Linha Reta e Linha Curva

Machado de Assis

Capítulo Primeiro

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Era em Petrópolis, no ano de 186… Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos anais contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez algum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma delas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame:

– Ah! cá vi uma história em que se falou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida.

Feliz Azevedo! A hora em que começa essa narrativa é ele um marido feliz, inteiramente feliz.Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que ainda se encarnou ao sol da América, dono de algumas propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado, tal é o nosso Azevedo, a quem por
cúmulo de ventura coroam os mais belos vinte e seis anos.

Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possui um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe serviu; existe guardado no fundo da lata clássica em que o trouxe da Faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não o ver mais senão daí a longo tempo. Não é um
diploma, é uma relíquia.

Quando Azevedo saiu da faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da província de Minas Gerais, tinha um projeto: ir à Europa. No fim de alguns meses o pai consentiu na viagem, e Azevedo preparou-se para realizá-la. Chegou à corte no propósito firme de tomar lugar no primeiro paquete que saísse; mas nem tudo depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes de partir; aí estava armada uma rede em que ele devia ser colhido. Que rede! Vinte anos, uma figura delicada, esbelta, franzina, uma dessas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; daí a um mês casou-se, e daí a oito dias partiu para Petrópolis.

Que casa encerraria aquele casal tão belo, tão amante e tão feliz? Não podia ser mais própria a casa escolhida; era um edifício leve, delgado, elegante, mais de recreio que de morada; um verdadeiro ninho para aquelas duas pombas fugitivas.

A nossa história começa exatamente três meses depois da ida para Petrópolis. Azevedo e a mulher amavam-se ainda como no primeiro dia. O amor tomava então uma força maior e nova; é que… devo dizê-lo, ó casais de três meses? é que apontava no horizonte o primeiro filho. Também a terra e o céu se alegram quando aponta no horizonte o primeiro raio do sol. A figura
não vem aqui por simples ornato de estilo; é uma dedução lógica: a mulher de Azevedo chamava-se Adelaide.

Era, pois, em Petrópolis, numa tarde de dezembro de 186… Azevedo e Adelaide estavam no jardim que ficava em frente da casa onde ocultavam a sua felicidade. Azevedo lia alto; Adelaide ouvia-o ler, mas como se ouve um eco do coração, tanto a voz do marido e as palavras da obra correspondiam ao sentimento interior da moça.

No fim de algum tempo Azevedo deteve-se e perguntou:

– Queres que paremos aqui?

– Como quiseres, disse Adelaide.

– É melhor, disse Azevedo fechando o livro. As cousas boas não se gozam de uma assentada. Guardemos um pouco para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idílio escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti.

Adelaide olhou para ele e disse:

– Parece que começamos a lua-de-mel.

– Parece e é, acrescentou Azevedo; e se o casamento não fosse eternamente isto, o que poderia ser? A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?

– Sinto, disse Adelaide.

– Sentes, é quanto basta.

– Mas que as mulheres sintam é natural; os homens…

– Os homens, são homens.

– O que nas mulheres é sentimento, nos homens é pieguice; desde pequena me dizem isto.

– Enganam-te desde pequena, disse Azevedo rindo.

– Antes isso!

– É a verdade. E desconfia sempre dos que mais falam, sejam homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emília fala muito da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.

– Mas nela é brincadeira, disse Adelaide.

– Pois não. O que não é brincadeira é que os três meses do nosso casamento parecem-me três minutos…

– Três meses! exclamou Adelaide.

– Como foge o tempo! disse Azevedo.

– Dirás sempre o mesmo? perguntou Adelaide com um gesto de incredulidade.

Azevedo abraçou-a e perguntou:

– Duvidas?

– Receio. É tão bom ser feliz!

– Sê-lo-ás sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.

Neste momento ouviram os dous uma voz que partia da porta do jardim.

– O que é que não entendes? dizia essa voz.

Olharam.

À porta do jardim estava um homem alto, bem parecido, trajando com elegância, luvas cor de
palha, chicotinho na mão.

Azevedo pareceu ao princípio não conhecê-lo. Adelaide olhava para um e para outro sem compreender nada. Tudo isto, porém, não passou de um minuto; no fim dele Azevedo exclamou:

– É o Tito! Entra, Tito!

Tito entrou galhardamente no jardim; abraçou Azevedo e fez um cumprimento gracioso a Adelaide.

– É minha mulher, disse Azevedo apresentando Adelaide ao recém-chegado.

– Já o suspeitava, respondeu Tito; e aproveito a ocasião para dar-te os meus parabéns.

– Recebeste a nossa carta de participação?

– Em Valparaíso.

– Anda sentar-te e conta-me a tua viagem.

– Isso é longo, disse Tito sentando-se. O que te posso contar é que desembarquei ontem no Rio. Tratei de indagar a tua morada. Disseram-me que estavas temporariamente em Petrópolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espírito de poeta irias esconder tua felicidade em algum recanto do mundo. Com efeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraíso. Jardim, caramanchões, uma casa leve e elegante, um livro. Bravo! Marília de Dirceu… É completo! Tityre, tu patulae. Caio no meio de um idílio. Pastorinha, onde está o cajado?

Adelaide ri às gargalhadas.

Tito continua:

– Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Teócrito, que fazes? Deixas correr os dias como as águas do Paraíba? Feliz criatura!

– Sempre o mesmo! disse Azevedo.

– O mesmo doudo? Acha que ele tem razão, minha senhora?

– Acho, se o não ofendo…

– Qual ofender! Se eu até me honro com isso; sou um doudo inofensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Há quantos meses se casaram?

– Três meses faz domingo, respondeu Adelaide.

– Disse há pouco que me pareciam três minutos, acrescentou Azevedo.

Tito olhou para ambos e disse sorrindo:

– Três meses, três minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os pusessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos eram cinco meses. E ainda se fala em tempo! Há lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Há meses para os infelizes e minutos para os venturosos!

– Mas que ventura! exclama Azevedo.

– Completa, não? Imagino! Marido de um serafim, nas graças e no coração, não reparei que estava aqui… mas não precisa corar!… Disto me há de ouvir vinte vezes por dia; o que penso, digo. Como não te hão de invejar os nossos amigos!

– Isso não sei.

– Pudera! Encafuado neste desvão do mundo, de nada podes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz à vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o princípio devo ir-me já embora…

Dizendo isto, Tito levantou-se.

– Deixa-te disso: fica conosco.

– Os verdadeiros amigos também são a felicidade, disse Adelaide.

– Ah!

– É até bom que aprendas em nossa escola a ciência do casamento, acrescentou Azevedo.

– Para quê? perguntou Tito meneando o chicotinho.

– Para te casares.

– Hum!… fez Tito.

– Não pretende? perguntou Adelaide.

– Estás ainda o mesmo que em outro tempo?

– O mesmíssimo, respondeu Tito.

Adelaide fez um gesto de curiosidade e perguntou:

– Tem horror ao casamento?

– Não tenho vocação, respondeu Tito. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se meta nisso, que é perder o tempo e o sossego. Desde muito tempo estou convencido disto.

– Ainda te não bateu a hora.

– Nem bate, disse Tito.

– Mas, se bem me lembro, disse Azevedo oferecendo-lhe um charuto, houve um dia em que fugiste às teorias do costume: andavas então apaixonado…

– Apaixonado, é engano. Houve um dia em que a Providência trouxe uma confirmação aos meus instintos solitários. Meti-me a pretender uma senhora…

– É verdade: foi um caso engraçado.

– Como foi o caso? perguntou Adelaide.

– O Tito viu em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa dela, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ela responde… que te respondeu?

– Respondeu por escrito que eu era um tolo e me deixasse daquilo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era própria. Voltei atrás e nunca mais amei.

– Mas amou naquela ocasião? perguntou Adelaide.

– Não sei se era amor, respondeu Tito, era uma cousa… Mas note, isto foi há uns bons cinco anos. Daí para cá ninguém mais me fez bater o coração.

– Pior para ti.

– Eu sei! disse Tito levantando os ombros. Se não tenho os gozos íntimos do amor, não tenho nem os dissabores, nem os desenganos. É já uma grande fortuna!

– No verdadeiro amor não há nada disso, disse sentenciosamente a mulher de Azevedo.

– Não há? Deixemos o assunto; eu podia fazer um discurso a propósito, mas prefiro…

– Ficar conosco, Azevedo atalhou-o. Está sabido.

– Não tenho essa intenção.

– Mas tenho eu. Hás de ficar.

– Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no Hotel de Bragança…

– Pois manda contra-ordem. Fica comigo.

– Insisto em não perturbar a tua paz.

– Deixa-te disso.

– Fique! disse Adelaide.

– Ficarei.

– E amanhã, continuou Adelaide, depois de ter descansado, há de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana.

– Não há segredo, disse Tito. O que há é isto. Entre um amor que se oferece e… uma partida de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete. A propósito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temerária que tenho visto… sabe o que é uma casca, minha senhora?

– Não, respondeu Adelaide.

– Pois eu lhe explico.

Azevedo olhou para fora e disse:

– Aí chega a D. Emília.

Com efeito à porta do jardim parava uma senhora dando o braço a um velho de cinqüenta anos.

D. Emília era uma moça a que se pode chamar uma bela mulher; era alta na estatura e altiva de caráter. O amor que pudesse infundir seria por imposição. De suas maneiras e das suas graças inspirava um não sei que de rainha que dava vontade de levá-la a um trono.

Trajava com elegância e simplicidade. Ela tinha essa elegância natural que é outra elegância diversa da elegância dos enfeites, a propósito da qual já tive ocasião de escrever esta máxima: “Que há pessoas elegantes, e pessoas enfeitadas.”

Olhos negros e rasgados, cheios de luz e de grandeza, cabelos castanhos e abundantes, nariz reto como o de Safo, boca vermelha e breve, faces de cetim, colo e braços como os das estátuas, tais eram os traços da beleza de Emília.

Quanto ao velho que lhe dava o braço, era, como disse, um homem de cinqüenta anos. Era o que se chama em português chão e rude, – um velho gaiteiro. Pintado, espartilhado, via-se nele uma como que ruína do passado reconstruída por mãos modernas, de modo a ter esse aspecto bastardo que não é nem a austeridade da velhice, nem a frescura da mocidade. Não
havia dúvida de que o velho devia ter sido um belo rapaz em seus tempos; mas presentemente, se algumas conquistas tivesse feito, só podia contentar-se com a lembrança delas.

Quando Emília entrou no jardim todos se achavam de pé. A recém-chegada apertou a mão a Azevedo e foi beijar Adelaide. Ia sentar-se na cadeira que Azevedo lhe oferecera quando reparou em Tito que se achava a um lado.

Os dous cumprimentaram-se, mas com ar diferente. Tito parecia tranqüilo e friamente polido; mas Emília, depois de cumprimentá-lo, conservou os olhos fitos nele, como que avocando uma memória do passado.

Feitas as apresentações necessárias, e a Diogo Franco (é o nome do velho braceiro), todos tomaram assentos.

A primeira que falou foi Emília:

– Ainda hoje não vinha se não fosse a obsequiosidade do Sr. Diogo.

Adelaide olhou para o velho e disse:

– O Sr. Diogo é uma maravilha.

Diogo empertigou-se e murmurou com certo tom de modéstia:

– Nem tanto, nem tanto.

– É, é, disse Emília. Não é talvez uma, porém duas maravilhas. Ah! sabes que me vai fazer um presente?

– Um presente! exclamou Azevedo.

– É verdade, continuou Emília, um presente que mandou vir da Europa e lá dos confins; recordações das suas viagens de adolescente.

Diogo estava radiante.

– É uma insignificância, disse ele olhando ternamente para Emília.

– Mas o que é? perguntou Adelaide.

– É… adivinhem? É um urso branco!

– Um urso branco!

– Deveras?

– Está para chegar, mas só ontem é que me deu notícia dele. Que amável lembrança!

– Um urso! exclamou ainda Azevedo.

Tito inclinou-se ao ouvido do amigo, e disse em voz baixa:

– Com ele fazem dous.

Diogo jubiloso pelo efeito que causava a notícia do presente, mas iludido no caráter desse efeito disse:

– Não vale a pena. É um urso que eu mandei vir; é verdade que eu pedi dos mais belos. Não sabem o que é um urso branco. Imaginem que é todo branco.

– Ah! disse Tito.

– É um animal admirável! tornou Diogo.

– Acho que sim, disse Tito. Ora imagina tu o que não será um urso branco que é todo branco. Que faz este sujeito? perguntou ele em seguida a Azevedo.

– Namora a Emília; tem cinqüenta contos.

– E ela?

– Não faz caso dele.

– Diz ela?

– E é verdade.

Enquanto os dous trocavam estas palavras, Diogo brincava com os sinetes do relógio e as duas senhoras conversavam. Depois das últimas palavras entre Azevedo e Tito, Emília voltou-se para o marido de Adelaide e perguntou:

– Dá-se isto, Sr. Azevedo? Então faz-se anos nesta casa e não me convidam?

– Mas a chuva? disse Adelaide.

– Ingrata! Bem sabes que não há chuva em casos tais.

– Demais, acrescentou Azevedo, fez-se a festa tão à capucha.

– Fosse como fosse, eu sou de casa.

– É que a lua-de-mel continua apesar de cinco meses, disse Tito.

– Aí vens tu com os teus epigramas, disse Azevedo.

– Ah! isso é mau, Sr. Tito!

– Tito? perguntou Emília a Adelaide em voz baixa.

– Sim.

– D. Emília não sabe ainda quem é o nosso amigo Tito, disse Azevedo. Eu até tenho medo de dizê-lo.

– Então é muito feio o que tem para dizer?

– Talvez, disse Tito com indiferença.

– Muito feio! exclamou Adelaide.

– O que é então? perguntou Emília.

– É um homem incapaz de amar, continuou Adelaide. Não pode haver maior indiferença para o amor… Em resumo, prefere a um amor… o quê? um voltarete.

– Disse-te isso? perguntou Emília.

– E repito, disse Tito. Mas note bem, não por elas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejam credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.

Emília olhou para o moço e disse:

– Se não é vaidade, é doença.

– Há de me perdoar, mas eu creio que não é doença, nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores: agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.

– É ferino! disse Emília olhando para Adelaide.

– Ferino, eu? disse Tito levantando-se. Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura… Dói-me, deveras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? a culpa não é minha.

– Anda lá, disse Azevedo, o tempo te há de mudar.

– Mas quando? Tenho vinte e nove anos feitos.

– Já vinte e nove? perguntou Emília.

– Completei-os pela Páscoa.

– Não parece.

– São os seus bons olhos.

A conversa continuou por este modo, até que se anunciou o jantar. Emília e Diogo tinham jantado, ficaram apenas para fazer companhia ao casal Azevedo e a Tito, que declarou desde o princípio estar caindo de fome.

A conversa durante o jantar versou sobre cousas indiferentes.

Quando se servia o café apareceu à porta um criado do hotel em que morava Diogo; trazia uma carta para este, com indicação no sobrescrito de que era urgente. Diogo recebeu a carta, leu-a e pareceu mudar de cor. Todavia continuou a tomar parte na conversa geral. Aquela circunstância, porém, deu lugar a que Adelaide perguntasse a Emília:

– Quando te deixará este eterno namorado?

– Eu sei cá! respondeu Emília. Mas afinal de contas, não é mau homem. Tem aquela mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.

– Enfim, se não passa de declaração semanal…

– Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de casa. Já me contou umas cinqüenta vezes as batalhas amorosas em que entrou. Todo o seu desejo é acompanhar-me a uma viagem à roda do globo. Quando me fala nisto, se é à noite, e é quase sempre à noite, mando vir o chá, excelente meio de aplacar-lhe os ardores
amorosos. Gosta do chá que se péla. Gosta tanto como de mim! Mas aquela do urso branco? E se realmente mandou vir um urso?

– Aceita.

– Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada!

Adelaide sorriu-se e disse:

– Quer me parecer que acabas por te apaixonar…

– Por quem? Pelo urso?

– Não, pelo Diogo.

Neste momento achavam-se as duas perto de uma janela. Tito conversava no sofá com Azevedo. Diogo refletia profundamente, estendido numa poltrona.

Emília tinha os olhos em Tito. Depois de um silêncio, disse ela para Adelaide:

– Que achas ao tal amigo do teu marido? Parece um presumido. Nunca se apaixonou! É crível?

– Talvez seja verdade.

– Não acredito. Pareces criança! Diz aquilo dos dentes para fora…

– É verdade que não tenho maior conhecimento dele…

– Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquela cara… mas não me lembro!

– Parece ser sincero… mas dizer aquilo é já atrevimento.

– Está claro…

– De que te ris?

– Lembra-me um do mesmo gênero que este, disse Emília. Foi já há tempos. Andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Caiu em menos de um mês. Adelaide, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos… depois do que desprezei-o.

– Que fizeste?

– Ah! não sei o que fiz. Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso.

– Bem feito!

– Não era menos do que este. Mas falemos de cousas sérias… Recebi as folhas francesas de modas…

– Que há de novo?

– Muita cousa. Amanhã tas mandarei. Repara em um novo corte de mangas. É lindíssimo. Já mandei encomendas para a corte. Em artigos de passeios há fartura e do melhor.

– Para mim quase que é inútil mandar.

– Por quê?

– Quase nunca saio de casa.

– Nem ao menos irás jantar comigo no dia de ano-bom!

– Oh! com toda a certeza!

– Pois vai… Ah! irá o homem? O Sr. Tito?

– Se estiver cá… e quiseres…

– Pois que vá, não faz mal… saberei contê-lo… Creio que não será sempre tão… incivil. Nem sei como podes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!

– É-me indiferente.

– Mas a injúria ao sexo… não te indigna?

– Pouco.

– És feliz.

– Que queres que eu faça a um homem que diz aquilo? Se não fosse casada era possível que me indignasse mais. Se fosse livre era provável que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar dessas cousas…

– Nem ouvindo a preferência do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que ele diz aquilo! Que calma, que indiferença!

– É mau! é mau!

– Merecia castigo…

– Merecia. Queres tu castigá-lo?

Emília fez um gesto de desdém e disse:

– Não vale a pena.

– Mas tu castigaste o outro.

– Sim… mas não vale a pena.

– Dissimulada!

– Por que dizes isso?

– Porque já te vejo meio tentada a uma nova vingança…

– Eu? Ora qual!

– Que tem? Não é crime…

– Não é decerto; mas… veremos.

– Ah! serás capaz?

– Capaz? disse Emília com um gesto de orgulho ofendido.

– Beijar-te-á ele a ponta do sapato?

Emília ficou silenciosa por alguns momentos; depois apontando com o leque para a botina que lhe calçava o pé, disse:

– E hão de ser estes.

Emília e Adelaide se dirigiram para o lado em que se achavam os homens. Tito, que parecia conversar intimamente com
Azevedo, interrompeu a conversa para dar atenção às senhoras. Diogo continuava mergulhado na sua meditação.

– Então o que é isso, Sr. Diogo? perguntou Tito. Está meditando?

– Ah! perdão, estava distraído!

– Coitado! disse Tito baixo a Azevedo.

Depois, voltando-se para as senhoras:

– Não as incomoda o charuto?

– Não senhor, disse Emília.

– Então, posso continuar a fumar?

– Pode, disse Adelaide.

– É um mau vício, mas é o meu único vício. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!

– Dizem que é excelente para os desgostos amorosos, disse Emília com intenção.

– Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não há solidão possível. É a melhor companhia deste mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: convertendo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infalível de todas as coisas: é o aviso filosófico, é a sentença fúnebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso… Mas estou eu a aborrecer com uma dissertação tão pesada. Hão de desculpar… que foi descuido. Ora, a falar a verdade, eu já vou desconfiando; Vossa Excelência olha com olhos tão singulares…

Emília, a quem era dirigida a palavra, respondeu:

– Não sei se são singulares, mas são os meus.

– Penso que não são os do costume. Está talvez Vossa Excelência a dizer consigo que eu sou um esquisito, um singular, um…

– Um vaidoso, é verdade.

– Sétimo mandamento: não levantar falsos testemunhos.

– Falsos, diz o mandamento.

– Não me dirá em que sou eu vaidoso?

– Ah! a isso não respondo eu.

– Por que não quer?

– Porque… não sei. É uma cousa que se sente, mas que se não pode descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto… mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença.

– É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnóstico da minha doença. Em compensação pode ouvir da minha o diagnóstico da sua… A sua doença é… Digo?

– Pode dizer.

– É um despeitozinho.

– Deveras?

– Vamos ver isso, disse Azevedo rindo-se.

Tito continuou:

– Despeito pelo que eu disse há pouco.

– Puro engano! disse Emília rindo-se.

– É com toda a certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de cousa alguma. A natureza é que me fez assim.

– Só a natureza?

– E um tanto de estudo. Ora vou expor-lhe as minhas razões. Veja se posso amar ou pretender: primeiro, não sou bonito…

– Oh!… disse Emília.

– Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou…

– Oh!… disse Adelaide.

– Segundo: não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos às suas verdadeiras proporções, não passa de uma curiosidade; terceiro: não sou paciente, e nas conquistas amorosas a paciência é a principal virtude; quarto, finalmente: não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos pretendesse amar, mostraria a maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por indústria.

– Emília, parece que é sincero.

– Acreditas?

– Sincero como a verdade, disse Tito.

– Em último caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?

– Eu creio que nada, disse Tito.

Capítulo II

No dia seguinte àquele em que se passaram as cenas descritas no capítulo anterior, entendeu o céu que devia regar com as suas lágrimas o solo da formosa Petrópolis.

Tito, que destinava esse dia a ver toda a cidade, foi obrigado a conservar-se em casa. Era um amigo que não incomodava, porque quando era de mais sabia escapar-se discretamente, e quando o não era, tornava-se o mais delicioso dos companheiros.

Tito sabia juntar muita jovialidade a muita delicadeza; sabia fazer rir sem saltar fora das conveniências. Acrescia que, voltando de uma longa e pitoresca viagem, trazia as algibeiras da memória (deixem passar a frase) cheias de vivas reminiscências. Tinha feito uma viagem de poeta e não de peralvilho. Soube ver e sabia contar. Estas duas qualidades, indispensáveis ao viajante, por desgraça são as mais raras. A maioria das pessoas que viajam nem sabem ver, nem sabem contar.

Tito tinha andado por todas as repúblicas do mar Pacífico, tinha vivido no México e em alguns Estados americanos. Tinha depois ido à Europa no paquete da linha de Nova Iorque. Viu Londres e Paris. Foi à Espanha, onde viveu a vida de Almaviva, dando serenatas às janelas das Rosinas de hoje. Trouxe de lá alguns leques e mantilhas. Passou à Itália e levantou o espírito à altura das recordações da arte clássica. Viu a sombra de Dante nas ruas de Florença; viu as almas dos doges pairando saudosas sobre as águas viúvas do mar Adriático; a terra de Rafael, de Virgílio e Miguel Ângelo foi para ele uma fonte viva de recordações do passado e de impressões para o futuro. Foi à Grécia, onde soube evocar o espírito das gerações extintas que deram ao gênio da arte e da poesia um fulgor que atravessou as sombras dos séculos.

Viajou ainda mais o nosso herói, e tudo viu com olhos de quem sabe ver e tudo contava com alma de quem sabe contar. Azevedo e Adelaide passavam horas esquecidas.

– Do amor, dizia ele, eu só sei que é uma palavra de quatro letras, um tanto eufônica, é verdade, mas núncia de lutas e desgraças. Os bons amores são cheios de felicidade, porque têm a virtude de não alçarem olhos para as estrelas do céu; contentam-se com ceias à meia-noite e alguns passeios a cavalo ou por mar.

Esta era a linguagem constante de Tito. Exprimia ela a verdade, ou era uma linguagem de convenção? Todos acreditavam que a verdade estava na primeira hipótese, até porque essa era de acordo com o espírito jovial e folgazão de Tito.

No primeiro dia da residência de Tito em Petrópolis, a chuva, como disse acima, impediu que os diversos personagens desta história se encontrassem. Cada qual ficou na sua casa. Mas o dia imediato foi mais benigno; Tito aproveitou o bom tempo para ir ver a risonha cidade da serra. Azevedo e Adelaide quiseram acompanhá-lo; mandaram aparelhar três ginetes próprios para o ligeiro passeio.

Na volta foram visitar Emília. Durou poucos minutos a visita. A bela viúva recebeu-os com graça e cortesia de princesa. Era a primeira vez que Tito lá ia; e fosse por isso, ou por outra circunstância, foi ele quem mereceu as principais atenções da dona da casa.

Diogo, que então fazia a sua centésima declaração de amor a Emília, e a quem Emília acabava de oferecer uma chávena de chá, não viu com bons olhos a demasiada atenção que o viajante merecia da dama dos seus pensamentos. Essa, e talvez outras circunstâncias, faziam com que o velho Adônis assistisse à conversação com a cara fechada.

À despedida Emília ofereceu a casa a Tito, com a declaração de que teria a mesma satisfação em recebê-lo muitas vezes. Tito aceitou cavalheiramente o oferecimento; feito o que, saíram todos.

Cinco dias depois desta visita Emília foi à casa de Adelaide. Tito não estava presente; andava a passeio. Azevedo tinha saído para um negócio, mas voltou daí a alguns minutos. Quando, depois de uma hora de conversa, Emília já de pé preparava-se para voltar à casa, entrou Tito.

– Ia sair quando entrou, disse Emília. Parece que nos contrariamos em tudo.

– Não é por minha vontade, respondeu Tito; pelo contrário, meu desejo é não contrariar pessoa alguma, e portanto não contrariar Vossa Excelência.

– Não parece.

– Por quê?

Emília sorriu e disse com uma inflexão de censura:

– Sabe que me daria prazer se utilizasse do oferecimento de minha casa; ainda se não utilizou. Foi esquecimento?

– Foi.

– É muito amável…

– Sou muito franco. Eu sei que Vossa Excelência preferia uma delicada mentira; mas eu não conheço nada mais delicado que a verdade.

Emília sorriu.

Nesse momento entrou Diogo.

– Ia sair, D. Emília? perguntou ele.

– Esperava o seu braço.

– Aqui o tem.

Emília despediu-se de Azevedo e de Adelaide. Quanto a Tito, no momento em que ele curvava-se respeitosamente, Emília disse-lhe com a maior placidez da alma:

– Há alguém tão delicado como a verdade: é o Sr. Diogo. Espero dizer o mesmo…

– De mim? interrompeu Tito. Amanhã mesmo.

Emília saiu pelo braço de Diogo.

No dia seguinte, com efeito, Tito foi à casa de Emília. Ela o esperava com certa impaciência. Como não soubesse a hora em que ele devia apresentar-se lá, a bela viúva esperou-o a todos os momentos, desde manhã. Só ao cair da tarde é que Tito dignou-se aparecer.

Emília morava com uma tia velha. Era uma boa senhora, amiga da sobrinha, e inteiramente escrava da sua vontade. Isto quer dizer que não havia em Emília o menor receio que a boa tia não assinasse de antemão.

Na sala em que Tito foi recebido não estava ninguém. Ele teve portanto tempo de sobra para examiná-la à vontade. Era uma sala pequena, mas mobiliada e adornada com gosto. Móveis leves, elegantes e ricos; quatro finíssimas estatuetas, copiadas de Pradier, um piano de Erard, tudo disposto e arranjado com vida.

Tito gastou o primeiro quarto de hora no exame da sala e dos objetos que a enchiam. Esse exame devia influir muito no estudo que ele quisesse fazer do espírito da moça. Dize-me como moras, dir-te-ei quem és.

Mas o primeiro quarto de hora correu sem que aparecesse viva alma, nem que se ouvisse rumor de natureza alguma. Tito começou a impacientar-se. Já sabemos que espírito brusco era ele, apesar da suprema delicadeza que todos lhe reconheciam. Parece, porém, que a sua rudeza, quase sempre exercida contra Emília, era antes estudada que natural. O que é certo é que no
fim de meia hora, aborrecido pela demora, Tito murmurou consigo:

– Quer tomar desforra!

E tomando o chapéu que havia posto numa cadeira ia dirigindo-se para a porta quando ouviu um farfalhar de sedas. Voltou a cabeça; Emília entrava.

– Fugia?

– É verdade.

– Perdoe a demora.

– Não há que perdoar; não podia vir, era natural que fosse por algum motivo sério. Quanto a mim não tenho igualmente de que pedir perdão. Esperei, estava cansado, voltaria em outra ocasião. Tudo isto é natural.

Emília ofereceu uma cadeira a Tito e sentou-se num sofá.

– Realmente, disse ela acomodando o balão, o Sr. Tito é um homem original.

– É a minha glória. Não imagina como eu aborreço as cópias. Fazer o que muita gente faz, que mérito há nisso? Não nasci para esses trabalhos de imitação.

– Já uma cousa fez como muita gente.

– Qual foi?

– Prometeu-me ontem esta visita e veio cumprir a promessa.

– Ah! minha senhora, não lance isto à conta das minhas virtudes. Podia não vir; vim; não foi vontade, foi… acaso.

– Em todo caso, agradeço-lhe.

– É o meio de me fechar a sua porta.

– Por quê?

– Porque eu não me dou com esses agradecimentos; nem creio mesmo que eles possam acrescentar nada à minha admiração pela pessoa de Vossa Excelência. Fui visitar muitas vezes as estátuas dos museus da Europa, mas se elas se lembrassem de me agradecer um dia, dou-lhe a minha palavra que não voltava lá.

A estas palavras seguiu-se um silêncio de alguns segundos.

Emília foi quem falou primeiro.

– Há muito tempo que se dá com o marido de Adelaide?

– Desde criança, respondeu Tito.

– Ah! foi criança?

– Ainda hoje sou.

– É exatamente o tempo das minhas relações com Adelaide. Nunca me arrependi.

– Nem eu.

– Houve um tempo, prosseguiu Emília, em que estivemos separadas; mas isso não trouxe mudança alguma às nossas relações. Foi no tempo do meu primeiro casamento.

– Ah! foi casada duas vezes?

– Em dous anos.

– E por que enviuvou da primeira?

– Porque meu marido morreu, disse Emília rindo-se.

– Mas eu pergunto outra cousa. Por que se fez viúva, mesmo depois da morte de seu primeiro marido? Creio que poderia continuar casada.

– De que modo? perguntou Emília com espanto.

– Ficando mulher do finado. Se o amor acaba na sepultura acho que não vale a pena de procurá-lo neste mundo.

– Realmente o Sr. Tito é um espírito fora do comum.

– Um tanto.

– É preciso que o seja para desconhecer que a nossa vida não importa essas exigências da eterna fidelidade. E demais, pode-se conservar a lembrança dos que morrem sem renunciar às condições da nossa existência. Agora é que eu lhe pergunto por que me olha com olhos tão singulares?…

– Não sei se são singulares, mas são os meus.

– Então, acha que eu cometi uma bigamia?

– Eu não acho nada. Ora, deixe-me dizer-lhe a última razão da minha incapacidade para os amores.

– Sou toda ouvidos.

– Eu não creio na fidelidade.

– Em absoluto?

– Em absoluto.

– Muito obrigada.

– Ah! eu sei que isto não é delicado; mas em primeiro lugar, eu tenho a coragem das minhas opiniões, e em segundo foi Vossa Excelência quem me provocou. É infelizmente verdade, eu não creio nos amores leais e eternos. Quero fazê-la minha confidente. Houve um dia em que eu tentei amar; concentrei todas as forças vivas do meu coração; dispus-me a reunir o meu
orgulho e a minha ilusão na cabeça do objeto amado. Que lição mestra! O objeto amado, depois de me alimentar as esperanças, casou-se com outro que não era nem mais bonito, nem mais amante.

– Que prova isso? perguntou a viúva.

– Prova que me aconteceu o que pode acontecer e acontece diariamente aos outros.

– Ora…

– Há de me perdoar, mas eu creio que é uma coUsa já metida na massa do sangue…

– Não diga isso. É certo que podem acontecer casos desses; mas serão todos assim? Não admite uma exceção? Aprofunde mais os corações alheios se quiser encontrar a verdade… e há de encontrar.

– Qual! disse Tito abaixando a cabeça e batendo com a bengala na ponta do pé.

– Posso afirmá-lo, disse Emília.

– Duvido.

– Tenho pena de uma criatura assim, continuou a viúva. Não conhecer o amor é não conhecer a vida! Há nada igual à união de duas almas que se adoram? Desde que o amor entra no coração, tudo se transforma, tudo muda, a noite parece dia, a dor assemelha-se ao prazer… Se não conhece nada disto, pode morrer, porque é o mais infeliz dos homens.

– Tenho lido isso nos livros, mas ainda não me convenci…

– Já reparou na minha sala?

– Já vi alguma cousa.

– Reparou naquela gravura?

Tito olhou para a gravura que a viúva lhe indicava.

– Se me não engano, disse ele, aquilo é o Amor domando as feras.

– Veja e convença-se.

– Com a opinião do desenhista? perguntou Tito. Não é possível. Tenho visto gravuras vivas. Tenho servido de alvo a muitas setas; crivam-me todo, mas eu tenho a fortaleza de S. Sebastião; afronto, não me curvo.

– Que orgulho!

– O que pode fazer dobrar uma altivez destas? A beleza? Nem Cleópatra. A castidade? Nem Susana. Resuma, se quiser, todas as qualidades em uma só criatura, e eu não mudarei… É isto e nada mais.

Emília levantou-se e dirigiu-se para o piano.

– Não aborrece a música? perguntou ela abrindo o piano.

– Adoro-a, respondeu o moço sem se mover; agora quanto aos executantes só gosto dos bons. Os maus dá-me ímpetos de enforcá-los.

Emília executou ao piano os prelúdios de uma sinfonia. Tito ouvia-a com a mais profunda atenção. Realmente a bela viúva tocava divinamente.

– Então, disse ela levantando-se, devo ser enforcada?

– Deve ser coroada. Toca perfeitamente.

– Outro ponto em que não é original. Toda a gente me diz isso.

– Ah! eu também não nego a luz do sol.

Neste momento entrou na sala a tia de Emília. Esta apresentou-lhe Tito. A conversa tomou então um tom pessoal e reservado; durou pouco, aliás, porque Tito, travando repentinamente do chapéu, declarou que tinha que fazer.

– Até quando?

– Até sempre.

Despediu-se e saiu.

Emília ainda o acompanhou com os olhos por algum tempo, da janela da casa. Mas Tito, como se o caso não fosse com ele, seguiu sem olhar para trás.

Mas, exatamente no momento em que Emília voltava para dentro, Tito encontrava o velho Diogo.

Diogo ia na direção da casa da viúva. Tinha um ar pensativo. Tão distraído ia que chegou quase a esbarrar com Tito.

– Onde vai tão distraído? perguntou Tito.

– Ah! é o senhor? Vem da casa de D. Emília?

– Venho.

– Eu para lá vou. Coitada! há de estar muito impaciente com a minha demora.

– Não está, não senhor, respondeu Tito com o maior sangue-frio.

Diogo lançou-lhe um olhar de despeito.

A isso seguiu-se um silêncio de alguns minutos, durante o qual Diogo brincava com a corrente do relógio, e Tito lançava ao ar novelos de fumaça de um primoroso havana. Um desses novelos foi desenrolar-se na cara de Diogo. O velho tossiu e disse a Tito:

– Apre lá, Sr. Tito! É demais!

– O quê, meu caro senhor? perguntou o rapaz.

– Até a fumaça!

– Foi sem reparar. Mas eu não compreendo as suas palavras…

– Eu me faço explicar, disse o velho tomando um ar risonho. Dê-me o seu braço…

– Pois não!

E os dous seguiram conversando como dous amigos velhos.

– Estou pronto a ouvir a sua explicação.

– Lá vai. Sabe o que eu quero? É que seja franco. Não ignora que eu suspiro aos pés da viúva. Peço-lhe que não discuta o fato, admita-o simplesmente. Até aqui tudo ia caminhando bem, quando o senhor chegou a Petrópolis.

– Mas…

– Ouça-me silenciosamente. Chegou o senhor a Petrópolis, e sem que eu lhe tivesse feito mal algum, entendeu de si para si que me havia de tirar do lance. Desde então começou a corte…

– Meu caro Sr. Diogo, tudo isso é uma fantasia. Eu não faço a corte a D. Emília, nem pretendo fazer-lha. Vê-me acaso freqüentar a casa dela?

– Acaba de sair de lá.

– É a primeira vez que a visito.

– Quem sabe?

– Demais, ainda ontem não ouviu em casa de Azevedo as expressões com que ela se despediu de mim? Não são de mulher que…

– Ah! isso não prova nada. As mulheres, e sobretudo aquela, nem sempre dizem o que sentem…

– Então acha que aquela sente alguma cousa por mim?…

– Se não fosse isso, não lhe falaria.

– Ah! ora eis aí uma novidade.

– Suspeito apenas. Ela só me fala do senhor; indaga-me vinte vezes por dia de sua pessoa, dos seus hábitos, do seu passado e das suas opiniões… Eu, como há de acreditar, respondo a tudo que não sei, mas vou criando um ódio ao senhor, do qual não me poderá jamais criminar.

– É culpa minha se ela gosta de mim? Ora, vá descansado, Sr. Diogo. Nem ela gosta de mim, nem eu gosto dela. Trabalhe desassombradamente e seja feliz.

– Feliz! se eu pudesse ser! Mas não… não creio; a felicidade não se fez para mim. Olhe, Sr. Tito, amo aquela mulher como se pode amar a vida. Um olhar dela vale mais para mim que um ano de glórias e de felicidade. É por ela que eu tenho deixado os meus negócios à toa. Não viu outro dia que uma carta me chegou às mãos, cuja leitura me fez entristecer? Perdi uma causa.
Tudo por quê? Por ela!

– Mas ela não lhe dá esperanças?

– Eu sei o que é aquela moça! Ora trata-me de modo que eu vou ao sétimo céu; ora é tal a sua indiferença que me atira ao inferno. Hoje um sorriso, amanhã um gesto de desdém. Ralha-me de não visitá-la; vou visitá-la, ocupa-se tanto de mim como de Ganimedes; Ganimedes é o nome de um cãozinho felpudo que eu lhe dei. Importa-se tanto comigo como com o cachorro… É de propósito. É um enigma aquela moça.

– Pois não serei eu quem o decifre, Sr. Diogo. Desejo-lhe muita felicidade. Adeus.

E os dous separaram-se. Diogo seguiu para a casa de Emília, Tito para a casa de Azevedo.

Tito acabava de saber que a viúva pensava nele; todavia, isso não lhe dera o menor abalo. Por quê? É o que saberemos mais adiante. O que é preciso dizer desde já, é que as mesmas suspeitas despertadas no espírito de Diogo, tivera a mulher de Azevedo. A intimidade de Emília dava lugar a uma franca interrogação e a uma confissão franca. Adelaide, no dia seguinte
àquele em que se passou a cena que referi acima, disse a Emília o que pensava.

A resposta da viúva foi uma risada.

– Não te compreendo, disse a mulher de Azevedo.

– É simples, disse a viúva. Julgas-me capaz de apaixonar-me pelo amigo de teu marido? Enganas-te. Não, eu não o amo. Somente, como te disse no dia em que o vi aqui pela primeira vez, empenho-me em tê-lo a meus pés. Se bem me recordo foste tu mesma quem me deu conselho. Aceitei-o. Hei de vingar o nosso sexo. É um pouco de vaidade minha, embora; mas
eu creio que aquilo que nenhuma fez, fá-lo-ei eu.

– Ah! cruelzinha! É isso?

– Nem mais, nem menos.

– Achas possível?

– Por que não?

– Reflete que a derrota será dupla…

– Será, mas não há de haver.

Esta conversa foi interrompida por Azevedo. Um sinal de Emília fez calar Adelaide. Ficou convencionado que nem mesmo Azevedo saberia de cousa alguma. E, com efeito, Adelaide nada comunicou a seu marido.

 

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