O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira

Rui Barbosa

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Meus senhores – Meus ilustres colegas – A generosidade com que me subistes a esta cadeira, elevando-me tanto acima do meu merecimento, excede a todas as minhas aspirações. A vaidade e a ambição põem sempre a meta dos nossos desejos muito além da nossa capacidade. Mas eu, que bem pouco me tenho iludido quanto ao valor real das minhas forças e à importância do meu destino, sempre limitei os meus projetos e sonhos, na carreira profissional que elegi desde a minha primeira mocidade, a granjear, pelo trabalho honesto, o crédito de exercer o meu ofício com seriedade, competência e zelo. Imaginar que um dia, por eleição dos advogados brasileiros, me visse assentado no primeiro lugar entre os meus colegas, temeridade era que me não passou jamais pela mente; e, quando com esta demasia da vossa benevolência me surpreendestes, se não declinei da honra, que me fazíeis, é que, de puro agradecido e perplexo, não achei, no meu constrangimento e suspensão de ânimo, energia bastante para deliberar o que a prudência me aconselhava.

(1) Discurso proferido pelo Conselheiro Rui Barbosa no Instituto dos Advogados, ao tomar posse do cargo de Presidente, em 19 de novembro de 1914. Transcrito da Revista do Supremo Tribunal, vol. 2, 2ª pt., ag./dez. 1914, p. 393-414. Confronto de texto realizado com O Imparcial, de 28 de novembro de 1914.

É o íntimo dos meus sentimentos o que vos estou mostrando.

Não vejais expressão de falsa modéstia na voz desestudada e fiel da minha sinceridade. Pela distinção que me liberalizastes, vos tenho o mais profundo reconhecimento. Mas, em boa verdade vos digo, sem quebra do respeito devido ao tino das vossas resoluções, que me não parece haverdes acertado na escolha, e bem pouco espero corresponder- vos à confiança.

As instituições do gênero desta, criadas para situações de alta responsabilidade no desenvolvimento da cultura nacional, necessitam, para as dirigir, não de simples valores nominais, como o meu, mas de autoridades poderosas, ainda em toda a expansão das suas forças, e talhadas, pelo hábito de prosperarem e vencerem, para rasgar, diante dos que a seguem, novos caminhos de vitórias e prosperidades. Não quis a sorte que eu nascesse debaixo de um desses signos bem-aventurados. A minha vida amadurece, e se vai despegando, para cair, na melancolia de ver definhadas e vencidas as idéias pelas quais tenho consumido, numa luta quase incessante, de perto de meio século, toda a substância de minha alma.

Batendo-me, já desde os bancos acadêmicos, na imprensa militante e na tribuna popular, pela redenção dos escravos, consagrei, desde então, a existência às grandes reivindicações políticas e sociais do direito, da educação pública e da liberdade, para, afinal, depois de termos sacrificado a Monarquia e estabelecido a República, supondo melhorar de instituições, e promover o governo da nação pela nação, ver operar- se o retrocesso mais violento das conquistas liberais, já consolidadas sob o antigo regímen, a um sistema de anarquias e ditaduras, alternativas ou simultâneas, com que contrastam epigramaticamente as formas de uma democracia esfarrapada.

Uma espécie de maldição acompanha, ultimamente, o trabalho ingrato dos que se votaram à lida insana de sujeitar à legalidade os governos, implantar a responsabilidade no serviço da nação, e interessar o povo nos negócios do país. A opinião pública, mergulhada numa indiferença crescente, entregou-se de todo ao mais muçulmano dos fatalismos.

Com o reinado sistemático e ostentoso da incompetência cessaram todos os estímulos ao trabalho, ao mérito e à honra. A política invadiu as regiões divinas da justiça, para a submeter aos ditames das facções.

Rota a cadeia da sujeição à lei, campeia dissoluta a irresponsabilidade.

Firmada a impunidade universal dos prepotentes, corrompeu-se a fidelidade na administração do erário. Abertas as portas do erário à invasão de todas as cobiças, baixamos da malversação à penúria, da penúria ao descrédito, do descrédito à bancarrota. Inaugurada a bancarrota, com o seu cortejo de humilhações, agonias e fatalidades, vê a nação falidas até as garantias da sua existência, não enxergando com que recursos iria lutar amanhã, ao menos pela sua integridade territorial, contra o desmembramento, o protetorado, a conquista estrangeira. E, enquanto este inevitável sorites enlaça nas suas tremendas espirais a nossa pátria, todos os sinais da sua vitalidade se reduzem ao contínuo crescer dos seus males e sofrimentos, sob a constante ação dos cancros políticos que a devoram, das parcialidades facciosas que a corroem, dos abusos, por elas entretidos, que a lazaram de uma gafeira ignóbil.

Ora, senhores, como todas estas calamidades se reduzem à inobservância da lei, e têm na inobservância da lei a sua causa imediata, não estranhareis que para elas vos chame a atenção numa solenidade como esta. Bem fora estou de vos querer arrastar no campo onde se embatem os partidos, e debatem as suas pretensões. Ao poder não aspirais, e o melhor da vossa condição está em nada terdes com o poder.

Mas tudo tendes com a lei. Da lei depende essencialmente o vosso existir.

Vosso papel está em serdes um dos guardas professos da lei, guarda espontâneo, independente e desinteressado, mas essencial, permanente e irredutível.

Fora da lei, a nossa Ordem não pode existir senão embrionariamente como um começo de reivindicação da legalidade perdida. Legalidade e liberdade são o oxigênio e o hidrogênio da nossa atmosfera profissional. Nos governos despóticos, sob o Terror jacobino, com as ditaduras dos Bonapartes, debaixo das tiranias napolitanas, moscovitas ou asiáticas, a nossa profissão ou não se conhece, ou vegeta como cardo entre ruínas. Na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, nas democracias liberais, na Austrália, na África Inglesa, nos países europeus ou americanos, que por esse tipo se modelarem, a toga, pela magistratura e pelo foro, é o elemento predominante. Dos tribunais e das corporações de advogados irradia ela a cultura jurídica, o senso jurídico, a orientação jurídica, princípio, exigência e garantia capital da ordem nos países livres.

Se, pois, na legalidade e liberdade vivemos, definhando e morrendo, quando a liberdade expira com a legalidade, na legalidade e na liberdade temos o maior dos nossos interesses; e, desvelando-nos por elas, interessando-nos em tudo quanto as interessa, por nós mesmos nos interessamos, lidamos pela nossa conservação mesma, e nos mantemos no círculo da nossa legítima defesa.

Aqui está, senhores, o porquê vos eu digo e redirei que, com a abolição da legalidade e da liberdade no Brasil, abolição agora pouco mais ou menos consumada, se enceta, para nós, para este Instituto, uma existência bastarda, precária, irreal, a existência de um organismo num meio a ele hostil e com ele incompatível.

Os advogados na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França, na Bélgica, na Itália, em toda a parte, nunca deixaram de sentir esse laço de solidariedade vital entre a sua classe e o governo da lei, a preservação das garantias liberais, a observância das constituições juradas. Nem, ao elaborar a brasileira, os juristas, os advogados que nela trabalhamos, e que, pela nossa preponderância na sua composição, não se exagerará, dizendo que a fizemos, nos desviamos da linha, que a nossa educação jurídica nos traçava, que ela nos impunha, mostrando-nos a associação inseparável do gênio do novo regímen, cuja carta redigíamos, com uma organização da justiça, capaz de se contrapor aos excessos do governo e aos das maiorias legislativas, uns e outros dez vezes mais arriscados e freqüentes nas repúblicas do que nas monarquias, nas federações do que nas organizações unitárias, no presidencialismo do que no parlamentarismo.

Se os críticos da nossa obra não se deixassem transviar, lançando ao sistema as culpas da sua execução, e responsabilizando o mecanismo pelos erros dos mecânicos incompetentes ou interesseiros, que o têm estragado, não se perderia tantas vezes de vista a imensidade incalculável do benefício, com que dotamos o país, definindo, organizando e protegendo como definimos, organizamos e protegemos a justiça federal.

Ainda não se notou, entre nós, onde tantos censores têm surgido à obra constitucional de 1890 e 1891, que o Governo Provisório, num ponto cardeal a esse respeito, se mostrou muito mais cuidadoso e previdente do que os autores da Constituição dos Estados Unidos.

Estes, no propósito de assegurarem toda a independência à magistratura suprema da União, se limitaram a declarar vitalícios os membros da Su-

prema Corte, como os outros juízes federais, e a proibir que se lhes reduzam os vencimentos. Em contraste, porém, com estas duas medidas tutelares, duas portas deixou abertas a Constituição americana ao arbítrio do Congresso Nacional contra a independência da judicatura federal, entregando à discrição do Poder Legislativo o fixar o número dos membros do Tribunal Supremo e os casos de apelação das justiças inferiores para esse Tribunal.

Foi uma imprudência, de que algumas administrações americanas servidas pelas maiorias congressuais se têm utilizado por vezes, já para diminuir ou aumentar a composição da Corte Suprema, quando certas causas de extraordinário interesse para o governo central lho aconselham, já para obstar a que pleitos, decididos na primeira instância em sentido favorável às conveniências da União, possam vir a receber solução diversa na instância superior. É o que sucedeu, em 1867, no caso Ex parte Mc Cardle, onde o Congresso, receando uma decisão contrária às intituladas Leis de Reconstrução(2), interveio, por assim dizer, no feito pendente, retirando à Suprema Corte o direito de julgar, por apelação, em espécies daquela natureza. O Tribunal já se pronunciara, reconhecendo a sua competência. Mas, como, antes de proferido o julgamento de meritis, se promulgasse o ato legislativo, que lhe cerceava, recuou, submetendo-se à medida, incontestavelmente constitucional, com que a legislatura o desinvestira de tal autoridade.(3) Exercidas com parcimônia nos Estados Unidos, onde a opinião pública atua constantemente com a sua fiscalização moralizadora nos atos do poder, essas duas faculdades, se a Constituição brasileira as adotasse, teriam aniquilado, aqui, a justiça federal, inutilizando-a no desempenho da mais necessária parte da sua missão, no encargo de servir de escudo contra as demasias do governo e do Congresso.

Toda a vez que o Supremo Tribunal adotasse uma decisão contrária às exigências, aos atentados, ou aos interesses de uma situação política, seus potentados, suas maiorias, uma lei, votada entre a sentença e os embargos, e executada incontinenti com as nomeações necessárias,

(2) As Leis de Reconstrução foram aprovadas pelo Congresso norte-americano ao término da Guerra de Secessão. (3) Cf. BALDWIN, Simeon E. The American Judiciary, p. 116-7. JUDSON, Frederick N. The Judiciary and the People, p. 185-6.

aumentando o número dos membros daquela magistratura, operaria a reconsideração do julgado.

Toda vez, por outro lado, toda a vez que a União receasse perder, na segunda instância, uma causa de relevância excepcional para a sua política ou as suas finanças, já vitoriosa na primeira, o Congresso Nacional, alterando o regímen das apelações, e excluindo esse recurso no gênero de casos, a que pertencesse o da hipótese, inibiria o Supremo Tribunal de entender no pleito, e, destarte, firmaria como definitivo o vencimento já obtido pelo governo, mas ainda sujeito à revisão.

Destas duas maneiras de manipular e torcer a justiça, habilitando a mais poderosa das duas partes a evitar ou ajeitar o tribunal supremo, nos livraram o art. 56 e o art. 59 da nossa Constituição: o primeiro estipulando a esse tribunal um número de juízes, que a lei ordinária não pode modificar; o segundo, prescrevendo que para ele haverá recurso nas questões resolvidas pelos juízes ou tribunais federais. Com estas duas cautelas, premunindo a justiça federal, no Brasil, contra dois gravíssimos perigos, a que se acha exposta na grande república da América do Norte, reunimos, em defesa dessa justiça, na sua independência e na sua pureza, contra as seduções e compressões administrativas ou legislativas, todos os resguardos humanamente possíveis.

Se, ainda assim, e não deixamos de todo isenta e inacessível aos manejos dos partidos, às captações do poder, é que os melhores sistemas de organização, os preservativos mais heróicos, os específicos mais radicais não bastam quando o caráter dos homens, mal escolhidos para as posições de alta confiança nacional, voluntariamente se oferece à contaminação, de que a lei empenhou as mais eficazes garantias em os abrigar. Mas, pelo menos, tudo o que estava ao alicerce dos construtores do regímen, tudo quanto cabia nas possibilidades do seu mecanismo, tudo o que uma previsão avisada podia imaginar e combinar, tudo se envidou para que se não entregassem a uma entidade indefesa e dependente os poderes de soberana majestade e grandeza, confiados, nas federações do tipo norte-americano, aos tribunais federais.

A revolução jurídica encerrada nesta mudança era, entretanto, difícil de assimilar ao nosso temperamento e aos nossos costumes. O poder político é de sua natureza, absorvente e invasivo, mas invasivo e absorvedor ainda nas Câmaras Legislativas do que no governo. As nossas

tradições haviam-nos educado no dogma da supremacia parlamentar.

Esta, a norma inglesa, estabelecida com a revolução de 1688, a norma francesa, decorrente da revolução de 1789, a norma européia generalizada com a propagação do governo constitucional desde 1830, nas monarquias limitadas, a norma brasileira, introduzida com a nossa Constituição de 1823(4 )e praticada em 66 anos de regímen imperial.

Substituí-la pelo regímen presidencial, sem buscar na criação de uma justiça como a americana, posta de guarda à Constituição contra as usurpações do presidente e as invasões das maiorias legislativas, contra a onipotência de governos ou congressos igualmente irresponsáveis, era entregar o país ao domínio das facções e dos caudilhos. Eis por que a Constituição brasileira de 1891, armando a justiça federal da mesma autoridade em que a investe a Constituição dos Estados Unidos, a dotou de garantias ainda mais numerosas e cabais, para arrostar as facções acasteladas no Executivo e no Congresso Nacional.

Quaisquer que fossem, porém, os contrafortes de que a nova Constituição o cercasse, o reduto do nosso Direito Constitucional, para arrostar, com eficácia e sem risco da sua própria estabilidade, o choque violento dos seus agressores naturais, necessitava de contar, como conta nos Estados Unidos, com a vigilância desvelada e o enérgico apoio da opinião nacional. Em lhe falecendo este sustentáculo, tão escasso e tão superficial e contestável como tem sido no Brasil, todas as vantagens correriam contra o poder inerme e solitário da justiça, todas aproveitariam ao poder armado e opulento e multíplice do governo.

Ainda assim, ferida a luta em condições de tamanha desigualdade, nem sempre tem acabado, nestes vinte e quatro anos, pelo desbarato do mais fraco. Grandes triunfos, neste quarto de século, registra a justiça brasileira. Os direitos supremos, algumas vezes imolados, acabaram por vingar, em boa parte, na corrente dos arestos. Haja vista os grandes resultados que, graças a ela, se apuraram, sob o estado de sítio deste ano, quando, mercê das suas sentenças, alcançamos salvar, da liberdade de imprensa, uma parte considerável, e preservar os debates

(4) O projeto de Constituição do Império data de 11 de dezembro de 1823 e a Constituição foi outorgada pelo Imperador a 25 de março de 1824.

parlamentares das trevas em que os queira envolver a ditadura, com a cumplicidade submissa do próprio Congresso Nacional.

Mas os elementos facciosos, que se fizeram senhores do Estado, e exploram, como vasta comandita, as aparências restantes do regímen, adulterado nas suas condições mais necessárias, mutilado nos seus órgãos mais nobres, prostituído nas funções mais vitais, sentem o obstáculo invencível, que às aventuras do mandonismo, do caudilhismo, do militarismo opõe uma justiça entrincheirada solidariamente nas prerrogativas da justiça americana, e compreendem que, para acabar com os últimos remanescentes da legalidade no domínio político e civil, eleitoral e parlamentar, administrativo e financeiro, para transformar absolutamente a República num governo de privilégios, abusos e castas, lhes cumpre dar àquela instituição um combate de extermínio, abrir contra ela uma campanha inexorável, só a largar de mão depois de reduzida a um poder subalterno, desmedulado e caduco.

Com esse intuito sitiaram a cidadela ameaçada, e lhe apertam os aproches, assestando contra ela as mais formidáveis baterias da força, ao mesmo tempo que lhe solapam os fundamentos com as minas de uma sofisteria desabusada.

Dessa guerra sem escrúpulos, a tática principal tem consistido, sobretudo, nestes últimos quatro anos, em negarem abertamente obediência o governo e o Congresso às mais altas sentenças judiciais, com pretexto de que o Supremo Tribunal exorbita, prevarica, usurpa; e, para coonestar essa rebeldia mascarada em amor da legalidade, a exceção dos casos políticos, oposta, na jurisprudência dos Estados Unidos, à competência que a Suprema Corte ali exerce, de negar definitivamente execução às leis inconstitucionais, tem ministrado aos congressos e governos insurgidos a evasiva, que havia mister esse movimento de anarquia radicalmente subversiva.

Mas, para abater o Supremo Tribunal Federal, e desafogar do receio da sua interferência coibitiva à política de nossa terra, inscia legum, ignara magistratum(5), não bastava a contingência, iminente sempre, de ver as suas sentenças desacatadas, ora com arrogante desprezo, ora com erudita ostentação de afrontosas monstruosidades jurídicas,

(5) Cf. Tácito. Oeuvres Complètes de Tacite, t. 2, liv. 1. 11, p. 10.

alardeadas nas mensagens presidenciais ou nos debates parlamentares.

Conveniente seria, ainda, sistematizar o desrespeito, legislar a revolta, organizar a usurpação, assentar em bases categóricas a desvirilização do Poder Judiciário na República brasileira, a enfeudação desse poder, dessexuado e invertido, às secretarias de Estado, às oligarquias políticas, às camarilhas dominantes. Para ousar essa audácia vertiginosa, era preciso viver no antidiluvianismo, em que vivem os árbitros da nossa grotesca República, e meter o jacobinismo gálico na pele da Constituição americana.

Como a nossa determinou, imitando o seu modelo, que o Senado julgará os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade, engenharam, com igual ignorância que arrojo, forçar essa atribuição, para colocar o Supremo Tribunal Federal num pé de subalternidade ao Senado, excluindo arbitrariamente do direito comum os crimes de responsabilidade, quando cometidos por esses magistrados.

Digo arbitrariamente, porque os crimes de responsabilidade são definidos em comum no Código Penal com relação a todos os funcionários que neles incorrem, excetuando a Constituição apenas os do Presidente da República, único e só funcionário, magistrado único e só, a respeito de quem a nossa lei fundamental declara, no seu art. 54, que uma lei especial definirá os crimes de responsabilidade. Claro está que, se os dos membros do Supremo Tribunal houvessem também de se definir em lei especial, o texto da carta republicana, preciso e peremptório, sobre o assunto, no tocante ao Presidente da República, seria igualmente explícito e solene, em vez de omisso e silencioso, a respeito daqueles magistrados.

Tanto mais se evidencia aqui a evidência quanto vizinhos quase parede-meia demoram o art. 54, onde se impõe uma lei especial, a fim de qualificar, no que entende com o Chefe do Poder Executivo, os delitos de responsabilidade, e o art. 57, onde a nossa lei orgânica, indicando o tribunal para os membros dessa magistratura nos delitos de responsabilidade, não fala em lei distinta para os definir. O confronto desta diversidade no conteúdo com esta proximidade na colocação prova como que ad oculum a conclusão a que chegamos e tira em limpo o caso.

Mas a política destes últimos, como quem sente dia a dia abrir-se-lhe a vontade no lauto banquete dos abusos, não se detém com embaraços, quando o estômago lhe afeta um bocado régio, e bem pouco é para as goelas do seu arbítrio uma instituição constitucional, quan-

do se pode sorver e sumir de um trago ao bucho pantagruélico de uma situação useira e vezeira em devorar leis, tesouros e constituições.

Tanto vai dos homens que fundaram este regímen aos que o estão gargantuando, tanto da democracia jurídica, em que, há vinte e cinco anos, encarnávamos o nosso ideal, à demagogia anárquica, misto de cesarismo e indisciplina, pretorianismo e jacobinismo, em que os ideais de hoje supuram o seu vírus.

Aqueles faziam da justiça a roda mestra do regímen, a grande alavanca da sua defesa, o fiel da balança constitucional. Estes, se lograssem o que intentam, reduziriam o Supremo Tribunal Federal a uma colônia do Senado.

Em vez de ser o Supremo Tribunal Federal, qual a nossa Constituição o declarou, o derradeiro árbitro da constitucionalidade dos atos do Congresso, uma das Câmaras do Congresso passaria a ser instância de correição para as sentenças do Supremo Tribunal Federal.

Aqui está, senhores, como nos arraiais da ordem se pratica o espírito conservador. Aqui está como os ortodoxos cultivam a verdade constitucional. Aqui está como as vestais da tradição histórica alimentam a chama sacra da virgindade republicana.

A investida reacionária da nulificação da justiça, que se esboça no grandioso projeto de castração do Supremo Tribunal Federal, tem por grito de guerra, conclamado em brados trovejantes, a necessidade, cuja impressão abrasa os peitos à generosa coorte, de pôr trancas ao edifício republicano contra a ditadura judiciária. É a ditadura dos tribunais a que enfia de terror as boas almas dos nossos puritanos. Santa gente! Que afinado que lhes vai nos lábios, onde se tem achado escusas para todas as ditaduras da força, esse escarcéu contra a ditadura da justiça! Os tribunais não usam espadas. Os tribunais não dispõem do Tesouro. Os tribunais não nomeiam funcionários. Os tribunais não escolhem deputados e senadores. Os tribunais não fazem ministros, não distribuem candidaturas, não elegem e deselegem presidentes. Os tribunais não comandam milícias, exércitos e esquadras. Mas, é dos tribunais que se temem e tremem os sacerdotes da imaculabilidade republicana.

Com os governos, isso agora é outra coisa. Das suas ditaduras não se arreceia a democracia brasileira. Ninguém aqui se importa com as

ditaduras presidenciais. Ninguém se assusta com as ditaduras militares.

Ninguém se inquieta com as candidaturas caudilhescas. Ninguém se acautela, se defende, se bate contra as ditaduras do Poder Executivo. Embora o Poder Executivo, no regímen presidencial, já seja, de sua natureza, uma semiditadura, coibida e limitada muito menos pelo corpo legislativo, seu cúmplice habitual, do que pelos diques e freios constitucionais da justiça, embora o Poder Executivo seja o erário, o aparelho administrativo, a guarda nacional, a polícia, a tropa, a armada, o escrutínio eleitoral, a maioria parlamentar. Embora nas suas mãos se reúnam o poder do dinheiro, o poder da compensação e o poder das graças.

Seja ele embora, entre nós, o poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos negócios, e o poder da força, quanto mais poder tiver, menos lhe devemos cogitar na ditadura, atual, constante, onímoda, por todos reconhecida mas tolerada, sustentada, colaborada por todos.

Para esse poder já existe uma lei de responsabilidade. A Constituição a exigiu. A primeira legislatura do regímen deu-se pressa em a elaborar. A medida tinha por objeto atalhar a degeneração da presidência numa ditadura permanente. Mas os nossos estadistas se contentaram de a estampar no Diário Oficial, e arquivá-la na coleção das leis. Raros são os seus artigos em que não hajam incorrido os nossos presidentes.

Alguns a têm violado em quase todos. Mas, quanto maior é a soma de atentados com que carrega um presidente, mais unânimes são os votos da sabedoria política em lhe assegurar a irresponsabilidade. Isto é: quanto mais completa a ditadura presidencial, quanto mais ditadura essa ditadura, mais imune a qualquer responsabilidade.

Seis vezes entre nós se propôs, seis vezes, não menos, a responsabilidade presidencial, e não menos de seis vezes a rejeitou a Câmara dos Deputados, não a considerando, sequer, objeto deliberável.

A razão de Estado, negação virtual de todas as constituições, radical eliminação de todo o direito constitucional, a razão de Estado não existe para outra coisa: absolver os mais insignes culpados, dispensar na lei, justamente nos casos em que a sua severidade mais tinha a mira, recolher ao coito da impunidade os crimes mais insólidos, mais desmarcados, mais funestos.

Graças a essa indulgência, aclamada sempre na retórica dos nossos parlamentos, ainda não houve presidente nesta democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos. Ainda nenhum foi achado cometer um só desses delitos, que tão às escâncaras cometem. A jurisprudência do Congresso Nacional está, pois, mostrando que a lei de responsabilidade, nos crimes do Chefe do Poder Executivo, não se adotou, senão para não se aplicar absolutamente nunca. Deste feitio, o presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo. De modo que, com a irresponsabilidade inevitável da legislatura, os nossos republicanos, indiferentes ao sistema da irresponsabilidade em todos os graus, em todos os ramos e em todas as expressões do poder, só não querem irresponsável o Supremo Tribunal Federal.

Esse o terrível ditador, o ditador formidoloso, cuja sombra se projeta sinistra sobre as instituições. Contra os golpes desse, contra as suas maquinações abomináveis, contra os seus insidiosos assaltos à República, é que urge metermos todos os escudos, organizando-lhe rigorosamente a responsabilidade. Mas de que modo? Como a Constituição a quer? Organizando-lhe a responsabilidade nos limites do Código Penal? Não. Instituindo uma pavorosa nomenclatura de crimes novos, inominados, absurdos, cuja capitulação legislativa aboliria totalmente a consciência da magistratura, a sua independência profissional, as garantias da sua vocação, reduzindo ao último dos tribunais o maior de todos.

Nenhum tribunal, no aplicar da lei, incorre, nem pode incorrer, em responsabilidade, senão quando sentencia contra as suas disposições literais, ou quando se corrompe, julgando sob a influência de peita ou suborno. Postas estas duas ressalvas, que nada alteram a independência essencial ao magistrado, contra os seus erros, na interpretação dos textos que aplica, os únicos remédios existentes consistem nas formas do processo, nas franquias asseguradas à defesa das partes e, por último, nos recursos destinados a promover a reconsideração, a cassação, ou a modificação das sentenças, recursos que não se interpõem da justiça para outro poder, mas se exercitam, necessária e intransferivelmente, dentro da própria esfera judicial de uns para outros graus da sua jerarquia.

Fora daí não há justiça, não há magistratura, não há tribunais.

Com este nome já os não podereis chamar, se, cometendo-lhes a aplica-

ção da lei, os não constituirdes em árbitros, privativos e absolutos da sua interpretação, se da que eles estabelecerem admitirdes recurso para um poder estranho, se acima deles erigirdes uma entidade maior, com a incumbência de lhes retificar as decisões, e lhes castigar os erros. Admitida uma tal organização, quem teria o direito a denominar-se de tribunal, de magistratura, de justiça, era, afinal de contas, unicamente, essa potestade soberana, de cujos oráculos penderiam as sentenças dos julgadores e a sorte destes, sua liberdade, seu patrimônio, sua honra.

Tal extravagância não acudiu jamais à mente de ninguém.

Quem quer que saiba, ao menos em confuso, destas coisas, não ignorará que todos os juízes deste mundo gozam, como juízes, pela natureza essencial às suas funções, o benefício de não poderem incorrer em responsabilidade pela inteligência que derem às leis de que são aplicadores. Haverá nisto mal? Alegar poderiam que há o de se consentir em que escapem de corretivo os erros dos tribunais. Mas autoridade humana, que não erre, onde é que nunca se viu? De errar igualmente não serão susceptíveis os revisores agora indicados para os erros dos tribunais? Pois quando acontecer que acabe errada a justiça dos tribunais, não é mais(6) para temer que comece erradíssima a justiça dos chefes de governo e dos chefes de partido, a justiça das secretarias administrativas e das maiorias legislativas? Pois se, de revisão e de recurso em recurso, a um paradeiro havemos de chegar, onde se estaque, e donde se não tolere mais recurso, nem revisão, por que iríamos assentar esse último elo na política, em vez de o deixar na magistratura? Pois, se da política é que nos queremos precaver, buscando a justiça, como é que à política deixaríamos a última palavra contra a justiça? Pois, se nos tribunais é que andamos à cata de guarida para os nossos direitos, contra os ataques sucessivos do Parlamento ou do Executivo, como é que volveríamos a fazer de um destes dois poderes a palmatória dos tribunais? Assim como assim, porém, não se conhece, por toda a superfície do globo civilizado, nação nenhuma, em cuja legislação penetrasse a idéia, que só ao demônio da política brasileira podia ocorrer, de criar fora da justiça, e incumbir à política uma corregedoria, para julgar e punir as supostas culpas do tribunal supremo no entendimento das leis.

(6) EmO Imparcial está: “não é ainda mais”.

Dessa extravagante situação, igualmente inaudita que absurda, estão, entre nós, livres todos os juízes, pelos termos em que o nosso Código Penal capitula toda a possível delinqüência dessa classe de servidores do estado. E nisto nos encontramos de acordo com o mundo inteiro, onde todos os sistemas judiciários, de que nos consta, asseguram à magistratura a mais plena irresponsabilidade quanto à apreciação do fato e do direito no ato de julgar.(7) A obrigação de compor o dano e a infâmia em que o juiz romano incorria, por violar o direito e a lei, circunscrevia-se aos casos em que ele a fraudasse com dolo manifesto: “cum dolo [malo] in fraudem legis sententiam dixerit”.(8) O princípio não variou até hoje, ainda hoje se tem por inconcusso; e, por este lado, o desenvolvimento das idéias jurídicas, longe de tender para a solução da responsabilidade, cada vez mais dela nos vai distanciando.(9) Não é da Constituição atual que data, no Brasil, a existência de um Supremo Tribunal de Justiça. Com a Constituição de 1823, já possuíamos essa instituição, e, durante os sessenta e seis anos que ela viveu sob a Coroa Imperial, nunca ninguém se lembrou de lhe armar um código especial de criminalidade, e, ainda menos, de submeter esse tribunal à jurisdição de nenhum dos seus jurisdicionados.

Agora estai comigo. Veio a República; e que fez? Trocando, na denominação desse tribunal, o predicativo de justiça pelo qualificativo de federal, não lhe tirou o caráter de tribunal de justiça, inerente, sobre todos, à sua missão constitucional; senão que, pelo contrário, o ampliou constituindo nele o grande tribunal da Federação, para sentenciar nas causas suscitadas entre a União e os Estados, e em derradeira instância, nos pleitos debatidos entre os atos do governo, ou os atos legislativos, e a Constituição.

Ora estai no caso. Ele é certo que com isto cresceu imensamente o papel desse tribunal, e de muito mais gravidade se lhes revesti-

(7) Cf. BIDERMANN, Joseph. La Responsabilité des Magistrats envers les Particuliers, p. 213. (8) “De Judiciis”. In: Cujacius, Jacobus. Opera, t. 7, liv. 5, ad L. 15 e 16, § 1, col. 223. (9) Cf. BIDERMANN, Joseph, ob. cit., p. 213. Cf. ESMEN apud BIDERMANN, Joseph, ob. cit., p. 214.

ram as atribuições. Mas daí se poderia seguir, acaso, que, por acautelar o abuso delas, se houvesse de sotopor a consciência do Supremo Tribunal Federal ao jugo extrajudicial e absolutamente político, de uma das casas do Congresso? Nada menos.

Primeiramente, notai. Cada um dos Poderes do Estado tem, inevitavelmente, a sua região de irresponsabilidade. É a região em que esse poder é discricionário. Limitando a cada poder as suas funções discricionárias, a lei, dentro nas divisas em que as confirma, o deixa entregue a si mesmo, sem outros freios além do da idoneidade, que lhe supõe, e do da opinião pública, a que está sujeito. Em falecendo eles, não há, nem pode haver, praticamente, responsabilidade nenhuma, neste particular, contra os culpados. Dentro no seu círculo de ação legal, onde não tem ingresso nem o corpo legislativo nem a Justiça, o governo pode administrar desastradamente, e causar ao patrimônio público danos irreparáveis.

Em casos tais, que autoridade o poderá conter, neste regímen? Por sua parte, o Congresso Nacional, sem ultrapassar a órbita da sua autoridade privativa e discricionária, pode legislar desacertos, loucuras e ruínas. Onde a responsabilidade legal, a responsabilidade executável contra esses excessos? E, se os dois poderes políticos se derem as mãos um ao outro, não intervindo, moral ou materialmente, a soberania da opinião pública, naufragará o Estado, e a Nação poderá, talvez, soçobrar.

Nem por isso, contudo, já cogitou alguém de chamar, nessas conjunturas( 10), deste gênero, não reconhece outra responsabilidade, senão a da conta que todos os órgãos da soberania(11) a ele devem.

Noutra situação não se acham os tribunais e, com particularidade, o Supremo Tribunal Federal, quando averba de inconstitucionalidade os atos do governo ou os atos do Congresso.

Declarar, pois, inconstitucionais esses atos quer dizer que tais atos excedem, respectivamente, a competência de cada um desses dois poderes. Encarregando, logo, ao Supremo Tribunal Federal a missão de pronunciar como incursos no vício de inconstitucionalidade os atos do Poder Executivo, ou do Poder Legislativo, o que faz a Constituição é in-

(10) Em O Imparcial está: “nessas conjunturas, contra os dois poderes políticos, o poder judicial. É que contra os desacertos”. (11) EmO Imparcial está: “soberania nacional”.

vestir o Supremo Tribunal Federal na competência de fixar a competência a esses dois poderes, e verificar se estão dentro ou fora dessa competência os seus atos, quando judicialmente contestados sob este aspecto.

Agora o chiste da reforma projetada. O que ela inculca é que, em excedendo o Supremo Tribunal Federal, quando de tal atribuição faz uso, a sua competência, o Senado o chame a contas, o julgue, e o reprima, condenando-lhe os membros delinqüentes. Risum teneatis, amici? Realmente, nunca se chufeou assim com o senso comum. Vejamos o argumento. Supondo que esse tribunal, ao declarar inconstitucional um ato do Poder Legislativo (cinjamo-nos a estes), exorbite da sua competência, qual é a competência de que ele exorbitou? A competência de sentenciar que, perpetrando esse ato, o Poder Legislativo era incompetente.

Tem o Supremo Tribunal Federal autoridade semelhante? Ninguém o poderá negar; visto como o art. 59, da nossa carta republicana, obriga esse tribunal a negar validade às leis federais, quando contrárias à Constituição, e as leis federais são contrárias à Constituição, quando o Poder Legislativo, adotando tais leis, não se teve nos limites, em que a Constituição o autoriza a legislar, isto é, transpassou a competência, em que a Constituição o circunscreve.

Logo, se o exercício desta função judiciária consiste, precisamente, em aquilatar e declarar, na suprema instância, que os atos do Congresso Nacional, isto é, os atos nos quais colaboram a Câmara e o Senado juntos, lhes ultrapassam a competência constitucional; se, pois, da competência desses dois ramos do corpo legislativo, acordes e cooperantes, o juiz, na suprema instância, é o Supremo Tribunal Federal, como admitir, que da competência do Supremo Tribunal Federal, nessa decisão, possa vir a ser árbitro, ulteriormente, o Senado, isto é, nem mais nem menos, uma das duas câmaras do Congresso? É superlativo da irrisão, o nec plus ultra do absurdo. Atentai bem. Da competência constitucional da Câmara e do Senado, reunidos em Congresso, o último juiz é o Supremo Tribunal Federal. Mas, se, pronunciada por ele a sentença que nega a competência constitucional ao Congresso, não estiver este por ela, da competência desse tribunal em julgar da competência do Congresso o último juiz, o árbitro final, então, vem a ser, única e somente, o Senado.

De sorte que, pela Constituição, o Supremo Tribunal Federal anula as leis do Congresso. Mas o Senado anula a sentença, que as anular, fulminando o tribunal, que a proferir.

Decerto essa Constituição endoideceu, já que de estarem delirando não posso eu suspeitar os doutos comentadores, cujo saber no-la figuram assim desorientada e treslida.

Um regímen que desse a um tribunal a incumbência de negar validade às leis inconstitucionais, e, ao mesmo tempo, reconhecesse ao corpo legislativo o direito de proceder contra as sentenças desse Tribunal, considerando-as como atentados contra a legislatura, seria a vesânia organizada.

Com que qualificação classificaríamos agora a insensatez daquele, que, depois de confiar a um tribunal a guarda jurídica da Constituição contra as invasões do corpo legislativo, reconhecesse a uma só das duas casas que o compõem o arbítrio de chamar à sua barra esse tribunal como réu, literalmente, em cada um dos seus membros, quando dessa autoridade constitucional se atrevesse a usar? Juntai, porém, ainda por cima, ao destempero de uma Constituição em briga, deste feitio, nas suas próprias entranhas, consigo mesma, juntai a isso a colossal enormidade, que se consumaria contra os rudimentos de toda a justiça, em qualquer tribunal, mantendo impendente à cabeça de cada um dos membros a contínua ameaça de responsabilidade e castigo por atos de consciência, como os de interpretação das leis, que houverem de aplicar, e vede se acertais com algum meio de tratar seriamente, no terreno da lógica e da razão, este ousadíssimo gracejo.

Altas origens teve ele, entretanto; e, se não, foi(12), decerto, como gracejo que lhe deram corpo. Nasceu das transcendentes aspirações de uma política decidida a remover todos os tropeços de legalidade no seu caminho para uma dominação total do país.

Umas tinturas superficiais do constitucionalismo americano e as vagas notícias do impeachment ensaiado nos Estados Unidos contra alguns juízes persuadiram-na de que lhe não seria de todo inexeqüível a traça de burlar o princípio fundamental do sistema que dali transladamos, o excelso ascendente da justiça na vida constitucional do regímen,

(12) EmO Imparcial está: “e, não foi”.

criando no Senado uma como inquisição, um tribunal de consciência
político, a fim de emascular, turbar e esmagar a consciência jurídica do
Supremo Tribunal Federal.

Esqueceram-se de que essa trama tinha no seu próprio objeto a certeza fatal da sua irrealizabilidade. Não admitiram que, propondo-se destruir a Constituição a poder de leis inconstitucionais, vão esbarrar no invencível obstáculo da norma constitucional, por cuja virtude as leis contrárias à Constituição não são leis. Não viram que todo o arsenal de raios imbeles, forjados com esse intento, iria aniquilar-se de encontro à impassibilidade, com que a vítima alvejada se desembaraçaria da impertinência, limitando-se a encolher os ombros, e não tomar conhecimento da iniciativa.(13) Instituído principalmente com o desígnio de recusar execução às leis inconstitucionais, não havia de consentir o Supremo Tribunal Federal em que nele se executassem as mais inconstitucionais de todas as leis contrárias à Constituição. Bastaria, pois, que na evidência dessa inconsticionalidade se envolvesse, para que, ante o seu Non possumus, lhe caísse aos pés, desfeita em nada, a estrondosa inépcia.

Votando uma lei, que privasse o Supremo Tribunal Federal da autoridade suprema, que a Constituição lhe deu, para negar validade às leis a ela contrária, o Congresso votaria uma lei contrária à Constituição.

Bastaria, pois, ao Supremo Tribunal Federal pronunciar-lhe a inconstitucionalidade, para que a jurisdição inconstitucional, outorgada por essa lei ao Senado, se desmanchasse como bolha de ar. Desobedecendo a esse atentado legislativo contra a Constituição, a essa usurpação do Congresso, o Supremo Tribunal Federal se haveria resistente e insubmisso ao abuso da legislatura, para se haver submisso e fiel ao mandado do soberano da Constituição, como haver-se costuma e deve, quando quer que a lei ordinária, rebelando-se contra a lei constitucional, deixa de ser lei, e, como tal, cai sob a alçada repressiva daquela justiça.

Não é verdade? Sim e muito que sim, meus senhores; porquanto, sendo essa instituição, peculiar ao tipo federativo de origem americana, ou, segun-

(13) EmO Imparcial está: “tolice”.

do a teoria de Marshall, à natureza das constituições regidas(14), essa, a instituição pela qual o Supremo Tribunal Federal está de vela na cúpula do Estado, a todo o edifício constitucional, sendo, torno a dizer, essa instituição, a todas as outras sobreeminente neste ponto de vista, a instituição equilibradora, por excelência, do regímen, a que mantém a ordem jurídica nas relações entre a União e os seus membros, entre os direitos individuais e os direitos do poder, entre os poderes constitucionais uns com os outros sendo esse o papel incomparável dessa instituição, a sua influência estabilizadora e reguladora influi, de um modo nem sempre visível, mas constante, profundo, universal na vida inteira do sistema.

Nem ela sem ele, nem ele sem ela poderiam subsistir um momento.

O que se guarda, pois, no bojo desse tentâmen, destinado a sumir-se e ressurtir com as reaparições ou os eclipses da legalidade na existência nacional, é a transformação do regímen democrático na oligarquia de uma facção imperante no Congresso e centralizada no Senado.

Por isso é que, do aparelho constitucional, na organização da responsabilidade criminal para os nossos grandes magistrados, só essa peça escaparia: a jurisdição do Senado, a peça do maquinismo que mais a frisar está com os interesses da conspirata contra a justiça. Dessa responsabilidade, amplificada e desvirtuada, o juiz privativo seria o Senado, como a Constituição manda quanto à responsabilidade (tão diversa!) que ela estabelece.

Aí se respeitaria a indicação constitucional, visto que nenhuma outra quadraria mais ao justo com o espírito da reforma subversora.

Se no próprio Supremo Tribunal Federal não estivesse, destarte, a barreira insuperável a essa atrevidíssima veleidade, no próprio Supremo Tribunal Federal, insisto, no seu direito inabalável, inalienável, inamissível, no seu direito, que ninguém lhe pode arrebatar e de que ele em caso nenhum poderia decair nesse direito revestido e abroquelado pelo mais eminente dos seus deveres, o direito-dever de guardar a Constituição contra os atos usurpatórios do governo e do Congresso; – nesse( 15) próprio Tribunal, torno a dizer, não se achasse a muralha invencí-

(14) EmO Imparcial está: “rígidas”.

(15) Em O Imparcial está: “se nesse”.

vel a esse cometimento delirante, a Constituição brasileira, na sua essência, estaria toda ela tumultuada e revogada.

Levantando voz de restabelecer a lei constitucional, o que esse aborto de monstruosidade viria pois realmente fazer era adulterá-la com escândalo à luz do sol, e desmontá-la pelos alicerces.

Os crimes de responsabilidade dos membros do Supremo Tribunal Federal, que a Constituição incumbiu ao Senado a missão de julgar, estavam classificados na lei penal preexistente e, pela sua natureza, não deixavam a essa casa do Congresso autoridade nenhuma de onde pudesse resultar ameaça à integridade moral desses magistrados.

No decidir se eles julgaram contra disposição literal da lei, o que se cometeu ao Senado é, meramente, a verificação de um fato material.

Quando a lei comina a um crime a prisão, o julgador, que lhe aplica a morte(16), violou a lei na sua expressão material. Casos deste gênero não abrem margem ao arbítrio. Semelhantemente, quando se responsabiliza um juiz, porque aconselhe as partes, porque recuse ou demore a administração da justiça, porque intervenha nas causas em que a lei o declara suspeito, porque se corrompa ou venda, porque subtraia ou consuma documentos dos autos, porque solicite mulher que tenha litígio no seu juízo, porque dê ao público o escândalo da incontinência ostensiva, da embriaguez, do vício de jogos proibidos, nada perde, nesses como nos demais casos análogos, com a chamada a contas dos culpados, a inteireza da justiça, cujos distribuidores não podem ser irresponsáveis, se afrontam publicamente a moral, quebram abertamente com a lei, e rompem materialmente com os seus deveres precisos. Tais as hipóteses do impeachment, as que a Constituição brasileira contempla, quando estatui que o Senado julgará os crimes de responsabilidade do Supremo Tribunal Federal.

Mas o que se engenha agora é torcer destes limites estritos essa autoridade, para abrir, de roda a roda, ao seu domínio, à sua invasão, a consciência da Magistratura suprema, o seu foro íntimo, aquela região defesa a toda a responsabilidade, onde se elaboram as convicções do magistrado, onde o espírito do juiz vai beber a sua apreciação da lei que tem de aplicar. Eis a investidura em que agora se quereria colocar

(16) EmO Imparcial está: “pena de morte”.

uma das Câmaras do Congresso Nacional, exatamente para esbulhar o Supremo Tribunal Federal da sua missão de vigiante sobre os atos do corpo legislativo, para desvencilhar o corpo legislativo do obstáculo, que aos seus desmanchos pôs a Constituição nas atribuições inapeláveis desse grande tribunal.

Destarte aquele sobre quem se havia de exercer a suprema justiça, esse é o que sobre ela exerceria a justiça suprema. Que homens de lume no olho! A política brasileira fez do Congresso Nacional um laboratório de atentados e o homizio dos crimes do Poder Executivo. Verificado isso, os reivindicadores da própria irresponsabilidade e os acobertadores da irresponsabilidade presidencial arvoram-se a si mesmos em aplicadores de uma responsabilidade judiciária até agora ignota, destinada a emancipá-los da justiça.

Um código draconiano, já formulado, regeria o exercício dessa magistratura superior à suprema. Um código em que todos os atos de independência concebíveis nos ministros da nossa mais alta magistratura se achassem previstos e recebessem daqueles, para conter os quais ela foi especialmente instituída, uma expiração exemplar. Um código em cujo sistema de processo e criminalidade, inquisitorialmente constituído, a integridade judiciária dos guardas supremos da Constituição se reduzisse a massa de pílulas como simples drogas trituradas no gral dos interesses do poder.

Não há nada mais lógico. A política, depois de ter erigido, a pedra e cal, para as culpas de todos os seus agentes, a mais ampla irresponsabilidade, criaria, deste modo, para os que a Constituição instituía como supremo amparo contra tais excessos, a responsabilidade mais severa, e em tribunal desta responsabilidade arvoraria o corrilho do Senado, a assembléia dos mais acompadrados no interesse pela absolvição desses crimes.

Determinou a Constituição que dos excessos do governo e do Congresso Nacional julgasse em derradeira instância o Supremo Tribunal Federal. Que iríamos fazer agora? Determinaríamos que do acerto das sentenças do Supremo Tribunal Federal no exercício dessa magistratura suprema julgue em instância revisora uma das casas do Congresso Nacional. Era uma alteração de nonada do regímen. Tão-somente lhe viraríamos do avesso a Constituição. Sacrifício bem leve a troco do lucro obtido com arrasarmos a horrível ditadura judiciária.

Parece que esta é, realmente, a ditadura sob a qual o país se viu reduzir ao estado atual, a petição de miséria; e, se dela não lográssemos obter salvamento menos que acaçapando a Constituição debaixo da cama dos chefes de partido, valeria bem a pena sujeitarmo-nos a passar logo, sem constrangimentos constitucionais de espécie alguma, por essa transformação total do regímen, contanto que acabássemos com os truculentos ditadores do Supremo Tribunal.

Por que singularidades climatéricas seria que a justiça federal aqui viesse, aqui, a ser o poder agressivo, o poder minaz, o poder absorvente denunciado pelos oráculos do republicanismo brasileiro? Não pensavam assim os grandes homens de estado, a cujo tino se deve a Constituição dos Estados Unidos. Se manuseardes O Federalista, vereis como Hamilton advoga ali essa autoridade extraordinária, que os patriarcas da grande República entregavam à justiça federal sobre os atos do Congresso Nacional e do Executivo. O Judiciário, observava o célebre americano, é o mais fraco dos três ramos no poder e, conseguintemente, o menos propenso a usurpar, não tendo influência alguma sobre a espada ou a bolsa pública, não podendo, assim, tomar nenhuma deliberação ativa, e dependendo, até, afinal, do governo para a execução das próprias sentenças.(17) Dele pois não é de temer que empreenda nada contra as liberdades constitucionais. Todas as cautelas, pelo contrário, deve adotar o povo, para que o Judiciário não seja suplantado pelos outros dois poderes(18), e, quando entre as duas opressões houvéssemos de optar, menos grave seria sempre a dos tribunais que a dos governos ou a dos congressos.(19) Estava reservado ao Brasil descobrir, no jogo normal das instituições que copiamos aos Estados Unidos, a ditadura judiciária, balela ridícula, a que a ciência e a experiência americana lavraram, há já um século e um quarto, essa vitoriosa resposta.

(17) Cf. Hamilton, Alexander et alii. The Federalist, nº 78, p. 518-9. (18) Cf. Haines, Charles Grove. The Conflict over Judicial Powers in the United States to 1870,. p. 39. (19) Id., ib., p. 32.

As preocupações dos nossos mestraços em sabedoria política, gente de cujo valor temos a cópia na sua grande obra, o estado atual do país, se fossem porventura sinceras, teriam de se filiar na doutrina francesa, no sistema ultramarino da inferioridade ou subordinação do Poder Judiciário aos atos do Poder Legislativo, constitucionais ou inconstitucionais.

Esse, o princípio geral das constituições, que se não categorizam entre os descendentes dos Estados Unidos. A supremacia, contra a qual aqui se estão levantando agora os interesses políticos, a supremacia da justiça na solução das questões de constitucionalidade, é a grande característica do regímen e a sua garantia suprema.(20) Ainda entre os melhores publicistas europeus, dentre os quais, falando nos mais modernos, bastaria citarmos o nome de Boutmy, essa posição constitucional da justiça nos Estados Unidos se considera como “uma das invenções mais originais, inesperadas e admiráveis, que na história do Direito Público se encontram”.(21) Tocqueville, com a sua imensa autoridade, a encarecia como “uma das mais poderosas barreiras, que nunca se elevaram contra a tirania das assembléias políticas”. (22) Essa tirania era a que, nos Estados Unidos, mais inquietara os patriarcas do regímen, e, entre estes, ainda aos que mais se distinguiam pelo radicalismo da sua democracia.

“Combatido temos, dizia Jefferson, [o maior deles] temos combatido, não para estabelecer um despotismo eletivo, mas para fundar um governo livre… Ora, certo é que a opressão coletiva de muitos déspotas pesaria com tanto peso quanto o de um só. Pouco faz ao caso que com os nossos sufrágios os elejamos.”(23) Essa idéia tem-se propagado hoje no próprio continente europeu, havendo, até em França, uma notável corrente de opinião, entre

(20) Cf. Elihu Root apud Bowman, Harold M. “Congress and the Supreme Court”. Political Science Quarterly, New York, 25: 21-2, 1910. (21) Apud Proal, Louis. “Le Rôle du Pouvoir Judiciaire dans les Républiques”. Revue Politique et Parlamentaire, Paris, 56:560, juin, 1908. (22) Id., ib., p. 560-1 (23) Id., ib., p. 560.

publicistas e jurisconsultos, estadistas e magistrados, cujos trabalhos reivindicam para a justiça esse poder, que a Constituição dos estados lhe reconheceu, e uma conjuração de interesse(24) na política brasileira hoje lhe quer subtrair arrojadamente.

Na Constituição brasileira essa aspiração triunfou em declarações categóricas; e é contra esse triunfo, o maior do nosso direito político, da nossa história constitucional, que se debatem agora o iliberalismo e o obscurantismo da política brasileira empenhada em voltar à onipotência legislativa, em recolocar o legislador acima da Constituição.

Recusando execução aos atos do Congresso Nacional viciados claramente de inconstitucionalidade, a justiça federal não usa tão-somente do seu direito. Este direito lhe resulta da competência, que para tal lhe foi conferida. Mas, essa competência, formulada peremptoriamente nos arts. 59 e 60 da Constituição brasileira, não exprime uma faculdade: traduz um dever, estrito e imperioso, o dever capital dessa magistratura num regímen de poderes limitados, a sua missão específica do regímen federativo, onde, entre a União e os estados, entre a soberania daquela e a autonomia destes, era mister um árbitro com alçada inapelável nos conflitos constitucionais.

Erguida entre potestades tamanhas como barreira insuperável às demasias de parte a parte, a suprema justiça federal não poderia escapar sempre ao embate das irritações políticas, contrariadas, ora de um lado, ora de outro, pelo arbitramento dessa magistratura. De vez em quando uma lufada mais violenta se levanta contra ela. Por vezes o clamor político, ora dos governos, ora das maiorias, ora das classes contrariadas, lhe sopra derredor com a rijeza dos vendavais. Mas a grande instituição, a mais liberal e, ao mesmo tempo, a mais conservadora do regímen, vai atravessando com serenidade essas inclemências passageiras.

Nos Estados Unidos, através de todas as contradições que, ali mesmo, o têm embatido, a opinião geral lhe atribui o mérito de ser o maior benfeitor da Constituição, de ter abrigado contra as paixões e os

(24) Em O Imparcial está: “interesses”.

ímpetos do povo, contra os desvarios dos partidos, contra os maus sentimentos regionais.(25) É o grande instrumento de conciliação na história do país.(26) “Os americanos, diz um publicista germânico da maior autoridade, os americanos podem articular restrições e fazer reservas quanto ao presidente e ao seu gabinete, quanto ao Senado e à Câmara dos representantes.

“Mas todo o americano capaz de bem julgar olha para a Suprema Corte com uma admiração sem reserva. Todos eles sabem que nenhuma força, naquela terra, tem feito mais pela paz, pela prosperidade, pela dignidade dos Estados Unidos.”(27) Se nem sempre essa gratidão, essa compreensão dos seus benefícios ali se têm expressado com a devida unanimidade, é que, estabelecida, sobre todas, com a missão de amparar os fracos contra os fortes, os estados contra a União, os indivíduos contra os governos, as minorias contra as maiorias (tudo isso em que se traduz, principalmente, a missão de guardar a lei constitucional contra a lei ordinária, o direito estável contra o direito variante, as franquias eternas da liberdade contra seus inimigos renascentes sob as transformações infinitas da intolerância e da força) estabelecida com esse destino de pára-choques entre elementos e quantidades tão desiguais, não poderia a Suprema Corte, ainda que as suas decisões emanassem do Céu, e tivessem invariavelmente um cunho divino, não poderia uma ou outra vez, de onde e de longe em longe, deixar de ser desagradável a muitos, aos maiores, às massas.

No Brasil, onde os governos costumam ser os pais e senhores das maiorias políticas, incorre, de ordinário, na malquerença das maiorias militantes o Supremo Tribunal, desaprazendo aos governos. Nos Estados Unidos, pelo contrário, onde as maiorias legislativas derivam regularmente das maiorias populares, é a estas que contraria a Suprema Corte, quando embaraça os atos da legislatura, na União, ou nos estados.

(25) Cf. Williams, John Sharp. “Federal Usurpations”. The Annais of the American Academy of Political and Social Science, Philadelphia, 32:206, July/Dec. 1908. (26) Cf. Munsterberg, Hugo. The Americas, p. 109. (27) Id., loc. cit.

O desenvolvimento da legislação social na grande república norte-americana, indo ao encontro das reivindicações socialistas, ao mesmo passo que acoroçoa a novas conquistas e exigências cada vez maiores à expansão democrática, suscita litígios da mais extrema delicadeza, na solução dos quais se estabelecem conflitos graves entre o clamor popular, a marcha triunfal das idéias vencedoras e a santidade constitucional desses direitos, enumerados na declaração americana, cuja guarda o pacto federal recomenda aos grandes juízes da União. Nesse caminho, claro está que as sentenças da justiça, adstrita à observância desses textos sagrados, não se podem adiantar com a mesma pressa que as reformas legislativas.

Daí os atritos, os ataques, as sem-justiças, com que a impaciência dessa corrente, nestes últimos dois ou três anos, tem recebido as decisões moderadoras da Suprema Corte, argüindo-a de tendências hostis ao espírito da legislação mais recente. A verdade, porém, é que os atos do grande tribunal respondem com vantagem a esses desabafos de um insofrimento(28) aliás natural. Longe de se mostrar reacionária, a Suprema Corte, nos Estados Unidos, se tem havido com firmeza e consistência em sustentar as leis estaduais de caráter progressivo.(29) De 1887 a 1911, período em que se multiplicaram, na legislação econômica e social daquele país, as medidas mais adiantadas, algumas de tipo radical, não menos de quinhentas e sessenta decisões proferiu sobre esses assuntos a Suprema Corte, e apenas em três, inclusive o caso “Lochner v. New York”, concernente à limitação do trabalho diário nas padarias a nove horas, averbou de inconstitucionalidade esses atos.(30) Num livro que acaba de publicar,(31) William Taft, o ex-Presidente dos Estados Unidos, mostra o espírito de progresso, que tem desenvolvido a Suprema Corte, conciliando as garantias constitucionais que resguardam o direito de propriedade, o direito dos contratos e a liberdade do trabalho, com as mudanças operadas, em nossos dias, nas

(28) Em O Imparcial está: “sofrimento”. (29) Cf. WARREN, Charles. “The Progressiveness of the United States Supreme Court”. Sep. da Columbia Law Review. Washington, Apr., 1913. (30) Id., ib. (31) TAFT, William Howard. The Anti-Trust Act and the Supreme Court. New York, Harper & Brothers, 1914.

relações comerciais e nas condições sociais. Sem variar da Constituição, nem a esquecer, o grande tribunal tem conseguido harmonizar a sua jurisprudência, através de todas as dificuldades, que essa evolução dificílima lhe opõe, com os sentimentos contemporâneos da nação, com a consciência atual do país.

Se a heresia antijudiciária, afagando as paixões populares, acabasse ali por levar de arrancada o senso jurídico e o bom senso americano, com essa transformação, mais que radicalíssima, na substância moral do regímen, é o próprio gênio daquelas instituições que se veria morrer não menos que como morre a liberdade constitucional noutras democracias, quando as nações, deseducando-se da boa disciplina que as tem criado e engrandecido, rompem com as suas tradições tutelares.

A questão com que ora nos defrontamos, dizia, o ano atrasado, na Escola de Direito de Yale, uma voz autorizada,

a questão que ora temos frente a frente é se havemos de abandonar os nossos antigos ideais. Continuamos a ser um governo da lei, ministrado pelos tribunais ou iremos converter-nos em um governo de agitadores desinsofridos, que apenas toleram lei e tribunais, enquanto os tribunais e a lei estão de acordo com as veleidades populares da ocasião? Graves questões são estas, que interessam mesmo a raiz do nosso sistema de governo.(32)

E como lhes responde o tino político da nação americana? Fiando inteiramente de si mesma a resistência e o triunfo contra esses indícios de um mal, que a sua vitalidade eliminará sem abalos no vigor do organismo. “A nossa república anglo-saxônica”, racionam ali os melhores espíritos,

sempre se prezou de senso comum, que anima o nosso povo, sempre se desvaneceu de que as teorias extremadas nos não encantam, de que nos não enfeitiçamos de frases nem caímos em chamarizes de palavreado. A índole conservadora do nosso povo já se tornou proverbial, e o nosso foro tem sido a força guiadora que preserva as aspirações populares de se esgarrarem, seduzidas por ídolos estranhos.(33)

(32) HORNBLOWER, William B. The Independence of the Judiciary, the Safeguard of Free Institutions, p. 4 (33) Id., loc. cit.

Com esse temperamento de uma raça caldeada em séculos de jurismo, se me consentis de cunhar o vocábulo, e com as luzes dessa cultura jurídica, em que nos Estados Unidos, com a classe dos advogados, brilha a magistratura americana, mas os seus professores, os seus escritores, a florescência exuberante das suas universidades, com todos esses elementos se constitui uma base de estabilidade, onde as agitações do radicalismo socialista encontram o necessário quebra-mar.

Os americanos sentem que

a civilização consiste em submeter as vontades da maioria aos direitos da minoria. Os ideais, de que se nutre a civilização, consolidaram- se à força de lento, desvelado e penoso labutar.(34)

Alimentado nessa educação, aquele povo, nas classes onde reside o seu elemento vital, não se ilude quanto à natureza desorganizadora das aventuras revolucionárias, que se lhe reservariam na reação contra a justiça. Ele não a quer substituir pela violência, pela ditadura das multidões, pelos imprevistos de uma democracia sem freios.

De quando em quando, observa o escritor que acabamos de ouvir,

de quando em quando nos sentimos chamados a arcar com uma explosão de paixões primitivas, sob as formas da Lei de Lynch.(35) O espírito da Lei de Lynch tanto se pode manifestar em acomentimentos contra indivíduos, como em investidas aos tribunais. Os nossos maiores, neste país, traçaram salvaguardas aos direitos da minoria contra os impulsos transitórios da maioria, impondo restrições constitucionais à autoridade legislativa. E, com o dever, que lhe incumbe, assim de precisar, como de pôr por obra essas limitações constitucionais, recusando execução às leis viciosas por inconstitucionalidade, o Poder Judiciário veio a ser, para esses direitos fundamentais da maioria(36), a proteção e a defesa.(37)

(34) Id., loc. cit. (35) A Lei de Lynch deve seu nome a um juiz da Virgínia (EUA), do século XVII. Consistia em julgar, condenar e executar sumariamente, durante a sessão, os criminosos apanhados em flagrante delito. (36) Na obra citada está: “fundamental rights of the minority”. (37) Id., loc. cit.

Descumprida essa missão,

dia virá, em que a força ocupe o lugar do direito, e ao governo do povo todo por todo o povo, e para todo o povo suceda o governo absoluto de uma simples maioria do eleitorado em benefício exclusivo dessa maioria mesma. Nesse dia terá expirado o governo da lei e da ordem.(38)

Mas, esse dia não temos receio que chegue, temos fé que não chegará, certeza temos que não pode chegar, preservada como se acha a nação americana de tamanha, tão imensa, tão infinita calamidade pelo instinto jurídico do seu temperamento e pelo caráter jurídico da sua cultura.

Se, porém, tal calamidade se pudesse verificar, o que nela se abismaria não eram só os destinos do regime federativo: era a própria sorte do governo presidencial. Um estado constituído por uma união indissolúvel de estados, como é a Federação, não pode manter a comunhão estabelecida entre estes, sem um grande conciliador judiciário, um tribunal, que lhes dirima os conflitos.

O presidencialismo, por sua vez, não tendo, como não tem, os freios e contrapesos do governo parlamentar, viria a dar na mais tremenda forma do absolutismo, no absolutismo tumultuário e irresponsável das maiorias legislativas, das multidões anônimas e das máquinas eleitorais, se os direitos supremos do indivíduo e da sociedade, subtraídos pela Constituição ao alcance de agitações efêmeras, não tivessem na justiça o asilo de um santuário impenetrável.

Os que, no Brasil, resolvemos de não entregar esta bandeira, os que determinamos de a sustentar contra tudo, os que não tememos de errar, com ela abraçados, os que esperamos de a ver dominando, afinal, a política republicana, os que juramos de a servir com toda a constância de uma convicção quase religiosa, temos, para no-la alimentar e retemperar, a lição não desmentida nunca em toda a experiência humana, de que, em todas as espécies de governo compatíveis com a nossa condição livre de homens, a necessidade fundamental está em opor um sólido refreadoiro ao uso excessivo e caprichoso do poder.

“Meio único e só.”

(38) Id., ib., p. 15.

Ora,

o meio único e só, até hoje descoberto, com qual o povo pode opor a si mesmo esses freios, são os tribunais de justiça, criados para medir a justiça aos fracos e indefesos, assim como aos fortes e poderosos, com ânimo igual, honesto e destemido.(39)

Contra estas verdades certas e sem engano teçam os empreiteiros do serviço oficial os argumentos do costume. Não serão, sequer, desses a que aludia o grande pregador, “argumentos de grande boato, antes de se lhe tomar o peso”. São argumentos, cujo ressoar de ocos não dá nem mesmo para boato. O dia que com eles nos embaraçássemos teríamos desaprendido o que sabemos das primeiras letras em matéria constitucional.

Mas a justiça não pode ser esse dique sério, que se quer às exorbitâncias dos outros dois poderes, às suas correrias no território da inviolabilidade assegurado pela carta do regímen, aos direitos nela declarados, se esses dois poderes se não considerarem na obrigação mais estrita de ceder e recuar ante a justiça, quando promulgadas as suas supremas sentenças. Aqui não há meio-termo. Ou tudo, ou nada. Ou a tal se não acham adstritos esses dois poderes; e então um e outro são soberanos na discrição de se excederem. Ou, se o limite dos seus excessos reside eficazmente na justiça, as sentenças finais desta impõem-se ininfringivelmente aos outros dois poderes.

Da essência da posição do Supremo Tribunal Federal entre as demais instituições americanas é, portanto, que esse tribunal seja o juiz supremo e irrecorrível da sua competência, assim como da dos outros poderes do Estado.(40) Quando ele se pronuncia, a sua decisão constitui, definitivamente, lei,(41) e a mais alta lei do país, “The highest law of the land”,(42) e não se pode revogar senão mediante reforma da Constituição.( 43)

(39) THOM, Alfred P. The Judicial Power and the Power of Congress in its Relation to the United States Courts, p. 16. (40) Cf. WATSON, David K. The Constitution of the United States, vol. 2, p. 1183, 1190 e 1192. (41) Cf. MÜNSTERBERG, Hugo. The Americans, p. 106. (42) Id., ib., p. 110. (43) Id., loc. cit.

A outra doutrina, a que pretendesse conciliar com a missão, confiada à justiça, de árbitra suprema nas questões de constitucionalidade, o jus, reservado ao governo e ao Congresso, de se não submeterem aos seus julgados, nessas controvérsias, essa doutrina atribuiria àquele sobre quem se outorga a jurisdição, privativa, o direito de anular a competência daquele, a quem a jurisdição foi privativamente outorgada.

Contradição nos termos. Absurdo palpável. Inversão manifesta. Disparate rematado.

Nessas matérias, os outros poderes julgam unicamente em primeira instância.(44) Quando o governo ou o Congresso praticam um ato, é que o reputam constitucional, e, praticando-o, lhe conhecem, até aí, da constitucionalidade. Mas, em intervindo na espécie o julgador supremo, se o seu julgamento nega a constitucionalidade a esse ato, cessou a lide, e a autoridade neste ponto sujeita a recurso, cede à outra, de cuja decisão nenhum recurso pode haver. A segunda instância reforma as decisões da primeira. Esta, seja o Presidente da República, seja o Congresso Nacional, não pode, constitucionalmente, resistir ao julgado supremo.

O Supremo Tribunal, logo, sendo o juiz supremo e sem apelo na questão de saber se qualquer dos outros poderes excedeu à sua competência, é o último juiz, o juiz sem recurso, na questão de saber se é, ou não, político o caso controverso. Porque a segunda questão outra coisa não vem a ser que a primeira. Políticos se chamam os assuntos privativos à competência do Executivo ou do Congresso. Portanto, se da competência do Executivo e do Congresso, árbitro final é o tribunal supremo, na questão de ser político, ou não, o ato discutido, o tribunal supremo é o árbitro final.

Nem, a tal respeito, não há dúvidas nos Estados Unidos. O direito, que no Brasil agora se pretende avocar ao Congresso Nacional (e, até, ao governo), de rejeitar, como invasores da sua autoridade, sentenças do Supremo Tribunal Federal, importaria em elevar o Congresso Nacional a juiz definitivo dos seus próprios poderes. É o que existia nos Estados Unidos antes da Constituição, um de cujos objetos foi justamente remediar a esse estado anárquico de coisas, dando ao Poder Judiciário a situação arbitral, que passou a ocupar entre os outros dois pode-

(44) Cf. BONDY, William. The Separation of Governmental Powers in History, in Theory, and in the Constitutions, p. 62. GARNER, James Wilford. Introduction to Political Science, p. 596.

res.(45) É o que existe em todas as constituições européias. A Constituição dos Estados Unidos transferiu (e esta é a sua feição capital) essa atribuição do Congresso para a Corte Suprema.(46) Se o Presidente da República ou Congresso Nacional, pudessem recusar execução às sentenças do Supremo Tribunal Federal, por as considerar inconstitucionais, ter-se-iam, destarte, constituído em instâncias revisoras dos atos daquela justiça.(47) Toda a vez que o Poder Executivo, seja qual for o motivo alegado, negue obediência a uma decisão judicial definitiva, incorrerá em quebra formal da Constituição, e, portanto, na mais grave das responsabilidades.(48) “Não há nada, realmente, mais artificial”, diz um respeitável autor moderno,

do que a distinção entre questões políticas e jurídicas. Questões políticas há (acabamos de o ver, falando na interpretação dos tratados), que são questões jurídicas.(49)

Político fora da presença da justiça, um litígio pode assumir o caráter de judiciário, assumindo a forma regular de uma ação.(50) O efeito da interferência da justiça, muitas vezes, não consiste senão em transformar, pelo aspecto com que se apresenta o caso, uma questão política em questão judicial.

Mas a atribuição de declarar inconstitucionais os atos da legislatura envolve, inevitavelmente, a justiça federal em questões políticas.(51) É, indubitavelmente, um poder, até certa altura, político, exercido sob as

(45) Cf. ELLIOTT, Charles B. “The Legislature and the Courts: The Power to Declare Statutes Unconstitutional”. Political Science Quarterly. New York, 5: 226, 1890. (46) WILLOUGHBY, Westel Woodbury. The Constitutional Law of the United States, vol. 1, p. 2, 4. NOAILLES, Duc de. Cent Ans de République aux Etats-Unis, vol. 2, p. 145. (47) Cf. BONDY, William. The Separation of Governmental Powers, p. 66. (48) Id., ib., p. 67 (49) DONKER CURTIUS, M. F. “Cassation et Arbitrage”. Revue de Droit International et de Législation Comparée, Bruxelles, 12(2): 34, 1910. (50) RANDOLPH, Carman F. The law and Policy of Annexation, p. 105. GUITTEAU, William Backus. Government and Politics in the United States, p. 220. (51) Cf. BEARD, Charles A. American Government and Politics, p. 310, 314. GARNER, James Wilford. Introduction to Political Science, p. 606.

formas judiciais.(52) Quando a pendência toca a direitos individuais, a justiça não se pode abster de julgar, ainda que a hipótese entenda com os interesses políticos de mais elevada monta.(53)

Para ver que esta função, pelo menos no Tribunal Supremo, é, substancialmente e, às vezes, eminentemente, política, basta refletir que política, no mais alto grau, é a fixação das relações constitucionais entre a União e os Estados, e, todavia, ao Supremo Tribunal é que toca estabelecê-la. Políticas vêm a ser, indubitavelmente, as questões suscitadas sobre o direito a cargos políticos. E, não obstante, da competência da justiça federal na decisão de tais controvérsias, ainda mesmo quando o título discutido seja o de governador de estado, não minguam, de todo, arestos, na jurisprudência americana.

Toda a história dos Estados Unidos, em suma, está cheia da ação política da Suprema Corte, ação exercida, é certo, sob a reserva severa das formas judiciais, mas nem por isto menos política, assim na sua substância, como nos seus resultados. Esta ação, dominando a política, mediante a interpretação constitucional, quanto aos direitos da União e aos dos estados, tem pendido ora para estes, ora para aqueles, favorecendo, em certas épocas, a expansão da autoridade nacional, e estreitando, noutros períodos, essa autoridade.

Cem vezes já se tem dito que casos políticos, no sentido em que se utiliza esta qualificação, para excluir a ingerência da justiça, vêm a ser os que o são exclusivamente, e têm o caráter de absolutamente discricionários.( 54) Mas, ainda no aplicar deste critério, sob qualquer das duas formas em que ele se enuncia, convém proceder com o maior tento; porque uma e outra, quando não utilizadas com a devida atenção, nos

(52) Cf. WILLOUGHBY, Westel Woodbury. The Constitutional Law of the United States, vol. 2, p. 1.009 e 1.011. WATSON, David K. The Constitution of the United States, vol. 2, p. 1.097. (53) Cf. Cases Argued and Decided in the Supreme Court of the United States. James E. Boyd, Piffs. in Err. v. The State of Nebraska, ex rel. John M. Thayer. 143 United States, 135. Lawyers’ Edition, 36: 103. William S. Taylor and John Marshall, Piffs. in Err. v. J. C. W. Beckham, Dft. in Err. 178 United States, 548. Lawyers’ Edition, 44: 1.187. BALDWIN, Simeon E. The American Judiciary, cit., p. 48-9. (54) Cf. BONDY, William. The Separation of Governmental Powers, p. 62.

podem equivocar sobre as verdadeiras divisas, que estremam o território político do judicial.

Emergências haverá, e têm havido, na América do Norte, em que a Suprema Corte se tenha visto obrigada a conhecer questões meramente políticas.

Em tal caso, estão as de duplicatas de governos estaduais.(55) Mas por quê? Porque na espécie em litígio se suscita controvérsia acerca de um direito precisamente definido na lei.

Quando tal discussão, com efeito, surgir entre particulares num litígio travado sobre a subsistência legal de contratos, que se houverem celebrado sob as leis de um desses governos(56), lícito não é ao tribunal abster-se de se pronunciar sobre uma questão, que ele evitaria como política, se debaixo de outro ponto de vista ali se suscitasse.

Por outro lado, ainda em relação ao exercício de funções discricionárias pode caber a interferência judicial, ensinam os mestres da jurisprudência americana, se delas “abusar clara e grosseiramente” o poder, a quem competirem.(57) Dar-se-á essa hipótese, quando, por exemplo, a pretexto, em nome ou sob a cor de exercer atribuições tais, o governo ou o Congresso as ultrapassarem, perpetrando atos, que, evidentemente, nelas não caibam.

Ainda quando se trate de poderes totalmente discricionários, o de que não conhecem os tribunais, é do modo como tais poderes, uma vez existentes, são exercidos, nas raias que lhes traçou a eles a lei. Mas da alçada incontestável dos tribunais será entenderem na matéria, para examinar duas questões, se forem levantadas: a da existência desses poderes e a da sua extensão, comparada com o ato controverso. Se a autoridade invoca uma (58) atribuição existente, embora discricionária dentro dos seus limites, não pode a justiça recusar o socorro legal ao direito, do indivíduo ou do estado, que para ela apelar.

(55) Cf. JAMES, Edmund J. “Bryce’s ‘American Commonwealth”’. Annals of the American Academy of Political and Social Sience, Philadelphia, 7:395-8, Jan./June 1896. (56) EmO Imparcial está: “gêneros”. (57) Cf. BONDY, William. The Separation of Governmental Powers, p. 126-7. (58) EmO Imparcial está: “invoca uma atribuição inexistente, ou exorbita de uma”.

Assim é que, embora se haja por inteiramente política e absolutamente discricionária, nos órgãos da soberania nacional a quem pertence, a declaração do estado de sítio, se os atos de execução excederem a medida constitucional ou legal, legítima será e indenegável a interposição da justiça, já quanto à restituição do direito extorquido, já quanto à reparação do dano causado.

O autor que, mais recentemente e mais ex professo, ventilou esta matéria, tão obscurecida, no Brasil, pelas sutilezas e chicanas dos sofistas políticos, é o que mais luz derrama no assunto; e as fórmulas, a que chegou, são, a meu ver, claras e terminantes.

“Não há”, diz ele,

não há exceção ou exclusão contra os casos que apresentem questões de natureza política, ou envolvam atos oficiais dos ramos políticos do governo. Quando quer que se impugnarem medidas políticas, legislativas, executivas ou administrativas, num pleito legal, como causa próxima de uma lesão donde resulte dano, alegando-se que tais medidas não são autorizadas pelas leis do país, ou as transgridem, esses atos se tornam sujeitos ao conhecimento da justiça; entendendo-se que, ou emanem do presidente, ou provenham dos seus subordinados, ou sejam diretamente autorizados pelo Congresso, investido está o tribunal de jurisdição, para, na lide pendente, de direito ou eqüidade, caso ela envolva esses atos, quanto à sua constitucionalidade, investigar e decidir se são válidos, ou nulos. O essencial, para existir a jurisdição, é, unicamente, que uma pessoa idônea como autora no pleito haja sido lesada ou prejudicada por certo e determinado ato oficial, ou do governo, e com ele se averigúe ter-se contravindo à Constituição.(59)

O critério, pois, continua luminosamente este expositor:

o critério não consiste em ser a questão de natureza política, ou não política, mas em ser susceptível de se propor sob a forma de uma ação em juízo. […] A conclusão geral, portanto, podê-la-emos enunciar nestes termos: as questões políticas vêm a cair sob a competência do Poder Judicial, toda a vez que envolverem a questão de se o ato, que se discute, do Poder Executivo ou Legislativo, infringe, ou não infringe preceito da Constituição.(60)

(59) COUNTRYMAN, Edwin. The Supreme Court of the United States, p. 191-2. (60) Id., ib., p. 192.

Mas, como quer que seja, e seja como for, senhores, o que não tem dúvida nenhuma, é que, ante as disposições constitucionais cujo texto faz do Supremo Tribunal Federal o juízo de última instância, nos pleitos onde se argüirem de inconstitucionalidade atos presidenciais ou legislativos, esse tribunal é o árbitro final dessas questões; esse tribunal é, em tais questões, o juiz exclusivo da sua competência mesma, esse tribunal não pode estar sujeito, nos seus membros, à responsabilidade criminal por decisões proferidas no exercício de semelhante autoridade; esse tribunal, nas sentenças que em nome desta autoridade pronunciar, tem o mais absoluto direito a vê-las acatadas e observadas pelos outros dois poderes.

Nestas normas está em essência o melhor de todo o nosso regímen.

Desconhecidas elas, a República Federativa mudaria completamente de natureza. Em todos os regimes livres, os poderes políticos têm freios e contrapesos à sua vontade, inclinada sempre a transpor as barreiras legais. Sob o governo de gabinete, esses freios e contrapesos estão, quanto ao Poder Executivo, na responsabilidade ministerial, e, quanto às câmaras legislativas, na dissolução do Parlamento. Com o governo presidencial, onde não existe nem o apelo das maiorias parlamentares para a nação, nem a responsabilidade parlamentar dos ministros, a garantia da ordem constitucional, do equilíbrio constitucional, da liberdade constitucional, está nesse templo da justiça, nesse inviolável sacrário da lei, onde a consciência jurídica do país tem a sua sede suprema, o seu refúgio inacessível, a sua expressão final.

O culto deste princípio soberano é, para nós outros, uma religião, e deve ter altares nesta Casa, altares onde o sentimento puro do nosso direito nacional se acrisole, no estudo e no desinteresse, para contaminar( 61) o trabalho subterrâneo das ambições, que a política arregimenta, solicita em acabar com todos os estorvos à transformação do governo absoluto da lei, organizado pela Constituição, no governo absoluto dos cabeças de partidos, anelados pelas facções.

Permiti, senhores, a um crente dessa velha fé abandonada, a uma alma cujas derradeiras esperanças na sorte deste regime se vão rapidamente desvanecendo uma a uma, permiti-lhe volver os olhos para es-

(61) EmO Imparcial está: “contraminar”.

ses horizontes, onde os constituintes de 1890 víamos desenhado o futuro das nossas instituições, e reivindicar-lhes a honra contra os aventureiros, que invadiram estas sagradas paragens da idéia republicana com as malocas da sua selvageria e as feiras da sua ciganagem.

Terminando, só me resta suplicar-vos me perdoeis a liberdade que tomei, de honrar o ato da minha posse, ocupando-o com este exame, desalinhado e imperfeito, da maior das nossas instituições constitucionais, sua magnitude, suas prerrogativas, seus benefícios incomparáveis.

Se essas considerações, a que a tristeza destes dias miseráveis, de luto, desalento e angústia me não consentiu imprimir forma, dar método, comunicar algum valor, tonando-as dignas deste auditório, espertarem as vossas reflexões, obtiverem o concurso do vosso assentimento, estimularem, entre os hábeis, entre os moços, entre os honestos, o sentimento do atentado, que se projeta contra o regímen, contra a pátria e contra a humanidade nessa reação contra a justiça, desenvolvida, nos atos recentes do nosso governo, lado a lado com a reação contra a publicidade, contra a imprensa, contra os direitos da palavra, terei ganho o meu dia, meus colegas, meus senhores, num salário maior que toda a minha valia, toda a minha esperança, todo o resto da minha vida.

Os conceitos modernos de Direito Internacional

Em 14 de julho de 1916

A honra insigne com que hoje me confundis não cabe em minha pessoa: só minha nação pode recebê-la dignamente. O valor inestimável de vosso ato e as palavras de imerecidíssima liberalidade, comovedoras sobretudo pela sinceridade de sua benevolência e por sua intenção afetuosa, com que acabais de acolher-me pela boca do mestre eminente, a quem cometestes a missão de me saudar, penetraram no mais íntimo de minha alma; mas não obscureceram na minha consciência a certeza de minha mesquinhez, de minha insuficiência, de meu nenhum valor diante do espetáculo em que me envolve esta assembléia magnífica, entre os acentos de eloqüência que nela ainda ressoam e sob a impressão de grandeza do apostolado que se professa nesta Casa.

QUE SOU EU?

Que sou eu, afinal, para que possa tocar-me, neste cenário soberbo, o papel a que me elevastes? Apenas um velho amigo do direito, um cultor laborioso, porém estéril, das letras, um humílimo operário da ciência. Nada mais. Toda a significação de minha vida se reduz a ser um exemplo de trabalho, de perseverança, de fidelidade a algumas idéias sãs.

Espírito continuamente em busca de um ideal, nunca cheguei a divisá-lo senão do fundo obscuro de minha mediocridade, muito ao longe, qual esperança que se dissipa num sonho de realidades. Na política, ainda que meus concidadãos, excessivamente generosos, me hajam cumulado, por alta complacência, de mercês e dignidades para as quais me faltam títulos e merecimentos, as circunstâncias me reduziram à condição de elemento pertinaz de resistência, talvez útil, por vezes, para obstar o mal, mas quase sempre sem autoridade para obter o bem.

Porque, nos países de educação cívica escassamente desenvolvida, somente os detentores do poder têm nas mãos a força do bem ou do mal.

Posto momentaneamente no governo por uma revolução, tive a parte que não podia evitar nos trabalhos dos que a organizaram e, seguramente, um quinhão avantajado nos seus erros. Depois, como colaborador na fundação das instituições nascidas desses acontecimentos, consagrei o resto de minha existência, com pouco resultado e diligência extrema, ao trabalho de interpretá-las, de submetê-las a um como curso de lições de coisas, para facilitar-lhes o uso, pondo-o ao alcance de todos, e de defendê-las contra os sofismas, os erros e os abusos.

Sem embargo, no mérito dessa lida ingrata e ordinariamente infrutífera, nada vejo que me eleve acima de minha própria vulgaridade, na qual envelheci cada vez mais consciente de minha fraqueza, de minha ignorância, de minha nenhuma autoridade, assim no terreno das idéias como no dos fatos, cujo torvelinho nos arrebata, nos flagela, nos consome, para, ao cabo, nos abandonar, já inúteis, à margem da eternidade, por onde a corrente da vida corre para seus destinos ignorados.

CLARIDADES NA CERRAÇÃO

Não obstante, há, vez por outra, na cerração que nos encobre, grandes claridades que rasgam o espaço do mundo moral e nos deixam ver, para além da fronteira das nossas desilusões, nos longes mais distantes da nossa percepção, os espigões da serra do futuro, dourados pelo sol de promessas divinas. Surpreendido, então, nessas abertas de luz, o homem, reconciliando-se com a fé que se lhe amortecia, sente-se de joelhos diante dos céus, no fundo misterioso de si mesmo, ao ver que a obscuridade das coisas não é senão o véu do templo, no vazio silencioso de cuja infinita nave a mão de Deus, insensível às nossas impaciências, reserva os tesouros incalculáveis de sua bondade para as raças e as nacionalidades que os souberam merecer.

É justamente num desses momentos que eu me sinto agora, transpostas essas portas, que, da contemplação do firmamento argentino na transparência do seu azul e na imaculada brancura de seus horizontes andinos, nos conduzem a este santuário do estudo, do saber e da justiça. Diríeis que se assiste a uma transfiguração: que a presença de um sacerdócio evocou a de uma divindade, que dos gabinetes e salões da academia surgiram as ogivas, as cúpulas, as cariátides silenciosas de uma catedral, erguendo nas mãos e sustentando nas costas o peso dos tetos sagrados; que a tribuna se converteu em púlpito, que um incenso sutil impregna o ambiente, e os portadores invisíveis das preces murmuradas no segredo das consciências elevam até o Criador o holocausto das orações, com a evaporação balsâmica das manhãs eleva no ar límpido o aroma dos prados, o cântico das flores, a embriaguez dos jardins. As vozes do nosso egoísmo emudeceram, e, no recolhimento das almas, em sua vibração interior, nas ondas de emoção que as percorrem, ouve-se o sussurro de uma aspiração transcendente e de uma confiança nova. Sacrificate sacrificium justitiae et sperate in Domino.

É sob o influxo de uma dessas emoções, bem raras em minha idade crestada pela aridez da experiência, que entro à vossa hospitalidade e saúdo os lares augustos desta casa. Por aqui passaram gerações e gerações, perquirindo os veios preciosos da ciência das sociedades, em cujas ramificações profundas a incógnita dos problema da organização da família humana e suas condições de evolução sobre a face da Terra aguarda o trabalho incansável dos mineiros, que as dificuldades sempre renascentes e sempre crescentes da eterna tarefa não desanimam. Aqui se muniram com a primeira experiência no comércio das leis vossos magistrados, vossos parlamentares, vossos estadistas mais notáveis. O foro, a administração, o magistério dessas vastas e complexas disciplinas, sobre as quais assenta a estrutura dos estados, têm aqui o viveiro das capacidades, o laboratório das soluções, a escola dos sistemas, das teorias, das verdades comprovadas e das questões em estudo. Todo o progresso intelectual de vossa pátria transitou, em sua gestação, em sua consolidação, em sua expansão, em sua frutificação, por estas salas, por estes bancos, por estas cátedras venerandas, que o lustre de anos gloriosos reveste da santidade com que a pátina do tempo consagra os bronzes antigos.

Todas essas imagens, as sombras dessas tradições, o concurso dessas memórias aureoladas pela administração e pelo reconhecimento dos contemporâneos, todas elas, convocadas agora pelas datas patrióticas e pelos fastos liberais de julho, dir-se-ia que enchiam o vestíbulo desta Faculdade quando, há pouco, transpuseram seu umbral meus passos hesitantes de forasteiro esmagado pela vossa generosidade e pela convicção invencível de não ter com que vo-la retribuir. A brilhante teoria dos vossos imortais, e seu longo séquito de laureados, desdobram aos nossos olhos a história da intelectualidade argentina, mesclando-se e confundindo-se com as galas desta solenidade. Mas a visão interior continua-me a discerni-los aqui unidos, envolvendo a multidão rumorosa dos viventes na turbamulta dos redivivos, e interrogando com sua curiosidade penetrante a temeridade do estranho que não teve a discrição de se escusar ao vosso chamado. A que viria aqui o estrangeiro, o desconhecido, o incompetente? Senhores, a trazer à soberania da grandeza argentina o tributo de obediência de um coração livre, que não sei se vos deve mais hoje, nas honras desta solenidade, quando me recebeis como mensageiro de meu governo e minha nação, ou há vinte e três anos, quando não negastes ao expatriado o asilo de vossa hospedagem, o refúgio de vossas leis, a segurança de vossa proteção. Foi então que as leituras do meu exílio me levaram à obra de vosso Alberdi, o primeiro dos vossos escritores que me pôs em comunhão com o pensamento liberal argentino, e a quem, não obstante suas prevenções antibrasileiras, admiro cada vez mais e tenho, ainda hoje, por uma das inteligências mais seletas da literatura americana. O ilustre tucumano – uma das glórias da Universidade de Buenos Aires na segunda metade do século passado – por duas vezes, nos dias sombrios de sua terra, conheceu as tristezas do expatriado, indo buscar em Montevidéu e no Chile, sucessivamente, à sombra do gasalhado estrangeiro, um abrigo onde exercesse seus direitos de pensar e escrever livremente.

O QUE É A LIBERDADE

Foi em condições como essas que vim a conhecer, em 1893, as praias argentinas. “Eu deixei meu país”, dizia ele mais tarde, “eu deixei meu país em busca da liberdade de atacar a política de seu governo, quando esse governo castigava o exercício de toda liberdade, como crime de traição da pátria”. Não lhe bastava, como a outros, “o desejo de ser livre”. Não tinha à liberdade esse “amor platônico”. Era “de um modo material e positivo” que lhe queria. “Amo-a para possuí-la”, acrescentava. “Amo-a para possuí-la […] mas não há senão um modo de possuir alguém sua liberdade, e este consiste em possuir a completa segurança de si mesmo. Liberdade que não seja segurança, não é garantia, é um escolho”.

Era assim que a definia a Inglaterra, que a definem os Estados Unidos; e o espírito argentino, interpretado nos escritos de um de seus mais luminosos pensadores, já então não sabia defini-la de outro modo.

A civilização política é liberdade. Mas a liberdade[…] não é senão a segurança: a segurança da vida, da pessoa, dos bens. Para um saxão de raça, ser civilizado é ser livre. Ser livre é estar seguro de não ser atacado em sua pessoa, em sua vida, em seus bens, por ter opiniões desagradáveis ao governo. A liberdade que não significa isso é uma liberdade de comédia. A primeira e a última palavra da civilização é a segurança individual.

Toda a civilização, pois, se encerra na liberdade, toda a liberdade na segurança dos direitos individuais. Liberdade e segurança legal são termos equivalentes e substituíveis um pelo outro. O estado social que não estriba nesta verdade é um estado social de opressão: a opressão das maiorias pelas minorias, ou a opressão das minorias pelas maiorias, duas expressões, em substância, irmãs da tirania, uma e outra ilegítimas, uma e outra absurdas, uma e outra barbarizadoras. As repúblicas latinas deste continente, que desnaturaram suas Constituições mais ou menos livres e submergiram na selvageria, não devem essa infausta sorte senão à desgraça de menosprezar e não praticar este singelíssimo rudimento de filosofia constitucional.

Esquecida ou abolida essa noção elementar, os governos consagrados por suas Cartas à forma republicana, mas, realmente assentados na intolerância, derivam aceleradamente para esse estado singular de cronicidade na epilepsia, cujos fenômenos o senhor Lucas Ayarragaray descreveu, com lampejos de Tácito, em seu livro sobre A Anarquia Argentina e o Caudilhismo, e um dos vossos maiores historiadores, o se- Pensamento e Ação 199 nhor Vicente López, caracterizou em termos penetrantes, quando trata, em sua grande História da República Argentina, do “descenso fatal do organismo político no rumo da tirania absoluta”.

GAUCHOCRACIA

A dominação espanhola não aparelhara os povos, como a colonização britânica da América do Norte, para o regímen da liberdade.

Da sujeição absoluta às formas embrionárias da obediência passiva, não se havia de chegar sem transições dolorosas à autonomia no governo do povo pelo povo. A semente cultivada pelo truculento despotismo dos reis absolutos germinou logicamente no brutal despotismo dos caudilhos. Daí esse “poema bárbaro” de servidão e desordem, essa “subversão ciclópia”, a “gauchocracia”, que agravam a anarquia até a demência, exaltam a crueldade até o delírio, produzem a mazorca e o caudilho, tingem de sangue a história dos pampas e, com a superstição de um militarismo selvagem, com os costumes de um partidismo atroz, dividem a sociedade em verdugos e proscritos, classificam os cidadãos em patriotas e traidores, entronizam no poder os mandões sanguissedentos e despovoam de espíritos cultos o país, povoando com eles o desterro, onde rutilam, em constelações deslumbrantes, vossas estrelas de primeira magnitude: os Sarmientos, os Alberdis, os Rivadavias, os Tejedores, os López, os Mitres, os Varelas, os Canés, os Echeverrías, os Lavalles, os Gutiérrez, os Indartes, os Irigoyens e tantos e tantos outros, onde se concentram e de onde se desparzem os raios mais luminosos da inteligência argentina.

Todos os que se não alistam nessa demagogia de crueza e pilhagem estão “fora da proteção das leis”, são “execrados criminosos”, nutrem “sentimentos infames”, passam pelos “entes mais vis da sociedade”.

Formam a categoria dos “imundos e selvagens”. Na literatura virulenta que emana desses paroxismos sinistros, a pletora do ódio fratricida introduz esse vocabulário monstruoso, onde cada ultraje reflete as paixões mais tenebrosas da vesânia da força, armada com as “faculdades onímodas”, as ditaduras tumultuárias, os plebiscitos grotescos, nos quais a unanimidade dos votos recolhidos pelo Terror coroa os “restauradores das leis”, e os decretos de traição, que fulminam os mais nobres representantes da cultura jurídica, ainda nascente, então, porém já viva, exuberante e radiosa.

Vão já bem longe, para a Argentina, esses dias malditos, de inenarrável negror. Para ela são passados, ainda que não sejam passados para outras regiões deste continente. Há apenas vinte e três anos, repúblicas havia, sob o Cruzeiro do Sul, nas quais os expatriados políticos eram feridos no desterro pelo estigma de traição lançado em atos oficiais, para enxovalhar no estrangeiro aos perseguidos.

Vós, contudo, há muito que consolidastes a vossa civilização.

Vinte e cinco anos, pelo menos, de governo estável, ordem constante e progresso ininterrupto vos libertaram para sempre das recaídas no mal da anarquia. Um desenvolvimento colossal da riqueza, as acumulações do trabalho na prosperidade, uma abundante transfusão de sangue europeu, um civismo educado nos melhores exemplos da liberdade conservadora, grandes reformas escolhidas com discrição, adotadas com sinceridade e praticadas com inteireza depuraram dos últimos vestígios da antiga doença vosso robusto organismo, talhado para o crescimento gigantesco, asseguraram-vos no mundo uma reputação definitiva e fizeram da República Argentina um dos centros da civilização contemporânea, uma nação cujo invejável progresso pode resumir-se numa palavra, dizendo-se que a República Argentina é um país organizado.

Quando se conquista e se afirma uma posição como esta, a memória pode voltar-se, com tranqüilidade e orgulho, para os dias maus de outro tempo. Por esses dias maus não responde a raça, nem o território, nem o céu americano. Respondem as influências da conquista, da colonização e da opressão ultramarina. Saturados de uma educação monástica e despótica, supersticiosa e servil, os povoadores destas terras nelas implantaram, com o pecado original de sua descendência, o atavismo dos vícios arraigados no organismo dos povos ibéricos por séculos desse absolutismo, cuja malignidade culminou sob o Demônio do Meio-Dia e seus degenerados sucessores. Como a Bartolomé Mitre, a mim também me parece que

nenhum povo se teria governado melhor a si mesmo nas condições em que se encontravam as colônias hispano-americanas, ao se emanciparem e fundarem a república, condizente com o seu gênio, mas não com seus antecedentes e costumes.

O MOVIMENTO EMANCIPADOR

O doutor Luís V. Varela, em sua notável História Constitucional da República Argentina, evidenciou, com a diferença entre os dois movimentos emancipadores, quanto excedia em dificuldades o das Províncias Unidas do Rio da Prata, no começo do século XIX, ao dos Estados Unidos da América do Norte, na última metade do século XVIII. Os norte-americanos defendiam direitos em cuja posse estavam desde o seu estabelecimento, ao passo que os argentinos entraram em revolução para ter direitos a que aspiravam e nunca haviam tido. Os puritanos que povoaram as colônias norte-americanas para elas se transplantaram com as instituições civilizadoras da Grã-Bretanha. Mas os espanhóis que ocupavam as regiões rio-platenses eram conquistadores de territórios, que senhoreavam, dobrando-os à lei das armas. Nas Cartas outorgadas pela coroa de Inglaterra continham-se verdadeiras Constituições, nas quais se estendiam aos emigrados todas as liberdades desfrutadas na mãe pátria. As colônias espanholas não passavam de feitorias, discricionariamente administradas pelos vice-reis em nome do soberano europeu. Ao se redimirem da metrópole, já eram os domínios ingleses entidades autônomas, dotadas politicamente de governos republicanos representativos. Os argentinos, ao se desligarem dos vínculos coloniais, não encontraram no acervo com que ingressavam na vida autônoma senão as tradições da centralização espanhola, as leis das Índias e um esboço rudimentar de municípios nos cabildos das cidades. Lá, todo o poder local nascia do povo, cujos sufrágios elegiam os governos. Aqui, os governados não tinham voto, individual ou coletivo, na eleição de sua administração. Lá, para constituir a nação, bastou que os estados se unissem, abdicando uma diminuta fração de sua soberania.

Aqui estava tudo por criar em matéria de instituições locais, provinciais e nacionais, que a república, surgindo de um fiat popular, evocava do caos e improvisava do nada.

Não é, pois, de admirar que os homens de visão clara temessem pela obra que ia empreender-se, e que o Doutor Manuel de Castro, antes do congresso de Tucumán, expressasse os seus receios, dizendo:

Demos que se organize a mais bela Constituição federal que os Estados jamais conheceram. Qual será o gênio que logre pô-la em execução? Momento perigoso; o tempo resolverá esta grande questão.

202 Rui Barbosa

A questão, com o tempo, acabou por resolver-se. Mas não a resolveu o gênio de ninguém. O milagre de tê-la resolvido pertence ao gênio do povo argentino. Foi seu instinto democrático, suas poderosas qualidades de assimilação, suas disposições naturais para se familiarizar com as instituições livres o que determinou, através de longas provações, o vosso ingresso franco e total no concerto das nações realmente emancipadas.

UMA PROFECIA GENIAL

Quando o drama da revolução estala, em 1810, no vasto cenário da América Latina, com as insurreições que rebentam desde o Prata até o Chile, desde a Venezuela até o México, num impulso geral que abarca todas as colônias espanholas, a dinastia de Fernando VII e Carlos IV, destronados em 1808 pela invasão napoleônica, vê realizarem-se os pressentimentos do Conde de Aranda, que já em 1783 aconselhava a seu soberano que renunciasse espontaneamente ao domínio de todas as suas possessões nas duas Américas, fundando ali três reinos distintos, sobre os quais se estendesse a sombra da velha monarquia européia, elevada à dignidade imperial.

O célebre homem de Estado, num rasgo de admirável previsão, anunciara, desde aquela época, a desagregação dos latifúndios internacionais, que a coroa de Castela imaginava submetidos a seu senhorio por uma dependência indissolúvel. A separação das colônias norte- americanas não lhe diminuíra a confiança na vassalagem das suas.

Mas o presidente do conselho do governo de Madri, ao contrário, medindo o alcance dessa lição, procurava desiludir o trono espanhol. “Acabamos”, dizia ele,

acabamos de reconhecer uma nova potência, num país em que não existe nenhuma outra em estado de atalhar-lhe o vôo. Esta República federal nasceu pigméia. Chegará o dia em que crescerá e se tornará um gigante e até um colosso naquelas regiões. Dentro de poucos anos veremos, com verdadeira dor, a existência desse colosso. Seu primeiro passo, quando tiver logrado engrandecer- se, será apoderar-se da Flórida e dominar o golfo do México.

Estes temores são muito fundados, e devem realizar-se dentro de poucos anos, se não presenciarmos outras comoções mais funestas em nossas Américas.

SUA REALIZAÇÃO

As frontes coroadas não costumam escutar estes avisos. Carlos III não dá ouvidos a seu previdente conselheiro. Mas sobre o rastro da revolução da América do Norte vinha a Revolução Francesa, e, sobre as pegadas da revolução de 1789, o dilúvio napoleônico, em cujas tormentas soçobra, em Espanha, a casa de Bourbon. As centelhas de Washington e Paris não tardam a crepitar nos ares do Prata. Os ânimos embebidos, pelos escritos de Moreno e Belgrano, na filosofia francesa do século XVIII, agitam-se inflamados, e os acontecimentos voam em tropel, numa carreira vertiginosa, rumo ao advento desta nacionalidade, desde 1806, quando, com a reconquista de Buenos Aires, com o Cabildo aberto da Plaza Mayor e a entrada triunfal de Liniers, se deu “a primeira aparição do povo argentino”, até 1816, quando a assembléia de Tucumán proclama definitivamente a emancipação nacional.

A 10 de fevereiro de 1807 uma junta de notáveis delibera a suspensão do vice-rei, sua prisão e a apreensão de seus papéis. É o que vossos historiadores chamam, com razão, o primeiro triunfo do povo soberano. De 2 a 5 de julho peleja-se no ataque e na defesa desta cidade.

As forças inglesas de mar e terra capitulam, embarcam, abandonam o rio da Prata. “Buenos Aires”, dizia Dom Cornelio Saavedra, “Buenos Aires, apenas com seus filhos e seus vizinhos, empreendeu esta memorável defesa e se cobriu de glória.” A revolução de 1º de janeiro de 1809, desarmando as forças espanholas rendidas à milícia popular, dá outro grande passo no caminho da independência. Com essa vitória das armas de Buenos Aires aplainava-se o caminho à revolução do ano seguinte. A de 1810, iniciada a 20 de maio, já se pode dar por consumada a 22, quando o Cabildo aberto, que recebeu o nome de Congresso geral, derruba o vice-rei e as autoridades espanholas. Já então o sentimento geral se pronuncia na frase memorável de Moreno: “A Espanha caducou na América”.

Dois dias depois, uma reação momentânea intenta restabelecer as leis do reino. Mas nessa mesma data, durante a noite, o povo da cidade, entregue a si mesmo, agita-se ameaçadoramente nas ruas e, ao amanhecer do dia seguinte, as massas populares rompem as cadeias da sujeição colonial, proclamando, com a eleição da Junta Governativa, a constituição da primeira autoridade estabelecida para reger as Províncias Unidas do Rio da Prata.

É a revolução de 25 de maio, com a qual expira o vice- reinado de Buenos Aires. As outras vilas e cidades, convidadas por esta, concorrem com seus deputados para a organização de um governo federal, de um executivo, estabelecido em dezembro de 1810, no qual já se esboça a federação, o sistema representativo, a forma republicana, que outros atos da grande revolução não tardariam muito a desenvolver, concluir e consolidar.

Nos dois anos subseqüentes cresce a agitação redentora e organizadora.

Em 1811 a Junta Governativa dá à república nascente o regulamento orgânico de 22 de outubro, sua primeira Constituição, cujas disposições, em sua maioria, antecipam as da Constituição atual. É aí que a nação recebe seu batismo com o nome de Províncias Unidas. Já nesse documento primitivo de vossa existência constitucional se reserva ao Poder Legislativo a declaração de guerra, a celebração de tratados, a tributação do país, a criação de tribunais e empregos públicos, a inviolabilidade dos membros do Congresso, a responsabilidade legal do Poder Executivo, a independência da Justiça, as garantias individuais e, entre elas, a maior de todas, a do habeas corpus, que entre nós, no Brasil, adquiriu o maior desenvolvimento –, mas não se nacionalizou, na legislação brasileira, senão vinte e um anos depois de estar consagrada em vosso primeiro intento de Constituição.

A REDENÇÃO DOS CATIVOS

Meses depois, em abril de 1812, um ato governamental fecha o território do país ao tráfico de carne humana: “Proíbe-se absolutamente a introdução de expedições de escravos no território das Províncias Unidas”. É a grande aspiração humanitária, que o Brasil só haveria de realizar trinta e nove, e os Estados Unidos cinqüenta e dois anos mais tarde, à custa da mais espantosa das guerras civis que ensangüentaram o mundo.

Quarenta e oito anos depois do ato de 1812 a Constituição argentina de 1860 estatuiu: “Não há escravos na Nação Argentina: os poucos hoje existentes ficam livres desde o juramento desta Constituição”.

Os Estados Unidos de então ainda não haviam logrado essa conquista que, justamente nessa época, estava às vésperas de originar a tremenda revolução intestina que, durante um lustro, ameaçou dissolver a União norte-americana, e que o Brasil somente vinte e sete anos mais tarde conseguiu realizar.

Comentando este paralelo, senhores, escrevia eu, faz sete anos, na imprensa brasileira:

Se o Brasil tivesse imprimido na pedra angular da sua independência e da sua organização política o mesmo princípio cristão, o rumo da nossa civilização, a celeridade do nosso progresso, a índole do nosso caráter seriam outros. Infelizmente bem diversa era a sorte que nos reservava a inconseqüência original dos autores da nossa emancipação.

Os nossos futuros historiadores não poderão dizer, como, já há doze anos, dizia, em relação à República Argentina, o historiador da sua independência, que a escravaria, como instituição, mui pouco alterou as condições econômicas e morais da sociedade nascente.

Longe disso, entre nós, pelo contrário, toda a cadeia da nossa história vai prender com o anel de ferro da escravidão africana. Daí emanaram os maiores contrastes entre o homem e a natureza, que enxovalham a nossa reputação e abatem a nossa fronte diante do estrangeiro. Durante três gerações fomos livres, prósperos e ricos à custa da opressão dos nossos semelhantes. Vamos atravessando hoje a grande expiação, que não falta jamais, que não perdoa aos atentados históricos, aos crimes capitais contra a humanidade. A carcaça do cativeiro morto ontem está em decomposição no meio de nós, a nos envenenar do miasma cadavérico: almas, idéias, instituições.

Por isso nos falece, até hoje, no aspecto dos homens e das coisas, o lustre, o donaire, o esmalte da civilização européia. Estes estigmas são tenazes, e não se dissimulam. Eles representam a justiça divina, de cujas sentenças os povos, como os indivíduos, não se resgatam senão pelo sofrimento.

O que para a extirpação desse cancro devemos ao contato argentino não passou despercebido ao nosso reconhecimento. O Conselheiro Saraiva, em 1865, previa que a aliança do Império com as repúblicas platinas daria em resultado necessário a eliminação da escravatura no Brasil. Seis anos mais tarde, Paranhos, advogando o projeto, de que saiu a lei de 28 de setembro, confirmava eloqüentemente esses pressentimentos: “Achei-me, ao terminar a guerra do Paraguai, em relações com cinqüenta mil brasileiros, que estavam em contato com os povos vizinhos; sei, por confissão dos mais ilustrados dentre eles, quantas vezes a instituição odiosa da escravidão no Brasil nos vexava e humilhava ante o estrangeiro; e pode perguntar-se aos mais esclarecidos dos nossos concidadãos que fizeram essa campanha, se todos eles regressaram, ou não, desejando ardentemente ver iniciada a reforma do elemento servil, se se deve, ou não, em parte a eles o mais poderoso impulso adquirido pela idéia nestes últimos tempos.” Desse título de precursor da manumissão geral dos escravos na América, “referendado pelos maiores estadistas brasileiros, e dessa sua colaboração, pela influência, na obra da nossa regeneração social tinha toda a razão em se não esquecer, nos festejos de maio de 1888, a nação argentina. Foi com a consciência do seu contingente superior nessa conquista humana que ela nos abriu os braços fraternalmente, celebrando conosco o último ato da supressão do cativeiro no mundo civilizado.

Mais vale, entre dois povos, uma tradição destas na sua história que a escritura de um tratado de aliança nas suas chancelarias.

Na ordem usual e natural das coisas, a independência dos povos antecede sua emancipação. Entre vós, porém, os sucessos alteraram notavelmente a seqüência habitual da evolução política no curso da humanidade. Quando o grito final de vossa emancipação reboou de Tucumán pelas regiões do Prata, em 1816, já estava elaborada a Constituição inicial da Argentina, a matriz de suas Constituições ulteriores, na obra do deão Funes, nesse Regulamento Orgânico dos três poderes, que, desde 1811, adotara e promulgara a Junta Conservadora de Buenos Aires.

Tal era a impaciência em que, estimulada pela consciência de seu vigor, ardia a antiga colônia espanhola, por entrar plenamente no gozo de sua maioridade, com seu governo organizado e seus direitos definidos; e tantos os elementos de cultura já desenvolvidos nas camadas superiores da nova sociedade, o conjunto de homens capazes que ela reunia, o acatamento popular que os rodeava, a intuição do futuro que os esclarecia.

O CONGRESSO DE TUCUMÁN

Nem por isso, contudo, desmerecerem de seu reconhecido valor os fastos cívicos de Tucumán, onde o movimento iniciado em 1806 e glorificado em 1810 culminou com sua consagração terminal em 1816. O triunfo imprevisto de Belgrano, em setembro de 1812, renovara a face da revolução, batendo os exércitos espanhóis e arrojando ao Peru as forças do general Tristán.

O povo daquela cidade histórica acudira inflamado ao chamamento do libertador, toda a população viril pegara em armas e as próprias mulheres se associaram ativamente ao entusiasmo geral, trabalhando no fabrico de munições. Passando por sobre as ordens categóricas do governo, o arrojado general dá a batalha desaconselhada por seus superiores, na qual joga a vida a corpo perdido, num duelo de honra inevitável.

Algo é preciso aventurar, e esta é a ocasião de fazê-lo. Felizes de nós se pudermos lograr nosso intento, e dar à pátria um dia de satisfação, depois das amarguras por que estamos passando!

Não o enganava o coração pressago. Os soldados realistas são rechaçados. As forças do “exército pequeno”, na ironia de Belgrano, derrotam o “exército grande” em toda a insolência da presunção, que encarecera com a jactância incluída neste apodo posto às tropas inimigas.

Tucumán, a bem-fadada província setentrional, ganhara divisa de seu escudo de armas. Era o túmulo dos tiranos, como profeticamente lhe chama, em solenização da vitória, o general laureado.

O Estatuto Provisório, decretado em maio de 1815 pela Junta de Observação, designara “como lugar intermédio no território das Províncias Unidas”, para a reunião da Constituinte que se projetava, a capital feita célebre pelos últimos reveses do poder militar estrangeiro. Ia consumar-se, assim, a revolução de 15 de abril que, em 1813, mandara convocar de imediato um Congresso Geral, onde se formulasse a constituição do Estado. O Paraguai não responde. A Banda Oriental, Entre- Ríos, Corrientes e Santa Fé estão sob o domínio de Artigas. Mas as outras províncias, incluídas, finalmente, as de Córdoba e Salta, acorrem pressurosas ao chamado.

A assembléia dele resultante não iguala, em cultura política, a de 1813, composta dos patriotas de 1810; mas reflete com exatidão as localidades que representa, e congrega em seu seio, geralmente, os homens de mais conceito e estima em cada província, destacando-se entre eles algumas individualidades superiores, e sobressaindo neste número três frades tão ilustres por suas virtudes e letras como por seu civismo e idéias liberais. No fervor cívico destas o clero compete com o foro e com o comum do povo. Produto comparativamente venturoso de uma eleição a que a indiferença pública de certas localidades e os ódios regionais de outras não pareciam augurar bons resultados.

Três correntes distintas se debatem em seu seio; três credos a dividem: a centralização, a federação, a restauração dos Incas. Mas as opiniões, divergentes nessas tendências locais, inclinam-se, em geral, para a monarquia que entre seus adeptos conta com nomes de supremo prestígio, como os de Rivadavia, San Martín e Belgrano. É um corpo heterogêneo, desunido, flutuante, e é ele mesmo que debuxa o quadro social que o cerca, com a pena de frei Cayetano Rodríguez: as províncias divididas; desavindos os povos; rotos os laços da união social, os governos mal seguros; uma luta geral de interesses; as forças do estado vacilantes; esgotadas as fontes da prosperidade comum; “armada” no horizonte “uma negra tempestade” e a nação a caminho de “uma espantosa anarquia”.

Felizmente as divergências, que, em matéria de forma de governo, agitam a heterogênea assembléia, se retraem e desarmam todas à voz dos grandes patriotas, ante a suprema aspiração de toda as almas: a proclamação da independência nacional por ato nacional de uma assembléia nacional. “Até quando esperaremos para declarar nossa independência?”, pergunta San Martín, ocupado, então, em Mendoza, com a organização do exército dos Andes. Como ele, insta e urge Belgrano. É o sentimento unânime. A autoridade dos dois oráculos o estimula. A pressão aumenta mais ainda com as diligências de Pueyrredón, o Diretor Supremo, que o Congresso acaba de nomear. A assembléia já não pode resistir nem atrasar-se. A independência das Províncias Unidas é a Ordem do Dia para a sessão de 9 de julho, e o Congresso não a discute: aclama, entre os aplausos da multidão, que o vitoria, e numa ata da mais elevada linguagem, o entrega às províncias, às povoações, aos exércitos, que vão jurá-lo em paroxismos de entusiasmo.

O JURAMENTO DA INDEPENDÊNCIA

Deverei repetir-vos aqui essas nobres palavras? Deixai-me, senhores, a grata emoção de fazê-lo.

Nós, diziam os vinte e nove deputados, nós, os representantes das Províncias Unidas da América do Sul, invocando o Eterno, que preside o Universo, em nome e por autoridade dos povos que representamos, protestando ao Céu, às nações e aos homens todos do globo a justiça que regula os nossos votos, declaramos solenemente à face da Terra que é vontade unânime e indubitável destas províncias romper os vínculos que as ligavam aos reis de Espanha, recuperar os direitos de que foram despojadas, e investir-se do alto caráter de uma nação livre e independente do Rei Fernando VII, seus sucessores e metrópole. Ficam, por conseguinte, de fato e de direito, com amplo e pleno poder para darem a si mesmas as formas que exija a justiça e determine o acúmulo das atuais circunstâncias. Todas e cada uma delas assim o publicam, declaram e ratificam, comprometendo- se, por nosso intermédio, ao cumprimento e sustentação desta sua vontade, com o penhor de suas vidas, haveres e fama.

Antes de assim proclamada, a independência já era fato consumado.

Declarada se devia ela considerar até pelos atos das assembléias de 1811 e 1813. Esses atos afirmam que nas duas assembléias “reside a soberania das Províncias Unidas do Rio da Prata”, estabelecem que “os deputados das Províncias Unidas são deputados da nação em geral” e mandam bater moedas com o escudo de armas nacional.

Porém essa vontade assentada e irretratável do povo ainda não recebera em um ato especial a consagração distinta e solene, que devia selá-la, nem se imprimira ao governo a necessária centralização, que devia preceder a marcha das armas vitoriosas na consolidação militar da independência declarada. Tais são as únicas resoluções em que o consenso unânime dos povos que ela representa lhe dá a força para impor- se à obediência de todos. Cingindo-se a essas medidas capitais, a assembléia se inspira naquele bom senso, naquele tato, naquele instinto prático, de que Belgrano, escrevendo a Rivadavia em fevereiro de 1810, a louvava com encarecimento neste expressivo testemunho:

Creio que há muito poucos que não desejem o melhor, e é daí que nascem as controvérsias; e, quando parece que se vão devorar, basta que alguém fale ajuizadamente, ainda que não tenha a voz de um estentor, para que todos o ouçam. Sempre será uma eterna glória para nosso país essa deferência para com a razão.

A OBRA DO CONGRESSO

Eis aí a obra do Congresso de Tucumán, cuja existência interior se desdobra numa luta de contradições inconciliáveis, cuja fisionomia se compõe das antíteses mais radicais, mas cujos atos dominantes salvaram a revolução, tornando irrevogável a redenção argentina, imprimindo unidade nacional ao governo das províncias emancipadas, e estabelecendo, com esses dois feitos, os fundamentos da construção majestosa, cuja data inaugural celebramos no augusto aniversário destes dias.

É assim que o tempo, o maior e o mais seguro fator da justiça na ordem das coisas humanas, vinga a sagrada memória desses benfeitores de sua nacionalidade, seus ilustres patriarcas, das injúrias da espantosa guerra social, nas mãos de cuja anarquia caem vencidos, mais tarde, quando a demagogia militar do ano vinte dissolve o Congresso de Tucumán e o diretório por ele constituído, impondo aos fundadores da independência e aos salvadores da revolução a tacha de traidores, cobrindo-os de ultrajes e submetendo-os a um processo monstruoso, em que os acusados se vêem de antemão condenar, em termos brutais, pelos caudilhos, aos quais nem a revolução nem a independência devem o menor serviço.

Detenhamo-nos aqui, senhores. Não me caberia seguir, destas alturas em diante, a trajetória dessa revolução que, renascendo sempre de suas catástrofes, e multiplicando sem cessar seus lauréis, transpõe os Andes, subleva o Chile, espraia sua inundação até as costas do Pacífico, insurge o Peru, estende a marcha redentora até o Equador, onde se associa à revolução colombiana, ao mesmo tempo que, dos extremos setentrionais da América do Sul, desce outra onda revolucionária, barrando os exércitos da Espanha e, encontrando-se com as ondas vitoriosas do movimento argentino, junta suas forças às dele, na última batida às armas da metrópole, cuja resistência agoniza nas montanhas peruanas, depois dos golpes mortais que lhe infligiram as batalhas de Chacabuco e Maipu, Carabobo e Boyacá.

Essas façanhas medem, a contar de 1816, os seis anos desbordantes de vitórias libertadoras, ao fim dos quais Bartolomé Mitre, em sínteses eloqüentes, recapitula a situação deste modo:

As colônias hispano-americanas eram livres de fato e de direito por seu próprio esforço, sem auxílio estranho, lutando sozinhas contra os poderes absolutos da Terra, contra elas coligados; e do caos colonial surge um novo mundo, ordenado, coroado com as duplas luzes polares e equatoriais de seu céu. Poucas vezes presenciou o mundo uma gênese política semelhante, nem uma epopéia histórica mais grandiosa.

OUTRA PROFECIA

Era bem natural que na América do Norte encontrasse agrado e simpatia a emancipação das colônias da América do Sul, reconhecidas, em 1822, pelos Estados Unidos. Mas onde parece que se teve a compreensão mais nítida, mais viva e mais completa do interesse que representavam para a humanidade os extraordinários sucessos de que era teatro este continente, foi na Europa liberal, especialmente na Inglaterra, a mãe de todas as liberdades modernas, a grande escola da ciência dos homens de estado. As palavras do Marquês de Lansdowne, em 1823, na Câmara dos Comuns, propondo que a Grã-Bretanha reconhecesse a independência das províncias hispano-americanas, são um verdadeiro hino ao futuro da América.

A grandeza e a importância do assunto que vou tratar é tal, diz em acentos comovidos, que raramente se terá submetido outro maior nem igual à consideração de um corpo político. Os resultados abarcam um território cuja magnitude e capacidade de progresso abismam a imaginação quando se intenta medi-los; porque se estendem a regiões que vão dos 37 graus de latitude norte aos 41 de latitude meridional, numa linha, portanto, não menor que a de toda a África, com a mesma direção e mais largura que todos os nossos domínios na Ásia e na Europa. Nessas regiões cruzam-se rios majestosos, com tanta variedade de climas e de tal sorte temperados os calores equatoriais, que disposta se acha ali a natureza para dar em resumo quanto há mais de apetecer em todo o mundo. Habitam essas terras vinte e cinco milhões de almas, de várias raças, que sabem guardar a paz, viver em harmonia e que, em condições mais propícias do que aquelas com que até hoje têm lutado, bem depressa acabarão por encher os amplos vazios de terras incultas, cuja fertilidade as fará prosperar rapidamente, povoando aquele vasto continente de nações poderosas e bem afortunadas. Seus habitantes levarão aos lábios a taça da liberdade; e já ninguém poderá atalhar o rumo a sua civilização, nem aos sentimentos nobres e grandiosos que se levantarem em sua carreira. A regeneração desses países tem de ir adiante.

Não se poderia falar mais divinamente. Era como a mesma sabedoria, prenunciando, abraçada à liberdade, os destinos do Novo Mundo.

A EVOCAÇÃO DE CANNING

A remonarquização da América era, a esse tempo, um dos sonhos do absolutismo europeu. A assembléia da reação fixara seu programa no congresso de Verona. Um exército francês, invadindo a Espanha, restaura o trono de Fernando VII. Só falta agora que a Santa Aliança estenda o braço através do oceano para arrebatar às colônias hispano- americanas recém-redimidas os foros de sua liberdade, consagrada, em tantas campanhas, por tão sublimes sacrifícios. No governo da Senhora dos Mares vela, todavia, o gênio de um grande amigo da humanidade.

Sua autoridade opôs o veto britânico ao infernal atentado. “A América Espanhola é livre”, diz ele. Novus saeclorum nascitur ordo. E foi assim que esse grande ministro adquiriu o direito de exclamar, três anos mais tarde, no parlamento inglês: “Chamei à vida um Novo Mundo, a fim de restabelecer o equilíbrio do Antigo”.

Estas palavras, de uma altiloqüência religiosa e de unção profética, eu as ouvi citar, senhores, faz poucos anos, em circunstâncias que tocam especialmente à República Argentina, e que adquirem singular relevo entre os acontecimentos que angustiam e entenebrecem nossos dias. Entre minhas reminiscências, tão diversas e interessantes, da última conferência de Haia, uma das que mais aprecio é a das relações cordiais em que ali sempre me encontrei com vossos três eminentes delegados, entre os quais me permitireis salientar agora o estadista, por tantos títulos ilustres, que, chamado, pouco depois, a governar este país, deixou de sua administração um sulco luminoso de reformas, cujos benefícios já sentis, e que hão de exercer longa influência sobre vosso progresso constitucional.

Na sessão plenária com que, há perto de nove anos, se encerrou em Haia a famosa assembléia das nações, o eloqüente delegado argentino pronunciou um discurso dos mais apreciados, no começo do qual se evocava a imagem do célebre estadista inglês e suas palavras imortais.

Doravante, disse Sáenz Peña, doravante poderemos afirmar que a igualdade política entre os Estados deixou de ser uma ficção, e está consagrada como realidade evidente. Já não existirá no futuro um direito das gentes para a Europa e outro direito das gentes para a América. A história da Grã-Bretanha registrou esta sentença memo rável, pronunciada no parlamento de Westminster, pela voz de um precursor: “Chamei à vida o Novo Mundo para restabelecer o equilíbrio do Antigo”. Proferiu ele estas palavras no primeiro quartel do século XIX e, no alvorecer do século XX, está consumada a evolução: os soberanos da Rússia e dos Países-Baixos, convocando-nos a este recinto, são os executores testamentários da profecia de George Canning. O equilíbrio está restaurado pela virtude do direito e pela harmonia das leis históricas, que concertam e juntam os dois mundos como as duas metades de uma só esfera, iluminada por uma só justiça e pela mesma civilização.

FALÁCIA DE NOSSAS PREVISÕES

Não haviam transcorridos muitos anos, senhores, desde que estas expressões traduziram com singular felicidade as esperanças de todo o gênero humano, quando acontecimentos sem par na memória dos homens vieram, com estrondo, pôr a descoberto a miserável falácia de nossas previsões. Uma dessas metades do globo, nosso hemisfério, continua (se também aqui não nos enganamos) sustentando-se tranqüila na divina estrutura do Planeta. A outra, porém, sacudida em seus eixos por catástrofes de desmedida grandeza, estala e vacila sobre si mesma, sacudida por um ciclone de calamidade. Os grandes estados investem uns contra os outros, em prodigiosa colisão, ao impulso de suas massas, como pedaços de corpos celestes que se encontrassem e entrechocassem, apagados os luzeiros do Senhor, nos espaços da noite infinita. Os estados pequenos, varridos como palhas pelo açoite do vento, ou inquietos com o sopro da rajada que roça suas fronteiras, perderam a segurança ou a existência, entregues ao azar da luta entre os maiores.

Mãos poderosas, desencadeando a borrasca, romperam as amarras eternas do futuro das nacionalidades, ameaçadas agora pelas incertezas de uma situação que aboliu todas as garantias da confiança dos homens nos homens, dos povos nos povos. Terríveis surpresas vogam no oceano tenebroso do inesperado, onde até as nuvens do céu cospem destruição, e os recessos do abismo se associam à cegueira exterminadora, que coalha, ao largo, sua superfície, com os destroços de todas as tradições cristãs. Nega-se o direito, desterra-se a justiça, elimina-se a verdade, contesta- se a moral, proscreve-se a honra, crucifica-se a humanidade; o vendaval de ferro ataca os símbolos sagrados, a arte, os tesouros da ciência acumulada, os grandes arquivos da civilização, os santuários do trabalho intelectual. Apenas subsiste, de todas as leis, a lei da necessidade, a lei da força, a lei do sangue, a lei da guerra. O Evangelho está substituído pela religião do aço e da pólvora.

Os citas bárbaros, nos templos de Marte – diz-nos o testemunho de Heródoto, no quarto livro de sua História – colocavam como ídolo, em cada uma de suas aras, um alfanje desnudo. Eis aí o nume de nossos tempos: uma espada ereta no grande altar do universo, onde outrora os cristãos adorávamos a caridade, a clemência e a doçura de um deus que se entregou à morte para livrar-nos do mal e fazer-nos irmãos.

ONDE A IGUALDADE DOS DIREITOS?

Onde, pois, hoje essa “virtude do direito”, essa “harmonia das leis históricas” esse “equilíbrio restaurado” entre as nações, que a vosso representante na Conferência da Paz inspiravam aquelas palavras memoráveis? Onde esse direito das gentes que ele celebrava com orgulho? Onde o terreno jurídico deparado aos “executores testamentários da profecia de Canning” na mútua colaboração dos dois continentes? Onde a igualdade no direito entre os pequenos Estados e os Estados poderosos? Enquanto naquele concílio dos povos, com o concurso de todas as nações constituídas, supúnhamos estar codificando num corpo de leis os usos internacionais, que o consenso unânime da sociedade santificava, o meio moral do século estava a dissolver-se, já desde longos anos, desde o terceiro quartel do século anterior, por um surdo trabalho de adaptação aos interesses que haviam de estalar neste conflito e, com ele, sacudir, até seus fundamentos, a máquina da Terra.

O cataclismo atual, antes de acabar sua preparação nas forjas de canhões, começara a ser preparado no ar que as consciências respiram.

Os grandes extermínios de homens pelas epidemias nos vêm da atmosfera envenenada pelos miasmas, e dos veículos imperceptíveis que nos introduzem nas veias, ou nos insinuam nos pulmões o gérmen homicida.

Foi analogamente com uma profunda saturação atmosférica de venenos morais e com uma vasta difusão de parasitas malignos que se dispôs o mundo para a irrupção do flagelo cuja crueldade deveria afogá- lo em desgraças. Antes que saísse das fábricas de armamentos, dos quartéis e dos estados-maiores, tinha esta guerra acumulados os fluidos, que viriam a animá-la, nos livros, nas escolas, nas academias, nos laboratórios do pensamento humano. Para entrar em luta com a civilização, a força compreendera que era preciso constituir-se em filosofia adequada, corrompendo as inteligências, antes de subjugar as vontades.

CAUSAS FUNDAMENTAIS

Tudo nos mostra que a

guerra e a paz, assim como todas as coisas, boas ou más, nas relações humanas, e, com elas, os problemas concernentes ao bom ou mau uso da matéria-prima que a natureza oferece às nossas ações, dependem sempre da justiça ou falsidade encerradas nas idéias dos homens.

Um dos aspectos característicos da guerra atual está no sentimento, generalizado hoje entre os próprios combatentes, de que “esta guerra é, essencialmente, uma guerra de idéias”. Os povos, cuja fortuna se joga nesses combates desordenados e furiosos, acabaram por ver que o espantoso conflito, em cuja voragem se abismam nações e territórios como barcos desarvorados, “tem, fundamentalmente, por causa, as teorias, as aspirações, os devaneios” de uma propaganda nutrida por um núcleo de espíritos cultos, porém pervertidos até o desvario por um nacionalismo enfermiço.

Graças a esses influxos perniciosos é que se converteram nos mais ferozes inimigos uns dos outros grandes povos cristãos, irmanados pela raça, pelas afinidades de idioma, pelas tradições religiosas, pelos interesses econômicos, pelas alianças régias, pela colaboração nos campos de batalha, pelas simpatias intelectuais, pelas inclinações populares.

OS ATOS RESULTAM DAS DOUTRINAS

As doutrinas precedem aos atos. Os fatos materiais emanam dos fatos morais. Os acontecimentos resultam de um ambiente de erros ou verdades. A guerra sob a qual se debate a Europa mutilada teve por origem montão de teorias disformes e virulentas, que, durante meio século, nas regiões mais acreditadas por sua cultura, encheram os livros dos filósofos, dos historiadores, dos publicistas, dos escritores militares.

As nações ameaçadas pelo pulular desses germes peçonhentos não advertiram nos sinais que lhes manifestavam a tendência e o objeto. Deixaram que a torrente epidêmica engrossasse em suas fontes matrizes, por não haver dado a importância devida à relação de causalidade, inevitável entre essas influências aparentemente abstratas e o curso dos negócios humanos, os sentimentos dos povos, os atos dos governos, os destinos do mundo.

Os professores, os jornalistas, os tribunos são hoje os que semeiam a paz ou a guerra. As bocas-de-fogo sucedem às bocas da palavra.

A pena prepara o campo à espada. Voltaire, repartindo o mundo entre as três nações mais cultas de sua época, a uma distribuía o domínio da terra, outra o dos mares, à terceira o das nuvens. Mas se é nas nuvens que habitam os metafísicos, os idéologos, os utopistas, também dessas alturas, onde se condensam emanações de idéias, pode chover sangue.

Sem embargo, não foi das nuvens que, em nossos dias, se pregou o evangelho da guerra. Foi das cátedras, de onde se proporcionava instruções à juventude, de onde os sábios falavam aos sábios, de onde a História ditava seus oráculos às escolas, de onde se dava aos cidadãos a lição do dever, aos governos, a soberania, aos soldados, a da obediência, aos generais, a do mando.

O CULTO DA GUERRA

Era dali que um dos mais autorizados mestres da ciência nova professava estas doutrinas:

A guerra é a ciência política por excelência. Provado está, muitas e muitas vezes, que só pela guerra vem um povo a ser deveras povo. Só na prática em comum de atos heróicos pelo bem da pátria logra uma nação tornar-se real e espiritualmente unida.

A guerra não é esse mal necessário, de que falava Aristóteles.

Não, ao contrário; “é do eterno conflito entre os estados que a História tira sua beleza. Pretender acabar com essa rivalidade é simplemente insensato.

Os civis emasculam a ciência política”, por desconhecerem que a guerra é a segunda função do Estado. “Essa concepção sentimental se desvaneceu no século XIX, depois de Clausewitz.” Os povos mais civilizados são os que melhor se batem, e esta “é a principal coisa da História”. A grandeza depende mais do caráter que da educação; e é nos campos de batalha que se forma o caráter.

Assim dogmatiza o historiador, o catedrático oficial. Depois dele ouviremos o filósofo?

A guerra, diz ele, é a divindade que consagra e purifica os Estados […] Uma boa guerra santifica todas as causas. Contra o risco de que o ideal do estado se corrompa no ideal do dinheiro, o único remédio está na guerra e, ainda uma vez, na guerra.

Quereis escutar agora o estratego, o general, o chefe de exército? Escutai-o:

Sem a guerra as raças inferiores e carentes de moral rapidamente eliminariam as raças saudáveis e longevas. Sem ela o mundo acabaria numa decadência geral. A guerra é um dos fatores essenciais da moralidade.

Não basta? Ouvi ainda:

O pior de todos os erros na guerra é o mal compreendido espírito de benevolência […] Porque aquele que usa de sua força inexoravelmente, sem medir o sangue derramado, levará sempre vantagem grande sobre o adversário, se este não se conduz do mesmo modo. A estratégia regular consiste, sobretudo, em descarregar sobre o exército do inimigo os mais terríveis golpes possíveis e, depois, em causar aos habitantes de seu território sofrimentos tais que os obriguem a desejar ansiosamente paz e obriguem seu governo a pedi-la. Às populações não se lhes deve deixar mais do que os olhos para chorarem a guerra.

Um general dos que foram elevados à notoriedade por esta guerra formula, em síntese expressiva, a lei dessa alquimia moral, transforma em rasgos de clemência as mais bárbaras impiedades. “Dureza e rigor”, diz ele, “convertem-se no contrário desde que com isso se logre inculcar no adversário a resolução de suplicar a paz.” Donde se conclui inevitavelmente que, como, deste ponto de vista, quanto mais torturadas as populações não combatentes, mais ansiarão pela paz, tanto mais caridade haverá na guerra quanto maior a crueldade que nela se empregue.

“O país sofre”, dizia um dos heróis dessa tragédia, filosofando sobre as agonias de uma região condenada à fome.

A população está faminta. É deplorável. Mas é um bem. Não se faz a gurerra com sentimentalidades. Quanto mais implacável for, mais humana será, em substância, a guerra. Os meios de guerra que mais rápido imponham a paz são e hão de ser o mais humano.

ATÉ A PAZ É GUERRA

Tão consubstanciada se acha a luta armada, aos olhos dessa filosofia truculenta, com as exigências essenciais do nosso destino, que somente em gradação difere a guerra da paz. Toda a vida se reduz a guerra, desde a que nos circula nas veias, entre os fagócitos e os micróbios daninhos por eles devorados, até a que assola a Terra entre os povos invasores e os invadidos. E como, segundo um dos artigos desse credo, “o que é justo se decide pela arbitragem da guerra, pois as decisões da guerra são biologicamente exatas, desde que todas elas emanam da natureza das coisas”; como, por conseguinte, sendo a mesma guerra o critério da guerra, sendo ela quem se julga a si mesma, a sentença das armas constitui a expressão inelutável da justiça, toda a história futura dos homens teria de resumir-se numa palavra: invasão. Invasão obtida pela força ou repelida pela força. Invasão exercida contra a fraqueza e tolerada pela fraqueza; visto que, na lei proclamada pelos oráculos da nova cultura, a guerra é o procedimento de legítima expropriação das raças incapazes pelas capazes.

Pela guerra nos salvaremos, ou nos extinguiremos pela guerra. Eis aí o dilema, em cujos dois extremos a guerra, como princípio de todas as coisas, desaba sobre nós com o peso de sua fatalidade inevitável. Guerra, ou guerra.

Guerra em ação, ou guerra em ameaça. Luta contra a guerra iminente, ou guerra declarada. Sujeição à guerra, ou extermínio pela guerra.

DESCRISTIANIZAÇÃO DA HUMANIDADE

As conseqüências do terrível argumento são irrecusáveis.

Essencial ao homem, já agora, não é aprender a pensar, a sentir, a querer de acordo com esses mandamentos que as crenças de nossos pais nos habituaram a considerar sagrados, que nossos próprios instintos, por si sós, nos ditariam, que o primeiro balbucio da razão nascente nos ensina pela voz do coração, que nos levam a respeitar a infância, a velhice, a debilidade, o infortúnio, a virtude, o talento. Não essencial, agora, não é amarmo-nos uns aos outros, como nos prescrevia o antigo Deus dos cristãos, atacado hoje em seus templos, bombardeado em suas catedrais, profanado em suas imagens, fuzilado em seus sacerdotes. Não: essencial é que nos esforcemos para ver quem se distinguirá mais nas artes sublimes de nos espiarmos uns aos outros, de nos assaltarmos, de nos espoliarmos, de nos fuzilarmos, de nos atraiçoarmos, de nos invadirmos, de nos mentirmos, de nos extinguirmos.

A GUERRA SANTIFICADA POR SI MESMA

Daí a mais absoluta inversão do que se chama direito internacional.

Se a guerra é a pedra de toque do justo e do injusto, a arbitragem do lícito e do ilícito, a instância inapelável do direito entre as nações, a guerra é a razão, a absolvição, a canonização de si mesma. Daí o princípio de que a necessidade, na guerra, sobrepuja todas as leis divinas e humanas. Dois elementos compunham o direito internacional: a contraposição de um código de leis à doutrina da necessidade na guerra, e a limitação das exigências da necessidade na guerra pelas normas da humanidade e da civilização. É com isso, justamente, que se acaba, declarando-se peremptoriamente que “a necessidade na guerra prevalece sobre os usos da guerra”.

A lei da necessidade na guerra manda que se traiam os tratados? Traem-se. A lei da necessidade na guerra exige que se viole a neutralidade? Viola-se. A lei da necessidade na guerra quer que se ponham a pique navios neutros, afogando passageiros e tripulantes? Afundam-se, afogam-se. A lei da necessidade na guerra aconselha que se matem cegamente velhos, mulheres e crianças, lançando bombas sobre as populações adormecidas, em cidades pacíficas e indefesas? Matam-se.

Para chegar a esta moralidade, não valia a pena atravessar vinte séculos de cristianismo. Muito antes da era cristã, na república de Platão, já o cinismo de Trasímaco afrontava a lógica de Sócrates, dizendo-lhe: “Eu proclamo que a justiça não é senão o interesse do mais forte”. Mas o mesmo Sócrates nos conta que, ao discutir esta proposição, viu no sofista o que nunca lhe vira. Viu-o ruborizar-se. Outro tanto não sucederá, talvez, com os de nossos dias, se bem que os paradoxos do grego não derramassem sangue, ao passo que os do militarismo atual cobrem o mundo de luto.

O CULTO DO ESTADO

A mesma corrente de idéias que põe, nas relações internacionais, a guerra por cima de todas as leis, começara a colocar, nas relações 220 Rui Barbosa internas, o Estado por cima de todos os direitos. O culto do Estado precedeu ao culto da força militar, a estadolatria à estratolatria. Vosso Alberdi escreveu um excelente panfleto sobre A Onipotência do Estado, encarada ali como “a negação da liberdade individual”. Mas, nas doutrinas que hoje empesteiam e desonram a inteligência humana, a religião do poder sublima-o ainda mais alto: segundo elas, planando numa região de arbítrio sem fronteiras, o Estado, alfa e ômega de si mesmo, existente por si próprio e a si próprio suficiente, é “superior a todas as regras morais”. Ampliado de muitos diâmetros, o super-homem nos dá o super-Estado, o Estado isento dos freios e contrapesos a que a democracia e o sistema representativo o submetem nos governos limitados pelo elemento parlamentar, ou pelas instituições republicanas. E, entendido assim, vem o Estado a ser uma entidade “independente do espírito e da consciência dos cidadãos”. É “um organismo amoral e depredatório, empenhado em sobrepor-se aos outros estados por meio da força”. Não tem, para reger-se, senão sua vontade e soberania.

DUAS MORAIS

Já agora o sistema está completo: em política interna, a força traduzida na razão de estado; em política externa, a força exercida pela guerra. Nas relações internas, duas morais: uma para o indivíduo, outro para o estado. Duas morais, igualmente, nas relações externas: uma para os estados militarmente robustos, outra para os estados militarmente débeis.

RETROCESSO

Para autorizar este retrocesso às idades primitivas foi necessário cantar em todos os tons as virtudes civilizadoras da guerra, negar o alto valor dos pequenos estados no desenvolvimento e equilíbrio do mundo, reivindicar exclusivamente para as teorias do predomínio da força o caráter de exeqüibilidade, negando a eficácia das sanções morais nas relações entre os povos. Pois bem: nenhuma dessas três pretensões consulta a verdade, nem se mantém diante do senso comum.

GENEBRA E HAIA

Pôr em dúvida, hoje, a autoridade da moral no direito das gentes é borrar de um golpe vinte séculos de progresso cristão. As conferências de Genebra e Haia revestiram-no de formas positivas, que os terremotos internacionais lograrão transtornar passageiramente, ainda que deles hão de sair renovadas e vitoriosas. Em Haia, quarenta e oito potências deliberaram sobre o direito internacional, submetendo- o a uma vasta codificação de estipulações, que se comprometeram a observar.

AS FORÇAS MORAIS

Se essas normas sofreram, ultimamente, transgressões violentas, não é porque sejam vãs abstrações. Na existência interna de cada estado também se quebram, amiúde, as leis nacionais; e se a condição habitual dela não é a de ser burlada pela força constantemente, esta vantagem se deve ao mecanismo tutelar da justiça, mais ou menos bem organizada em todas as constituições. É o que ainda está por organizar, mas não será impossível que se organize, talvez mais depressa do que se pensa, entre as nações independentes. Todavia, enquanto não se organiza, forças morais existem que, se não obrigam os povos das contingências da guerra, mantêm, pelo menos, em torno e acima desta, um conjunto de restrições e impossibilidades, opostas aos excessos extremos do militarismo desencadeado.

NÃO, NÃO HÁ DUAS MORAIS

Não se diga, portanto, como se tem dito, que, na esfera onde se agita a política das potências maiores, as noções usuais da moral doutrinária não se acolhem senão depois de alteradas por uma grosseira liga de egoísmo. Não há duas morais, a doutrina e a prática. A moral é uma só: a da consciência humana, que não vacila em discernir entre o direito e a força. Os interesses podem obscurecer transitoriamente esse órgão da visão interior: podem obscurecê-lo nas relações entre os povos, como nas relações entre os indivíduos, no comércio entre os estados como no comércio entre os homens, no governo como nos tribunais, na esfera da política internacional, como na dos códigos civis e penais.

Porém tais perturbações, tais anomalias, tais crises não provam que não exista em nós, individual ou coletivamente, o senso da moralidade humana, ou que suas fórmulas sejam meras teorias.

Não é à nossa, pois, que cabe o qualificativo de moral teórica.

A baixa liga do egoísmo entra em quase todos os negócios humanos, e o risco de ser a lei anulada pela força é comum a todos os domínios da nossa vontade, individual ou coletiva. O que, porém, não demonstra que o mundo real se reduza todo ele, a violência e arbitrariedade; e tanto não é assim que, postos nesse terreno, os conflitos entre os povos são insolúveis. A própria vitória das armas, quando não corresponde à justiça, não os dirime solidamente: apenas se abafam e procrastinam para, ulteriormente, renascerem em novas guerras. Se a de 1870 não tivesse tomado à França a Alsácia e a Lorena, não teria perpetuado entre os vencidos o sentimento da desforra, entre os vencedores, o da conquista.

Somente a moral, portanto, é prática. Somente a justiça é eficaz. Somente as criações de uma e outra perduram.

O ANARQUISMO INTERNACIONAL

“A sociedade humana”, escrevia, no ano passado, um autor americano dos mais notáveis,

não pode em última apelação estribar-se na força. Quando numa eleição os republicanos votam, excluindo do poder os democratas, em que se fiam eles para estarem certos de que os democratas lhes entregarão o poder? No Exército e na Marinha, direis. Mas quem manda no Exército e na Marinha, quem dispõe desses instrumentos de poder são os democratas, que estão no governo. Não há outra certeza de que os democratas dele se apeiem e entreguem esses instrumentos de poder, não há outra senão o acordo, a convenção existente nas leis. Se eles não respeitassem esse acordo, os republicanos levantariam um exército de insurgentes para arrojar do governo os democratas, precisamente como ocorre em certas repúblicas sul-americanas, obtido o quê, ocupariam o poder até que os democratas, por sua vez, reunissem outro exército. De modo que a sorte reservada aos norte-americanos seria, destarte, a mesma de outros países, onde as revoluções se sucedem de seis em seis meses. O que o evita é, unicamente, a confiança geral, que todos nutrem, em que nenhum dos adversários há de falsear as regras preestabelecidas. É forçoso que se estenda a mesma convenção ao campo das relações internacionais; e o militarismo não perecerá senão quando for universalmente reconhecida a necessidade, para as nações, de se regerem pela mesma norma. Toda a esperança de que ele acabe por extinguir- se reside em que triunfe uma doutrina melhor, reconhecendo- se que a luta pelo ascendente militar deve ser abandonada, não por uma das partes, apenas, mas por todas. Proscreva-se o anarquismo internacional, a suposição de que entre as nações não existe sociedade, e substituam-se esses erros pelo reconhecimento franco de um fato óbvio, qual seja o de que as nações formam uma sociedade, e de que esses princípios, nos quais toda a gente deposita a esperança da estabilidade da civilização dentro de cada estado, devem aplicar- se, igualmente, como a única esperança de que se mantenha a civilização nas relações entre os estados.

Para poder fazer do direito da força e da excelência da guerra os dois pólos da civilização, necessário seria levar ao mundo superior da consciência as devastações, com que se tem assolado o mundo, onde reinam as conquistas materiais do nosso progresso. Vacila em seus fundamentos a razão humana, destruindo-se as fronteiras que separavam o bem e o mal, o justo e o injusto, a violência e o direito. O mundo está farto de ouvir cantar em todos os tons do entusiasmo a apologia do extermínio sistematizado. Mas, quando, para a caracterização da guerra, não bastassem as maldades inomináveis que essencialmente a definem, qualificada estava ela de sobra com essa aberração que inventou, em benefício dos interesses da guerra: o privilégio de legitimar a imoralidade, pondo em conflito duas morais antagônicas, uma reservada aos fortes, com a garantia executiva das armas, outra consignada aos débeis, com a miséria de uma sujeição ilimitada ao capricho dos fortes.

BARBARIA

Não existia a moral senão, justamente, para moderar os grandes e escudar os pequenos, refrear os opulentos e abrigar os pobres, conter os fortes e garantir os fracos. Entretanto, com a dualidade que introduziram na concepção da moral, a força e a guerra, apoderando-se do mundo, basearam a moral no dinheiro, na soberba e no poder, fizeram da moral a humilhação, o ergástulo, o cativeiro dos fracos, dos necessitados e dos pequenos. Duplicando a moral, aboliram a moral; e, como a moral é a barreira das barreiras entre as sociedades civilizadas e as sociedades bárbaras, abolindo a moral, proclamaram implicitamente a barbaria como último destino do gênero humano. Barbaria servida pela física e pela química, barbaria adulada pelos sábios e pelos doutos, barbaria dourada pelas artes e pelas letras, barbaria disciplinada nos ministérios e nos quartéis, barbaria com a presunção da ciência e o gênio da organização, mas nem por isso menos barbaria, antes barbaria pior, por isso mesmo. Maldita seja a guerra que, reduzindo a moral a lacaia da força, embotou o senso íntimo dos povos e envolveu em trevas a consciência de uma parte da humanidade.

A MORAL É UMA SÓ

Não, não há duas morais. Para os estados, como para os indivíduos, repito, na paz, como na guerra, a moral é uma só. Nos campos de batalha, nas cidades invadidas, no território inimigo ocupado, no oceano solapadamente sulcado por submarinos, nas incursões das belonaves aéreas, é ela quem protege os lares tranqüilos nas cidades inermes, quem resguarda nos transatlânticos as populações viajoras, quem não permite semear de minas as águas reservadas ao comércio pacífico, quem livra dos torpedos os barcos de pesca e os hospitais flutuantes, quem abriga de bombardeios as enfermarias e as bibliotecas, os monumentos e os templos, quem proíbe a pilhagem, a execução dos reféns, a trucidação dos feridos, o envenenamento das fontes, quem protege as mulheres, as crianças, os velhos, os enfermos, os desarmados. A moral é só esta. Não se pode conceber outra. Se o mundo vê erigir-se agora um sistema que a ela lhe usurpa o nome, revogando todos esses cânones da eterna verdade, não é a moral que se está civilizando: é a imoralidade, encoberta com os títulos da moral destruída, a malfeitora oculta sob o nome de sua vítima; e todos os povos, sob pena de suicídio, devem unir-se para lhe opor a unanimidade incondicional de sua execração.

A MORAL JURÍDICA

“O que a nós nos importa, acima de tudo, a nós pacifistas e democratas alemães”, dizia, ainda ontem, um deles, em livro recentíssimo

o que nos importa é isto: não há preço em troca do qual possamos tolerar por mais tempo, em pleno século XX, a coexistência de duas morais, uma ao lado da outra: uma para uso do cidadão, outra para uso do estado. Maquiavel está morto, e morto para sempre. Os povos, os estados, as dinastias estão submetidos hoje às mesmas concepções morais, às mesmas leis morais que os simples cidadãos. Devem proceder como gente honesta. Quando não, hão de vir a ser, em nome da justiça e da segurança pública, citados diante da justiça, como outro delinqüente qualquer. Não lhes é lícito alegar, para se defenderem, outros motivos que não sejam os do direito penal.

Porque, atualmente, já não deve haver razão de estado, nem direito público especial infensos à discussão e estranhos às noções da moralidade corrente. O que resta disso nos papéis diplomáticos e nos cérebros de certos sábios, a guerra atual o destruirá. Já não existe, nem poderá existir mais, na Europa, senão uma só moral: a moral jurídica, ligando a todos e regendo tudo: reis e dinastias, cidadãos e países.

ELOGIOS USURPADOS PELA GUERRA

Mas, senhores, a guerra não merece o reconhecimento do gênero humano nem sequer pelos atos heróicos e virtudes sublimes de que são teatro seus campos. As influências que elevam os homens a essas alturas da abnegação, a esses gloriosos extremos do sacrifício, não são os apetites sanguinários do combate: é a preocupação dos direitos e interesses da paz, o zelo de seus tesouros periclitantes, que cada um dos combatentes vê periclitar com a guerra. Esses sentimentos, esses afetos, essas nobres qualidades se inflamam e deflagram na luta armada, que oferece aos ameaçados a ocasião da resistência ao perigo iminente. Mas o que ilumina essa luta, o que a engrandece, o que a santifica, é o amor da pátria, o amor da família, o amor da liberdade, o amor de tudo o que as comoções militares inquietam e aniquilam. Pois bem: esses sentimentos não se desenvolvem com tanta intensidade em parte alguma como entre os povos pacíficos, as nações liberais, os governos democratizados.

Se não, veja-se a Inglaterra. Vejam-se os Estados Unidos. Veja-se a Bélgica. Veja-se a Suíça. Veja-se a França.

A França, desapercebida para a guerra, opõe ao gênio da organização o gênio da improvisação, as faculdades criadoras que este encerra e que aquela não possui; cria, para armar-se, uma metalurgia nova; improvisa uma resistência surpreendente; desenvolve virtudes inesperadas, e se excede a si mesma nos campos de batalha. A Inglaterra, militarmente desorganizada, obrigada a medir-se com o inimigo em sete ou oito frentes diversas, sobrecarregada no oceano com a polícia dos mares, inquietada em seu próprio território pela campanha aérea, entrega serenamente à morte a flor de sua aristocracia e de sua cultura, cobre-se de lauréis nos combates, e levanta pelo voluntariado, em dezoito meses, um exército de cinco milhões de homens. A Bélgica, assaltada pela mais imprevista das invasões, levanta a mão da indústria para tomar a espada, a carabina, a lança, e, sobre os restos do torrão paterno, dilacerada, incendiada, atormentada, mas não acobardada, não desonrada, não esmagada, enche a História com o incomparável assombro de sua nobreza, de sua energia e de seu heroísmo. A Suíça, irredutível em sua liberdade e em sua democracia, se impõe, com o civismo de suas milícias, ao respeito dos beligerantes, cujas fronteiras a sitiam por todos os lados. Os Estados Unidos, sem exército nem marinha correspondentes a suas responsabilidades, aos problemas de sua política externa, às condições de sua situação internacional, não receiam pela segurança de sua posição no continente, nem temem achar esgotado, quando o buscarem, esse reservatório de virtude e energias, onde os povos livres sabem encontrar, ao primeiro grito da necessidade, os elementos de sua defesa.

CONFRONTOS DECISIVOS

Um escritor desse país, discorrendo sobre a história de uma das mais agitadas repúblicas sul-americanas, comprovou que, nos primeiros vinte anos de sua existência independente, ela travara mais de cento e vinte batalhas.

Com esse campo de exercício constante para as qualidades “viris e aventureiras”, que se preconizam como a vantagem das nações militarizadas, quem admitirá, não obstante, cotejar essas democracias batalhadoras e as dos Estados Unidos, inimiga da guerra por sua índole, por sua história, por suas instituições, por seus costumes? A Turquia é a nação mais militarizada de toda a Europa; a Inglaterra, a menos militarizada.

Qual das duas, por aquilo que é, daria dos princípios que a modelam mais favorável idéia?

GUERRA E INDÚSTRIA

Dirão que a guerra estimula a indústria e o comércio? Às vezes, mas transitoriamente. Foi o que ocorreu, por exemplo, depois da campanha russo-japonesa. Houve países, como os Estados Unidos, cujas vendas ao Japão, à Rússia e à China cresceram depois dessa guerra. Mas à excitação sucedeu, quase em seguida, uma depressão profunda. A guerra matou centenas de milhares de homens, empobreceu milhões, e os países, prostrados pela sangria, tiveram de economizar, por muitos anos, na proporção correspondente ao decréscimo de seus recursos com os sacrifícios da luta. Naturalmente é o que sucederá, também, passada a guerra atual.

AS CONTAS DA GUERRA

As cifras com que houvessem de calcular-se os prejuízos desta conflagração inaudita seriam de uma imensidade quase astronômica. Já se computam em treze milhões os homens que ela devorou, consumiu ou pôs fora de combate. Mas, quando debaixo desta parcela tremenda inscrevermos em milhares de milhões as somas de moeda consumida, as indenizações, as requisições, as assolações, as cidades arrasadas, as províncias devastadas, o incalculável das culturas, das florestas, dos campos, onde à população sucedeu o ermo, às colheitas sucedeu a hecatombe, e as terras que o arado revolvia são hoje lavradas pelos canhões, a imaginação retrocederá espavorida. A tanto não chegaram aqueles antigos déspotas chineses, cuja carnificina lograva apenas suprimir um milhão de vidas em dezenas de anos de reinado, nem aqueles conquistadores orientais que assinalavam com pirâmide de crânios humanos a passagem de suas armas.

GUERRAS DEFENSIVAS

Se “as guerras de resistência à agressão, ou as de socorro aos oprimidos têm dado motivo a esplêndidas irradiações de heroísmo”, é que elas nascem da consciência jurídica, nos que se defendem, ou da abnegação pela solidariedade humana, nos que se sacrificam. Essas mesmas proezas de verdadeiro heroísmo, o daqueles que se matam pelo direito, próprio ou alheio, constituem a mais direta condenação da guerra, que dança sua dança macabra sobre essas virtudes, e junca com essas vidas preciosas o campo abominável de seus matadouros.

Suprimi essas exceções, nas quais o que brilha não são os benefícios da guerra, mas a palma de seus mártires, e o que a História nos ensina é que a guerra nasce da tirania, ou a engendra, que a guerra colide com as instituições livres e as destrói, que a guerra desumaniza as almas e as corrompe, que a guerra descristianiza as sociedades e as barbariza, que a guerra divide os povos em castas e os escraviza, que a guerra atenta contra Deus e Lhe profana o nome, associando-O aos mais horrendos selvagismos. As nações que se dizem organizadas por ela, constituída para ela e por ela engrandecidas, são máquinas de combate, mecanismos de agressão, onde na pele de cada indivíduo está metido o sargento instrutor, onde se reduz a ciência a um papel diminuto e subalterno, onde a educação militarista mata a iniciativa, proscreve o ideal, automatiza a vida, arregimenta a sociedade, imprime em tudo a marca da dependência militar, e faz da guerra a verdadeira religião nacional.

NAÇÕES DE PRESA E NAÇÕES DE PASTO

A militarização das potências divide o mundo em nações de presa e nações de pasto, umas constituídas para a soberania e a rapina, outras para a servidão e a carniça. A política da guerra é a agressão organizada quaerens quem devoret.

Mas é na guerra preventiva, invenção digna da barbárie destilada pela cultura, que se manifesta seu caráter superlativamente agressivo.

Um país declara guerra ao outro, invade-o e devasta-o, ainda que dele não haja recebido ofensa alguma e apenas se defenda do invasor depois da invasão.

Mas nem por isso se excedeu. Estava no seu direito; fez muito bem; porque lá tinha ele suas razões para crer que, caso não se antecipasse, outros países, seus inimigos, se lhe adiantariam no ocupar o território daquele. É como se eu me apoderasse da casa do vizinho e a incendiasse, por acreditar que outro da vizinhança, se eu me não apressasse em queimá- la, se anteciparia a mim na consumação desse atentado. Tal escusa, entre indivíduos, não livraria o criminoso da responsabilidade e do cárcere, senão da morte. Entre nações, porém, é a base de uma teoria, o fundamento de uma generalização, a justificação de uma lei nova.

Quatrocentos e dezesseis anos antes de Cristo, narra Tucídides que Atenas, debatendo com o povo da pequena ilha de Melos o dilema da sujeição ou extermínio que lhe impunha, atalhou a questão, dizendo: “Bem sabeis, como nós, que na ordem do mundo só se fala de direito entre iguais em força. Entre fortes e fracos, os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”.

A IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

Na última conferência de Haia, senhores, o contrário sustentaram todas as nações hispano-americanas. Com o maior ardor ali nos batemos todos pela igualdade jurídica de todos os estados soberanos; e tal prestígio assumiu esse princípio, naquela assembléia incomparável, que, por não o aceitar, caiu com estrondo o projeto de organização da Corte de Justiça Arbitral, ainda que o formulassem as grandes potências, as quais, não podendo salvá-lo, logo o abandonaram quase todas.

Isto porque os termos do pleito já nasceram idênticos aos do século quinto antes de Cristo, quando a poderosa Atenas discutia com os ilhéus de Melos.

ESTADOS PEQUENOS

Quando hoje se fala de estados pequenos, são estes os não inscritos no rol das grandes potências, isto é, todos os estados mais fracos, os menos armados. De sorte que, além dos estados territorialmente pequenos da Europa, a lista abrange a América inteira, excetuada a União Norte-Americana e o Domínio do Canadá. Toda a América Latina, portanto, entrará, com a Bélgica, a Holanda, a Escandinávia, a Suíça, Portugal, a Grécia, a Sérvia, a Bulgária, a Romênia e o Montenegro, na lista dessas entidades inferiores, cujo destino, consoante a lei de que o poder é o direito, se acha à mercê dos senhores da força.

Não importa que os pequenos estados tenham sido, talvez (o conceito é de Bryce), “os mais poderosos e úteis fatores no adiantamento da civilização”. Não importa que a esses pequenos estados “deva o mundo muito mais que às monarquias militantes” desde Luís XIV até hoje. Não importa que a Grã-Bretanha fosse, dada sua população, um pequeno estado, quando produziu Shakespeare, Bacon e Milton, como um pequeno estado eram os Estados Unidos, quando produziram Washington e Franklin, Jefferson e Marshall. Não importa que num desses dois pequenos estados se elaborasse o direito comum anglo-saxão e, no outro, a Carta da União Americana. Não importa que em pequenos estados hajam vindo à luz o Antigo Testamento, os poemas homéricos, a Divina Comédia, o Renascimento italiano. Não importa que a Alemanha de Kant e Lessing, de Goethe e Schiller não fosse mais que um grupo de principados e cidades livres. Não importa que a pequenos estados, como o de Atenas, o de Florença, o de Weimar, esteja a humanidade atada por dívidas inestimáveis. Não importa que os pequenos estados hajam dado à terra espetáculos e lições de incomensurável grandeza moral, como o da emancipação helvética, faz seiscentos anos, e o da luta das Províncias Unidas dos Países-Baixos contra o colosso da monarquia espanhola. Não importa que o valor da Holanda e da Bélgica, como elementos essenciais do equilíbrio europeu, esteja consagrado pelos atos da política inglesa no século XIV, no século XVI, no século XVII, no século XVIII, no século XIX, defendendo os Países-Baixos desde Felipe II, Luís XIV, Napoleão I, até hoje, a liberdade européia. Não importa o papel dos pequenos estados da América Latina, quando sua insurreição, no princípio do século XIX, cortando o vôo à Santa Aliança, tanto contribuiu para desopressão da Europa. Não importa que entre esses estados haja países como a República Argentina, o Chile, o Brasil, com imensos territórios, grandes populações, riquezas maravilhosas, alta cultura política e fatos que honram a história da espécie humana.

Nada importa; porque só uma consideração se terá em conta: a de sua inferioridade de militar, a de sua insuficiência guerreira, e de sua desvantagem numa comparação de forças com as grandes nações armadas.

LA RAISON DU PLUS FORT

Para estas não existe nenhuma lei, segundo a moderna moral bélica, a não ser a de que a força tem a primazia sobre o direito, a de que o direito é apenas um acessório da força. Segundo os magnates do sistema, os pequenos estados constituem um risco perpétuo para a tranqüilidade dos grandes, são, entre as potências, o pomo da discórdia, dão causa freqüente à guerra, e lhe deparam campo habitual em seus territórios mal defendidos.

Quando foi (a pergunta é de Geffcken, que não sofre a suspeita de ser latino), quando foi que a Holanda, a Bélgica ou a Suíça alguma vez fomentaram a discórdia entre os estados vizinhos?

Decerto que nunca. Mas la raison du plus fort est tuojours la meilleure.

A fábula de La Fontaine encerra em si toda a evolução contemporânea do direito das gentes culto. De que vale ao cordeiro estar bebendo no arroio mais abaixo que o lobo se, a despeito da evidência, o apetite do carniceiro voraz o argúi de lhe turvar as águas?

O PODER DO ESTADO É SUPERIOR À HUMANIDADE

Treitschke, o mestre de Bernhardi, considera “uma desgraça que o direito internacional tivesse por pátria, durante tanto tempo, países como a Bélgica e a Holanda. Esses países”, diz ele,

em risco contínuo de serem atacados, têm uma concepção sentimental dessa matéria e, por isso, sua tendência é apelar para o vencedor em nome da humanidade, como se tais apelos não fossem antinaturais e insensatos, pela contradição em que se acham com o poder do Estado.

ESTADOS NEUTRALIZADOS E EMASCULADOS

Aos olhos dos super-homens que o insigne professor representa, “a Bélgica, sendo um estado neutro, é, por natureza, um estado emasculado”.

O epíteto é de um insigne historiador. Vede, não obstante, qual é a falta de virilidade nas legiões do Rei Alberto! Ora bem: como, ao perder a virilidade, mudou ipso facto de sexo, estado neutro, precisamente por ser neutro, variou de condição. A condição dos que perderam a qualidade viril é a de protegidos ou cativos, como a mulher ou o eunuco. A noção de neutralidade, pois, já não poderia ser a que até o presente se tinha por tal. Quando os estados poderosos neutralizassem uma nação culta e livre, não seria para lhe assegurar a independência, mas para sujeitá-la à tutela dos fortes.

TRATADOS NADA VALEM

Nada obsta a que essa independência tenha a fiança de um tratado, e não só de um tratado especial, senão também da convenção geral de Haia, que declara inviolável o território neutro. Nada obsta; porque os tratados são farrapos de papel. Foi, portanto, em assinar farrapos de papel que estivemos ocupados, nas conferências de 1899 e 1907, os quarenta e tantos estados que, sisudamente, ali nos reunimos. O mundo inteiro se indignou contra a franqueza da nova doutrina. Mas não tinha razão. É uma doutrina sincera. Não tenta enganar a ninguém. E tem o mérito de resumir, numa só palavra, a imensa revolução por que passou, manipulada pelos interesses da guerra, a moral humana.

PAPEL E PALAVRA

Se os tratados são farrapos de papel, porque se consignam em papéis, trapos de papel são todos os contratos, porque em papel escrevem todos se, porque os celebramos no papel, os tratados não são por isso, senão farrapos de papel, nada mais que farrapos são, igualmente, as leis, que no papel se formulam, decretam e promulgam. Se os tratados, porque recebem no papel sua forma visível, a trapos de papel se reduzem, as constituições, que no papel se pactuam, não passam de farrapos de papel. Trapos de papel maiores ou menores, mas, ao fim e ao cabo, papel, e em farrapos. De sorte que todo o comércio humano, todas as relações da sociedade, todos os direitos e deveres, a família, a pátria, a civilização, o estado, toda a fábrica do mundo racional, depois de feitas as contas, não vêm a ser mais que uma traparia de papel, inútil ou valioso, conforme se trate de sujeitar os fracos ou de servir os fortes.

Menos ainda que o papel é a palavra, porque é um sopro; e, não o obstante, imaginava-se outrora que ela vincula os reis e os povos, os homens e os numes. O verbo de Deus, antes de registrado nas Sagradas Escrituras, o juramento na sagração dos soberanos, na promulgação das constituições, na investidura das dignidades, no depoimento das testemunhas, a poesia homérica no canto dos aedos, a tradição na memória das gentes, a eloqüência na voz dos tribunos – tudo é palavra – a palavra cujo fiat, no Gênesis, criou o mundo, e cuja vibração, na História, transforma e revoluciona o universo. Quando a palavra se transfere da voz ao papel, cuidava o vulgo ingênuo que ela subia um grau na escala da segurança, não porque a consciência valha mais escrita que falada, mas porque, falada, não deixa, como nos escritos, o rastro de sua autenticidade.

Daí o valor do papel, que não comunica sua destrutibilidade a seu conteúdo, mas antes recebe daquilo que contém sua inviolabilidade.

Essa é a nobreza do papel. No papel se salvaram todos os monumentos das letras antigas. No papel se perpetuavam os antigos forais dos municípios livres. No papel se escreve a Magna Carta. No papel fixa a Matemática seus cálculos, a Química suas fórmulas, a Geografia suas posições, a Astronomia suas medidas. Foi no papel que Leverrier descobriu Netuno. É ao papel que a amizade, o direito, a honra confiam seus segredos, suas dívidas, seus compromissos. É no papel que a ciência, a literatura, as instituições eternizam suas obras-primas, seus títulos de estabilidade, os arquivos de seu passado, as garantias de seu porvir. Todo o universo moral, todo o universo político, todo o universo humano assenta, hoje, em trapos de papel. Os vendavais da guerra passam sobre ele, e arrebatam-no, dispersam-no, destroem-no. É por isso que ela começa por incendiar bibliotecas. São montoeiras de papel, asilos do pó, das traças e da inteligência. Entregando-as às chamas, a guerra saneia o Planeta. Deus não o criou para o verbo, mas para o ferro.

Se devesse de acatar a esses papéis, a esses papeluchos, a essa papelagem, a guerra estaria desarmada. A cada passo o fantasma de um direito, tropeço de uma convenção, a impertinência de uma garantia. Cedant arma togae dizia outrora o mundo. Hoje, porém, o que diz no mundo é que cedat jus armis: ceda o direito à força. E como a força tem sua culminação na guerra, a guerra é a lei das leis, a justiça das justiças, a soberania das soberanias.

Essa grandeza não tolera a liberdade, nem a humanidade, nem a honestidade. Se um indivíduo repudiasse a própria firma, num contrato legítimo, a título de que era um trapo de papel, ninguém o consideraria um homem de bem. Mas se uma nação repudia tratados solenes, a título de que são papeluchos, ninguém ousará dizer que fez o que não devia. Porque a força é o juiz de seus direitos, a guerra é o árbitro de seus poderes, e todas as convenções internacionais encerram a cláusula, subentendida sempre, do rebus sic stantibus: enquanto as circunstâncias não mudarem; isto é: enquanto outra não for a vontade soberana do mais forte.

EXPROPRIAÇÃO DAS RAÇAS INCOMPETENTE

É pela guerra, diz Bernhardi

e só pela guerra que se pode realizar a expropriação das raças incompetentes.

O mundo é dominado pela idéia de que a guerra é um instrumento político antiquado, já indigno de povos adiantados em civilização. Nós não devemos deixar-nos seduzir por essas teorias.

Os tribunais de arbitragem são um perigo, porque podem paralisar os movimentos das potências envolvidas no caso.

“Raças incompetentes!” Quais são elas?

As nações desarmadas ou mal armadas. A competência ou a incompetência, são as armas que as dão ou tiram. Não está no direito a competência; porque o direito é apenas um expoente do poder. Não está na inteligência; porque a inteligência não é máquina de matar. Não está na riqueza; porque o mais rico dos estados pode ser reduzido a um cemitério pelo vendaval de uma invasão. Não está nas convenções; porque o papel não vale senão pelo punho que o defende. Eis aí, senhores, os benefícios da guerra. Não se limita a exterminar as vidas. Destrói-nos também o senso moral.

ABOLIÇÃO DO SENSO MORAL

No sítio onde ele existia, um hediondo câncer multiplica seus erros monstruosos. A guerra não é um mal, é um bem: “uma necessidade biológica da mais alta importância”. Com ela não perde a cultura: pelo contrário, “no desenvolvimento da cultura, a guerra é o maior dos fatores”. O gênero humano não deve temê-la. Longe disso, “Deus há de prover para que se renove sempre essa medicina drástica do gênero humano”.

As diligências tendentes à extinção da guerra não são apenas insensatas, senão também imorais, e devem estigmatizar-se por indignas da humanidade.

Pensar em tribunais de arbitragem é alimentar idéias que representam uma presunçosa intrusão no domínio das leis da natureza e que acarretarão para a espécie humana em geral as conseqüências mais desastrosas.

Bem longe de arruinar os povos, a guerra os desenvolve e enriquece; pois “a História inteira os ensina que o comércio medra à sombra da força armada”. Bem haja, pois, “o saudável egoísmo, que ainda dirige a política da maioria dos estados”; pois graças a ele se anularão os esforços realizados para estabelecer a paz, esforços “extraordinariamente perniciosos”, que contrariam “a idealidade, a inevitabilidade, as bênçãos da guerra, estímulo indispensável ao desenvolvimento do homem”.

A PAZ É O MAL

Da paz, sim, devemos ter receio; porque a paz, se acaso fosse exeqüível, “nos conduziria à degeneração geral”. Ela “não deve, nem poderá ser nunca o objeto da política de uma nação”, visto que a guerra é “a lei natural, a que se podem reduzir todas as outras leis da natureza”.

Heráclito de Éfeso dizia que “a guerra é a mãe de todas as coisas”; e os sábios de nossa idade não topam com outra expressão mais digna de resumir a obra divina. “Os grandes armamentos constituem a mais necessária precondição da salubridade nacional”.

OS AXIOMAS DA FORÇA

“O fim de tudo e a essência de tudo, num estado, é o poder; e quem não for homem bastante para encarar de frente esta verdade, renuncie à política.” O mais sublime dever moral do estado não é guardar a justiça, nem sustentar a moral: “é aumentar seu próprio poder”. Da moralidade de suas ações o estado é o único juiz. “Os direitos reconhecidos, como os que se estipulam nos tratados, não são jamais direitos absolutos: sua origem humana torna-os imperfeitos e variáveis; e há condições em que não correspondem à verdade atual das coisas.” “Todo o trabalho em prol da existência de uma humanidade coletiva fora dos limites dos estados e nacionalidades é irrealizável.” “As nações fracas não têm o mesmo direito de viver que as ações poderosas e robustas.” Eis aí, senhores, os axiomas da escola destinada a regenerar o mundo pela força.

A GUERRA ATUAL E AS CONVENÇÕES DE HAIA

Se esse é o verdadeiro direito público, ninguém poderá queixar- se de que a guerra atual tenha dilacerado todas as convenções de Haia. As convenções de Haia são as mais solenes de quantas viu a História; são os atos jurídicos de maior gravidade, nos quais reciprocamente se manifestou a livre vontade dos estados. Porque nunca se celebrou conselho de nações tão numeroso quanto aquele, onde podemos dizer que se reuniram, em número de mais de quarenta, todos os governos regulares.

Nunca se debateram tão atentamente, entre estados, seus mútuos direitos na paz e na guerra; nunca se deliberou com tanta luz, com tanta isenção, com tanta harmonia sobre estas questões supremas; nunca se ergueu às leis da paz e da guerra uma construção tão vasta, tão sólida e excelsa. Dessa construção, não obstante, o conflito que agora rasga as entranhas da Europa não deixou pedra sobre pedra.

Os fatos se acumulam, descompassados e tremendos. Como conciliar as convenções de Haia com a violação do território de nações neutras, invadido, ocupado, talado, anexado? Com o uso de gases asfixiantes e jatos de petróleo inflamado? Com o emprego de projéteis explosivos e o envenenamento das fontes? Com o abuso da bandeira de parlamentações e das insígnias da Cruz Vermelha? Com a imposição de requisições e indenizações exorbitantes às regiões ocupadas? Com o bombardeio de aldeias, cidades, vilas, povoações e casas indefesas? Com o fogo dirigido contra edifícios consagrados aos cultos, às artes, às ciências, à caridade, monumentos históricos, hospitais e enfermarias? Com o fato de forçar os prisioneiros a participarem das operações militares contra sua pátria, ou a servirem de escudo vivo ao inimigo? Com o sistema de obrigar os reféns a responderem por atos de hostilidade a que são alheios e que não podem evitar? Com as penas coletivas, as contribuições achatadoras, os êxodos forçados, as exterminações implacáveis de populações inteiras, a pretexto de atos individuais pelos quais não são responsáveis? Com a destruição desnecessária de propriedades particulares e públicas, de bairros, aldeias e cidades inteiras, de estabelecimentos destinados à religião, à beneficência, ao ensino, de mercados, museus, oficinas industriais, obras artísticas e laboratórios do saber, a título de castigos coletivos? Com a pilhagem e o incêndio, a expatriação e a deportação de habitantes inocentes, sem consideração de sexo, idade, condição ou sofrimento? Com o fuzilamento de prisioneiros ou feridos, e a execução em massa de pessoas não-combatentes? Com o ataque a navios-hospitais e a disseminação de minas flutuantes em alto-mar? Com a ampliação arbitrária da zona marítima de guerra? Com a destruição de embarcações de pesca? Com o torpedeamento e afundamento de navios mercantes neutros, o sacrifício de suas tripulações e passageiros, sem aviso nem socorro, às centenas, aos milhares?

O CASO DO ORADOR

Não me ocupo, senhores, de política, mas do aspecto jurídico desses acontecimentos. Não foi ao embaixador do Brasil, cuja missão, aliás já está concluída, que recebestes e elegestes membro honorário de vosso corpo docente: foi unicamente ao jurista. Mas, para trazer o espírito absorto nestas questões, existe ainda, no jurista, a consideração da parte, modesta, mas notória, da parte assídua, laboriosa, intensa, que tomou nos trabalhos da última Conferência da Paz, e o cargo em que, há nove anos, foi investido, de membro da Corte Permanente de Arbitragem.

Meu caso vem a ser o do juiz que pergunta pelo código das leis que pode ser chamado a aplicar, o do legislador que estremece pelas instituições em cuja elaboração cooperou, o de um signatário daqueles contratos que busca saber se entendia o que fez, se não se observa aquilo que ajustou, se contribuiu para melhorar seus semelhantes ou para enganá-los e defraudá-los.

CONSEQÜÊNCIAS DAS CONVENÇÕES DA HAIA

A espécie, assim considerada, suscita a meus olhos uma questão de consciência. Qual será, senhores, a situação dos que, havendo concertado e subscrito essas convenções, as vêem hoje conculcadas e rotas? Ante esse repúdio total só terão o direito de ressentir-se e clamar aqueles contra os quais diretamente se perpetram as transgressões ou, pelo contrário, a comunhão dos contraentes na elaboração e na firma comportará para todos as obrigações e os direitos de uma verdadeira solidariedade?

SOLIDARIEDADE ENTRE OS CONTRAENTES DE HAIA

As convenções de Haia, senhores, tão bem o sabeis vós quanto eu, não foram celebradas separadamente, entre nação e nação, duas a duas, em tratados bilaterais. Se o tivessem sido, as demais poderiam cruzar os braços. Cada grupo teria sua situação jurídica distinta e indiferente aos demais. Res tua agitur non nostra.

Mas, de modo bem diverso, essas convenções internacionais foram estipuladas entre todas as nações e todas as nações, e num convênio universal. Portanto, cada uma das infrações a essa concórdia geral interessa a todos os contraentes, e cada um dos signatários recebe de cheio, em sua individualidade, o golpe assestado a qualquer um dos outros.

Nenhum deles é ferido individualmente. Todos o são, virtual e simultaneamente, na comunhão de compromissos e direitos que entre todos se instituiu.

E não é tudo. Evidentemente, senhores, quebrada a inviolabilidade jurídica de um pacto dessa natureza, por obra de um ou mais de seus signatários, com o silêncio e, pelo silêncio, com o implícito assentimento dos demais (Qui tacet consentire videtur), anulada estará ela em relação a todos os demais. Os que emudeceram terão sancionado tacitamente o atentado, terão renunciado a invocar amanhã, em proveito próprio, a garantia cuja fragilidade hoje admitiram: terão, portanto, convindo na falência da situação contratual, em que eram partes.

Com o desacato que sofreu, sem reclamação dos co-interessados, o convênio decairá eternamente de sua autoridade. Era um sistema de garantias, que se organizara e consagrara. Mas na primeira ocasião de exercer ele seu império tutelar e mostrar sua eficácia protetora, uns o espezinharam e rasgaram com o maior desprezo, outros o viram romper e espezinhar sem o menor alarme. Maltratado e desprezado assim, o venerando instrumento desse ato jurídico sem par em sua grandeza moral e política valerá tão pouco amanhã, para abrigar aos que hoje o não defendem, quanto na atualidade está valendo para conter aos que o não respeitam.

O TESTEMUNHO DE ROOSEVELT

Na última conferência de Haia, a situação de maior responsabilidade coube ao Presidente dos Estados Unidos, o senhor Theodore Roosevelt, que, acedendo à iniciativa do congresso pacifista de 1904, assumiu a de convidar as outras nações para a assembléia reunida na capital da Holanda, e sobre os trabalhos dessa assembléia exerceu a influência mais ativa. Ninguém, pois, estava mais autorizado para interpretar o espírito e o alcance dos compromissos ali estipulados que o ilustre ex-Presidente da grande república norte-americana. Pois é ele, senhores, quem, escrevendo no New York Times de 8 de novembro do ano de 1914, nos esclarece acerca desse ponto:

Os Estados Unidos e todas as grandes potências atualmente em guerra foram partes no código internacional criado pelo regulamentos anexos às convenções celebradas em Haia, em 1899 e 1907.

Como Presidente da República, atuando no caráter de chefe de governo, e de acordo com os desejos unânimes de nosso povo, ordenei que se pusesse nessas convenções a firma dos Estados Unidos.

Pois bem: eu não consentiria, e do modo mais categórico o declaro, que se consumasse tal farsa, se me entrasse na cabeça que o governo de meu país poderia não se considerar obrigado a tudo quanto estivesse ao seu alcance para que as normas, em cuja determinação tomou parte, recebessem a devida execução quando ocorresse a emergência de se executarem. Não posso conceber que, no futuro, uma nação que se estime a si mesma, entenda que vale a pena firmar outras convenções de Haia, se nem os neutros de grande poder, como os Estados Unidos, lhes dão a importância de reclamar contra sua violação manifesta.

AS LEIS DA NEUTRALIDADE

Demos, não obstante, senhores, por eliminadas as convenções de Haia, e suponhamos que nada tenham as nações não-beligerantes com o acerto de contas entre os beligerantes, em relação às transgressões, reais ou imaginárias, das leis da guerra. Ainda assim há um ponto em que a indiferença dos neutros não poderá deixar de cessar: é, pelos menos, o que diz respeito às violações do direito dos neutros, cometidas pelos beligerantes. Todo e qualquer ato dessa natureza constitui uma negação geral dos direitos da neutralidade, e interessa, por conseguinte, a todos os neutros.

NOVA EXPRESSÃO DA NEUTRALIDADE

Nos tempos presentes, senhores, com a internacionalização crescente dos interesses nacionais, com a penetração mútua que as nacionalidades realizam entre si, com a interdependência essencial em que até as nações mais remotas vivem umas das outras, a guerra não pode isolar-se nos estados entre os quais se abre o conflito. Suas comoções, seus estragos, suas misérias repercutem ao longe sobre o crédito, o comércio, a fortuna dos povos mais distantes. É mister, pois, que a neutralidade receba uma expressão, uma natureza, um papel diverso dos de outrora. Sua noção moderna já não pode ser a antiga.

Até onde a concepção da neutralidade, pergunta um escritor norte-americano:

Até onde essa concepção estriba no pressuposto de que as nações não participantes numa guerra nada têm que ver com ela, nem estão obrigadas a coisa alguma em relação aos beligerantes, e podem isolar- se dos seus efeito? Essa concepção assenta sobre uma série de ficções. Pela expansão de suas relações mútuas e com o aumento da recíproca dependência entre elas, as nações constituem, de fato, uma sociedade; e, reconhecidas as conseqüências que nesse fato se envolvem, já não é possível a neutralidade num sentido real, no caso de uma grande guerra.

Nas atuais condições do mundo, não há meio, de fato, para os neutros, “de esquivar-se a pagar duro tributo por guerras em que não têm parte, nem responsabilidade”. As operações militares, com o bloqueio, o exercício do direito de visita, a repressão do contrabando, sejam quais forem as reservas e atenções com que procedam os beligerantes, hão de ofender e desgostar os neutros.

COMÉRCIO DE ARMAS E BLOQUEIO

Por outro lado, o comércio de armas e munições bélicas, exercido abertamente por nações neutras com uma das partes combatentes em detrimento da outra, estabelece diferenças incontestáveis na maneira de tratar os beligerantes. Teoricamente, a lei é de igualdade. Na prática, a desigualdade é flagrante. Pode ocorrer, como tem ocorrido, que, dadas as circunstâncias da luta, esse concurso da indústria dos neutros seja decisivo para a vitória de uma das partes; e, deste modo, países pelos quais não se considera nem deve considerar-se violada a neutralidade, contribuem diretamente para a superioridade militar de um dos beligerantes, em prejuízo do outro.

Concluir-se-á daqui que se devam reformar as leis da neutralidade, para vedar o comércio particular de armas entre neutros e beligerantes? Não; porque, para chegarmos aí à igualdade real na observância das leis da neutralidade, seria preciso cortar não somente o comércio de artefatos militares, senão também todo o comércio entre beligerantes e neutros. De outro modo, assegurado esse comércio a uns pelo domínio dos mares, e proibido a outros pelo bloqueio, o simples tráfico de provisões, que vai abastecer a um dos beligerantes, não abastecendo o outro, pode atuar decisivamente para o aniquilamento dos bloqueados e o triunfo dos que mantêm o bloqueio. Mas levada ao extremo de suspender inteiramente o comércio com todas as nações em guerra, para estabelecer entre todas um pé de igualdade absoluto, a neutralidade importaria na abolição do bloqueio, o que é absurdo, porquanto seria desarmar os combatentes, na guerra naval, de suas superioridades naturais.

Toda neutralidade encerra hoje em si, portanto, restrições e diferenças que negam a neutralidade.

Demais, instituída a proibição absoluta do comércio de armas, o que se lograria seria unicamente assegurar à paz armada, às conspirações da ambição militar, resultados ainda mais certos. As nações pacíficas seriam, assim, mais facilmente vítimas de sua falta de ambição, de sua boa-fé, de sua confiança na honra dos tratados. Não se poderiam valer, contra a guerra inesperada e súbita, do recurso de acudir aos mercados produtores de armamentos. Todas, portanto, se veriam obrigadas a dar à sua preparação militar, na paz, as maiores proporções possíveis, a fim de precaver-se contra as surpresas da guerra; com o que a paz viria a tornar-se cada vez mais e inevitavelmente, um virtual estado de guerra.

Não restaria, então, outra escolha na vida internacional senão entre guerra e guerra: guerra preparada ou guerra declarada; guerra iminente ou guerra presente.

VERDADEIRA NOÇÃO DA NEUTRALIDADE

Não será, pois, nessa direção absurda, que se hão de alterar as regras da neutralidade; porque seria alterá-las em benefício da militarização do mundo. A reforma a que urge submetê-las deve seguir a orientação oposta: a orientação pacificadora da justiça internacional. Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível.

Neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Quando entre ela e ele existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la. Desde que a violência calca aos pés, arrogantemente, o código escrito, cruzar os braços é servi-la. Os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutros entre a lei e o crime. Em presença da insurreição armada contra o direito positivo, a neutralidade não pode ser a abstenção, não pode ser a indiferença, não pode ser a insensibilidade, não pode ser o silêncio.

PELO MENOS O DEVER DE PROTESTAR

Se o fosse, a obra de Haia não seria apenas um capricho fútil: seria uma cilada atroz. Porque, descansando no suposto valor de seus ditames, como limites da força e garantias do direito, os povos se entregariam à expectativa do regímen jurídico cuidadosamente articulado ali, para despertar, de repente, sob o troar dos canhões que os fariam em pedaços Os estados soberanos não se reuniram durante longos meses, na capital da Holanda, para examinar didaticamente os problemas do direito internacional e redigir, em colaboração, um manual teórico do direito das gentes. A Conferência da Paz não foi uma academia de sábios, ou um congresso de professores e jurisconsultos, convocados para discutir métodos e doutrinas: foi a assembléia plenária das nações, onde se converteram os usos flutuantes do direito consuetudinário em textos formais de legislação escrita, sob a fiança mútua de um contrato solene. Desde então, os governos que firmaram, se não se constituíram em tribunal de justiça, para sujeitar os transgressores à ação coercitiva de sentenças executórias, contraíram, pelo menos, a obrigação de protestar contra as transgressões.

É essa, portanto, uma situação inquestionável, que os estados afirmaram pelas convenções de Haia. É esse um direito que a neutralidade, por meio delas, conquistou, e um dever a que, por elas, se submeteu: o direito e o dever de constituir um tribunal de consciência, uma instância de opinião, uma jurisdição moral sobre os estados em guerra, para julgar-lhes os atos e reprovar-lhes os excessos. A neutralidade inerte e surda-muda cedeu o passo à neutralidade vigilante e capaz de função judiciária.

A NEUTRALIDADE ABDICANTE

Renunciando a essas funções tão benignas, tão saudáveis, tão conciliadoras, a neutralidade cometeria o mais lamentável dos erros: imolaria ao egoísmo de uma comodidade passageira, de uma tranqüilidade momentânea e aparente, o futuro de toda a espécie humana, os interesses permanentes de todos os estados. Desautorizando a obra das cortes da civilização celebradas em Haia, inutilizaria, desta vez para sempre, todos os ulteriores intentos para organizar a legalidade internacional; e deixando triunfar, sem qualquer sanção, todas as enormidades, todos os absurdos, todas as monstruosidades concebíveis contra a lei consagrada, incorreria numa cumplicidade excepcionalmente grave, senão numa verdadeira co-autoria com os réus dessa anarquia estupenda nas relações entre os estados.

O PODER DA NEUTRALIDADE

Porque, senhores, é incalculável, é imensurável, é inestimável a soma de poder que esse consenso das nações neutras representa, a intensidade e a eficácia de pressão com que esse poder atuaria no procedimento dos beligerantes. Se, imediatamente às primeiras explosões de insana revolta contra o direito constituído nas convenções de Haia, os signatários dessas convenções levantassem o clamor público da censura universal contra a ousadia das paixões desenfreadas e ébrias no delírio do orgulho, a torrente da desordem, se não retrocedesse, ter-se-ia moderado, e não continuaríamos a ver submergir-se a civilização de um continente inteiro sob esse dilúvio de soberba, cujas cataratas inundam a Europa, como vagalhões de pampeiro em praia rasa.

AINDA É TEMPO

Ainda não passou de todo a ocasião; ainda não seria de todo tarde para esse movimento reconciliatório da neutralidade com a justiça.

Se as nações cristãs, as nações humanas que a guerra não enlaçou no seu remoinho não despertarem do abstencionismo a que as condenaram seus escrúpulos, estará por saber, no fim de contas, quem terá pecado mais contra Deus, e terá causado maior mal: se os que imergiram o presente na mais espantosa das guerras, ou se os que, deixando apagar-se na consciência dos povos as últimas esperanças no direito, deixaram submergir o futuro na mais negra das noites.

A NOVA NEUTRALIDADE

A imparcialidade na justiça, a solidariedade no direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis aí a nova neutralidade, que, se deriva positivamente das conferências de Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno. A neutralidade recebeu uma nova missão e tem, agora, uma definição nova.

Não é a expressão glacial do egoísmo. É a reivindicação moral da lei escrita.

Será, pois, a neutralidade armada? Não: deve ser a neutralidade organizada.

Organizada, não com a espada, para usar da força, mas com a lei, para impor o direito. O direito não se impõe somente com o peso dos exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos.

Indubitavelmente, há forças capazes de organização, maiores e mais seguras em seus resultados do que as forças militares. São as forças econômicas e as forças sociais, com as quais as forças da força não podem lutar. É o que se sente nos próprios atos beligerantes, nessa ansiedade com que todos cortejam a opinião dos Estados Unidos, e também a de outras nações americanas de muito menos importância militar que a grande república do norte.

Por que todo esse empenho em conciliar a boa vontade e as simpatias do Novo Mundo? Simplesmente para não ferir sentimentos, atrás dos quais não se ergue a iminência da guerra? Não. Os estados em guerra temem o mau juízo do universo, porque sua reprovação poderia traduzir-se em elementos de resistência desastrosos para os propósitos que deram margem a este conflito: a expansão comercial e a infiltração econômica, a conquista dos mercados e a imigração ultramarina.

O PODER SUPERIOR À FORÇA

Quando se pretende que a civilização repousa, em última instância, na força policial ou militar, não se adverte que o exército e a polícia, eliminada a lei que os mantém, não existiriam, ou seriam ajuntamentos informes, anárquicos e ingovernáveis. Quem sujeita as fileiras à docilidade? Quem adscreve a oficialidade à jerarquia? Quem assegura a obediência das massas armadas ao mando supremo de um só homem? Qual é, em suma o elemento compulsivo, segundo o qual se move o poder das armas? A fé jurada, os textos escritos, a certeza de um regímen comum a todos, o contrato de associação, de organização, de sujeição, a que todos se sentem vinculados. Remova-se esta base, diz um americano, “e não haverá diferença entre os Estados Unidos e o Haiti”. Não é porque os norte-americanos sejam mais militares, que se preservam de certos defeitos da civilização sul-americana. É justamente porque são menos militares. Já se disse que é a força quem reivindica os direitos da Bélgica. Mas quem pôs a força em movimento? Quem impeliu a Inglaterra a correr em socorro dos belgas? Um influxo do espírito, uma coisa moral, uma idéia: a tradição da santidade dos tratados, a teoria das obrigações internacionais, o senso de um contrato existente.

A SOCIEDADE INTERNACIONAL

A noção de contratualidade, mais ou menos jurídica, mais ou menos moral, está no fundamento de todas as associações humanas. Sem ela, nem sequer no crime pode haver associação. Contestado sempre como inexeqüível entre estados soberanos, o princípio de mútua dependência social que os liga vai, sem embargo, cada vez mais demonstrando sua realidade e seu desenvolvimento. O comércio não é, como irrefletidamente se crê, origem de rivalidades agressivas entre as nações. A lei predominante na existência delas é, cada dia mais intensamente, a cooperação – cooperação que nas relações comerciais tem o maior de seus fatores; e esse fator conduz sensivelmente o mundo rumo a uma sociedade internacional.

A guerra tem evidenciado que, seja qual for o poder e a grandeza de um estado, circunscrito a seus próprios recursos, ele não poderá manter uma posição de autoridade no mundo, nem contar com sua própria segurança. Entregue exclusivamente a suas forças, cada um dos países aliados estaria perdido. Nenhum deles resistiria à portentosa concentração de energias organizadas, que a Europa central havia acumulado contra a Europa saxã, a Europa latina e a Europa eslava. A co-associação desses três elementos europeus foi a salvação de cada um deles e de todos, no choque gigantesco que, já faz dois anos, comove o Velho Continente.

Do outro lado, tampouco, nenhuma das potências do grupo austro- germânico, limitada a seus meios, arrostaria o conflito, a despeito das maravilhas da organização militar acumuladas em quase meio século de absorção de toda a vitalidade nacional na cultura da guerra.

A OPINIÃO DO MUNDO

Essas vantagens, amontoadas pelos Titãs da Força durante quarenta e cinco anos de ininterrupta preparação guerreira, não levavam em conta um elemento moral, com o qual, em tais cálculos, não é costume contar: a opinião do mundo, isto é, a consciência da humanidade, que nunca, em toda a história do homem, se pronunciou com tal grandeza, com tal intensidade, com tal soberania.

O MUNDO NOVO QUE VEM

A confiança absoluta na vitória pela excelência dos armamentos, pela incubação da guerra na paz, não teve o êxito esperado; e do meio das batalhas, das entranhas do solo arado pelos canhões, das estupendas matanças em que se estende a safra da morte, desses abismos de miséria e horrores, de pranto e luto, de desolação e ruínas, de torturas e gemidos, o olhar do crente, do filósofo, do homem de estado vê que surge uma força ignorada, o princípio de um mundo novo, a regeneração da Terra pelo entendimento do ideal cristão.

SUAS FORMAS

A imagem, ainda mal definida, assume formas diversas, mais ou menos belas, mais ou menos consoladoras, mais ou menos precisas, mais ou menos práticas, segundo a luz a que os olhos de cada observador vislumbram o singular fenômeno. Para uns, seria a união das nações democratizadas, no seio de uma vasta federação, onde as soberanias convivam, renunciando unicamente os elementos essenciais à harmonia internacional. Para outros é a constituição desse tribunal das potências que o senhor Roosevelt esboçava, há dois anos, com a base assentada no compromisso comum de sustentar executivamente suas sentenças.

Outros, ainda, prevêem a inauguração de um sistema no qual os estados soberanos se obriguem, por convenções praticamente garantidas, a não entregar seus litígios de qualquer natureza à decisão das armas, antes de os haver submetido ao exame de uma junta internacional. Outros, enfim, menos avançados na via das conjecturas, crêem ver a barreira contra as inundações da violência militar na oposição dos neutros à exorbitação dos poderes beligerantes.

NÃO SÃO OS POVOS OS QUE QUEREM A GUERRA

Em meio dessas divergências, há, sem embargo, um elemento comum a todas as opiniões: o sentimento de que as sociedades civilizadas não podem continuar à mercê dos interesses imorais e desorganizadores da força. Não são os governos democratizados os que perturbam a paz do mundo. Os povos amam o trabalho, anelam a justiça, confiam na palavra, têm no mais alto grau o instituto da moralidade, aborrecem as instituições opressivas, simpatizam com os direito dos fracos. A democracia e a liberdade são pacíficas e conservadoras. As castas, as ambições dinásticas, os regímens arbitrários são os que promovem a discórdia, a malevolência e a desarmonia entre os estados. A guerra atual seria impossível se os povos, e não o direito divino das coroas, dominassem na política internacional.

PREDIÇÕES

Mas esse poder, inconsciente e inerme como as grandes forças da natureza, entra agora em cena com toda a energia da lei irresistível que representa. Se as instituições livres, as instituições parlamentares e as instituições representativas não forem achatadas nesta campanha, a Europa há de ser restituída ao domínio de seu direito, os pequenos estados hão de recuperar sua integridade, as nacionalidades cativas ressurgirão emancipadas, e o movimento dos povos libertos levantará muralhas insuperáveis ao espírito de conquista.

Os povos já não se iludem com os famosos qualificativos de “resultado necessário”, “imperativo histórico”, ou “intervenção da providência”, com os quais se embuçam, como em um manto de santidade, as infernais hecatombes humanas, em cuja orgia de sangue se apascentam as guerras diabólicas de hoje, guerras em que a ciência, servindo aos apetites da fúria militar, multiplica, nas mãos do homem, para o rancor e a cobiça, a potência homicida. Os povos sabem que as guerras, em nossos dias, nem sempre são resultados espontâneos de causas sociais.

Ordinariamente são atos de vontade, resoluções individuais, maduradas no arbítrio dos potentados, encaminhadas pela diplomacia secreta e rebuçadas pela mentira política com a linguagem dos grandes sentimentos de honra, direito, salvação nacional. A catástrofe atual agita, há dois anos, ante os olhos do mundo, a tocha dessa evidência, acelerando com ela a democratização dos governos, o advento das nações à posse de seus destinos e a compreensão dos vínculos sociais que entrelaçam, uns aos outros, os vários ramos da civilização cristã.

A facilidade e a brutalidade com que a política de conquista pisoteou os compromissos de Haia, parecendo aniquilar numa catástrofe irremediável o princípio de um regímen jurídico entre os estados, não vieram senão ensinar aos povos que cumpre reforçar as garantias de sua tranqüilidade, buscando novas sanções à moralidade internacional. Esta pavorosa e fantástica subversão das leis estabelecidas na magna carta da paz e da guerra descobriu, em toda sua hediondez, a natureza das influências a cuja sombra se conspiram estes crimes contra a humanidade, e há de levantar, no espírito dos povos escarmentados, uma reação irresistível contra o predomínio dessa força malfeitora. Os amigos do direito das gentes não temos, pois, motivo para perder a fé em sua utilidade: o que nos cumpre é cavar-lhe mais fundo os alicerce: Not to despair, but to dig deeper for its foundations.

É uma realidade evidente que as nações, no sentido econômico, constituem já uma sociedade. Para que de uma sociedade formada pelos interesses mercantis, industriais, agrícolas, financeiros, passe ela a ser uma sociedade constituída moral e politicamente, para esse auspicioso resultado as circunstâncias deste cataclisma estão concorrendo de modo incontrastável. Essas circunstâncias elevaram a opinião pública, nos dois continentes, daqueles interesses aos interesses ainda mais altos da justiça universal, em que os outros repousam, sem que se possam reputar seguros, enquanto não for criada uma legalidade internacional, com suas sanções indispensáveis.

E PUR SI MUOVE

Romperam-se os tratados, proclamaram-se doutrinas funestas à existência dos contratos entre estados, excogitaram-se refinamentos de malignidade nos meios de guerra proibidos, nivelaram-se as populações não combatentes aos exércitos em armas para autorizar essa nefanda caça desencadeada contra a propriedade, a honra e a vida humana. Diríeis que o mal aniquilara para sempre o bem; diríeis que, no vórtice dessa tormenta, desaparecera, expirara o direito das gentes. E, contudo, não pereceu esse direito. E pur si muove. Caiu nos campos de batalha, para erguer-se de novo na consciência humana, de onde há de vir a reinar, restaurado, e a reconstruir o mundo. É ele quem está qualificando, nos fastos desta guerra, as ações dos beligerantes e as inações dos neutros; foi ele quem já impôs aos inconcebíveis atentados desta guerra seus nomes protervos; será ele quem, depois desta guerra, há de vir a julgar os vivos e os mortos, separando os mártires dos perversos, os heróis dos malfeitores; será ele quem, ao raiar da paz anelada, presidirá aos congressos, onde se há de deliberar sobre a causa do mundo; será ele quem, nas convenções dessa liquidação final, definirá e garantirá o foral da civilização moderna; será ele quem sepultará, numa condenação irrevogável, as heresias do imperialismo e do militarismo; será ele quem reintegrará, nas relações entre as potências, as leis da fidelidade à palavra empenhada, da lealdade nos meios de combater o inimigo, da proteção aos fracos, do respeito aos inermes, da igualdade jurídica dos estados.

INDEPENDÊNCIA E SOBERANIA

A esse desideratum salvador e necessário, a liga dos preconceitos e interesses opõe o exagero atual das idéias de independência e soberania.

Mas essas noções, como a noção de neutralidade, têm de passar pela modificação irrecusável que o bom-senso lhes dita. Os povos não são menos independentes, nem os estados menos soberanos, por isso que renunciem ao direito insensato de se odiarem, de se destruírem, de se acometerem e devorarem, submetendo seus litígios a uma justiça constituída por sua própria eleição, do mesmo modo que os indivíduos não são menos livres e sui juris por se lhes não reconhecer o direito bestial de se agredirem e trucidarem, de se entregarem à pilhagem e ao assassínio, sem que respondam aos tribunais estabelecidos pelas leis de cada nação. Pelo contrário: essas aparentes limitações da liberdade e da soberania são as condições essenciais e as garantias impreteríveis da soberania e da liberdade; porque sem elas a liberdade se perde nas convulsões da desordem, e a soberania se condena aos azares da guerra.

A POSIÇÃO DA AMÉRICA

A América, senhores, não pode dar de ombros com desdém, ante o curso destas questões, ainda que o teatro onde, no presente, elas se agitam seja o de outro continente. Os oceanos que nos circundam não nos isolam, jurídica e politicamente, do resto do globo. Desde a cordilheira em que a natureza deu sua coluna vertebral a este corpo gigantesco, desde as Montanhas Rochosas até os Andes, desde a Califórnia até a Patagônia, o egoísmo dos homens não lograria extrair massas bastante grandes de granito para cercar o Novo Mundo com uma impenetrável muralha chinesa. Correntes misteriosas, profundas e indestrutíveis, como essas que atravessam continuamente os mares, transportando em suas águas o calor de um outro hemisfério, mantêm as relações intelectuais, econômicas e políticas dos estados, a comunhão dos interesses, tendências e sentimentos.

Nunca essa identidade íntima entre os destinos das duas metades do gênero humano foi demonstrada com circunstâncias mais concludentes que no correr desta guerra. Cada pulsação que dilata as artérias européias vem, imediatamente, latejar nas nossas. Se fosse possível que a Europa se extinguisse pelo extermínio de suas raças, ou pelo naufrágio definitivo de sua civilização, os membros, conservados aqui, desse imenso organismo, que hoje abarca todas as regiões da esfera terrestre, se reduziriam, durante séculos e séculos, a um malogrado fragmento, paraplégico e decadente, da espécie humana, como esses mutilados, cujo corpo a amputação faz desmedrar, e cujo cérebro se atrofia pela insuficiência da circulação, prejudicada com a eliminação de órgãos necessários a uma atividade normal. De modo semelhante, a Europa, por sua vez, receberia um golpe mortal em seu desenvolvimento se a América fosse dormir sob as ondas, ao lado da Atlântida submergida, ou se os seus habitantes retornassem à existência selvagem dos aborígines, em que os acharam os seus descobridores.

A bandeira do nacionalismo, do chauvinismo, do jingoísmo, desfraldada por certos patriotas – alguns dos quais, por certo, muito ilustrados, muito dignos e muito eloqüentes – é uma bandeira de egoísmo, desconfiança e retrocesso, que não resolve nada e que nada garante.

A América tem nas veias o sangue, a inteligência de seus antepassados, que não são os apaches, os guaranis ou os africanos, mas os ingleses e os iberos, os saxões e os latinos, cuja substância viva, cujas tradições, cujas idéias, cujos cabedais nos geraram, nos criaram, nos educaram, nos enriqueceram, até sermos o que hoje somos. Ao jingoísmo guerreiro se opõem, nos Estados Unidos, duzentos e cinqüenta anos de puritanismo e, no resto da América, um século inteiro de experiência do flagelo militar, sob as variadas formas do caudilhismo e da anarquia. O Direito e a Liberdade fizeram a América do Norte. De Liberdade e Direito são os bons exemplos, com que ela afirma sua superioridade. Em seu direito e em sua liberdade é que a América do Sul pode encontrar modelos. Com essa liberdade e esse direito é que se oferece agora ao paladino exemplar da política americana a missão de atuar na política européia, levando em torno de si as nações latino-americanas, sob a influência de sua atração jurídica e moral, como astros gravitando ao redor de um grande ideal, rumo às regiões da paz e da justiça.

A vocação, pois, que se está delineando para este continente, não é nem a de retrair-se ante a pendência travada, além do oceano, entre a civilização e a militarização do mundo, nem a de absorver-se, também ela, no militarismo, que reduziu a Europa ao dilema de se arruinar sob a paz armada, ou buscar o termo de seus grandes armamentos no desastre de uma guerra por eles imposta. Essa vocação se orienta no sentido de tratar de assumir a iniciativa, e de contribuir de modo influente para a constituição do novo sistema de vida internacional, pela associação ou aproximação das nações, mediante um regímen que substitua a lei da guerra pela da justiça. Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtém a paz senão preparando a paz. Si vis pacem, para pacem.

OS MANDAMENTOS CRISTÃOS

O dogma do militarismo seqüestra os povos para suplantá- los. Divide et impera. Os mandamentos do cristianismo unem as nações para dirigi-la.

Enzwei und gebiete! Tüchtig Wort.

Verein und leite! Besser Hort.

Quem tem razão não é Maquiavel, é Goethe, a quem Nietzsche repudia.

PROCEDÊNCIA AMERICANA

Se a distância e a diferença de meio nos alongam da Europa, abrigando-nos das paixões e agonias da guerra, seria absurdo que isto servisse para nos contaminar das idéias às quais se deve a guerra, ao invés de assumirmos o papel que as circunstâncias nos reservam, de elemento ativo na criação de um mundo internacional mais bem organizado.

A América, senhores, já tem no rumo deste oriente títulos de precursora.

Antes das conferências de Haia, em 1899 e 1907, antes da declaração de Bruxelas, em 1701, antes da declaração de São Petersburgo, em 1868, antes da convenção de Genebra, em 1864, já o governo dos Estados Unidos da América, em suas Instruções para o serviço dos exércitos em campanha, articulava as leis fundamentais da guerra moderna.

Sujeitar a guerra à disciplina do direito e da humanidade é criar, em última análise, uma situação fatal para a guerra; porque a guerra é, por natureza, inumana, rebelde, indisciplinável. A tendência natural da guerra é sacudir as leis da guerra. Desde que, portanto, se começou a trabalhar para submeter a guerra a leis, começou-se a trabalhar “pela paz do gênero humano”. Era o que o Presidente Roosevelt reconhecia, em 1904, na circular onde esboçava os propósitos da conferência que se realizou cinco anos mais tarde.

SOLIDARIZAÇÃO DAS NAÇÕES

Dessa direção não nos permita Deus que regressemos. A guerra atual vai terminar por uma reorganização que assentará o direito internacional, mais amplamente do que nunca, em princípio de solidariedade entre as nações, senão todas, pelo menos as de um grupo, onde se destacarão as mais cultas, as mais poderosas, e as mais interessadas na liberdade. Tratarmos de ampliar o mais possível esse núcleo, contribuindo para aumentar-lhe, até onde for possível, o número de estados que devam compô-lo, seria obedecer à índole das nossas instituições, ao gênio dos nossos povos, à tradição da nossa história, aos interesses da nossa segurança, aos deveres da nossa honra, desde que o objeto dessa revolução pacífica nas relações internacionais seja dificultar a guerra e organizar a paz, solidarizando as nações, num regímen em que elas se associem para se oporem às violações do direito das gentes.

Grande fortuna, senhores, a que me proporcionastes, de falar esta linguagem de paz e de justiça, numa das mais brilhantes capitais do mundo, sob o teto hospitaleiro de uma congregação de sociólogos e juristas, a um dos mais cultos auditórios deste continente. Creio que reconhecereis comigo que “todos somos interessados” (são palavras de um publicista norte-americano), que “todos somos interessados”, repito,

nos problemas da reconstrução subseqüente à guerra, e devemos dedicar toda a influência de que disponhamos (e é imensa) a assegurar que essa reconstrução observará o legítimo rumo.

Parecerá, talvez, excesso de otimismo discorrer sobre estas aspirações de reconstituição do mundo pelas idéias generosas de volta ao direito e reconciliação como a moral cristã, quando a mais febril atividade multiplica as fábricas de armas, o metal rutila nas forjas em lâminas candentes, ou ferve em cataratas de aço na fusão dos canhões, quando todas as indústrias são substituídas pela dos instrumentos de matança, quando o sangue jorra das asas tenebrosas da guerra sobre os continentes, do Báltico e do Mar do Norte ao mediterrâneo e ao Mar Negro, da Grã-Bretanha e da Bélgica à Grécia, à Palestina e ao Egito,das estepes moscovitas às praias africanas, da França à Pérsia, da Península dos Bálcãs aos desertos da Arábia, do fundo dos oceanos ao vértice dos Alpes, do mundo antigo, onde a morte estende o sudário de suas batalhas, ao novo, arrastado a colaborar, com suas fábricas e estaleiros, na faina tremenda.

DO MAL, O REMÉDIO

Mas é justamente do excesso do mal que me parece vir surgindo a esperança de remédio. Assim como há visitas da saúde, que precedem a última agonia, há agonias que se resolvem no regresso à saúde.

A mais terrível das enfermidades morais sofrida nos últimos séculos por nossa espécie foi a militarização do mundo civilizado, a hipertrofia dos armamentos. Dessa doença mortal não era possível sair senão por uma crise quase mortal. Mas, felizmente, a consciência cristã não entrou em coma. Pelo contrário: as energias do bem vão-se reanimando, os sintomas de uma grande reação aumentam a olhos vistos, e do coração da humanidade, traspassado pelas sete espadas da dor, brota a vontade, a confiança, o alvoroço do triunfo, com o sentimento, o consolo, a certeza da regeneração. Os horizontes ainda estão singularmente sombrios.

Formidáveis aglomerações caliginosas ainda ocultam o céu. As centelhas riscam a atmosfera baixa e turva. Um ambiente pesado, eletrizado, comprime e inquieta. Mas já se sentem os primeiros indícios do cansaço na luta dos elementos enfurecidos, e uma corrente de ar forte e puro, como os grandes sopros, destas planícies, começa a descondensar as trevas, limpando as regiões superiores do firmamento. É o instinto da conservação humana que desperta o tino íntimo das coisas que se insinua no ânimo dos povos e lhes restitui o sentido da vida.

Ou pôr freio à guerra, ou renunciar à civilização. É o que quase todos sentem.

AINDA NÃO SE CONHECIA A GUERRA

Antes desta guerra, o mundo contemporâneo ainda não conhecia a guerra. Comparadas com esta, até as campanhas napoleônicas se despojam daquela grandeza épica em que nossa imaginação as contemplava atônita. Seria preciso retroceder até às invasões dos bárbaros, para ver a fúria chamejar em áreas tão vastas, e o gênio da ferocidade rugir com tão horrenda violência. Agora, porém, depois que se viu o alude ensangüentado rolar sobre o velho continente em massas imensuráveis, abismarem-se no vórtice das batalhas, em menos de dois anos, mais de doze milhões de almas, e atirar-se à face dos céus a proclamação ostentosa do culto da força absoluta; depois que se viu até aonde pode chegar o inferno das paixões militares, desbordado e propagador entre os homens, a família humana, indizivelmente penetrada de espanto, sentiu que era sua própria existência que estava em questão, viu que a eliminação dessa maldade organizada já não podia ser unicamente um anelo do pacifismo, convenceu-se de que o mundo não suportaria outro acesso desta loucura inconsiderada e vertiginosa.

OS OLHOS SE VOLTAM PARA A AMÉRICA

Mas desde que esta impressão entrou a saturar os ânimos, um movimento espontâneo e instintivo, entre os próprios combatentes, fez que os olhos de todos se volvessem para este hemisfério distante, onde tremula, ao norte, a bandeira estrelada dos Estados Unidos, ao sul o pendão cerúleo da República Argentina, onde, caminho dos Andes, às portas do Chile, se ergue, colossal, a imagem do Cristo, e, à orla do Atlântico, no estandarte brasileiro se desfraldam as insígnias de ordem e progresso. Outros compuseram suas bandeiras com as cores da terra.

Vós compusestes a vossa com as cores do céu. E os matizes celestes não poderiam desmentir sua origem. As estrelas do céu não podem transigir com os interesses do inferno. O progresso e a ordem não podem servir à desordem e à força. A evocação do Crucificado não pode cobrir a ferocidade e a barbaria.

O mundo antigo, pois não se enganou – deixai-me crer que não se enganou – ao volver seus olhos para o novo mundo, esperando que, do seio destas democracias, a opinião cristã dos povos surja e tome o lugar que lhe cabe na resistência à dominação da terra pela violência, no trabalho para a renovação da vida internacional pelo direito.

ENTRE O PAGANISMO E O CRISTIANISMO

Uma vez mais se joga a sorte do universo entre os falsos numes e o culto verdadeiro, entre os ídolos bárbaros e o símbolo cristão, entre o paganismo dos conquistadores, que dividiu os homens em senhores e cativos, e o espiritualismo dos mártires, que irmanou os homens na caridade, entre o Verbo da Força e o Verbo de Deus.

Por ele clama aos céus o sangue vertido no martirológio destes dois anos – por ele, senhores, pelo espírito que se librava, no princípio dos tempos, sobre a desordem caótica dos elementos, e que agora baixará sobre a desordem caótica dos interesses, para extrair desta anarquia um mundo regido pelas leis da consciência, como suscitou daquela um mundo ordenado pelas leis da matéria. Na ordem material, como na ordem moral, só o espírito organiza, só o espírito regenera, só o espírito cria.

APELO AO PODER DO ESPÍRITO

Nas Mensagens à Nação Alemã, que escrevia entre as dolorosas vicissitudes de sua pátria, Fichte apelava do poder da força para o poder do espírito. É da força para o espírito que nós apelamos também; e não poderíamos fazê-lo em expressões mais verdadeiras, nem mais sentidas.

Não luteis, dizia ele, por conquistar com armas corpóreas; porém mantende-vos firmes e eretos na dignidade do espírito diante de vossos antagonistas. Vosso é o destino superior de fundar o império do espírito e da razão, destruindo aos rudes poderes da matéria seu domínio de reitores do mundo… Sim: em todas as nações há inteligências nas quais não penetrará jamais a crença de que as grandes promessas feitas à espécie humana, de um reino do Direito, da Razão e da Verdade, sejam vãs ilusões. Essas inteligências nutrem a convicção de que este regímen de ferro é apenas uma transição para um estado mais bem constituído. Em vós confiam esses, e com eles, as raças mais novas da humanidade. Soçobrando vós, convosco soçobraria, na humanidade, a esperança de uma regeneração futura.

Estas palavras, reiteradas agora, cento e oito anos depois, não devem senão variar de direção. Tinha razão o filósofo. O patriota não na tinha. As raças mais novas confiam em si mesmas. É em si mesma que a humanidade espera. A ela é que nos dirigimos. E, quando vier o reino do espírito, virá pelo enlace da liberdade européia com liberdade americana, numa comunhão hostil à guerra e armada contra ela de garantias inquebrantáveis.

 

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