onde a procissão dos dias mortos passa.

No céu gelado expira o derradeiro dia,
Na última região que o teu olhar devassa!
E só, trevoso e largo, o mar estardalhaça
No indizível horror de uma noite vazia…

Pobre! por que, a sofrer, a leste e a oeste, ao norte
E ao sul, desperdiçaste a força de tua alma?
Tinhas tão perto o Bem, tendo tão perto a Morte!

Paz à tua ambição! paz à tua loucura!
A conquista melhor é a conquista da Calma:
– Conquistaste o país do Sono e da Ventura!

A Missão de Puma

(Do Evangelho de Buda.)

…………………………………………………….

Ora Buda, que, em prol da nova fé, levanta
Na Índia antiga o clamor de uma cruzada santa
Contra a religião dos brâmanes, – medita.

Imensa, em torno ao sábio, a multidão se agita:
E há nessa multidão, que enche a planície vasta,
Homens de toda a espécie, árias de toda a casta.

Todos os que (a princípio, enchia Brahma o espaço)
Da cabeça, do pé, da coxa ou do antebraço
Do deus vieram à luz para povoar a terra:
– Xátrias, de braço forte armado para a guerra;
Saquias, filhos de reis; leprosos perseguidos
Como cães, como cães de lar em lar corridos;
Os que vivem no mal e os que amam a virtude;
Os ricos de beleza e os pobres de saúde;
Mulheres fortes, mães ou prostitutas, cheio
De tentações o olhar ou de alvo leite o seio;
Guardadores de bois; robustos lavradores,
A cujo arado a terra abre em frutos e flores;
Crianças; anciãos; sacerdotes de Brahma;
Párias, sudras servis rastejando na lama;

– Todos acham amor dentro da alma de Buda,
E tudo nesse amor se eterniza e transmuda.
Porque o sábio, envolvendo a tudo, em seu caminho
Na mesma caridade e no mesmo carinho,
Sem distinção promete a toda a raça humana
A bem-aventurança eterna do Nirvana.

Ora, Buda medita.
À maneira do orvalho,
Que, na calma da noite, anda de galho em galho
Dando vida e umidade às árvores crestadas,
– Aos corações sem fé e às almas desgraçadas
Concede o novo credo a esperança do sono:
Mas… as almas que estão, no horrível abandono
Dos desertos, de par com os animais ferozes,
Longe de humano olhar, longe de humanas vozes,
A rolar, a rolar de pecado em pecado?.

Ergue-se Buda:
"Puma!"
O discípulo amado
Chega:
"Puma! é mister que a palavra divina
Da água do mar de Omã à água do mar da China,
Longe do Indus natal e das margens do Ganges,
Semeies, através de dardos, e de alfanjes,
E de torturas!"

Puma ouve sorrindo, e cala.
No silêncio em que está, um sonho doce o embala.
No profundo clarão do seu olhar profundo
Brilham a ânsia da morte e o desprezo do mundo.
O corpo, que O rigor das privações consome,
Esquelético, nu, comido pela fome,
Treme, quase a cair como um bambu com o vento;
E erra-lhe à flor da boca a luz do firmamento
Presa a um sorriso de anjo.

E ajoelha junto ao Santo:
Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.

"Filho amado! – diz Buda – essas bárbaras gentes
São grosseiras e vis, são rudes e inclementes;
Se os homens (que, em geral, são maus os homens todos)
Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,
Que dirás, que farás contra essa gente inculta?"

"Mestre! direi que é boa a gente que me insulta,
Pois, podendo ferir-me, apenas me injuria…"

"Filho amado! e se a injúria abandonando, um dia
Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,
E sem piedade aos pés te pisar, como a um verme?"

"Mestre! direi que é bom o homem que me magoa,
Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordoa…"

"Filho amado! e se alguém, vendo-te agonizante,
Te furar com um punhal a carne palpitante?"

"Mestre! direi que é bom quem minha carne fura,
Pois, podendo matar-me, apenas me tortura…"

"Filho amado! e se, enfim, sedentos de mais sangue,
Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exangue
O último alento, o sopro último da existência,
Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemência?"
"Mestre! direi que é bom quem me livra da vida.
Mestre! direi que adoro a mão boa e querida,
Que, com tão pouca dor, minha carne cansada
Entrega ao sumo bem e à suma paz do Nada!"

"Filho amado! – diz Buda – a palavra divina,
Da água do mar de Omã à água do mar da China,
Longe do Indus natal e dos vales do Ganges,
Vai levar, através de dardos e de alfanjes!
Puma! ao fim da Renúncia e ao fim da Caridade
Chegaste, estrangulando a tua humanidade!
Tu, sim! podes partir, apóstolo perfeito,
Que o Nirvana já tens dentro do próprio peito,
E és digno de ir pregar a toda raça humana
A bem-aventurança eterna do Nirvana!"

Sagres

"Acreditavam os antigos celtas,
do Guadiana espalhados até
a costa, que, no templo circular
do Promontório Sacro, se reuniam
à noite os deuses, em misteriosas
conversas com esse mar cheio
de enganos e tentações."

OL. MARTINS. – Hist. de Portugal.

Em Sagres. Ao tufão, que se desencadeia,
A água negra, em cachões, se precipita, a uivar;
Retorcem-se gemendo os zimbros sobre a areia.
E, impassível, opondo ao mar o vulto enorme,
Sob as trevas do céu, pelas trevas do mar,
Berço de um mundo novo, o promontório dorme.

Só, na trágica noite e no sítio medonho,
Inquieto como o mar sentindo o coração,
Mais largo do que o mar sentindo o próprio sonho,
– Só, aferrando os pés sobre um penhasco a pique,
Sorvendo a ventania e espiando a escuridão,
Queda, como um fantasma, o Infante Dom Henrique…

Casto, fugindo o amor, atravessa a existência
Imune de paixões, sem um grito sequer
Na carne adormecida em plena adolescência;
E nunca aproximou da face envelhecida
O nectário da flor, a boca da mulher,
Nada do que perfuma o deserto da vida.

Forte, em Ceuta, ao clamor dos pífanos de guerra,
Entre as mesnadas (quando a matança sem dó
Dizimava a moirama e estremecia a terra),
Viram-no levantar, imortal e brilhante,
Entre os raios do sol, entre as nuvens do pó,
A alma de Portugal no aceiro do montante.

Em Tanger, na jornada atroz do desbarato,
– Duro, ensopando os pés em sangue português,
Empedrado na teima e no orgulho insensato,
Calmo, na confusão do horrendo desenlace,
– Vira partir o irmão para as prisões de Fez,
Sem um tremor na voz, sem um tremor na face.

É que o Sonho lhe traz dentro de um pensamento
A alma toda cativa. A alma de um sonhador
Guarda em si mesma a terra, o mar, o firmamento,
E, cerrada de todo à inspiração de fora,
Vive como um vulcão, cujo fogo interior
A si mesmo imortal se nutre e se devora.

"Terras da Fantasia! Ilhas Afortunadas,
Virgens, sob a meiguice e a limpidez do céu,
Como ninfas, à flor das águas remansadas!
– Pondo o rumo das naus contra a noite horrorosa
Quem sondara esse abismo e rompera esse véu,
Ó sonho de Platão, Atlântida formosa!

Mar tenebroso! aqui recebes, porventura,
A síncope da vida, a agonia da luz?.
Começa o Caos aqui, na orla da praia escura?
E a mortalha do mundo a bruma que te veste?
Mas não! por trás da bruma, erguendo ao sol a Cruz,
Vós sorrides ao sol, Terras Cristãs do Preste!

Promontório Sagrado! Aos teus pés, amoroso,
Chora o monstro… Aos teus pés, todo o grande poder,
Toda a força se esvai do oceano Tenebroso…
Que ansiedade lhe agita os flancos? Que segredo,
Que palavras confia essa boca, a gemer,
Entre beijos de espuma, à algidez do rochedo?

Que montanhas mordeu, no seu furor sagrado?
Que rios, através de selvas e areais,
Vieram nele encontrar um túmulo ignorado?
De onde vem ele? ao sol de que remotas plagas
Borbulhou e dormiu? que cidades reais
Embalou no regaço azul de suas vagas?

Se tudo é morte além, – em que deserto horrendo,
Em que ninho de treva os astros vão dormir?
Em que solidão o sol sepulta-se, morrendo?
Se tudo é morte além, por que, a sofrer sem calma,
Erguendo os braços no ar, havemos de sentir
Estas aspirações, como asas dentro da alma?"

………………………………………………………

E, torturado e só, sobre o penhasco a pique,
Com os olhos febris furando a escuridão,
Queda como um fantasma o Infante Dom Henrique…
Entre os zimbros e a névoa, entre o vento e a salsugem,
A voz incompreendida, a voz da Tentação
Canta ao surdo bater dos macaréus que rugem:

‘Ao largo, Ousado! o segredo
Espera, com ansiedade,
Alguém privado de medo
E provido de vontade…

Verás destes mares largos
Dissipar-se a cerração!
Aguça os teus olhos, Argos:
Tomará corpo a visão…

Sonha, afastado da guerra,
De tudo! – em tua fraqueza,
Tu, dessa ponta de terra,
Dominas a natureza!

Na escuridão que te cinge,
Édipo! com altivez,
No olhar da líquida esfinge
O olhar mergulhas, e lês…

Tu que, casto, entre os teus sábios,
Murchando a flor dos teus dias,
Sobre mapas e astrolábios
Encaneces e porfias;

Tu, buscando o oceano infindo,
Tu, apartado dos teus,
(Para, dos homens fugindo,
Ficar mais perto de Deus);

Tu, no agro templo de Sagres,
Ninho das naves esbeltas,
Reproduzes os milagres
Da idade escura dos celtas:

Vê como a noite está cheia
De vagas sombras… Aqui,
Deuses pisaram a areia,
Hoje pisada por ti.

E, como eles poderoso,
Tu, mortal, tu, pequenino,
Vences o mar Tenebroso,
Ficas senhor do Destino!

Já, enfunadas as velas,
Como asas a palpitar,
Espalham-se as caravelas
Aves tontas pelo mar…

Nessas tábuas oscilantes,
Sob essas asas abertas,
A alma dos teus navegantes
Povoa as águas desertas.

Já, do fundo mar vário,
Surgem as ilhas, assim
Como as contas de um rosário
Soltas nas águas sem fim.

Já, como cestas de flores,
Que o mar de leve balança,
Abrem-se ao sol os Açores
Verdes, da cor da esperança.

Vencida a ponta encantada
Do Bojador, teus heróis
Pisam a África, abrasada
Pela inclemência dos sóis.

Não basta! Avante!
Tu, morto
Em breve, tu, recolhido
Em calma, ao último porto,
– Porto da paz e do olvido,

Não verás, com o olhar em chama,
Abrir-se, no oceano azul,
O vôo das naus do Gama,
De rostros feitos ao sul…

Que importa? Vivo e ofegando
No ofego das velas soltas,
Teu sonho estará cantando
À flor das águas revoltas.

Vencido, o peito arquejante.
Levantado em furacões,
Cheia a boca e regougante
De escuma e de imprecações,

Rasgando, em fúria, às unhadas
O peito, e contra os escolhos
Golfando, em flamas iradas,
Os relâmpagos dos olhos,

Louco, ululante, e impotente
Como um verme, – Adamastor
Verá pela tua gente
Galgado o cabo do Horror!

Como o reflexo de um astro,
Cintila e a frota abençoa
No tope de cada mastro
O Santelmo de Lisboa.

E alta já, de Moçambique
A Calicut, a brilhar,
Olha, Infante Dom Henrique!
– Passou a Esfera Armilar…

Fartar! como um santuário
Zeloso de seu tesouro,
Que, ao toque de um temerário,
Largas abre as portas de ouro,

– Eis as terras feiticeiras
Abertas… Da água através,
Deslizem fustas ligeiras,
Corram ávidas galés!

Aí vão, oprimindo o oceano,
Toda a prata que fascina,
Todo o marfim africano,
Todas as sedas da China…

Fartar!… Do seio fecundo
Do Oriente abrasado em luz,
Derramem-se sobre o mundo
As pedrarias de Ormuz!

Sonha, – afastado da guerra,
Infante!… Em tua fraqueza,
Tu, dessa ponta de terra,
Dominas a natureza!…"

Longa e cálida, assim, fala a voz da Sereia…
Longe, um roxo clarão rompe o noturno véu.
Doce agora, ameigando os zimbros sobre a areia,
Passa o vento. Sorri palidamente o dia…
E súbito, como um tabernáculo, o céu
Entre faixas de prata e púrpura irradia…

Tênue, a Princípio, sobre as pérolas da espuma,
Dança torvelinhando a chuva de ouro. Além,
Invadida do fogo, arde e palpita a bruma,
Numa cintila&ccediccedil;ão de nácar e ametistas…
E o olhar do Infante vê, na água que vai e vem,
Desenrolar-se vivo o drama das Conquistas.

Todo o oceano referve, incendido em diamantes,
Desmanchado em rubis. Galeões descomunais,
Crespas selvas sem fim de mastros deslumbrantes,
Continentes de fogo, ilhas resplandecendo,
Costas de âmbar, parcéis de aljofres e corais,
– Surgem, redemoinhando e desaparecendo…

É o dia! – A bruma foge. Iluminam-se as grutas.
Dissipam-se as visões… O Infante, a meditar,
Como um fantasma, segue entre as rochas abruptas.
E impassível, opondo ao mar o vulto enorme,
Fim de um mundo sondando o deserto do mar,
– Berço de um mundo novo – o promontório dorme.

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