Cegonhas e rodovalhos

Machado de Assis

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Salve, rei dos mortais, Semprônio invicto,
Tu que estreaste nas romanas mesas
O rodovalho fresco e a saborosa
Pedi-rubra cegonha!
Desentranhando os mármores da Frígia*
Ou já rompendo ao bronze o escuro seio,
Justo era que mandasse a mão do artista
Teu nobre rosto aos evos.

Porque fosses maior aos olhos pasmos
Das nações do Universo, ó pai dos molhos,
Ó pai das comezainas, em criar-te
Teu século esfalfou-se.
A tua vinda ao mundo prepararam
Os destinos, e acaso amiga estrela
Ao primeiro vagido de teus lábios
Entre nuvens luzia.

Antes de ti, no seu vulgar instinto,
Que comiam Romanos? Carne insossa
Dos seus rebanhos vis, e uns pobres frutos,
Pasto bem digno deles;
A escudela de pão outrora ornava,
Com o saleiro antigo, a mesa rústica,
A mesa em que, três séculos contados,
Comeram senadores.

E quando, por salvar a pátria em risco,
Os velhos se ajuntavam, quantas vezes
O cheiro do alho enchia a antiga cúria,
O pórtico sombrio,
Onde vencidos reis o chão beijavam;
Quantas, deixando em meio a mal cozida,
A sem sabor chanfana, iam de um salto
À conquista do mundo!

Ao voltar dos combates, vencedores,
Carga de glória a não trazia ao porto,
Reis vencidos, tetrarcas subjugados,
E rasgadas bandeiras…
Iludiam-se os míseros! Bem hajas,
Bem hajas tu, grande homem, que trouxeste
Na tua ovante barca à ingrata Roma
Cegonhas, rodovalhos!

Maior que esse marujo que estripava,
Co’o rijo arpéu, as mãos cartaginesas,
Tu, Semprônio, co’as redes apanhavas
Ouriçado marisco;
Tu, glutão vencedor, cingida a fronte
Co’o verde mirto, a terra percorreste,
Por encontrar os fartos, os gulosos
Ninhos de finos pássaros.

Roma desconheceu teu gênio, ó Rufo!
Dizem até ( vergonha!) que negara
Aos teimosos desejos que nutrias
O voto de pretura.
Mas a ti, que te importa a voz da turba?
Efêmero rumor que o vento leva
Como a vaga do mar. Não, não raiarão
Os teus melhores dias.

Virão, quando aspirar a invicta Roma
As preguiçosas brisas do oriente;
Quando co’a mitra d’ouro, o descorado,
O cidadão romano,
Pelo foro arrastar o tardo passo
E sacudir da toga roçagante,
Às virações os tépidos perfumes
Como um sátrapa assírio.

Virão, virão, quando na escura noite
A orgia imperial encher o espaço
De viva luz, e embalsamar as ondas
Com os seus bafos quentes;
Então do sono acordarás, e a sombra,
A tua sacra sombra irá pairando
Ao ruído das músicas noturnas
Nas rochas de Capréia.

Ó mártir dos festins! Queres vingança?
Tê-la-ás e à farta, à tua gran memória;
Vinga-te o luxo que domina a Itália;
Ressurgirás ovante
Ao dia em que na mesa dos Romanos
Vier pompear o javali silvestre,
Prato a que der os finos molhos Tróia
E rouxinol as línguas.

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