Panóplias – Olavo Bilac

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Olavo Bilac

A Morte de Tapir

I

Uma coluna de ouro e púrpuras ondeantes
Subia o firmamento. Acesos véus, radiantes
Rubras nuvens, do sol à viva luz, do poente
Vinham, soltas, correr o espaço resplendente.
Foi a essa hora, – às mãos o arco possante, à cinta
Do leve enduape a tanga em várias cores tinta,
A aiucara ao pescoço, o canitar à testa, –
– Que Tapir penetrou o seio da floresta.
Era de vê-lo assim, com o vulto enorme ao peso
Dos anos acurvado, o olhar faiscando aceso,
Firme o passo apesar da extrema idade, e forte.
Ninguém, como ele, em face, altivo e hercúleo, a morte
Tantas vezes fitou… Ninguém, como ele, o braço
Erguendo, a lança aguda atirava no espaço.
Quanta vez, do uapi ao rouco troar, ligeiro
Como a corça, ao rugir do estrépito guerreiro
O tacape brutal rodando no ar, terrível,
Incólume, vibrando os golpes, – insensível
Às preces, ao clamor dos gritos, surdo ao pranto
Das vitimas, – passou, como um tufão, o espanto,
O extermínio, o terror atras de si deixando!
Quanta vez do inimigo o embate rechaçando
Por si só, foi seu peito uma muralha erguida,
Em que vinha bater e quebrar-se vencida
De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!
Onde um pulso que, tal como seu pulso, à luta
Costumado, um por um, ao chão arremessasse
Dez combatentes? Onde um arco, que atirasse
Mais célere, a zunir, a fina flecha ervada?
Quanta vez, a vagar na floresta cerrada,
Peito a peito lutou com as fulvas onças bravas,
E as onças a seus pés tombaram, como escravas,
Nadando em sangue quente, e, em roda, o eco infinite
Despertando, ao morrer, com o derradeiro grito!..
Quanta vez! E hoje velho, hoje abatido!

II

E o dia
Entre os sangüíneos tons do ocaso decaía…
E era tudo em silêncio, adormecido e quedo…
De súbito um tremor correu todo o arvoredo:
E o que há pouco era calma, agora é movimento,
Treme, agita-se, acorda, e se lastima… O vento
Fala: ‘Tapir! Tapir! é finda a tua raça!"
E em tudo a mesma voz misteriosa passa;
As árvores e o chão despertam, repetindo:
‘Tapir! Tapir! Tapir! O teu poder é findo!"

E, a essa hora, ao fulgor do derradeiro raio
Do sol, que o disco de ouro, em lúcido desmaio,
Quase no extremo céu de todo mergulhava,
Aquela estranha voz pela floresta ecoava
Num confuso rumor entrecortado, insano…
Como que em cada tronco havia um peito humano
Que se queixava… E o velho, úmido o olhar, seguia.
E, a cada passo assim dado na mata, via
Surgir de cada canto uma lembrança… Fora
Desta imensa ramada à sombra protetora
Que um dia repousara… Além, a arvore anosa,
Em cujos galhos, no ar erguidos, a formosa,
A doce Juraci a rede suspendera,
– A rede que, com as mãos finíssimas, tecera
Para ele, seu senhor e seu guerreiro amado!
Ali… – Contai-o vós, contai-o, embalsamado
Retiro, ninhos no ar suspensos, aves, flores!…
Contai-o, o poema ideal dos primeiros amores,
Os corpos um ao outro estreitamente unidos,
Os abraços sem conta, os beijos, os gemidos,
E o rumor do noivado, estremecendo a mata,
Sob o plácido olhar das estrelas de prata…

Juraci! Juraci! virgem morena e pura!
Tu também! tu também desceste à sepultura!…

III

E Tapir caminhava… Ante ele agora um rio
Corria; e a água também, ao crebro
Da corrente, a rolar, gemia ansiosa e clara:
– "Tapir! Tapir! Tapir! Que é da veloz igara,
Que é dos remos dos teus? Não mais as redes finas
Vêm na pesca sondar-me as águas cristalinas.
Ai! não mais beijarei os corpos luxuriantes,
Os curvos seios nus, as formas palpitantes
Das morenas gentis de tua tribo extinta!
Não mais! Depois dos teus de brônzea pele tinta
Com os sucos do urucu, de pele branca vieram
Outros, que a ti e aos teus nas selvas sucederam.
Ai! Tapir! ai! Tapir! A tua raça é morta! -"
E o índio, trêmulo, ouvindo aquilo tudo, absorta
A alma em cismas, seguiu curvada a fronte ao peito.
Agora da floresta o chão não mais direito
E plano se estendia: era um declive; e quando
Pelo tortuoso anfracto, a custo, caminhando
Ao crepúsculo, pôde o velho, passo a passo,
A montanha alcançar, viu que a noite no espaço
Vinha a negra legião das sombras espargindo…
Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo,
No alto, a primeira estrela o cálix de ouro abria…
Outra após cintilou na esfera imensa e fria…
Outras vieram… e, em breve, o céu, de lado a lado,
Foi como um cofre real de pérolas coalhado.

IV

Então, Tapir, de pé, no arco apoiado, a fronte
Ergueu, e o olhar passeou no infinito horizonte:
Acima o abismo, abaixo o abismo, o abismo adiante.
E, clara, no negror da noite, viu, distante,
Alvejando no vale a taba do estrangeiro…
Tudo extinto!… era ele o último guerreiro!
E do vale, do céu, do rio, da montanha,
De tudo que o cercava, ao mesmo tempo, estranha,
Rouca, extrema, rompeu a mesma voz: – "É finda
Toda a raça dos teus: só tu és vivo ainda!
Tapir! Tapir! Tapir! morre também com ela!
Já não fala Tupã no ulular da procela…
As batalhas de outrora, os arcos e os tacapes,
As florestas sem fim de flechas e acanguapes,
Tudo passou! Não mais a fera inúbia à boca
Dos guerreiros, Tapir, soa medonha e rouca.

É mudo o maracá. A tribo exterminada
Dorme agora feliz na Montanha Sagrada…
Nem uma rede o vento entre os galhos agita!
Não mais o vivo som de alegre dança, e a grita
Dos pajés, ao luar, por baixo das folhagens,
Rompe os ares… Não mais! As poracés selvagens,
As guerras e os festins, tudo passou! É finda
Toda a raça dos teus… Só tu és vivo ainda! -"

V

E num longo soluço a voz misteriosa
Expirou… Caminhava a noite silenciosa,
E era tranqüilo o céu; era tranqüila em roda,
Imersa em plúmbeo sono, a natureza toda.

E, no tope do monte, era de ver erguido
O vulto de Tapir… Inesperado, um ruído
Seco, surdo soou, e o corpo do guerreiro
De súbito rolou pelo despenhadeiro…
E o silêncio outra vez caiu.
Nesse momento,
Apontava o luar no curvo firmamento.

A Gonçalves Dias

Celebraste o domínio soberano
Das grandes tribos, o tropel fremente
Da guerra bruta, o entrechocar insano
Dos tacapes vibrados rijamente,

O maracá e as flechas, o estridente
Troar da inúbia, e o canitar indiano…
E, eternizando o povo americano,
Vives eterno em teu poema ingente.

Estes revoltos, largos rios, estas
Zonas fecundas, estas seculares
Verdejantes e amplíssimas florestas

Guardam teu nome: e a lira que pulsaste
Inda se escuta, a derramar nos ares
O estridor das batalhas que contaste.

Guerreira

É a encarnação do mal. Pulsa-lhe o peito
Ermo de amor, deserto de piedade…
Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeito
Das cruentas guerreiras de outra idade.

O lábio ao ríctus do sarcasmo afeito
Crispa-se-lhe num riso de maldade,
Quando, talvez, as pompas, com despeito,
Recorda da perdida majestade.

E assim, com o seio ansioso, o porte erguido,
Corada a face, a ruiva cabeleira
Sobre as amplas espáduas derramada,

Faltam-lhe apenas a sangrenta espada
Inda rubra da guerra derradeira,
E o capacete de metal polido…

Para a Rainha Dona Amélia de Portugal

Um rude resplendor, de rude brilho, touca
E nimba o teu escudo, em que as quinas e a esfera
Guardam, ó Portugal! a tua glória austera,
Feita de louco heroísmo e de aventura louca.

Ver esse escudo é ver a Terra toda, pouca
Para a tua ambição; é ver Afonso, à espera
Dos mouros, em Ourique; e, em redor da galera
Do Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca…

Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança!
De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista, Faltava a suavidade e
o encanto de uma flor;

E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França,
Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista,
Um sorriso de graça e um perfume de amor…

A um Grande Homem

Heureuse au fond du bois
Ia source pauvre et pure!
Lamartine.

Olha: era um tênue fio
De água escassa. Cresceu Tornou-se em rio
Depois. Roucas, as vagas
Engrossa agora, e é túrbido e bravio,
Roendo penedos, alagando plagas.

Humilde arroio brando!…
Nele, no entanto, as flores, inclinando
O débil caule, inquietas
Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando
Se revia das leves borboletas.

Tudo, porém: – cheirosas
Plantas, curvas ramadas rumorosas,
Úmidas relvas, ninhos
Suspensos no ar entre jasmins e rosas,
Tardes cheias da voz dos passarinhos, –
Tudo, tudo perdido
Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido,
Foi alargando o seio,
E do alpestre rochedo, onde nascido
Tinha, crespo, a rolar, descendo veio…

Cresceu. Atropeladas,
Soltas, grossas as ondas apressadas
Estendeu largamente,
Tropeçando nas pedras espalhadas,
No galope impetuoso da corrente…

Cresceu. E é poderoso:
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso…
É grande, é largo, é forte:
Mas, de parcéis cortado, caudaloso,
Leva nas dobras de seu manto a morte.

Implacável, violento,
Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo
Sobre ele em vão do claro firmamento
Batem os raios límpidos, luzindo…

Nada reflete, nada!
Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada?
Onde a humildade e a limpidez de outrora?

Homem que o mundo aclama!
Semideus poderoso, cuja fama
O mundo com vaidade
De eco em eco no século derrama
Aos quatro ventos da celebridade!

Tu, que humilde nasceste,
Fraco e obscuro mortal, também cresceste
De vitória em vitória,
E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste
Ao sólio excelso do esplendor da glória!

Mas, ah! nesses teus dias
De fausto, entre essas pompas luzidias,
– Rio soberbo e nobre!
Hás de chorar o tempo em que vivias
Como um arroio sossegado e pobre…

A Sesta de Nero

Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E mármor da Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.

Nero no toro ebúrneo estende-se indolente…
Gemas em profusão do estrágulo custoso
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.

Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em recendente pira.

Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Neto dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.

O Incêndio de Roma

Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,
As muralhas de pedra, o espaço adormecido
De eco em eco acordando ao medonho estampido,
Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.

E os templos, os museus, o Capitólio erguido
Em mármor frígio, o Foro, as erectas arcadas
Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas
Do incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.

Longe, reverberando o clarão purpurino,
Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte…
– Impassível, porém, no alto do Palatino,

Neto, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma
Entre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte,
Lira em punho, celebra a destruição de Roma.

O Sonho de Marco Antônio

Noite. Por todo o largo firmamento
Abrem-se os olhos de ouro das estrelas…
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinelas.

Brutal, febril, entre canções e brados,
Entrara pela noite adiante a orgia;
Em borbotões, dos cântaros lavrados
Jorrara o vinho. O exército dormia.

Insone, entanto, vela alguém na tenda
Do general. Esse, entre os mais sozinho,
Vence a fadiga da batalha horrenda,
Vence os vapores cálidos do vinho.

Torvo e cerrado o cenho, o largo peito
Da couraça despido e arfando ansioso,
Lívida a face, taciturno o aspeito,
Marco Antônio medita silencioso.

Da lâmpada de prata a luz escassa
Resvala pelo chão. A quando e quando,
Treme, enfunada à viração que passa,
A cortina de púrpura oscilando.

O general medita. Como, soltas
Do álveo de um rio transvazado, as águas
Crescem, cavando o solo, – assim, revoltas,
Fundas a alma lhe vão sulcando as mágoas.

Que vale a Grécia, e a Macedônia, e o enorme
Território do Oriente, e este infinito
E invencível exército que dorme?
Que doces braços que lhe estende o Egito!…

Que vença Otávio! e seu rancor profundo
Leve da Hispânia à Síria a morte e a guerra!
Ela é o céu… Que valor tem todo o mundo,
Se os mundos todos seu olhar encerra?!

Ele é valente e ela o subjuga e o doma…
Só Cleópatra é grande, amada e bela!
Que importa o império e a salvação de Roma?
Roma não vale um só dos beijos dela!…

Assim medita. E alucinado, louco
De pesar, com a fadiga em vão lutando,
Marco António adormece a pouco e pouco,
Nas largas mãos a fronte reclinando.

II

A harpa suspira. O melodioso canto,
De uma volúpia lânguida e secreta,
Ora interpreta o dissabor e o pranto,
Ora as paixões violentas interpreta.

Amplo dossel de seda levantina,
Por colunas de jaspe sustentado,
Cobre os cetins e a caxemira fina
Do régio leito de ébano lavrado.

Move o leque de plumas uma escrava.
Vela a guarda lá fora. Recolhida,
Os pétreos olhos uma esfinge crava
Nas formas da rainha adormecida.

Mas Cleópatra acorda… E tudo, ao vê-la
Acordar, treme em roda, e pasma, e a admira:
Desmaia a luz, no céu descora a estrela,
A própria esfinge move-se e suspira…

Acorda. E o torso arqueando, ostenta o lindo
Colo opulento e sensual que oscila.
Murmura um nome e, as pálpebras abrindo,
Mostra o fulgor radiante da pupila.

III

Ergue-se Marco Antônio de repente…
Ouve-se um grito estrídulo, que soa
O silêncio cortando, e longamente
Pelo deserto acampamento ecoa.

O olhar em fogo, os carregados traços
Do rosto em contração, alto e direito
O vulto enorme, – no ar levanta os braços,
E nos braços aperta o próprio peito.

Olha em torno e desvaira. Ergue a cortina,
A vista alonga pela noite afora.
Nada vê. Longe, à porta purpurina
Do Oriente em chamas, vem raiando a aurora.

E a noite foge. Em todo o firmamento
Vão se fechando os olhos das estrelas:
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinelas.

Lendo a Ilíada

Ei-lo, o poema de assombros, céu cortado
De relâmpagos, onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternizado
O espantoso poder da argiva gente.

Arde Tróia… De rastos passa atado
O herói ao carro do rival, e, ardente,
Bate o sol sobre um mar ilimitado
De capacetes e de sangue quente.

Mais que as armas, porém, mais que a batalha
Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha:

– Esse amor que ora ativa, ora asserena
A guerra, e o heróico Páris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.

Messalina

Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias
Do passado. Minh’alma se transporta
À Roma antiga, e da cidade morta
Dos Césares reanima as cinzas frias;

Triclínios e vivendas luzidias
Percorre; pára de Suburra à porta,
E o confuso clamor escuta, absorta,
Das desvairadas e febris orgias.

Aí, num trono erecto sobre a ruína
De um povo inteiro, tendo à fronte impura
O diadema imperial de Messalina,

Vejo-te bela, estátua da loucura!
Erguendo no ar a mão nervosa e fina,
Tinta de sangue, que um punhal segura.

A Ronda Noturna

Noite cerrada, tormentosa, escura,
Lá fora. Dorme em trevas o convento.
Queda imoto o arvoredo. Não fulgura
Uma estrela no torvo firmamento.

Dentro é tudo mudez. Flébil murmura,
De espaço a espaço, entanto, a voz do vento:
E há um rasgar de sudários pela altura,
Passo de espectros pelo pavimento…

Mas, de súbito, os gonzos das pesadas
Portas rangem… Ecoa surdamente
Leve rumor de vozes abafadas.

E, ao clarão de uma lâmpada tremente,
Do claustro sob as tácitas arcadas
Passa a ronda noturna, lentamente…

Defenda Carthago!

I

Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes
Do céu da África. Ao largo, em plena luz, dos montes
Destacam-se os perfis. Tremulamente ondeia,
Vasto oceano de prata, a requeimada areia.
O ar, pesado, sufoca. E, desfraldando ovantes
Das bandeiras ao vento as pregas ondulantes,
Desfilam as legiões do exército romano
Diante do general Cipião Emiliano.
Tal soldado sopesa a dava de madeira;
Tal, que a custo sofreia a cólera guerreira,
Maneja a bipenata e rude machadinha.
Este, à ilharga pendente, a rútila bainha
Leva do gládio. Aquele a poderosa maça
Carrega, e às largas mãos a ensaia. A custo passa,
Curvado sob o peso e de fadiga aflando,
De guerreiros um grupo, os aríetes levando.
Brilham em confusão cristados capacetes.
Cavaleiros, contendo os ardidos ginetes,
Solta a clâmide ao ombro, ao braço afivelado
O côncavo broquel de cobre cinzelado,
Brandem o pílum no ar. Ressona, a espaços, rouca,

A bélica bucina. A tuba cava à boca
Dos eneatores troa. Hordas de sagitários
Vêem-se, de arco e carcás armados. O ouro e os vários
Ornamentos de prata embutem-se, em tauxias
De um correto lavor, nas armas luzidias
Dos generais. E, ao sol, que, entre nuvens, cintila,
Em torno de Cartago o exército desfila.

Mas, passada a surpresa, às pressas, a cidade
Aos escravos cedera armas e liberdade,
E era toda rumor e agitação. Fundindo
Todo o metal que havia, ou, céleres, brunindo
Espadas e punhais, capacetes e lanças,
Viam-se a trabalhar os homens e as crianças.

Heróicas, abafando os soluços e as queixas,
As mulheres, tecendo os fios das madeixas,
Cortavam-nas.
Cobrindo espáduas deslumbrantes,
Cercando a carnação de seios palpitantes
Como véus de veludo, e provocando beijos,
Excitaram paixões e lúbricos desejos
Essas tranças da cor das noites tormentosas…
Quantos lábios, ardendo em sedes luxuriosas,
As tocaram outrora entre febris abraços!..
Tranças que tanta vez – frágeis e doces laços! –
Foram cadeias de ouro invencíveis, prendendo
Almas e corações, – agora, distendendo
Os arcos, despedindo as setas aguçadas,
Iam levar a morte… – elas, que, perfumadas,
Outrora tanta vez deram a vida e o alento
Aos presos corações!…

Triste, entretanto, lento,
Ao pesado labor do dia sucedera
O silêncio noturno. A treva se estendera:
Adormecera tudo. E, no outro dia, quando
Veio de novo o sol, e a aurora, rutilando,
Encheu o firmamento e iluminou a terra,
A luta começou.

II

As máquinas de guerra

Movem-se. Treme, estala, e parte-se a muralha,
Racha de lado a lado. Ao clamor da batalha
Estremece o arredor. Brandindo o pílum, prontas,
Confundem-se as legiões. Perdido o freio, às tontas,
Desbocam-se os corcéis. Enrijam-se, esticadas
Nos arcos, a ringir, as cordas. Aceradas,
Partem setas, zunindo. Os dardos, sibilando,
Cruzam-se. Éneos broquéis amolgam-se, ressoando,
Aos embates brutais dos piques arrojados.
Loucos, afuzilando os olhos, os soldados,
Presa a respiração, torvo e medonho o aspeito,
Pela férrea squammata abroquelado o peito,
Se escruam no furor, sacudindo os macetes.
Não param, entretanto, os golpes dos aríetes,
Não cansam no trabalho os musculosos braços
Dos guerreiros. Oscila o muro. Os estilhaços
Saltam das pedras. Gira, inda uma vez vibrada
No ar, a máquina bruta… E, súbito, quebrada,
Entre o insano clamor do exército e o fremente
Ruído surdo da queda, – estrepitosamente
Rui, desaba a muralha, e a pétrea mole roda,
Rola, remoinha, e tomba, e se esfacela toda.

Rugem aclamações. Como em cachões, furioso,
Parte os diques o mar, roja-se impetuoso,
As vagas encrespando acapeladas, brutas,
E inunda povoações, enche vales e grutas,
E vai semeando o horror e propagando o estrago,
Tal o exército entrou as portas de Cartago…

O ar os gritos de dor e susto, espaço a espaço,
Cortavam. E, a bramir, atropelado, um passo
O invasor turbilhão não deu vitorioso,
Sem que deixasse atrás um rastro pavoroso
De feridos. No ocaso, o sol morria exangue:
Como que refletia o firmamento o sangue
Que tingia de rubro a lâmina brilhante
Das espadas. Então, houve um supremo instante,
Em que, cravando o olhar no intrépido africano
Asdrúbal, ordenou Cipião Emiliano:
"- Deixa-me executar as ordens do Senado!
Cartago morrerá: perturba o ilimitado
Poder da invicta Roma… Entrega-te! -"
Orgulhoso,
A fronte levantando, ousado e rancoroso,
Disse o cartaginês:
"- Enquanto eu tiver vida,
Juro que não será Cartago demolida!
Quando o incêndio a envolver, o sangue deste povo
Há de apagá-lo. Não! Retira-te! -"
De novo
Falou Cipião:
Atende, Asdrúbal! Por mais forte
Que seja o teu poder, há de prostrá-lo a morte!
Olha! A postos, sem conta, as legiões de Roma,
Que Júpiter protege e que o pavor não doma,
Vão começar em breve a mortandade infrene!
Entrega-te! -"
"- Romano, escuta-me! (solene,
O outro volveu, e a raiva em sua voz rugia)
Asdrúbal é o irmão de Aníbal… Houve um dia
Em que, ante Aníbal, Roma estremeceu vencida
E tonta recuou de súbito ferida.
Ficaram no lugar da pugna, ensangüentados,
Mais de setenta mil romanos, trucidados
Pelo esforço e valor dos púnicos guerreiros;
Seis alqueires de anéis dos mortos cavaleiros
Cartago arrecadou… Verás que, como outrora,
Do eterno Baal-Moloch a proteção agora
Teremos. A vitória há de ser nossa… Escuta:
Manda que recomece a carniceira luta! -"
E horrível, e feroz, durante a noite e o dia,
Recomeçou a luta. Em cada casa havia
Um punhado de heróis. Seis vezes, pela face
Do céu, seguiu seu curso o sol, sem que parasse
O medonho estridor da sanha da batalha…
Quando a noite descia, a treva era a mortalha
Que envolvia, piedosa, os corpos dos feridos.
Rolos de sangue e pó, blasfêmias e gemidos,
Preces e imprecações… As próprias mães, entanto,
Heróicas na aflição, enxuto o olhar de pranto,
Viam cair sem vida os filhos. Combatentes
Houve, que, não querendo aos golpes inclementes
Do inimigo entregar os corpos das crianças,
Matavam-nas, erguendo as suas próprias lanças…

Por fim, quando de todo a vida desertando
Foi a extinta cidade, e, lúgubre, espalmando
As asas negras no ar, pairou sinistra e horrenda
A morte, teve um fim a peleja tremenda,
E o incêndio começou.

III

Fraco e medroso, o fogo

À branda viração tremeu um pouco, e logo,
Inda pálida e tênue, ergueu-se. Mais violento,
Mais rápido soprou por sobre a chama o vento:
E o que era labareda, agora ígnea serpente
Gigantesca, estirando o corpo, de repente
Desenrosca os anéis flamívomos, abraça
Toda a cidade, estala as pedras, cresce, passa,
Rói os muros, estronda, e, solapando o solo,
Os alicerces broca, e estringe tudo. Um rolo
De plúmbeo e denso fumo enegrecido em torno
Se estende, como um véu, do comburente forno.
Na horrorosa eversão, dos templos arrancado,
Vibra o mármore, salta; abre-se, estilhaçado,
Tudo o que o incêndio aperta… E a fumarada cresce
Sobe vertiginosa, espalha-se, escurece
O firmamento… E, sobre os restos da batalha,
Arde, voraz e rubra, a colossal fornalha.

Mudo e triste Cipiáo, longe dos mais, no entanto,
Deixa livre correr pelas faces o pranto…

É que, – vendo rolar, num rápido momento
Para o abismo do olvido e do aniquilamento
Homens e tradições, reveses e vitórias,
Batalhas e troféus, seis séculos de glórias
Num punhado de cinza -, o general previa
Que Roma, a invicta, a forte, a armipotente, havia
De ter o mesmo fim da orgulhosa Cartago.
E, perto, o precipitar estrepitoso e vago
D0 incêndio, que lavrava e inda rugia ativo,
Era como o rumor de um pranto convulsivo…

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