Obras Seletas – Volume VII

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Rui Barbosa

JORNAL DO BRASIL

TRAÇOS DE UM ROTEIRO

Não sabemos se, neste confuso turbilhão da imprensa, se poderia
estrear um jornal de vontade e aspirações assentadas, sem dizer
a que vem, que idéias traz, ou se seria possível dizê-lo,
sem resvalar, mais ou menos em cheio, no uso dos programas. Estes representam,
especialmente em assuntos políticos, a mais desacreditada tradição,
que se conhece, e, portanto, a menos propícia à esperança
dos que pretenderem agoirar bem um cometimento sincero. A época, que
atravessamos, é sobre todas fértil, a este respeito, em desenganos.
Dantes a esfera desses compromissos era mais modesta; porque a ação
dos homens, que ocupavam, ou disputavam o poder, confinava, de todos os lados,
com as raias traçadas por uma forma de governo que sua constituição
fadava à perpetuidade, e dentro na qual giravam as ambições,
os projetos e as expectativas.

Em 15 de novembro caíram as barreiras, que limitavam esse horizonte.
Todos os sonhos e todas as pretensões tinham ante os olhos o espaço
indefinido, por onde mergulhar a vista. Os programas rebentaram em frondescência
agigantada e basta, como florestas encantadas, de imensas perspectivas, povoadas
de grandes pensamentos, de resoluções heróicas. Tanto
maior a ruinaria moral, deixada nos espíritos pelo cair sucessivo e
fragoroso de tantas ilusões. A república não era um programa,
o mais ridente, o mais bem auspiciado, o mais inevitável dos programas?
E quem ousará dizer que a realidade se pareça com a promessa?
Não era um programa completo, logicamente entretecido, solidamente
estruturado, essa Constituição de 1891, programa de governo
à imagem do melhor dos modelos? Mas quem o reconhecerá hoje
nesta miscelânea de opressão preto­riana e veleidades parlamentares,
cujos violentos reativos dissolvem rapidamente as novas instituições,
como um organismo amplamente imergido em banho de ácido azótico?
Não foi um programa o 23 de novembro: a restauração da
legalidade? Quando é, porém, que já se praticou, entre
nós, a subversão das leis como depois dele? Que tem desdobrado
ele sobre o país, senão a mortalha do caos? A defesa do tesouro
era um programa de austeridade financeira. Não era? Sob o seu domínio,
todavia, a gravitação para o deficit adquiriu a celeridade vertiginosa
dos corpos que se precipitam no espaço. Programa era, no panegírico
dos interessados e na apreciação dos ingênuos, a reforma
forçada dos treze generais: um programa de governo civil e disci­pli­nador,
o programa do militarismo convertido à subordinação militar,
incoerente, mas ríspido programa de um ditador revoltado contra a caudilhagem.
E que resultou, para a nação, desse programa, senão a
decadência crescente do princípio de autoridade, a desorganização
dia a dia maior da força armada, as condescendências cada vez
mais graves com os apetites que a anarquia desencadeia?

Quando na história de projetos vigorosos como esses, uns apoiados
na base incomparável das simpatias populares, outros na força
de poderosas situações bafejadas pela fortuna, tudo é
desmentirem-se, estragarem-se, anularem-se desastrosamente, pode-se calcular
o constrangimento do jornalista, inspirado unicamente pela vocação
de sua consciência na tentativa que empreende, se pudesse sentir-se
sob o receio de ver envolvido na desconfiança geral contra os cartazes
políticos o instrumento solene de sua consagração à
causa, por que se expõe. Felizmente, porém, os anais do jornalismo
brasileiro, no seu período mais memorável talvez desde os tempos
de Evaristo da Veiga, guardam indeléveis documentos da firmeza de nossa
aliança com os interesses da nação, da tenacidade do
nosso fervor na religião das idéias que abraçamos. A
bandeira, que, a 7 de março de 1889, hasteamos no Diário de
Notícias, sob o grito de “federação ou república”,
não se arriou mais senão em 15 de novembro. A resistência
imperial a uma das alternativas do dilema levara a efeito simultaneamente
as duas.

Por mínima que fosse a nossa contribuição pessoal para
esse resultado, ela associara-nos congenitamente a ele. A nova constituição,
gerada com o concurso do nosso coração e da nossa responsabilidade,
tinha alguma coisa de carne da nossa carne e osso dos nossos ossos. Bem se
avalia, pois, que as vio­lências contra ela perpetradas nos doessem
quase como golpes vibrados ao nosso próprio seio. Na opinião
dos prudentes, porém, essas agressões eram da natureza daquelas
que se assanham, e destemperam até com a legítima defesa dos
agredidos. Como os protetores naturais das oprimidas, em presença de
certos escândalos domésticos nos casais flagelados pelas incompatibilidades
de temperamentos, devíamos contemporizar com as brutalidades da tirania
inevitável, para não provocar as catástrofes extremas.

Não tendo a honra de pertencer à família histórica
dos chamados “republicanos dos tempos da propaganda”, presumíamos
que a tribo dos levitas, ainda agora justamente zelosos de seu privilégio
histórico, soubesse guardar melhor do que nós a arca e o santuário
da lei. Com assombro, porém, tivemos de ver que o sacerdócio
preposto à custódia da tradição sagrada perdera
o espírito de sua missão, e cobria com o crédito de sua
autoridade as violações mais criminosas do grande mandamento.
Nessas ocasiões, quando a indignação sobrepujava a prudência,
vencemos o recato da nossa conversão, para levantar a voz, às
vezes quase solitária, em nome da verdade profanada. Mas força
era recolhermo-nos de novo, evitando a atitude combatente; porque há
épocas de sujeição servil, em que até a reivindicação
da justiça sob a inocência das garantias legais se indigita à
severidade dos poderes repressores como um dos explosivos do gênero
da dinamite. Se, porém, nos abstínhamos de freqüentar a
imprensa e a tribuna, limitando-nos, na representação nacional,
ao trabalho obscuro das comissões, nossa reserva era invertida contra
nós, como um caso de indiferença e egoísmo, por aqueles
mesmos que deviam enxergar e louvar naquele silêncio a mais moderada
forma da nossa reprovação.

Chegamos, porém, a um momento tal de desorganização
no mecanismo do Governo, de babel nas noções de administração,
de desalento nos espíritos e, graças a tudo isso, de furor nas
dissensões, nos agravos e nas cobiças, que os homens convencidos
já não podem emudecer, sem prevaricar. É necessário
que as facções se sufoquem, e que as boas vontades se congreguem,
para obrigar o erro e as paixões, que nos desonram, escravizando-nos,
a capitular sob a pressão moral da lógica, da decência
e do patriotismo. Debaixo das pomposas inscrições da chapa republicana,
o país não é mais do que uma vasta sepultura, onde os
fantasmas do antigo regímen se digladiam com as armas dos seus vícios.
Temos o império, mutato nomine com quase todos os seus defeitos, e
sem a sua unidade.

A situação, a nosso ver, é ainda remediável.
Mas não o será dentro em pouco se a deixarmos derivar à
toa da corrente. E o meio de acudir-lhe não pode estar nessa arte de
ter juízo, que consiste em reservar aos que nos governam o direito
de não tê-lo e aos governados a obrigação de não
murmurar contra os que o não têm.

Mercê desses abusos, desses atentados inconscientes da incompetência,
que juncam hoje o campo das instituições planejadas no pacto
federal, chegamos à maior das desgraças para o sistema adotado
a 24 de fevereiro: a de vê-lo confundido com a deturpação,
que o substitui, usurpando-lhe a linguagem, mas banindo-lhe a realidade. A
poder de ver-se o regímen presidencial nominalmente identificado à
ditadura militar, a aversão acerbamente ressentida contra esta principia
a refletir sobre aque-le. O vulgo em geral não discrimina as instituições
dos indiví­duos, que as encarnam, ou dos sofismas, que as desnaturam.
Mas tais proporções tomou o mal entre nós que das inteligências
inferiores e incultas o equívoco vulgar vai ascendendo às mais
eminentes. Destarte o regímen americano, antítese essencial
do que entre nós se pratica, acabará por incorrer na condenação
que devia fulminar os seus falsificadores. Estes então, por amarga
ironia do destino, assumem o patronado oficial do presidencialismo­ republicano,
que os seus atos desacreditam, contra as aspi­rações parlamentares,
de que a sua política se nutre.

Nada, portanto, mais favorável às conveniências da impostura
constitucional, que explora assim, ao mesmo tempo, o presidencialismo e o
parlamentarismo, do que ligar a um antagonismo atual entre essas duas correntes,
que ainda não existem no país senão em apreciações
abstratas, a diferenciação prática entre os partidos
em esboço. A oligarquia militar é tão incompatível
com o parlamentarismo como com o presidencialismo, e teria arruinado a república
ainda mais depressa sob a forma parla­mentar francesa do que sob a forma
presidencial anglo-saxônia. A prova, temo-la aí diante dos olhos:
esse belo chapéu-de-sol chinês que abriga gentilmente a ditadura,
as evoluções de gabinete, de tribuna e de escrutínio,
que a sustentam, tudo isso é lidimamente parlamentar. De modo que,
podemos dizê-lo sem receio de contestação plausível,
é apoiado na sobrevivência dos hábitos parlamentares,
revives­centes como o escalracho e a tiririca entre as plantações
úteis, que o marechalato esteriliza, corrompe e malquista o regímen
presidencial.

O papel dos republicanos e dos patriotas não é, pois, andarem
agora à cata de outro sistema de governo, de outra expressão
formal da democracia, mas reclamarem o governo, que a Constituição
nos deu, e em cuja posse não entramos ainda. Nosso dever é pugnar
pela Constituição, para restabelecê-la, restabelecer a
Constituição, para conservá-la. A essa conservação
duas dificuldades se opõem: a adulteração do governo
do povo pela onipotência militar, a absorção da política
nacio­nal pelo monopólio jacobino. A ditadura atual, desde seus
primeiros atos, desde suas primeiras palavras, tomou esse grupo violento como
o transunto do país, entregou-se a ele, encerrou-se no seu círculo
estreito e agitado. Espectadora irritada e atônita das cenas dessa autocracia
militar, cuja guarda política se compõe de um corpo de demagogos,
a nação concentra-se cada vez mais nos seus instintos conservadores,
ansiosa por experimentar, na união e na paz, a realidade dessa constituição,
cujos bordos lhe untaram de fel e de sangue, mas cujo princípio vivificante
ainda não lhe foi dado saborear. Aí estão esses elementos
de tranqüilidade e regeneração: a inteligência, a
capacidade, o trabalho, a riqueza. Eles aguardam que o espírito divino
sopre sobre a sua confusão palavras de serenidade e conforto, de liberdade
e harmonia. Se um pouco desse hálito puder passar-nos pela boca, não
temos outra ambição: concorrer para a agregação
desses princípios esparsos, mas poderosos, irresistíveis, no
único partido nacional possível atualmente, contra o despotismo
e contra a desordem, o partido constitucional, o partido conservador republicano.

Na campanha jornalística de 1889 nossa posição era diversa.
Defrontavam-se então e mediam-se um ao outro dois sistemas de governo
possíveis: a monarquia, de duração limitada, no parecer
até de monarquistas, à existência do imperador, e a república,
provável, iminente, entrevista. Nosso papel então era mostrar
ao regímen declinante que seus dias estavam contados, convencê-lo
da necessidade de uma higiene tonificante para a última fase de sua
vida, e, se ele reagisse contra essa necessidade, promover resolutamente a
demolição da sua decrepidez. Agora só a república
é praticável, e não há escolha, senão entre
a república degenerada pela ditadura, ou a república regenerada
pela constituição.

O Jornal do Brasil é constitucional a todo transe: eis, numa palavra,
o nosso roteiro político. Não pode, portanto, ser um derrocador.
O alvião e o martelo, deixamo-los para sempre no museu histórico
da outra tenda. Da nossa orientação de hoje em diante é
penhor a nossa orientação até hoje, desde que a revolução
de 1889 encontrou a sua fórmula na Constituição de 1891:
batendo-nos pela lei contra o Governo, ou contra a multidão; verberar
o arbítrio, venha de cima, ou de baixo, dos nossos afeiçoados,
ou dos nossos inimigos, animar todas as reivindicações constitucionais,
lutar contra todas as reações. Nossa meta é a república.
E a república, ao nosso ver, não é o bastão do
marechal com um barrete frígio no topo e um agitador de sentinela ao
lado com a fraternidade escrita no cano do fuzil; não é a convenção
de um nome, servida alternativamente por camarilhas condescendentes, ou revoltadas;
não é nem o compadrio de nossos amigos, nem a hostilidade aos
nossos adversários. É a defesa da autoridade e a sua fiscalização
à luz dos princípios constitucionais. É o direito de
ter todas as opiniões e a obrigação de respeitar todas
as consciências. É o governo do povo pelo povo, subordinado às
garantias da liberdade, com que a constituição e o direito público
universal limitam a própria soberania popular. Eis a república,
para cuja evolução queremos cooperar, e de cuja consolidação
nos oporemos com todas as forças aos perturbadores. Perturbar a república,
porém, (fiquem definidos os termos) não é censurar os
que a aluem: é, pelo contrário, militar com os que a defendem,
pugnando com a lei contra os que a degradam.

Este jornal, pois, não é uma oficina de agitação
e ameaça, de subversão e guerra: é um instrumento de
doutrina e organização, de estudo e resistência, de transação
política e intran­sigência legal. Intransigência legal;
porque contra a lei toda transação é cumplicidade. Transação
política; porque a política é a ciência das transações
inteligentes e honestas, sob a cláusula do respeito aos cânones
constitucionais. Os especu­ladores e os cínicos transigem sempre.
Os sistemáticos e os loucos não transigem nunca. Os homens de
estado transigem, onde é lícito, oportunamente.

Não somos, portanto, profissionalmente oposicionistas, nem governistas.
Somos legalistas acima de tudo e a despeito de tudo. O Governo, ou a oposição,
não têm para nós senão a cor da lei, que envolver
o procedimento de um, ou as pretensões da outra. Fora do terreno jurídico
nossa inspiração procurará beber sempre na ciência,
nos exemplos liberais, no respeito às boas praxes antigas, na simpatia
pelas inovações benfazejas, conciliando, quanto possível,
o gênio da tradição inteligente com a prática do
progresso cauteloso. Poderemos acrescentar que o anonimato do insulto, da
calúnia e da insinuação irresponsável não
terão lugar nestas colunas.

Numa quadra em que a política absorve quase exclusivamente a vida
nacional, parece natural que ela dominasse o nosso programa, e preponderasse
na indicação do nosso rumo. Não quer isso, entretanto,
dizer que esquecêssemos os outros lados do espírito. A política
é apenas uma de suas faces. As outras terão largamente, nesta
folha, o espaço, a honra e o culto, que se lhes deve. Penetrar por
todas essas relações da vida intelectual, no coração
de nossos compatriotas é o nosso sonho. Oxalá que um pouco de
realidade caia sobre ele, e o fecunde.

Jornal do Brasil, 21 de maio de 1893.

REPÚBLICA POR TODOS OS MEIOS

Ao escrevermos ontem, no artigo programa desta folha, o nosso apelo aos conservadores
brasileiros, isto é, aos republicanos constitucionais, porque fora
da república, atualmente, nada se descortina ao longe, de todos os
lados, senão a anarquia, ainda não conhecíamos a formação,
com que nos acabam de dotar, de um clube que responde no assento batismal
pelo nome de Jacobino, e cujo declarado objeto consiste em “sustentar
a república por todos os meios”.

Se a instituição, de que se trata, se dignasse adjetivar os
meios, contemplados no cálculo de seu civismo, com a qualificação
de legais, nada teríamos talvez que observar, conquanto para esses
efeitos pacíficos e normais não haja preparação
menos consentânea do que as tempestades de um clube no sentido francês,
militante, revolucionário desta palavra, o único em que os nosso
políticos a conhecem. Mas, em tempos que fizeram da lei uma exceção
suspeita e perigosa, que não permitem invocá-la seriamente,
a não ser como recordação, epigrama, ou recurso para
o futuro, essa omissão não pode deixar de considerar-se intencional,
ou de representar, no espírito da cruzada que sob esses auspícios
se anuncia, a ausência do sentimento, confortativo para nós outros,
que a sua menção exprimiria.

Aliás não se queira ver nestas reflexões propriamente
censura aos fundadores do novo baluarte. Sacrifícios não são
obrigatórios. A lei não tem o direito de possuir amigos, senão
quando esteja com o Governo de seu lado. Se entre os dois, porém, se
estabeleceu a amizade, e o divórcio tornou-se irremediável,
seria ridículo votar-se um grupo de criaturas bem intencionadas ao
anacronismo de pretensões que o poder de quem pode riscou terminantemente
do número das possibilidades sensatas.

Ficamos, portanto, entendidos e avisados sobre a natureza dos meios classificados
na panóplia da nova instituição. Quem diz francamente
“todos os meios”, não necessita explicar que não
há meios excetuados. Depois, os precedentes republicanos do tempo comentam
ilustrativamente as intenções morais do lema. O misterioso personagem
nas dobras escuras do manto espanhol, sob as abas do clássico sombreiro
ortodoxo carregado sobre os olhos, oculta mal entre os dedos contraídos
o instrumento da ameaça. Toda a gente lhe está vendo, na mão
que se esconde, o sig­no fatídico, a cujo aceno se reúnem
as arruaças contra a impren­sa, se fantasiam os monumentos históricos
ao capricho do bom-gosto contemporâneo, se depõem das placas
das ruas os nomes populares em homenagem às idolatrias da patuléia,
se consumam, enfim, as violências salutares ao direito em nome da república
menor, tutelada pela espontaneidade dos grandes entusiastas. Isso aliás
é apenas o que se vê. Não falemos no que se oculta discretamente
sob o sigilo dos conciliábulos, onde as trevas julgam e condenam os
crimes do caráter, as indignações do civismo, as revoltas
do senso comum, as lições da verdade.

Na opinião desta santa irmandade, já se sabe, adotou-se para
todos os fins a convenção de que a república é
o arbítrio do poder, uma vez que este, por sua vez, houve por bem considerar
personificada a nação nesse núcleo de servidores prestimosos.
Daí o fenômeno singular, estupendo entre todas as curiosidades
po­líticas, de um governo organizado apoiando-se satisfeitamente
na praga anárquica dos clubes, quando todos os governos, inclusi­ve
as repúblicas em França, tiveram de reagir energicamente con­tra
essas instituições, que, inúteis como órgãos
de propaganda pacífica em dias de bonança, obram, nas épocas
revoltas, “como o vinho ministrado a um ébrio”. Contra-senso
só comparável ao do exemplo de uma ditadura filha do exército
e sustentada por ele, organizando e subsidiando ajuntamentos armados fora
das leis militares e contra elas (para não nos determos em considerações
ociosas, referindo-nos às prerrogativas do Congresso, aos limites do
orçamento e às exigências da Constituição).
Tudo porque imaginaram tão aviltada esta terra, que já não
haja consciências capazes de desprezar a intimidação,
e clamar através da atmosfera oficial do medo a realidade dos nossos
sofrimentos.

Os cidadãos livres têm o direito de juntar-se em assem­bléias
e associações, discutir nelas os seus interesses, imprimir por
meio delas às opiniões individuais a energia da ação
coletiva. Mas isso à luz do sol. Isso absolutamente adstrito ao uso
de faculdades legais. Não, porém, em cenáculos secretos.
Não sob a mônita de converterem as convicções em
crimes. Não com o arrojo de se arvorarem em tribunais de consciência,
de avoca­rem aos seus membros o pontificado da verdade constitucional,
de indigitarem os seus adversários à impiedade de vinditas covardes.
Se alguma coisa, presentemente, devia atrair a atenção vigilante
das autoridades, é essa vegetação criminosa, que envenena
o nosso ambiente com exalações funestas.

Não sabemos se entre essa decomposição geral do sentimento
republicano não será quase um sacrilégio expor a confrontos
o nome de Washington. Mas, como é invariavelmente sob a senha da república,
cujo vocabulário soletram, que nos querem pilular essas drogas malsãs,
lembraremos sempre, a este propósito, salvo o desrespeito da comparação,
a profunda sabedoria do patriarca espiritual da América republicana.
A semente do jacobinismo, trazida pelos ventos de França, principiara
também a germinar no solo dos Estados Unidos, durante a última
década do século passado, sob a forma de “Sociedades Democráticas”,
eqüivalência dos clubes de terrível nomeada, cuja influência
deixou maculada para sempre a memória da grande revolução.
A correspondência de Washington, nos volumes de Jared Sparks, está
cheia da exe­cração, que essa entidade exótica às
instituições da democracia liberal, despertava no ânimo
daquele homem feito de razão e justiça, cuja vida ilumina, há
mais de cem anos, a história de seu país.

Há ali passagens, como esta de uma carta dirigida pelo primeiro presidente
da União ao general Morgan, em outubro de 1794: “Cumpre subjugar
este espírito temerário e faccioso, que se levanta empenhado
em arruinar as leis, e subverter a Constituição. Se o não
lograrmos, digamos adeus à existência, neste país, de
todo e qualquer governo, a não ser o da turba e o dos clubes, de onde
nada pode resultar, que não seja confusão e anarquia”.
Noutra missiva, escrita, em agosto desse ano, ao governador da Virgínia,
acerca da insurreição que afligia aquele Estado, usara da mesma
linguagem o célebre estadista, que fundou com a lei a maior das repúblicas,
depois de havê-la aparelhado com a espada: “De princípio
dei eu a minha opinião de que, se não se combatessem essas sociedades
ou se as não envolvesse o menosprezo de que são dignas, elas
abalariam o governo até aos seus fundamentos. O tempo e as circunstâncias
vieram confirmar-me este juízo. Deploro sumamente as conseqüências
prováveis. Não que me interessem pessoalmente, porque o meu
papel neste cenário está por pouco, mas porque, sob esse aparato
sedutor de exterioridades populares, vejo neste invento a mais diabólica
tentativa de destruição contra o melhor edifício jamais
oferecido ao gênero humano para seu governo e felicidade.”

Aqui, entretanto, ao passo que a lealdade dos que desinteressadamente, como
nós, estão mostrando ao chefe do Estado o precipício,
de que desejaríamos vê-lo salvo, não lhe merecerá
(tudo induz a crê-lo) senão o desdém, talvez o azedume,
esses instrumentos fatais, cuja cooperação tão cara foi
sempre aos que a utilizam, vão-se insinuando nas simpatias do Governo
como os seus sustentáculos mais vantajosos. Compreende-se que o poder
não se julgue ameaçado com a doutrina da indiferença
aos meios, com que eles fazem profissão de servir a república:
porque o poder bem sabe que essa casta de democracia é incapaz de enxergar
a Constituição republicana fora da benquerença oficial.
Mas o que faz estremecer, é o desembaraço, com que se revela
em amostras incríveis a correspondência, a afinidade moral entre
essa geração espontânea da desordem e o concurso diuturno
dos desatinos oficiais.

Casos como o que o Jornal do Commercio noticiava anteontem, descrevendo as
cenas da devassa policial, de que foi alvo a casa do Beco do Império,
fazem corar, diante do passado que este nome relembra, o brio republicano,
obrigando-nos a confessar que nem as tropelias do primeiro reinado registram
sintomas piores da perda da consciência do dever nos agentes da autoridade.
A polícia, por ordem superior, cometida, não à leviandade
de um galfarro, mas à respeitabilidade de um cidadão estimável
e benquisto por vá­rios títulos, invade a residência
de cidadãos honestos, leva de encontrão uma senhora, penetrando-lhe
a alcova na ausência do marido, esquadrinha as gavetas, e arrecada os
papéis encontrados. Diz-se que, afora o trambolhão persuasivo
na dona da casa, reinou em toda a diligência o perfume da mais esquisita
deli­­ca­­deza, tendo os habitantes a cordura de fornecer
eles mesmos as chaves à amável autoridade, cuja manifestação
de poder se limitou a subtrair suavemente a propriedade alheia, sem a cerimônia
do recibo reclamado pelos circunstantes. Mas (sem maldade) o próprio
executor da sutil proeza, se para ele apelássemos, havia de encontrar-se
em apuros, para nos mostrar, nesse episódio curioso, os traços
apreciáveis de diferença entre este processo de confisco de
bens particulares, com violação formal do domicílio,
e certas outras espécies de visitas domi­ciliárias, em que
os surpreendidos se deixam do mesmo modo espoliar mansamente, sob o receio
de maior mal, mas nas quais a autoridade policial costuma intervir em caráter
oposto, deixando cair sobre os visitantes importunos a mão áspera
da lei.*

Esta, por órgão da Constituição, declara: “A
casa é o asilo inviolável do cidadão; ninguém
pode aí penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão
para acudir a vítimas de crimes, ou desastres, nem de dia, senão
nos casos e pela forma prescritos na lei.”

Os transgressores dessa garantia constitucional, seja qual for a sua condição,
ou dignidade, secretas, delegados, chefes de polícia, ministros, ou
presidentes da república, incorrem nas cominações do
Código Penal. Este, depois de precisar, no art. 199, os casos, em que
se permite a entrada de dia em casa alheia, determina, no art. 200, que, ainda
em tais hipóteses, o uso dessa faculdade se subordina a estas cláusulas
tutelares: “1º ordem escrita da autoridade, que determinar a entrada
na casa; 2º assistência de escrivão, ou qualquer oficial
de justiça, com duas testemunhas.” E, para “os que entrarem
de dia em casa alheia, fora dos casos permitidos”, taxou o legislador
(art. 198) a pena de prisão celular por um a três meses. Se o
indivíduo, que pratica a violência exerce autoridade pública,
esta consideração não absolve, ou atenua o delito; pelo
contrário, nos termos do art. 231, acrescenta à sanção
do art. 198 a perda da função, ou emprego, em cujo exercício,
ou sob cujo pretexto se praticou o abuso. Nem exculpa o delinqüente a
alegação de ter obedecido a ordens superiores; porquanto, segundo
o art. 229, “o que executar ordem, ou requisição ilegal,
será considerado obrar, como se tal ordem ou requisição
não existira, e punido pelo excesso de poder, ou jurisdição,
que cometer”.

O fato do Beco do Império constitui, pois, uma contravenção
grave da lei criminal, em cujo domínio se acham envolvidos os agentes
subalternos, o delegado e o encoberto autor da ordem, sob cuja superioridade
se acoita a violação desse asilo doméstico, no qual dizia
Chatham que podem penetrar as lufadas da tormenta e as intempéries
do céu, mas não penetra a coroa do rei da Inglaterra.

Verdade é que Pitt representava o orgulho de uma nação
livre, onde todas as soberanias se abaixam à da lei, ao passo que nós
somos um povo sustentado das migalhas do arbítrio que se apanha ora
à porta dos príncipes, ora à dos ditadores.

Não desesperemos, todavia, de que uma vez, diante de ousadias como
essa do poder rebelado contra os seus deveres, alguma alma de homem se lembre
de que a defesa do lar é tão ampla, legalmente, como a defesa
da vida, e dispõe das mesmas imunidades, das mesmas justificativas,
das mesmas armas. O Código Penal, com efeito (art. 32), é peremptório
dizendo: “Não serão criminosos os que praticaram o crime
em defesa legítima, própria, ou alheia”; e acrescenta:
“A legítima defesa não é limitada unicamente à
proteção da vida; ela compreende TODOS OS DIREITOS, QUE PODEM
SER LESADOS.” Defendamos as nossas casas, como defenderíamos
a nossa vida, contra os criminosos que a polícia persegue, ou contra
a polícia que se nivela aos criminosos. Os tribunais sancionarão
o nosso direito incontestável.

Aí têm os nossos concidadãos um dos meios, pelos quais,
dentro da lei, se sustenta a república constitucional, contra os que,
sem escrúpulos, se propõem a manter, por todos os meios fora
da lei, a república do Conde de Lippe.

Jornal do Brasil, 22 de maio de 1893.

JACOBINOS E REPUBLICANOS

Ouvimos dizer que o Jornal do Brasil exagera a importância ao cogumelo
jacobino. Porque o agárico descorado rasteja à flor do chão,
porque não precisa de luz para a medrança, porque assimila os
elementos do ar segundo um processo respiratório diferente do nosso,
imaginam que o parasita é indiferente à nossa higiene, que as
criaturas superiores podem fitá-lo com desprezo, que a evolução
da vida é indiferente ao desenvolvimento minúsculo deste comensal.
Mas desde a ferrugem das searas, desde o mofo dos rosais, desde a gangrena
úmida dos batatais até o poliporus que esfarela em humus as
madeiras de construção, a natureza nos está mostrando
que os mais soberbos palácios, na estrutura poderosa dos seus vigamentos,
não podem rir do criptógamo destruidor, cuja família
se distribui do pinheiro à violeta, nutrindo-se ora das matérias
decompostas, ora dos organismos vivos. O tortulho, às vezes microscópico,
tem venenos solúveis, para levar a morte ao estômago do homem,
filtros, para deformar as folhas das plantas, apetites, para se apascentarem
nos cadáveres dos insetos, dissolventes, para arruinarem os troncos
do arvoredo. Mínimo, dilata-se por propagação; superficial,
destrói pelo contac­to; anêmico, demuda e amofina pela convivência
os corpos mais robustos.

A república, vegetação nova, mal arborescente ainda,
foi invadida, antes da frutescência e da infloração, pela
praga desse devastador, pior que o oídio das vinhas, sob a forma do
jacobinismo. Do terriço, próprio ao solo das revoluções,
onde esfervilham as ignorâncias, as presunções e os despeitos,
o mal estendeu-se às ramas, onde as nódoas características
vão-se destacando bem visíveis. Acudir-lhe em tempo é
melhor do que deixá-las lavrar crescentemente a superfície ainda
ilesa.

O elemento jacobino, quem não o ouviu, em 10 de abril, embocar o clarim
do triunfo, em torno do governo, e fanfarrear nas festas da proscrição,
quando era honra o insulto aos perseguidos, nobreza a espionagem, função
cívica o beleguinato? Quem não o ouviu advogar a sistematização
legislativa da lei marcial? Quem não se lembra do frenesim, com que
ele aplaudiu as delegações de arbítrio ao chefe do estado?
Quem não o admirou fazendo cauda à polícia nessa orgia
de invasões da polícia no direito particular, na competência
do Código Comercial, na alçada da magistratura? Qual é
o salto do poder por sobre a lei, que ele não recebeu esfregando as
mãos? Qual foi a notícia de violências que ele não
acolheu com a exor­tação a violências maiores? Quem
senão ele se enfuriou com a nossa resistência ao célebre
alistamento republicano? Quem concebeu a idéia nefasta da reeleição
do marechal Floriano Peixoto? Quem acoroçoa constantemente a desordem,
toda a vez que a desordem bajula a ditadura? Quem reedita aqui a flux a pólvora
dos ódios de importação contra a propriedade, a riqueza,
o capital, que fizeram a civilização americana? Agora mesmo
o título de jacobino não acaba de ser levantado como brasão
na frontaria de um clube político? E a mocidade, as classes populares
vão bebendo avidamente o licor da loucura nessa propaganda, a que a
tumidez da paixão supre a ausência do talento, do gosto e do
siso.

Porque a espuma desses acessos ainda não é ensangüentada,
não se segue que devamos conservar-nos quedos e desacau­telados.
Os crimes da epilepsia são inesperados e subitâneos. O bom médico
diagnostica pelos pródromos, e previne-se contra as eventualidades
fatais. O jacobinismo é um produto moral de certos sentimentos e de
certas teorias. Dadas as teorias mães, aventados os sentimentos suspeitos,
é precavermo-nos em tempo contra as possibilidades da manifestação
aguda.

Ora, as atitudes e os princípios deste arremedo indígena da
demagogia francesa reproduzem fielmente os caracteres do original. “Convencer
não é o que o jacobino procura: basta-lhe dominar. Não
discute: condena; e, se persistem, excomunga. Divergir dele ao pensar não
é incorrer em erros de apre­ciação, nos quais não
se envolva a integridade pessoal: é pra­vi­dade, digna de castigo,
rematada traição. Se um argumento o embaraça, não
há que hesitar: trunca-o, omite-o, ou finge não entendê-lo.
Se o desesperam, elimina o adversário à força de leis
de exceção, quando o pode, ou por processos de exceção,
se lhe falece outro meio. Tem um direito para si mesmo, outro para os demais,
uma linguagem para o revés, outra para a vitória. Tratando-se
de si, toda a liberdade é pouca; para os outros qualquer é demasiada.
Mais fraco, brada contra a perseguição; mais forte, oprime.
Declama contra o despotismo, que o magoa; serve ao que lhe aproveita. Seu
temperamento intelectual inibe-o de encontrar a verdade; porque, mais ainda
que o comum da gente, ele interpõe sempre um ódio, ou um capricho,
entre si e o homem, que tem de julgar. Em saindo de suas maquinações
subterrâ­neas para a luz do sol, já não enxerga, como
as aves da noite: míngua-lhe em vista o que lhe sobra em perversidade.
Em sua estimativa, o fim justifica os meios; as coisas, para ele, são
conforme prestam, não conforme são; do que lhe rende, nada é
crime; nada é virtude, se lhe prejudica. Assim com as pessoas: dos
puros tudo é santo; dos impuros, tudo condenável. Um dia Robespierre
fazia a Meillan o elogio de certo Desfieux, sujeito de notória improbidade.
— Mas o vosso Desfieux é conhecido como um velhaco. — Não
importa; é um bom patriota. — Ora! um falido fraudulento! —
É um bom patriota!” E não lhe pôde arrancar outras
palavras.

Se os amigos nunca têm vício, os inimigos nunca têm merecimento.
Tudo é lícito contra eles: até imputar-lhes os atentados,
que os próprios acusadores cometeram: os algozes de Vergniaud não
assacavam aos girondinos os morticínios de setembro?

Dizem os que estudaram essa chaga da revolução francesa que,
“em falta de caridade e justiça, a inveja é a divindade
do jacobino. Qualquer superioridade lhe é suspeita, qualquer ascendente
individual acirra-lhe a desconfiança e ao depois o ódio. Quem
quer que se eleve é um ditador, que urge banir da lei: ditador, Mirabeau;
ditador, Lafayette; ditador, Vergniaud. A universal mediocridade, sob um nível
de dominação sectária, ou rapace, este, na concepção
do jacobino, o ideal da democracia.”

Quereis ver como essa escola histórica entende a verdade e a consciência?
Os girondinos, na conferência do Caen, recusam a proposta realista de
angariar recursos na Inglaterra, declarando não poderem adotar um plano
contrário ao sistema republicano. Pois bem: o jacobinismo os executa,
por haverem maquinado contra a unidade e a indivisibilidade da república!
O moço Montmorin é arrastado ao tribunal revolucionário,
e condenado, porque lhe descobriram em casa, a dezenas de léguas de
Paris, no retiro da sua obscuridade, uma bengala de estoque, indício
transparente de reivindicações restauradoras. Um opulento agente
de câmbio em cujas águas-furtadas se encontraram velhas côdeas
de pão, sofre a morte, por ter conspirado a fome contra o povo. Duas
mulheres, uma de oitenta anos, outra paralítica, sobem ao cadafalso
acusadas de evasão com escalada para assassinar os convencionais.

Poderão argüir-nos de forçar a comparação.
Será justo o reparo? Sim, se estabelecerem que a gravidade de um crime
se determina pela importância de seus efeitos materiais. Não,
se confessarem que as ações humanas se aquilatam pela natureza
de seus elementos morais. Quem não sente a rasoira jacobina nessa hostilidade,
ora surda, ora violenta, que solapa e farpeia os melhores nomes da nossa revolução?
Quem não percebe a moral dos libelos de Fouquier-Tinville na encenação
oficial da mazorca de abril? Quem não reconhece a eqüidade dos
processos revolucionários de suspeição política
nessas provas da conjuração dos desterrados de 1892, nas quais
o olhar de um magistrado apenas poderia achar o corpo de delito da imoralidade
dos delatores?

Vede a capacidade anedótica das celebridades do tempo, das Egérias
da atualidade, e dizei-nos se não dão a lembrar a frase de Sieyès:
“Os que não deviam ter a incumbência de nada, encarregam-se
obstinadamente de tudo.” Os padres da seita, que apaixona os nossos
puritanos, mandaram derribar campanários, porque violavam a igualdade.
A comuna de Paris cogitou em queimar a biblioteca da cidade, por ter tido
o cognome de régia. Lavoisier pede alguns dias de vida, para concluir
uma experimentação química. “A república”,
responde Dumas, “não precisa de químicos.” O filho
de Buffon cuida salvar-se, declinando o nome do pai. Entregam-no ainda mais
depressa ao verdugo. Um tribuno místico exclama, arengando ao povo:
“O cor Jesu! O cor Marat! Coração Sagrado de Jesus! Sagrado
coração de Marat! tendes o mesmo direito às nossas homenagens.”
Ao que atalha um ouvinte: “Ora falar em Jesus… Tolices!”

Eis os jacobinos, dos quais Gensonné dizia: “Se salvarem a coisa
pública, é por instinto animal, como os gansos do Capitólio.”
Danton, na sua prisão, os definiu, dizendo: “Não há
um só deles, que entenda de governo.” E quem os conhecia melhor
do que Danton? “Ditadores ridículos é o que vós
sois”, escarrava Carnot nas faces de Saint-Just. Eis o retrato da confraria
atroz, que impôs à revolução a ditadura da ignorância,
da malvadez e da improbidade, que matou a república, preparando a prostituição
do diretório e o absolutismo do império, e que ainda hoje assombra
o mundo por seus crimes, por sua corrupção e por sua imbecilidade.

Vale a pena de desenterrar exemplos tais, e transfundi-los, um século
depois, no sangue dos vivos? fazer dessa herança precita o patrimônio
comum das repúblicas? instilá-la, na escola pública da
imprensa, à alma do povo, sedenta de novidade e de ação?
fabricar desses ingredientes uma opinião, entregar a essa opinião
o governo, confiar a esse governo a liberdade?

Estroinices, rapaziadas, destemperos inocentes, dizem, encolhendo os ombros,
certos personagens, cuja fleuma seria digna de estudo. Riem-se do jacobino
que não trouxer o cadafalso às costas, como o músico
ambulante o realejo. Não querem ver que dessas pataratices violentas
se compõe o coro das violências oficiais, a jurisprudência
das suas justificações, e que essa orquestra insensata oferece
o perigo terrível de alentar, num governo entregue às alucinações
da fraqueza, uma tensão de luta, de provocação, de intransigência
pertinaz, de aventurosas temeridades. É pouca essa gente? Mas notai
o caso congênere no berço da demagogia contemporânea. “Alguns
espertos apoderam-se da França, martirizam-na em nome da liberdade,
impõem-lhe a tirania da insciência, da ociosidade, da devassidão
e do crime. Não eram muitos: em Paris uns cinqüenta, sustentados
por uns cinco ou seis mil apaniguados. Nenhum homem superior, entre os chefes;
entre os adeptos, alguns indivíduos do povo. Mas adeptos e chefes,
quase todos presunçosos e ignaros, famintos de importância, ou
de estrépito, sem probidade, nem escrúpulos, sempre agitados
e agitantes.” E a França, a grande França, pôde
cair nas garras dessa minoria odiosa e repulsiva. Que diremos do Brasil, onde
os reivindicadores dessa sucessão histórica têm conquistado,
por beneplácito do governo, o privilégio de ousar tudo?

Não, não convém deixar que a enxurrada engrosse. É
necessário chamar a postos os interesses conservadores, e considerar
no abismo, que separa a demagogos de democratas, e jacobinos de republicanos.

O espírito jacobino é a negação do verdadeiro
espírito republicano.

Jornal do Brasil, 24 de maio de 1893.

A LEGAÇÃO DO VATICANO

A destituição do Conde de Santo Agostinho, recebida com intransigente
desagrado pelos católicos fluminenses em sua generalidade e encarada,
nos círculos políticos, como um mau sintoma para as relações
entre a Igreja e a República, inspirou a um representante da nação
pelo Estado do Rio de Janeiro um projeto, apresentado à Câmara
dos Deputados, suprimindo a nossa legação perante o Vaticano.*

Conquanto admitamos essa medida como possibilidade eventual, não na
aprovaríamos senão em hipótese extrema, cuja iminência
não nos parece provável. Abolir a missão brasileira junto
ao Sumo Pontífice, em retorsão imediata à nomeação
do bispo Esberard, afigura-se-nos uma leviandade, condenada pelos interesses
da ordem republicana e da própria liberdade religiosa, pela qual estremece,
como nós, o coração patriótico do autor do projeto.

Nunca nos impressionou o argumento dos lógicos contra a consentaneidade
entre essa homenagem ao catolicismo, ou antes à importância dos
interesses sociais ligados a ele, num país onde esse culto é
de fato a religião nacional, e o princípio da absoluta liberdade
religiosa, que conquistamos em 7 de janeiro de 1890, e consolidamos em 24
de fevereiro de 1891. A lógica não pode ter no governo dos homens
a soberania, que os espíritos radicais lhe atribuem. Os estadistas
mais úteis aos Estados não têm sido os melhores exemplares
de dialética aplicada. Quem não tiver a coragem, algu­mas
vezes, de sacrificar à contradição, divindade im­pe­­riosa,
que, desde o princípio dos tempos, reina, pelo título indiscutível
da necessidade, sobre uma vasta parte dos interesses humanos, há de
forçosamente sacrificar ao capricho dos sistemas, ídolo vão,
cujos benefícios a humanidade não conhece. Costuma-se dizer
que os princípios são tudo. Não seríamos nós
quem contestasse esta verdade, sensatamente en­ten­dida. Cultor mais
devoto deles do que nós, não queremos que o haja. Mas o primeiro
de todos os princípios é o da relatividade prática na
aplicação deles à variabilidade infinita das circunstâncias
dominantes. Estas não raro nos impõem transigir, a benefício
das grandes leis, das grandes verdades, das grandes garantias liberais, cuja
essência é sagrada, com a exterioridade de certas formas, cujo
antagonismo superficial pode traduzir uma cooperação valiosa
para resultados superiores.

Escola entre todas venerável da arte dessas transações
oferecem-nos os Estados Unidos. Ali teve seu berço o dogma contemporâneo
da independência dos cultos; ali encontra ele o seu padrão prático
mais completo, mais eloqüente, mais prestigioso. Nossa Constituição,
a esse respeito, é apenas, com relação à deles,
uma cópia menos correta do que o original. Nem por isso, entretanto,
o cris­tianismo deixa de estender ali o seu manto sobre as instituições
secularizadas, envolvendo na solenidade de sua consagração os
atos mais sérios da política, da administração
e da justiça americana.

Washington, na sua fala inaugural, proferida em 30 de abril de 1789, não
julgou desacatar os princípios constitu­cionais, de que foi o primeiro
e o mais severo executor, abrigando a sua investidura no poder sob uma esplêndida
invocação cristã: “Seria singularmente impróprio”,
dizia o au­gus­to patriarca, “omitir, no primeiro dos nossos
atos oficiais, as nossas mais fervorosas súplicas a essa Onipotência,
que rege o universo, que preside aos conselhos das nações, e
cujo auxílio providencial pode remediar todos os defeitos humanos,
exorando-a a sagrar, com as suas bênçãos, à liberdade
e felicidade do povo um governo por ele mesmo instituído para esses
fins essenciais, predispondo os instrumentos empregados em sua administração
a desempenharem com acerto as funções de sua tarefa. Rendendo
este preito ao grande Autor de todo o bem, público, ou privado, exprimo
não menos os vossos sentimentos do que os meus, não menos os
da nação em geral do que os nossos.” Oito anos depois
(setembro de 1796) a sua mensagem de adeus ao povo americano ardia no mesmo
espírito de adoração pública, como o cibório
de um templo.

Essa tradição perpetuou-se. Todos os presidentes dos Estados
Unidos, em seus discursos inaugurais, em suas mensagens ânuas, em vários
outros documentos oficiais, falando à opinião, abrindo as câmaras
legislativas, ou fixando ao povo dias de jejum e ação de graças,
reconhecem, mais ou menos positivamente, a dependência entre a vida
nacional e essas supremas inspirações religiosas, que unem,
apaziguam e moralizam as nações. Jefferson foi o único
presidente, que teve escrúpulos constitucionais em decretar datas de
oração e sacrifício público. Mas deixou esse cuidado
ao poder executivo nos Estados, e, divergindo de seus predecessores, não
quis negar aos sucessores o direito de fazer o que, segundo ali se pensa,
se não é expressamente autorizado, ainda menos proibido é
na Constituição. Os discursos mais solenes de Lincoln durante
a guerra civil são, às vezes, ver­da­deiros salmos,
de uma unção que os livros sagrados não excedem. Chefe
da nação retalhada pela guerra fratricida, sua palavra soava
como a prédica de um profeta, entre as duas partes beligerantes, “ambas
as quais”, dizia ele, “lêem a mesma Bíblia, e oram
ao mesmo Deus, invocando-o uma contra a outra”.

Quem não sabe que o orçamento americano subsidia capelães
para o Senado, para a Câmara, para o exército, para a armada,
para as escolas navais e militares? Esses sacerdotes, equiparados aos outros
funcionários públicos, são nomea­dos mediante recomendação
das autoridades eclesiásticas. Os Estados observam a mesma regra, instituindo,
dentre os ministros cristãos regularmente ordenados, cape­lães
para os seus congressos, a sua milícia, as suas prisões e penitenciárias,
os seus hospícios de alienados. Cada célula, nos cárceres,
tem a sua Bíblia. O congresso federal, em 1882, subvencionou a versão
nova da Escritura Sagrada. Dentre as escolas públicas, franqueadas
à população de todos os credos, quatro quintos, pelo
menos, observam a leitura dos livros santos, o uso de hinos sacros, a recitação
de preces abrindo e encerrando os exercícios cotidianos. Atos solenes
do governo ordenam a maior pontualidade na observância do serviço
dominical. A Constituição excetua o domingo do decêndio
outorgado ao presidente para o exercício do veto. E, contudo, não
há país, no mundo, onde a emancipação dos cultos
seja tão real como naquele, onde as funções do Estado
revistam mais essencialmente o caráter leigo, a imparcialidade entre
todas as confissões religiosas.

Não se envergonhe, portanto, a nossa austeridade lógica de
conservar, do regímen abolido pelo divórcio entre a religião
e o Estado, resquícios tão inocentes como a legação
do Vaticano. Nem porque ela deixou uma vez de impedir um mal obviável,
condenemo-la no mesmo ponto à eliminação. Amanhã
outro incidente despertaria correntes opostas. E de arrependimentos em arrependimentos,
de infantilidades em infan­tilidades, nos exporíamos, cada vez
mais, ao ridículo do mundo. Com esta mania de revogar e desfazer, a
melhor constituição do universo é um castelo de cartas
entre os dedos de uma criança. Mudando assim todo dia de preferências
nos assuntos mais sérios, somos uma sociedade de areia e um governo
de aluvião, onde as marés e as enxurradas transformam o solo
a cada passo. Não há construção possível,
não há tradição criável. Reclamamos hoje
o parlamentarismo, antes de experimentado o presidencialismo, porque ontem
o substituíramos, com a mesma facilidade, com que amanhã regres­­saríamos
para a monarquia, antes de ensaiada a república, por que, há
pouco, a trocávamos. E, assim como agora extirpássemos até
a última radícula as nossas ligações com a igreja,
amanhã, de roldão, a outro movimento irrefletido e impetuoso,
seríamos levados a abolir a liberdade espiritual, restabelecendo o
monopólio religioso. Isto não é educar um povo: é
dissolvê-lo.

Se, a propósito do acinte aparente à opinião republicana,
principiássemos a trovejar contra a Santa Sé, teríamos
tido logo depois motivos, para nos convencer de precipitação;
porque uma declaração de pessoa semi-oficial publi­cada
nO País de ontem,* veio revelar que o governo não foi tão
estranho, como se supunha, à nomeação do bispo Esberard,
sobre a qual o inter­núncio se dirigira ao ex-ministro interino
do Exterior. A ser exato, como é de crer, o asserto, está justificada
a Santa Sé de não ter ouvido o nosso representante em Roma,
e, ainda quando o ouvisse, entre ele e o secretário do Presidente da
República, diretamente consultado, não podia vacilar.

*O País de 2 de junho publicou o seguinte tópico:

O BISPO DIOCESANO

Estas linhas deveriam ter por título o tema Viver às claras;
mas nós preferimos manter a epígrafe usada desde começo,
para o caso em que a política da intriga, disfarçada sob vestes
talares, afastou da diocese fluminense o virtuoso Conde de Santo Agostinho,
considerado um estorvo às pretensões atentatórias da
República.

O Rev.mo Monsenhor Lustosa articulou anteontem numa das folhas da manhã
a afirmativa de que o governo, com a devida antecedência, teve conhecimento
de que a cúria ia nomear monsenhor Esberard arcebispo do Rio de Janeiro,
e nisso mostrara-se de acordo.

Demos, porém, o contrário: nem foi interrogado aqui o governo,
nem o nosso ministro na capital do mundo católico. Seria, porém,
judicioso responder a essa omissão com o rompimento alvitrado no Congresso?

Adota-se uma deliberação, pelas vantagens que nos proporciona.
Toma-se uma desforra, pelo mal que faz ao inimigo, ou ao agressor.

Ora, perguntamos, a cúria romana seria precisamente prejudicada com
a nossa retaliação? Em relações de potência
a potência esta questão poderia ser de ordem inferior. Nesse
gênero de casos o melindre magoado de um governo não vai medir
considerações de utilidade. Os casus belli estabelecem-se não
raro por simples motivos de honra. Uma quebra de cortesia diplomática,
um desvio da pragmática internacional podem levantar a inimizade entre
duas nações, e arremessá-las uma contra a outra. Mas
Roma é uma soberania moral. Seus conflitos não se resolvem pelas
armas. Sua fraqueza é a sua força. As violências dos poderosos
divinizam-na. Sua autoridade apóia-se, entre os povos civilizados,
numa base tal de respeito, que desafiá-la é travar porfias desiguais,
em que todas as probabilidades estão de um lado, em que uma das partes
nada arrisca, e a outra não aventura pouco, com um adversário
favorecido pelo privilégio sem igual de contar legiões de almas
a seu favor no próprio seio dos povos, contra quem luta.

Imaginais que, separadas, como estão oficialmente as duas sociedades,
cessaram os motivos razoáveis, para termos uma representação
perante o trono de S. Pedro. Mas quem não vê que, justamente
por isso, o menos arriscado a perder com a supressão desse último
laço é o governo espiritual do Supremo Pontífice, a quem
as instituições atuais abriram, no Brasil, uma esfera autônoma
na jerarquia, na administração, na propaganda? De que meios
regulares dispõe, hoje, o Governo, entre nós, para ferir a Igreja?
Não no vemos. Mas quem poderia calcular os recursos acessíveis
à Igreja, para malfazer à República, indispondo contra
ela os crentes, sem transpor os limites da ação espiritual?
Numa nação católica, onde o catolicismo vive independente
do Estado, o governo temporal não tem nada que dar à Igreja;
mas pode receber dela alguma coisa, e recebê-lo dignamente, com proveito
para o país e para as instituições liberais. Estas, na
sua fase de organização inicial, batidas pelos ventos de todos
os pontos do céu, necessitam fundamentalmente da paz, que se obtém
pelo concurso dos elementos conservadores; e a benevolência do mundo
religioso exprime o maior de todos os ascendentes sobre esta espécie
de simpatias. Desprezá-las, hostilizá-las, arredá-las
é brincar com um perigo.

A representação brasileira perante o Vaticano tem, portanto,
agora mais do que nunca, um papel necessário, tão discreto,
quão grave, tão profícuo, quão reservado. Se por
al não valer, valerá imensamente como expressão do gênio
benigno da República, da sua missão nacional. Quando o novo
regímen já não contar inimigos subterrâneos, e
a sua sombra se estender pacífica sobre o país, as duas esferas
prescindirão, talvez, desse contacto, Roma e o Rio de Janeiro não
necessitarão desse mediador. Mas, até lá, a República
precisa de ter uma voz junto ao chefe dessa sociedade espiritual, cujos limites,
entre nós, coincidem quase inteiramente com os da nossa consciência
e os da nossa sociedade.

O que cumpre, logo, não é extinguir a legação
do Vaticano, mas confiá-la a um patriota sem o ranço do velho
monar­quismo. Se a república encontrar escolhos na metrópole
da cristandade, se os encontra, se os tem encontrado, nossa é a culpa.
Por mais que nos queiramos abster de alusões individuais, há,
nesta época, inversões do dever público, a que é
preciso pôr o ferro em brasa. Não apreciamos: consignamos fatos,
dos quais há, entre nós, as mais autorizadas testemunhas. O
nosso ministro atual em Roma é esse mesmo diplomata, cuja presença
em São Petersburgo não permitiu que o governo da Rússia
nos reconhecesse, enquanto o do Brasil não se fez representar por outro
brasileiro. Na corte pontifícia o seu procedimento é análogo:
denunciando o princípio da liberdade religiosa em sua pátria
como um estado transitório, execrado pela nação, condenado
a desaparecer, logo que o povo tenha o governo de si mesmo, retratando as
instituições republicanas como um artefato efêmero de
uma revolução malfazeja, entretém no círculo papal
a dúvida, a prevenção e o descrédito contra nós.
Roma não conhece o Brasil novo senão por uma imagem falsa e
odiosa, pintada pelo nosso procurador oficial.

Com essas e outras almas do outro mundo a representarem a República
no estrangeiro, teremos sempre entre nós e a Europa essa região
de além-túmulo, onde os coveiros do império se ocupam
em reerguer tronos com a terra dos mortos, e assombrar o mundo dos vivos com
a mentira de seus fantasmas.

Jornal do Brasil, 3 de junho de 1893.

A ESPIONAGEM

O punhal de Calisto, o secreta, expediu duas mortes. Outras vítimas,
malferidas, curam lentamente, no hospital, os estragos do ferro assassino.
Quando as cutiladas cicatrizarem, é provável que na consciência
difluente desta sociedade digna de sua sorte, deste povo homogêneo de
seu governo, se haja desbotado a última impressão do escândalo
sangrento. O mecanismo da solidariedade oficial trabalhará então
sutilmente, para atenuar a responsabilidade ao serventuário público
imolado por uma exageração inoportuna das qualidades profissionais.
E o suor do contribuinte continuará a subsidiar a instituição
destinada a estripá-lo, num dia de azar, a qualquer canto de rua.

Não conviria, entretanto, que o fato mergulhasse de todo no esquecimento,
antes de lhe estudarmos ao menos os aspectos d’arte, que a sua fisionomia
revela. A mão daquele agente não é a de um loiraça
no ofício. A perícia magistral daqueles golpes, convergentes
sempre à região inferior do tronco humano, onde as entranhas
se oferecem sem o obstáculo do osso à faca do cortador, está
denunciando a competência do artista. O magarefe e o anatomista talham
na carne morta, inerte. O vivissector imobiliza primeiro a vítima na
banca do laboratório, para não errar o alvo no meneio da lanceta.
O cirurgião opera sobre o paciente insensibilizado como o auto­psista
no cadáver. Só o capoeira tem no punho a vibração
infalível da flecha contra o pássaro no vôo; só
ele disseca o homem vivo e livre na plenitude do movimento e da defesa, com
a certeira instantaneidade do escalpelo na mesa de anatomia.

Quando, porém, não bastassem, para confirmação
deste juízo, os caracteres da profissão, impressos nas circunstân­cias
do crime (crime, ou excesso de zelo?), aí estava, para acabar com a
dúvida, a navalha, o instrumento típico dessa especialidade
fluminense, encontrada nas mãos do matador.

De tempos a esta data há de ter notado o público que a capoeiragem
como que se despede de nós. Esse fenômeno coincide paralelamente
com a multiplicação do serviço secreto. Dir-se-ia que
influências benfazejas da ação policial contribuíram
decisivamente para esse resultado. De onde poderiam concluir os publicistas
oficiais que esses executores das proe­zas clandestinas da polícia
têm uma função providencial, como a do sapo, nos brejos
de hortaliça, contra certos animál­culos daninhos. Mas,
se considerarmos que não há notícia, até hoje,
de um rasgo de hostilidade por parte do secreta contra o capoeira, ao passo
que, por outro lado, o capoeira acaba de descobrir-se embiocado no secreta,
não será precipitada a inferência de que entre o capoeira
e o secreta houve apenas fusão, ou transformação evolutiva.
Um era a lagarta do outro. A ninfa deixou o casulo, transfigurada pela investidura
de uma dignidade útil. O navalhista empregou-se numa profissão
honesta, pôs a sua destreza ao serviço da ordem, e fez sociedade
com o Código Penal. É a política da conciliação
e do juízo. Duas potências andavam em rixa: o olho da Rua do
Lavradio e o cambapé do Largo de Santa Rita. Estão aliados na
paz da república. As praças esvaziaram-se; porque o merecimento
desses cidadãos, ingratamente retribuído e desconhecido noutros
tempos, passa a ser aproveitado agora em seguir a pista aos malfeitores de
nossa ordem. Ora graças que já um habitante desta capital pode
ter a certeza de que, se deixar um dia os intestinos na calçada, não
será por obra de algum réu de polícia.

Este consórcio tem a seu favor tradições históricas
da mais alta linhagem. Quem não conhece as glórias de Vidocq,
o célebre Vidocq? Vagabundo, histrião, desertor, falsário,
calceta, o famoso aventureiro acabou por oferecer os serviços à
ordem pública, no primeiro império, demonstrando, em grave memória
dirigida ao Barão Pasquier, que, “para descobrir ladrões,
é preciso tê-lo sido”. Acolhido pela administração
imperial, foi preposto como chefe à brigada de segurança. Mais
tarde, regressando à França os Bourbons, foi ele quem quebrou
a martelo as espigas que fixavam a estátua de Napoleão na coluna
Vendôme, e lhe amarrou os tirantes, que deviam lançá-la
por terra. Chefe de segurança em 1817, em remuneração
de tamanhos serviços, Vidocq comandava, em 1821, um corpo de agentes,
todos antigos galés, ou antigos hóspedes das penitenciárias,
como ele. E, ainda em 1830, o governo de Luís Filipe não se
desdenhou de utilizá-lo. Verdade seja que, dessa vez, os truques do
ofício deram no chão, em momentos, com uma vida inteira de espionagem
vitoriosa. Para demonstrar a imprescindibilidade de seu concurso ao prefeito
da polícia, Gisquet, — o dedicado sustentáculo das três
coroas que reinaram, neste século, sobre aquele país, fez tramar
um roubo por vários apaniguados seus, todos antigos habitantes das
prisões. Os salteadores foram presos, e o maquinador do crime agraciado
com o lugar de alta confiança, que cobiçava, à frente
da polícia reservada. Mas um dos seus instrumentos viu-se colhido na
rede, preso, condenado a dois anos de cadeia. O caso fez estrondo. A imprensa,
de mais a mais, maligna sempre, descobrira, e explorava umas parecenças
de mau efeito entre a cabeça do armador do crime e a do monarca. Vidocq
foi demitido, e um decreto, de 15 de novembro de 1833, dissolveu-lhe a brigada,
estabelecendo que ninguém mais poderia ser admitido ao serviço
policial sem boa folha corrida.

Já se vê que, rememorando este episódio, não podemos
aconselhar à república a imitação do precedente
Orléans, quanto à última parte: a resolução
imprudente, em que a autoridade abriu mão de um meio, tão necessário
aos povos morigerados e aos governos honestos, de fazer dos inocentes criminosos,
quando o bem público o exija. Uma polícia, que não disponha
de recursos eficazes, para desembaraçar limpamente o governo de seus
inimigos, é tolice. A república, entre nós, felizmente,
sabe repelir com horror os exemplos da realeza, quando eles podem ensinar-nos
os preconceitos vulgares da legalidade e da decência, e adotá-los
com sofreguidão, quando apadrinham abusos corajosos, ou escândalos
brilhantes. O modelo, portanto, cuja recomendação naturalmente
se colige das nossas escavações policiais, é o do sistema
Vidocq, nobilitado pelo consenso do primeiro império, da Restauração
e da monarquia de julho. Não queremos ir até à Nápoles
do rei Bomba. Não. Seria presunção quase irreverente
ao culto dos antepassados, de que podemos aproximar-nos, sem ter a imodéstia
de pensar em rivalizá-los.

Os secretas, já se vê, são de boa estirpe. A Constituição
não lhes permite foro de nobreza. Mas uma árvore de costado
regada pelas virtudes oficiais de tantas gerações de grilhetas
pode bem zombar das formas de governo, estendendo sobre todas a sombra indiferente
da sua proteção.

Jornal do Brasil, 11 de junho de 1893.

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