O Namorador

Machado de Assis

ATO ÚNICO

PUBLICIDADE

O teatro representa uma chácara. No fundo, a casa de vivenda com quatro janelas rasgadas e uma porta para a cena. A casa dentro estará iluminada, deixando ver pelas janelas várias pessoas dançando ao som de música, outras sentadas e alguns meninos atacando rodinhas. À esquerda, no primeiro plano, a casinha do feitor, a qual, sendo saliente sobre a cena, terá uma janela larga para frente do tablado e uma porta para o lado; debaixo da janela haverá um banco de relva. No canto que faz a casinha, um monte de palha; à direita, no mesmo plano a casinha, uma carroça. Defronte da porta da casa, uma fogueira ainda não acabada; mais para frente, o mastro de S. João, e dos lados deste, um pequeno fogo de artifício constando de duas rodas nas extremidades e de fogos de vista e coloridos, que serão atacados a seu tempo. A cena é alumiada pela lua, que se vê sobre a casa por entre árvores.
(N.B.: Deve-se dar todo o espaço necessário para a distribuição da cena acima marcada, a fim de se evitar a confusão e conservar a naturalidade do que se quer representar.)

CENA I

Ritinha com um copo com água na mão, e Clementina com um ovo.

RITINHA – Só nos falta esta adivinhação. Já plantamos o dente de alho, para vê-lo amanhã nascido; já saltamos três vezes por cima de um tição…

CLEMENTINA – E já nos escondemos detrás da porta, para ouvirmos pronunciar o nome daquele que virá a ser teu noivo.

RITINHA – Vamos à do ovo. (Clementina quebra o ovo na beira do copo e deita a clara e gema dentro da água.)

CLEMENTINA – Agora dê cá, (toma o copo) e ponhamo-lo ao sereno.

RITINHA – Para quê? Explica-me esta, que eu não sei.

CLEMENTINA – Este ovo, exposto ao sereno dentro da água, vai tomar uma forma qualquer, por milagre de S. João. Se aparecer como uma mortalha, é sinal que morremos cedo; se tomar a figura de uma cama, é prova nos havemos de casar este ano; e se se mostrar debaixo da forma de véu de freira, é certo agouro que viveremos sempre solteira. (Põe o copo sobre o banco de relva.)

RITINHA – O melhor é não indagarmos isso.

CLEMENTINA – Tens receio?

RITINHA – A esperança, quando mais não seja, alimenta. Se eu tivesse a certeza que nunca acharia um noivo, não sei o que faria.

CLEMENTINA – Pois eu tenho a certeza que o acharei.

RITINHA – Podes dizer isso, és bonita…

CLEMENTINA – Também o és.

RITINHA – Mas és rica, e eu não; e esta pequena diferença muda muito a questão. És filha única e teu pai possui esta bela chácara e outras muitas propriedades. Ali dentro estão alguns moços que porfiam em te agradar; está nas tuas mãos escolheres um para noivo. E eu posso dizer outro tanto?

CLEMENTINA – E por que não?

RITINHA – Tenho apenas um namorado.

CLEMENTINA – É o primo Luís?

RITINHA – É ele mesmo, mas confesso-te ingenuamente que não sei o que ele quer. Ora mostra-se muito apaixonado, ora não faz caso de mim e namora a outras moças mesmo à minha vista; às vezes passam-se dias e dias sem me aparecer…

CLEMENTINA – Pois que esperas tu do primo Luís, daquele doudo que namora o torto e a direito a bonito e a feia, a moça e a velha?

RITINHA, suspirando – Ai, ai!

CLEMENTINA – O que admira-me é ver como tens conseguido tê-lo por namorado há quase três meses.

RITINHA – Bem esforços me tem custado.

CLEMENTINA – Eu te creio, porque ele diz que um namoro que dura mais de oito dias é maçada.

RITINHA – Tanto não poderás tu dizer dos teus, principalmente do Júlio.

CLEMENTINA – Queres que te diga uma coisa? O tal Sr. Júlio, com todos os seus excessos, já me vai aborrecendo sofrivelmente.

RITINHA – Oh, aborrecem-te os excessos?

CLEMENTINA – Quando está junto de mim tem um ar tão sentimental que faz dó ou riso.

RITINHA – É amor.

CLEMENTINA – Se é obrigado a responder-me, é titubiando e trêmulo; atrapalha-se, não sabe o que diz e também nunca acaba de dizer.

RITINHA – É amor.

CLEMENTINA – Os seus olhos não me deixam; acompanham-me por toda a parte. Não dou um passo, que não seja observada.

RITINHA – São provas de amor.

CLEMENTINA – E se eu falo com algum moço? Isso então!… Fica logo muito aflito, a mexer-se na cadeira, com o nariz muito comprido e com os olhos cheios de lágrimas. E se eu não lhe faço logo e logo a vontade, deixando de conversar com o moço, ei-lo que levanta-se arrebatadamente, pega no chapéu e sai desesperado pela porta afora como quem leva a firme tenção de nunca mais voltar. Mas qual! Daí a dous minutos está ele ao pé de mim.

RITINHA – Tudo isso é amor.

CLEMENTINA – É amor! É amor, sei, mas aborrece-me tanto amor. (Aqui aparece no fundo Júlio.)

RITINHA – Vê como são as coisas: Eu queixo-me do meu por ser indiferente; tu, do teu, por excessivo.

CLEMENTINA – É que os extremos se tocam. Não tens ouvido cantar aquele lundu: Eu que sigo o meu bem? Mas também o que é verdade é que eu às vezes muito de propósito o faço desesperar.

RITINHA – Isso é maldade. (Clementina vê Júlio, que a este tempo está atrás dela.)

CLEMENTINA, à parte, para Ritinha – Olha! E ele comigo! Não te dizia que me acompanha por toda a parte?

RITINHA, rindo-se – Adeus. (Sai correndo.)

CLEMENTINA, querendo retê-la – Espera! (Quer segui-la.)

JÚLIO, seguindo-a – Um momento! (Clementina volta-se para Júlio.)

CLEMENTINA – O que quer? (Caminha para frente.)

JÚLIO – Eu… (Fica enleado. Alguns momentos de silêncio.)

CLEMENTINA, à parte – E então?

JÚLIO – Eu… (O mesmo jogo.)

CLEMENTINA, à parte – E ficamos nisto!

JÚLIO – Se me permitisse… (Mesmo jogo.)

CLEMENTINA – O senhor está tão ansiado. Tem alguma dor?

JÚLIO – Tenho sim, ingrata, mas é no coração.

CLEMENTINA – Ah, desembuchou?

JÚLIO – Supunha passar hoje uma noite alegre e devertida, e só encontrei tormentos e desenganos.

CLEMENTINA – Ah, encontrou desenganos, coitado! Então quem foi que teve a barbaridade de o desenganar?

JÚLIO – Uma cruel, que zomba de mim e de minha vida, que ainda será causa de algum desatino.

CLEMENTINA – Ora vejam só que crueldade!

JÚLIO, desesperado – Oh, isto assim não pode durar muito. (Com ternura, pegando-lhe na mão:) Clementina, por que hás-de ser tão má comigo? Que te fiz eu para ser assim maltratado? Eu, que tanto bem te quero!

CLEMENTINA – Ontem despedimo-nos em paz. Quais são hoje as queixas?

JÚLIO – Teu primo Luís.

CLEMENTINA – Ainda ciúme?

JÚLIO – Ama-o, que ele me vingará. Não encontrarás outro coração como o meu.

CLEMENTINA – Acabou? Uma sua criada. Vou comer batatas.

JÚLIO, retendo-a – Oh, não, não!

CLEMENTINA, voltando – Com que então queria que eu estivesse toda a noute a olhar para o senhor, com a boca aberta, ham? Feito uma pateta! Que não conversasse mais com minhas amigas, que estivesse amuada em um canto da sala, eu defronte e vós à vista, assim em ar de dois toiros que se querem investir? Sabe que mais? Isto já me vai aborrecendo.

JÚLIO – Perdoa-me.

CLEMENTINA – Por mais de uma vez já lhe tenho manifestado os sentimentos que me animam a seu respeito e dado prova da preferência em que eu o tenho. Quando um dia perguntou-me se eu queria ser sua mulher, respondi-lhe com franqueza que sim, mas que previa obstáculos da parte de meu pai.

JÚLIO – Tudo isto é verdade.

CLEMENTINA – E ajuntei mais: que esse temor, porém, não esfriasse o nosso amor, que paciência e tempo tudo conseguem, e que minha mãe era por nós. E ter-me-ia esquecido a esse ponto de minha posição e pejo, se não o amasse? (Aqui entra pela esquerda, por detrás da casinha do ilhéu, Luís, com uma carta de bichos acesa, pendurada de uma varinha. Corre para Clementina, gritando.)

LUÍS – Viva S. João! Viva S. João! (Clementina foge.)

CLEMENTINA – Primo Luís, primo Luís! (Luís vai atrás dela gritando sempre, até que ela sai pelo fundo.)

CENA II

Enquanto Luís corre após Clementina, Júlio fica a olhar para ela.

JÚLIO – E veio interromper-nos na melhor ocasião! Isto foi muito de propósito! Não é sem razão que eu desconfio dela; ama ao primo. (Neste tempo, Luís, que volta para cena, está junto dele.)

LUÍS – Ó Júlio, que bela patuscada, hem?

JÚLIO, à parte – Vem mangar comigo.

LUÍS – Não há melhor! Foguetes para atacar, música para dançar, e sobretudo moças para namorar. O tio João festeja o nome de seu santo com grandeza. Tu não tens foguetes?

JÚLIO, com mau modo – Não.

LUÍS – Nem namorada?

JÚLIO, ao mesmo – Não.

LUÍS – Ó alma de cântaro, marreco de gesso! Não tens namorada, quando aquela sala está cheia de meninas tão encantadoras? Não tens namorada? Então que viste fazer?

JÚLIO – Obsequiar à pessoa que me convidou, portando-me com decência.

LUÍS – Como diabo entendes tu as coisas às avessas? Quando se convida para uma soirée, ou outra qualquer patuscada, rapazes solteiros, é para que eles namorem. Todos sabem que sem namoro as mais brilhantes reuniões esfriam e poucas horas duram. Sem namorar as moças ficam amuadas, as velhas dormem e os velhos roncam. Sem namoro, essa vivacidade que se nota nos olhares e gestos das meninas desaparece e morre, falta de alimento. Sem esse grande excitativo, o desejo de conquistar adormece no coração e leva a moleza ao corpo e o aborrecimento à alma. Tudo fica triste e sem sabor. Os pai e mãe de família cedo retiram-se com as filhas, porque não vêem possibilidade de pescarem noivos para elas onde não há namoro prometido. Mais três ou quatro contradanças e não se vêem esses casais solitários no meio de esplêndido baile, sentados nos cantinhos da sala, alheios a tudo o que se passa ao redor dela, e que tanto servem para divertimento de todos. Cessa a maledicência, desaparecem esses segredinhos que se dizem ao ouvido e que fazem corar. Numa palavra, tudo esfria, emudece, dorme! O namoro é a alma da vida, a existência necessária de todas as reuniões. É o centro ao redor do qual giram todas as afeições, intrigas, gentes e despesas. Por ele é que a menina se enfeita, que os rapazes se desafiam, e se individa o homem. Por ele é que o pobre pai de família paga a ladroada conta das francesas. Enfim, é o motor universal, é o “fogo viste lingüiça” das sociedades. Por isso é que eu todas as vezes que sou convidado para algum baile ou patuscada como esta, namoro a torto e a direito, para obsequiar o dono da casa.

JÚLIO – Ah, é para obsequiar os donos das casas? Devem-te ficar muito agradecidos.

LUÍS – E que não fiquem pouco se me dá. Faço o meu dever. Tenho feito as moças lá dentro andarem numa dobradura, inclusive a minha bela priminha.

JÚLIO, travando-lhe do braço – Isto é uma traição!

LUÍS – Hem?

JÚLIO – É uma traição que cometes para comigo de quem te dizes amigo. Sabes muito bem, porque já te tenho dito, que eu amo a tua prima.

LUÍS – E o que tem isso? Tu namoras e eu também namoro; o caso não é novo – vê-se todos os dias isso.

JÚLIO – É preciso acabarmos com este gracejo. Não zombo.

LUÍS – Nem eu.

JÚLIO – Falo muito sério.

LUÍS – Que diabo de tom é esse?

JÚLIO – Faze por toda a parte este papel de namorador e de tolo, acompanha-te sempre dessa leviandade e ar gracejador por desprezo pelo homem sensato, que pouco se me dá disso; nenhum interesse tenho eu em corrigir-te…

LUÍS – O caso vai de pregação.

JÚLIO – Mas não lances um só olhar para Clementina, não lhe digas uma só palavra de galanteio ou sedução, porque então te haverás comigo e tarde te arrependerás.

LUÍS – Quem, eu?

JÚLIO – Sim, tu.

LUÍS – Isto é uma ameaça?

JÚLIO – É, sim.

LUÍS – Ah, a coisa chegou a esse ponto? Pois meu amigo, andou muito mal; os seus ciúmes o deitaram a perder.

JÚLIO – Isso veremos.

LUÍS – Até agora eu namorava a prima inocentemente e sem intenção, como faço com todas as moças que encontro; isto é um hábito em mim. Mas agora, já que se formaliza e ameaça-me, hei-de lhe mostrar que não só namorarei a priminha de noute e de dia, como também casar-me-ei com ela.

JÚLIO, raivoso – Oh!

LUÍS – O que não tem podido fazer de mim o amor, fará o amor-próprio. Estou resolvido a casar-me.

JÚLIO, segurando-lhe na gola da casaca – Não me leves ao desespero! Desiste? (Aqui aparece no fundo Clara, que se encaminha para eles.)

LUÍS, segurando na gola da casaca de Júlio – Não quero! (Júlio agarra com a outra mão na gola da casaca de Luís, que faz o mesmo, empurrando-se mutuamente.)

JÚLIO – Não me faça praticar uma ação que nos perderia a ambos.

LUÍS – Perdido já eu estou, porque me vou casar.

JÚLIO, forcejando – Insolente!

CENA III

Clara junto deles.

CLARA – Então, o que é isto? (Os dois surpreendem-se e apartam-se.)

LUÍS – Não é nada, minha tia, estávamos experimentando forças.

CLARA – Ora, deixemos agora disso. Venham dançar, que faltam pares. Venham.

LUÍS – Vamos, tiazinha. (Para Júlio:) Vou apertar o namoro. Viva S. João! (Sai dando viças.)

CLARA, rindo-se – É um doudo este meu sobrinho. Venha, Sr. Júlio.

JÚLIO – Já vou, minha senhora. (Clara sai.)

CENA IV

Júlio, só.

JÚLIO – O que hei-de eu fazer? Talvez fiz mal em levar as coisas a este extremo. Luís principia os namoros e os deixa com a mesma facilidade. Não me devia inquietar. Maldito ciúme! Estou em uma cruel perplexidade. Devo hoje mesmo declarar-me com o Sr. João Félix e pedir-lhe a filha. Vã esperança! Estou certo que ele não consentirá; não tenho fortuna. Meu Deus! (Sai vagaroso.)

CENA V

Enquanto Júlio dirige-se para o fundo, entra pela direita baixa o ilhéu, seguido de quatro pretos, trazendo os dois primeiros lenha, o terceiro um cesto à cabeça, e o quarto um feixe de cana.

MANUEL – Paizinhos, vão acabar de fazer a fogueira. Levem primeiro vocês a cana e os carás à Senhora. (Manuel fala como os ilhéus, isto é, cantando. Os negros da lenha vão acabar de fazer a fogueira; os outros dois saem pelo fundo. Manuel, só:) Cá no Brasil é como na minha terra; também se festeja a noite de S. João. Quem me dera no Tojal! Há dois anos que aqui estou trabalhando para ganhar dinheiro e para lá voltar. Oh, quem pudera viver sem trabalhar! Cresce-me água à boca, quando vejo um rico. São os felizes, que cá o homem anda de canga ao pescoço.

CENA VI

Entra Maria com uma cesta à cabeça.

MANUEL – O que levas aí, Maria?

MARIA – A roupa que estava no campo a secar.

MANUEL – Pois ainda agora? Vem cá. (Maria deixa a cesta à porta da casinha e caminha para Manuel.)

MARIA – A senhora tomou-me o tempo e não deixou-me recolhê-la com dia. Andamos a arranjar a casa para a companhia.

MANUEL – E ela é que diverte com os seus, e nós trabalhamos.

MARIA – O que queres, Manuel? Somos pobres, que Deus assim nos fez.

MANUEL – E é do que me queixo. Todo o dia com a enxada na mão, e ainda em cima ter olhos nos paizinhos, que são peores que o diabo.

MARIA – Anda lá, não te queixes tanto, que lá no Tojal éramos mais desgraçados. Não sei como não morríamos de fome. Ganhavas seis vinténs por dia ao rabo da enxada, e cá o senhor te estima; pagou a nossa passagem.

MANUEL – Quisesse Deus que eu tivesse algum dinheirinho junto! Pagaria ao senhor o resto que lhe devo e ia comprar um burro e uma carroça para vender a iágua. O Zé voltou para S. Miguel com cinco mil cruzados que assim ganhou.

MARIA – Se puderas fazer isso, eu ficava com a senhora. Este vestido deu-me ela, e este xale também, e outros me dará ainda.

MANUEL – Pois se eu sair, sairás também, senão te desanco.

MARIA – Ai!

MANUEL – Pensas que eu não sei porque queres ficar?

MARIA – Ai, que me impacientas!

MANUEL – Bem vejo o senhor a te fazer roda como um peru.

MARIA – Esta besta! O senhor a fazer-me roda, tão velho como é? Ai, que me rio desta!

MANUEL – Vai-te rindo, bestinha, até que chores.

CLARA, da porta da casa – Maria?

MARIA – Adeus, que a senhora chama-me. Esta besta!

MANUEL – Anda com cuidado, que te tenho o olho em riba.

MARIA – Olha que cansarás a vista, animal.

CENA VII

MANUEL, só – Assim vive um homem de Deus a lavrar a terra e a vigiar a mulher. Forte ocupação, que o diabo leve! (Para os negros:) Anda paizinhos, acabem essa fogueira e vão arrumar o capim na carroça para ir para cidade. (Os dois negros saem.) Se o senhor continua a fazer festas a Maria, hei-de dizer à senhora, que não é para brincos. (Sai. Logo que Manuel sai, chega do fundo João.)

CENA VIII

JOÃO, só – Agora que lá dentro estão todos entretidos, é boa ocasião de cercar minha bela ilhoazinha para dar-lhe um abraçozinho. Aonde estará ela? (Chamando com cautela:) Maria, Maria? Tenho medo que minha mulher veja-me aqui. É velha, mais tem ciúmes como um mouro. Quem manda ser velha? Estará no quarto? (Vai espiar na casinha.) Maria? Nada. Lá dentro ainda dançam; estão devertidos e não darão por minha falta. Vou esconder-me no seu quarto e lá esperarei para surpreendê-la. Oh, que surpresa! Só assim, porque ela é arisca como o diabo. Dou-lhe um abraçozinho e depois safo-me na pontinha dos pés. Oh, que surpresa! Que contentamento! (Esfrega as mãos. Júlio, que a este tempo entra vindo do fundo, chama por ele; João, que está quase junto à porta, volta-se zangado.)

CENA IX

Júlio e João.

JÚLIO – Sr. João Félix?

JOÃO, voltando-se – Quem é?

JÚLIO – Se quisesse ter a bondade de ouvir-me por alguns instantes com atenção…

JOÃO, impaciente – O que tens agora a dizer-me, homem? Vá dançar.

JÚLIO – Pensamentos muito sérios ocupam-se neste momento para eu poder dançar.

JOÃO – Então o que é?

JÚLIO – Desculpe a minha franqueza…

JOÃO – Avie-se, que tenho pressa.

JÚLIO – Eu amo sua filha.

JOÃO – E que tenho eu com isso?

JÚLIO – Mas é que eu a amo com adoração, como nunca se amou, e pretendia…

JOÃO – Vá dizer a ela que eu lhe ordeno que dance com o senhor uma contradança; ande, vá, vá! (Empurrando-o)

JÚLIO – Não é por tão pequeno favor que eu ouso encomodá-lo.

JOÃO , à parte – Que impertinência! E eu a perder tempo e ocasião.

JÚLIO – Terei ânimo em falar, visto que o senhor não reprovou o meu amor.

JOÃO – Bem vejo que tens ânimo, mas pressa decerto que não tens. Pois é o que eu tenho.

JÚLIO – Serei breve. Concede-me a mão de sua filha?

JOÃO – Se é para dançar, já lhe dei.

JÚLIO – Não senhor, é para casar.

JOÃO – Para casar? Sempre pensei que o senhor tivesse mais juízo. Pois de noute, no meio do campo e a estas horas é que o senhor vem pedir minha filha, obrigando-me a estar aqui a cabeça ao sereno? Já eu estou constipado. (Amarra um lenço na cabeça.)

JÚLIO – Só motivos imperiosos me obrigariam a dar este passo tão precipitado.

JOÃO – Precipitado ou não precipitado, não lhe dou minha filha! (Durante a continuação desta cena João passeia pela cena, dando voltas de um para outro lado; passa por trás da carroça, vai até o fundo, volta, etc., e Júlio o segue sempre falando.)

JÚLIO – Mas senhor, Vossa Senhoria não tem razão em responder-me deste modo. Eu decerto teria escolhido melhor ocasião; há porém acontecimentos que nos levam, mau grado nosso, a dar um passo que à primeira vista parece loucura. A causa deve ser indagada. E isto é o que Vossa Senhoria deveria fazer. Não se trata de um negócio de pouca monta. A minha proposição não deve ser assim recebida. Sei que a sua filha é um partido vantajoso ainda mesmo para um homem ambicioso, mas em mim não se dá essa idéia. Procuro os dotes morais de que é ornada, as virtudes que a fazem tão amável e encantadora. Conheço-a de perto, tenho tido a honra de freqüentar sua casa. Rogo a Vossa Senhoria que me dê um momento de atenção. Esse exercício violento pode-lhe fazer mal… Minha família é muito conhecida nesta cidade; não é rica, é verdade, mas nem sempre a riqueza constitui felicidade. Meu pai foi desembargador, e minha aliança com a filha de Vossa Senhoria não pode envergonhar. Sou negociante, ainda que principiante; posso ainda fazer grande fortuna e ouso dizer que a Sra. D. Clementina não me vê com indiferença…

JOÃO, voltando-se muito zangado para Júlio – Não lhe dou minha filha, não lhe dou, não lhe dou! E tenho dito.

JÚLIO – Atenda-me!

JOÃO – Aonde viu o senhor dar-se caça a um pai de semelhante maneira?

JÚLIO – Desculpe-me, é o meu amor a causa de…

JOÃO – Homem, não me quebre mais a cabeça! Não quero, não quero e não quero, e vá-se com os diabos! Não só de minha presença, como de minha casa. Vá-se, vá-se! (Empurrando.)

JÚLIO, com altivez – Basta, senhor! Até agora recebia uma denegação e com paciência a sofri; mas agora é um insulto!

JOÃO – Seja lá o que quiser.

JÚLIO – E eu não me demorarei um só instante em sua casa.

JOÃO – Faz-me muito favor. (Júlio sai arrebatado.)

CENA X

João, só, (e depois Luís.)

JOÃO – E que tal lhe parece a impertinência? Irra! Casar-se com minha filha! Um pobre diabo que só vive do seu insignificante ordenado. Agora, ainda que fosse rico, e muito rico, não lha dava. (João vai a entrar no quarto e aparece Luís no fundo, gritando.)

LUÍS – Tio João? Tio João?

JOÃO – Outro!

LUÍS, junto dele – Quero pedir-lhe um grande favor. Trata-se de minha prima.

JOÃO, à parte – Mas tu também? (Procura no chão uma pedra. )

LUÍS – Tenho hoje reparado com mais atenção na sua beleza e sabidas qualidades.

JOÃO – Não acho eu uma pedra?

LUÍS – Que procura, tio João? Não sei por que fatalidade tenho eu estado cego a tantas perfeições. (João pega no copo que vê sobre o banco de relva.)

JOÃO – Se me dás mais uma palavra, arrumo-te com este copo pelas ventas.

LUÍS – Olhe que tem um ovo dentro!

JOÃO – Tenha o diabo! Salta, não me esquentes as orelhas!

LUÍS – Não o contrariemos, que ele tem veneta e me perderei. Está bem, tio. Até logo. (Sai.)

CENA XI

João e depois Manuel.

JOÃO, só – Ainda virá mais algum? (João vai a entrar no quarto do ilhéu e este aparece do outro lado da cena. João, à parte:) Oh, diabo! (Disfarça o seu intento, fingindo perseguir na parede da casinha um inseto que lhe escapa.)

MANUEL, à parte – Ai, o que está o senhor a fazer? (João continua no mesmo jogo.) A saltar? (Aproxima-se dele, que faz que o não vê.) Ah, senhor? (João no mesmo jogo.) Senhor? (Pegando-lhe pelo braço:) O que apanha o senhor?

JOÃO, voltando – Quem é? Ah, é você, Sr. Manuel? Homem, estava atrás de uma lagartixa que subiu pela parede.

MANUEL – Ai, senhor, deixe viver o bichinho de Deus.

JOÃO – O que quer comigo?

MANUEL – Tinha um favor que pedir ao senhor, mas envergonho-me.

JOÃO – Pois um homem deste tamanho tem vergonha? Anda, diga o que quer, e depressa, que aqui está muito sereno.

MANUEL – Queria que o senhor me perdoasse os dois meses que faltam para acabar meu trato.

JOÃO – Nada, nada, não pode ser. Dei duzentos mil-réis pela sua passagem e pela de sua mulher, para que me pagassem com os seus trabalhos. Calculo-os a vinte mil-réis por mês. Já lá se vão oito; falta ainda dois para ficarmos justos de conta. Não dispenso.

MANUEL – Mas senhor…

JOÃO – Quando acabar-se o tempo do seu trato, faremos novo ajuste. Não terei dúvida de dar-lhe mais alguma coisa. (À parte:) A minha ilhoazinha não sai daqui.

MANUEL – Tenho trabalhado muito, e já o senhor devia estar contente comigo, e não olhar a tão pouca coisa.

JOÃO – Fale-me amanhã; agora não são horas. Vá arrumar capim na carroça que vai de madrugada para a cidade.

MANUEL – E se o meu trabalho…

JOÃO, empurrando-o – Já lhe disse que amanhã… (Manuel sai. João, só:) Daqui não me sai ele. Virá ainda alguém? (Vai para entrar no quarto e chegam do fundo, correndo, quatro meninos com pistola e bicha na mão e chegam até à frente do tablado.)

MENINO – Vamos fazer uma fortaleza aqui. (Assenta-se no chão.) Juquinha, você faz outra lá. (Assentam-se todos.) Enterra as pistolas e as bichas. Eu sou o navio. Hei-de fazer fogo, e você também ajunta a areia… Anda, vem-me ajudar. (João, ao ver os meninos que chegam, quebra uma varinha de arbusto próximo, sai de trás da casinha e caminha para eles. Ao chegar junto, açoita-os com a vara. Os pequenos levantam-se, assustados e correm para dentro, gritando e chorando.)

JOÃO, gritando – Salta para dentro! (Voltando:) Até estes demoninhos vieram atrapalhar-me! Não me fio em crianças. É isto! Convida-se a certas senhoras para passarem a noite em uma casa e levam quantos filhos têm, desde o mais pequeno até o maior, para estratagema, quebrarem e pedincharem tudo quanto vêem e tocam. E importunar a todos os convidados! Deixar-me-ão desta vez entrar? (Vai para a casinha, entra e fecha a porta. Manuel, que nesse mesmo tempo aparece, o vê entrar no seu quarto.)

MANUEL – Entra no nosso quarto? Ai, o que me vale é estar a Maria lá dentro. Ele vai espera-la… Ai! Pois são estas as lagartixas? Lagartixas! (Pega no cesto que está à porta do quarto e com ele atravessa de novo a cena, sempre correndo e sai pela direita. Assim que o ilhéu sai de cena, João abre a janela do quarto que dá para a cena e espreita por ela.)

JOÃO, à janela – Queria Deus que a minha ilhoazinha não tarde. O meu coraçãozinho está pulando de contente! Mas aonde estará ela?

CLARA, do fundo – Ah, Sr. João? Sr. João? (Chamando.)

JOÃO – Oh diabo, lá está a carocha da minha mulher chamando-me. Se ela souber que estou aqui, mata-me. Ora, que culpa tenho? Calou-se. (Debruça-se na janela, espreitando.) Como tarda!…

CENA XII

Júlio de capote e boné, João e depois Clara.

JÚLIO – Devo ausentar-me desta casa onde fui insultado e para nunca mais voltar… Mas deixá-la? E o posso eu? Não, é preciso; nem mais um instante! E não posso desprender-me daqui! Fatal amor! Ela fica no meio dos prazeres, e eu… (João chega à janela, observa Júlio, fazendo esforços para reconhecê-lo.)

JOÃO – Vejo um vulto. Não posso conhecer quem é. Deixei os meus óculos lá dentro. Parece-me que está de saia e lenço à cabeça… Saia escura! É ela, não tem dúvida; é a minha ilhoazinha. Psiu, psiu! (Chamando com precaução.)

JÚLIO, surpreendido – Quem me chama?

JOÃO – Psiu, psiu, vem cá!

JÚLIO – É dali da janela. (Vai-se chegando para a janela. Nesse momento acende-se defronte da porta da casa, no fundo, uma composição mítica de fogo colorido que alumie fortemente a cena. Ao clarão do fogo os dois se reconhecem.)

JOÃO, recuando para dentro – Ai!

JÚLIO – O Sr. João! (Chegando-se para a janela:) Que faz Vossa Senhoria no quarto da ilhoa?

JOÃO, um pouco de dentro – Nada, nada. Vim ver uns pintinhos que estavam no choco?

JÚLIO – Pintos no choco?

JOÃO – Sim, sim, pois nunca viu?

JÚLIO – Mas Vossa Senhoria… (Desata a rir e caminha um pouco para a frente da cena, rindo-se sempre.)

JOÃO, chegando à janela – Psiu, psiu! Venha cá; não ria-se tão alto!

JÚLIO, rindo-se – Qual pintos! É pela ilhoa.

JOÃO – Cale-se, pelo amor de Deus! Venha cá, venha cá.

JÚLIO – Enganou-se com o meu capote! (Ri-se.)

JOÃO – Ó homem, venha cá! Olhe que minha mulher pode vir.

JÚLIO, chegando – Pois Vossa Senhoria tem medo que a Sra. D. Clara o ache tirando pinto do choco?

JOÃO – Deixemos de graça e fale baixo.

JÚLIO – Então é certo, a ilhoa? Ah, ah, ah! Vou contar isto lá dentro. (À parte:) Tu me pagarás.

JOÃO – Oh, não, meu amiguinho; minha mulher, se sabe que eu estou aqui, é capaz de arrancar-me os olhos.

JÚLIO – Há pouco era eu que rogava e Vossa Senhoria dizia não. Agora é Vossa Senhoria que roga, e eu também digo não. (João debruça pela janela e consegue agarrar em Júlio.)

JOÃO – Escute. Não tome a coisa tão em grosso; não o quis ofender.

JÚLIO – Correr-me de sua casa!

JOÃO – Não há tal.

JÚLIO – Negar-me com insultos a mão de sua filha!

JOÃO – Não neguei.

JÚLIO – Não negou?

JOÃO, à parte – Diabo!

JÚLIO – Não negou, diz o senhor. Então concede-me?

JOÃO – Não digo isso. Mas se…

JÚLIO – Ah! Sr.a D. Clara, Sra. D. Clara?

JOÃO, querendo tapar-lhe a boca – Pelo amor de Deus!

JÚLIO – Vossa Senhoria não negou-me a mão de sua filha?

JOÃO – Seja razoável.

JÚLIO – Sra. D. Clara?

JOÃO – Cale-se, homem. Cale-se com todos os milhões de diabos!

JÚLIO – Nada. Quero que ela aqui venha para ver se pode explicar-me a razão por que Vossa Senhoria nega-me a mão de sua filha. Sra. D. Clara?

JOÃO – E eu já lhe disse que lhe negava?

JÚLIO – Não? Então concede-ma?

JOÃO – Amanhã falaremos.

CLARA, no fundo – Ah, sô João, sô João?

JÚLIO – Sua senhora aí vem.

JOÃO – Vá-se embora. (Abaixa e esconde-se.)

JÚLIO, para dentro do quarto – Concede-ma?

JOÃO, dentro – Concedo.

JÚLIO – Palavra de honra?

JOÃO, dentro – Palavra de honra. (Neste tempo Clara está no meio da cena.)

CLARA – Sô João? (Júlio quer caminhar para sair pelo fundo.) Quem é?

JÚLIO – Sou eu, minha senhora.

CLARA – Ah, é o Sr. Júlio. Sabe-me dizer onde está o meu homem?

JÚLIO – Não, minha senhora.

CLARA – E esta? Há uma hora que sumiu-se lá de dentro e não aparece. (Durante este diálogo, vê-se, pela janela da casinha, João muito aflito.)

JÚLIO – Sem dúvida está dando algumas ordens lá por fora.

CLARA – Ordens a estas horas? Deixar as visitas na sala, e desaparecer!

JÚLIO – Não se inquiete, minha senhora.

CLARA – Tenho muita razão de me inquietar. Velho como é, não pára. Ah, Sr. João? Sô João?

JÚLIO, à parte – Em que talas não se vê ele! Está em meu poder. (Júlio diz estas palavras enquanto Clara chama pelo marido; volta para sair pelo fundo, e em meio da cena encontra-se com Luís. Júlio, para Luís:) Ainda teima?

LUÍS – Ainda.

JÚLIO – Veremos.

LUÍS – Veremos. (Júlio sai pelo fundo.)

CENA XIII

Luís e Clara.

LUÍS – Ó tiazinha!

CLARA – Quem é?

LUÍS – Tiazinha, tenho um favor que pedir-lhe…

CLARA – Viste teu tio?

LUÍS – Não senhora. É um favor pelo qual lhe ficarei eternamente agradecido. Sei que a ocasião não é das mais oportunas. Este passo parece imprudente…

CLARA – Que parece não; que é.

LUÍS – Por quê, tia?

CLARA – É falta de atenção.

LUÍS – Oh, a tia decerto está zombando. Se ainda não sabe…

CLARA – Sei, sei que ele está metido por aí, em algum lugar suspeito.

LUÍS – Como suspeito? De quem fala?

CLARA – De teu tio.

LUÍS – Ora, não é dele que eu falo.

CLARA – Pois então vai-te embora.

LUÍS – Escute, tia. A minha bela priminha…

CLARA – Aonde estará?

LUÍS – Lá dentro na alcova.

CLARA – Lá dentro na alcova? E o que está fazendo?

LUÍS – Conversando com suas amigas.

CLARA – Com suas amigas? Pois também tem amigas? Bravo!

LUÍS – Oh, que linguagem é esta! Pois não foi a tia quem as convidou?

CLARA – Fui sim, mas não sabia que as convidava para desinquietarem um homem casado.

LUÍS – Um homem casado?

CLARA – Um pai de família que se devia fazer respeitar pela sua idade.

LUÍS – Ai, que eu continuo a falar da prima, e ela do tio.

CLARA – Vou botá-los pela porta a fora.

LUÍS – Espere, tia, há engano entre nós. A tia fala do tio, e eu…

CLARA – E tenho muita razão de falar.

LUÍS – Não digo menos disso. O que eu pretendia dizer-lhe era…

CLARA – Já sei o que é. Quer desculpá-lo! Não vê que também é homem? Lá se entendem.

LUÍS – Continuamos no mesmo. Tia, atenda-me somente por alguns instantes, e depois eu lhe ajudarei a procurar o tio.

CLARA – Pois fala depressa.

LUÍS – Todos conhecem-me por namorador. Uns dizem que isto em mim é sistema, outros, que é devido ao meu gênio folgazão e alegre. Seja o que for, estou resolvido a acabar com todos esses namoros e casar-me. A resolução é extrema e de botar a perder um homem, mas a sorte está lançada.

CLARA, preocupada – Eu hei-de indagar isto.

LUÍS – Pode indagar. Falo de boa fé. E em quem poderia recair a minha escolha, senão na minha bela priminha?

CLARA – Não posso consentir.

LUÍS – Não? E por que motivo?

CLARA – Na sua idade?

LUÍS – Perdoe-me a tia; está em muito boa idade.

CLARA – Boa idade! Sessenta e cinco anos!

LUÍS – Adeus, tia, que não estou mais para jogar os disparates. (Vai para esquerda da cena e Clara vai para sair pelo fundo.)

CLARA, caminhando – Ah, Sr. João? Sr. João? Eu hei-de dar com ele! (Vai-se pelo fundo.)

 

CENA XIV

Luís só.

LUÍS – Quando os ciúmes metem-se na cabeça de uma mulher é isto. E se é velha como esta… Mau agouro para mim. Ora. Sr. Luís, é então verdade que o senhor está resolvido a casar-se? Já se não lembra do que dizia do casamento e dos grandes inconvenientes que lhe achava? Quer deixar a sua bela vida de namorador? O que é isto? Que resolução foi a sua? Que dirá a Ritinha, a Joaninha, a viuvinha, a Joaquinhinha, a Emília, a Henriqueta, a Cocota, a Quitinha, a Lulu, a Leopoldina, a Deolinda e as outras namoradas? Responde, Sr. Luís. Os diabos me levem se eu sei responder. (Assenta-se no banco de relva. Ouve-se dentro de casa a voz de Júlio, que canta uma modinha, acompanhado por piano. [N.B.:] A modinha fica a escolha do autor. Logo que a tiver acabado de cantar, dão palmas. Tudo isto, porém, não interromperá a continuação das cenas.) Lá está cantando modinhas! Se estivesse como eu, não havia de ter vontade de cantar. Então? O caso não me tem feito impressão. (Aqui aparece no fundo, caminhando para a frente da cena, Clementina.) Ainda não sei o que farei. Creio que mesmo depois dos pregões corridos sou capaz de mandar tudo à tabua. Mas o meu capricho? Estou arranjado!

CENA XV

Clementina e Luís.

CLEMENTINA, sem ver Luís – Estou com curiosidade de ver como estará o ovo… (Vai para ver o copo e Luís levanta-se.)

LUÍS – Priminha?

CLEMENTINA – Ai!

LUÍS – Não se assuste.

CLEMENTINA – Não gosto destes brinquedos. Que susto! Eu vinha ver o ovo.

LUÍS – Encontraste com um amante; é o mesmo. O amante é como o ovo, que muitas vezes gora.

CLEMENTINA – Fala de si? (Rindo-se.)

LUÍS – Antigamente assim fui, mas agora, priminha da minha alma, estou mudado. A noite de S. João fez um milagre. Ai, ai! (Suspira ruidosamente.)

CLEMENTINA – Bravo! Por quem é esse suspiro tão puxado?

LUÍS, caindo de joelhos – Por ti, minha priminha.

CLEMENTINA, desata a rir – Ah, ah! Por mim? Ó Ritinha?

LUÍS – Cala-te!

CLEMENTINA – Quero que ela venha ver isto e que caminho leva o seu amor.

LUÍS – Ms há já três meses que ela me ama!

CLEMENTINA – Boa razão! Não a ama porque ela ainda o ama. É isto?

LUÍS – Pois priminha, há três meses que ela me ama, e isto já é teima, e eu não me caso com mulher teimosa, isso nem pelo diabo.

CLEMENTINA – É teima? Quem te ensinará!

LUÍS – Amei-a como amei a Quitinha, etc.

CLEMENTINA – O que aí vai! E todas essas foram teimosas?

LUÍS – Umas mais, outras menos, mas tu, minha querida priminha…

CLEMENTINA – Oh, não se canse, que não sou teimosa; cedo desde já.

LUÍS – Contigo o caso é outro; hoje mesmo te principiei a amar, hoje mesmo nos casaremos e hoje mesmo…

CLEMENTINA, interrompendo-o – Ah, ah, ah! Ó Ritinha? Ritinha? (Ritinha aparece e encaminha-se para eles. Traz na mão uma vara com uma rodinha acesa. Os negros acendem a fogueira.)

LUÍS – Também isto agora é teima!

CLEMENTINA – Vem cá.

RITINHA – O que é?

CLEMENTINA – Não te dizia que me admirava dos três meses?

RITINHA – Ah!

CLEMENTINA – Já te não ama, e chama-te de teimosa.

LUÍS – Priminha!

RITINHA – Já me não ama? (Ritinha diz estas palavras dirigindo-se para Luís, que salta para evitar o fogo da rodinha que Ritinha dirige contra ele.)

LUÍS, saltando – Cuidado com o fogo!

CLEMENTINA – Fazia-me protestos de amor.

RITINHA, mesmo jogo – Ah, fazia protestos de amor?

LUÍS – Não me queime! ( O velho fecha a janela com receio, que o vejam.)

CLEMENTINA – Disse que ardia por mim.

LUÍS, fugindo de Ritinha, que o persegue com a rodinha – Agora é que eu arderei, se me deitam fogo.

RITINHA, mesmo jogo – Assim é que me pagas!

LUÍS – Assim é que me pagas! (Fugindo sempre.)

CLEMENTINA – Fogo nele, para não ser bandoleiro! (Ritinha segue mais de perto Luís, que foge e refugia-se em cima da carroça.) Assim, assim, Ritinha, ensina-o.

RITINHA – Desce cá para baixo!

LUÍS – Assim era eu asno!

CLEMENTINA – Ritinha, vá buscar lá dentro duas pistolas de lágrimas.

LUÍS – Nem pistola, nem espingarda, nem peças não me farão gostar de vocês. Agora não me caso nem à bala.

CLEMENTINA – E também, quem é que quer casar com você?

RITINHA – Eu não!

CLEMENTINA – Quem é que acredita nas palavras de um namora-paredes?

LUÍS – Muita gente!

CLEMENTINA – Estás desacreditado!

LUÍS – Na praça?

CLEMENTINA – Não, com todas as moças.

LUÍS – Melhor, mais gostarão de mim.

RITINHA – Isto não se pode aturar! Vamo-nos embora.

CLEMENTINA – Presunçoso! (Vai a sair pelo fundo.)

LUÍS – Adeus! Viva S. João! (Dentro respondem a gritos.)

CENA XVI

Luís, só, de cima da carroça.

LUÍS – Fi-la bonita! Agora nem uma nem outra. Ainda bem! Mas o diabo é ficar o maroto do Júlio muito ufano com eu ter cedido. Histórias! Não cedo em outras coisas, que namorada pouco se me dá; acho cem por uma que deixo. Contudo estou zangado. Maldita noite de S. João!

CENA XVII

Maria vem do fundo da cena e vai a entrar na casinha.

LUÍS, saltando da carroça – Psiu, psiu!

MARIA, parando – Quem é?

LUÍS, chegando-se para ela – Escuta uma coisa.

MARIA – Ai! O senhor que quer comigo?

LUÍS – Desde o dia que principiaram a chegar a esta terra carregamentos de colonos, como antigamente chegavam carregamentos de cebolas, ainda cá não apareceu uma ilhoazinha com esses olhos matadores, com esses beicinhos rosados.

MARIA – Ai, o senhor está a mangar comigo.

LUÍS – As mais que eu por aí vejo são feias como uma lacraia e vermelhas como a crista do galo; mas tu és a nata das ilhoas. (Quer abraçá-la.)

MARIA – Chegue-se para lá, que vou contar a meu marido. (Quer sair, Luís a retém.)

LUÍS – Espera. É pena que estejas casada com teu marido.

MARIA – Ai, pois eu podia estar casada com um homem que não fosse meu marido?

LUÍS – Pois não.

MARIA – Está zombando? (Neste tempo a fogueira está de todo acesa e todas as pessoas que estão na casa saem e ficam ao redor da fogueira, ad libitum.)

LUÍS – Sentemo-nos neste banco, que te explicarei como pode isto ser. Aqui nos podem ver lá de cima com o clarão da fogueira.

MARIA – Estou com curiosidade.

LUÍS, à parte – Isto sei eu. (Assentam-se no banco.) Supõe que nunca tenhas visto teu marido… Que mãozinhas! (Pega-lhes nas mãos.)

MARIA – Largue minha mão!

LUÍS – Nem encontrado com ele… Que olhinhos!

MARIA – Deixe meus olhos!

LUÍS – Ora, se nunca o tivesse visto nem encontrado, está claro que agora não estarias casada com o teu marido.

MARIA – Ora vejam! E é verdade!

LUÍS – Não terias dado essa mão, (pega-lhe na mão) que tanto estimo… (Aqui atravessa a cena Manuel, vestido de mulher, e entra no seu quarto.)

MANUEL, atravessando a cena – Custou-me o arranjar-me…

MARIA – O senhor tem um modo de explicar as coisas que entram pelos olhos… De sorte que se eu não tivesse encontrado a Manuel, não estava hoje casada?

LUÍS – Decerto.

MARIA – Sabe o senhor quando eu o vi? Foi numa festa que se deu no Funchal. (Manuel, depois de entrar no quarto, fecha a porta e fica dentro do quarto, defronte da janela. Chega-se para ele, como vindo do interior, João, que supondo ser a Maria, o abraça.)

JOÃO – Minha ilhoazinha, minha Mariquinha! (Dá abraços e beijos, que Manuel corresponde.)

MARIA – Hem?

LUÍS – Não disse nada. Continua. (Continua a ter a mão dela na sua.)

MARIA – Eu ia para a festa. Ai, agora é que me lembro que se não fosse a festa também não estava casada!

LUÍS, dando-lhe um abraço – Maldita festa!

MARIA – Fique quieto! Veja o diabo as arma.

LUÍS – É verdade! (Manuel e João, que ouvem as vozes dos dois, chegam-se para a janela, e dando com os dois no banco abaixo, ficam observando, dando sinais de grande surpresa.)

MARIA – Estive quase não indo à festa, e se não fosse o meu vestido novo… Ai, senhor, e se não fosse o vestido novo, eu também não estava casada.

LUÍS, abraçando – Maldito vestido!

MARIA – Foi minha tia que mo deu. Ai, que se eu também não tivesse tia, não era agora mulher de meu marido. (Manuel debruça-se pela janela e a agarra no pescoço.)

MANUEL – Maldita mulher! (Maria dá um grito e levanta-se; o mesmo faz Luís. Maria, conhecendo o marido, deita a correr, atravessando a cena. Manuel salta pela janela e a persegue, gritando. Saem ambos da cena.)

LUÍS, vendo Manuel saltar – Que diabo é isto? (Reconhecendo João, que fica à janela:) O tio João!

JOÃO – Cala-te! (Esconde-se.)

LUÍS, rindo-se – No quarto da ilhoa! (Acodem todos, isto é, Clara, Clementina, Ritinha, Júlio e os convidados.)

CENA XVIII

CLARA – O que é? Que gritos são estes?

CLEMENTINA, ao mesmo tempo – O que aconteceu?

RITINHA, ao mesmo tempo – O que foi? (Luís ri-se.)

CLARA – O que é isto, Luís? Fala. (Luís continua a rir-se.)

CLEMENTINA – De que se ri tanto o primo?

CLARA – Não falarás?

LUÍS – Quer que eu fale? Ah, ah, ah!

CLARA – E esta?

CLEMENTINA – Eu ouvi a voz da Maria.

CENA XIX

Entra Maria adiante de Manuel, gemendo. Manuel conserva-se vestido de mulher.

RITINHA – Aí vem ela.

CLARA – A gemer. Que foi?

MANUEL, que traz um pau na mão – Anda! (Maria vem gemendo, assenta-se no banco debaixo da janela.)

CLARA – Ai, o Manuel vestido de mulher! Que mascarada é esta?

CLEMENTINA – Como está feio!

CLARA – Mas que é isto? Por que gemes?

MARIA – Ai, ai, ai! Minhas costas…

MANUEL – É uma vergonha!

CLARA, para Manuel – O que fez ela?

MARIA, gemendo – Minha costela… minha cabeça…

MANUEL – O que fez? Um desaforo! Mas eu lhe ensinei com este pau.

CLARA – Deste-lhe com o pau?

CLEMENTINA – Pobre Maria!

MARIA – Ai, ai, ai! Minhas pernas…

CLARA, para Manuel – Mas por quê?

MANUEL – Estava a desencaminhar-se com o Sr. Luís.

CLARA – Com meu sobrinho?

CLEMENTINA, ao mesmo tempo – Com o primo?

RITINHA, ao mesmo tempo – Com ele?

JÚLIO, ao mesmo tempo – É bom saber!

LUÍS – Não há tal, tia. Este diabo está bêbado! Não vê como está vestido?

MANUEL – Olhe, senhora, que não estou bêbado. Eu bem vi, com estes olhos que a terra há-de comer, o senhor dar abraços na Maria.

CLARA – Ai, que indecência!

CLEMENTINA – Que vergonha! Namorando uma ilhoa!

RITINHA – Que humilhação!

JÚLIO – De que se admiram, minhas senhoras? É esse o costume do Sr. Luís. Tudo lhe faz conta – a velha, a moça, a bonita, a feia, a branca, a cabocla…

CLEMENTINA – Que horror!

RITINHA, ao mesmo tempo – Que horror! (Alguns convidados riem-se.)

LUÍS – Psiu! Alto lá, Sr. Júlio, cá ninguém o chamou!

JÚLIO – E o melhor é, minhas senhoras, que ele nutre grandes esperanças de casar-se com uma das senhoras desta roda.

TODAS AS SENHORAS – Comigo não!

LUÍS, chegando-se para Júlio – Já estás cantando vitória?

JÚLIO, para as senhoras – Vejam o que faz a presunção!

LUÍS – Ainda é cedo, meu menino! Pensa que eu cedo com essa facilidade? (Aqui João sai do quarto do ilhéu, pé ante pé, para não ser visto, e encaminha-se para o fundo.)

JÚLIO – Cederás, que te digo eu!

LUÍS – Deverás? (Zombando. Volta para trás e vê João, que se retira para o fundo.) Ó tio João? Tio João? Venha cá! (Vai buscá-lo e trá-lo para frente.)

CLARA – Ai, onde estava este homem metido?

CLEMENTINA – O que quererá ele fazer?

JÚLIO – O que pretenderá?

LUÍS – Tio?

CLARA, interrompendo e puxando João pelo braço – Aonde estavas?

LUÍS, puxando-o pelo braço – Espere, tio, deixe que eu…

CLARA, mesmo jogo – Quero que me diga o que fez estas duas horas.

LUÍS, mesmo jogo – Logo perguntará por isso, que agora tenho eu que lhe falar.

CLARA, mesmo jogo – Nada; primeiro há-de me dizer onde esteve escondido. Isto se faz? Eu a procurá-lo…

LUÍS, mesmo jogo – Dê-me atenção!

CLARA, mesmo jogo – Responda!

LUÍS, mesmo jogo – Deixe-o!

CLARA, mesmo jogo – Deixa-o tu também!

LUÍS, metendo-se entre Clara e João – Ora tia, que impertinência é essa? Tem tempo de fazer-lhe perguntas e ralhar como quiser. (Enquanto Luís fala com Clara, Júlio segura João pelo braço.)

JÚLIO – Lembre-se da sua promessa!

LUÍS, puxando João pelo braço e falando-lhe à parte – Eu bem vi aonde estava… No quarto da ilhoa.

JÚLIO, mesmo jogo – Espero que não falte; quando não, digo tudo à Senhora D. Clara.

LUÍS, mesmo jogo – Se não consentir no que eu lhe quero pedir, descubro tudo à tia.

CLARA – O que quer isto dizer?

JÚLIO, mesmo jogo, mas falando alto – Dá-me a sua filha por esposa?

LUÍS, mesmo jogo – Concede-me a mão da prima?

JÚLIO, mesmo jogo, à parte – Olhe que eu falo…

LUÍS, mesmo jogo – Se ma não der, conto tudo…

JÚLIO, mesmo jogo, alto – Então?

LUÍS, mesmo jogo – O que resolve?

JÚLIO e LUÍS, mesmo jogo – Sim ou não?

JOÃO – Casem-se ambos, e deixem-me!

CLEMENTINA, RITINHA, JÚLIO, LUÍS – Ambos?

CLARA, puxando por João – Que história são essas?

MANUEL, mesmo jogo – Pague-me o que deve!

LUÍS, mesmo jogo – Dê-me a prima!

JÚLIO, mesmo jogo – Assim falta à sua palavra?

MANUEL, mesmo jogo – O meu dinheiro?

JÚLIO, mesmo jogo – Falarei!

LUÍS, mesmo jogo – O que decide? (Todos quatro rodeiam João, que assenta-se no chão e mergulha a cabeça, tapando-a com os braços.)

CLARA – Não o deixo enquanto não me disser aonde esteve, o que fez. Se isto são modos!

JÚLIO, ao mesmo tempo – Vossa Senhoria prometeu-me. Se não quer que eu fale, cumpra a sua palavra.

MANUEL, ao mesmo tempo – Quero-me ir embora! Nem um instante mais aqui! Paga-me o que me deve.

LUÍS – Basta! Deixem-no! Levante-se, tio; aqui está a minha mão. (João levanta-se.) Tranqüilize-se. (À parte, para João:) Faça o que lhe eu mandar, que o salvarei. (Para Júlio:) Bem vê que eu ainda podia lutar, mas sou generoso; não quero. (Para João:) Tio, dê-lhe a mão da prima, (ao ouvido:) que nos calaremos. (João, sem dizer palavra, vai apressado para Clementina, lava-a para junto de Júlio, a quem a entrega, e os abençoa.)

JÚLIO – Ó felicidade!

LUÍS – Disto estou livre. (Para João:) Pague ao Sr. Manuel o que lhe deve. (João mete a mão na algibeira do colete, tira um maço de bilhetes e entrega a Manuel.)

MANUEL – É pouco. (João dá-lhe mais dinheiro.) Agora sim, vou comprar uma carroça!

LUÍS – Agora dê um abraço na tia. (João vai abraçar a Clara.)

LUÍS – Anda, e diga à tia que estava lá fora no portão, ajustando com o italiano das fazendas dois vestidos de crepe bordado dos quais lhe queria fazer mimo.

CLARA – Dous vestidos?

LUÍS – E riquíssimos!

CLARA – Ai, vidinha, e eu estava desconfiando de ti! (Abraça-o)

LUÍS, tomando a João à parte – Não se meta noutra. Deixe o namoro para os moços solteiros.

JOÃO – Estou castigado! E emendado!

RITINHA, que se tem aproximado de Luís – E nós?

LUÍS, fingindo que a não ouve – Viva S. João! Vamos ao fogo! (Ritinha bate o pé de raiva. Acendem o fogo de artifício, e no meio de Viva S. João! e gritos de alegria desce o pano.

Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br

 

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.