Obras Seletas – Volume VI

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Rui Barbosa

Prefácio

Ao planejar, em 1921, a publicação sistemática de suas
obras com o editor A. J. de Castilho, denominou Rui Barbosa Campanhas Jornalísticas
a série dos escritos de imprensa. Com esse título geral apareceram,
de fato, os dois primeiros tomos da Queda do Império, ambos com a indicação
geral de Parte Primeira.

Em esboço de seu punho, sem data, mas evidentemente anterior, sob
o título geral de Imprensa, planejou ele a publicação
dos escritos de jornal na seguinte ordem: “O fim do Império,
2 vols. —, a Ditadura de 1893, 1 vol. —, Dois anos de imprensa,
2 vols. —”, e “Folhas esparsas, 1 vol.” Partia nos
dois casos da campanha de 1889, relegando a um só volume os artigos
em jornais acadêmicos, oito anos do Diário da Bahia, os artigos
n’O País e a campanha nos “a pedidos” do Jornal do
Com­mer­cio em 1885.

Aliás parece que ele visava antes uma seleção que uma
publicação completa, porque mesmo a série então
chamada Fim do Império ficava reduzida a dois tomos, quando A Queda
do Império, iniciada em 1921, nos dois tomos aparecidos só alcançou
o mês de maio de 1889, e a campanha vai terminar somente a 15 de novembro.

O nome de Campanhas Jornalísticas parece assim que se ajusta a uma
coletânea de artigos como a presente.

A revisão dos textos coube ao professor Sousa e Silva, como nos tomos
anteriores, da Tribuna Parlamentar. A preparação geral das Obras
Seletas continua a cargo do técnico e bibliógrafo A. Simões
dos Reis.

Já estão em preparo os tomos seguintes: Tribuna Judiciária,
Tribuna Literária e Tribuna Popular.

A boa acolhida que têm recebido os tomos desta série bem justifica
a sua publicação paralela à das Obras Completas.

Casa de Rui Barbosa, maio de 1956.
A. J. L.

RADICAL PAULISTANO

A EMANCIPAÇÃO PROGRIDE

Quando a seiva do espírito público entra a derramar-se no gérmen
de uma reforma, é porque a Providência já a ­abençoou.

Nas épocas de incubação política como a atual,
em que a vontade popular vacila entre a antiguidade de um abuso arreigado
nas instituições e a santidade de uma idéia venerável,
ungida pelo prestígio da verdade eterna, cada receio que se destrói
é uma promessa, cada conversão que se efetua uma vitória,
cada ensaio que se tenta uma conquista.

Os princípios são invioláveis e imortais. Invioláveis,
porque têm como asilo a consciência, e enquanto eles se ajuntam,
gota a gota, no espírito dos homens para transformar-se na vaga enorme
das revoluções, não há lei que os reprima, nem
inquisição que os alcance.

Imortais, porque encerram em si, contra a ação corrosiva dos
preconceitos humanos, o caráter, a substância e a energia de
uma lei invariável, absoluta e universal.

O que, porém, determina principalmente a sua inegável supremacia
perante as concepções do interesse e da força, nas grandes
lutas sociais, o que deve desanimar sobretudo aos propugnadores do passado,
é o contágio irresistível de sua influência, a
virtude reprodutora de seus resultados e a inalienabilidade maravilhosa de
suas aquisições.

Enquanto a semente divina dorme no sulco, podeis lançar-lhe o sal
da maldição, podeis plantar-lhe em derredor a parasita insaciável,
podeis abafá-la com escolhos, negar-lhe o ar e a luz, o orvalho do
céu e as carícias da estação, os recursos da arte
e os desvelos do lavrador.

É simplesmente um embuste, porque a reação há
de ultrapassar os obstáculos, e a verdade germinará sempre,
mas é um embuste proveitoso para os interessados.

Tem sua razão de ser.

Os pobres de espírito que não percebem o desenvolvimento subterrâneo
da reforma, não acreditam sua existência*. É uma veia
abundante para os exploradores hábeis.

Ai deles, porém, ai dos refratários, quando uma só vergôntea
atravessar esses empecilhos!

Neste caso a resistência fecunda, a oposição consolida
e o contraste fortifica.

É a hidra invencível da fábula.

É a história da emancipação da escravatura entre
nós.

Outrora a escravidão pareceria fadada a perpetuidade neste país.
Falar em extingui-la seria uma blasfêmia. Fizeram-na esposar a lavoura,
cuidando uni-las para sempre. A nação tinha edificado a sua
fortuna sobre um crime, consagrando-o nos seus códigos como uma neces­sidade
social.

Hoje o princípio emancipador, difundido pela civilização,
lavrou por toda a parte.

Na Europa e na América desapareceu a escravidão.

Só nós alimentamos no seio esta ignomínia.

A pressão formidável das idéias cresce de dia para dia
em volta de nós como um oceano prenhe de tempestades.

No meio de tudo isto o que fez o Governo? Nada; absolutamente nada!

A fala do trono de 1869 é uma vergonha indelével. O Sr. D.
Pedro II, que em 1867 e em 1868 havia proclamado solenemente a urgência
da reforma abolicionista, que tinha celebrado compromissos públicos
com o país e com a Europa, que alardeava de todo modo tendências
humanitárias, vem rasgar aos olhos do mundo o único título
meritório com que até hoje podia ufanar-se o despotismo de sua
autoridade retratando com o silêncio todas as suas promes­sas para
envolver-se numa abstenção misteriosa e injus­tificável.

E ainda há quem diga que a emancipação neste país
não é questão de partidos!

Sim, não devia sê-lo.

Mas a índole mesquinha de nossa política tem convertido esse
reclamo da consciência nacional em arma de hostilidades.

Algum dia, quando a liberdade não for mais o privilégio dos
brancos no Brasil, quando a posteridade examinar os nossos feitos com o facho
da História na mão, a justiça dos vindouros há
de gravar na memória do Partido Conservador o estigma da reprovação
eterna, porque ele sacrificou aos interesses momentâneos do poder, o
interesse imorredouro da verdade; aos cálculos estéreis do egoísmo,
as necessidades imperiosas do futuro, e à pequenhez das considerações
pessoais os direitos inalienáveis de uma raça escravizada.

Não protesteis! Se a emancipação em 1867 e em 1868 era
tão urgente, que o imperador a mandava estudar pelo conselho d’estado,
e a consignava nos discursos da coroa como a necessidade capital do país,
invocando para ela a reflexão do parlamento, como é que de um
ano para o outro esta necessidade urgente e imediata torna-se tão secundária,
tão indiferente, tão remota que nem sequer merece ser mencionada
na fala do trono?

Felizmente, porém, há um preceito e um fato de observação
que nos animam.

O primeiro é que desde que a verdade chega a amadurecer com os acontecimentos,
cada embaraço com que trabalhamos por contrariá-la, é
um acréscimo de força para a sua multiplicação.

O segundo é o imponente movimento do espírito nacional que
vai-se formando lentamente no país.

A servidão em que temos vivido até hoje, a ausência completa
de animação política do país, tem-nos habituado
a desdenhar esses fatos, que, sob a modéstia de suas feições,
ocultam graves sistemas* de regeneração pública.

Ao nobre exemplo das províncias do Piauí, de Santa Catarina
e de Pernambuco, acaba de responder brilhantemente a província de S.
Paulo decretando uma verba de vinte contos de réis para a redenção
de crianças cativas.

Honra lhe seja!

Bem haja a assembléia provincial, que, neste ponto, soube entender
a sua missão! Bem haja ela, que assim acaba de penhorar a gratidão
de seus constituintes! Bem haja ela, porque assim amou a justiça e
serviu a causa da verdade!

Nós a saudamos em nome de nossos pais, cuja memória clama em
nossas almas pela redenção dessa iniqüidade tremenda a
que os arrastaram, em nome do país, que reclama constantemente o desagravo
dessa afronta, em nome do futuro, que se encaminha para nós, e que
será implacável se lhe deixarmos este legado de opróbrio,
em nome das idéias radicais, em nome da felicidade de nossos filhos,
em nome do evangelho que é a grande constituição dos
povos livres!

Nós a saudamos, em nome de Deus!… Num país descentralizado
este fato seria uma expansão natural das províncias, um acontecimento
regular sem significação precisa, sem alcance político,
sem resultados ulteriores.

Entre nós, porém, onde o Governo constitui-se pai, tutor, administrador
da província, do município, do cidadão, este fato encerra
um protesto expressivo contra essa minoridade perpétua que nos aniquila.

“A centralização administrativa é o laço
mais eficaz das nações pouco adiantadas, exclama o poder; o
que falta ao povo deve salvar* no Governo, para manter o equilíbrio
vital. Trabalhemos pela unidade administrativa: é a condição
fundamental da nossa existência.”

Bem: mas onde estão os efeitos benéficos deste sistema? Nas
finanças? Estamos exaustos. Na guerra? Não se pode conceber
direção mais infeliz. No funcionalismo? É o nosso maior
flagelo. Nas relações exteriores? Somos o ludíbrio de
todos os governos.

Que é da fecundidade tão preconizada com que legitimais a centralização?

Que reformas se promovem? que melhoramentos se estabelecem? que abusos se
extirpam?

O que diz, o que faz o Governo diante da grande revolução social
que nos está iminente, a supressão do trabalho servil?

Emudece.

O Governo deserta a causa da emancipação! Ele, que se inculca
como o civilizador, o mestre, o magistrado do país, acaba de renegar
a justiça, a verdade e a civilização!

E as províncias, eternas pupilas de seus administradores, é
que hasteiam a bandeira libertadora, a bela, e venerada bandeira da consciência
e da honestidade nacional.

Diante desta escandalosa contradição que homem de bem, que
alma patriótica será capaz de negar o influxo pernicioso da
unidade administrativa?

Convençam-se todos de que só há para o Brasil um meio
de reabilitação: é o sistema federativo, é a iniciativa
provincial. As assembléias de Santa Catarina, Piauí, Per­nam­buco
e S. Paulo demonstram, com o seu procedimento, a exatidão deste asserto.

Governe cada um a si mesmo: é a norma dos estados representativos
e dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Bélgica, da Holanda, da Suíça.

Ao lado, porém, desta reforma erga outra que esses mesmos acontecimentos
proclamam com a eloqüência respeitável dos fatos.

É o interesse urgente da emancipação. O Brasil, segundo
a expressão de Laboulaye no Congresso Abolicionista de 1867, o Brasil
está bloqueado pelo mundo.

O poder cruza os braços? Pior para ele; a torrente o destruirá.

A abolição da escravidão, quer o Governo queira quer
não queira, há de ser efetuada num futuro próximo.

Tal é a realidade.

Radical Paulistano, 25 de junho de 1869.

DIÁRIO DA BAHIA

PELOS ESCRAVOS!

ÀS SENHORAS BAIANAS

Aí vai já por mais de quatro anos.

Então muitas dentre as leitoras, resplandecentes hoje na sua expandida
formosura como as rosas de Casimira no luxo das suas cem pétalas, eram
ainda apenas feiticeiros botõezinhos, meio escondidos no verde cálix
dos seus onze anos, tímidos e sorridentes.

Nos longes da sua fantasia conjeturo eu que ainda agora poderiam vislumbrar,
transformada em visão remotíssima e indefinida, uma suave reminiscência
de certo dia de abril.*

O gênio irresistível da poesia pairava-lhes em torno, desprendendo
das asas, como pranto do céu, as harmonias da caridade; e cada gota
melodiosa daquele orvalho, recebida, numa alma, convertia-se numa pérola
de amor, numa carícia, num consolo para um grande infortúnio
vivo entre nós.

Assim contam lendas orientais que as chuvas do fir­ma­mento, acolhidas
nas conchas recônditas do oceano, cristalizam-se nessas lindas jóias
marinhas tão cobiçadas para adereço de belas.

Era Castro Alves, invocando pelos escravos a piedade civilizadora da mulher.

A inspiração, consciente da sua energia, emudecera nos lábios
do poeta a cadência embevecedora do verso.

Mas, na sua prosa, modulada como prece, ouvia-se gemer encantadamente a cítara,
como nas páginas do cantor de Cimodocéia, Atala e Renato.

Hoje desapareceu a musa; e o cisne voga além, para lá desse
lago azul em cujo seio Deus deixou a terra como esmeralda esquecida num invólucro
de safira.

As vibrações plangentes daquela súplica esparziram-se
no ar, confundidas à música infinita e perene da poesia, que
esses peregrinos do céu perpetuam na terra, como no murmúrio
das vagas, dos segredos imperceptíveis do zéfiro, do diálogo
incessante das árvores, da bulha misteriosa das folhas secas, dos gemidos
solenes da montanha, do chilrear dos pássaros condensa-se esse acordo
inefável e contínuo da natureza, que nos circunda, nos inebria,
nos vivifica, e nos domina.

Debalde o atrevido folhetinista de hoje apura toda a subtileza dos sentidos,
e tenta desentranhar de si faculdades ignotas, para colher no vôo um
tênue eco perdido dessa voz, que não ouvimos mais.

Ah que, se o pudesse, com que sofreguidão e que amor o não
fixara ao instrumento mudo e inerte da sua imaginativa!

Então levantaríeis a mão do teclado, ou deixá-la-íeis
cair insensivelmente sobre a costura; e, embebidos os olhos dessa umidade,
em que o êxtase envolve a pupila dos que cismam, fitos os ouvidos e
a alma, iríeis seguindo, sem cuidar, a repercussão dessa toada
longínqua, como haveis de seguir, em mente, ainda hoje, em muita hora
de saudade, a doce cantilena materna com que se vos embalou o berço.

Mas, já que não é com prestígios desta nossa
esfera que se hão de cativar os silfos esquivos e sussurrantes desse
outro mundo mágico, fiquem embora aí, em sua monotonia silenciosa,
as cordas prosaicas e terrenas, incapazes de módulos celestes.

Esqueçam o folhetinista, que não passa de um diletante, presumido
talvez, com certeza impertinente.

Deixem palpitar somente o coração das minhas circunstantes,
coro de harpas eólias que, ao resvalar do sopro indistinto e permanente
dos sofrimentos humanos, estremecem, ressoam e exaurem-se deliciosamente num
lamento de dor, de consolação e de fé.

Escutem.

Não é mais a uniforme surdina da aragem percorrendo melancolicamente
a planície nua, sem promessa de arbusto onde poise, baloice-se, e embeba
o frescor da sombra.

É o flutuar convidativo e poético da viração
num desses retalhos de terra verdejante, dispersos no deserto, onde há
a tépida atmosfera dos trópicos para conforto, arvoredo por
cortinado ao sono, e a nepentes com as suas flores e as urnas graciosas cheias
de água cristalina, furtada ao sol, para o forasteiro sedento.

É uma inenarrável sinfonia de almas comovidas que estala com
paixão magoada, quebra e adormenta-se como canto inspirador de sonhos
bons à cabeceira de doente amado, freme como a alegria em consciência
iluminada pela bondade, prolonga-se como um desses ósculos de casto
afeto em fronte de desconsolado esposo, e soluça, reprimindo-se, como
pranto interrompido e enxugado pela esperança.

Para isso mais não era mister que uma idéia, uma sugestão,
um toque, a rubrica deste folhetim, um instantâneo re­lan­ce
de olhos a essa enorme e secular desgraça do cati­veiro.

Deu o Onipotente à mulher a compleição da flor.

Não é uma galanteria às senhoras presentes.

Nesta figura, em que tanto se comprazem literatos e namorados, há
a expressão de uma verdade tão instintiva, que, numa das línguas
de Ásia, primitiva pátria do homem, mulher e flor se conhecem
por um nome só.

Flor de tanto mimo e mais melindre ainda que a sensitiva pudica e nervosa,
— à terrível lembrança dessa desventura incomparável,
que tem devorado gerações inteiras, desse milenário crime,
que desumaniza toda uma família de irmãos nossos, desse como
estigma de Caim gravado até hoje nas espáduas deste grandioso
país, — a esse pensamento de angústia, como se hão
de ter as frágeis criaturas divinas, que se não contraiam de
aflitas, inclinem-se de haste para o chão, e exalem-se no seu aroma
de inextinguível afeto?

Estão vendo, portanto, as benévolas ouvintes e o círculo
de mirones que aí ondeia por fora, sem convite, a invejar-me o auditório,
e espiar-me a palestra; estão vendo já que o folhetinista não
vem de mão estendida ao óbolo de generosidade por esses infelizes.

Fora mais que uma superfluidade: uma ofensa.

Implorar é antecipar-se à previdência do benfeitor, supri-la,
ter malsegura a confiança nela, na sua certeza, na sua prontidão,
na sua liberalidade.

Diante de Deus, sim, prostre-se o pecador, e ore; porque, se é bom,
é também severo; é pai, mas há de ser sentenciador;
é a misericórdia, mas é, ao mesmo tempo, a justiça.

Mas perante a mulher, por que os joelhos no pó, a postura súplice,
os olhos envergonhados?

Pedir-lhe é desconhecer nela a Providência universal do desvalimento
e da miséria.

Falar-lhe em esmola é pungi-la ingratamente.

A esmola é o esforço, a privação, o sacrifício.
Bela e bem fadada palavra, mas que não condiz senão àqueles
entre quem a abnegação é um acidente, ao sexo endurecido
no labor agro do mundo, em que a caridade é uma refletida conquista
do espírito sobre o interesse.

Mais sedutor, porém, ainda, e mais digno de bênçãos
o nome a que tem direito o sexo lindo; porque ele é a caridade mesma.

Não pratica a virtude; tem-na consubstanciada em si.

Não se desapega a mulher, como nós, por uma reação
violenta e dolorosa, da sua personalidade, para acudir ao desamparo: entrega-se
ao infortúnio alheio, e vive, identifica-se, medra nele, inteira, serena,
absorta, feliz. Mais constante que o relento benéfico da noite, não
tem alternativas a sua dedicação, ininterrompida como o ar,
o movimento e o calor. Não se queixa, porque não forceja; não
tem que resignar-se, porque se não constrange; faz o bem como nós
respiramos, como as aves trinam, como o sol irradia.

É, digamos assim, a sua função vital.

Dir-me-ão que deste modo, o nosso papel é mais he­róico.

Responderei que o delas é angélico, e, entre anjos e heróis,
pelos anjos será sempre o meu voto.

Não é, pois, esmolar para os cativos o que vim fazer; não
é nem as alvíssaras do festim libertador o que aspira o folhetinista.

Tarde chegaria sempre a notícia, por mais que se apressasse a pena;
que, onde surdiu ocasião de entornar bálsamo num martírio,
aí chegou, por instinto, antes de ninguém, a mão da mulher
com a ânfora da caridade.

Essa propriedade adorável infundiu-vos o Criador, como às plantas
a de pressentirem e adivinharem a luz.

Vai um experimentador implacável, toma um reben­tozinho viçoso,
nutrido de raios solares, e o consagra às trevas, nas profundezas da
terra, em alguma obscura escavação, onde passos de mineiro se
não afoitariam, sem a lâmpada salvadora de Davy, nem olhos de
nictalope descobririam vestígios de um reflexo luminoso.

Deixai atuar o tempo… Vereis o pobre vegetal supliciado, exausto e desbotado
de saudades do sol, crescer no meio da sua tristeza, estender dia a dia o
colo filiforme, despido e pálido; serpear; retrair-se diante dos obstáculos,
e marginá-los; sumir-se pelo chão, e ressurgir; dilatar-se persistente,
incessante, infatigável; subir, estirando-se pela parede negra da galeria;
apalpar-lhe as saliências; enfiar-se por algum interstício inexplorado,
longo, tortuoso, estreito; ­atirar-se, onde ninguém pensara, por
alguma fisga im­perceptível do solo; evadiar-se, afinal, através
do relvado, à prisão subterrânea; e, saudando, no seu
verdor mal corado ainda, as florinhas do campo, receber avidamente o primeiro
beijo dos esplendores do dia.

De sorte que trazer-vos novas da festa de 5 de setembro fora ingenuidade,
que uma delicada zombaria vossa, disfarçada num afável agradecimento,
puniria bem.

A malícia, transparente na polidez do sorriso com que havíeis
de acolher o apressurado, mas serôdio, noticiador, ser-lhe-ia para o
amor-próprio uma decepção mortal.

Todo o meu propósito, a minha audácia toda, pois, reduz-se
a querer estar assim convosco, praticando, na familiaridade inestimável
do sentimento, sobre a sorte dos míseros que tiritam no frio do cativeiro,
sob esta azulada abóbada, onde tantos astros quantas as minhas ouvintes
abrigam no regaço tesoiros de calor vivificante.

Dentre as pensativas circunstantes calculo eu não haverá uma
só, que, da sua varanda, não tenha muita vez festejado, a sorrir
de inconsciente admiração, a hora do despertar no céu
e na terra.

Abris, alvoroçada, a janela, por onde já vos andava de fora,
talvez, a aragem matutina a ciciar queixumes de lhe não terdes vindo
receber mais cedo as fragrâncias, com que por vós madrugou.

Na retina, de onde se vos vai apagando a última imagem dos sonhos
caprichosos, por entre as pálpebras ainda apenas a meio descerradas,
o matiz da paisagem espelha-se-vos, fulgindo como num aljôfar de orvalho.

A brisa embalsamada, a que franqueastes o recesso inspirativo de vossos puríssimos
segredos, passa-vos, brincando, pelos cabelos desatados, para ir deter-se,
entrando, amorosamente no travesseiro da criancinha adormecida; e o primeiro
raio travesso do sol vem descansar-vos de soslaio na fronte, como diadema
de uma realeza que não tem senão adoradores.

De ao pé de vós o jasmineiro, entornando-se de sua poisada
aérea, contente, no seu exílio, entre os vossos carinhos, arrasta
solta a sua vestidura verde, esmaltada de estrelinhas alvas, enquanto, mais
acima, no beirado de casa, empina-se a avezinha, lá do ninho temerário,
a gorjear, e a rir.

Parecer-vos-á então que desse panorama indescritível
não quis Deus que houvesse outros contempladores vivos, senão
vós e o alado músico da alvorada.

Mas não; iludis-vos.

A par desses dois mundos, num dos quais vive cantando o pássaro, e
no outro as minhas leitoras são rainhas, terceiro mundo aí se
vos está desdobrando aos olhos cheio de vida e mistérios como
o nosso.

É o mundo extenso, calado e solitário da vegetação.

Vive a planta, como nós, também, leitoras, ela que é
condição de nossa vida.

Como nós, nasce frágil, sôfrega do seio materno; cresce
entre beijos e afagos, como vossos filhos; tem sede de seiva e de luz; respira
e decompõe o ar como os pulmões humanos; sente, deseja, e sofre;
luta pela existência com a tenacidade imperiosa do instinto animal;
estremece de amor em sensações desconhecidas, e reproduz-se;
refaz-se no sono das noites; ergue-se jubilosa, ao alvorecer; cora apaixonada
ao brando contacto das auras tropicais; definha entre as brumas; ao ardor
do areal estala sequiosa; na sombra, empalidece; e à tarde parece que
devaneia.

Quer mais o meu auditório?

Pois vou apontar-lhe ainda outra região de criaturas animadas, em
cuja parecença conosco bem raro atenta o homem.

Leitoras, no meio do campo luxuriante, vede a senzala nua e esboroada.

Sob esses tetos há um mundo, que vegeta, como a planta vive; entes
que têm paixões, filhos, enfermidades, agonia e morte, bem que
não conheçam pátria, nem noivado, nem lar, nem olhos
chorosos sobre o túmulo.

Um e outro, o vegetal e o escravo, elaboram-nos o pão; um e outro
consomem-se por nós; de um e outro somos os soberanos.

Todavia, nem num, nem noutro, podemos, podeis, empregar o nosso, o vosso
amor.

Porque o amor é a identificação, a unidade; e entre
eles e nós há o abismo do espírito, da liberdade que
lhes falta.

Notareis apenas que, no reino silencioso das plantas, consentiu o Onipotente
os efeitos prismáticos da luz, a folhagem viridente, a flor de cores
festivais, os pomos de oiro.

A multidão cativa, porém, traz nas carnes inviolável
luto.

Dir-se-ia o manto imóvel de um féretro sem ouropéis.
Féretro de um povo.

Sabeis a narrativa evangélica de Lázaro e Jesus.

Pela caridade, pela origem comum, pelo comum destino, sois, como Maria, irmãs
dos que em vida aí jazem na sepultura da escravidão.

Uma palavra, uma emoção fraterna, um olhar de ternura, e…
quantos não serão redivivos, abençoando-vos?

Leitoras, antes que me increpem, acusar-me-ei eu ­próprio.

Essa comparação minha é uma injustiça ao Criador
e uma complacência imerecida, com os homens.

Negou o Senhor à planta a têmpera do pensamento e da vontade
livre; mas influiu-lhe gozos, belezas e privilégios encantadores.

Nós descoroamos da liberdade aos que de Deus a houveram sacrossanta,
e com isso os abatemos ao ínfimo grau da escala criada: até
abaixo do reino vegetativo.

Segue o heliotropo, com afetuosa perseverança, desde o dardejante
oriente ao poente rubro, o curso do sol esplên­dido.

Ao escravo, porém, onde fica o astro da sua vocação?

Sensível como virgem, a mimosa dos prados foge, ­assusta-se, desfalece
ao nosso contacto, ao simples hálito ­nosso.

Mas a mulher cativa quem lhe deu o direito da pureza?

Pendente do caule, a desmódia oscilante balanceia-se, contando insofrida
os segundos, com a certeza de um pêndulo, como alma impaciente pela
ventura que tarda.

E o escravo esqueceu até o dia do nascimento, porque todos os seus
dias são iguais.

Nada a valisnéria faceira e florida à tona do lago plácido;
o esposo, abismado nos seus desejos, preso ao álveo, sob a água
diáfana, acaricia-lhe os pés; é vinda, enfim, a cálida
estação das núpcias; quebrou a flor masculina os vínculos
da sua timidez; despega-se do fundo; alteia-se; emerge; enlaça voluptuosamente
a corola à desposada gentil; e a flor, mãe, despreza o toucado
e as galas, para se engolfar no retiro cristalino, onde vá desvelar
tranqüila o fruto, o mimo, o prêmio dos seus amores.

Leitoras, quem deu à escrava amores impolutos, fecundidade bendita,
solitária obscuridade doméstica? à escrava, para quem
é ignomínia a maternidade, que vos santifica?

Vede a folhagem risonha do laranjal. De dia é toda oxigênio,
que aviventa, e perfumes inofensivos; de noite sob essas exalações
balsâmicas insinua-se o carbono, que as­fixia.

Assim o homem.

Banhado nas ondas luminosas da liberdade, fertilizará o globo.

Reduzido, na opressão, às trevas, encherá de morte em
derredor a atmosfera empobrecida.

Há nada mais inocente que o lírio amorável dos vales?

Entretanto, povoai deles, à tardinha, a alcova, e… bem pode ser
que não acordeis mais.

Também no escravo está deposto o gérmen fragrante da
virtude. Por que é, pois, que a sua convivência vos empesta o
ambiente do lar?

Leitoras, restituí os coitados ao ar livre, e a sua vizinhança
já não vos há de aterrar como a de pântano estagnado:
desprofanareis o santuário do amor conjugal; restaurareis a obra divina;
expiareis o nosso atentado.

Lembram crenças populares da Índia que divindades gigantescas
e cruéis pelejaram contra as peris, etéreas criaturinhas do
paraíso, mantidas da essência das flores, e, depois de as vencerem,
as dependuraram em prisões de ferro à ramaria de árvores
altíssimas.

As míseras prisioneiras viam de longe os cômoros vicejantes,
as borboletas, os nenúfares, e finavam-se no suplício atroz.

Leitoras, em cada cativo há também uma alma, enca­dea­da,
a espreitar lá de dentro a bem-aventurança da liberdade nos
outros.

Aqui as Divas sois vós: uma inflexão do vosso olhar, e triunfareis
dos opressores, envergonhando-os.

Sereis então semelhantes a Deus.

Perdoem-me as ouvintes bondosas; não é tentá-las como
a serpente bíblica.

Se entrarem, recolhidas, em si, advirtam que hão de ouvir talvez essa
tentação, mas… do seu anjo da guarda.

Leitoras, é para um leilão que vos convidam.

Ora que, se não fosse puerilidade brigar por um nome, sempre me havia
de enfadar aqui muito com os meus bons amigos, os abolicionistas, por esse
malsoante batismo.

Verdade é que à míngua de outro…

Acerquem-se as senhoras, sem medo, que não vêm assistir a nenhuma
almoeda mercantil, a nenhuma feira de compra e venda.

Estas prendas não têm preço. Cada uma, no convívio
emancipador, é o símbolo de uma ação boa. Quer
dizer: vale todas as opulências da terra e as recompensas infinitas
do céu.

Cada uma é uma bênção.

Mãe, que vos revedes na meiga gentileza da filha, aquele ramalhete
de madressilvas agrestes, que ela anda, ali na mesa, a namorar, de ambiciosa,
assentava-lhe tão bem! Parecem-vos mortas? Mas reparai que são
recendentes e orvalhadas: recendentes da mão de fada que as teceu;
orvalhadas do suor de amargura, que hão de estancar ao escravo redimido.
Onde lhe achareis outro enfeite assim, virgíneo e celestial?

Noivo, que, sem dúvida, antes de mim advertistes já na insistência
de certos olhos fascinantes, repartida ali entre os vossos e o primorzinho
artístico daquele beija-flor de plumagem vivaz e cambiante como as
vossas esperanças, por que não há de ir ele, por vós,
poisar nas tranças daquela amável invejosa? Que mais auspicioso
agoiro para vossos amores?

Pai, que aí vos estais distraído no filho, a quem o colorido
cintilante daquele brinco infantil cativou os desejos, — se o preço
dessa inocência do pequenito fosse a ressurreição de um
espírito?… Se um dia lhe pudésseis referir que um capricho
de sua puerícia fora a salvação de um opri­mido?

Ah! que afinal agora sou o penitente ante os meus patrícios da Libertadora…
Excelente razão tinham, para olhar tão pouco ao nome, quando
a cena enfeitiça assim.

Feito era do folhetinista, se não estivesse agora entre filantropos!

Refletisse mais, e vira que feio nome e ignóbil coisa era cruz, e,
contudo, tem para terra o vulto sublime do Cristo e dois braços de
paz estendidos sobre o gênero humano.

Sabem as perspicazes interlocutoras desta minha conferência que, dentre
os muitos apanágios e licenças de que dispõe o folhetinista,
a menos lisonjeira não é a da curiosidade impune.

Do álbum que a mão vos folheia inscientemente, enquando a vossa
atenção me está honrando, que de sedutoras criaçõezinhas
do pincel e do lápis a avara modéstia da artista me vai escondendo!

Flores e pássaros; perfis de moças e crianças; ovais
de cabeças românticas e cismativas; lábios como corolas
de rosas úmidas na antemanhã; cílios baixos como véu
de ligeira obscuridade em enseada límpida e azul, ou erguidos a entremostrar
a alma; um encontro, uma despedida; uma vindima rumorosa, uma seara ondulando
ao vento, um partir de madrugada para o trabalho em herdade campestre, um
volver com a colheita à noitinha; algum correr de cães na floresta
ao encalço de gamo perseguido, ou malogro de caçador, mirando
ao longe a lebre, que lhe salta de ao pé; um ermo à beira-mar;
um campanário sozinho entre serros como saudade em coração
despovoado; uma encosta com o seu moinho de leques rodopiantes; o baixar manso
da sombra à tarde pela montanha; o clarão da lua cheia a desoras;
o oceano gemente, deserto, com as suas fosforescências brilhantes e
alguma vela no horizonte como alcíon boiando…

Ah! leitoras, a minha indiscrição contraria-vos…

Pois negai-me embora o repertório das vossas horas vagas; arrecadai
também na cesta os prodígios da agulha milagrosa.

Para daqui a três semanas vos empraza o folhetinista, e, daqui, à
fé de vossa caridade vos juro que esse tesouro de violetas, recatadas
agora assim pertinazmente, lá se achará todo semeado, à
luz pública, entre as oblações à redenção
dos cativos.

Não será, pois, às leitoras, mas a eles, aos vossos
protegidos, que hei de agradecer o suspirado enlevo dessa exposição
de maravilhas.

Apenas, se as circunstantes devassarem então o incógnito do
folhetinista, não se ressintam da malignidade com que saboreará
essa revelação da vossa mestria, recusada hoje à minha
cobiça, e aos vossos escrúpulos mais tarde imposta pelos vossos
bons corações.

Diário da Bahia, 15 de agosto de 1875.

DOIS DE JULHO

Nas festas da liberdade e do povo, o lugar de honra pertence indisputavelmente
à verdade. Nos grandes dias comemorativos da pátria, a maior
das homenagens a ela é, sem dúvida nenhuma, a sinceridade austera
do dever.

Quando esta cidade, amanhã, tomar, em saudação reconhecida
à gloriosa memória de nossos maiores, as últimas pobres
roupas de festa que a sua decadência lhe permite, e de cada uma das
almas que abriram os olhos à luz da vida no berço desta risonha
natureza o prestígio das tradições populares esprema
ainda a amortecida e extrema seiva do antigo fervor, que as provações
da atualidade não tenham de todo extinguido na expansiva e generosa
compleição deste povo, a imprensa liberal não deixará
de associar-se, fraternalmente, à pureza e à elevação
deste sentimento, cuja flama benfazeja teve energia bastante para atravessar
tantas amarguras públicas sem apagar-se.

Nessas belas manifestações, impregnadas de tanta poesia e de
reminiscências tão caras a todos os filhos desta terra, vimos
e veremos sempre um princípio de espontaneidade­ popular, que,
num país cujo vício, não diremos cons­titucional,
mas crônico, é a inércia, cumpre nutrir e desenvolver
zelosamente; vimos e veremos sempre essa fidelidade da gratidão às
legítimas glórias nacionais, que entre as nações
livres é um sinal da sua dignidade, e nos povos oprimidos um desmentimento
às pretensões da tirania.

Quando tudo o que era eminente se vai arruinando, e tudo o que impunha respeito
desmoraliza-se, esse culto do passado pode ser um protesto inútil contra
o presente, uma aspiração eficaz para o futuro, um elemento
de vida, de regeneração, de progresso; e entre os infortúnios
que se desfecham tantos e tamanhos, uns após outros, como golpes de
um acinte infatigável no mal, sobre este desventurado país,
suave é o refúgio dessa consolação oferecida pelos
fastos de uma época heróica aos que padecem e esperam contra
a aridez e a corrupção de nossos dias.

Não deixemos prescrever esse formoso costume de nossos antepassados.
Preservemo-lo como um dos raros indícios perceptíveis hoje da
juvenilidade de uma nação que as degenerescências de uma
senilidade aparente, fruto do estragado regímen administrativo que
nos esmaga, extenuam e afligem. Sintoma de uma virilidade sopitada, mas robusta
nas suas disposições latentes, essas ovações póstumas
da geração atual aos lidadores que cimentaram com o próprio
sangue a inauguração de nossa existência independente,
demonstram pelo menos as íntimas simpatias, as afinidades indestrutíveis
deste povo com a têmpera varonil dos que, com ele e por ele, tiveram
fé, combateram e triunfaram no direito.

Mas não consintamos também que entre as explosões dessa
imponente comemoração, entre o tumulto e os risos desse desafogo
festivo, buscado nas reminiscências de uma data imortal, contra a mesquinhez
e os dissabores desta idade, perca-se esquecida a lição enorme
das calamidades que nos cercam, emudeça a voz de nossa consciência
envergonhada nas horas calmas da meditação e do trabalho.

Um povo digno de dominar os seus destinos, de ser indisputadamente senhor
de si mesmo, não delira, não se atordoa, não fecha os
olhos à realidade severa da sua posição. Nas horas mais
frementes do regozijo, quando a imaginação e o entusiasmo dourarem
das suas irradiações os feitos de nossos pais, ouçamos,
cada um no seio de sua alma, o murmúrio do sangue deles em nós,
e lembremo-nos de que o primeiro de nossos deveres filiais, tanto quanto a
maior de nossas obrigações patrióticas, é igualá-los
na independência, na tenacidade, no amor do torrão natal.

Entre os esplendores e as harmonias dessa inocente, querida e confortadora
solenidade, recolhamo-nos uns instantes à obscuridade silenciosa de
nosso senso íntimo. Se a voz dele tivesse, neste país, esse
grande eco exterior, esse sopro criador e onipotente, que em terras mais felizes
se chama opinião, e rege o mundo livre, grande risco teria que correr
o júbilo dos nossos lares, e das nossas ruas, de que o turvasse uma
imensa tristeza; porque essa vibração coletiva das nossas consciências
seria asperamente exprobradora, e havia de lembrar-nos verdades cruelmente
amargas.

Ela nos recordaria que essa emancipação, cujo aniversário
vamos celebrar, esterilizou-se e degenerou em frutos de opressão e
miséria.

Vossa fraqueza, diria, deixou conspurcar, anular, explorar contra vós
a herança de vossos ascendentes. As instituições que
o patriotismo deles implantou neste solo como árvore sagrada, a cuja
sombra se acolhessem sucessivamente as gerações de sua descendência,
por culpa vossa fenecem incultas em mãos de especuladores de todas
as classes, de todas as graduações, de toda a espécie
de cometimentos reprovados; e delas já não há mais do
que ruínas, simulacros e reminiscências, cada uma das quais é
uma increpação indelével contra os sucessores descuidados
e desamorosos de seus pais, que deixaram malbaratar-se o cabedal da grande
família comum. Ferida a liberdade nas suas partes vitais, inválida,
impotente, tudo havia de perder-se como se perde sempre com ela, o vigor,
a consideração, a fortuna. As opulências inexauríveis
de nossa natureza não podem já ensoberbecer-vos: humilham-vos.
Cada uma de vossas irmãs, primogênita das formosas do Cruzeiro,
é uma indigente entregue a uma tutela de pródigos, devorada
de dívidas, cativa de mil credores, coberta de farrapos que já
não se disfarçam. Intelectual, moral e economicamente, tudo
a olhos vistos, decai. Vós mesma, gema ridente do Norte, briosa província
que nunca recuastes da vanguarda entre os melhores na paz e na guerra, vede:
a vossa maternidade inesgotável de talentos, de heroicidade e de civismo
não vos salva da depressão, do arruinamento geral. O termômetro
do vosso futuro baixa rapidamente.

O funcionalismo voraz, a afilhadagem insaciável, a multidão
infinita dos impostos paira sobre vós, ceva-se da vossa vida, apascenta-se
na vossa pobreza crescente. Vossa própria capital, a pérola
ridente do Norte, traz já impressa na fronte, sensível a todos,
a sombra das aflições públicas: seus edifícios,
seus institutos, o ar mesmo de sua população, tudo exprime fadiga,
velhice, miséria, desmoronamento. Amai e relembrai as grandezas de
vossos avós; mas o que eles foram por vós, não vos esqueça
que deveis sê-lo por vossos descendentes. A memória inextinguível
dos que vos criaram e legaram a pátria emancipada não quer o
culto de um estéril entusiasmo. Enquanto eles vos herdaram desbravado
e semeado o terreno para a liberdade constitucional, não o vades transmitir
aos vossos filhos, aos netos de vossos pais, extenuado, empobrecido, aridificado
pela servidão. A cautela do absolutismo é o vosso flagelo, o
vosso abatimento, a vossa morte inevitável. Conquistai pacífica
e legalmente, pois, o uso das instituições liberais, reassumi
a vossa soberania constitucional, ascendei ao governo de vós mesmos,
e sereis felizes moralizados, invencíveis; sereis dignos do céu
que vos cobre, da natureza que vos circunda, da história que vos precede.

Esta a linguagem da consciência universal, a linguagem dos fatos e
do bom-senso. Queremos que seja a nossa, desagrade embora.

Para uma festa, ainda assim cremos que não destoará. São
flores também. São as flores agrestes, mas puras da verdade.

Vão melhor as alegrias populares do que as galas mentidamente risonhas
de um otimismo falso.

Quando das grinaldas patrióticas as outras houverem murchado, estas
ficarão, porque a sua vida não é de um dia, como a dos
jardins, é eterna como a liberdade, que elas coroam.

Em torno deste emblema, sim, podem reunir-se dignamente os nossos concidadãos.
Por ora é apenas uma imagem: pode ser uma realidade, quando eles seriamente
o quiserem.

Diário da Bahia, 2 de julho de 1877

O PAÍS

ARTIGO-PROGRAMA

Por menos acreditados que estejam na vida pública os programas de
todo o gênero, não há, contudo, armar tenda entre as fileiras
mais ativas da imprensa, sem começar por dar conta aos nossos juízes
da vocação ou do pensamento a que obedecemos.

Num centro de civilização como este, onde a opulência
intelectual da nossa pátria se reflete por tantas faces e tão
brilhantemente no jornalismo, em órgãos que honram o país,
a nossa espontaneidade seria uma ousadia, se o lugar que reclamamos não
fosse apenas o de modesta colaboração entre os mais humildes
trabalhadores na lida obscura de repartir manhã por manhã o
pão do espírito, em pequeninos, ao círculo dos que lêem
e meditam.

O País não traz à arena das lides pelo bem geral pretensões,
nem malquerenças, preconceitos, nem intentos reservados. Não
o anima, tampouco, interesse algum, ainda mesmo de qualquer das classes sociais,
que não se confunda com os interesses comuns desta esperançosa
nacionali­dade.

O seu empenho preponderante consiste em estar em comunicação
íntima com as necessidades mais inteligentes e as idéias mais
progressistas da nossa época; em pugnar pelas mais adiantadas aspirações
do povo e pelas exigên­cias mais liberais do nosso futuro.

Sem esquecer que, entre as nações, como esta, onde tão
atrasada corre a educação do espírito popular, a opinião
há de ser, até certo ponto, obra da imprensa, é, todavia,
nosso especial propósito fazer, quanto possível, da nossa folha
um espelho leal das impressões públicas de cada dia, em presença
de cada acontecimento, de cada idéia, de cada problema.

Claro está, pois, que entre nós e as parcialidades militantes
não há liames de espécie alguma, aparentes ou recônditos,
próximos ou remotos. Não é que não compreendamos
a utilidade política dos partidos e a necessidade social da política.
Dela e deles é uso, muita vez entre os que fazem profissão de
imparcialidade, malsinar como de excrescências passageiras no organismo
nacional ou explorações mais ou menos hábeis do Governo
a benefício das classes que especialmente o requestam. Não participamos,
porém, deste erro, que a superficialidade, ou a ignorância gera
e divulga.

Enquanto o regímen parlamentar for, como até hoje, a mais perfeita
expressão da inteligência humana aplicada à administração
das sociedades civilizadas, os partidos, que constituem a alma desse regímen,
continuarão a ser necessidades nacionais da ordem mais elevada. A causa
das inconveniências que se lhes costumam atribuir não é
à existên­cia deles que se liga, mas à sua degeneração,
incons­ciência e fraqueza.

Destarte, pois, fora dos partidos ainda se nos abre vasto espaço ao
exercício da atividade patriótica no jornalismo, onde eles carecem
de órgãos, mas também de aquilatadores e fiscais.

Este é o nosso ponto de vista: seguir, com indefessa vigilância,
sem disposição preconcebida, a vida política e social
da nação, praticando, não a falsa imparcialidade, que,
por medo, ou pessimismo, se traduz numa espécie de maledicência
convencional, em um sistemático descontentamento, mas a imparcialidade
verdadeira e isenta, que diz o que pensa, agrade, ou desagrade à oposição,
ou governos.

Ao desenvolvimento do bem, não menos funesto do que o otimismo, com
as suas miragens e falácias, é o pessimismo habitual, com as
suas leviandades e cruezas. A veia epigramática tem a sua função
essencial na imprensa; mas não há de ser a grande artéria
desse organismo. Diante de tudo quanto respeitável for, nos homens,
nas instituições, nas tradições e nos princípios,
buscaremos lembrar-nos sempre de que o jornalismo, por isso mesmo que é
uma exigente escola de crítica, há de ser uma escrupulosa escola
de respeito.

O curso do espírito reformista no país acelera-se atualmente;
e convém acelerá-lo. Atravessamos uma agitada fase de transformações
e recomposições, em que o meio de servir aos interesses da ordem
é abraçar com lealdade e con­fiança a causa das reformas
refletidas, mas francas. Honremos a índole progressista do nosso país,
revelada pelo curso da sua evolução em sessenta anos, não
tão acanhada, como alguns afiguram, se considerarmos nessa fatal inferioridade
imposta pelas leis absolutas da natureza a toda a comunhão possuidora
de escravos.

O País tem a sua origem no comércio; nele assenta particularmente
o apoio das simpatias a que deve a sua existência; com ele se honra
de associar-se na devoção aos eminentes interesses nacionais
que essa nobre classe representa. Os assuntos, portanto, que tocarem, por
esse lado, à prosperidade pública, conseguintemente os assuntos
econômicos, agrícolas, industriais, terão, em nossas colunas,
o lugar de maior distinção, sem omissão, todavia, nem
menospreço, das questões que pertencem à esfera moral,
à cultura da nossa mentalidade, à ciência, à literatura,
ao ­gosto.

Discutir os negócios provinciais, cuja gravidade merecer a atenção
do país, é um dos nossos intuitos mais gratos. Das províncias,
pelo comum, tirante as ocorrên­cias capazes de alimentar curiosidade
ou os enredos eleitorais, com que os partidos reciprocamente se enxovalham,
rara notícia tem a capital, que as centraliza, para, em geral, esquecê-las.
Por mui felizes nos daremos, se pudermos­ contribuir para agitar aqui
o exame das matérias impor­tantes desta ordem, promovendo esse
vínculo de simpatia entre elas e a corte.

A publicidade de que dispusermos, oferecemo-la desde já a todos os
homens de talento e patriotismo. O País prezar-se-á de honrar
o seu nome, abrindo campo a todas as opiniões desinteressadas, tolerantes
e inteligentes.

Encetando a sua carreira rodeado de adesões que já lhe ultrapassam
largamente a expectativa, cumpre-lhe agradecer a benevolência dessa
ampla cooperação, que o favorece, de espíritos superiores
em tantas esferas da experiência e do saber.

Dessa coadjuvação, a que diligenciaremos corresponder, ao menos
com a inteireza de ânimo, a coerência de espírito e a firmeza
de propósito; da benignidade pública, tão generosa no
seu gasalhado para com todas as tentativas úteis; dos conselhos dos
nossos confrades na imprensa, tão habituados a alentar os fracos e
guiar os inexperientes, — deste tríplice auxílio fiamos
o nosso destino, e esperamos a eficácia dos nossos esforços
pelo engrandecimento da nossa terra.

O País, 1 de outubro de 1884.

O BEZERRO DE PALHA

Não faremos praça de devoção aos agricultores.
O zelo pelos interesses da lavoura, que, bem entendidos, não vêm
a ser mais que um aspecto dos interesses gerais da pátria, queremos
exercê-lo sem alarde, com a sinceridade e isenção de amigos
leais.

Por isso timbraremos em não lisonjear-lhe preocupações,
que a arte da estratégia política se empenha em alimentar, sempre
que se trata de classes poderosas, cujos hábitos de sossego a solução
iminente de um grande problema vem momentaneamente perturbar.

Num país onde a indústria do cultivo da terra tem a vasta preponderância
que entre nós, a lavoura constitui uma força incomparável,
que as conveniências políticas da atua­lidade, interessadas
em mudar a ordem de cousas existentes no Governo, se esmerarão naturalmente
em propiciar, antes acariciando-a, do que dirigindo-a. De bom conselho é,
pois, que ela se ponha de sobreaviso contra os afagos de quem emprega toda
a sua habilidade em não contrariar-lhe, de leve sequer, as predisposições,
indigitando-lhe como inimigos todos os que não conspiram na mesma linguagem,
e falando-lhe só aos sentimentos, como o medo, que impossibilitam a
serenidade de espírito, e toldam a limpidez da razão.

O pânico terror adensado, em 1884, no ânimo dos proprietários
rurais pela fraseologia dos agitadores políticos, é a quarta
edição das tempestades de retórica trovejadas em 1831,
em 1851, em 1871, a propósito do mesmo assunto, e em proveito dos mesmos
interesses.

De cada vez que, do lado do futuro, se projeta no horizonte a questão
servil, a ruína da lavoura começa a anun­ciar-se entre gemidos
e vociferações. A grande propriedade, sobressaltada, presta
ouvidos, mais ou menos crédulos, ao alarido profético dos terroristas.
Não obstante, a energia evolutiva do direito, cuja torrente a resistência
mal aconselhada avolumou, represando, acaba por triunfar. A reforma efetuou-se.
Todavia o novo regímen, criado por ela, em vez de aniquilar, prospera
a fortuna agrícola.

Se a tranqüilidade e a satisfação, restituídas
aos espíritos pela influência pacificadora da reforma, não
levassem a esquecer as predições infaustas da véspera,
solenemente desmentidas pela realidade do dia seguinte, o artifício,
descoberto e gasto, estaria desmoralizado para sempre. Infelizmente não
é o que tem acontecido. A experiência dos presságios malogrados
não precata as vítimas do engano contra a reprodução
do estratagema. A prosperidade e o descanso, fruídos à sombra
da reforma, e graças a ela, desluz-lhes rapidamente da memória
as tintas de horror, com que pouco antes os exploradores se compraziam em
futurizar-lhe os resultados. O instrumento de aliciação política,
que dir-se-ia olvidado, estragado, inútil, não perdeu nada o
prestígio para novas hostilidades contra medidas da mesma natureza.
Ponto é dar-se ocasião igual. Vê-lo-eis operar prodígios.

Mas nunca esse ludíbrio urdido pela má política em prejuízo
dos interesses reais da lavoura foi tão mal encoberto como agora. Nunca
a ilusão foi tão calva. Nunca foi tão fácil à
propriedade agrícola desenlear-se da trama peri­gosa.

Compreende-se o seu erro, a facilidade da captação de que ela
foi objeto em 1831. Era então o primeiro grito da humanidade contra
a instituição maldita. Congênita, por assim dizer, com
a nossa nacionalidade, ela parecia-lhe consubstancial. Ninguém ainda
ousara tocar-lhe. Apenas a voz de alguns raros videntes patriotas denunciava
ao longe, no oriente, o ponto negro do problema. Habituada ime­mo­rialmente
a ver nas areias inesgotáveis da África o empório das
suas máquinas de trabalho, a classe afortunada era natural que não
concebesse outra organização econômica. Estancar de repente
esse manancial devia afigurar-se-lhe um crime contra a ordem, um ato de revolução,
a decretação da indigência geral.

Em 1851 a situação não era mais clara. O afluxo torrencial
do contrabando, que, em vinte anos, introduzira criminosamente em nossas plagas
não menos de seiscentos mil cativos, agravara a pujança dos
interesses envolvidos na subsistência da escravidão; e a ostentosa,
a escandalosíssima violação dos tratados e da lei de
7 de novembro devia ter reforçado profundamente, entre os proprietários
territoriais, a persuasão da estabilidade, da invencibilidade, da necessidade
do elemento servil.

Em 1871 não podia deixar de ser grande o alvoroto entre os interessados.
O projeto do gabinete 7 de março atacava a escravidão, não
extrinsecamente, defendendo-lhe reabastecer-se em regiões longínquas,
mas intrinsecamente, fechando-lhe, no seio da raça oprimida, a fonte
renovadora do nascimento. Ainda então parlamentares e jurisconsultos
eminentes podiam sustentar que o filho do escravo é tão propriedade
do senhor como os seus progenitores. A proposta Rio Branco, tornando ingênua,
como a dos homens livres, a prole do cativo, era a primeira negação
legislativa desse caráter de propriedade ligado à escravidão,
na jurisprudência civil. O golpe era atordoador. O espírito da
lavoura não estava preparado para o abalo. O desconcerto, a cólera,
o clamor eram explicáveis.

Hoje todos os prestígios e espectros se dissiparam. A agricultura,
três ou quatro vezes espavorida sob as ameaças de destruição,
não cessou de medrar. A propriedade servil pode ser formalmente negada,
em 1867, no Conselho de Estado, pelos projetos do Sr. Barão de Muritiba;
em 1871, no parlamento, pelo parecer da comissão especial, em uma câmara
conservadora.

Para que a lavoura, pois, acabe de desoprimir-se do pesadelo, basta-lhe atentar
na fisionomia atual dos partidos.

Quem se opõe à reforma?

Há, é certo, desse lado, grupos republicanos, que julgam fomentar
o ideal da república, privilegiando a coroa com a honra das reformas
que mais nos dignificam ante o mundo e o século. Há, entre os
liberais, a parte ingênua, esquecediça, que se desagregou da
imensa maioria dos seus correligionários, repudiando a bandeira de
1869, onde se inscrevera, entre os compromissos imediatos do partido, “a
libertação gradual das gerações presentes”.
Há, entre os conservadores, um núcleo de intransigência,
que quase exclusivamente se compõe de proprietários ou aderentes
diretos à grande propriedade por dependências eleitorais.

Mas a maioria da opinião conservadora como pensa?

Enquanto deliberava o parlamento, e era possível conquistar o poder
sem compromissos, e presidir as eleições gerais sem indisposições,
ninguém lhe devassou o sigilo. Enquanto se pleiteava no Rio de Janeiro
a eleição de senador, a mesma impenetrabilidade rodeava esse
mistério. Agora, porém, um chefe do partido, aclamado pontífice
por outro chefe, rompe o véu do segredo, entregando aos aplausos do
país esta declaração patriótica: “O Partido
Conservador quer, deve e pode ir além da lei de 28 de setembro”.

Este lema sanciona a reforma, e perde-se nas regiões do desconhecido.

Ainda acreditará a lavoura que a reforma seja a sua perdição?

Há, entre as populações rurais da Escócia, um
costume singular que os partidos políticos parecem ter parodiado em
algumas das suas artes. Quando a teta, mungida com insistência, recusa
ao campônio o leite saboroso, um couro de novilho, ajeitado e recheado
de palha, basta para fazer verter copiosamente o líquido cobiçado.

Há espantalhos contra o progresso das boas causas, que são
verdadeiros empalhamentos, ou empalhações partidárias,
amanhadas para extrair à população incauta e honesta
o leite da sua força sob a forma de votos.

À beira das eleições próximas, essa abantesma
da ruína da lavoura pela emancipação, depois das enérgicas
palavras do eminente Sr. de Cotegipe, não induz a pensar na invenção
escocesa?

Os cidadãos inteligentes que se acautelem do bezerro de palha!

O País, 2 de outubro de 1884.

JORNAL DO COMMERCIO

(APEDIDOS)
A LEGALIDADE SERVIL

Lição de um mestre, oferecida à reflexão dos
obstinados

O escravismo fala atualmente contra a reforma a mesma linguagem com que a
Idade Média se opunha à filosofia de cujo seio saiu a revolução
e a sociedade moderna. A nossa posição hoje, porém, é
duplamente vantajosa. A tirania exercida pela nobreza feudal era um privilégio;
mas esse privilégio estribava em foros legais. Com o cativeiro entre
nós não sucede o mesmo: é um privilégio o direito
dos senhores, mas um privilégio ilegal. Já o demonstramos.

Demos, todavia, a sua legalidade. Ainda assim, basta essa condição,
para que ele se sinta sobranceiro à reforma e apoiado no direito? Não.
Acima do direito formal, da legalidade estrita, existe um direito, mais positivo
do que esse, porque é, a um tempo, mais legítimo e mais forte:
o direito que resulta do desenvolvimento humano.

Há, entre os nossos adversários muita gente que, uns por obcecação
e interesse, outros por ignorância e boa-fé, revestem-se de toda
a gravidade da ciência jurídica, e olham com desprezo, como profissionais
a leigos, os partidários da abolição. Pois enganam-se
esses senhores. Não somos tão profanos, nem eles tão
jurisconsultos, quanto presumem. Os abolicionistas não são nenhuns
apóstolos de uma aspiração ideal, devotos de uma utopia,
revolucionadores do direito. É no direito, cientificamente real, da
nossa época e da nossa nacionalidade que nos firmamos contra a legalidade
caduca do cativeiro.

Sorriam embora de desdém os Tribonianos do escra­vis­mo. Não
havemos de ficar sem padrinho e fiador; e, para evitar exceções,
iremos buscá-lo na terra clássica da jurisprudência científica
e do direito histórico, na grande Alemanha, a alma mater de todos os
jurisconsultos.

Entre os homens que, daquele cimo iluminado, derramam sobre o mundo o verbo
da ciência jurídica, sobressai, nos primeiros lugares, como um
dos pontífices desse magistério supremo, o professor Holtzendorff.

Os livros desse jurisconsulto, desse civilista, desse criminalista, desse
publicista extraordinário têm impressio­nado profundamente
a Europa com a seriedade, a originalidade e a superioridade do seu ensino.

De uma recentíssima obra, Princípios de Política, ainda
não vertida em idioma algum, do autor da Enciclopédia Jurídica
— extraímos hoje um capítulo, que parece escrito para
os escravistas pertinazes de nossa terra.

Ouçamos Holtzendorff:

“O único expediente regular (para revogar uma lei que não
se acha de acordo com as necessidades de uma nação) é
o remédio que pode provir do Poder Legislativo. Mas que cumprirá
fazer, quando esse poder permaneça inativo, porque as classes dominantes
sejam interessadas na conservação dos abusos? Quando, descuidado
dos seus deveres e por própria comodidade, proceda parcialmente? E
principalmente quando deixe de dar o remédio legal reclamado, por denegarem
o seu assentimento os que devem participar na reforma?

“A resposta é simples. Se o tino do juiz ou do público,
como freqüentemente sucede, eludir a aplicação da lei,
então desaparece o mal. Pelo contrário, é iminente o
perigo, quando os grandes aparelhos da vida do Estado obstam a esse meio paliativo.
Nesta alternativa, a política, sem hesitar, deve infringir a lei e,
em lugar da injustiça legal, fazer imperar como lei o direito acomodado
às necessidades ­sociais.

“Dada a hipótese que acabamos de definir, não vem absolutamente
ao caso desculpar a violência contra a lei positiva; é, ao invés,
indispensável reconhecer nesse procedimento uma necessidade moral,
um dever, a que povos e governos são obrigados a obedecer. Por maior
que seja o valor da lei, sob o ponto de vista formal, é apenas relativo,
e nunca absoluto. Ninguém se preocupe com o receio de que o arbítrio
possa explorar este princípio em interesse seu, e abusar dele. Uma
lei que se torna incorrigível e irrevogável, por isso mesmo
que interrompe o desenvolvimento histórico do direito, e obsta que
se empregue o remédio legal para corrigir-lhe o dano, deve ser posta
fora do terreno do direito.

“As condições políticas atuais do Mecklemburgo
demonstram que as classes privilegiadas, confiando em um pretenso direito
histórico, quase sempre deixam escapar as melhores ocasiões
de iniciar medidas de maior prudência.

“A história do direito público está repleta de
aplicações do princípio que estabelecemos. A violação
formal da lei é necessária e moralmente justificada, sempre
que as classes privilegiadas recusam o seu concurso, legalmente preciso, para
a abolição dos próprios privilégios, na ocasião
em que o pensamento da igualdade pessoal penetra as classes oprimidas, ou
a segurança do Estado é ameaçada por esses privilégios.
A abolição violenta da escravidão, da servidão
e da adscrição à gleba sem indenização,
bem como a extinção dos antigos feudos pela monarquia absoluta,
foram imposições da justiça histórica.”

Ora, depois desta lição, deixem-me acreditar que a lavoura
brasileira, se quiser refletir no assunto, bem pode mandar a ciência
jurídica da resistência escravista, pregada pelos Srs. Paulino
de Sousa e Andrade Figueira, para as coleções de fósseis,
ou os museus de múmias.

GREY.

Jornal do Commercio, 4 de março de 1885.
Publicações a pedido.

O DEVER DA OPOSIÇÃO

Provocados pelo ilustre Sr. A. Celso a deixarem refolhos e enunciarem as
suas idéias acerca da questão servil, os Srs. Paulino de Sousa
e João Alfredo negaram ao Governo o direito de exigir dos seus adversários
no parlamento esse ato de franqueza.

O escudo com que S. Ex.as se arrodelaram na defesa dessa tese é a
história parlamentar da Inglaterra.

Folgamos de ver que os ingleses já servem para alguma coisa entre
tão eminentes estadistas. A birra desses conspícuos varões
contra os assuntos dessa proveniência não se estende senão
aos casos em que a autoridade dos precedentes britânicos se opõe
às doutrinas falsas em que S. Ex.as se transviaram ou procuram transviar
a opinião. Os amigos do Sr. João Alfredo, nos debates de 1871,
mordicavam em José de Alencar, porque o famoso orador perpetrara a
vergonha de citar trinta vezes num só discurso o nome de Robert Peel.

No escrito de hoje vamos incorrer em crime semelhante. Mas a culpa é
dos preclaros senadores, que, trazendo contra nós a público
falsas noções dos costumes políticos do Reino Unido,
obrigam-nos a restabelecer a verdade, adulterada por pessoas de posição
social tão res­peitável.

Se é lícito aos nossos antagonistas expandirem-se com a satisfação
de quem deu com um tesouro, ou venceu uma batalha, quando nos podem atirar
com uma lambujem de história inglesa, e derrancada, a nós nos
deve tocar o direito de vingar a realidade grosseiramente deturpada em prejuízo
das boas normas parlamentares.

De Robert Peel o primeiro exemplo alegado agora é o de 1831. Esse
estadista, numa carta a Mr. Croker, expendeu a resolução, em
que estava, quanto à reforma parlamentar, de não ter com o Governo
“comunicação alguma, direta ou indireta”. Mas R.
Peel adotou essa posição de reserva absoluta, porque era adverso
a toda reforma eleitoral. Onde está, pois, aqui o argumento invocável
entre aqueles, como o Sr. João Alfredo, que declaram a sua convicção
da necessidade da reforma?

Narrou S. Ex.ª que Lord John Russell, chamado a organizar gabinete após
o malogro dos primeiros esforços de Robert Peel pela reforma das leis
cereais, sabendo que o seu adversário, em uma carta à rainha,
prometera apoio à tentativa que no mesmo sentido se propusesse a fazer
um ministério whig, “dirigiu-se a Sir Robert Peel, e pediu-lhe
que lhe comunicasse as idéias segundo as quais ele achava que a reforma
deveria ser feita”. Robert Peel, acrescenta S. Ex.ª, negou-se;
e, formulando Lord Russell o seu projeto, “apresentou-o àquele
a quem ia suceder no poder, pediu-lhe que ao menos dissesse a sua opinião
sobre os pormenores; ao que Sir Robert Peel ainda­ se recusou.”

Esta exposição é errônea. S. Ex.ª leu distraidamente
“os comentadores”, a que alude. Nós, para não receber
os fatos em segunda mão, iremos buscá-los no manancial primitivo,
nas próprias Memórias de Robert Peel, dadas à estampa
em 1858, pelos seus testamenteiros, Lord Mahon e E. Cardwell.

R. Peel, na carta à rainha a que se refere o nobre senador (8 de dezembro,
1845), dizia: “O princípio de acordo com o qual Sir Robert Peel1
tencionava recomendar a modificação das leis concernentes à
importação dos víveres de primeira necessidade está,
em geral (in general accordance), de conformidade com as idéias exprimidas
no derradeiro parágrafo da carta de Lord J. Russell aos eleitores de
Londres.”2. O pensamento de Russell era, portanto, conhecido, e R. Peel
declarou estar de acordo com ele. É falso, pois, que o grande estadista
conservador se recusasse a desvendar o seu pensamento sobre a reforma cometida
aos seus adversários.

Então a que foi que não quis anuir R. Peel?

Lord Russell não pediu, como o nobre senador cuida, a R. Peel que
lhe comunicasse as suas idéias sobre o assunto. O que fez, foi, pelo
contrário, oferecer ao seu antagonista a comunicação
do seu plano (comunicação que não chegou a realizar-se,
como o Sr. João Alfredo erradamente supõe), declarando que declinaria
de aceitar o governo, “se (são palavras dele) R. Peel o desaprovasse,
e não se comprometesse a sustentá-lo.”3. As idéias
capitais de Peel sobre a reforma estavam enunciadas; e o que dele se solicitava,
era um pacto prévio, respeito de pormenores característicos
do projeto de seu sucessor.

Eis, textualmente, os motivos e termos da recusa de R. Peel a esse convite,
expostos por ele mesmo, na sua missiva à soberana, em 15 de dezembro
de 1845:

“Todas as considerações do dever público concorrem
em induzir Sir R. Peel a facilitar e promover, em vez de embaraçar
quaisquer providências que tendam a resolver esta grande questão.
Mas Sir R. Peel tem profunda convicção de que para as probabilidades
do bom êxito não contribuiria a comunicação, que
se lhe fizesse, dos lineamentos de um projeto, com o fim de estipular-se a
promessa preliminar de seu apoio. O projeto há de naturalmente abranger
uma série de medidas que ainda não podem estar meditadamente
estudadas. Ainda depois de estudadas, podem passar por modificações,
que os ministros de Vossa Majestade devem manter plena liberdade para levar
a efeito; e a explicação subseqüente dos motivos dessas
alterações a uma pessoa que não se acha a serviço
de Vossa Majestade seria cheia de dificuldades. Sir R. Peel está persuadido
de que um ajuste prévio, um prévio compromisso seu (a previous
concert, or a previous pledge) de adesão a certos e determinados alvitres,
seria mal aceito à Câmara dos Comuns e empecivo à ação
de todos os partidos.”4

Sir R. Peel tinha-se pronunciado sobre a questão até onde [podia],
não estando no Governo. Revelara o seu juízo em favor de uma
reforma direta e profunda nas leis cereais. Obrigara-se a acompanhar o Governo
ainda adverso, que a quisesse fazer. Chegara até a esposar explicitamente
os princípios gerais do plano de Lord Russell. Tratava-se, porém,
de um problema aduaneiro, de uma questão de direitos de alfândega.
Peel não podia, pois, ir mais longe. Não podia antecipadamente,
sem as luzes do debate nas Câmaras e o auxílio dos dados oficiais
que até a reunião do parlamento se estariam completando, particularizar
a sua opinião sobre especialidades, e empenhar de antemão o
seu apoio a medidas fiscais, a cujo respeito o próprio gabinete até
ao último momento podia ser levado a modificar as suas idéias,
e reconsiderar a sua proposta. É a esse convênio antecipado,
anti­parlamentar e extraparlamentar que o grande reformador inglês
se escusou.

Que paridade pode haver entre isso e a interrogação do Sr.
Afonso Celso em plena sessão do parlamento? Entre aquela hipoteca prévia
do voto a um esboço de projeto e a enunciação franca
exigida aqui aos chefes conservadores, em presença de um projeto formulado,
conhecido, estudado, em torno do qual girou solenemente um apelo da coroa
ao país? Entre o desassombro de Peel, que justamente por manifestar
sem ambages a sua convicção da urgência de uma reforma
franca, não pôde conservar nas mãos o poder, e os subterfúgios
de uma oposição que, pelo contrário, imagina facilitar
o seu acesso a ele, ocultando as suas idéias em rodeios, tangentes
e fórmulas sibilinas?

A doutrina que reserva à oposição o direito de criticar,
sem aconselhar, de destruir, sem comprometer-se, é desleal e insensata.

A Inglaterra protesta com seu exemplo decisivo contra essa teoria da insinceridade
erigida em dever Parlamentar.

O Times dizia o ano passado: “Desorganizado está o partido cujo
acordo reduz-se a reconhecer o princípio negativo de que a função
da oposição consiste em ­opor-se.”5

Criticando a franqueza dos chefes conservadores, a dubiedade das suas enunciações
ante os grandes problemas da política interior e exterior do país,
escrevia, por essa época, o grande órgão da opinião
conservadora em Inglaterra:

“Lord Beaconsfield sabia que para acometer, com possibilidade de triunfo,
a posição de um ministério sustentado por vasta maioria
parlamentar, a oposição deve estar deliberada a lançar-se
audazmente ao cimo de alguma das ondas que se adiantam, e sobranceiam na opinião
pública. Quando se oferece esse ensejo, o chefe, hábil em capita­near,
deixar-se-á de reticências e reservas, anunciando valorosa e
lucidamente uma política, que consubstancie e interprete os sentimentos
mal conscientes do povo. Tais passos não se dão sem responsabilidade
e perigo de reveses; mas essas contingências, todo o estadista que aspira
ao governo, deve estar decidido a arrostá-las.”6

Acrescentava o Times, em palavras que parecem ditadas para nós:

“É contra os interesses do Estado que a oposição
seja fraca e mal organizada; mas ainda pior do que a fraqueza e a desorganização
é essa frouxidão de intenções e esse receio de
responsabilidade, do que nos vai fornecendo doloroso exemplo o procedimento
dos conservadores. Sir Stafford Northcote tentou justificar-se… Alegou que
um partido que não está no poder não pode ser chamado
a revelar particularidades de um plano político, quando não
lhe são franqueadas as fontes de informação oficiais.
Mas isso, para não dizer pior, é uma medíocre defesa.
Ninguém espera que a oposição dilucide agora pormenores
da sua política em relação ao Egito; o que se pede, é
que delineie os traços gerais dela.”7

E que outra coisa se está pedindo ao Sr. João Alfredo, ao Sr.
Paulino de Sousa, a todos os chefes da cruzada contra o projeto?

Atendam os Srs. Paulino e João Alfredo:

“Tem havido é certo muitas expressões vagas de simpatia
por uma linha de ação mais viril, sincera e destemida, e evidentemente
os chefes conservadores estão ansiosos por converter em proveito seu
o descontentamento suscitado pelos erros do gabinete. Todavia, temos o direito
de exigir mais que isso de estadistas que pedem ao parlamento e ao país
a demissão de um gabinete e o advento de um ministério conservador
ao Governo. A nação tem tido sobejos motivos para desconfiar
de frases indefinidas e sonoras, quando de permeio com elas sobressaem indícios
palpáveis desse medo a responsabilidades.”8

Mais atenção, Srs. João Alfredo e Paulino:

“Não se pode pôr em dúvida que, se Lord Beaconsfield
estivesse à frente da oposição durante a crise atual,
teria escolhido afoutamente o campo de batalha, que os seus sucessores têm
empregado toda a sua arte em evitar.”9

Na Inglaterra o Partido Conservador acabou por compreender a necessidade
impreterível de definir-se. Lord Randolph Churchill, que se tem assinalado
pelo seu tino em interpretar as opiniões dos seus correligionários10,
“sentiu a urgência”, diz o Economist, “de formular
um plano político acerca do Egito, e traçou de um modo preciso
aquele que o seu partido almejava, o adotado pelos seus chefes, alvidrando
que a Inglaterra assuma, com o assenso da Europa reunida em congresso, um
protetorado permanente naquele país”.11

Vede como ali se aprecia essa atitude do chefe conservador:

“É uma política essa a que se suscitam muitas e graves
objeções… Mas é clara, definida, prática, ao
mesmo passo que corresponde aos íntimos desejos do seu partido…”12
“O novo leader possui a faculdade de exprimir com força e inteligência
o pensamento dominante no espírito do seu partido.”13 “Ele
declarou que o seu partido ambicionava empunhar o leme, e expôs claramente
o que seu partido faria, se o leme lhe fosse confiado pelo país.”14

Na questão da reforma eleitoral as circunstâncias, tais quais
se passaram, estão ensinando aos nossos homens de Estado a mesma lição.

Eis o que escrevia o Times em outubro de 1884:

“Que desejam realmente os conservadores? A representação
das minorias segundo o princípio de Hare formulado por Mr. Dogdson,
a colocação dos burgos rurais em condições particulares,
ou a igualdade na divisão dos distritos eleitorais, advogada por Lord
R. Churchill e muitos pensadores radicais, dos mais adiantados?… Se alguns
desses alvitres, ou qualquer outro que se possa imaginar, será mais
bem aceito aos conservadores do que o plano de cauteloso ensaio esboçado
por Mr. Gladstone, cumpre que quanto antes o país saiba as preferências
desse partido, que ele quanto antes lha declare. Enquanto, porém, as
coisas correrem como vão, é manifesto que os conservadores não
têm política assentada, não meditaram plano algum, nem
nutrem outro propósito, senão o de oporem-se, com quantos argumentos
a ocasião lhes sugira, a tudo o que o Governo tentar.”15

A essa tática de reservas e meias palavras teve que renunciar, afinal,
constrangido pela opinião pública o Partido Conservador. Daí
resultou descobrir-se uma harmonia singular em vários pontos importantes
entre as idéias de Lord Salisbury e Gladstone, quanto à base
da representação parlamentar. As declarações de
um e outro lado permitiram estabelecer-se uma inteligência fecunda entre
o ministério e a oposição, a cujo acordo se deve o bill
reformando a divisão eleitoral na Inglaterra, bill formulado pelo chefe
das duas parcialidades opostas. A lei que desse compromisso nasceu, importou
para aquele país (são palavras do Economist) uma revolução
pacífica. Seriam possíveis esses resultados, admitida a doutrina
de equívocos e san­cadilhas, que a sinagoga conservadora entre
nós preconiza e quer legitimar com a lição falsificada
das praxes britâ­nicas.

No começo de 1884 refletia o Economist:

“Indubitavelmente o país acha-se agastado com o Governo pelos
erros e desastres da sua política no Egito. Mas é sinal de incurável
cegueira nos membros do ministério Beaconsfield imaginarem que a nação
se resolva a confiar os seus destinos à direção desses
estadistas, quando não têm a mais vaga noção do
caminho que eles pretendam seguir, e da direção em que a tencionem
levar.”16

Agora, no último número da Fortnightly Review que nos acaba
de chegar às mãos, lemos a mesma coisa:

“Estão os conservadores preparados com um programa completo
e definido a respeito do Soudan? Se não estão, que direito lhes
assiste de esperar que o povo inglês transfira a eles a sua confiança,
em vez de anistiar a Mr. Gladstone por erros já agora irremediáveis?”17

Eis como se procede e se pensa na Inglaterra. E aqui uns generais de ciladas
pretendem apadrinhar com a sombra dessa política séria e leal
uma oposição de capa e sombreiro carregado sobre os ombros!

Estamos num país onde o que habilita um estadista para solver uma
grande questão nacional é não ter programa e viver envolto
em nuvens impenetráveis.

Será possível que baixássemos tanto?

Mas isso não é regímen parlamentar; é a imitação
política das bestas de rapina, alapadas no covil, à espera do
momento para ferrar no salto a presa cobiçada.

GREY.
Jornal do Commercio, 8 de abril de 1885.

A LEGAÇÃO DO VATICANO

A destituição do Conde de Santo Agostinho, recebida com intransigente
desagrado pelos católicos fluminenses em sua generalidade e encarada,
nos círculos políticos, como um mau sintoma para as relações
entre a Igreja e a República, inspirou a um representante da nação
pelo Estado do Rio de Janeiro um projeto, apresentado à Câmara
dos Deputados, suprimindo a nossa legação perante o Vaticano.*

Conquanto admitamos essa medida como possibilidade eventual, não na
aprovaríamos senão em hipótese extrema, cuja iminência
não nos parece provável. Abolir a missão brasileira junto
ao Sumo Pontífice, em retorsão imediata à nomeação
do bispo Esberard, afigura-se-nos uma leviandade, condenada pelos interesses
da ordem republicana e da própria liberdade religiosa, pela qual estremece,
como nós, o coração patriótico do autor do projeto.

Nunca nos impressionou o argumento dos lógicos contra a consentaneidade
entre essa homenagem ao catolicismo, ou antes à importância dos
interesses sociais ligados a ele, num país onde esse culto é
de fato a religião nacional, e o princípio da absoluta liberdade
religiosa, que conquistamos em 7 de janeiro de 1890, e consolidamos em 24
de fevereiro de 1891. A lógica não pode ter no governo dos homens
a soberania, que os espíritos radicais lhe atribuem. Os estadistas
mais úteis aos Estados não têm sido os melhores exemplares
de dialética aplicada. Quem não tiver a coragem, algu­mas
vezes, de sacrificar à contradição, divindade im­pe­­riosa,
que, desde o princípio dos tempos, reina, pelo título indiscutível
da necessidade, sobre uma vasta parte dos interesses humanos, há de
forçosamente sacrificar ao capricho dos sistemas, ídolo vão,
cujos benefícios a humanidade não conhece. Costuma-se dizer
que os princípios são tudo. Não seríamos nós
quem contestasse esta verdade, sensatamente en­ten­dida. Cultor mais
devoto deles do que nós, não queremos que o haja. Mas o primeiro
de todos os princípios é o da relatividade prática na
aplicação deles à variabilidade infinita das circunstâncias
dominantes. Estas não raro nos impõem transigir, a benefício
das grandes leis, das grandes verdades, das grandes garantias liberais, cuja
essência é sagrada, com a exterioridade de certas formas, cujo
antagonismo superficial pode traduzir uma cooperação valiosa
para resultados superiores.

Escola entre todas venerável da arte dessas transações
oferecem-nos os Estados Unidos. Ali teve seu berço o dogma contemporâneo
da independência dos cultos; ali encontra ele o seu padrão prático
mais completo, mais eloqüente, mais prestigioso. Nossa Constituição,
a esse respeito, é apenas, com relação à deles,
uma cópia menos correta do que o original. Nem por isso, entretanto,
o cris­tianismo deixa de estender ali o seu manto sobre as instituições
secularizadas, envolvendo na solenidade de sua consagração os
atos mais sérios da política, da administração
e da justiça americana.

Washington, na sua fala inaugural, proferida em 30 de abril de 1789, não
julgou desacatar os princípios constitu­cionais, de que foi o primeiro
e o mais severo executor, abrigando a sua investidura no poder sob uma esplêndida
invocação cristã: “Seria singularmente impróprio”,
dizia o au­gus­to patriarca, “omitir, no primeiro dos nossos
atos oficiais, as nossas mais fervorosas súplicas a essa Onipotência,
que rege o universo, que preside aos conselhos das nações, e
cujo auxílio providencial pode remediar todos os defeitos humanos,
exorando-a a sagrar, com as suas bênçãos, à liberdade
e felicidade do povo um governo por ele mesmo instituído para esses
fins essenciais, predispondo os instrumentos empregados em sua administração
a desempenharem com acerto as funções de sua tarefa. Rendendo
este preito ao grande Autor de todo o bem, público, ou privado, exprimo
não menos os vossos sentimentos do que os meus, não menos os
da nação em geral do que os nossos.” Oito anos depois
(setembro de 1796) a sua mensagem de adeus ao povo americano ardia no mesmo
espírito de adoração pública, como o cibório
de um templo.

Essa tradição perpetuou-se. Todos os presidentes dos Estados
Unidos, em seus discursos inaugurais, em suas mensagens ânuas, em vários
outros documentos oficiais, falando à opinião, abrindo as câmaras
legislativas, ou fixando ao povo dias de jejum e ação de graças,
reconhecem, mais ou menos positivamente, a dependência entre a vida
nacional e essas supremas inspirações religiosas, que unem,
apaziguam e moralizam as nações. Jefferson foi o único
presidente, que teve escrúpulos constitucionais em decretar datas de
oração e sacrifício público. Mas deixou esse cuidado
ao poder executivo nos Estados, e, divergindo de seus predecessores, não
quis negar aos sucessores o direito de fazer o que, segundo ali se pensa,
se não é expressamente autorizado, ainda menos proibido é
na Constituição. Os discursos mais solenes de Lincoln durante
a guerra civil são, às vezes, ver­da­deiros salmos,
de uma unção que os livros sagrados não excedem. Chefe
da nação retalhada pela guerra fratricida, sua palavra soava
como a prédica de um profeta, entre as duas partes beligerantes, “ambas
as quais”, dizia ele, “lêem a mesma Bíblia, e oram
ao mesmo Deus, invocando-o uma contra a outra”.

Quem não sabe que o orçamento americano subsidia capelães
para o Senado, para a Câmara, para o exército, para a armada,
para as escolas navais e militares? Esses sacerdotes, equiparados aos outros
funcionários públicos, são nomea­dos mediante recomendação
das autoridades eclesiásticas. Os Estados observam a mesma regra, instituindo,
dentre os ministros cristãos regularmente ordenados, cape­lães
para os seus congressos, a sua milícia, as suas prisões e penitenciárias,
os seus hospícios de alienados. Cada célula, nos cárceres,
tem a sua Bíblia. O congresso federal, em 1882, subvencionou a versão
nova da Escritura Sagrada. Dentre as escolas públicas, franqueadas
à população de todos os credos, quatro quintos, pelo
menos, observam a leitura dos livros santos, o uso de hinos sacros, a recitação
de preces abrindo e encerrando os exercícios cotidianos. Atos solenes
do governo ordenam a maior pontualidade na observância do serviço
dominical. A Constituição excetua o domingo do decêndio
outorgado ao presidente para o exercício do veto. E, contudo, não
há país, no mundo, onde a emancipação dos cultos
seja tão real como naquele, onde as funções do Estado
revistam mais essencialmente o caráter leigo, a imparcialidade entre
todas as confissões religiosas.

Não se envergonhe, portanto, a nossa austeridade lógica de
conservar, do regímen abolido pelo divórcio entre a religião
e o Estado, resquícios tão inocentes como a legação
do Vaticano. Nem porque ela deixou uma vez de impedir um mal obviável,
condenemo-la no mesmo ponto à eliminação. Amanhã
outro incidente despertaria correntes opostas. E de arrependimentos em arrependimentos,
de infantilidades em infan­tilidades, nos exporíamos, cada vez
mais, ao ridículo do mundo. Com esta mania de revogar e desfazer, a
melhor constituição do universo é um castelo de cartas
entre os dedos de uma criança. Mudando assim todo dia de preferências
nos assuntos mais sérios, somos uma sociedade de areia e um governo
de aluvião, onde as marés e as enxurradas transformam o solo
a cada passo. Não há construção possível,
não há tradição criável. Reclamamos hoje
o parlamentarismo, antes de experimentado o presidencialismo, porque ontem
o substituíramos, com a mesma facilidade, com que amanhã regres­­saríamos
para a monarquia, antes de ensaiada a república, por que, há
pouco, a trocávamos. E, assim como agora extirpássemos até
a última radícula as nossas ligações com a igreja,
amanhã, de roldão, a outro movimento irrefletido e impetuoso,
seríamos levados a abolir a liberdade espiritual, restabelecendo o
monopólio religioso. Isto não é educar um povo: é
dissolvê-lo.

Se, a propósito do acinte aparente à opinião republicana,
principiássemos a trovejar contra a Santa Sé, teríamos
tido logo depois motivos, para nos convencer de precipitação;
porque uma declaração de pessoa semi-oficial publi­cada
nO País de ontem,* veio revelar que o governo não foi tão
estranho, como se supunha, à nomeação do bispo Esberard,
sobre a qual o inter­núncio se dirigira ao ex-ministro interino
do Exterior. A ser exato, como é de crer, o asserto, está justificada
a Santa Sé de não ter ouvido o nosso representante em Roma,
e, ainda quando o ouvisse, entre ele e o secretário do Presidente da
República, diretamente consultado, não podia vacilar.

*O País de 2 de junho publicou o seguinte tópico:

O BISPO DIOCESANO

Estas linhas deveriam ter por título o tema Viver às claras;
mas nós preferimos manter a epígrafe usada desde começo,
para o caso em que a política da intriga, disfarçada sob vestes
talares, afastou da diocese fluminense o virtuoso Conde de Santo Agostinho,
considerado um estorvo às pretensões atentatórias da
República.

O Rev.mo Monsenhor Lustosa articulou anteontem numa das folhas da manhã
a afirmativa de que o governo, com a devida antecedência, teve conhecimento
de que a cúria ia nomear monsenhor Esberard arcebispo do Rio de Janeiro,
e nisso mostrara-se de acordo.

Demos, porém, o contrário: nem foi interrogado aqui o governo,
nem o nosso ministro na capital do mundo católico. Seria, porém,
judicioso responder a essa omissão com o rompimento alvitrado no Congresso?

Adota-se uma deliberação, pelas vantagens que nos proporciona.
Toma-se uma desforra, pelo mal que faz ao inimigo, ou ao agressor.

Ora, perguntamos, a cúria romana seria precisamente prejudicada com
a nossa retaliação? Em relações de potência
a potência esta questão poderia ser de ordem inferior. Nesse
gênero de casos o melindre magoado de um governo não vai medir
considerações de utilidade. Os casus belli estabelecem-se não
raro por simples motivos de honra. Uma quebra de cortesia diplomática,
um desvio da pragmática internacional podem levantar a inimizade entre
duas nações, e arremessá-las uma contra a outra. Mas
Roma é uma soberania moral. Seus conflitos não se resolvem pelas
armas. Sua fraqueza é a sua força. As violências dos poderosos
divinizam-na. Sua autoridade apóia-se, entre os povos civilizados,
numa base tal de respeito, que desafiá-la é travar porfias desiguais,
em que todas as probabilidades estão de um lado, em que uma das partes
nada arrisca, e a outra não aventura pouco, com um adversário
favorecido pelo privilégio sem igual de contar legiões de almas
a seu favor no próprio seio dos povos, contra quem luta.

Imaginais que, separadas, como estão oficialmente as duas sociedades,
cessaram os motivos razoáveis, para termos uma representação
perante o trono de S. Pedro. Mas quem não vê que, justamente
por isso, o menos arriscado a perder com a supressão desse último
laço é o governo espiritual do Supremo Pontífice, a quem
as instituições atuais abriram, no Brasil, uma esfera autônoma
na jerarquia, na administração, na propaganda? De que meios
regulares dispõe, hoje, o Governo, entre nós, para ferir a Igreja?
Não no vemos. Mas quem poderia calcular os recursos acessíveis
à Igreja, para malfazer à República, indispondo contra
ela os crentes, sem transpor os limites da ação espiritual?
Numa nação católica, onde o catolicismo vive independente
do Estado, o governo temporal não tem nada que dar à Igreja;
mas pode receber dela alguma coisa, e recebê-lo dignamente, com proveito
para o país e para as instituições liberais. Estas, na
sua fase de organização inicial, batidas pelos ventos de todos
os pontos do céu, necessitam fundamentalmente da paz, que se obtém
pelo concurso dos elementos conservadores; e a benevolência do mundo
religioso exprime o maior de todos os ascendentes sobre esta espécie
de simpatias. Desprezá-las, hostilizá-las, arredá-las
é brincar com um perigo.

A representação brasileira perante o Vaticano tem, portanto,
agora mais do que nunca, um papel necessário, tão discreto,
quão grave, tão profícuo, quão reservado. Se por
al não valer, valerá imensamente como expressão do gênio
benigno da República, da sua missão nacional. Quando o novo
regímen já não contar inimigos subterrâneos, e
a sua sombra se estender pacífica sobre o país, as duas esferas
prescindirão, talvez, desse contacto, Roma e o Rio de Janeiro não
necessitarão desse mediador. Mas, até lá, a República
precisa de ter uma voz junto ao chefe dessa sociedade espiritual, cujos limites,
entre nós, coincidem quase inteiramente com os da nossa consciência
e os da nossa sociedade.

O que cumpre, logo, não é extinguir a legação
do Vaticano, mas confiá-la a um patriota sem o ranço do velho
monar­quismo. Se a república encontrar escolhos na metrópole
da cristandade, se os encontra, se os tem encontrado, nossa é a culpa.
Por mais que nos queiramos abster de alusões individuais, há,
nesta época, inversões do dever público, a que é
preciso pôr o ferro em brasa. Não apreciamos: consignamos fatos,
dos quais há, entre nós, as mais autorizadas testemunhas. O
nosso ministro atual em Roma é esse mesmo diplomata, cuja presença
em São Petersburgo não permitiu que o governo da Rússia
nos reconhecesse, enquanto o do Brasil não se fez representar por outro
brasileiro. Na corte pontifícia o seu procedimento é análogo:
denunciando o princípio da liberdade religiosa em sua pátria
como um estado transitório, execrado pela nação, condenado
a desaparecer, logo que o povo tenha o governo de si mesmo, retratando as
instituições republicanas como um artefato efêmero de
uma revolução malfazeja, entretém no círculo papal
a dúvida, a prevenção e o descrédito contra nós.
Roma não conhece o Brasil novo senão por uma imagem falsa e
odiosa, pintada pelo nosso procurador oficial.

Com essas e outras almas do outro mundo a representarem a República
no estrangeiro, teremos sempre entre nós e a Europa essa região
de além-túmulo, onde os coveiros do império se ocupam
em reerguer tronos com a terra dos mortos, e assombrar o mundo dos vivos com
a mentira de seus fantasmas.

Jornal do Brasil, 3 de junho de 1893.

NOSSA CONSTITUIÇÃO, A ESPADA

Teve ontem o destino previsto a denúncia apresentada à Câmara
dos Deputados contra o presidente da República. Nosso parecer explícito
ao primeiro dos signatários do projeto, quando nos comunicou a sua
intenção, foi contrário a esse passo no momento em que
ele se deu. Não basta às oposições discriminar
responsabilidades. É mister, ainda, exercer esse direito do modo mais
útil à causa que advogam. Os bons princípios têm
também a sua tática de combate; e sacrificá-la, às
vezes, é sacrificá-los, ao menos temporariamente. O Governo
necessita de uma diversão solene contra as questões de árdua
atualidade, que o enleiam. A oposição deu-lha. Essas questões
representavam outras tantas batalhas, nas quais a administração
tinha de atravessar sucessivamente a prova do debate parlamentar. O adversário,
precipitando-se, encarregou-se de facilitar-lhe a situação,
permitindo-lhe, num ataque geral, desen­vol­ver todas as suas forças,
e tomar de assalto, por um voto englobado, todas as dificuldades sérias,
que o ameaçavam.

Oxalá que das vantagens dessa fortuna o poder executivo saiba tirar
os corolários razoáveis, encarando-a, não como um triunfo
para o seu amor-próprio, mas como uma clareira de serenidade para a
transformação da sua política desabrida e provocadora
numa política de paz. Seus precedentes não autorizam esta esperança.
E, demais, é extremamente difícil retroceder para o bem, quando
se tem nas mãos a força ilimitada, e, entre os que nos deviam
coibir, não encontramos senão conivência a aplausos no
erro. Mas, resolvido a lutar a todo transe contra a lógica pessimista
da realidade, não renunciaremos em absoluto à hipótese
de uma inspiração boa no ânimo dos que nos governam; até
porque, quando se tem chegado aos confins aparentes do mal, é difícil
piorar.

Seja qual for, porém, a direção, que o vencedor se disponha
a dar à sua triste vitória, o caráter moral desta é
sempre o mesmo; e àqueles que tomaram a si o compromisso de acompanhar
com o público os episódios notáveis no panorama dos fatos,
cabe o dever de registrar fielmente a nomenclatura dos resultados.

Mais uma ruína avulta no campo da Constituição republicana.
O princípio da responsabilidade presidencial desapareceu. O império
era a inviolabilidade do chefe da nação, temperada pela responsabilidade
dos ministros. A república é a intangibilidade do poder executivo
em todos os seus membros: imaculáveis os ministros, como secretários
do presidente; improfanável o presidente, como órgão
da enfeudação militar sancionada pela covardia paisana. Fados
singulares os deste regímen! Para lhe conservar a existência,
é necessário encará-lo unicamente como espe­­táculo
aprazível à vista. Se o tocais, se lhe tomais a sério
as instituições, que ele nos oferece como defesas da liberdade,
o mesmo é pôr-lhes a mão implorativa, que vê-las
desmancharem-se em pó, como as múmias ime­moriais do Egito.
Já assististes à abertura de um túmulo, para trasladar
os ossos de um morto? Olhai: é a aparência do vivo. Ponde-lhe
os dedos: desfaz-se como sombra, deixando-vos apenas o arcaboiço e
a mortalha. Assim as nossas garantias democráticas. Ao aspecto, esplêndidas:
speciem populi imitan­tur. Valei-vos delas, porém, tentai abrigar-vos
sob a sua autoridade, e encontrareis, em vez de um baluarte, um pouco de cinza
e a decepção do nada.

Dando por foro ao chefe do Estado, nos crimes que interessam a dignidade
da sua magistratura, o congresso, a representação nacional,
dividida em câmara de acusação e câmara de julgamento,
o pacto federal pensou ter resguardado a república da maior de todas
as humilhações e do mais corrutor de todos os espetáculos.
Instituindo esses altos tribunais, dizia Odilon Barrot, em 1849, no Nacional,
“corresponde o legislador a essa necessidade, permanente nas sociedades,
de elevar, de fortificar as garantias da justiça em certos casos nos
quais o crime excede as proporções comuns, e a justiça
comum dobraria ante ele”. O Duque de Broglie, nas suas Idéias
sobre o Governo da França, preconiza essa necessidade como irrefragável:
“Não é demais o concurso de duas câmaras, uma como
acusadora, outra como juiz, para reduzir o poder executivo na pessoa de seus
agentes.” Com quanto mais força não se aplica à
república presidencial a verdade firmada como indiscutível pelo
publicista conservador a respeito da monarquia representativa?

Longe de responder, porém, ao seu objeto, acautelando-nos contra “o
duplo risco das paixões populares e das intrigas do poder”, esse
freio constitucional, nas mãos de uma câmara enfraquecida pela
preocupação exclusiva da sua reele­gibi­lidade, serviu
apenas, para estreitar a dependência entre a representação
popular e o Governo, proporcionando à maioria a ocasião mais
útil de recomendar-se à benevolência da administração.
Mais uma prova (que pode remeter-se ao idealismo dos parlamentaristas) de
que as instituições, quanto mais sensatas, tanto mais degeneráveis,
onde não houver homens, que as executem, onde só houver interesses,
que as explorem.

A manha do antigo regímen, reunida ao desembaraço do atual,
não custou muito em fabricar, para a emergência, a teo­ria
oportuna. Constitucionalistas de largo vôo, desses que enxameiam nas
quadras más como as arribações de certas aves, descobriram
que na missão dada à Câmara dos Deputados contra os atos
respon­sabilizáveis do presidente da República, o legislador
lhe atribuíra uma arma de arbítrio, uma faculdade discricionária.
Não é uma magistratura o que essa corporação exerce
em tais casos; é uma função política, a saber,
um instrumento de partido, um meio de permutar serviços com o poder,
a que essa garantia era destinada a atalaiar. Hoje esse poder é forte,
e a Câmara dispensa soberanamente na lei, para absolver o criminoso.
Amanhã será fraco; e os representantes do povo abstrairão
da ausência de qualificação legal, para acusar o inocente.
Mendicantes agora, mais tarde imperiosos, estarão per­­pe­tua­­mente
fora da lei em nome da política.

O maldito princípio da onipotência parlamentar não sai
da pele desses parlamentares mal-enroupados na fraseologia republicana. Em
verdade não há doutrina comparável a essa, para aninhar
despotismos irresponsáveis sob o envoltório das formas populares.

Nem ao menos houve, porém, coerência na liga preparada para
forjar a nova jurisprudência. Se a Câmara, nessas funções,
é uma entidade política, a depositária de uma atribuição
soberana, cujas regras são unicamente os ditames da sua consciência
coletiva, não se compreende que suas apreciações fiquem
submetidas ao formulário usual da prova, a cuja observância o
parecer pretende adscrever-se no exame da acu- ­sa­ção.
Destarte, ao passo que exagera em proporções desmesuradas o
papel daquela casa, atrofia os direitos da defesa social, equiparando os crimes
de responsabilidade política aos delitos de ação particular,
em que a justiça estaca diante da prova fornecida pelo autor, e não
pode ampliá-la. Nos crimes de ação pública há
o ministério de um magistratura, instituída especialmente para
promover a acusação, iniciando-a, ou reforçando-a, quando
iniciada por ato individual. Esse múnus, no julgamento político,
incumbe à Câmara dos Deputados, cuja missão não
é somente apurar a prova ministrada pelo denunciante, mas, segundo
os arts. 5 e 8 da lei de 8 de janeiro, desenvolver essa prova, esclarecê-la,
completá-la.

Mas, em suma, não se podia embaraçar em nugas quem não
hesitou em pisar aos pés, na mais desabusada homenagem a uma conveniência
de ocasião, todas as verdades elementares da nossa organização
constitucional.

A deliberação de ontem não é só a exculpação
do presidente da República: é a promulgação do
novo direito federal. A Câmara dos Deputados, instituída por
uma constituição, obra do seu próprio mandato, na qual
o congresso é, como todos os outros poderes, servo da lei fundamental,
acaba de reivindicar, para si, a onipotência do parlamento de Inglaterra.

Dissemos mal. A chamada onipotência do parlamento inglês não
é o poder absoluto. Ela tem limites no common law, o direito consuetudinário
do país, que, naquela terra, é uma realidade viva, uma fonte
perene da justiça, na sucessão dos precedentes, autoridade sempre
invocada e sempre poderosa, na opinião pública, que ali é
uma força irresistível. A essas restrições coibitivas
acrescem as regras concernentes à forma e às condições
de exercício, às quais a própria soberania parlamentar
se acha circunscrita no uso dessa função suprema. É assim
que o parlamento britânico não dispõe de outro meio, para
legalizar as infrações escusáveis da coroa, a não
serem os atos de indeni­dade. (Atos, ou leis; não bills, como vulgar
e impropriamente lhe chamam: o bill é o projeto, ulteriormente convertido
em lei.) Mas os atos de indenidade são resoluções legislativas.
“Eles representam” (é de Dicey a lição),
“eles representam o exercício arbitrário do poder soberano;
mas quando o soberano legal é uma assembléia parlamentar, até
esses atos assumem a forma de legislação regular, e este fato
por si mesmo mantém em não pequeno grau a supremacia, não
aparente só, mas real, da lei.” E, como todas as leis, essas
se formam pelo concurso dos três ramos do poder legislativo —
rei, lordes e comuns —, mediante o mesmo número de discussões,
com os seus trâmites usuais. Mas aqui não: uma simples moção
de qualquer das duas câmaras isenta o Governo “das peias da lei”.
Isto é: para fazer a lei se requer, constitucionalmente, a cooperação
de duas câmaras, com três discussões em cada uma, e a sanção
complementar. Para cassá-la, a benefício do executivo, basta
uma simples moção, a saber, um projeto de uma só discussão
em qual­quer das duas casas do congresso. Infinitamente mais fácil
acabar com a lei do que formá-la, não é assim?

Esta novidade inventou-se ad usum Brasiliorum. Ninguém a imaginara
até hoje; porque, se alguém a tivesse concebido, muito há
que o sultão da Turquia teria adotado a república presidencial.

A onipotência do parlamento inglês reduz-se às proporções
de uma brincadeira, comparada a esta onipotência sem praias, em que
se acaba de submergir de um sorvo o pacto federal. E de quem é ela?
Aparentemente da Câmara dos Deputados, que se pavoneia nessas insígnias,
mas realmente do poder executivo, que a conquistou, e a domina.

Tem razão o parecer: nas relações entre o Governo e
a legislatura, “ambos têm funcionado de perfeito acordo, e este
acordo não se rompeu nem nas horas de crise”. O acordo é
o mais tocante na história dos sentimentos amáveis, desde Paulo
e Virgínia. E como havia de turbar-se essa harmonia, se, desde que
o mundo é mundo, onde um não quer dois não brigam? Para
legisladores, que lhe adivinham os sonhos, pode haver presidente brigador?

A rejeição da denúncia não admira a ninguém.
Estava na ordem constante das antecedências: o próprio parecer
da comissão especial buscou ligá-la, por uma ascendência
de honra, à moção dos poderes ilimitados e à absolvição
incondicional dos atos de abril. Revogada a Constituição da
república… pelo próprio congresso que a fez. Constituinte
ontem, hoje desconstituinte.

O essencial é que o não dissolvam. Ele irá dissolvendo
tudo. Mas nós não precisamos de outra Constituição
mais que a espada do presidente. Os nossos constitucionalistas andam alvoroçados
a ver se lhe descobrem nos copos, sob a mão munificente, o nome do
sucessor. Paz, senhores, e juízo, enquanto os patriotas decifram o
enigma, e vêem se se encartam no testamento.

Jornal do Brasil, 9 de junho de 1893.

A ESPIONAGEM

O punhal de Calisto, o secreta, expediu duas mortes. Outras vítimas,
malferidas, curam lentamente, no hospital, os estragos do ferro assassino.
Quando as cutiladas cicatrizarem, é provável que na consciência
difluente desta sociedade digna de sua sorte, deste povo homogêneo de
seu governo, se haja desbotado a última impressão do escândalo
sangrento. O mecanismo da solidariedade oficial trabalhará então
sutilmente, para atenuar a responsabilidade ao serventuário público
imolado por uma exageração inoportuna das qualidades profissionais.
E o suor do contribuinte continuará a subsidiar a instituição
destinada a estripá-lo, num dia de azar, a qualquer canto de rua.

Não conviria, entretanto, que o fato mergulhasse de todo no esquecimento,
antes de lhe estudarmos ao menos os aspectos d’arte, que a sua fisionomia
revela. A mão daquele agente não é a de um loiraça
no ofício. A perícia magistral daqueles golpes, convergentes
sempre à região inferior do tronco humano, onde as entranhas
se oferecem sem o obstáculo do osso à faca do cortador, está
denunciando a competência do artista. O magarefe e o anatomista talham
na carne morta, inerte. O vivissector imobiliza primeiro a vítima na
banca do laboratório, para não errar o alvo no meneio da lanceta.
O cirurgião opera sobre o paciente insensibilizado como o auto­psista
no cadáver. Só o capoeira tem no punho a vibração
infalível da flecha contra o pássaro no vôo; só
ele disseca o homem vivo e livre na plenitude do movimento e da defesa, com
a certeira instantaneidade do escalpelo na mesa de anatomia.

Quando, porém, não bastassem, para confirmação
deste juízo, os caracteres da profissão, impressos nas circunstân­cias
do crime (crime, ou excesso de zelo?), aí estava, para acabar com a
dúvida, a navalha, o instrumento típico dessa especialidade
fluminense, encontrada nas mãos do matador.

De tempos a esta data há de ter notado o público que a capoeiragem
como que se despede de nós. Esse fenômeno coincide paralelamente
com a multiplicação do serviço secreto. Dir-se-ia que
influências benfazejas da ação policial contribuíram
decisivamente para esse resultado. De onde poderiam concluir os publicistas
oficiais que esses executores das proe­zas clandestinas da polícia
têm uma função providencial, como a do sapo, nos brejos
de hortaliça, contra certos animál­culos daninhos. Mas,
se considerarmos que não há notícia, até hoje,
de um rasgo de hostilidade por parte do secreta contra o capoeira, ao passo
que, por outro lado, o capoeira acaba de descobrir-se embiocado no secreta,
não será precipitada a inferência de que entre o capoeira
e o secreta houve apenas fusão, ou transformação evolutiva.
Um era a lagarta do outro. A ninfa deixou o casulo, transfigurada pela investidura
de uma dignidade útil. O navalhista empregou-se numa profissão
honesta, pôs a sua destreza ao serviço da ordem, e fez sociedade
com o Código Penal. É a política da conciliação
e do juízo. Duas potências andavam em rixa: o olho da Rua do
Lavradio e o cambapé do Largo de Santa Rita. Estão aliados na
paz da república. As praças esvaziaram-se; porque o merecimento
desses cidadãos, ingratamente retribuído e desconhecido noutros
tempos, passa a ser aproveitado agora em seguir a pista aos malfeitores de
nossa ordem. Ora graças que já um habitante desta capital pode
ter a certeza de que, se deixar um dia os intestinos na calçada, não
será por obra de algum réu de polícia.

Este consórcio tem a seu favor tradições históricas
da mais alta linhagem. Quem não conhece as glórias de Vidocq,
o célebre Vidocq? Vagabundo, histrião, desertor, falsário,
calceta, o famoso aventureiro acabou por oferecer os serviços à
ordem pública, no primeiro império, demonstrando, em grave memória
dirigida ao Barão Pasquier, que, “para descobrir ladrões,
é preciso tê-lo sido”. Acolhido pela administração
imperial, foi preposto como chefe à brigada de segurança. Mais
tarde, regressando à França os Bourbons, foi ele quem quebrou
a martelo as espigas que fixavam a estátua de Napoleão na coluna
Vendôme, e lhe amarrou os tirantes, que deviam lançá-la
por terra. Chefe de segurança em 1817, em remuneração
de tamanhos serviços, Vidocq comandava, em 1821, um corpo de agentes,
todos antigos galés, ou antigos hóspedes das penitenciárias,
como ele. E, ainda em 1830, o governo de Luís Filipe não se
desdenhou de utilizá-lo. Verdade seja que, dessa vez, os truques do
ofício deram no chão, em momentos, com uma vida inteira de espionagem
vitoriosa. Para demonstrar a imprescindibilidade de seu concurso ao prefeito
da polícia, Gisquet, — o dedicado sustentáculo das três
coroas que reinaram, neste século, sobre aquele país, fez tramar
um roubo por vários apaniguados seus, todos antigos habitantes das
prisões. Os salteadores foram presos, e o maquinador do crime agraciado
com o lugar de alta confiança, que cobiçava, à frente
da polícia reservada. Mas um dos seus instrumentos viu-se colhido na
rede, preso, condenado a dois anos de cadeia. O caso fez estrondo. A imprensa,
de mais a mais, maligna sempre, descobrira, e explorava umas parecenças
de mau efeito entre a cabeça do armador do crime e a do monarca. Vidocq
foi demitido, e um decreto, de 15 de novembro de 1833, dissolveu-lhe a brigada,
estabelecendo que ninguém mais poderia ser admitido ao serviço
policial sem boa folha corrida.

Já se vê que, rememorando este episódio, não podemos
aconselhar à república a imitação do precedente
Orléans, quanto à última parte: a resolução
imprudente, em que a autoridade abriu mão de um meio, tão necessário
aos povos morigerados e aos governos honestos, de fazer dos inocentes criminosos,
quando o bem público o exija. Uma polícia, que não disponha
de recursos eficazes, para desembaraçar limpamente o governo de seus
inimigos, é tolice. A república, entre nós, felizmente,
sabe repelir com horror os exemplos da realeza, quando eles podem ensinar-nos
os preconceitos vulgares da legalidade e da decência, e adotá-los
com sofreguidão, quando apadrinham abusos corajosos, ou escândalos
brilhantes. O modelo, portanto, cuja recomendação naturalmente
se colige das nossas escavações policiais, é o do sistema
Vidocq, nobilitado pelo consenso do primeiro império, da Restauração
e da monarquia de julho. Não queremos ir até à Nápoles
do rei Bomba. Não. Seria presunção quase irreverente
ao culto dos antepassados, de que podemos aproximar-nos, sem ter a imodéstia
de pensar em rivalizá-los.

Os secretas, já se vê, são de boa estirpe. A Constituição
não lhes permite foro de nobreza. Mas uma árvore de costado
regada pelas virtudes oficiais de tantas gerações de grilhetas
pode bem zombar das formas de governo, estendendo sobre todas a sombra indiferente
da sua proteção.

Jornal do Brasil, 11 de junho de 1893.

MILITARES E POLÍTICA

Habituado aos desazos da franqueza em matéria política, o Jornal
do Brasil cairá, talvez, hoje ainda, num desses erros do seu procedimento
usual.

Ninguém sente melhor do que nós os males do militarismo. Ninguém
lhe oporia, se pudesse, remédios mais radicais. Nossa opinião
geral, para resumirmos, é a que Burke, o sábio estadista inglês,
condensou nestas admiráveis palavras: “Um exército disciplinado
é, de sua essência, perigoso à liberdade; um exército
indisciplinado é a ruína da sociedade.” Em particular,
quanto ao Brasil, consideramos a organização imperial do exército,
a certos respeitos, como uma superfetação mortal para o organismo
republicano. Conservamos do passado monárquico instituições
marciais, que quadravam perfeitamente nele, mas que são de todo ponto
incompossíveis com a democracia federativa. Assaz nos tem ensinado
a experiência o para que valem, por via de regra, os distritos militares.
São sentinelas à vista, postas aos governos locais, para os
esmagar, ao menor aceno do centro. Chumbada a esse argolão do antigo
regímen, a vida federativa terá por medida a extensão
da cadeia, que lhe arbitrarem. Na índole do sistema que adotamos, o
exército é a trincheira viva das fronteiras. Guarda normal da
ordem é e deve ser tão-somente a administração
dos estados.

Não nos poderão suspeitar, por conseqüência, de
queda pelo elemento armado, se tomamos a liberdade de dizer que pouco confiamos
nesse movimento promovido para afastar da política os militares, bem
como nas medidas legislativas alvitradas com esse fim. Merece todos os nossos
aplausos a propaganda. Mas esses aplausos vão resfriados pelo sentimento,
oxalá que errôneo, de que lutamos com uma degenerescência
infinitamente superior aos remédios propostos. O exército que
fez uma revolução, e por ela e após ela saboreou o prazer
divino da soberania, nunca mais se reconciliará com a submissão
e a ordem. A sociedade, a cuja epiderme ele adere, viverá daí
em diante inevitavelmente dilacerada pelo terrível corrosivo. Para
edificação, tem o Brasil, em sua própria história,
o exemplo clássico de 1831 e seu desfecho. “O exército,
que aprendeu o direito público, deixou de ser exército: ou se
desagrega, ou recusa obedecer.”

Não foi só à revolução brasileira que
coube a sorte, pouco estimável, de nascer nos braços do militarismo.
Nem essa é unicamente uma feição peculiar às revoluções
hispano-americanas. Rivarol, em suas célebres Memórias, acentua
que o que aniquilou a realeza, em França, nos fins do século
dezoito “foi a deserção do exército, convertido
às idéias do terceiro estado”. “Regimentos inteiros”,
diz um publicista francês, “tinham-se revoltado, bandeando-se
para a sedição, e apoderando-se de seus chefes. Quase por toda
a parte os soldados constituíam juntas revolucionárias, que
recusavam, depunham, julgavam, e amiúde executavam seus oficiais.”
Luís XVI acordou uma manhã desamparado pela sua guarda. —
“Para que estes canhões?” perguntavam as mulheres do povo
às praças de artilheria. “Quereis matar vossas mães,
vossas mulheres, vossas filhas”? — “Não tenhais medo”,
respondiam os soldados. “Estas bocas-de-fogo serão assestadas
contra o palácio dos tiranos; não contra vós”.

A luta com a Europa não permitiu que a revolução depus­sesse
as armas. O jacobinismo dominante, desde 1792, sobre as ruínas do trono,
não se divorciou do elemento formidável, graças ao qual
as reivindicações populares levaram a cabo a república,
que a grande maioria da nação não queria em 1789, rebelando-se,
não contra a realeza, mas contra o antigo regí­men, a cuja
ruína inevitável a coroa se obstinava em associar o seu destino.
Quando o exército reapareceu na cena interior, em 1795, ficou desde
então suspenso sobre o país (todos os publicistas o reconheceram)
o instrumento, a cujos golpes a república tinha de perecer. O 13 vindimiário,
com a dissolução das seções de Paris pela metralha
de Bonaparte, iniciou a reação militar, que havia de extinguir
a ordem revolucionária criada pela ação militar.

“Um dos caracteres dessa data”, diz um dos maiores historiadores
políticos da França, “é o advento do militarismo,
o soldado sucedendo ao povo, graças às proezas violentas da
política interior. Era um fenômeno novo e grave na história
da Revolução. Em 1789 o exército só aparece um
momento, para debandar ante a insurreição. Depois desaparece
da praça pública, de onde o conservam zelosamente afastado.
Já não se mostra senão de longe, na fronteira. Ali se
afaz à guerra, e corporifica-se, enquanto a nação se
entibia, e dissolve; ilustra-se, enquanto os partidos se desonram; cresce,
ao passo que tudo se rebaixa. Eis senão quando, no 13 vindimiário,
são os próprios republicanos revolucionários, que, já
não tendo apoio nenhum na opinião, mas não querendo privar-se
do poder, vão buscar esse exército, para os defender, acoroçoam-no
a tomar partido, levam-no a votar com estrépito, convidam-lhe os generais
a se fazerem homens políticos, adulam-no, enaltecem-no, pegam-no, digamos
assim, pela mão, para induzi-lo a transpor essa fronteira ideal da
liberdade civil, esse Rubicon, que, como na república romana, detinha
as legiões longe do senado, e, afinal, o introduzem, de arma em punho,
no Forum. Uma vez dentro, ele nunca mais sairá. Protetor do Governo
hoje, será seu senhor amanhã. Defendendo-se, aprendeu a desprezá-lo.
Instruindo-se em sua força e na fraqueza do povo fatigado pela revolução,
pôde avaliar a facilidade de certas vitórias.”

Pouco depois a oposição legislativa desgostando o conquistador
da Itália, ateara no coração de Bonaparte um sentimento
congênere ao que presentemente se explora entre nós contra os
homens políticos, equiparados, outro dia, num discurso semi­militar,
aos estrangeiros. Sua correspondência com o Diretório ameaçava
“os poltrões desses advogados, esses miseráveis linguareiros”.
Excitando-o a “salvar de um só golpe a república”,
ele oferecia-lhe o concurso dos exércitos vitorio­sos, e animava-o
a quebrar os prelos aos jornalistas. Produzia-se “um movimento de opinião
moderada, que podia terminar pela fundação de um governo estável,
fechando a porta à ditadura militar”. O gênio do futuro
imperador dos franceses acompanhava-o com olhos desconfiados. Abolir a república
era já o seu pensamento. Mas com que intuito? “Eu quero”,
dizia ele a Miot de Melito, “enfraquecer o Partido Repu­bli­cano,
mas em meu proveito.” O homem, que sob o Terror pusera a máscara
jaco­bina, para, mais tarde, renegar Robespierre aniquilado, representava
então a comédia da regeneração da pátria
contra a corrupção representativa. Os brindes levantados nos
festins militares, com que ele arrastava as suas legiões a se engolfarem
na refrega política, incitavam o exército a “purificar
a França”. Passaremos como o raio, dizia-se. E passaram. O atentado
militar do 18 frutidor violou a representação nacional, pelas
mãos dos emissários do grande ambicioso, arrebatando a flor
da honra, do talento e do patrio­tismo ao conselho dos anciãos
e ao conselho dos quinhentos. E o Diretório, que fora apenas um autômato
dos projetos do pérfido corso, recebia dos restos mutilados e atônitos
dessas duas corporações o agradecimento público, por
ter salvado a liberdade. Era a farsa parlamentar após a tragédia
marcial, juntando às festas nacionais, por um decreto da legis­latura
espavorida e aviltada, a comemoração da ruína ignominiosa
do regímen eletivo com a qual se preludiava à ditadura napo­leônica.
E esse crime, a que Washington, deste lado do oceano, chamava o cúmulo
do despotismo, era saudado, em França, como a vitória das instituições
liberais contra a anarquia oposicionista.

É assim que os triunfos do militarismo desnaturam as leis, corrompem
as idéias, transpõem a lógica, e invertem o nome às
coisas, preparando o naufrágio dos direitos populares, em cujo nome
se anunciam as suas conquistas.

A pena foi-nos talvez demasiado longe na divagação histórica.
A muitos se afigurará ela uma hipérbole despropositada. Mas
não tivemos propriamente em mira estabelecer analogias, senão
sim avivar noções, em que o nosso raciocínio depois estribará.
Se não temos Napoleões, não chegamos a ser a França.
Somos uma população rarefeita, quase inteiramente dominada por
algumas capitais. Um espírito inferior, servido por um largo sistema
de corrupção e uma vasta cobiça, poderia consumar, aqui,
surpresas, que, numa nação grande e vivaz, reclamariam o gênio
dos Napoleões. Contra essa hipótese, que Deus afaste de nós,
a propaganda agora iniciada, no seio mesmo do exército, pela sua abstenção
política é um movimento excelente, mil vezes louvável.

Mas até onde será exeqüível, até onde pode
ter seriedade essa tendência, quando o ex&eacuteeacute;rcito se move nas mãos
de uma individualidade substancialmente política, e essa individualidade
é dominada, sem partilha, pelo espírito militarista? É
a questão, que buscaremos ventilar.

Jornal do Brasil, 15 de junho de 1893.

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