Os Percalços do Budismo

Lima Barreto

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Há tempos, por uma bela tarde de verão, resolvi dar um passeio pela chamada avenida Beira-mar que, como todas as coisas nossas, é a mais bela do mundo, assim como o Corcovado é o mais alto monte da Terra.

Queria ver o mar mais livre, sem aquelas peias de cais que lhe causam de quando em quando, revoltas demolidoras de que todos se lembram; mas não tinha dinheiro para ir à Angra dos Reis. Bem.

Pouco acima do Passeio Público, encontrei-me com o meu antigo colega Epimênides da Rocha, a quem de lá muito não via.

– Onde tens andado?

– No hospício.

– Como? Não tens ar de louco absolutamente -como foi então?

– A polícia. Não sabes que a nossa polícia é paternal e ortodoxa em matéria de religião.

– Que tem uma coisa com a outra?

– Eu te conto. Logo depois de me aposentar, eu me retirei com os meus livros e papéis, para um subúrbio longínquo. Aluguei uma casa, em cujo quintal tinha uma horta e galinheiro tratados por mim e pelo meu fiel Manuel Joaquim, um velho português que não ficou rico. Nos lazeres das minhas leituras, trabalhava nos canteiros e curava a bouba dos meus pintos. Fui ficando afeiçoado na redondeza e conversava com todos que se chegavam a mim. Aos poucos, fui pregando, da forma que lhes fosse mais acessível, aos meus vizinhos as minhas teorias mais ou menos niilistas e budistas.

“O mundo não existe, é uma grande ilusão. Para matar em nós a dor, é preciso varrer da nossa vontade todo e qualquer desejo e ambição que são fontes de sofrimento. É necessário eliminar em nós, sobretudo, o amor, onde decorre toda a nossa angústia. Citava em português aquelas palavras de Bossuet, e as explicava terra à terra: “Passez l’amour, vous faites naítre toutes les passions; ôtez l’amour, vous les supprimez toutes”.

“Aos poucos, as minhas idéias, pregadas com os exemplos e comparações mais corriqueiras, se espalharam e eu me vi obrigado a fazer conferências. Um padre que andava por lá, a catar níqueis, para construir a milionésima igreja do Rio de Janeiro, acusou-me de feitiçaria, candomblâncias, macumbas e outras coisas feias. Fui convidado a comparecer à delegacia e o delegado, com grandes berros e gestos furiosos, intimou-me a acabar com as minhas prédicas. Disse-lhe que não lhe podia obedecer, pois, segundo as leis, eu tinha a mais ampla liberdade de pensamento literário, político, artístico, religioso, etc. Mais furioso ficou e eu mais indignado fiquei. Mas vim para a casa e continuei.

“Um belo dia, veio um soldado buscar-me e levou-me para a chefatura de policia, onde me levaram a um doutor.

“Percebi que me acusavam (?) de maluco.

“Disse-lhe que não era louco e, mesmo que o fosse, segundo a legislação em vigor, não sendo eu indigente, competia a meus pais, pois os tinha, internar-me em hospital adequado. Não quis saber de leis, e outras malandragens e remeteu-me para a Praia da Saudade, como sofrendo de mania religiosa. O que me aconteceu aí, onde, em geral, me dei bem, contarei num próximo livro. Contudo, não posso deixar de te referir agora o risinho de mofa que um doutor fez, quando lhe disse que tinha alguns livros publicados e cursara uma escola superior. No Brasil, meu caro, doutor ou nada.

“Ia-me acostumando, tanto mais que o meu médico era o doutor Gotuzzo, excelente pessoa, quando, certo dia, ele me chamou:

“- Epimênides!

“- Que é, doutor.

“- Você vai ter alta.

“- Como?

“- Não quer?

“- A bem dizer, não. Gosto dos homens, das suas lutas, das suas disputas, mas não gosto de lhes entender o pensamento.

“Os gestos, os ademanes, tudo que lhes é exterior aprecio; mas, a alma não. Não entendo a que móveis os meus companheiros de manicômio obedecem, quando fazem gatimonhas e deliram; vivia, portanto, aqui num paraíso, tanto mais que não fazia nada, porque a finalidade da minha doutrina religiosa é realizar na vida o maximum de preguiça. Não direi todos, mas um dos males da nossa época é essa pregação do trabalho intenso, que tira o ócio do espírito e nos afasta a todo o momento da nossa alma imortal e não nos deixa ouvi-la a todo o momento.

“- A isto, disse-me o doutor:

“- Não posso, apesar do que você diz, conservar você aqui. Você tem que se ir mesmo; mas, estou bem certo de que a humanidade lá de fora, em grande parte, não deixa de ter algum parentesco com a fração dela que está aqui dentro.

“- Tem, meu caro doutor; mas, é uma fração da fração a que o senhor alude.

“- Qual é?

“- São os idiotas.

“No dia seguinte, continuou ele, estava na rua e, graças aos cuidados do Manuel Joaquim, encontrei meus livros intactos.”

Então eu perguntei ao camarada Epimênides:

– Que vais fazer agora?

– Escrever uma obra vultuosa e volumosa.

– Como se intitula?

– Todos devem obedecer à Lei, menos o Governo.

Desde esse dia, não mais o encontrei; mas soube por alguém, que ele estava tratando de arranjar um mandato de manutenção, para erigir um convento budista da mais pura doutrina, a qual seria ensinada por um bonzo siamês que viera como taifeiro de veleiro de Rangum e ele conhecera morrendo de fome no cais do porto.

Marginalia, s.d.

 

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