O Caminho da Porta

Machado de Assis

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Comédia em um ato

Representada pela primeira

vez no Ateneu Dramático

em setembro de 1862.

PERSONAGENS

Dr. Cornélio – Sr. Cardoso

Valentim – Sr. Pimentel

Inocêncio – Sr. Martins

Carlota – Sra. D. Maria Fernanda

EM CASA DE CARLOTA

Sala elegante. – Duas portas no fundo, portas laterais, consolos, piano, divã, poltronas, cadeiras, mesa, tapete, espelhos, quadros; figuras sobre os consolos; álbum, alguns livros, lápis, etc., sobre a mesa.

CENA I
Valentim, assentado à E., o Doutor, entrando

VALENTIM – Ah! és tu?

DOUTOR – Oh! Hoje é o dia das surpresas. Acordo, leio os jornais e vejo anunciado para hoje o Trovador. Primeira surpresa. Lembro-me de passar por aqui para saber se D. Carlota queria ir ouvir a ópera de Verdi, e vinha pensando na triste figura que devia fazer em casa de uma moça do tom, às 10 horas da manhã, quando te encontro firme como uma sentinela no posto. Duas surpresas.

VALENTIM – A triste figura sou eu?

DOUTOR – Acertaste. Lúcido como uma sibila. Fazes uma triste figura, não to devo ocultar.

VALENTIM (irônico) – Ah!

DOUTOR – Tens ar de não dar credito ao que digo! Pois olha, tens diante de ti a verdade em pessoa, com a diferença de não sair de um poço, mas da cama e de vir em traje menos primitivo. Quanto ao espelho, se o não trago comigo, há nesta sala um que nos serve com a mesma sinceridade. Mira-te ali. Estás ou não uma triste figura?

VALENTIM – Não me aborreças.

DOUTOR – Confessas então?

VALENTIM – És divertido como os teus protestos de virtuoso! Aposto que me queres fazer crer no desinteresse das tuas visitas a D. Carlota?

DOUTOR – Não.

VALENTIM – Ah!

DOUTOR – Sou hoje mais assíduo do que era há um mês, e a razão é que há um mês que começaste a fazer-lhe a corte.

VALENTIM – Já sei: não me queres. perder de vista.

DOUTOR – Presumido! Eu sou lá inspetor dessas coisas? Ou antes, sou: mas o sentimento que me leva a estar presente a essa batalha pausada e paciente está muito longe do que pensas; estudo o amor.

VALENTIM – Somos então os teus compêndios?

DOUTOR – É verdade.

VALENTIM – E o que tens aprendido?

DOUTOR – Descobri que o amor é uma pescaria…

VALENTIM – Queres saber de uma coisa? Estás prosaico como os teus libelos.

DOUTOR – Descobri que o amor é uma

pescaria…

VALENTIM – Vai-te com os diabos!

DOUTOR – Descobri que o amor é uma pescaria. O pescador senta-se sobre um penedo, à beira do mar. Tem ao lado uma cesta com iscas; vai pondo uma por uma no anzol e atira às águas a pérfida linha. Assim gasta horas e dias até que o descuidado filho das águas agarra no anzol, ou não agarra e…

VALENTIM – És um tolo.

DOUTOR – Não contesto; pelo interesse

que tomo por ti. Realmente doe-me ver-te tantos dias exposto ao sol, sobre o penedo, com o caniço na mão, a gastar as tuas iscas e a tua saúde, quero dizer a tua honra.

VALENTIM – A minha honra?

DOUTOR – A tua honra, sim. Pois para homem de senso e um tanto sério o ridículo não é uma desonra? Tu estás ridículo. Não há dia em que não venhas gastar três, quatro, cinco horas a cercar esta viúva de galanteios e atenções, acreditando talvez ter adiantado muito, mas estando ainda hoje como quando começastes. Olha, há Penélopes da virtude e Penélopes do galanteio. Umas fazem e desmancham teias por terem muito juízo; outras as fazem e desmancham por não terem nenhum.

VALENTIM – Não deixas de ter uma tal ou qual razão.

DOUTOR – Ora, graças a Deus!

VALENTIM – Devo, porém, prevenir-te de uma coisa: é que ponho nesta conquista a minha honra. Jurei aos meus deuses casar-me com ela e hei de manter o meu juramento.

DOUTOR – Virtuoso Romano!

VALENTIM – Faço o papel de Síssifo. Rolo a minha pedra pela montanha; quase a chegar com ela ao cimo, uma mão invisível fá-la despenhar de novo, e ali volto a repetir o mesmo trabalho. Se isto é um fortúnio, não deixa de ser uma virtude.

DOUTOR – A virtude da paciência. Empregavas melhor essa virtude em fazer palitos do que em fazer a roda a esta namoradeira. Sabes o que aconteceu aos companheiros de Ulisses passando pela ilha de Circe? Ficaram transformados em porcos. Melhor sorte teve Ateon que, por espreitar Diana no banho, passou de homem a veado. Prova evidente de que é melhor pilhá-las no banho do que andar-lhes à roda nos tapetes da sala.

VALENTIM – Passas de prosaico a cínico.

DOUTOR – É uma modificação. Tu estás sempre o mesmo: ridículo.

CENA II
Os mesmos, Inocêncio trazido por um criado

INOCÊNCIO – Oh!

DOUTOR (baixo a Valentim) – Chega o teu competidor.

VALENTIM (baixo) – Não me vexes.

INOCÊNCIO – Meus senhores! Já por cá? Madrugaram hoje!

DOUTOR – É verdade. E V. S.?

INOCÊNCIO – Como está vendo. Levanto-me sempre com o sol.

DOUTOR – Se V. S. é outro.

INOCÊNCIO (não compreendendo) -Outro que? Ah outro sol! Este doutor tem umas expressões tão… fora do vulgar! Ora veja, a mim ainda ninguém se lembrou de dizer isto. Sr. Doutor, V. S. há de tratar de um negócio que trago pendente no foro. Quem fala assim é capaz de seduzir a própria lei!

DOUTOR – Obrigado!

INOCÊNCIO – Onde está a encantadora D. Carlota? Trago-lhe este ramalhete que eu próprio colhi e arranjei. Olhem como estas flores estão bem combinadas: rosas, paixão; açucenas, candura. Que tal?

DOUTOR – Engenhoso!

INOCÊNCIO (dando-lhe o braço) – Agora ouça, Sr. Doutor. Decorei umas quatro palavras para dizer ao entregar-lhe estas flores. Veja se condizem com o assunto.

DOUTOR – Sou todo ouvidos.

INOCÊNCIO – “Estas flores são um presente que a primavera faz à sua irmã por intermédio do mais ardente admirador de ambas”. Que tal?

DOUTOR – Sublime! (Inocêncio ri-se à socapa). Não é da mesma opinião?

INOCÊNCIO – Pudera não ser sublime; se eu próprio copiei isto de um Secretário dos Amantes!

DOUTOR – Ah!

VALENTIM (baixo ao Doutor) – Gabo-te a paciência!

DOUTOR (dando-lhe o braço) – Pois que tem! É miraculosamente tolo. Não é da mesma espécie que tu…

VALENTIM – Cornélio!

DOUTOR – Descansa; é de outra muito pior.

CENA III
Os mesmos, Carlota

CARLOTA – Perdão, meus senhores, de os haver feito esperar… (Distribui apertos de mão).

VALENTIM – Nós é que lhe pedimos desculpa de havermos madrugado deste modo…

DOUTOR – A mim, traz-me um motivo justificável.

CARLOTA (rindo) – Ver-me? (Vai sentar-se).

DOUTOR – Não.

CARLOTA – Não é um motivo justificável, esse?

DOUTOR – Sem duvida; incomodá-a é que o não é. Ah! minha senhora, eu aprecio mais do que nenhum outro o despeito que deve causar a uma moça uma interrupção no serviço da toilette. Creio que é coisa tão séria como uma quebra de relações diplomáticas.

CARLOTA – O Sr. Doutor graceja e exagera. Mas qual é esse motivo que justifica a sua entrada em minha casa a esta hora?

DOUTOR – Venho receber as suas ordens acerca da representação desta noite.

CARLOTA – Que representação?

DOUTOR – Canta-se o Trovador.

INOCÊNCIO – Bonita peça!

DOUTOR – Não pensa que deve ir?

CARLOTA – Sim, e agradeço-lhe a sua amável lembrança. Já sei que vem oferecer-me o seu camarote. Olhe, há de desculpar-me este descuido, mas prometo que vou quanto antes tomar uma assinatura.

INOCÊNCIO (a Valentim) – Ando desconfiado do Doutor!

VALENTIM – Por que?

INOCÊNCIO – Veja como ela o trata! Mas eu vou desbancá-lo com a minha frase do Secretário dos Amantes… (Indo a Carlota) Minha senhora, estas flores são um presente que a primavera faz a sua irmã…

DOUTOR (completando a frase) – Por intermédio do mais ardente admirador de ambas.

INOCÊNCIO – Sr. Doutor!

CARLOTA – O que é?

INOCÊNCIO (baixo) – Isto não se faz! (A Carlota) Aqui tem, minha senhora…

CARLOTA – Agradecida. Por que se retirou ontem tão cedo? Não lho quis perguntar… de boca; mas creio que o interroguei com o olhar.

INOCÊNCIO (no cúmulo da satisfação) – De boca?… Com o olhar?… Ah! queira perdoar, minha senhora… mas um motivo imperioso…

DOUTOR – Imperioso… não é delicado.

CARLOTA – Não exijo saber o motivo; supus que se houvesse passado alguma coisa que o desgostasse…

INOCÊNCIO – Qual, minha senhora; o que se poderia passar? Não estava eu diante de V. Excia. para consolar-me com seus olhares de algum desgosto que houvesse? E não houve nenhum.

CARLOTA (ergue-se e bate-lhe com o leque no ombro) Lisonjeiro!

DOUTOR (descendo entre ambos) – V. Excia. há de desculpar-me se interrompo uma espécie de idílio com uma coisa prosaica, ou antes com outro idílio, de outro gênero, um idílio do estômago: o almoço…

CARLOTA – Almoça conosco?

DOUTOR – Oh! minha senhora, não seria capaz de interrompê-la; peço simplesmente licença para ir almoçar com um desembargador da relação a quem tenho de prestar umas informações.

CARLOTA – Sinto que na minha perda ganhe um desembargador; não sabe como odeio a toda essa gente do foro; faço apenas uma exceção.

DOUTOR – Sou eu.

CARLOTA (sorrindo) – É verdade. Donde concluiu?

DOUTOR – Estou presente!

CARLOTA – Maldoso!

DOUTOR – Fica, não, Sr. Inocêncio?

INOCÊNCIO – Vou. (Baixo ao Doutor) Estalo de felicidade!

DOUTOR – Até logo!

INOCÊNCIO – Minha senhora!

CENA IV
Carlota, Valentim

CARLOTA – Ficou?

VALENTIM (indo buscar o chapéu) – Se a incomodo…

CARLOTA – Não. Dá-me prazer até. Ora, por que há de ser tão suscetível a respeito de tudo o que lhe digo?

VALENTIM – É muita bondade. Como não quer que seja suscetível? Só depois de estarmos a sós é que V. Excia. se lembra de mim. Para um velho gaiteiro acha V. Excia. palavras cheias de bondade e sorrisos cheios de doçura.

CARLOTA – Deu-lhe agora essa doença? (Vai sentar-se junto à mesa).

VALENTIM (senta-se junto à mesa defronte de Carlota) – Oh! não zombe, minha senhora! Estou certo de que os mártires romanos prefeririam a morte rápida à luta com as feras do circo. O seu sarcasmo é uma fera indomável; V. Excia. tem certeza disso e não deixa de lançá-lo em cima de mim.

CARLOTA – Então sou temível? Confesso que ainda agora o sei. (Uma pausa). Em que cisma?

VALENTIM – Eu?… em nada!

CARLOTA – Interessante colóquio!

VALENTIM – Devo crer que não faço uma figura nobre e séria. Mas não me importa isso! A seu lado eu afronto todos os sarcasmos do mundo. Olhe, eu nem sei o que penso, nem sei o que digo. Ridículo que pareça, sinto-me tão elevado o espírito que chego a supor em mim algum daqueles toques divinos com que a mão dos deuses elevava os mortais e lhes inspirava forças e virtudes fora do comum.

CARLOTA – Sou eu a deusa.

VALENTIM – Deusa, como ninguém sonhara nunca; com a graça de Vênus e a majestade de Juno. Sei eu mesmo defini-la? Posso eu dizer em língua humana o que é esta reunião de atrativos únicos feitos pela mão da natureza como uma prova suprema do seu poder? Dou-me por fraco, certo de que nem pincel nem lira poderão fazer mais do que eu.

CARLOTA – Oh! é de mais! Deus me livre de o tomar por espelho. Os meus são melhores. Dizem coisas menos agradáveis, porém, mais verdadeiras…

VALENTIM – Os espelhos são obras humanas; imperfeitos, como todas as obras humanas. Que melhor espelho quer Vossa Excia. que uma alma ingênua e cândida?

CARLOTA – Em que corpo encontrarei… esse espelho?

VALENTIM – No meu.

CARLOTA – Supõe-se cândido e ingênuo!

VALENTIM – Não me suponho, sou.

CARLOTA – É por isso que traz perfumes e palavras que embriagam? Se há candura é em querer fazer-me crer…

VALENTIM – Oh! não queira V. Excia. trocar os papéis. Bem sabe que os seus perfumes e as suas palavras é que embriagam. Se eu falo um tanto diversamente do comum é porque falam em mim o entusiasmo e a admiração. Quanto a V. Excia. basta abrir os lábios para deixar cair dele aromas e filtros cujo segredo só a natureza conhece.

CARLOTA – Estimo antes vê-lo assim. (Começa a desenhar distraidamente em um papel).

VALENTIM – Assim… como?

CARLOTA – Menos… melancólico.

VALENTIM – É esse o caminho do seu coração?

CARLOTA – Queria que eu própria lho indicasse? Seria trair-me, e tirava-lhe a graça e a glória de o encontrar por seus próprios esforços.

VALENTIM – Onde encontrarei um roteiro?

CARLOTA – Isso não tinha graça! A glória está em achar o desconhecido depois da luta e do trabalho… Amar e fazer-se amar por um roteiro… oh! que coisa de mau gosto!

VALENTIM – Prefiro esta franqueza. Mas V. Excia. deixa-me no meio de uma encruzilhada com quatro ou cinco caminhos diante de mim, sem saber qual hei de tomar. Acha que isto é de coração compassivo?

CARLOTA – Ora! siga por um deles, à direita ou à esquerda.

VALENTIM – Sim, para chegar ao fim e encontrar um muro; voltar, tomar depois por outro…

CARLOTA – E encontrar outro muro? É possível. Mas a esperança acompanha os homens e com a esperança, neste caso, a curiosidade. Enxugue o suor, descanse um pouco, e volte a procurar o terceiro, o quarto, o quinto caminho, até encontrar o verdadeiro. Suponho que todo o trabalho se compensará com o achado final.

VALENTIM – Sim. Mas, se depois de tanto esforço, for encontrar-me no verdadeiro caminho com algum outro viandante de mais tino e fortuna?

CARLOTA – Outro?… que outro? Mas… isto é uma simples conversa… O Sr. faz-me dizer coisas que não devo… (Cai o lápis ao chão. Valentim apressa-se em apanhá-lo e ajoelha nesse ato).

CARLOTA – Obrigada. (Vendo que ele continua ajoelhado). Mas levante-se!

VALENTIM – Não seja cruel!

CARLOTA (levantando-se) – Faça o favor de levantar-se!

VALENTIM (levantando-se) – É preciso pôr um termo a isto!

CARLOTA (fingindo-se distraída) – A isto o que?

VALENTIM – V. Excia. é de um sangue frio de matar!

CARLOTA – Queria que me fervesse o sangue? Tinha razão para isso. A que propósito fez esta cena de comédia?

VALENTIM – V. Excia. chama a isto comédia?

CARLOTA – Alta comédia, está entendido. Mas que é isto? Está com lágrimas nos olhos?

VALENTIM – Eu… ora… ora… que lembrança!

CARLOTA – Quer que lhe diga? Está ficando ridículo.

VALENTIM – Minha senhora!

CARLOTA – Oh! ridículo! ridículo!

VALENTIM – Tem razão. Não devo parecer outra coisa a seus olhos! O que sou eu para V. Excia.? Um ente vulgar, uma fácil conquista que V. Excia. entretêm, ora animando, ora repelindo, sem deixar nunca conceber esperanças fundadas e duradouras. O meu coração virgem deixou-se arrastar. Hoje, se quisesse arrancar de mim este amor, era preciso arrancar com ele a vida. Oh! não ria, que é assim!

VALENTIM – Por que motivo havia de me ouvir com interesse?

CARLOTA – Não é por ter a alma seca; é por não acreditar nisso.

VALENTIM – Não acredita?

CARLOTA – Não.

VALENTIM (esperançoso) – E se acreditasse?

CARLOTA (com indiferença) – Se acreditasse, acreditava!

VALENTIM – Oh! é cruel!

CARLOTA (depois de um silêncio) – Que é isso? Seja forte! Se não por si, ao menos pela posição esquerda em que me coloca.

VALENTIM (sombrio) – Serei forte? Fraco no parecer de alguns… forte no meu… Minha senhora!

CARLOTA (assustada) – Onde vai?

VALENTIM – Até… minha casa! Adeus! (Sai arrebatadamente. Carlota para estacada; depois vai ao fundo, volta ao meio da cena, vai à direita; entra o Doutor).

CARLOTA – Sinto que não possa ouvi-lo com interesse.

CENA V
Carlota, o Doutor

DOUTOR – Não me dirá, minha senhora, o que tem Valentim que passou por mim como um raio, agora, na escada?

CARLOTA – Eu sei! Ia mandar em procura dele. Disse-me aqui umas palavras ambíguas, estava exaltado, creio que…

DOUTOR – Que se vai matar?… (Correndo para a porta). Faltava mais esta!…

CARLOTA – Ah! por que?

DOUTOR – Porque mora longe. No caminho há de refletir e mudar de parecer. Os olhos das damas já perderam o condão de levar um pobre diabo à sepultura: raros casos provam uma diminuta exceção.

CARLOTA – De que olhos e de que condão me fala?

DOUTOR – Do condão de seus olhos, minha senhora! Mas que influência é essa que V. Excia. exerce sobre o espírito de quantos se deixam apaixonar por seus encantos? A um inspira a idéia de matar-se; a outro exalta-o de tal modo com algumas palavras e um toque de seu leque, que quase chega a ser causa de um ataque apoplético!

CARLOTA – Está-me falando grego!

DOUTOR – Quer português, minha senhora? Vou traduzir o meu pensamento. Valentim é meu amigo. É um rapaz, não direi virgem de coração, mas com tendências às paixões de sua idade. V. Excia. por sua graça e beleza inspirou-lhe, ao que parece, um desses amores profundos de que os romances dão exemplo. Com vinte e cinco anos, inteligente, benquisto, podia fazer um melhor papel que o de namorado sem ventura. Graças a V. Excia., todas as suas qualidades estão anuladas: o rapaz não pensa, não vê, não conhece, não compreende ninguém mais que não seja Vossa Excia.

CARLOTA – Para aí a fantasia?

DOUTOR – Não, senhora. Ao seu carro atrelou-se com o meu amigo, um velho, um velho, minha senhora, que, com o fim de lhe parecer melhor, pinta a coroa venerável de seus cabelos brancos. De sério que era, fê-lo V. Excia. uma figurinha de papelão, sem vontade nem ação própria. Destes sei eu; ignoro se mais algum dos que freqüentam esta casa andam atordoados como estes dois. Creio, minha senhora, que lhe falei no português mais vulgar e próprio para me fazer entender.

CARLOTA – Não sei até que ponto é verdadeira toda essa história, mas consinta que lhe observe quanto andou errado em bater à minha porta. Que lhe posso eu fazer? Sou culpada de alguma coisa? A ser verdade isso que contou, a culpa é da natureza que os fez fáceis de amar, e a mim, me fez… bonita?

DOUTOR – Pode dizer mesmo encantadora.

CARLOTA – Obrigada!

DOUTOR – Em troca do adjetivo deixe acrescentar outro não menos merecido: namoradeira.

CARLOTA – Hein?

DOUTOR – Na-mo-ra-dei-ra.

CARLOTA – Está dizendo coisas que não têm senso comum.

DOUTOR – O senso comum é comum a dois modos de entender. É mesmo a mais de dois. É uma desgraça que nos achemos em divergência.

CARLOTA – Mesmo que fosse verdade não era delicado dizer…

DOUTOR – Esperava por essa. Mas V. Excia. esquece que eu, lúcido como estou hoje, já tive os meus momentos de alucinação. Já fiei como Hércules a seus pés. Lembra-se? Foi há três anos. Incorrigível a respeito de amores, tinha razões para estar curado, quando vim cair em suas mãos. Alguns alopatas costumam mandar chamar os homeopatas nos últimos momentos de um enfermo, e há casos de salvação para o moribundo. V. Excia. serviu-me de homeopatia, desculpe a comparação; deu-me uma dose de veneno tremenda, mas eficaz; desde esse tempo fiquei curado.

CARLOTA – Admiro a sua facúndia! Em que tempo padeceu dessa febre de que tive a ventura de o curar?

DOUTOR – Já tive a honra de dizer que foi há três anos.

CARLOTA – Não me recordo. Mas considero-me feliz por ter conservado ao foro um dos advogados mais distintos da capital.

DOUTOR – Pode acrescentar: e à humanidade um dos homens mais úteis. Não se ria, sou um homem útil.

CARLOTA – Não me rio. Conjeturo em que se empregará a sua utilidade.

DOUTOR – Vou auxiliar a sua penetração. Sou útil pelos serviços que presto aos viajantes novéis relativamente ao conhecimento das costas e dos perigos do curso marítimo; indico os meios de chegar sem maior risco à ilha desejada de Cítera.

CARLOTA – Ah!

DOUTOR – Essa exclamação é vaga e não me indica se V. Excia. está satisfeita ou não com a minha explicação. Talvez não acredite que eu possa servir aos viajantes?

CARLOTA – Acredito. Acostumei-me a olhá-lo como a verdade nua e crua.

DOUTOR – É o que dizia há bocado àquele doido Valentim.

CARLOTA – A que propósito dizia?…

DOUTOR – A que propósito? Queria que fosse a propósito da guerra dos Estados-Unidos? da questão do algodão? do poder temporal? da revolução da Grécia? Foi a respeito da única coisa que nos pode interessar, a ele, como marinheiro novel, e a mim, como capitão experimentado.

CARLOTA – Ah! foi…

DOUTOR – Mostrei-lhe os pontos negros do meu roteiro.

CARLOTA – Creio que ele não ficou convencido…

DOUTOR – Tanto não, que se ia deitando ao mar.

CARLOTA – Ora, venha cá. Falemos um momento sem paixão nem rancor. Admito que o seu amigo ande apaixonado por mim. Quero admitir também que eu seja uma namoradeira…

DOUTOR – Perdão: uma encantadora namoradeira…

CARLOTA – Dentada de morcego; aceito.

DOUTOR – Não: atenuante e agravante; sou advogado!

CARLOTA – Admito isso tudo. Não me dirá donde tira o direito de intrometer-se nos atos alheios e de impor as suas lições a uma pessoa que o admira e estima, mas que não é nem sua irmã nem sua pupila?

DOUTOR – Donde? Da doutrina cristã: ensino os que erram.

CARLOTA – A sua delicadeza não me há de incluir entre os que erram.

DOUTOR – Pelo contrário; dou-lhe um lugar de honra: é a primeira.

CARLOTA – Sr. Doutor!

DOUTOR – Não se zangue, minha senhora. Todos erramos; mas V. Excia. erra muito. Não me dirá de que serve, o que aproveita usar uma mulher bonita de seus encantos para espreitar um coração de vinte e cinco anos e atraí-lo com as suas cantilenas, sem outro fim mais do que contar adoradores e dar um público testemunho do que pode a sua beleza? Acha que é bonito? Isto não revolta? (Movimento de Carlota).

CARLOTA – Por minha vez pergunto: donde lhe vem o direito de pregar-me sermões de moral?

DOUTOR – Não há direito escrito para isto, é verdade. Mas, eu que já tentei trincar o cacho de uvas pendente, não faço como a raposa da fábula, fico ao pé da parreira para dizer ao outro animal que vier: “Não sejas tolo! não as alcançarás com o teu focinho!” E à parreira impassível: “Seca as tuas uvas ou deixa-as cair; é melhor do que tê-las aí a fazer cobiça às raposas avulsas!” É o direito da desforra!

CARLOTA – Ia-me zangando. Fiz mal. Com o Sr. Doutor é inútil discutir: fala-se pela razão, responde pela parábola.

DOUTOR – A parábola é a razão do evangelho, e o evangelho é o livro que mais tem convencido.

CARLOTA – Por tais disposições vejo que não deixa o posto de sentinela dos corações alheios?

DOUTOR – Avisador de incautos; é verdade.

CARLOTA – Pois declaro que dou ás suas palavras o valor que merecem.

DOUTOR – Nenhum?

CARLOTA – Absolutamente nenhum. Continuarei a receber com a mesma afabilidade o seu amigo Valentim.

DOUTOR – Sim, minha senhora!

CARLOTA – E ao Doutor também.

DOUTOR – É magnanimidade.

CARLOTA – E ouvirei com paciência evangélica as suas prédicas não encomendadas.

DOUTOR – E eu pronto a proferi-las. Ah! minha senhora, se as mulheres soubessem quanto ganhariam se não fossem vaidosas! É negócio de cinqüenta por cento.

CARLOTA – Estou resignada: crucifique-me!

DOUTOR – Em outra ocasião.

CARLOTA – Para ganhar forças, quer almoçar segunda vez?

DOUTOR – Há de consentir que recuse.

CARLOTA – Por motivo de rancor

DOUTOR (pondo a mão no estômago) -Por motivo de incapacidade. (Cumprimenta e dirige-se à porta. Carlota sai pelo fundo. Entra Valentim).

CENA VI
O Doutor, Valentim

DOUTOR – Oh! A que horas é o enterro?

VALENTIM – Que enterro? De que enterro me falas tu?

DOUTOR – Do teu. Não ias procurar o descanso, meu Werther?

VALENTIM – Ah! não me fales! Esta mulher… Onde está ela?

DOUTOR – Almoça.

VALENTIM – Sabes que a amo. Ela é invencível. Às minhas palavras amorosas respondeu com a frieza do sarcasmo. Exaltei-me e cheguei a proferir algumas palavras que poderiam indicar da minha parte: uma intenção trágica. O ar da rua fez-me bem; acalmei-me…

DOUTOR – Tanto melhor!…

VALENTIM – Mas eu sou teimoso.

DOUTOR – Pois ainda crês?…

VALENTIM – Ouve: sinceramente aflito e apaixonado, apresentei-me a D. Carlota como era. Não houve meio de torná-la compassiva. Sei que não me ama; mas creio que não está longe disso; acha-se em um estado que basta uma faísca para acender-se-lhe no coração a chama do amor. Se não se comoveu à franca manifestação do meu afeto, há de comover-se a outro modo de revelação. Talvez não se incline ao homem poético e apaixonado; há de inclinar-se ao heróico ou até cético… ou a outra espécie. Vou tentar um por um.

DOUTOR – Muito bem. Vejo que raciocinas; é porque o amor e a razão dominam em ti com força igual. Graças a Deus, mais algum tempo e o predomínio da razão será certo.

VALENTIM – Achas que faço bem?

DOUTOR – Não acho, não, senhor!

VALENTIM – Por que?

DOUTOR – Amas muito esta mulher? É próprio da tua idade e da força das coisas. Não há caso que desminta esta verdade reconhecida e provada: que a pólvora e o fogo, uma vez próximos, fazem explosão.

VALENTIM – É uma doce fatalidade esta!

DOUTOR – Ouve-me calado. A que queres chegar com este amor? Ao casamento; é honesto e digno de ti. Basta que ela se inspire da mesma paixão, e a mão do himeneu virá converter em uma só as duas existências. Bem. Mas não te ocorre uma coisa: é que esta mulher, sendo uma namoradeira, não pode tornar-se vestal muito cuidadosa da ara matrimonial.

VALENTIM – Oh!

DOUTOR – Protestas contra isto? É natural. Não serias o que és se aceitasses à primeira vista a minha opinião. É por isso que te peço reflexão e calma. Meu caro, o marinheiro conhece as tempestades e os navios; eu conheço os amores e as mulheres; mas avalio no sentido inverso do homem do mar; as escunas veleiras são preferidas pelo homem do mar, eu voto contra as mulheres veleiras.

VALENTIM – Chamas a isto uma razão?

DOUTOR – Chamo a isto uma opinião. Não é a tua! há de sê-lo com o tempo. Não me faltará ocasião de chamar-te ao bom caminho. A tempo o ferro é mezinha, disse Sá de Miranda. Empregarei o ferro.

VALENTIM – O ferro?

DOUTOR – O ferro. Só as grandes coragens é que se salvam. Devi a isso salvar-me das unhas deste gavião disfarçado de quem queres fazer tua mulher.

VALENTIM – O que estás dizendo?

DOUTOR – Cuidei que sabias. Também eu já trepei pela escada de seda para cantar a cantiga de Romeu à janela de Julieta.

VALENTIM – Ah!

DOUTOR – Mas não passei da janela. Fiquei ao relento, do que me resultou uma constipação.

VALENTIM – É natural. Pois como havia ela de amar a um homem que quer levar tudo pela razão fria dos seus libelos e embargos de terceiro?

DOUTOR – Foi isso que me salvou; os amores como os desta mulher precisam um tanto ou quanto de chicana. Passo pelo advogado mais chicaneiro do foro; imagina se a tua viúva podia haver-se comigo! Vem o meu dever com embargos de terceiros e eu ganhei a demanda. Se, em vez de comer tranqüilamente a fortuna de teu pai, tivesses cursado a academia de S. Paulo ou Olinda, estavas, como eu, armado de broquel e cota de malhas.

VALENTIM -. É o que te parece. Podem acaso as ordenações e o código penal contra os impulsos do coração? É querer reduzir a obra de Deus à condição da obra dos homens. Mas bem vejo que és o advogado mais chicaneiro do foro.

DOUTOR – E, portanto, o melhor.

VALENTIM – Não, o pior, porque não me convenceste.

DOUTOR – Ainda não?

VALENTIM – Nem me convencerás nunca.

DOUTOR – Pois é pena!

VALENTIM – Vou tentar os meios que tenho em vista; se nada alcançar talvez me resigne à sorte.

DOUTOR – Não tentes nada. Anda jantar comigo e vamos à noite ao teatro.

VALENTIM – Com ela? Vou.

DOUTOR – Nem me lembrava que a tinha convidado.

DOUTOR – Com que contas? Com a tua estrela? Boa fiança!

VALENTIM Conto comigo.

DOUTOR – Ah! melhor ainda!

CENA VII
Doutor, Valentim, Inocêncio

INOCÊNCIO – O corredor está deserto.

DOUTOR – Os criados servem à mesa. D. Carlota está almoçando. Está melhor?

INOCÊNCIO – Um tanto.

VALENTIM – Esteve doente, Sr. Inocêncio?

INOCÊNCIO – Sim, tive uma ligeira vertigem. Passou. Efeitos do amor… quero dizer… do calor.

VALENTIM – Ah!

INOCÊNCIO – Pois olhe, já sofri calor de estalar passarinho. Não sei como isto foi. Enfim, são coisas que dependem das circunstâncias.

VALENTIM – Espero que hei de vencer.

VALENTIM – Houve circunstâncias?

INOCÊNCIO – Houve… (sorrindo) Mas não as digo… não!

VALENTIM – É segredo?

INOCÊNCIO – Se é!

VALENTIM – Sou discreto como uma sepultura; fale!

INOCÊNCIO – Oh! não! É um segredo meu e de mais ninguém… ou a bem dizer, meu e de outra pessoa… ou não, meu só!

DOUTOR – Respeitamos os segredos, seus ou de outros!

INOCÊNCIO – V. S. é, um portento! Nunca me hei de esquecer que me comparou ao sol! A certos respeitos andou avisado: eu sou uma espécie de sol, com uma diferença, é que não nasço para todos, nasço para todas!

DOUTOR – Oh! Oh!

VALENTIM – Mas V. S. está mais na idade de morrer que de nascer.

INOCÊNCIO – Apre, lá! com trinta e oito anos, a idade viril! V. S. é que é uma criança!

VALENTIM – Enganaram-me então. Ouvi dizer que V. S. fora aos últimos a beijar a mão de D. João VI, quando daqui se foi, e que nesse tempo era já taludo.

INOCÊNCIO – Há quem se divirta em caluniar a minha idade. Que gente invejosa! Onde vai, Doutor?

DOUTOR – Vou sair.

VALENTIM – Sem falar a D. Carlota?

DOUTOR – Já me havia despedido quando chegaste. Hei de voltar. Até logo. Adeus, Sr. Inocêncio!

INOCÊNCIO – Felizes tardes, Sr. Doutor!

CENA VIII
Valentim, Inocêncio

INOCÊNCIO – É uma pérola este doutor! Delicado e bem falante! Quando abre a boca parece um deputado na assembléia ou um cômico na casa da ópera!

VALENTIM – Com trinta e oito anos e ainda fala na casa da ópera?

INOCÊNCIO – Parece que V. S. ficou engasgado com os meus trinta e oito anos! Supõe talvez que eu seja um Matusalém? Está enganado. Como me vê, faço andar à roda muita cabecinha de moça. À propósito, não acha esta viúva uma bonita senhora?

VALENTIM – Acho.

INOCÊNCIO – Pois é da minha opinião! Delicada, graciosa, elegante, faceira, como ela só… Ah!

VALENTIM – Gosta dela?

INOCÊNCIO (com indiferença) – Eu? gosto. E V. S.?

VALENTIM – (com indiferença) – Eu? gosto.

INOCÊNCIO (com indiferença) – Assim, assim?

VALENTIM (com indiferença) – Assim, assim.

INOCÊNCIO (contentíssimo, apertando-lhe a mão) – Ah! meu amigo!

CENA IX
Valentim, Inocêncio, Carlota

VALENTIM – Aguardávamos a sua chegada com a sem cerimônia de pessoas íntimas.

CARLOTA – Oh! fizeram muito bem! (Senta-se).

INOCÊNCIO – Não ocultarei que estava ansioso pela presença de V. Excia.

CARLOTA – Ah! obrigada… Aqui estou! (Um silêncio). Que novidades há, Sr. Inocêncio?

INOCÊNCIO – Chegou o paquete.

CARLOTA – Ah! (Outro silêncio). Ah! chegou o paquete? (Levanta-se).

INOCÊNCIO – Já tive a honra de…

CARLOTA – Provavelmente traz notícias de Pernambuco?… do cólera?…

INOCÊNCIO – Costuma trazer…

CARLOTA – Vou mandar ver cartas… tenho um parente no Recife… Tenham a bondade de esperar…

INOCÊNCIO – Por quem é… não se incomode. Vou eu mesmo.

CARLOTA – Ora! tinha que ver…

INOCÊNCIO – Se mandar um escravo ficará na mesma… demais, eu tenho relações com a administração do correio… O que talvez ninguém possa alcançar já e já, eu me encarrego de obter.

CARLOTA – A sua dedicação corta-me a vontade de impedi-lo. Se me faz o favor…

INOCÊNCIO – Pois não, até já! (Beija-lhe a mão e sai).

CENA X
Carlota, Valentim

CARLOTA – Ah! ah! ah!

VALENTIM – V. Excia. ri-se?

CARLOTA – Acredita que foi para despedi-lo que o mandei ver cartas ao correio?

VALENTIM – Não ouso pensar…

CARLOTA – Ouse, porque foi isso mesmo.

VALENTIM – Haverá indiscrição em perguntar com que fim?

CARLOTA – Com o fim de poder interrogá-lo acerca do sentido de suas palavras quando daqui saiu.

VALENTIM – Palavras sem sentido…

CARLOTA – Oh!

VALENTIM – Disse algumas coisas… tolas!

CARLOTA – Está tão calmo para poder avaliar desse modo as suas palavras?

VALENTIM – Estou.

CARLOTA – Demais, o fim trágico que queria dar a uma coisa que começou por idílio… devia assustá-lo.

VALENTIM – Assustar-me? Não conheço o termo.

CARLOTA – É intrépido?

VALENTIM – Um tanto. Quem se expôs à morte não deve temê-la em caso nenhum.

CARLOTA – Oh! Oh! poeta, e intrépido de mais a mais.

VALENTIM – Como lord Byron.

CARLOTA – Era capaz de uma segunda prova do caso de Leandro?

VALENTIM – Era. Mas eu já tenho feito coisas equivalentes.

CARLOTA – Matou algum elefante, algum hipopótamo?

VALENTIM – Matei uma onça.

CARLOTA – Uma onça?

VALENTIM – Pele malhada das cores mais vivas e esplêndidas; garras largas e possantes; olhar fulvo, peito largo e duas ordens de dentes afiados como espadas.

CARLOTA – Jesus! Esteve diante desse animal!

VALENTIM – Mais do que isso; lutei com ele e matei-o.

CARLOTA – Onde foi isso?

VALENTIM – Em Goiás.

CARLOTA – Conte essa história, novo Gaspar Corrêa.

VALENTIM – Tinha eu vinte anos. Andávamos à caça eu e mais alguns. Internamo-nos mais do que devíamos pelo mato. Eu levava comigo uma espingarda, uma pistola e uma faca de caça. Os meus companheiros afastaram-se de mim. Tratava de procurá-los quando senti passos. Voltei-me…

CARLOTA – Era a onça?

VALENTIM – Era a onça. Com o olhar fito sobre mim, parecia disposta a dar-me o bote. Encarei-a, tirei cautelosamente a pistola e atirei sobre ela. O tiro não lhe fez mal. Protegido pelo fumo da pólvora, acastelei-me atrás de um tronco de árvore. A onça foi-me no encalço, e durante algum tempo andamos, eu e ela, a dançar à roda do tronco. Repentinamente levantou as patas e tentou esmagar-me abraçando a árvore; mais rápido que o raio, agarrei-lhe as mãos e apertei-a contra o tronco. Procurando escapar-me, a fera quis morder-me em uma das mãos; com a mesma rapidez tirei a faca de caça e cravei-lha no pescoço; agarrei-lhe de novo a pata e continuei a apertá-la até que os meus companheiros, orientados pelo tiro, chegaram ao lugar do combate.

CARLOTA – E mataram?…

VALENTIM – Não foi preciso. Quando larguei as mãos da fera, um cadáver pesado e tépido caiu no chão.

CARLOTA – Ora, mas isto é a história de um quadro da Academia!

VALENTIM – Só há um exemplar de cada feito heróico?

CARLOTA – Pois, deveras, matou uma onça?

VALENTIM – Conservo-lhe a pele como uma relíquia preciosa.

CARLOTA – É valente; mas pensando bem não sei de que vale ser valente.

VALENTIM – Oh!

CARLOTA – Palavra que não sei. Essa valentia fora do comum não é dos nossos dias. Às proezas tiveram seu tempo; não me entusiasma essa luta do homem com a fera, que nos aproxima dos tempos bárbaros da humanidade. Compreendo agora a razão por que usa dos perfumes mais ativos; é para disfarçar o cheiro dos filhos do mato, que naturalmente há de ter encontrado mais de uma vez. Faz bem.

VALENTIM – Fera verdadeira é a que V. Excia. me atira com esse riso sarcástico. O que pensa então que possa excitar o entusiasmo?

CARLOTA – Ora, muita coisa! Não o entusiasmo dos heróis de Homero; um entusiasmo mais condigno nos nossos tempos. Não precisa ultrapassar as portas da cidade para ganhar títulos à admiração dos homens.

VALENTIM – V. Excia. acredita que seja uma verdade o aperfeiçoamento moral dos homens na vida das cidades?

CARLOTA – Acredito.

VALENTIM – Pois acredita mal. A vida das cidades estraga os sentimentos. Aquele que eu pude ganhar e entreter na assistência das florestas, perdi-os depois que entrei na vida tumultuaria das cidades. V. Excia. ainda não conhece as mais verdadeiras opiniões.

CARLOTA – Dar-se-á caso que venha pregar contra o amor?…

VALENTIM – O amor! V. Excia. pronuncia essa palavra com uma veneração que parece estar falando de coisas sagradas! Ignora que o amor é uma invenção humana?

CARLOTA – Oh!

VALENTIM – Os homens, que inventaram tanta coisa, inventaram também este sentimento. Para dar justificação moral à união dos sexos inventou-se o amor, como se inventou o casamento para dar-lhe justificação legal. Esses pretextos, com o andar do tempo, tornaram-se motivos. Eis o que é o amor!

CARLOTA – É mesmo o senhor quem me fala assim?

VALENTIM – Eu mesmo.

CARLOTA – Não parece. Como pensa a respeito das mulheres?

VALENTIM – Aí é mais difícil. Penso muita coisa e não penso nada. Não sei como avaliar essa outra parte da humanidade extraída das costelas de Adão. Quem pode pôr leis ao mar! É o mesmo com as mulheres. O melhor é navegar descuidadamente, a pano largo.

CARLOTA – Isso é leviandade.

VALENTIM – Oh! minha senhora!

CARLOTA – Chamo leviandade para não chamar despeito.

VALENTIM – Então há muito tempo que sou leviano ou ando despeitado, porque esta é a minha opinião de longos anos. Pois ainda acredita na afeição íntima entre a descrença masculina e… dá licença? a leviandade feminina?

CARLOTA – É um homem perdido, Sr. Valentim. Ainda há santas afeições, crenças nos homens, e juízo nas mulheres. Não queira tirar a prova real pelas exceções. Some a regra geral e há de ver. Ah! mas agora percebo!

VALENTIM – O que?

CARLOTA (rindo) – Ah! ah! ah! Ouça muito baixinho, para que nem as paredes possam ouvir: este não é ainda o caminho do meu coração, nem a valentia, tão pouco.

VALENTIM – Ah! tanto melhor! Volto ao ponto de partida e desisto da gloria.

CARLOTA – Desanima? (Entra o Doutor).

VALENTIM – Dou-me por satisfeito. Mas já se vê, como cavalheiro, sem rancor nem hostilidade. (Entra Inocêncio);

CARLOTA – É arriscar-se a novas tentativas.

VALENTIM – Não!

CARLOTA – Não seja vaidoso. Está certo?

VALENTIM – Estou. E a razão é esta: quando não se pode atinar com o caminho do coração toma-se – o caminho da porta. (Cumprimenta e dirige-se para a porta).

CARLOTA – Ah! – Pois que vá! Estava aí, Sr. Doutor? Tome cadeira.

DOUTOR (baixo) – Com uma advertência: há muito tempo que me fui pelo caminho da porta.

CARLOTA (séria) – Prepararam ambos esta comédia?

DOUTOR – Comédia, com efeito, cuja moralidade Valentim incumbiu-se de resumir: – Quando não se pode atinar com o caminho do coração, deve-se tomar sem demora o caminho da porta. (Saem o doutor e Valentim).

CARLOTA (vendo Inocêncio) – Pode sentar-se. (Indica-lhe uma cadeira. Risonha). Como passou?

INOCÊNCIO (senta-se meio desconfiado, mas levanta-se logo) – Perdão: eu também vou pelo caminho da porta! (Sai. Carlota atravessa arrebatadamente a cena. Cai o pano).

Fonte: alecrim.inf.ufsc.br

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