Somos nós Oposicionistas?

Rui Barbosa

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Eis a interrogação suscitada pelo artigo do Correio de Campinas, sobre que já discorremos. Bem indiferente nos seria a resposta, afirmativa, ou negativa, se o que se tivesse em mira, fosse apenas verificar a nossa harmonia, ou contradição com o rumo do governo. Tem a maior relevância, porém, aos nossos olhos, desde que nos põe em face dos nossos compromissos, para verificar se com eles estamos em conformidade, ou antagonismo.

Para o contemporâneo tudo é o programa do presidente. Para nós é tudo o nosso programa. O primeiro artigo do programa do governo é naturalmente o governismo. O do nosso é não sermos nem governistas, nem oposicionistas. Desde que não somos governistas estamos, pois, em divergência da mônita oficial. Mas também, se fôssemos oposicionistas, estaríamos em discrepância com o nosso programa, que é o estatuto da nossa existência, a fórmula das nossas obrigações, voluntariamente contraídas com o país. Nem governismo, pois, nem oposicionismo: eis a nossa linha convencional de proceder. Se tivéssemos descambado para o oposicionismo, estaríamos, portanto, em falta com a nossa promessa. E aqui está por onde nos interessa a questão, que a censura do nosso colega promove.

Definamos os termos. No vocabulário de todas as situações “governismo” e “oposicionismo” são dois territórios lindados por uma divisória profunda, por um fosso, por um abismo. Sem admitir que todo aquele, que não estiver em oposição se considere estar com o governo, tem-se como certo ali, por singular inconseqüência, que não estar com o governo é estar na oposição. Todo aquele, que diverge, impugna, ou critica, se o faz com eficácia de uma palavra capaz de proselitismo, conte receber para logo o sambenito de oposicionista. Não há meio-termo: ou na canoa do governo, ou dele malvisto, a ele suspeito, por ele denunciado. Essa maneira exclusiva de ver não tolera a linha média e exclui absolutamente a neutralidade.

Ora, como nesta consiste precisamente o espírito do nosso programa jornalístico, bem é de ver que não poderíamos aceitar a definição governista de governismo e oposicionismo. Demais, para tornar palpável a sua absurdez, basta notar que, expressão radical da intolerância, elimina a hipótese da neutralidade, indubitavelmente a mais vasta, sem comparação possível, das seções, em que se divide a opinião por toda a parte. Ora, se a neutralidade existe, com toda essa importância, nem pode ser abolida, no seu domínio se abrange toda essa vasta escala de convicções, que, não tendo sistema, prevenção, nem interesse contra o governo, ou a seu favor, aquilatando pelo seu critério independente a obra política, abraça dela o bem, e lhe rejeita o mal discriminativa e imparcialmente.

Neste sentido temos observado com escrúpulo o nosso roteiro de neutros, distribuindo, na medida da nossa estimativa, o louvor ou a censura, não por presumirmos de autoridade, para ditar a ninguém as nossas idéias, mas porque não temos, afinal, outra luz, senão a da nossa consciência, para discernir, em coisas humanas, o erro da verdade.

Verdade seja que mais, muito mais temos censurado que aplaudido. Isso, porém, não deriva em nós da tendência oposicionista, senão de que, havendo entre o nosso programa e o do governo algumas diversidades profundas, forçosamente a superfície em controvérsia entre nós é muito mais ampla do que se, com um programa só o houvéssemos de louvar, ou combater unicamente segundo essa pedra de toque.

Antes que o presidente eleito da República endereçasse o seu manifesto inaugural à nação, A Imprensa, no papel que as nossas convicções lhe impuseram, traçara nitidamente a norma da sua propaganda, consagrando-se à prédica da revisão constitucional. Ora, a atualidade está de guerra aberta a esse desideratum, que aliás apostaríamos ter penetrado e calado já, mais ou menos conscientemente, no ânimo do chefe do estado.

Toda vez, pois, que com os seus atos colidir a causa revisionista, ou pudermos nesses atos encontrar argumentos em auxílio dessa causa, havemos de estar com o nosso dever, propugnando-a com a fidelidade que a honra impõe às almas convencidas e aos homens responsáveis. Porque, aos nosos olhos, a necessidade, como a certeza, da revisão, é inelutável. “Ela invadirá e tomará de assalto, dentro em breve, toda a opinião republicana. A constituição atual mata a república, e dissolve o país. Urge reformarem-na, se não quiserem ir ter, por um divórcio tempestuoso entre o país e a república, na subversão, ou na anarquia.

Mas, ainda antes de nascer A Imprensa, já se achava predefinido entre nós e o futuro governo um ponto de colisão irremediável nesse convênio financeiro, cujos maus destinos de dia em dia se nos afiguram mais evidentes. O exemplo dos vários países, onde tal remédio se ensaiou em circunstâncias semelhantes, convence-nos da sua imprestabilidade. Não há tradição mais infeliz e mal agoirada na história dos estados fracos e das dívidas estrangeiras. Quiséssemos errar. Quiséramos que a uniformidade da experiência tivesse desta vez a sua primeira exceção. Mas não temos essa esperança. Sustentávamos, no congresso constituinte, que o sistema depois triunfante na constituição atual reduziria a União à miséria, à desonra e ao esfacelamento. O tempo vai-nos dando a razão, que só nos negam ainda os obstinados. Não há moratórias, que solvam crises financeiras, e reabilitem nações falidas, quando a causa da insolvência é constitucional e, através de todos os paliativos, dura nas entranhas do estado, na essência do seu organismo.

Quando se têm convicções destas, pode-se ser paciente: não se há mister de opor ao governo os tropeços de má vontade e do sofisma. Nesses casos o oposicionismo se substitui pela crítica moderada, razoável, confiante no resultado necessário das leis morais. Que ela não é estéril, destruidora, malfazeja, poderíamos demonstrá-lo, se quiséssemos historiar os serviços por ela prestados, tantas vezes e em medidas tão graves, à administração e ao país, modificando o curso ora aos atos do congresso, ora aos do governo. Em louvor de um e outro o dizemos; porquanto há, às vezes, mais virtude e talento em emendar oportuna e airosamente um desacerto do que em o evitar.

Do oposicionismo está abrigada a atualidade pela delicadeza excepcional da situação. Nenhum governo, tolhido pelos compromissos deste, resistiria, hoje, a uma oposição em certas condições, ainda meia força. Todos o sentem, e ninguém quererá essa responsabilidade.

Publicado em A Imprensa, 8 de março de 1899.

Fonte: pt.wikisource.org

 

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