Contos e Histórias de Animais

Lima Barreto

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Os animais domésticos, domesticados e selvagens, sempre entraram em toda e qualquer literatura, quer na popular, quer na anônima, quer na pessoal e cultivada. Desde muito cedo que os homens se associaram aos animais para fazer a sua jornada na vida. Seja como simples companheiros, seja para sacrificá -los, a fim de obter alimento, eles sempre viveram entrelaçados aos sonhos e devaneios da humanidade. Comte incorporou, com aquela sua generosidade de filósofo pobre, orgulhoso e bom, certos animais à própria Humanidade; e Buda, o iluminado Çakia-Muni, não admitia o sacrifício de nenhum para sustento do homem.

Os paladinos, os altissonantes de alma e couraça, os “preux” esforçados das batalhas, dos combates singulares, das justas e torneios medievais, batizavam os seus ginetes de guerra com nomes flamejantes e significativos que ainda vivem na literatura e na memória

dos homens. Reinaud de Montauban, um dos quatro filhos d’Aymon, tem Bayard, o melhor corcel da cristandade; Rolando, o paladino dos paladinos, tem Neillantif, o “bon cheval courant” da sua imortal gesta; e todos os outros guerreiros de antanho possuem os seus “destriers” bem crismados e extremados da turbamulta dos cavalos anônimos. Os troveiros, os trovadores, os “clercs”, que lhes contaram as façanhas nas festas, crônicas e romances, e as conservaram para a nossa atual edificação, só lhes viram as aparências, os aspectos de bravura, de ímpeto, de ardor, mas não nos deram as suas qualidades irredutíveis de caráter, de coração e inteligência – a sua alma, enfim.

Foi preciso que Cervantes nos pintasse o doce e resignado Rocinante, esse hipogrifo cheio de candura que suportava candidamente os arrebatamentos do sonho generoso de justiça do seu amo e amigo, para que o cavalo entrasse na literatura com a posse de sua alma individual. Rocinante não se parece com outro qualquer cavalo; ele é unicamente o corcel de D. Quixote.

Além deste animal, quem não se lembra do irrequieto e falador papagaio de Robinson Crusoé? Dessa ave doméstica, em geral maçante, mas que no livro de Crusoé nos parece tão simpática, a minorar, a quebrar o isolamento que oprime o seu companheiro da ilha deserta, dando-lhe a larga visão da sociedade e dos homens – quem não se lembra dela?

Podia ainda falar no “Roman de Renard”, das fábulas, dos poemas hindus, mas meu propósito é outro e não convém perdê-lo de vista, para exibir leituras ou erudição.

A mistura dos animais com os deuses, seja como atributos de sua força e do seu poder, seja com qualquer outro sentido, é coisa fácil de verificar em todas as religiões. Na greco-romana, o cavalo é animal de Netuno; a serpente, de Minerva; a águia, de Júpiter; os pombos, de Vênus e assim por diante.

Na nossa religião católica, que não é das mais naturalistas e zoomórficas, certos santos têm o acompanhamento de animais.

São João Batista, como toda gente sabe, é figurado com um carneiro ao lado; e nos presepes, com os quais se comemora o nascimento de Jesus Cristo, há o burro, a vaca, galos, galinhas, etc. A transcendente imaterialidade do Divino Espírito Santo é representada na iconografia católica por um pombo.

Pode-se dizer que, na espontânea atividade literária de todos os povos, os animais que os cercam figuram humanizados, falando, discreteando, sentenciando, narrando, ora com esta intenção, ora com aquela moralidade ou aquela outra filosofia.

O Sr. Van Gennep, no seu conhecidíssimo livro, traz uma narrativa de animais que me parece típica para o gênero e que me atrai entre todas. É aquela em que se explica a origem de certas deformidades ou melhor singularidades morfológicas de determinados animais.

A que reproduzo aqui, mais abaixo, para esclarecer o meu pensamento, é originária da África. Ei-la:

“O elefante, rei dos animais, convocou um dia todos os seus súditos para uma assembléia, sob pena de morte em caso de desobediência. Todos compareceram, exceto o caramujo.

“A conferência teve lugar, como era de esperar, sob a presidência do elefante, e ia já pelo fim, quando os animais se puseram a gritar:

“— Vem aí o caramujo! Está aí o caramujo!

“O caracol aproximou-se todo trêmulo.

“— Donde vens? perguntou-lhe o elefante.

“— Da minha aldeia, respondeu-lhe o caramujo.

“— E por que tardaste? Não recebeste a ordem?

“— Recebi-a, pai elefante, e me pus logo em caminho. Mas, tu só me deste um pé para andar, os ramos me cegavam, e eu temo muito o frio e a chuva. Foram esses os motivos que me fizeram voltar e me decidiram a carregar a minha casa nas costas.

“O elefante-rei riu-se muito e durante longo tempo com essa explicação. Depois, assim disse:

“— Tu falaste claro, pai caramujo. Doravante, terás teus olhos na ponta dos chifres, e poderás escondê-los, logo que os ramos das árvores os ameacem. Em todo o caso, para punir-te de ter faltado à conferência, carregarás sempre, durante toda a vida, a tua casa nas costas.”

Diz o Sr. Van Gennep que certa tribo africana acrescenta a esta história a consideração de que o castigo não foi grande, porquanto o caramujo não precisou trabalhar mais para ter casa.

Assim, porém, não procederam os nossos severos e terríveis deuses mais ou menos judaicos com o linguado. Todos conhecem esse peixe que tem a boca numa disposição especial e anormal, torta, como diz o povo. É corrente, entre nós, que ele assim ficou por ter tomado a liberdade de caçoar com Nossa Senhora. Andava a mãe de Jesus por uma praia, contam as nossas velhas, passeando, levando naturalmente o filho ao colo, a fazer não sei o quê.

Não havia meio de atinar se o mar estava enchendo ou vazando. Nossa Senhora não encontrava ninguém que a tirasse da perplexidade, quando se aproximou mais das águas e viu um linguado que andava próximo. Perguntou com toda doçura e delicadeza:

— Linguado, a maré enche ou vaza?

O peixe que devia ser, por esse tempo, quando os animais ouviam e falavam, de um natural mofador e grosseiro, sem lhe responder à pergunta, arremedou-a nas palavras e exagerou para melhor debicar o modo por que Nossa Senhora tinha articulado os lábios, a fim de pronunciá-los. O linguado não sabia com quem estava falando, mas veio a sabê-lo, quando Nossa Senhora lhe disse:

— Ficarás com a boca torta, tu e toda a tua geração, até a consumação dos séculos!

Assim foi e ainda hoje, mesmo no prato, à mesa do almoço ou do jantar, nós lhe vemos o estigma, que como castigo lhe deixou no seu corpo o justo ressentimento de nossa Mãe Santíssima.

Não é só esse animal que mereceu dos nossos deuses católicos punição ou maldição pelo seu mau proceder em relação a eles.

Manuel de Oliveira, um negro velho, cabinda de nação, muito fiel e dedicado, que viveu com a minha família e me viu menino de sete ou oito anos, tendo morrido há pouco tempo, não gostava de gatos e não me cessava de explicar essa sua ojeriza:

— “Seu Lifonso”, gato é bicho do diabo… É bicho que Nosso “Sinhô” não gosta; é bicho “madiçuado” por Deus. Cachorro, sim…

Contava-me, então, meu saudoso preto velho o motivo por que ficaram malditos os gatos, que, nos nossos dias, depois de Pöe e Baudelaire, estão em moda entre os literatos poetas, damas de sociedade e outras pessoas dignas de verem o seu “interior” estampado nos jornais catitas e revistas de elegância.

Nosso Senhor Jesus Cristo estava na cruz e teve sede. Passaram homens, mulheres, bichos e ele pedia água. Ninguém se importou e não lha trouxe. Passou, então, um gato que Nosso Senhor julgou ser capaz de fazer a obra de caridade que o Homem-Deus suplicava lhe fizessem. Rogou ao gato que lhe trouxesse um pouco d’água para lhe abrandar a ardência dos seus lábios ressecados.

— Gato, “Seu Lifonso” – fala o Manuel de Oliveira, – que é bicho mau e do “demônho”, sabe o que fez? Pois fez isto: “mixô” numa caneca e deu a “bebê” a “Nosso Sinhô”. “Nosso Sinhô” mardiçuô ele pra sempre e até hoje “ele” é “mardiçuado” por Deus, é bicho que tem parte com o “capeta”.

— E o cachorro, Manuel? – perguntava eu.

— Cachorro não fez isso. Buscou água fresca e deu a “Nosso Sinhô”, por isso ele é bicho de Deus.

A história de Manuel de Oliveira é muito conhecida e familiar entre nós, havendo outras muitas que explicam a maldição de certos animais, as suas deformidades, mas que, infelizmente, agora não me acodem.

Algumas não personificam o Deus ou o Santo que os castigou, mas outras personalizam-nos francamente.

É coisa muito sabida o horror que os judeus e muçulmanos têm ao porco e a tudo que a ele se refere.

Por suporem ser de porco a graxa com que deviam umedecer os cartuchos de umas certas espingardas antigas, tendo de mordiscá-los antes de enfiá-los na culatra das carabinas, os cipaios muçulmanos da Índia, a serviço da Inglaterra, levantaram-se em uma formidável revolta que pôs em perigo a dominação britânica nas terras do Ganges.

Muitos autores querem ver nessa ojeriza, tão poderosa sobre as almas duma grande parte da humanidade, uma prescrição com fim higiênico feita religiosamente pela Biblia; outros, porém, julgam encontrar em tal coisa uma singular deformação de um totemismo primitivo e esquecido.

Num caso ou noutro, seja qual for a razão, podemos afirmar que os animais irracionais, desta ou daquela forma, entram mais na nossa vida do que supomos. É sobre o seu sofrimento, sobre as suas próprias vidas que nós erguemos a nossa.

Quando, há meses, estive no Hospital Central do Exército, e vi em uma sua dependência, em gaiolas, coelhos de olhar meigo e cobaias de grande esperteza, para pesquisas bacteriológicas, lembrei-me daquele “Manel Capineiro”, português carreiro de capinzais da minha vizinhança, que chorou, quando certa vez, ao atravessar a linha da Estrada de Ferro com o seu carro, a locomotiva matou-lhe os burros, a “Jupepa” e o “Garoto”.

“— Antes fosse eu! ai mô gado!” disseram-me que ele pronunciara ao chorar.

Na sua manifestação ingênua, o pobre português mostrava como aquelas humildes alimárias interessavam o seu destino e o seu viver…

Hoje, 17-4-1919

 

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