Os Bruzundangas

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Lima Barreto

PREFÁCIO

Na Arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos,
há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular
afirmação: "Como os maiores ladrões são os
que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões."

Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso
livro, achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação
destas despretensiosas "Notas".

A "Bruzundanga" fornece matéria de sobra para livrar-nos,
a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos.
Sua missão é, portanto, como a dos "maiores" da Arte,
livrar-nos dos outros, naturalmente menores.

Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros
de Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente
no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se ocupam unicamente,
no seu ofício de ministro, de encarecerem o açúcar no
mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço
da usina aos estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades
públicas; aqui, não sei que nome teria…

E semelhante ministro daqueles "maiores" de que a Arte nos fala,
destinados a ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de
mercearias ministeriais.

Não contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras muitas
que desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço
e portadoras de ensinamentos proveitosos.

Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da
Bruzundanga, ele mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão,
nomeada para estudar as causas da carestia da vida, e propõe que se
adotem leis contra os estancadores de mercadorias?

É que este doutor dos "maiores" de que nos fala o célebre
livrinho sabia perfeitamente que não estancava e tinha o hábito
de reservas mentais. Não açambarcava, mas "aliviava"
logo uma grande porção de mercadorias para o estrangeiro, por
qualquer cousa, de modo que… Le pauvre homme! Podia até iludir o
nosso pobre Beckman!

Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este
grandalhão de lá, tão generoso e desinteressado, e o
nosso povo poderá livrar-se deles.

Conheci na Bruzundanga um rapaz (creio que está nas "Notas"),
de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando
a Comte, senão a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se
fez reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois
de ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com
o apoio da sotaina e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva
da República. Que "maior" não acham?

E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro,
se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez réis
de mel coado, graças às isenções que obteve com
o prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e das
suas antigas posições, enquanto os seus patrícios pagavam-lhe
o dobro?

Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra
os pequeninos de cá… A Arte fala a verdade…

Outra cousa curiosa da Bruzundanga, das grandes, das extraordinárias,
é a sua "Defesa Nacional".

Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição
de armamentos, munições, equipamentos, adestramento de tropas,
etc.; mas os doges do Kaphet (vide texto) entenderam que não; que era
dar-lhes dinheiro, para elevar artificialmente o preço de sua especiaria.
De que modo? Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde
certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida
fosse tomada no que toca às utilidades indispensáveis à
nossa vida: cereais, carnes, algodão, açúcar, etc.

É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam
para o estrangeiro por metade do preço, menos até.

Aprendamos por aí a conhecer os nossos "menores".

Poderia muito bem falar de outros grossos casos de lá, capazes de
nos livrar dos tais pequenos daqui; mas, para quê?

As páginas que se seguem vão revelá-los e eu me dispenso
de narrá-los neste curto prefácio, Pobre terra da Bruzundanga!
Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua missão tem sido
criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram,
os que nela viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego
sobre o seu solo!

Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Megatherium
ou um fêmur de Propithecus tem vontade de oferecer à Minerva
uma hecatombe de bois brancos!

Vivos, os bons são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se
têm grandes ideais; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios
da Bruzundanga os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo,
muito longe…

Tudo nela é caprichoso, e vário e irregular. Aqui terreno fértil,
úbere; acolá, bem perto, estéril, arenoso.

Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta
cal…

As suas florestas são caprichosas também; as essências
não se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa
a exploração. Aqui, está uma espécie e outra semelhante
só sé encontrará mais além, distante…

Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio
da sua antiguidade: caduquece!

Contudo, e talvez por isso mesmo, os seus costumes e hábitos podem
servir-nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: "os maiores
ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de
outros ladrões".

Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga,
livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.

LIMA BARRETO Todos os Santos, 2-9-17.

Capítulo especial – Os Samoiedas

Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais pela lei; da graça
tendes caído. São Paulo aos Gálatas

Queria evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga.
É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não
me sinto completamente habilitado.

Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o
conhecimento de duas cousas primordiais: idéias gerais sobre literatura
e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei
a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a
língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores
que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes,
solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas
obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra
essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando
isso por ter feição antiga de dois séculos ou três.

Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o
escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito.

Lembrei-me, porém, que as minhas noticias daquela distante república
não seriam completas, se não desse algumas informações
sobre as suas letras; e resolvi vencer a hesitação imediatamente,
como agora venço.

A Bruzundanga não podia deixar de tê-las, pois todo o povo,
tribo, clã, todo o agregado humano, enfim, tem a sua literatura e o
estudo dessas literaturas muito tem contribuído para nós nos
conhecermos a nós mesmos, melhor nos compreendermos e mais perfeitamente
nos ligarmos em sociedade, em humanidade, afinal.

Seria uma falha minha nada dizer eu sobre as belas-letras da Bruzundanga
que as tem como todos os países, a não ser o nosso que, conforme
sentenciou a Gazeta de Notícias, não merece tê-las, pois
o literato não tem função social na nossa sociedade,
provocando tal opinião o protesto de um sociólogo inesperado.
Devem estar lembrados deste episódio — creio eu. Continuemos,
porém, na Bruzundanga.

Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas,
fábulas, etc.; mas todo esse folk-lore não tem sido coligido
e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso comunicar.

Porém, um canto popular que me foi narrado com todo o sabor da ingenuidade
e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui, embora a reprodução
não guarde mais aquele encanto de frase simples e imagens familiares
das anônimas narrações das coletividades humanas.

Na versão dos populares da curiosa república, o conto se intitula
— "O GENERAL E O DIABO" — havendo uma variante sob a
alcunha de — "O PADRE E O DIABO". Como não tivesse
de cor nem as palavras da versão mais geral, nem as da variante, aproveitei
o tema, alguma cousa do corpo da "história" e narro-a aqui,
certamente muito desfigurada, sob a crisma de:

SUA EXCELÊNCIA

O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas
horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só
com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as
atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no coupé
depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente,
tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.

Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco;
estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A
respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram
nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser
ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios.
Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos
ricos. As obscuras determinações das cousas, acertadamente,
haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que
só ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o país
chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham…

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita
em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer, Lembrou-se
do seu discurso de ainda agora:

"Na vida das sociedades, como na dos indivíduos"…

Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso
daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:

"Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon,
Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas
afirmam que as leis devem se basear nos costumes"…

O olhar, muito brilhante, cheio de admiração — o olhar
do leader da oposição — foi o mais seguro penhor do efeito
da frase…

E quando terminou! Oh!

"Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele:
reformemos!"

A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse
final foi recebido.

O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão
iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só
traço de fogo; depois sumiram-se.

O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa
fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente;
não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma
hora, o mesmo minuto da sua saída da festa.

— Cocheiro, onde vamos?

Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.

Gritou ao cocheiro:

— Onde vamos? Miserável, onde me levas?

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia
um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as
grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não
se haviam derretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China,
o Lingão da Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas.

— Cocheiro, onde me levas?

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz
adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel!

— Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

— Miserável! Traidor! Pára! Pára!

Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia,
aos poucos fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do
guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante.
Pareceu-lhe que estava a rir-se.

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar
o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as
calças…

Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas
e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles "libré"
e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que
estivera ainda há pouco e de onde, saíra triunfalmente, não
havia minutos.

Nas proximidades um coupé estacionava.

Quis verificar bem as cousas circundantes; mas não houve tempo.

Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe
isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no
peito as mesmas magníficas grã-cruzes…

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se
e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra cousa,
indagou:

— Vossa Excelência quer o carro?

Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras "histórias"
que correm de boca em boca e se transmitem de pai a filho.

Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes
de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo
não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase
não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de
conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas
na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes
de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais
das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas
de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula,
vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis
o volume.

Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos,
sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com
larga freguesia.

São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por "expoentes"
e não há moça rica que não queira casar com eles.
Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados.
Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar.

O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa
escola literária lá conhecida por "Escola Samoieda".

Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante
rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm
na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo
— "caracteriza", porque, como os senhores verão no
correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza
de sentimento que a impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar,
de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las
totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas.
Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina
que eles pretendem exercer, não é curar, não é
ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais
do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações
atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que
é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho
do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo
para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as
dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória
das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas,
como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente
e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se
com as aparências literárias e a banal simulação
de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras
por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém,
por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade,
portanto, de disfarçar os defeitos com pelotiquices e passes de mágica
intelectuais.

Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto demoradamente
os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado
a lhes dar um resumo de suas regras poéticas e da sua estética.

Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante e misteriosa
à sua escola, sustentam que ela nasceu do poema de um príncipe
samoieda, que viveu nas margens do Ártico, nas proximidades do Óbi
ou do Lena, na Sibéria, um original que se alimentava da carne de mamutes
conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões.

Essa espécie de alimentação do longínquo príncipe
poeta dava aos olhos de todos eles, singular prestígio aos seus versos
e aos do fundador, embora pouco eles os conhecessem.

O príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont
Vakochan, o que quer dizer no nosso calão — O silêncio
das renas no campo de gelo.

Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos "samoiedas" da Bruzundanga
como sendo uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões
árticas.

Tudo isto fantástico, mas graças à credulidade dos sábios
do país, só um ou outro desalmado tinha a coragem de contestar
tais lendas.

Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura
baixa, pouco menos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros
de jade, vivendo da carne de renas, de urso branco, quando a felicidade lhe
fornece um. Tais homens andam em trenós e fazem kayacs de peles de
renas ou focas que eles empregam para capturar estas últimas.

As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus
ídolos, manipansos hediondos, tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes.
Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas e outros animais hiperbóreos.

Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem
seguir as teorias da literatura do oceano Ártico, não são
os samoiedas assim, como o contam os mais autorizados viajantes; mas sim os
mais belos espécimens da raça humana, possuindo uma civilização
digna da Grécia antiga.

Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga…

Em geral, os vates bruzundanguenses adeptos da tal escola samoieda, como
os senhores vêem, não primam pela ilustração; e,
quando se conteste no tocante à beleza de tais esquimós, respondem
categoricamente que a devem ter extraordinária, pois quanto mais fria
é a região, mais belos são os seus tipos, mais altos,
mais louros, e os samoiedas vivem em zona frigidíssima.

Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por idéias
feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer
questão, preferindo resolvê-las por generalizações
quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas
e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra
cabeça.

Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação
da escola, apesar de nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética.

Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo;
as razões psicológicas, eu as encontrei na vaidade deles, no
seu desejo de disfarçar a sua inópia poética com um padrinho
esquisito e misterioso; mas o núcleo da lenda, o grãozinho de
areia em torno do qual se concretizava o mito ártico da escola, só
ultimamente pude encontrar.

Consegui descobrir entre os livros de um inglês meu amigo, Senhor Parsons,
um volume do Senhor H. T. Switbilter, de Bristol (Inglaterra) — Literature
of the Stingy Peoples; e encontrei nele alguns versos samoiedas. São
anônimos, mas o estudioso de Bristol declara que os recolheu da boca
de um certo Tuck-Tuck, samoieda de nação, que ele conheceu em
1867, quando foi encarregado pela Sociedade Paleontológica de Bristol
de descobrir na embocadura dos grandes rios da Sibéria monstros antediluvianos
conservados no gelo, como escaparam de encontrar, quase intactos, o naturalista
Pallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, em 1806. A história
do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se de carne de elefantes fósse,
parece ter origem no fato bem sabido de terem os cães devorado as carnes
do mamute, cujo esqueleto Adams trouxe para o museu de São Petersburgo;
e o príncipe já sabemos quem é.

O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; e as
que estão no volume, traduzidas, são por demais monstruosas,
sempre com um mesmo pensamento denunciando uma concepção estreita
da vida e do universo, muito explicável em bárbaros glaciais.

O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali,
que elas são enfáticas, sem quantidade de sentimento ou um acento
musical agradável e individual, descaindo quase sempre para a melopéia
ou o "tantã" ignaro, quando não alternam uma cousa
e outra.

Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas da
Bruzundanga foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecem
esse autor, pois nunca os vi citá-lo.

Eles, os "samoiedas" da Bruzundanga, encontraram o mestre nos escritos
de um tal Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que parece ter estado
no país daquela gente ártica, aprendido um pouco da língua
dela e se servido do livro do viajante inglês para defender uma poética
que lhe viera à cabeça.

Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-o por
lá, como médico do exército quedival; e ele se ocupava
nos ócios de sua provável mendicânça em rimar uma
tragédia clássica, Abdelcáder, em cinco atos, onde havia
um célebre verso de que o grande romancista nunca se esqueceu. É,
o seguinte :

"C’est de la’ par Allah! qu’ Abd-Allah s’en
alla".

O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por
demonstrar que, com semelhante "harmonia imitativa" como os antigos
chamavam, obtinha traduzir, em verso, o sonido do galope de cavalo.

Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não obstante,
quando apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido com o do Tremor
de Terra de Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiro
André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber-lhe
a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras —"toujours des
perruques", Senhor André.

Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os
clássicos franceses, apelou para a poesia em língua samoieda,
que conhecia um pouco por ter sido marinheiro de um baleeiro que naufragou
nas proximidades da terra desses lapões, entre os quais passou alguns
meses. Não desconhecia o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião
de verificar nos fragmentos de um seu tratado poético, citado na tradução
da obra de um seu discípulo basco por onde os "samoiedas"
da Bruzundanga estudaram a escola que verdadeiramente Chalat ou Chamat fundara.

O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética
das margens do glacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notoriedade
e discípulos.

Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquela
espécie de esquimós, a sua pobreza de impressões e sensações,
a sua incapacidade para as idéias gerais, os hinos, os cânticos,
os rondós dos mesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o
ofício de fazer verso, desde que se tivesse paciência; e a facilidade
seduziu muitos dos seus patrícios e determinou a admiração
dos bardos bruzundanguenses.

Os discípulos de Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveis
para fazer poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos erros
à sua arte poética.

A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses
não permitia esse apelo à matemática; e contentaram-se
com umas regras simples que tinham na ponta da língua, como as beatas
as rezas que não lhes passam pelo coração, e outros desenvolvimentos
teóricos.

Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os
literatos da Bruzundanga; era assim como o seu dogma de arte donde se originavam
as suas fórmulas litúrgicas, o seu ritual, os seus esconjuros,
enfim, o seu culto à tal harmonia imitava, que tanto prezava Chalat.

Além desta deusa, havia outras divindades: o ritmo, o estilo, a nobreza
das palavras, a aristocracia dos assuntos e dos personagens, quando faziam
romances, conto ou drama e a medição dos versos que exigiam
fosse feita como se se tratasse da base de uma triangulação
geodésica. Ninguém, no entanto, podia sacar-lhes da cabeça
uma concepção geral e larga de arte ou obter o motivo deles
conceberem separados da obra d’arte esses acessórios, transformando-os
em puros manipansos, fetiches, isolando-os, fazendo-os perder a sua função
natural que supõe sempre a obra literária com o fim. É
ela, a sua concepção, a idéia anterior que a domina e
o seu destino necessário, que unicamente regulam o emprego deles, graduam
o seu uso, a sua necessidade, e como que ela mesma os dita.

Todos os samoiedas limitavam-se quando se tratava dos tais assuntos, a falar
muito de um modo confuso, esotericamente, em forma e fundo, com trejeitos
de feiticeiros tribais.

Não nego que houvesse entre eles alguns de valor, mas os preconceitos
da escola os matava.

A maioria ia para ela, porque era cômodo no fundo, pois não
pedia se comunicasse qualquer emoção, qualquer pensamento, qualquer
importante revelação de nossa alma que interessasse outras almas;
que se dissesse usando dos processos artísticos, novos ou velhos, de
um pouco do universal que há em nós, alguma cousa do mistério
do universo que o nosso espírito tivesse percebido e determinasse transmiti-la;
enfim um julgamento, um conceito que pudesse influir no uso da vida, na nossa
conduta e no problema do nosso destino, empregando os fatos simples, elementares,
as imagens e os sons que por si sós não exprimiriam a idéia
que se procura, mas que se acha com eles e se vai além por meio deles.

Isto de Hegel, de Taine, de Brunetière, não era com os samoiedas;
a questão deles era encontrar uma espécie de tabuada que lhes
fizesse multiplicar a versalhada. Como as tais regras poéticas do suposto
príncipe eram bem acessíveis à sua paciência de
correcionais, adotaram-nas como artigos de fé, exageraram-nas até
ao absurdo.

Convinham elas por ir ao encontro da sua falta de uma larga inteligência
do mundo e do homem e facilitar-lhes uma crítica terra-a-terra de seminaristas
mnemônicos.

Para mais perfeito ensinamento dos leitores vou-lhes repetir um trecho de
conversa que ouvi entre três dos tais poetas da Bruzundanga, adeptos
extremados da Escola Samoieda.

Quando cheguei, eles já estavam sentados em torno da mesa do café.
Acabava eu de assistir uma aula de geologia na Faculdade de Ciências
do país; o meu espírito vinha cheio de silhuetas de monstros
de outras épocas geológicas. Eram ictiossauros, megatérios,
mamutes; era do sinistro pterodáctilo que eu me lembrava; e não
sei por quê, quando deparei os três poetas samoiedas, me deu vontade
de entrar no botequim e tomar parte na conversa deles.

A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical, mas a estética
da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas
e raposas árticas.

É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas
caríssimo para os seus parentes literários dos trópicos.

Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação
artística, morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.

Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da
capital da Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam
ali: Kotelniji, Wolpuk e Worspikt, o primeiro que tinha aplicado o vernier
para "medir" versos.

Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do poeta Worspikt.
Tratava de lua, de iceberg, — descobri eu por uma e outra consideração
que fizeram.

Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a emoção
com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno
das circunvizinhanças dos pólos.

Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt:

— Gostei muito desse teu verso: — "há luna loura
linda leve, luna bela!"

O autor cumprimentado retrucou:

— Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela
soberba harmonia imitativa, para dar idéia do luar—"Loga
Kule Kulela logalam", no seu poema "Kulelau".

Wolpuk, porém, objetou:

— Julgo a tua excelente, mas teria escolhido a vogal forte "u",
para basear a minha sugestão imitativa do luar.

— Como? perguntou Worspikt.

— Eu teria dito: "Ui! lua uma pula, tu moo! sulla nuit!"

— Há muitas línguas nela, objetou Kotelniji.

— Quantas mais, melhor, para dar um caráter universal à
poesia que deve sempre tê-lo, como ensina o mestre, defendeu-se Wolpuk.

— Eu, porém, aduziu Kotelniji, conquanto permita nos outros
certas licenças poéticas, tenho por princípio obedecer
às mais duras e rígidas regras, não me afastar delas,
encarcerar bem o meu pensamento. No meu caso, eu empregaria a vogal "a"
para a harmonia em vista.

— Mas Tuque-Tuque… fez Worspikt.

— Ele empregou o "e" no tal verso que você citou, devido
à pronunciação que essa letra lá tem. É
um "e" molhado que evoca bem o luar deles, mas…

— E com "a", como é? indagou Wolpuk.

— O "a" é o espanto; seria ai o espanto do homem dos
trópicos, diante da estranheza do fenômeno ártico que
ele não conhece e o assombra.

— Mas Kotelniji, eu visava o luar.

— Que tem isso? Na harmonia em "a" também entra esse
fenômeno que é o provocador do teu espanto, causado pela sua
singularidade local, e pela hirta presença do iceberg, branco, fantástico,
que a lua ilumina.

— Bem, perguntou o autor da poesia; como você faria, Kotelniji?

— Eu diria: "A lua acaba de calar a caraça parva".

— Mas não teria nada que ver com o tema da poesia, objetou Wolpuk;

— Como? O iceberg toma as formas mais variadas… Demais, há
sempre onde encaixar, seja qual for a poesia, uma feliz "imitativa".

— Você tem razão, aplaudiu Wolpuk.

Worspikt concordou também e prometeu aproveitar a maravilhosa trouvaille
do amigo de letras.

Kotelniji era considerado como um grande poeta "samoieda" e tinha
mesmo estabelecido com assentimento de todos eles, as leis científicas
da escola perfeita, "a samoieda", que ele definia como tendo por
escopo não exprimir cousa alguma com relação ao assunto
visado, ou dizer sobre ele, pomposamente, as mais vulgares banalidades.

Dentre as leis que estatuía, eu me lembro de algumas. Ei-las:

1.ª — Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito
do real para o ideal, deve ela ter como principal função provocar
o sono, estado sempre profícuo ao sonho.

2.ª —A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas;
no mundo, tudo é monótono (Tuque-Tuque).

3.ª —A beleza de um trabalho poético não deve ressaltar
desse próprio trabalho, independente de qualquer explicação;
ela deve ser encontrada com as explicações ou comentários
fornecidos pelo autor ou por seus íntimos.

4.ª —A composição de um poema deve sempre ser regulada
pela harmonia imitativa em geral e seus derivados.

E muitas outras de que me esqueci, mas julgo que só estas ilustram
perfeitamente o absurdo da qualificação de leis científicas
da arte. Alhos com bugalhos!

Denuncia tal denominação, de modo cabal, a sua incapacidade
paragrupar idéias, noções e imagens. Que pensaria ele
de ciência? Qual era a sua concepção de arte? Será
possível decifrar essa história de "leis científicas
da arte"? Qual!

Era assim o grande poeta samoieda.

Além de uma gramaticazinha que nós aqui chamamos de tico-tico
e da arte poética de Chalat aumentada e explicada com uma lógica
de gafanhotos, não possuía ele um acervo de noções
gerais, de idéias, de observações, de emoções
próprias e diretas do mundo, de julgamentos sobre as cousas, tudo isso
que forma o fundo do artista e que, sob a ação de uma concepção
geral, lhe permite fazer grupamentos ideais, originalmente, criar enfim.

A importância do vate lhe vinha de redigir A Kananga, órgão
das casas de perfumarias, leques, luvas e receitas para doces, onde alguns
rapazes, sob o seu olhar cioso, escreviam, para ganhar os cigarros, algumas
cousas ligeiras.

O bardo samoieda tomava, entretanto, a cousa a sério, como se estivesse
escrevendo para a Revue de Deux Mondes uma fórmula de mãe-benta;
e evitava o mais possível que alguém tomasse pé na pueril
A kananga. Era essa a sua máxima preocupação de artista.

De todos os postiços literários, usava, e de todas as mesquinhezas
da profissão, abusava.

Era este de fato um samoieda típico no intelectual, no moral, no físico.
Tinha fama.

Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas regras,
as suas superstições; mas não convém fazer semelhante
cousa, porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quisessem
seguir.

Já temos muitas bobagens e são bastantes.

Fico nisto.

I – Um Grande Financeiro

A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas as
repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes
de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos
eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença
na duração do mandato: o dos senadores, mais longo; o dos deputados,
mais curto.

O país vivia de expedientes, isto é, de cinqüenta em cinqüenta
anos, descobria-se nele um produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos
taxavam-no a mais não poder, de modo que os países rivais, mais
parcimoniosos na decretação de impostos sobre produtos semelhantes,
acabavam, na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e, assim, ela
fazia morrer a sua riqueza, mas não sem os estertores de uma valorização
duvidosa. Daí vinha que a grande nação vivia aos solavancos,
sem estabilidade financeira e econômica; e, por isso mesmo, dando campo
a que surgissem, a toda a hora, financeiros de todos os seus cantos e, sobretudo,
do seu parlamento.

Naquele ano, isto há dez anos atrás, surgiu na sua Câmara
um deputado que falava muito em assuntos de finanças, orçamentos,
impostos diretos e indiretos e outras cousas cabalísticas da ciência
de obter dinheiro para o Estado.

A sua ciência e saber foram logo muito gabados, pois o Tesouro da Bruzundanga,
andando quase sempre vazio, precisava desses mágicos financeiros, para
não se esvaziar de todo.

Chamava-se o deputado — Felixhimino Ben Karpatoso. Se era advogado,
médico, engenheiro ou mesmo dentista, não se sabia bem; mas
todos tratavam-no de doutor.

O doutor Karpatoso tinha uma erudição sólida e própria
em matéria de finanças. Não citava Leroy-Beaulieu absolutamente.
Os seus autores prediletos eram o russo-polaco Ladislau Poniatwsky, o australiano
Gordon O’Neill, o chinês Ma-Fi-Fu, o americano William Farthing
e, sobretudo, o doutor Caracoles y Mientras, da Universidade de Caracas, capital
da Venezuela, que, por ser país sempre em bancarrota, dava grande autoridade
ao financista de sua principal universidade.

O físico do deputado era dos mais simpáticos. Tinha um ar de
Gil-Blas de Santillana, em certas ilustrações do romance de
Le Sage, com as suas barbas negras, cerradas, longas e sedosas, muito cuidadas
e aparadas à tesoura diariamente. A tez era de um moreno espanhol;
os cabelos, abundantes e de azeviche; os olhos, negros e brilhantes; e não
largava a piteira de âmbar, com guarnições de ouro, onde
fumegava sempre um charuto caro.

O seu saber em matéria de finanças e economia política
determinava a sua constante escolha para relator do orçamento da receita.
Era de ver como ele escrevia um substancial prefácio ao seu relatório.
Não me recordo de todas as passagens importantes de alguns deles; mas,
de certas, e é pena que sejam tão poucas, eu me lembro perfeitamente.
Eis aqui algumas. Para o orçamento de 1908, o doutor Karpatoso escreveu
o seguinte trecho profundo: "Os governos não devem pedir às
populações que dirigem, em matéria de impostos, mais
do que elas possam dar, afirma Ladislau Poniatwsky. A nossa população
é em geral pobríssima e nós não devemos sobrecarregá-la
fiscalmente." Não impediu isto que ele propusesse o aumento da
taxa sobre o bacalhau da Noruega, pretextando haver produtos similares nas
costas do país.

No orçamento do ano seguinte, ainda como relator da receita, ele dizia:
"É missão dos governos modernos, em países de fraca
iniciativa individual (o nosso o é), fomentar o aparecimento de riquezas
novas, no dizer de Gordon O’Neill. A província das Jazidas, segundo
um sábio professor francês, é um coração
de ouro sob um peito de ferro. O pico de Ytabhira, etc."

E lembrava à Câmara que indicasse medidas práticas para
o aproveitamento do ouro e do ferro da província das Jazidas. A Câmara
e o Senado ouviram-no e votaram algumas centenas de contos para uma comissão
que estudasse o meio prático de aproveitar o ferro da rica província
central. A comissão foi nomeada, montaram o escritório de pesquisas
na capital, em lugar semelhante ao Largo da Carioca, e o pico de Ytabhira
ficou intacto.

A fama do doutor Karpatoso subia e a sua elegância também. Fez
uma viagem à Europa, para estudar o mecanismo financeiro dos países
do Velho Mundo. Voltou de lá naturalmente mais sábio; o que,

porém, ele trouxe de fato, nas malas, e foi verificado pelos elegantes
do país, foram fatos, botas, chapéus, bengalas, dernier bateau,
como dizem os smarts das colônias francesas da Ásia, da África,
da América e da Oceania.

Arreado de novo e inteiramente europeu, o doutor Karpatoso começou
a figurar nas secções mundanas dos jornais, e, vencendo o Senhor
Mikel de Longueville, outro deputado da Bruzundanga, foi tido como o parlamentar
mais chic do Congresso Nacional.

"A elegância do doutor Mikel de la Tour d’Auvergne é um
tanto pesada; tem algo da solidez lusitana quando enrijou os músculos
ao machado nos cepos dos açougues; a do doutor Ben Karpatoso é
mais
leve, mais ligeira, mais nervosa. Parece ter sido obtida com o exercício
do florete."

Tudo isto foi dito na secção elegante — "De Cócoras"
— do Diário Mercantil, jornal da capital, secção
redigida por escritor que tinha, em matéria de compor romances, um
grande parentesco com aquela
raposa das uvas, cuja história La Fontaine contou. "Ils sont trop
verts, et bons pour des goujats", disse a raposa quando não pôde
atingir as uvas. Lembram-se?

O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem
no boato a correr de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro
da Fazenda, e o tal redator da secção — "De Cócoras"
— tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, para ulteriores
serviços de sua profissão e recompensas conseqüentes.

Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a cousa; mas como tinha
certeza de sair, pelo menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume,
encerou bem os bigodes e continuou a pisar os passeios das ruas centrais da
capital, com uma estudada solenidade — lento, erecto como um soba africano
que tivesse envergado um fardão de oficial de marinha e se coberto
com o respectivo chapéu armado, encontrados nos salvados de um naufrágio,
em uma praia deserta. Via-se bem que Turenne Calmon era daqueles que se satisfazem
em ser o segundo em Roma, e que segundo!

Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro
quadriênio, a sua casa começou a encher-se. Kaipatoso era casado
com uma senhora da roça, muito segura das suas origens nobres; ela
pertencia à família dos Kilvas, cujo armorial e pergaminhos
não tinham sido outorgados por nenhum príncipe soberano. Como
Napoleão que, segundo dizem, na sua sagração de imperador,
pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona Hengrácia Ben Manuela
Kilva tinha ela mesmo se enobrecido.

Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpagonescas
de economia e poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas
de chá e biscoutos, que era obrigado a
oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que fazia
sobre seu subsídio teve a idéia genial de fundar uma casa de
herbanário, em uma espécie de Rua Larga de São Joaquim
da capital da República da
Bruzundanga. Arranjou uma pessoa de confiança, que pôs à
testa do negócio; e ei-lo a vender chá mineiro, alfavaca, "língua-de-vaca",
cipó-chumbo, malícia-de-mulher, erva-cidreira, jurubeba, catinga-de-bode,
mata-pão, erva-tostão, bicuíba, óleo de capivara,
cascos de jacarés, corujas empalhadas, caramujos, sapos secos, jabutis,
etc. Em breve, ficou sendo o principal fornecedor dos feiticeiros da cidade,
e os lucros foram
grandes, de modo que ele pôde, sem mais gravame nas suas finanças,
sustentar o seu salão.

Mme. Hengrácia Ben Karpatoso, centro de conversa, não se cansava
de gabar os árduos trabalhos do marido.

Certa ver, em que houvera recepção na casa do famoso deputado,
quando ele já se tinha retirado para os aposentos do andar superior,
a fim de estudar não sei o que sua mulher ficou na sala de visitas
a conversar com algumas amigas e alguns amigos. Alguém, a um tempo
da conversa, observou:

— Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará.

Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião,
apontou o dedo para o teto e disse sacerdotalmente.

— Ele!

Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:

— Sim: Deus!

— Não, — observou Dona Hengrácia. — Ele,
o Felixhimino, quando for ministro da Fazenda.

Ele há de sê-lo em breve.

Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa
conjugal, pois o novo presidente da Bruzundanga — Idle Bhras –
não fez Ben Karpatoso Ministro do Tesouro.

O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira,
a relatar orçamentos com saldos, mas que sempre, ao fim do exercício,
se fechavam com deficits.

Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio
e disse-lhe:

— Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce
de ano para ano… Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro… Espero
que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita.

Você tem estudos sobre finanças e não será difícil
para você…

A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:

— Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa.

— Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará.

Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião,
apontou o dedo para o teto e disse sacerdotalmente.

— Ele!

Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:

— Sim: Deus!

— Não, — observou Dona Hengrácia. — Ele,
o Felixhimino, quando for ministro da Fazenda.

Ele há de sê-lo em breve.

Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa
conjugal, pois o novo presidente da Bruzundanga — Idle Bhras –
não fez Ben Karpatoso Ministro do Tesouro.

O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira,
a relatar orçamentos com saldos, mas que sempre, ao fim do exercício,
se fechavam com deficits.

Certo dia, Idle Bhras de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio
e disse-lhe:

— Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce
de ano para ano… Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro… Espero
que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita.

Você tem estudos sobre finanças e não será difícil
para você…

A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:

— Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa.

— Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben
Venanko, aquele — não sabes? — que foi presidente da Câmara
de Guaporé, minha terra.Ele sempre teve idéias semelhantes às
tuas, mas não as aceitava, por isso nunca o município prosperou.
Entretanto, era um pobre meirinho… Que financeiro!

Apresentadas as idéias de Felixhimino à Câmara, muitos
deputados se insurgiram contra elas.

Um objetou:

— Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.

— Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos,
seria até um benefício, visto que o preço

da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua
com a morte de muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente.

Um outro observou:

— Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.

— Não apoiado. O vestuário deve ser uma cousa majestosa
e imponente, para bem impressionar os estrangeiros que nos visitem. A seda
e a lã ficarão pouco mais caras que os tecidos de algodão.
Toda a
gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações
das nossas cidades terão um ar de abastança que muito favoravelmente
há de impressionar os estrangeiros.

Um outro refletiu:

— Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro
da cidade e dentro do país.

— Será um benefício. O barateamento das passagens só
traz a desmoralização da família. Com as passagens caras,
diminuirão os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques,
conseguintemente os
encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., de forma que os
adultérios e as seduções sensivelmente hão de
ser mais raros.

Dessa maneira, o genial Karpatoso, êmulo do meirinho Ben Venanko, o
financeiro, foi arredando uma por uma as objeções que eram feitas
ao seu projeto de orçamento da receita.

Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da Fazenda,
com o orçamento que fizera votar. Foram tais os processos de contrabando
que teve de estudar, tanto meditou sobre eles, que um
dia, telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um imenso contrabando
e prendera os infractores, desta forma: "Fuzile todos".

O homem estava louco e morreu pouco depois. A secção elegante
de um jornal de lá, o Diário Mercantil — "De Cócoras"
— fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não
pagou, ao redator dela,
nada pelo serviço assombroso que prestar-a às letras do país.

II – A Nobreza de Bruzundanga

UM leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável
cartinha, pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições
civis sociais e políticas da República dos Estados Unidos da
Bruzundanga.

Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios
de geografia, em dicionários da mesma disciplina e várias obras,
nada encontrando a respeito.

O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas
certamente ele não procurou informações nos livros que
o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores
e editores, livros escritos em várias línguas e destinados a
fazer a propaganda do país no estrangeiro.

É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito
fortuna e adquirido notoriedade nos corredores das Secretarias e nos desvãos
do Tesouro da República da Bruzundanga. Pode ter acontecido, entretanto,
que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas
não é aí que eles podem ser encontrados.

As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas
e excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-se
a mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo passam adiante, por
meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os "sebos"
as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas,
tão infladas de um optimismo de encomenda que ninguém as compra,
por sabê-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade
informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro aos revendedores
de livros, por falta de compradores.

Onde o meu leitor poderá encontrá-las, se quer ter informações
mais ou menos transbordantes de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros,
nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos
as pedem nas repartições públicas para vendê-las
a peso aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.

Contudo, a fim de que o meu delicado missivista não fique fazendo
mau juízo a meu respeito, vou dar-lhe algumas informações
sobre o poderoso e rico país da Bruzundanga.

Hoje lhe falarei das nobrezas da grande Nação; proximamente,
em artigos sucessivos, tratarei de outras instituições e costumes.

A nobreza da Bruzundanga se divide em dous grandes ramos. Talqualmente como
na França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada,
na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome
mais adequado, eu chamarei de palpite.

A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos
formados nas escolas, chamadas superiores, que-são as de medicina,
as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe
aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos
em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer.
É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga,
não.

Lá, o cidadão que se asma de um título em uma das escolas
citadas, obtém privilégios especiais, alguns constantes das
leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de
cousas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa
da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta,
diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é
de um medíocre papel de Holanda.

As moças ricas não podem compreender o casamento senão
com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa
natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins.
Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho:

— Minha prima está casada com o doutor Bacabau.

Ele se julga também um pouco doutor. Joana d’Arc não enobreceu
os parentes?

A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente
pobres, isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes
podem alcança-la.

Cousa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral,
não são os exames da escola superior; são os exames preliminares,
aqueles das matrículas que constituem o nosso curso secundário…

Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres
e não constituem para os aspirantes senão uma vigília
de armas para serem armados cavaleiros.

O título — doutor — anteposto ao nome, tem na Bruzundanga
o efeito do — dom — em terra de Espanha. Mesmo no Exército,
ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está
em face de um coronel com o curso de engenharia, o modo de tratá-lo
é matéria para atrapalhações protocolares. Se
só se o chama tout court — doutor Kamisão —, ele
ficará zangado porque é coronel; se se o designa unicamente
por coronel, ele julgará que o seu interlocutor não tem em grande
consideração o seu título universitário-militar.

Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dous títulos,
mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles,
isto é, se se devem designar tais senhores por — doutor coronel
— ou — coronel doutor.

Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso
sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em cousas protocolares
resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.

Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação
à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis.

O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais
repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os
regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.

Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais,
sogros, etc., trataram de reservar o maior número de lugares do Estado
para eles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo
esse desideratum.

Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes
aos nossos delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos
de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar com malfeitores,
só podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente.

A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações
remuneradas, mas as leis ordinárias acharam meios e modos de permitir
que os doutores acumulassem. São cargos técnicos que exigem
aptidões especiais, dizem. A Constituição não
fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma.

Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do
Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos
telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a
um só tempo professores de grego no Ginásio Secundário
do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música,
e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios.

Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor
jurídico da principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor
dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas
a irmãs de caridade.

Como vêem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e
atinentes aos seus diplomas

Um empregado público qualquer que não seja graduado, não
pode ser eleito deputado; mas a mesma lei eleitoral faz exceção
para aqueles funcionários que exercem cargos de natureza técnica,
isto é, doutores. Já vimos que espécie de técnica
é a tal tão estimada na Bruzundanga. Convém, entretanto,
contar um fato elucidativo. Um doutor de lá que era até lente
da Escola dos Engenheiros, apesar de ter outros empregos rendosos, quis ser
inspetor da carteira cambial do banco da Bruzundanga. Conseguiu e, ao dia
seguinte de sua nomeação, quando se tratou de afixar a taxa
do câmbio, vendo que, na véspera havia sido de 15 3/16, o sábio
doutor mandou que o fizesse no valor de 15 3/32. Um empregado objetou:

— Vossa Excelência quer fazer descer o câmbio?

— Como descer? Faça o que estou mandando! Sou doutor em matemática.

E a cousa foi feita, mas o sábio deixou o lugar, para estudar aritmética.

Continuemos a citar fatos para que esta narração tenha o maior
cunho de verdade, apesar de que muita coisa possa parecer absurda aos leitores.

Certo dia li nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações
daquele país, o seguinte:

"F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo
fazer constar de seus assentamentos o seu título de doutor em medicina.
— Deferido".

O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles,
todos podem aquilatar até que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição
doutoral. Um amanuense que se quer recomendar por ser médico, é
fato que só se vê no interessante país da Bruzundanga.
Outros casos eloqüentemente comprobativos do que venho expondo, posso
ainda citar.

Vejamos.

Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país,
votou-se um orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem
os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos e advogados. Ainda
mais.

Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar
obrigatorio, o governo da Bruzundanga, não podendo isentar totalmente
os aspirantes a doutor, consentiu que eles não residissem e comessem
nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os
estudos. Entretanto, um caixeiro que fosse sorteado perderia o emprego, como
todo e qualquer empregado de casa particular.

Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias.
O mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga,
tem os seus mandarins botões de safira, de topázio, de rubi,
etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões,
mas pelos anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou
dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua
respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo,
com as pedras dos anéis:

Médicos (Esmeralda)
Advogados (Rubi)
Engenheiros (Safira)
Engenheiros militares (Turqueza)
Doutores
Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)
Farmacêutico (Topázio)
Dentista (Granada)

Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis
da nobreza doutoral da Bruzundanga. Podia acrescentar outras, sobre todos
os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu correspondente que os três
primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três últimos
gozam de um abatimento de 50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.

Da outra nobreza, tratarei mais tarde, deixando de lado as meninas das Escolas
Normais, com os seus bonés de universidade americana, e os bacharéis
em letras da Bruzundanga, porque lá não são considerados
nobres. Entretanto, as primeiras têm um anel distintivo que parece uma
montra de joalheria, pela quantidade de pedras que possui; e os últimos
anunciam o seu curso com uma opala vulgar. Ambos esses formados são
lá considerados como falsa nobreza.

III – A outra nobreza da Bruzundanga

NO artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações
sobre a primeira espécie da nobiliarquia da República da Bruzundanga.
Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma outra mais curiosa e interessante.

A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela
é firmada na vaga superstição de que os seus representantes
sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm
direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do
Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que
têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar
muito.

Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais
ou menos carimbado pelo governo, com um fitão e uma lata de prata,
onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos
pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.

A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em cousa
alguma; não é firmada em lei ou costume; não é
documentada por qualquer espécie de papel, édito, código,
carta, diploma, lei ou o que seja. Foi por isso que eu a chamei de nobreza
de palpite. Vou dar alguns exemplos dessa singular instituição,
para elucidar bem o espírito dos leitores.

Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se,
por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice
e a adolescência foi conhecido assim em todos os assentamentos oficiais.
Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não
sendo doutor, julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo
a parecer mais nobre. Muda o nome e passa a chamar-se: Ricardo Silva de la
Concepción. Publica o anúncio no Jornal do Comércio local
e está o homem mais satisfeito da vida. Vai para a Europa e, por lá,
encontra por toda a parte príncipes, duques, condes, marqueses da Birmânia,
do Afganistão e do Tibete. Diabo! pensa o homem. Todos são nobres
e titulares e eu não sou nada disso.

Começa a pensar muito no problema e acaba lendo em um romance folhetim
de A. Carrillo, — nos Cavalheiros do amor, por exemplo – um título
espanhol qualquer. Suponhamos que seja: Príncipe de Luna y Ortega.
O homem diz lá consigo: "Eu me chamo Concepción, esse nome
é espanhol, não há dúvida que eu sou nobre";
e conclui logo que é descendente do tal Príncipe de Luna y Ortega.
Manda fazer cartões com a coroa fechada de príncipe, acaba convencido
de que é mesmo príncipe, e convencendo os seus amigos da sua
prosápia elevada.

Com um destes que se improvisou príncipe assim de uma hora para outra,
aconteceu uma anedota engraçada.

Ele se chamava assim como Ferreira, ou cousa que o valha. Fez uma viagem
à Europa e voltou príncipe não sei de quê.

Foi visitar as terras dos pais e dos avós que estavam abandonadas
e entregues a antigos servidores. Um dos mais velhos destes, veio visitá-lo
arrimado a um bastão que escorava a sua grande velhice. Falou ao homem,
ao filho do seu antigo patrão como falara ao menino a quem ensinara
a armar laços e arapucas.

O novel príncipe formalizou-se e disse:

— Você não sabe, Heduardo, que eu sou príncipe?

— Quá o quê, nhonhô. Vancê não pode
sê príncipe. Vancê não é fio de imperadô,
cumo é?

O recente nobre, ci-devant Ferreira, estomagou-se e não quis mais
conversas com aquele velho decrépito que tinha da nobreza idéias
tão caducas. Não lhe deu mais trela.

Essa improvisação de títulos se dá pelas formas
as mais estranhas.

Um rapaz de certos haveres, cujo pai mourejera muito para arranjar alguns
cobres, foi um dia para o estrangeiro, bem enroupado, com algumas libras no
bolso. Fora das vistas paternas e sentindo longe a hipocrisia da Bruzundanga,
meteu-se em todas as pândegas que lhe passou pela cabeça.

Uma noite, em que estava cercado de damas alegres, em uma mesa de café
cantante, uma delas deu na telha de tratá-lo de marquês. Era
senhor marquês, para aqui; senhor marquês para ali.

O rapaz espantou-se a princípio, mas com o calor da conversa e a insistência
da dama, ele perguntou ingenuamente:

— Mas eu sou marquês?

— É — disse a dama galante.

— Como?

— Vou já mostrar ao senhor marquês. Dê-me vinte
francos e os nomes de seus pais, que já lhe dou a prova.

Ele assim fez e, dentro de vinte minutos, o rapazola recebia a sua árvore
genealógica, donde se concluía que descendia dos marqueses de
Libreville.

A vista de tão poderoso documento, o cidadão que partira da
Bruzundanga simplesmente chamando-se Carlos Chavantes (E uma hipótese),
voltou da estranja com o altissonante título de Marquês de Libreville.
O pai continuou a chamar-se Chavantes; ele, porém, era marquês.
O’ manes de d’Hozier!

Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra nobreza.
São condes ou duques e doutores; e usam alternativamente o título
de uma e o da outra aristocracia. Passam assim a ser conhecidos por dous nomes
— cousa que é quase verificada entre os malfeitores e outros
conhecidos da polícia.

Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu
desde que a Bruzundanga se fez república, e desconheceu os títulos
de nobreza porque o país havia sido governado pelo regímen monárquico,
com uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o
tchin russo, isto é, uma nobreza de burocratas, do que mesmo uma nobreza
feudal. O rei que a criou não a chamava mesmo "nobreza",
mas taffetas.

No país, esses titulares de palpite não têm-importância
alguma na massa popular. Os do povo respeitam mais um modesto doutor de farmácia
pobre do que um altissonante Medina Sidonia de última hora; a élite,
porém, a nata, — essa sim! — tem por eles o respeito que
se devia aos antigos nobres.

O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui,
pelo Príncipe Ubá II, d’Africa.

A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a
sério e os seus títulos são berrados nos salões
como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, um Duque d’Alba,
que, por sinal, foi tomado para ascendente de um grave senhor da Bruzundanga,
que desejava a incorporação do proletário à sociedade
moderna.

Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes
e dignos de acurado estudo. Eles têm uma curiosa mistura de ingenuidade
infantil e idiotice senil. Certas vezes, como que merecem invectivas de profeta
judaico; mas, quase sempre, o riso bonanchão de Rabelais.

O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo.
E para elas ainda é bom não esquecer que devemos julgá-las
como aconselha Anatole France; com ironia e piedade.

IV – A política è os políticos da Bruzundanga

A minha estadia na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país,
no dizer de todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais
úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria.
De onde em onde, faz uma "parada" feliz e todos respiram. As cidades
vivem cheias de carruagens; as mulheres se arreiam de jóias e vestidos
caros; os cavalheiros chics se monstram, nas ruas, com bengalas e trajos apurados;
os banquetes e as recepções se sucedem.

Não há amanuense do Ministério do Exterior de lá
que não ofereça banquetes por ocasião de sua promoção
ao cargo imediato.

Isto dura dois ou três anos; mas, de repente, todo esse aspecto da
Bruzundanga muda. Toda a gente começa a ficar na miséria. Não
há mais dinheiro. As confeitarias vivem às moscas; as casas
de elegâncias põem à porta verdadeiros recrutadores de
fregueses; e os judeus do açúcar e das casas de prego começam
a enriquecer doidamente.

Por que será tal coisa? hão de perguntar.

E que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa
nas suas bases, vivendo o país de expedientes.

Entretanto, o povo só acusa os políticos, isto é, os
seus deputados, os seus ministros, o presidente, enfim.

O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal
mais medíocre que há. Apegam-se a velharias, a cousas estranhas
à terra que dirigem, para achar solução às dificuldades
do governo. A primeira cousa que um político de lá pensa, quando
se guinda às altas posições, é supor que é
de carne e sangue diferente do resto da população.

O valo de separação entre ele e a população
que tem de dirigir faz-se cada vez mais profundo.

A Nação acaba não mais compreendendo a massa dos dirigentes,
não lhe entendendo estes a alma, as necessidades, as qualidades e as
possibilidades.

Em face de um país com uma população já numerosa
em relação ao território ocupado efetivamente —
na Bruzundanga, os seus políticos só pedem e proclamam a necessidade
de introduzir milhares e milhares de forasteiros.

Dessa maneira, em vez de procurarem encaminhar para a riqueza e para o trabalho
a população-que já está, eles, por meio de capciosas
publicações, mentirosas e falsas, atraem para a nação
uma multidão de necessitados cuja desilusão, após certo
tempo de estadia, mais concorre para o mal-estar do país.

Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos
felizes, o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga
é fazer os povos infelizes.

Já lhes contei aqui como o doutor Felixhimino Ben Karpatoso, tido
como grande financista naquele país, se saiu quando se tratou de resolver,
grandes dificuldades financeiras da nação. Pois bem: esse senhor
não é o único exemplo da singular capacidade mental dos
homens públicos da Bruzundanga.

Outros muitos eu poderia citar. Há lá um que, depois de umas
exibições vaidosas de retratos nos jornais e cousas equivalentes,
se casou rico e deu para ser católico praticante.

Encontrou o caminho de Damasco que é ainda uma cidade opulenta.

Entretanto, eu quando freqüentei a Universidade da Bruzundanga, o conheci
como adepto do positivismo do rito do nosso Teixeira Mendes. Quis meter-se
na política, fugiu do positivismo e, antes de dez anos, ei-lo de balandrau
e vara a acompanhar procissões.

Depois da sua conversão, foi eleito definidor, fabriqueiro, escrivão
de várias irmandades e ordens terceiras.

Aliás, na Bruzundanga, não há sujeito ateu ou materialista
em regra que, ao se casar com mulher rica, não se faça instantaneamente
católico apostólico romano. Assim fez esse meu antigo colega.

Esse homem, ou antes este rapaz, que tão rapidamente se passou de
uma idéia religiosa para a outra, esse rapaz cuja insinceridade é
evidente, é ajudado em todas as suas pretensões, veleidades,
desejos, pelos bispos, frades, padres e irmãs de caridade.

As irmãs de caridade gozam, lá na Bruzundanga, de uma, influência
poderosa. Não quero negar que, como enfermeiras de hospitais, elas
prestem serviços humanitários dignos de todo o nosso respeito;
mas não são essas que os cínicos ambicioaos da Bruzundanga
cortejam. Eles cortejam aquelas que dirigem colégios de meninas ricas.
Casando-se com uma destas, obtêm eles a influência das colegas,
casadas também com grandes figurões, para arranjarem posições
e lugares rendosos.

Toda a gente sabe como o pessoal eclesiástico consegue manter a influência
sobre os seus discípulos, mesmo depois de terminarem os seus cursos.
Anatole France, em L’Église et lu République,
mostrou isso muito bem. Os padres, freiras, irmãs de caridade não
abandonam os seus alunos absolutamente. Mantêm sociedades, recepções,
etc., para os seus antigos educandos; seguem-lhes a vida de toda a forma,
no
casamento, nas carreiras, nos seus lutos, etc.

De tal froma fazem isto que constituem uma espécie de maçonaria
a influir no espírito dos homens, através das mulheres que eles
esposam.

De tal froma fazem isto que constituem uma espécie de maçonaria
a influir no espírito dos homens, através das mulheres que eles
esposam.

E os malandros que sabem dessa teia formada acima dos néscios, dos
sinceros e dos honestas de pensamento, tratam de cavar um dote e uma menina
das irmãs, o que vem a ser uma e única cousa.

Disse-nos um velho que conheceu escravos na Bruzundanga que foram elas, as
irmãs dos colégios ricos, as mais tenazes inimigas da abolição
da escravidão. Dominando as filhas e mulheres dos deputados, senadores,
ministros, dominavam de fato os deputados, os senadores e os ministros. Ce
que femme veut…

Na Bruzundanga, onde os casamentos desastrosos abundam como em toda a parte,
não é lei o divórcio por causa dessa influência
hipócrita e tola, provinda dos ricos colégios de religiosos,
onde se ensina a papaguear o francês e acompanhar a missa.

Esta dissertação não foi à toa, em se tratando
de política e políticos da Bruzundanga, porque estes últimos
são em geral casados com moças educadas pelas religiosas e estas
fazem a política do país.

Com esse apoio forte, apoio que resiste às revoluções,
às mudanças de regímen, eles tratam, no poder, não
de atender as necessidades da população, não de lhes
resolver os problemas vitais, mas de enriquecerem e firmarem a situação
dos seus descendentes e colaterais.

Não há lá homem influente que não tenha, pelo
menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá
político influente que não se julgue com direito a deixar para
os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo
Tesouro da República.

No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e
indivisos; a população rural, que é a base de todas as
nações, oprimida por chefões políticos, inúteis,
incapazes de dirigir a cousa mas fácil desta vida.

Vive sugada; esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que, na sua
capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso
ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados,
afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem, empregando um
grande palavreado de quem vai fazer milagres.

Um povo desses nunca fará um haro, para obter terras.

A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece.
Não devemos estar a perder o latim com semelhante gente; eu, porém,
que me propus a estudar os seus usos e costumes, tenho que ir até ao
fim.

Não desanimarei e ainda mais uma vez lembro, para bem esclarecer o
que fica dito acima, que o grande Bossuet disse que a política tinha
por fim fazer a felicidade dos povos e a vida cômoda.

A Águia de Meaux, creio eu, não afirmou isso somente para edificação
de algumas beatas…

V – As Riquezas da Bruzundanga

Quando abrimos qualquer compêndio de geografia da Bruzundanga; quando
se lê qualquer poema patriótico desse pais, ficamos com a convicção
de que essa nação é a mais rica da terra.

"A Bruzundanga, diz um livro do grande sábio Volkate Ben Volkate,
possui nas entranhas do seu solo todos os minerais da terra.

"A província das Jazidas tem ouro, diamantes; a dos Bois, carvão
de pedra e turfa; a dos Cocos, diamantes, ouro, mármore, safiras, esmeraldas;
a dos Bambus, cobre, estanho e ferro. No reino mineral, nada pede o nosso
país aos outros. Assim também no vegetal, em que é sobremodo
rica a nossa maravilhosa terra.

"A borracha, continua ele, pode ser extraída de várias
árvores que crescem na nossa opulenta nação; o algodoeiro
é quase nativo; o cacau pode ser colhido duas vezes por ano; a cana-de-açúcar
nasce espontaneamente; o café, que é a sua principal riqueza,
dá quase sem cuidado algum e assim todas as plantas úteis nascem
na nossa Bruzundanga com facilidade e rapidez, proporcionando ao estrangeiro
a sensação de que ela é o verdadeiro paraíso terrestre".

Nesse tom, todos os escritores, tanto os mais calmos e independentes como
os de encomenda, cantam a formosa terra da Bruzundanga.

Os seus acidentes naturais, as suas montanhas, os seus rios, os seus portos
são também assim decantados. Os seus rios são os mais
longos e profundos do mundo; os seus portos, os mais fáceis ao acesso
de grandes navios e os mais abrigados, etc., etc.

Entretanto, quem examinar com calma esse ditirambo e o confrontar com a realidade
dos fatos há de achar estranho tanto entusiasmo.

A Bruzundanga tem carvão, mas não queima o seu nas fornalhas
de suas locomotivas. Compra-o à Inglaterra, que o vende por bom preço.
Quando se pergunta aos sábios do país porque isto se dá,
eles fazem um relatório deste tamanho e nada dizem. Falam em calorias,
em teor de enxôfre, em escórias, em grelhas, em fornalhas, em
carvão americano, em briquettes, em camadas e nada explicam de todo.
Os do povo, porém, concluem logo que o tal carvão de pedra da
Bruzundanga não serve para fornalhas, mas, com certeza, pode ser aproveitado
como material de construção, por ser de pedra.

O que se dá, com o carvão, dá-se com as outras riquezas
da Bruzundanga. Elas existem, mas ninguém as conhece. O ouro, por exemplo,
é tido como uma das fortunas da Bruzundanga, mas lá não
corre uma moeda desse metal. Mesmo, nas montras dos cambistas, as que vemos
são estrangeiras. Podem ser turcas, abexins, chinas, gregas, mas do
pais não há nenhuma. Contudo, todos afirmam que o país
é a pátria do ouro.

O povo da Bruzundanga é doce e crente, mais supersticioso do quecrente,
e entre as suas superstições está esta do ouro. Ele nunca
o viu, ele nunca sentiu o seu brilho fascinador; mas todo o bruzundanguense
está certo de que possui no seu quintal um filão de ouro.

Com o café dá-se uma cousa interessante. O café é
tido como uma das maiores riquezas do país; entretanto é uma
das maiores pobrezas. Sabem por quê? Porque o café é o
maior "mordedor" das finanças da Bruzundanga.

Eu me explico. O café, ou antes, a cultura do café é
a base da oligarquia política que domina a nação. A sua
árvore é cultivada em grandes latifúndios pertencentes
a essa gente, que, em geral, mal os conhece, deixando-os entregues a administradores,
senhores, nessas vastas terras, de baraço e cutelo, distribuindo soberanamente
justiça, só não cunhando moeda, porque, desde séculos,
tal cousa é privilégio do Rei.

Os proprietários dos latifúndios vivem nas cidades, gastando
à larga, levando vida de nababos e com fumaças de aristocratas.
Quando o café não lhes dá o bastante para as suas imponências
e as da família, começam a clamar que o país vai à
garra; que é preciso salvar a lavoura; que o café é a
base da vida econômica do país; e — zás —
arranjam meios e modos do governo central decretar um empréstimo de
milhões para valorizar o produto.

Curiosos economistas que pretendem elevar o valor de uma mercadoria cuja
oferta excede às necessidades da procura. Mais sábios, parece,
são os donos de armarinho que dizem vender barato para vender muito…

Arranjando o empréstimo, está a cousa acabada. Eles, os oligarcas,
nadam em ouro durante cinco anos, todo o país paga os juros e o povo
fica mais escorchado de impostos e vexações fiscais. Passam-se
os anos, o café não dá o bastante para o luxo dos doges,
dogaresas e dogarinhas da baga rubra, e logo eles tratam de arranjar uma nova
valorização.

A manobra da "valorização" consiste em fazer que
o governo compre o café por um preço que seja vantajoso aos
interessados e o retenha em depósito; mas, acontece que os interessados
são, em geral, governo ou parentes dele, de modo que os interessados
fixam para eles mesmos o preço da venda, preço que lhes dê
fartos lucros, sem se incomodar que "o café" venha a ser,
senão a pobreza, ao menos a fonte da pobreza da Bruzundanga, com os
tais empréstimos para as valorizações.

Além disto, o café esgota as terras, torna-as maninhas, de
modo que regiões do país, que foram opulentas pela sua cultura,
em menos de meio século ficaram estéreis e sáfaras.

Sobre a cultura do café nas terras da Bruzundanga, eu podia muito
dizer e podia também muito epilogar. Não me despeço do
assunto totalmente; talvez, mais tarde volte a ele. Há matéria
para escrever sobre ela, muito; dá tanto assunto quanto os matadouros
de Chicago.

O cultivo da cana e o fabrico de aguardente e açúcar são
matéria de que me abstenho de tratar. Abstenho-me porque lá
diz o ditado que, com teu amo, não jogues as peras. Le sage…

A riqueza mais engraçada da Bruzundanga é a borracha. De fato,
a árvore da borracha é nativa e abundante no país. Ela
cresce em terras que, se não são alagadiças, são
doentias e infestadas de febres e outras endemias. A extração
do látex é uma verdadeira batalha em que são ceifadas
inúmeras vidas. É cara, portanto. Os ingleses levaram sementes
e plantaram a árvore da borracha nas suas colônias, em melhores
condições que as espontâneas da Bruzundanga. Pacientemente,
esperaram que as árvores crescessem; enquanto isto, os estadistas da
Bruzundanga taxavam a mais não poder o produto.

Durante anos, essa taxa fez a delícia da província dos Rios.
Palácios foram construídos, teatros, hipódromos, etc.

Das margens do seu rio principal, surgiram cidades maravilhosas e os seus
magnatas faziam viagens à Europa em iates ricos. As cocottes caras
infestavam as ruas da cidade. O Eldorado…

Veio, porém, a borracha dos ingleses e tudo foi por água abaixo,
porque o preço de venda da da Bruzundanga mal dava para pagar os impostos.
A riqueza fez-se pobreza…

A província deixou de pagar as dívidas e houve desembargadores
dela a mendigar pelas ruas, por não receberem os vencimentos desde
mais de dois anos.

Eis como são as riquezas do país da Bruzundanga.

VI – O Ensino na Bruzundanga

Há casos tão escandalosos que, só em contá-los,
metem dó.

Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros
diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os
cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando para lá entraram.
São esses tais que berram: "Sou formado! Está falando com
um homem formado!" Ou senão quando alguém lhes diz:

— "Fulano é inteligente, ilustrado…", acode o homenzinho
logo:

— É formado?

— Não.

— Ahn!

Raciocina ele muito bem. Em tal terra, quem não arranja um título
como ele obteve o seu, deve ser muito burro, naturalmente.

Há outros, espertos e menos poderosos, que empregam o seguinte truc.
Sabem, por exemplo, que, na província das Jazidas, os exames de matemática
elementar são mais fáceis. Que fazem eles? Inscrevem-se nos
exames de lá, partem e voltam com as certidões de aprovação.

Continuam eles nessas manobras durante o curso superior. Em tal escola são
mais fáceis os exames de tais matérias. Lá vão
eles para a tal escola, freqüentam o ano, decoram os pontos, prestam
ato e, logo aprovados, voltam correndo para a escola ou faculdade mais famosa,
a fim de receberem o grau. O ensino superior fascina todos na Bruzundanga.
Os seus títulos, como sabeis, dão tantos privilégios,
tantas regalias, que pobres e ricos correm para ele. Mas só são
três espécies que suscitam esse entusiasmo: o de médico,
o de advogado e o de engenheiro.

Houve quem pensasse em torná-los mais caros, a fim de evitar a pletora
de doutores. Seria um erro, pois daria o monopólio aos ricos e afastaria
as verdadeiras vocações. De resto, é sabido que os lentes
das escolas daquele país são todos relacionados, têm negócios
com os potentados financeiros e industriais do país e quase nunca lhes
reprovam os filhos.

Extinguir-se as escolas seria um absurdo, pois seria entregar esse ensino
a seitas religiosas, que tomariam conta dele, mantendo-lhe o prestígio
na opinião e na sociedade.

Apesar de não ser da Bruzundanga, eu me interesso muito por ela, pois
lá passei uma grande parte da minha meninice e mocidade.

Meditei muito sobre os seus problemas e creio que achei o remédio
para esse mal que é o seu ensino. Vou explicar-me sucintamente.

O Estado da Bruzundanga, de acordo com a sua carta constitucional, declararia
livre o exercício de qualquer profissão, extinguindo todo e
qualquer privilégio de diploma.

Feito isso, declararia também extintas as atuais faculdades e escolas
que ele mantém.

Substituiria o atual ensino seriado, reminiscência da Idade Média,
onde, no trivium, se misturava a gramática com a dialética e,
no quadrivium, a astronomia e a geometria com a música, pelo ensino
isolado de matérias, professadas pelos atuais lentes, com os seus preparadores
e laboratórios.

Quem quisesse estudar medicina, freqüentaria as cadeiras necessárias
à especialidade a que se destinasse, evitando as disciplinas que julgasse
inúteis.

Aquele que tivesse vocação para engenheiro de estrada de ferro,
não precisava estar perdendo tempo estudando hidráulica. Freqüentaria
tão-somente as cadeiras de que precisasse, tanto mais que há
engenheiros que precisam saber disciplinas que até bem pouco só
se exigiam dos médicos, tais como os sanitários; médicos
— os higienistas — que têm de atender a dados de construção,
etc.; e advogados a estudos de medicina legal.

Cada qual organizaria o programa do seu curso, de acordo com a especialidade
da profissão liberal que quisesse exercer, com toda a honestidade e
sem as escoras de privilégio ou diploma todo poderoso.

Semelhante forma de ensino, evitando o diploma e os seus privilégios,
extinguiria a nobreza doutoral; e daria aos jovens da Bruzundanga mais honestidade
no estudo, mais segurança nas profissões que fossem exercer,
com a força que vem da concorrência entre homens de valor e inteligência
nas carreiras que seguem.

Eu não suponho, não tenho a ilusão que alguém
tome a sério semelhante idéia.

Mas desejava bem que os da Bruzundanga a tomassem, para que mais tarde não
tenham que se arrepender.

A nobreza doutoral, lá, está se fazendo aos poucos irritante,
e até sendo hereditária. Querem ver? Quando por lá andei,
ouvi entre rapazes este curto diálogo:

— Mas T. foi reprovado?

— Foi.

— Como? Pois se é filho do doutor F.?

Os pais mesmo têm essa idéia; as mães também;
as irmãs da mesma forma, de modo a só desejarem casar-se com
os doutores. Estes vão ocupar os melhores lugares, as gordas sinecuras,
pois o povo admite isto e o tem achado justo até agora. Há algumas
famílias que são de verdadeiros Polignacs doutorais. Ao lado,
porém, delas vai se formando outra corrente, mais ativa, mais consciente
da injustiça que sofre, mais inteligente, que, pouco a pouco, há
de tirar do povo a ilusão doutoral.

É bom não termos que ver, na minha querida Bruzundanga, aquela
cena que a nobreza de sangue provocou, e Taine, no começo da sua grande
obra Origens da França Contemporânea, descreve em poucas e eloqüentes
palavras. Eu as traduzo:

"Na noite de 14 para 15 de julho de 1789, o Duque de Larochefoucaud-Liancourt
fez despertar Luís XVI para lhe anunciar a tomada da Bastilha.

— É. uma revolta? diz o rei.

— Sire, respondeu o duque, — é uma revolução".

VII – A Diplomacia da Bruzundanga

O ideal de todo e qualquer natural da Bruzundanga é viver fora do
país. Pode-se dizer que todos anseiam por isso; e, como Robinson, vivem
nas praias e nos morros, à espera do navio que os venha buscar.

Para eles, a Bruzundanga é tida como país de exílio
ou mais do que isso: como uma ilha de Juan Fernández, onde os humanos
perdem a fala, por não terem com quem conversar e não poderem
entender o que dizem os pássaros, os animais silvestres e mesmo as
cabras semi-selvagens.

Um dos meios de que a nobreza doutoral lança mão para safar-se
do país, é obter empregos diplomáticos ou consulares,
em falta destes os de adidos e "encostados" às legações
e consulados.

Convém notar que, quando digo que a ânsia geral é viver
fora do país, excetuo os ativos, aqueles que sugam dos ministérios
subvenções, propinas, percentagens e obtêm concessões,
privilégios, etc. Este demoram-se pouco fora dele e, seja governo o
partido radical, seja governo o partido conservador, esteja o erário
cheio, esteja ele vazio, sabem sempre obter fartos e abundantes recursos monetários
de um modo de que só eles têm o segredo.. Estes senhores gostam
muito da Bruzundanga e são ferozes patriotas.

Mas, como lhes contava, os nobres doutores tratam logo de representar o país
em terras estranhas.

Não fazem questão de lugar. Seja no Turquestão ou na
Groenlândia, eles aceitam os cargos diplomáticos.

A um, perguntei:

— Mas tu vais mesmo para o Anam?

— Por que não? Não há lá mulheres?

O sonho do jovem diplomático não é ser Talleyrand; é
ser Don Juan para uso externo.

Ia até bastante satisfeito, disse-me em seguida, porquanto, lá,
não se distinguindo bem a mulher anamita do homem, devia acontecer
surpresas bem agradáveis com semelhante "engano d’arma ledo
e cego".

A sua aprendizagem para o ofício é simples. Além do
corriqueiro francês e os usos da sociedade, os aspirantes a diplomatas
começam nos passeios e reuniões da capital da República
a ensaiar o uso de roupas, mais ou menos à última moda. Não
esquecem nem o modo chic de atar os cordões dos sapatos, nem o jeito
ultra fashionable de agarrar a bengala; estudam os modos apurados de cumprimentar,
de sorrir; e, quando se os vê na rua, descobrindo-se para aqui, chapéu
tirado da cabeça até à calçada para ali, balouçando
a cabeça, lembramo-nos logo dos cavalos do Cabo de coupé de
casamento rico.

Outra cousa que um recomendável aspirante a diplomata deve possuir,
são títulos literários. Não é possível
que um milhar de candidatos, pois sempre os há nesse número,
tenham todos talento literário, mas a maior parte deles não
se atrapalham com a falta.

Os mais escrupulosos escrevem uns mofinos artigos e tomam logo uns ares de
Shakespeare; alguns publicam livros estafantes e solicitam dos críticos
honrosas referências; outros, quando já empregados no ministério,
mandam os contínuos copiar velhos ofícios dos arquivos, colam
as cópias com goma-arábica em folhas de papel, mandam a cousa
para a Tipografia Nacional do país, põem um título pomposo
na cousa, são aclamados histo- riadores, sábios, cientistas
e logram conseguir boas nomeações.

Houve um até que não teve escrúpulo em copiar grandes
trechos do Carlos Magno e os doze pares de França, para ter um soberbo
título intelectual, capaz de fazê-lo secretário de legação,
como ainda o é atualmente.

O mais notável caso de acesso na "carreira" foi o que obteve
o adido à Secretaria de Estrangeiros Horlando. Em um jantar de luxo,
houve uma disputa entre dois convidados sobre uma qualidade de peixe que viera
à mesa. Um dizia que era garoupa; o outro que era bijupirá.
Não houve meio de concordarem. Horlando foi chamado para árbitro.
Levou amostras para casa. Mandou tirar fotografias, fez que desenhassem estampas
elucidativas, escreveu um relatório de duzentas páginas, e concluiu
que não era nem garoupa, nem bijupirá, mas cação.
O seu trabalho foi tido como um modelo da mais pura erudição
culinária e o moço foi logo encarregado de negócios na
Guatemala. É hoje considerado como um dos luzeiros da diplomacia da
Bruzundanga.

Cada mandachuva novo traz sempre em mente aumentar o número de legações,
de modo que não há país no mundo em que a Bruzundanga
não tenha um batalhão de representantes. Muitos desses países
não mantêm, com a curiosa república que venho descrevendo,
relações de espécie alguma; mas, como é preciso
mandar alguns filhos de "figurões" para o estrangeiro, a
munificência dos poderes públicos não trepida em criar
nelas legações dispendiosas. Há lá até
quem reze para que certos países se desmanchem e surjam da separação
novos independentes, permitindo o aumento de legações.

Os rapazes, que vão para elas, saem do país muito bons rapazinhos,
às vezes mesmo mais ricos de influência que de dinheiro; quando,
porém, de lá voltam, só porque viram o emir de Afganistão
ou o sultão de Baçora, acreditam-se da melhor nobreza… certamente
muçulmana.

Os seus modos são outros, os seus gestos estudados, pisam à
última moda do centro da Ásia e encetam a conversa sobre qualquer
cousa, começando sempre assim:

— Estava eu em Cabul, quando a mulher do ministro russo…

Cabul soa aí como se fosse Paris, Londres ou Roma e os seus auditores
consentem em admitir que a capital de Afganistão seja mesmo um depósito
de elegâncias superiores.

Pelo simples fato de terem palmilhado terras estranhas e terem visto naturalmente
algumas obras-primas, os diplomatas da Bruzundanga se julgam todos eles artistas,
literatos, homens finos, gentlemen.

Não pensem que eles publiquem obras maravilhosas, profundas de pensamentos,
densas de idéias; não é isso bem o que publicam.

Afora um ou outro que não se veste pelo figurino da maioria, o que
eles publicam são sonetos bem rimadinhos, penteadinhos, perfumadinhos,
lambidinhos, cantando as espécies de jóias e adereços
que se encontram nas montras dos ourives.

A isto, eles batizam, por conta própria, de aristocracia da arte,
arte superior, arte das delicadezas impalpáveis.

Publicam esses catálogos de ourivesaria, quando não são
de modistas e alfaiates, em edições luxuosas; e, imediatamente,
apresentam-se candidatos à Academia de Letras da Bruzundanga.

Houve tempo em que ela os aceitava sem detença; mas, ultimamente,
devido à sua senilidade precoce, desprezou-os e só vai aceitando
os taumaturgos da cidade.

Não há médico milagreiro e afreguesado que não
entre para ela e pretira os diplomatas.

Nem sempre foi assim a diplomacia da Bruzundanga. Mesmo depois de lá
se ter proclamado a República, os seus diplomatas não tinham
o recheio de ridículo que atualmente têm.

Eram simples homens como quaisquer, sem pretensões do que não
eram, sem fumaças de aristocracia, nada casquilhos, nem arrogantes.

Apareceu, porém, um embaixador gordo e autoritário, megalômano
e inteligente, o Visconde de Pancôme, que fizeram ministro dos Estrangeiros,
e ele transformou tudo.

Empossado no ministério, a primeira cousa que fez foi acabar comas
leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo
ministro era muito popular na Bruzundanga; e vinha a sua popularidade do fato
de ter obtido do rei da Inglaterra a comenda de Jarreteira para o mandachuva
e seus ministros, assim como o Tosão de Ouro da Espanha para os generais
e almirantes.

Todos os senhores hão de se admirar que tal cousa tenha feito o homem
popular. É que os bruzundanguenses babam-se inteiramente por esse negócio
de condecorações e comendas; e, embora cada qual não
tivesse recebido uma, eles se julgavam honrados pelo fato do mandachuva, do
ministro, dos generais e almirantes terem recebido condecorações
tão famosas no mundo inteiro.

São assim como nós que temos grande admiração
pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado ao Brasil não sei
quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral,
nenhum de nós tenha de seu nem os sete palmos de terra para deitarmos
o cadáver.

O visconde, exaltado no ministério, tendo por lei a sua vontade, baseado
na popularidade, fez o que entendeu e a sua preocupação máxima
foi dar à representação externa da Bruzundanga um brilho
de beleza masculina, cujo cânon ele guardava secretamente para si. Daí
veio essa total modificação no espírito da representação
exterior do país e não houve bonequinho mais ou menos vazio
e empomadado que ele não nomeasse para esta ou aquela legação.

O seu sucessor seguiu-lhe logo as pegadas, não só neste ponto
como em outros mais.

O Visconde de Pancôme era de fato um escritor; o novo ministro não
o era absolutamente, mas como substituiu aquele, julgou-se no direito de o
ser também e também membro da Academia de Letras, como tinha
sido o seu predecessor.

Publicou em papelão um discurso, impresso em letras garrafais, conseguindo
assim organizar um volume e foi daí em diante igual ao antecessor em
tudo.

Não há mal algum que seja assim a diplomacia daquelas paragens.
A Bruzundanga é um país de terceira ordem e a sua diplomacia
é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita.

E, se os maridos e pais da Bruzundanga têm que andar cheios de cuidados,
é melhor que tais zelos fiquem ao cargo dos estrangeiros. A diplomacia
do país tem a sua utilidade…

VIII – A Constituição

Quando se reuniu a Constituinte da República da Bruzundanga, houve
no país uma grande esperança. O país tinha, até
aí, sido governado por uma lei básica que datava de cerca de
um século e todos os jovens julgavam-na avelhentada e já caduca.
Os militares do Exército, iniciados nas sete ciências do Pitágoras
de Montpellier, — criticavam-na da seguinte forma: "Qual! Esta
constituição não presta! Os que a fizeram não
sabiam nem aritmética; como podiam decidir em sociologia?"

Escusado é dizer que isto não era verdade, mas o critério
histórico deles e o seu orgulho escolar pediam fosse.

Os outros doutores também achavam a Constituição monárquica
absolutamente tola, porque, desde que ela fora promulgada, havia surgido um
certo jurista alemão ou aparecido um novo remédio para erisipelas.
A nova devia ser uma perfeição e trazer a felicidade de todos.

Reuniu-se, pois, a Constituinte com toda a solenidade. Vieram para ela, jovens
poetas, ainda tresandando à grossa boêmia; vieram para ela, imponentes
tenentes de artilharia, ainda cheirando aos "cadernos" da escola;
vieram para ela, velhos possuidores de escravos, cheios de ódio ao
antigo regime por haver libertado os que tinham; vieram para ela, bisonhos
jornalistas da roça recheados de uma erudição à
flor da pele, e também alguns dos seus colegas da capital, eivados
do Lamartine, História dos girondinos, e entusiastas dos caudilhos
das repúblicas espanholas da América. Era mais ou menos esse
o pessoal de que se compunha a nova Constituinte.

Tinham entrado no ritual da nova República os banquetes pantagruélicos;
e, nas vésperas da reunião, houve um de estrondo.

À sessão inaugural, prestou guarda de honra uma brigada; mas,
bem contando, era unicamente um batalhão.

Quando saíram os constituintes, Z., um deles, perguntava de si para
si:

— Que vou propor eu?

H. excogitava:

— Devo ser pelo divórcio? Esses padres…

B. meditava:

— Antes não me metesse nisto. O imperador pode voltar e é
o diabo…

Quase todos, porém, consideravam com toda a convicção,
com todo o acendramento, com um recolhimento religioso:

— Qual a Constituição que devemos imitar?

Em geral, eles esperavam ser escolhidos para a comissão dos vinte
e um que tinha de redigir o projeto da futura lei básica, e era justo
que tivessem semelhante preocupação absorvente:

— Qual a constituição que devemos imitar?

Votado o regimento interno da grande assembléia e tomadas todas as
outras disposições secundárias, a comissão dos
vinte e um membros, encarregada de redigir o projeto, foi escolhida; e, em
reunião, houve entre os seus membros caloroso debate a respeito de
quem deveria ser o relator ou os relatores.

Escolheram, afinal, três sumidades: Felício, Gracindo e Pelino,
todos eles — ben — qualquer cousa.

O resto pôs-se a descansar e os três, em sala separada, no dia
seguinte, juntaram-se e trataram dos moldes em que devia ser elaborada a nova
Magna Carta.

Pelino foi de parecer que a constituição futura devia ser vazada
no cadinho em que fora a do país dos Houyhhnnms.

— É um país de cavalos! exclamou Gracindo.

— Que tem isto? retrucou Pelino. Nós somos bastante parecidos
com eles.

— Não, não queremos, objetaram os dois outros.

— Então, como vai ser? perguntou Pelino. Se não querem
à moda dos cavalos, não podemos achar outro modelo, pois o país
dos camelos não tem constituição.

— Façamos a constituição aos modos da de Lilliput,
fez Felício.

— Não me serve! exclamou Pelino. Semelhante gente não
pesa, é muito pequena!

— Então ao jeito da de Brobdingnag, o país dos gigantes.

Todos acharam justa a proposta e começaram a redigir o projeto de
constituição da Bruzundanga republicana, conforme o paradigma
da do país dos gigantes.

Quando Gulliver lá esteve (creio que os senhores se lembram disso),
figurou como um verdadeiro brinquedo. Ninguém o levava a sério
como homem; era antes um boneco que dormia com as moças e tinha outra:
intimidades que, se não foram contadas, podem ser adivinhadas.

A população da Bruzundanga, tirante um atributo ou outro, não
era composta de pessoas diferentes do doutor Gulliver; eram minúsculos
bonecos, portanto, que queriam possuir uma constituição de gigantes.

Felizmente, porém, já na grande comissão, já
no plenário, a imitação foi modificada; e, em muitos
pontos, a Carta da Bruzundanga veio a afastar-se da de Brobdingnag.

— Houve mesmo disposições originais que merecem ser citadas.
Assim, por exemplo, a exigência principal para ser ministro era a de
que o candidato não entendesse nada das cousas da pasta que ia gerir.

Por exemplo, um ministro da Agricultura não devia entender cousa alguma
de agronomia. O que se exigia dele é que fosse um bom especulador,
um agiota, um judeu, sabendo organizar trusts, monopólios, estancos,
etc.

Os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas
dos governadores das províncias que os elegiam. As províncias
não poderiam escolher livremente os seus governantes; as populações
tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias, aparentadas
pelo sangue ou por afinidade.

Havia artigos muito bons, como por exemplo o que determinava a não
acumulação de cargos remunerados e aquele que estabelecia a
liberdade de profissão; mas, logo, surgiu um deputado prudente que
estabeleceu o seguinte artigo nas disposições gerais: "Toda
a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de
parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros
dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no
caso".

Na constituinte, todos esperavam ficar na "situação",
de modo que o artigo acima foi aprovado unanimemente.

Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticidade extraordinária.
Os presidentes de província, desde que estivessem de acordo com o presidente
da república, — na Bruzundanga chama-se mandachuva — faziam
o que queriam.

Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação
da Constituição, apelava para a Justiça (lá se
chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes
de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo.

Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador
de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo,
de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um
pé que fosse da "preciosa rubiácea".

Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia.
Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar
café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não
o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que
pertencia à "situação".

Como todo o mundo não podia pertencer à "situação",
os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam
a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam,
desta ou daquela maneira, masorcas.

Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam
a fazer o mesmo que os outros.

Havia apelo para a "Chicana", mas a Suprema Corte, considerando
bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a "situação".
Era tudo a "situação".

Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da
constituição; mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma
como um sacrilégio.

A constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei. Não
havia lei que permitisse as províncias deportar indivíduos de
uma para outra, mas o Estado do Kaphet, graças ao tal artigo, deportava
quem queria e ainda encomendava aos jornais que o chamassem de província
modelo.

A constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava
às condições para elegibilidade do mandachuva, isto é,
o presidente.

Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse
mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não
tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.

Nessa parte a constituição foi sempre obedecida.

A república dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos.
Têm passado pela curul presidencial nada menos do que seis mandachuvas,
e não houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.

A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos
gigantes, foi inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.

No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações,
desfigurações e interpretações de modo a não
me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que quisesse escrever
um livro de seiscentas páginas.

IX – Um mandachuva

OS leitores que têm seguido estas rápidas notas sobre os usos
e costumes, leis e superstições da República da Bruzundanga,
não devem ter esquecido que o seu presidente é chamado "Mandachuva",
e oficialmente.

Já dei até algumas das exigências constitucionais que
os candidatos têm de preencher, a fim de ascenderem à curul presidencial
daquele país, que fica próximo da ilha dos Lagartos, tão
bem descrita pelo meu concidadão Antônio José, que as
fogueiras da Inquisição queimaram em Lisboa.

O que pretendo agora, nestas linhas, é fornecer aos leitores o tipo
de um presidente da curiosa República, infelizmente tão mal
conhecida entre nós — cousa de lastimar, pois ela nos podia fornecer
modelos que nos levassem de vez a completo desastre. Il faut finir, pour recommencer…

A não ser que suba ao poder, por uma revolta mais ou menos disfarçada,
um General mais ou menos decorativo, o Mandachuva é sempre escolhido
entre os membros da nobreza doutoral; e, dentre os doutores, a escolha recai
sobre um advogado.

É justo, pois são os advogados ou bacharéis em direito
que devem ter obrigação de conhecer a barafunda de leis de toda
a natureza, embora a arte de governar, segundo o critério dos que filosofam
sobre o Estado e o admitem necessário, não peça unicamente
o seco conhecimento de textos de leis, de artigos de códigos, de opiniões
de praxistas e hermeneutas.

As leis são o esqueleto das sociedades, mas a feição
de saúde ou doença destas, as suas necessidades terapêuticas
ou cirúrgicas, são dadas pelo prévio conhecimento e exame,
no momento, do estado de certas partes externas e dos seus órgãos
vitais, que são o seu comércio, a sua indústria, as suas
artes, os sonhos do seu povo, os sofrimentos dele — toda essa parte
mutável das comunhões humanas, cambiantes e fugidia, que só
os fortes observadores, com grande inteligência, colhem em alguns instantes,
sugerindo os remédios eficazes e as providências adequadas, para
tal ou qual caso.

Gomo dizia, porém, na Bruzundanga, em geral, o Mandachuva é
escolhido entre os advogados, mas não julguem que ele venha dos mais
notáveis, dos mais ilustrados, não: ele surge e é indicado
dentre os mais néscios e os mais medíocres. Quase sempre, é
um leguleio da roça que, logo após a for- matura, isto é,
desde os primeiros anos de sua mocidade até aos quarenta, quando o
fizeram deputado provincial, não teve outro ambiente que a sua cidadezinha
de cinco a dez mil habitantes, mais outra leitura que a dos jornais e livros
comuns da profissão — indicadores, manuais, etc.; e outra convivência
que não a do boticário, do médico local, do professor
público e de algum fazendeiro menos dorminhoco, com os quais jogava
o solo, ou mesmo o "truque" nos fundos da botica.

É este homem que assim viveu a parte melhor da vida, é este
homem que só viu a vida de sua pátria na pacatez de quase uma
aldeia; é este homem que não conheceu senão a sua camada
e que o seu estulto orgulho de doutor da roça levou a ter sempre um
desdém bonanchão pelos inferiores; é este homem que empregou
vinte anos, ou pouco menos, a conversar com o boticário sobre as intrigas
políticas de seu lugarejo; é este homem cuja cultura artística
se cifrou em dar corda no gramofone familiar; é este homem cuja única
habilidade se resume em contar anedotas; é um homem destes, meus senhores,
que depois de ser deputado provincial, geral, senador, presidente de província,
vai ser o Mandachuva da Bruzundanga.

Hão de dizer que, passando por tão-altos cargos que se exercem
em grandes cidades, nas capitais, o futuro Mandachuva há de ter recebido
outras impressões e ganhar, portanto, idéias mais amplas. Naturalmente,
ele há de adquirir algumas, mas não tantas que modifiquem a
sua primitiva estrutura mental.

Durante este longo tempo em que ele passa como deputado, senador, isto e
aquilo, o esperançoso Mandachuva é absorvido pelas intrigas
políticas, pelo esforço de ajeitar os correligionários,
pelo trabalho de amaciar os influentes e os preponderantes, na política
geral e regional. A sua atividade espiritual limita-se a isto.

Os preponderantes e influentes têm todo o interesse em não fazer
subir os inteligentes, os ilustrados, os que entendem de qualquer cousa; e
tratam logo de colocar em destaque um medíocre razoável que
tenha mais ambição de subsídios do que mesmo a vaidade
do poder.

Além disso, eles têm que atender aos capatazes políticos
das localidades das províncias; e, em geral, estes últimos indicam,
para os primeiros postos políticos, os seus filhos, os seus sobrinhos
e de preferência a estes: os seus genros.

A ternura do pai quer sempre dar essa satisfação à vaidade
das filhas.

O futuro chefe do governo da Bruzundanga começa a sua carreira política
pela mão do sogro; e, relacionando-se com os bonzos de sua província,
se é esperto e apoucado de inteligência e saber, faz-se ainda
mais; na maioria dos casos, porém, não é preciso tanto.
Os caides ficam logo contentes com ele. Mandam-no para a Câmara Geral;
e, durante a primeira legislatura, encarregam-no de comprar ceroulas, pares
de meias, espingardas de dous canos, óculos de grau tanto, de ir às
repartições ver tal requerimento, de empenhar-se pelos exames
dos nhonhôs, etc…

Quando acaba a legislatura, o Messias anunciado para salvar a Bruzundanga
é possuidor de todo esse acervo de serviços ao partido. É
reeleita. A sua lealdade e o seu natural prestativo indicam-no logo para leader
da bancada, senão da Câmara, Ei-lo em evidência. Os jornalistas,
grandes e pequenos, não o deixam, elogiam-no, dão-lhe o retrato
nas folhas, fazem pilhérias a respeito do homem; e ele autoriza a publicação
de atos oficiais do governo de sua província, cujas contas o erário
departamental paga generosamente aos seus jornais e revistas.

Os calenders provincianos estão cada vez mais contentes com ele e
o nosso homem já economizou, sobre subsídios, mais do que a
mulher trouxe para a sociedade conjugal.

É um homem metódico, pontual nos pagamentos, não gasta
dinheiro em cousas inúteis, como seja em livros.

Uma noite ou outra, vai ao Teatro Lírico, mas logo se aborrece, não
só ele como a futura Mme. Mandachuva. Preferia, madame, estar a dormir
naquela hora, e ele a jogar solo na botica, antes do que permanecerem ali,
apertados nos vestuários, a ouvir umas cantorias em língua que
não entendem. Que saudades do gramofone! Para ele, há secas
piores…

Ainda a música ele suporta um tanto, mas as tais exposições
de pintura, as sessões de Academias… Irra! Que estafa!

Foge de ir a elas; e todo o seu medo é vir a ser presidente da Bruzundanga,
pois será obrigado a comparecer a tais festas.

A sua leitura continua a ser os jornais, porém não pega mais
nos manuais, nos indicadores de legislação.

As necessidades artísticas de sua natureza se cifram no gramofone
doméstico e nos cinemas urbanos ou do arrabalde em que reside. Faz
coleção dos programas destes últimos e, com eles, organiza
a sua opulenta biblioteca literária.

A proporção que sobe, mostra-se mais carola; não falta
à missa, aos sermões, comunga, confessa-se e os padres e irmãs
de caridade têm-no já por aliado. Ah! Quem o visse contar certas
anedotas sobre padres, jogando o "truque", nos fundos da botica
de sua terra!… História antiga! O homem, hoje, é sinceramente
católico, e tanto assim que acompanha procissões de opa ou balandrau.

A ascensão dele a Senador até coincidiu com a sua eleição
para irmão fabriqueiro da Santíssima Irmandade e Santo Afonso
de Ligório e também com a de definidor da Santíssima
e Venerável Irmandade de Santo Onofre.

As cousas vão assim marchando; e ele, sempre calado, deixa-se ficar,
rodando a manivela do gramofone e do seu moinho de rezas.

Há uma complicação na escolha do Governador da província
das Jazidas, onde ele nasceu. Os caides não se entendem e o seu nome
é apontado como conciliador, escolhido e eleito. Aborrece-se um pouco,
pois já estava habituado com a capital do país, e muito gostava
dela, apesar de mal a conhecer. Toma posse, entretanto. Surge, ao meio do
seu governo regional, não entre os caides, mas na comunhão dos
emires que governam o país, um desaguisado, com o problema da sucessão
do Mandachuva, cujo tempo está a acabar. O nosso homem não se
define. Continua a dar corda no seu enorme e fanhoso gramofone e a rodar a
manivela do seu moinho de rezas. Os padres, que são seus aliados, não
o abandonam; e nos bastidores, por intermédio das mulheres dos políticos,
insinuam-lhe o nome para o alto cargo de Mandachuva. Ei-lo eleito, toma posse
do cargo e do alcatifado palácio que a nação lhe dá
para residência.

O seu primeiro cuidado, e também da mulher, é fechar diversos
aposentos para diminuir o número de serviçais, de modo afazer
economias na verba de representação.

O cargo dá-lhe certos incômodos, mas muitas vantagens: não
paga selo nas cartas, não paga bonde, trem, nem teatros, onde continua
a quase não ir. O que o aborrece, sobretudo, são as audiências
públicas — uma importunação para esse parente de
São Luiz. Mais o amolar que lhe dão fadiga. Ao sair de uma delas,
diz à mulher:

— Que povo aborrecido!

— Mas que tem você com o povo? — pergunta Mme. Mandachuva,
a Egéria conjugal.

Para distrair-se, o esclarecido Mandachuva compra um bom gramofone e instala
no palácio um cinema.

É conveniente lembrar que, nesse mesmo palácio, ao tempo em
que a Bruzundanga era Império, executores famosos no mundo inteiro
tinham tocado obras-primas musicais, no violino e no piano. Houve progresso…

Eis aí um Mandachuva perfeito.

X – Força Armada

NA Bruzundanga não existe absolutamente força armada. Há,
porém, cento e setenta e cinco generais e oitenta e sete almirantes.
Além disto, há quatro ou cinco milheiros de oficiais, tanto
de terra como de mar, que se ocupam em fazer ofícios nas repartições.
O fim principal dessas repartições, no que toca ao Exército,
é estudar a mudança de uniformes dos mesmos oficiais. Os grandes
costureiros de Paris não têm tanto trabalho em imaginar modas
femininas como os militares da Bruzundanga em conceber, de ano em ano, novos
fardamentos para eles.

Quando não lhes é possível de todo mudá-los,
reformam o feitio do boné ou do calçado. É assim que
já usaram os oficiais do Exército de lá, coturnos, borzeguins,
sandálias, sabots e aquilo que nós chamamos aqui — tamancos.

Entretanto, o Exército da Bruzundanga merece consideração,
pois tem boas qualidades que desculpam esses pequenos defeitos. É às
vezes abnegado e quase sempre generoso, e eu, que vivi entre os seus oficiais
muito tempo, tendo tido muitas questões com eles, posso dizer que jamais
os supus tão tolerantes. Foi, no que me toca, um traço que,
além de me surpreender, me cativou imensamente. Demais, apesar de toda
e qualquer presunção que se lhes possa atribuir, eles têm
sempre um sincero respeito pelas manifestações da inteligência,
partam elas de onde partirem.

O mesmo não se pode dizer da Marinha. Ela é estrictamente militar
e os seus oficiais julgam-se descendentes dos primeiros homens que saíram
de Pamir. Não há neles a preocupação de constante
mudança de fardamento; mas há a de raça, para que a Bruzundanga
não seja envergonhada no estrangeiro possuindo entre os seus oficiais
de mar alguns de origem javanesa. Os mestiços de javaneses, entretanto,
têm dado grandes inteligências ao país, e muitas.

A marinha da Bruzundanga, porém, com muito pouco entra para o inventário
intelectual da pátria que ela diz representar no estrangeiro com os
seus navios paralíticos.

Se, de fato, lá houvesse Marinha, podia-se dizer que era mantida pelo
povo da Bruzundanga para gáudio e alegria dos países estranhos.

As principais produções dos arsenais de guerra do país
são brinquedos aperfeiçoados; e os da Marinha são muito
estimados na nação pela perfeição das redes de
pescaria que lhe saem dos estaleiros.

Uma das curiosidades da Armada daquele país é a indolência
tropical dos seus navios que, às vezes, por mero capricho, teimam em
não andar.

Enfim, a força armada da Bruzundanga é a cousa mais inocente
deste mundo. Em face dela, todo o pacifismo ou humanitarismo é perfeitamente
ridículo.

XI – Um ministro

ESTAS "notas" sobre a Bruzundanga ameaçam não acabar
mais. Temo, ao escrevê-las tão longas como as Histórias
de Heródoto, não virem elas, apesar disso, merecer a imortalidade
da obra do viajante grego.

Contudo, se a posteridade não encontrar nelas algum ensinamento, e
as desprezar, os contemporâneos do meu país podem achar nestas
rápidas narrações de coisas de nação tão
remota, moldes, receitas e meios para esbodegar de vez o Brasil.

Esbocei em um capítulo antecedente o tipo de Mandachuva da Bruzundanga;
agora, vou ver se debuxo o de um ministro daquele país.

A Bruzundanga, como o Brasil, é um país essencialmente agrícola;
e, como o Brasil, pode-se dizer que não tem agricultura.

O regímen de propriedade agrícola lá, regímen
de latifúndios com toques feudais, faz que o trabalhador agrícola
seja um pária, quase sempre errante de fazenda em fazenda, donde é
expulso por dá cá aquela palha, sem garantias de espécie
alguma — situação mais agravada ainda pela sua ignorância,
pela natureza das culturas, pela politicagem roceira e pela incapacidade e
cupidez dos proprietários.

Estes, em geral, são completamente inábeis para dirigir qualquer
coisa, indignos da função que a obscura marcha das coisas depositou
em suas mãos. Pouco instruídos, apesar de formados, nisto ou
naquilo, e sem iniciativa de qualquer natureza, despidos de qualquer sentimento
de nobreza e generosidade para com os seus inferiores, mais ávidos
de riqueza que o mais feroz taverneiro, pimpãos e arrogantes, as suas
fazendas ou usinas são governadas por eles, quando o são, com
a dureza e os processos violentos de uma antiga fazenda brasileira de escravos.

Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos
com influência nos lugares em que têm as suas fazendas agrícolas;
e, apoiados na política, fazem o que querem, são senhores de
baraço e cutelo, eles ou os seus prepostos.

O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando
se estabelece nas suas propriedades, tem todas as promessas e todas as garantias
verbais. Constrói o seu rancho, que é uma cabana de taipa coberta

com o que nós chamamos sapê, e começa a trabalhar para
o barão, desta ou daquela maneira. Não me alongo mais sobre
a vida deles, porque pouco vivi na roça da Bruzundanga; mas posso asseverar
que o trabalhador agrícola daquele país — esteja o café
em alta, esteja em baixa, suba o açúcar, desça o açúcar
— há trinta anos ganha o mesmo salário, isto é,
dez tônios por dia, a seco, o que quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos
e dous mil-réis, sem alimentação.

Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalhadores
agrícolas. A parte povoada e cultivada do país tem já
uma razoável população e talvez suficiente para as suas
necessidades, mas,
à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram
do seu suor, em breve deixam-se cair em marasmo, em desânimo, ou vêm
a morrer de miséria nas cidades, onde se sentem mais garantidos contra
o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.

Como os grandes agricultores e seus parentes são políticos,
e deputados, e senadores, e ministros, logo que sentem o êxodo dos naturais,
começam a berrar que há falta de braços. Publicam uns
fascículos desonestamente optimistas, onde há as maiores hipérboles
laudatórias ao clima e à fertilidade da Bruzundanga e atraem
emigrantes incautos.

Os primeiros que chegam com aquele fervor de quem "queimou os seus navios",
trabalham vigorosamente e abarrotam de dinheiro os régulos das feitorias;
mas já seus filhos não são assim. Logo se enchem do mesmo
desânimo que os seus patrícios mais antigos, na terra, e começam
a cair naquele marasmo, naquela apatia, naquela tristeza, que se evola, com
um grande apelo à embriaguez sexual, das cantigas populares do país
e cobre a roça da Bruzundanga de um sudário impalpável.

A manobra dos fazendeiros e outros agricultores é mudar, de quando
em quando, a nacionalidade dos emigrantes que vão buscar. Assim, eles
conseguem manter o fogo sagrado e ter trabalhadores abnegados.

Tudo isto se dá porque o fazendeiro ou grande agricultor da Bruzundanga
quer ter da sua cultura lucros imensos que lhe proporcionem uma vida de fausto,
a ele, aos filhos que estudam para doutor, às filhas para casarem com
a nobreza do país. O crédito agrícola é, por isso,
até prejudicial à lavoura da paradoxal República.

Em geral, vivem fora das propriedades, nas grandes cidades, sob o pretexto
de educarem as filhas e os filhos mas com o secreto intuito de arranjar bons
partidos matrimoniais para as meninas.

Foi entre semelhantes morubixabas que certo Mandachuva escolheu um seu Ministro
da Agricultura. Remontemos as origens desse cacique do açúcar,
os piores da Bruzundanga, pois lidam em geral com os naturais do pais que
não têm a quem se queixar. Na província das Canas, houvera
m turumbamba mais ou menos oficialmente protegido por um Manda-chuva, motivo
esse que derrubou a oligarquia da família dos Cravhos. Um usineiro
muito rico da mesma província, Phrancisco Novilho Ben Kosta, mais conhecido
por Chico Caiana, tinha adiantado dinheiro e assoldadado gente para que o
general Tupinambá tomasse o lugar do soba-mor Cravho Ben Mathos. O
general vitorioso ficou muito agradecido ao Chico, e prometeu dar-lhe uma
posição de destaque na política.

Chico era o tipo do grande agricultor da Bruzundanga: nada entendia de agricultura,
mesmo daquela que dizia exercer.

As canas que moía nos seus engenhos, eram plantadas por outros, a
quem ele impunha o preço do carro como bem entendia; e, no que toca
à moagem e preparo do açúcar, aí já de
indústria, ele nada ou pouco conhecia.

Apesar de bacharel em direito, mal lia os jornais e o seu forte, em aritmética,
era a conta de juros, de cabeça. A sua usina era de fato dirigida por
um francês boêmio, Ormesson, a quem chamavam de doutor,
apesar de ter ele unicamente um simples curso do Conservatoire des Arts et
Métiers, de Paris.

Charles Ormesson, o tal francês, com o ser prático e hábil
no ofício, era um extravagante incorrigível; e, como tal, pouco
exigente de dinheiro e facilmente explorável. Bebia desregradamente
e fazia do feroz doutor Chico Novilho gato e sapato. O doutor Novilho não
o despedia, apesar de seus pruridos disciplinadores até à tirania,
por sordícia. Caiana nada entendia daqueles mistérios de fazer
da cana, açúcar; e, se fosse mexer nos aparelhos, nas turbinas,
dosar o caldo, etc., etc., a cousa era capaz de explodir como pólvora.
Acrescia mais ainda que ele conseguia pagar a Ormesson o que bem entedia;
e, se quisesse substituí-lo, o outro talvez custasse mais caro. Aturava
o francês e explorava-o. Conservando Ormesson, reservava o seu autoritarismo
para os outros pobres diabos de empregados subalternos, colonos e mais gente
sob o seu guante.

Toda a manhã, em tempo de safra, inteiramente de branco, montado no
"Quitute", um cavalo ruço-malhado, Caiana, corria os canaviais;
e, sese encontrava com um comboio de canas, nas usineiras linhas Decauville,
olhava a pequena locomotiva e sempre se lembrava de admoestar o foguista-maquinista:

— Olhe o manômetro que não está limpo.

Eis aí a sua agricultura, de que veio tirá-lo o braço
forte do general Tupinambá. Vejamos como. Ascendendo à governança
da Província das Canas, Tupinambá tratou logo de eleger senador
da Bruzundanga o seu forte esteio eleitoral, o doutor Chico Caiana. Arranjaram
as atas e mandaram-nas, e mais ele, para a capital do país.

Quando saltou, era um gozo ver o Chico Caiana atravessar as ruas com um ostentoso
chapéu Panamá, terno de linho branco, botinas inteiriças
de pelica amarela e açoiteira pendente do pulso direito.
Olhava tudo alvarmente; e, de quando em quando, ficava surpreendido de que
ninguém o conhecesse. O doutor Chico Caiana, da usina do Cambambu!
Não conhecem? Que gente fútil!

O Senado não o quis reconhecer; porém, Mandachuva, que tinha
a palavra empenhada com Tupinambá, arranjou as cousas. Determinou que
o Ministro da Guerra fosse estudar na Europa o fabrico dos mais modernos medicamentos
alemães; transferiu o Ministro da Agricultura para a pasta da Guerra
e nomeou Caiana para aquela outra.

Tomando posse, o famoso e prático usineiro imediatamente teve uma
grande admiração.

— Onde está aqui agricultura?… Estes papéis… Isto
não é prático!… Quero cousas práticas!… Canaviais…
Engenhos… Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!

Mandou chamar Ormesson para ajudá-lo e, nesse ínterim, andou
às cristas com os seus subalternos. Vinha o chefe da Contabilidade
e ele gritava:

— Qual verba 29, letra A! Isto é uma trapalhada! Quero cousas
práticas! Vou chamar o Félix, o meu guarda-livros, lá
do Cambambu, a minha usina. Conhece?

O inspetor do serviço de veterinária vinha pedir-lhe autorização
para instalar um laboratório e Caiana berrava:

— Qual laboratório! Qual nada! Tudo isto é pomada! Vou
mandar chamar o Nicodemo. Conhece? Pois trata toda a espécie de moléstias
de animais com sangria ou óleo de andaiaçu. Quero cousas práticas!
Práticas, está ouvindo?

Tendo chegado o francês e o guarda-livros, ele recomendou ao primeiro:

— Ormesson, vê como havemos de fazer isto aqui ser mesmo de
agricultura. Quero cousa prática! Hein? Vê lá, se vais
beber! Hein?

Ao guardo-livros, ele disse:

— Tome conta dessas cousas de papéis aí, que não
pesco nada disso.

A Nicodemo, nada o doutor Chico recomendou, porque o alveitar não
quis deixar as Canas.

O francês não bebeu e, dias depois, trouxe o projeto de transformar
a chácara da Secretaria em campo agrícola.

— Amendoim! — exclamou o Ministro. — Não dá
nada! Se fosse cana… "Mindobi", só para preta velha vender
torrado…

Ele não conhecia, não admitia outra cultura que não
fosse a da cana-de-açúcar. Ormesson convenceu-o e o ministro
determinou o plantio aconselhado. Um dos diretores pediu autorização
para admitir trabalhadores.

— Trabalhadores! Ponha lá os escriturários, esses escreventes
todos…

— Mas…

— Não tem mas, não tem nada! Quem não quiser,
deixe o lugar, que eu arranjo outros mais baratos.

Não houve remédio senão os oficiais da sua Secretaria
de Estado irem puxar o rabo da enxada.

Houve, no ano seguinte, uma complicação internacional e o açúcar
começou a ser procurado. Chico Caiana não se importou mais com
as cousas do ministério e aproveitou a posição para ganhar
dinheiro. Durante muito tempo, o Mandachuva não o viu. O guarda-livros
era quem lhe levava os atos necessitados da assinatura presidencial.

Um dia o chefe do governo perguntou ao auxiliar do grande agricultor:

— Onde está o doutor Phrancisco Novilha?

— Está ocupado com coisas práticas.

XII – Os heróis

A República da Bruzundanga, como toda a pátria que se preza,
tem também os seus heróis e as suas heroínas.

Não era possível deixar de ser assim, tanto mais que a prática
sempre foi feita para os heróis, e estes, sinceros ou não, cobrem
e desculpam o que ela tem de sindicato declarado.

Um país como a Bruzundanga precisa ter os seus heróis e as
suas heroínas para justificar aos olhos do seu povo a existência
fácil e opulenta das facções que a têm dirigido.

O mais curioso herói da pátria bruzundanguense é sem
dúvida uma senhora que nada fez por ela, antes perturbou-lhe a vida,
auxiliando um aventureiro estrangeiro que se meteu nas suas guerras civis.

Para bem compreenderem o meu pensamento, é preciso que antes lhes
recorde por alto alguns pontos da história política da Bruzundanga.
Vou fazê-lo.

A atual república consta de territórios descobertos pelos iberos
e povoados por eles e por outros povos das mais variadas origens.

Os colonizadores fundaram várias feitorias; e, quando fizeram a independência
da Bruzundanga, essas feitorias ficaram sendo províncias do Império
que foi criado.

Feita a República, elas ficaram mais ou menos como eram, com mais
independência e outras regalias. Portanto, é claro que a evolução
política da Bruzundanga tinha por expressão a unidade dessas
províncias, e era mesmo o seu fim. Qualquer pessoa que tenha tentado,
ou venha a tentar, o desmembramento dessas províncias, não pode
ser tido como herói nacional.

Pois bem: um senhor estrangeiro, cheio de qualidades, talvez, meteu-se de
parceria com uns rebeldes, para separar uma dessas províncias do bloco
bruzundanguense. Isto ao tempo do império. Em caminho, em uma de suas
correrias, encontrou-se com uma moça da Bruzundanga que se apaixonou
por ele. Seguiu-o nas suas aventuras e combates contra a união bruzundanguense.

Até aí nada de novo. É comum, até. Mas querer
fazer de semelhante dama heroína da Bruzundanga, é que nunca
pude compreender. Eu me ponho aqui no ponto de vista dos patriotas, para os
quais a pátria é uma e indivisível. Se me pusesse sob
qualquer outro ponto de vista, então a tal dama heroína nada
de notável teria a meus olhos a não ser a dedicação
até ao sacrifício pelo seu amante, mais tarde seu marido. Isto
mesmo, porém, não é virtude que torne uma mulher excepcional,
pois é comum nelas, a menos que tal dedicação sirva de
moldura às qualidades excepcionais do seu marido ou do seu amante.
No caso, porém, encarando-o estrictamente sob o aspecto da evolução
política da Bruzundanga, o seu marido não era mais do que um
aventureiro.

É semelhante senhora que lá, naquelas plagas, comparam à
Jeanne d’Arc. Admirável!

Por aí, podem os senhores ver de que estofo são os heróis
da Bruzundanga; mas há outros.

Como sabem, a Bruzundanga foi, durante um século, Império ou
Monarquia. Há seis ou sete lustros os oficiais do seu exército
começaram a ficar descontentes e juntaram-se a outros descontentes
civis, que tinham achado para resumir as suas vagas aspirações
a palavra República. Começaram a agitar-se e, em breve, tinham
a adesão dos senhores de escravos, cuja libertação os
fizera desgostosos com o trono da Bruzundanga.

Os amigos do Império, vendo que as cousas perigavam, trataram de enfrentar
a corrente com decisão e chamaram, para condestável da Bruzundanga,
um velho general que vivia retirado nas suas propriedades agrícolas.

Era de crer que semelhante condestável pudesse ser vencido, mas que
confabulasse com os inimigos que vinha combater, não era possível
admitir! Pois foi o que ele fez. Não sou eu quem o diz; são
os seus próprios companheiros. Ainda há meses, recebi um jornal
da Bruzundanga, em que um grande e notável fabricante da República
de lá contava como as cousas se tinham passado. Narra esse senhor,
como o condestável, nas vésperas da proclamação
da República, enganara aqueles que tinham depositado confiança
nele, para servir os contrários. Eis aí os começos de
um herói da República dos Estados Unidos da Bruzundanga! Ele,
porém, ainda nos merece mais algumas palavras. Este último herói
é lá chamado Consolidador da República. Sabem por quê?
Porque não consolidou cousa alguma. Não houve Mandachuva, pois
ele o foi, da Bruzundanga, quem mais desrespeitasse as leis da República.
Entender-se-ia que a havia consolidado se o seu governo fosse fecundo dentro
das leis da Bruzundanga. Ele, porém, saltou por cima de todas elas
e governou a seu talante. Mostrou que as leis da República não
prestavam e, longe de consolidá-las, abalou-as nos seus fundamentos.
Tal cousa, na hipótese do seu governo ter sido bom e fecundo; mas não
o foi. Isto, porém, não nos interessa. Ele é um dos heróis
da Bruzundanga que, em falta de um Carlyle, teve um aqui escultor que lhe
fez um monumento, erecto em uma das praças da capital, monumento tão
curioso que precisa de um guia, de um tratado escrito, para ser compreendido.
Arte do futuro; Beyreuth da Bruzundanga.

Outro herói da Bruzundanga é o Visconde de Pancome. Este senhor
era de fato um homem inteligente, mesmo de talento; mas lhe faltava o senso
do tempo e o sentimento do seu país. Era um historiógrafo; mas
não era um historiador. As suas idéias sobre história
eram as mais estreitas possíveis: datas, fatos estes mesmos políticos.
A história social, ele não a sentia e não a estudava.
Tudo nele se norteava para a ação política e, sobretudo,
diplomática. Para ele (os seus atos deram a entender isto) um país
só existe para ter importância diplomática nos meios internacionais.
Não se voltava para o interior do país, não lhe via a
população com as suas necessidades e desejos. Pancome sempre
tinha em mira saber como havia de pesar, lá fora, e ter o aplauso dos
estrangeiros.

Sabendo bem a história política da Bruzundanga, julgava conhecer
bem a nação. Sabendo bem a geografia da Bruzundanga, imaginava
ter o país no coração.

Entretanto, forçoso é dizer que Pancome desconhecia as ânsias,
as dificuldades, as qualidades e defeitos de seu povo. A história econômica
e social da Bruzundanga ainda está por fazer, mas um estadista (critério
clássico) deve tê-la no sentimento. Pancome não a tinha
absolutamente. A sua visão era unicamente diplomática e tradicionalista.

Estava como embaixador em um país qualquer e um Mandachuva fê-lo
Ministro de Estrangeiros. Logo que tomou posse, o seu primeiro cuidado foi
mudar o fardamento dos contínuos. Pôs-lhes umas longas sobrecasacas
com botões dourados. A primeira reforma. Tendo conseguido adjudicar
à Bruzundanga vastos territórios, graças à leitura
atenta de modestos autores esquecidos, a sua influência sobre o ânimo
do Mandachuva, era imensa. Convenceu-o que devia modificar radicalmente o
aspecto da capital. Era preciso, mas devia ser feito lentamente. Ele não
quis assim e eis a Bruzundanga, tornando dinheiro emprestado, para pôr
as velhas casas de sua capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade
desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação
de teatro. Havia mesmo na cousa muito de cenografia.

Não contente com isto, convenceu o Mandachuva que devia adquirir uma
esquadra poderosa. Eis a Bruzundanga a pedir dinheiro aos judeus da City para
construir uma esquadra poderosa. E as festas? E os anúncios?

À vista do seu exemplo, nenhum ministro quis ficar atrás. Todos
porfiaram nos gastos. Anos depois, os deficits aumentavam, os impostos aumentavam,
os preços de todos os gêneros aumentavam; mas a gente do país
não deu pela origem da crise, tanto assim que, quando Pancome morreu,
lhe fez a maior apoteose que lá se há visto. Os heróis
e o povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga, são
assim, caros senhores.

XIII – A Sociedade

Esses, porém, fatigados, embotados, não formam bem a sociedade,
embora as suas filhas e mulheres façam parte dela.

Os que formam direitamente a grande sociedade, são os médicos
ricos, os advogados afreguesados, os tabeliães, os políticos,
os altos funcionários e os acumuladores de empregos públicos.

Por mais que se esforcem, por mais que queiram, semelhantes homens, atarefados
dia e noite, nos escritórios, nas repartições, nos tribunais,
nos cartórios, na indústria política, não podem
ter o repouso de espírito, o ócio mental necessário à
contemplação desinteressada e à meditação
carinhosa das altas cousas. Limitam-se a pousar sobre elas um olhar ligeiro
e apressado; e a preocupação de manter os empregos e fazer render
os cartórios, tirar-lhes-á o sossego de espírito para
apreciar as grandes manifestações da inteligência humana
e da natureza.

Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga
com a palavra — medíocre.

Vem-lhe isto não de uma incapacidade nativa, mas do contínuo
tormento de cavar dinheiro, por meio de empregos e favores governamentais,
do sentimento de insegurança de sua própria situação.

Em uma sala, se se ouve conversa das senhoras (digo senhoras), a preocupação
não é outra senão saber se fulano será ministro,
para dar tal ou qual comissão ao marido ou ao filho. Uma outra criticará
tal ou qual pessoa poderosa porque não arranjou para o pai uma concessão
qualquer. É assim.

Uma tão vulgar preocupação pauta toda a vida intelectual
da sociedade bruzundanguense, de modo que, nas salas, nos salões, nas
festas, o tema geral dos comensais é a política; são
as combinações de senatorias, de governanças, de províncias
e quejandos.

A política não é aí uma grande cogitação
de guiar os nossos destinos; porém, uma vulgar especulação
de cargos e propinas.

Sendo assim, todas as manifestações de cultura dessa sociedade
são inferiores. A não ser em música, isto mesmo no que
toca somente a executantes, os seus produtos intelectuais são de uma
pobreza lastimável.

Há lá salões literários e artísticos,
mas de nenhum deles surgiu um Montesquieu com o Espírito das Leis,
como saiu do de Mme. du Deffand. As obras mais notáveis que lá
têm aparecido são escritas por homens que vivem arredados da
sociedade bruzundanguense.

Em uma sala desse país, quando não se trata de intrigas políticas
ou cousas frívolas de todos os dias, surge logo um tédio inconcebível.
Ele sepulta o pensamento, antes de matá-lo: enterra-o vivo. Mereceria
detalhes, mas só fazendo romance ou comédia.

A gente da Bruzundanga gosta de raciocinar por aforismos. Sobre todas as
cousas, eles têm etiquetadas uma coleção deles.

Se se fala em uma sala ou em outro qualquer lugar de sociedade de cousas
literárias, logo um aforista sentencia:

— A arte deve ser impessoal. Os grandes artistas, etc.

Naturalmente, ele se lembrou de Dante, que pôs no inferno os seus inimigos
e no céu os seus amigos.

Incapaz de fazer aparecer do seu seio razoáveis manifestações
intelectuais, ela é ainda mais incapaz de apoiar as que nascem fora
dela.

A pintura, que sempre foi arte dos ricos e abastados, não tem, na
Bruzundanga, senão raros amadores. Os pintores vivem à míngua
e, se querem ganhar algum dinheiro, têm que se rojar aos pés
dos poderosos, para que estes lhes encomendem quadros, por conta do governo.

Porque eles não os compram com o dinheiro seu, senão os de
vagas celebridades estrangeiras que aportam às plagas do país
com grandes carregações de telas. É outro feitio da gente
imperante da Bruzundanga de só querer ser generosa com os dinheiros
do Estado. Quando aquilo foi império, não era assim; mas, desde
que passou a república, apesar da fortuna particular ter aumentado
muito, a moda da generosidade à custa do governo se generalizou.

Se um desses engraçados mecenas julga que deve proteger tal ou qual
pessoa; que esta precisa viajar a Europa, aperfeiçoar-se, não
lhe subvenciona a viagem, não tira nem um ceitil dos seus mil e mais
contos. Sabem o que faz? Influi para que ele receba um pagamento indevido
do Tesouro ou promove uma fantástica comissão para o indivíduo.

É assim o mecenato da Bruzundanga. A falta de generosidade e a sua
inquietude pelo dia de amanhã ferem logo a quem examina a sociedade
daquele país, mesmo perfunctoriamente.

Basta ler os testamentos dos seus ricos e compará-los com os que fazem
os humildes iberos, que lá enriqueceram em misteres humildes, para
sentir a inferioridade moral da sociedade da Bruzundanga.

Nestes últimos, há mesmo um grande pensamento da hora da morte,
quando fazem legados a amigos, a parentes afastados, a criados, a instituições
de caridade; mas, nos daqueles, só se topa com o mais atroz egoísmo.
Lembro-me de um ricaço de lá que, ao morrer, fez avultados legados
aos netos, filhos de sua filha, com a condição de que deviam
usar o nome dele — cousa que, como se sabe, se não é contrária
às leis, ofende os costumes. O sobrenome tira-se do do pai, lá
como aqui.

Por falar em cousas de morte, convém recordar que os cemitérios
dessa gente, ou por outra, os túmulos das pessoas da alta roda da Bruzundanga
são outra manifestação da sua pobreza mental.

São caros jazigos ou carneiros de mármore de Carrara, mas os
ornatos, as estátuas, toda a concepção deles, enfim,
é de uma grande indigência artística. Raros são
aqueles que pedem a escultores que os façam. Todos os encomendam a
simples marmoristas, que os recebem, aos montes, da Itália.

As suas casas são desoladoras arquitetonicamente. Há modas
para elas. Houve tempo em que era a de compoteiras na cimalha; houve tempo
das cúpulas bizantinas; ultimamente era de mansardas falsas. Carneiros
de Panúrgio…

A sua capital, que é um dos lugares mais pitorescos do mundo, não
tem nos arredores casas de campo, risonhas e plácidas, como se vêem
em outras terras.

Tudo lá é conforme a moda. Um antigo arrabalde da capital que,
há quantos anos era lugar de chácaras e casas roceiras, passou
a ser bairro aristocrático; e logo os panurgianos ricos, os que se
fazem ricos ou fingem sê-lo, banalizaram o subúrbio, que ainda
assim é lindo.

Um dos toques da mediocridade da sociedade da Bruzundanga é a sua
incapacidade para manter um teatro nacional.

O teatro é por excelência uma arte de sociedade, de gente rica.
Ele exige vestuários caros, jóias, carros — tudo isso
que só se pode obter com a riqueza. Pois os ricos da Bruzundanga não
animam as tentativas que se têm feito para fazer surgir um teatro indígena,
e todas têm fracassado.

Ela se contenta com a ópera italiana ou com as representações
de celebridades estrangeiras.

Poderia ainda falar nas suas festas íntimas, nos seus casamentos,
nos seus batizados, nas suas datas familiares; mas, por hoje, basta o que
vai dito, e é o bastante para mostrar de que maneira a aristocracia
da Bruzundanga é incapaz de representar o papel normal das aristocracias:
criar o gosto, afinar a civilização, suscitar e amparar grandes
obras.

Se falei aqui em aristocracia, foi abusando da retórica. O meu intento
é designar com tão altissonante palavra, não uma classe
estável que detenha o domínio da sociedade da Bruzundanga, e
a represente constantemente; mas os efêmeros que, por instantes, representam
esse papel naquele interessante país.

Explicado este ponto, posso ir adiante nas minhas breves "notas"
sobre o país da Bruzundanga.

XIV – As Eleições

DENTRE as muitas superstições políticas do nosso tempo,
uma das mais curiosas é sem dúvida a das eleições.
Admissíveis quando se trata de pequenas cidades, para a escolha de
autoridades verdadeiramente locais, quase municipais, como eram na antigüidade,
elas tomam um aspecto de sortilégio, de adivinhação,
ao serem transplantadas para os nossos imensos estados modernos. Um deputado
eleito por um dos nossos imensos distritos eleitorais, com as nossas dificuldades
de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai das urnas
como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele
quase sempre não tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é,
quais são os seus talentos, as suas idéias políticas,
as suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública;
é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. O eleito, porém,
depois de certos passes e benzeduras legais, vai para a Câmara representar-lhes
a vontade, os desejos e, certamente, procurar minorar-lhes os sofrimentos,
sem nada conhecer de tudo isto.

A superstição eleitoral é uma das nossas cousas modernas
que mais há de fazer rir os nossos futuros bisnetos.

Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os representantes do povo, desde o
vereador até ao presidente da república, eram eleitos por sufrágio
universal, e, lá, como aqui, de há muito que os políticos
práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral
este elemento perturbador — "o voto".

Julgavam os chefes e capatazes políticos que apurar os votos dos seus
concidadãos era anarquizar a instituição e provocar um
trabalho infernal na apuração porquanto cada qual votaria em
um nome, visto que, em geral, os eleitores têm a tendência de
votar em conhecidos ou amigos. Cada cabeça, cada sentença; e,
para obviar os inconvenientes de semelhante fato, os mesários da Bruzundanga
lavravam as atas conforme entendiam e davam votações aos candidatos,
conforme queriam.

Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições,
o espetáculo delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode
imaginar.

As ruas ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de mulheres
e homens atarefados; mas para compensar tal desfalque passam constantemente
por elas carros, automóveis, pejados de passageiros heterogêneos.
O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da cidade,
quando ele mesmo não é um assassino; o grave chefe de seção,
interessado na eleição de F., que prometeu fazê-lo diretor;
o grave chefe, o homem severo com os vadios de sua burocracia, não
trepida em andar de cabeça descoberta, com dois ou três calaceiros
conhecidíssimos. A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá
a entrever que se está à espera de uma verdadeira batalha; e
a julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas seções, nos
carros, nos cafés, e botequins, parece que as prisões foram
abertas e todos os seus hóspedes soltos, naquele dia.

Raro é o homem de bem que se faz eleitor, e se se alista, para atender
a pedidos de amigos, não tarda que o seu diploma sirva a outro cidadão
mais prestante, que no dia do pleito, para fins eleitorais, muda de nome e
toma o do pacato burguês que se deixa ficar em casa, e vota com eles.
Isto é o que lá se chama: — "um fósforo".

Às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de mortos,
cujos diplomas apresentam aos mesários solenes e hieráticos
que nem sacerdotes de antigas religiões. Quer um, quer outro serviço
eleitoral, constituem os préstimos mais relevantes que se podem prestar
aos políticos de profissão.

Tais costumes eleitorais da Bruzundanga são fonte de muitos casos
cômicos, mas, por serem quase semelhantes aos que se passam entre nós,
abstenho-me de narrá-los. Entretanto, vou dar-lhes o depoimento de
um ingênuo e inteligente eleitor, que descreve a sua iniciação
eleitoral na Bruzundanga e os característicos do exercício dos
direitos políticos que a sua constituição outorga aos
cidadãos.

Trata-se de uma das melhores relações que travei naquele país.
Ao tempo em que nos conhecemos, ele tinha aí os seus vinte e seis anos
e já havia publicado algumas memórias interessantes sobre a
paleontologia da Bruzundanga.

Não sei, ao certo, se continuou com brilho a sua estréia brilhante;
mas, suspeito que não.

A sociedade da Bruzundanga mata os seus talentos, não porque os desdenhe,
mas porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos, como enfeites
de sala banal.

O meio inconsciente de que ela se serve para tal fim, é o casamento.

O rapaz começa a fazer ruído e logo todos o cercam, já
os de sua camada, já os de camada superior, se é de extração
modesta.

É natural que ele encontre entre tantas damas da roda que o cerca
a do seu pensamento.

Ei-lo casado; a mulher, porém, não pode compreender sábio
que não ganhe muito dinheiro e viva modestamente. Não compreende
nem Spinosa, nem Fabre. Se não se faz católico praticamente,
o rapaz, para arranjar bons empregos, faz-se charlatão, acólito
de políticos, já não medita, perde a pertinácia,
para as pesquisas originais, publica compilações rendosas e
enche-se de cargos públicos e particulares. É esta a trajetória
de todas as "esperanças" intelectuais da Bruzundanga.

Penso, por isso, que o meu amigo, Halaké Ben Thoreca, como todos os
seus iguais, se banalizou com o casamento e a conseqüente cavação
de empregos. Tratemos, porém, da sua estréia eleitoral, como
ele me contou. Vamos ouvi-lo:

"Pelos meus vinte e dois anos, uma manhã, li um artigo eloqüente
em que se lembrava aos bruzundanguenses a necessidade, o dever de inscrever
os seus nomes no próximo alistamento eleitoral. Li e fiquei convencido,
Depois de árduos trabalhos, obtive o diploma; e, nas vésperas
da eleição, pus-me a estudar os manifestos dos candidatos ao
cargo espinhoso de deputado. Fiquei perplexo.

Julho Ben Khosta, com mais de vinte anos de prática no ofício
de candidato, prometia, caso fosse eleito, propugnar a disseminação
de livros e estampas; e, hoje mesmo, apesar de homem feito, passa horas e
horas a folheá-los. A promessa de Julho Ben Khosta demoveu-me a empenhar-lhe
o meu voto. Não durou muito essa minha resolução. Na
mesma coluna dos apedidos do jornal, a plataforma do doutor Karaban acenava-me
com uma grande esperança.

Este doutor gastava frases e juramentos, prometendo que faria decretar a
aprovação compulsória dos estudantes reprovados.

Calculem que eu tinha quatro bombas em mecânica e, por aí, poderão
imaginar como fiquei contente com semelhante candidato.

Foi tiro e queda: decidi votar no doutor Karaban. Saí bem cedo, para
almoçar qualquer cousa.

Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. É
um moço muito pobre, está quase na miséria, disse-me
o amigo, cheio de família; precisa muito do subsídio.

Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito
de votar no indigente Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para
a seção eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal.

Quase a tremer, no alevantado fito de influir nos destinos da Pátria
consegui atravessar por entre duas filas de homens de aspecto feroz, que me
olhavam desdenhosamente.

Em geral, os ministros não lêem o que despacham; limitam-se
a rubricar o despacho do secretário ou oficial-de-gabinete. Pancôme
não fazia exceção na regra, mas aquele papel, com fotografias,
despertou-lhe a atenção. Leu-o. Tratava-se do bacharel Sune
Wolfe, que requeria ser provido no lugar vago de amanuense; e, para que avaliar
pudesse o senhor ministro da sua beleza física, juntava aqueles dois
retratos, um de perfil e outro de frente.

A secretaria tinha exigido selos de juntada em tais documentos e o despacho
do secretário era nesse sentido. O visconde, como sempre, pouco disposto
a obedecer às leis, não se incomodou; e, cheio de admiração
pela boniteza do requerente, riscou o despacho e escreveu com a sua letra
um outro, determinando que o candidato comparecesse à sua presença.

No dia seguinte o rapaz foi ter com o ministro, que ficou embasbacado diante
do lindo candidato.

De fato, era bonito, bonitinho mesmo, desbotado de cútis, e parecia
até fabricado em Saxe ou em Sèvres. Tinha uns lindos dentes,
um belo cabelo cuidado, não era alto, mas era bem apessoado. Merecia
muito bem um bom casamento rico; contudo, o visconde quis melhor examiná-lo
e perguntou:

— O senhor sabe sorrir bem?

O candidato não se atrapalhou e acudiu com firmeza:

— Sei, Excelência.

— Vamos ver.

E o lindo moço repuxou os lábios, entortou o pescoço
de um lado, gracilmente, ajeitou os olhos e todo ele foi uma lindeza de impressionar
o pacato secretário que, ao lado, assistia ao exame, completamente
embrulhado em um fraque venerável e cheio de embevecimento.

Contente com isto, o ministro tratou de ir mais longe na experiência
das excepcionais qualidades que o candidato revelava e convidou-o com voz
paternal:

— Aperte a mão, ali, do Major Marmeleiro (o secretário).
Faça o favor.

O examinando não se fez de rogado. Juntou os pés, curvou docemente
o busto, levantou o braço e, sempre sorrindo, cumprimentou:

— Senhor Major Marmeleiro…

Pancôme não cabia em si de contentamento com a sideral aquisição
que estava ali. Que elegância! Que lindeza! Dessa feita é que
ele ia fazer uma nomeação justa e sábia. Arre! Não
era sem tempo…

Era preciso, porém, ver se o donzel conhecia algumas outras cousas
de sociedade.

— O senhor sabe dançar? perguntou.

— Sei, Excelentíssimo.

— Vamos ver.

— Mas só e sem música, senhor visconde?!

Ordenou o ministro que o contínuo fosse chamar um certo empregado,
exímio em dança; e, enquanto ele ia buscar o funcionário,
disse Pancôme a Marmeleiro:

— Você sabe assoviar, major?

O secretário estava sempre disposto a responder afirmativamente ao
visconde e não se deteve um minuto:

— Sei, senhor visconde.

— Bem, disse Pancôme, assovie aí uma valsa.

A "dama" já tinha chegado e Marmeleiro agora hesitava.

— Não sabe? indagou o ministro severamente.

— Só sei as "Laranjeiras".

— De quem é isso? perguntou Pancôme.

— É do Hamélio.

— Não é lá muito elegante, considerou o visconde,
mas… serve, serve!

Marmeleiro começou a assoviar com todo o recato que o lugar exigia
— fiu, fiu, fiu… — e os dois dançaram com todas as cerimônias
e ademanes dignos de gabinete tão diplomático e do respeito
que merecia a presença daquele alto herói ministerial. Pancôme
verificou com um júbilo paternal que o tal Sune continuava a ser uma
maravilha! Que soberbo amanuense ia ele ser! Bendita Bruzundanga que produzia
daquilo!

Acabaram de valsar ao som do melodioso assovio de Marmeleiro, e o visconde
falou, então, com mansuetude, ao candidato:

— Descanse um pouco, meu filho; e, depois, escreva-me uma carta ao
ministro de Interior sobre a necessidade da Bruzundanga se fazer representar
no Congresso de Encaixotamento de Pianos em Seul.

O lindo Wolfe esteve a pensar um pouco e retrucou titubeando:

— Vossa Excelência compreende que… Eu! De uma hora para outra…
Compreende Vossa Excelência que não tenho prática… Com
o tempo… Mais tarde…

Era só redigir cartas o que ele não sabia; mas, sendo elegante,
bonitinho, bom dançador, tinha todas as boas qualidades para um aperfeiçoado
amanuense do extraordinário Pancôme.

Tendo em vista as necessidades da representação da Bruzundanga,
o visconde nomeou-o logo, sem detença alguma. Foi uma acertada nomeação,
e sábia, que veio provar o quanto são tolos os regulamentos
e as leis que exigem dos amanuenses a vetusta ciência de saber redigir
cartas.

Se não fosse um herói, uma notabilidade universal o ministro,
talvez o galante Sune não tivesse sido aproveitado e os estrangeiros
não teriam uma favorável idéia da boniteza dos homens
da Bruzundanga; mas era, felizmente, e pôde, portanto, pôr de
parte as tolas exigências legais, e o país, com tal aquisição
para o seu funcionalismo, adiantou um século.

É verdade que o Marechal Soult, duque da Dalmácia, e Guizot
que em celebridade e notoriedade universal talvez não invejassem as
de Pancôme, foram ministros de França, e, ao que consta, nunca
desrespeitaram ostensivamente as leis do seu tempo. Isto aconteceu em França;
mas na Bruzundanga as cousas se passam de outro modo e aquele país
só tem ganho com tal proceder, como acabamos de ver.

Feito amanuense, aprendeu logo a copiar minutas e, em menos de seis anos,
Sune, o tal da carta, acabou eleito, por unanimidade, membro da Academia de
Letras da Bruzundanga.

Ficou sendo o que aqui se chama — um "expoente".

XXII – Notas Soltas

Um anúncio de livraria, na Bruzundanga:

"Acaba de aparecer o extraordinário romance — Meu caro
senhor…, de Dona Adhel Karatá (pseudônimo de Hiralhema Sokothara
Lomes, filha do grande poeta e escritor Sokothara Lomes, cujas assombrosas
glórias literárias ela continua com muito brilho, e irmã
do fino estilista e elegante parlamentar Carol Sokothara Lomes). À
venda, etc., etc."

* * *

Lá, na Bruzundanga, os mandachuvas, quando são eleitos, e empossados,
tratam logo de colocar em bons lugares os da sua clientela. Fazem reformas,
inventam repartições, para executarem esse seu alto fim político.

Há, porém, dois cargos estritamente municipais e atinentes
à administração local da capital da Bruzundanga, que
todos os matutos amigos dos mandachuvas disputam. Os mandachuvas, em geral,
são do interior do país. Estes cargos são: o de prefeito
de polícia e o de almotacé-mor da cidade. Não só
eles são rendosos, pelos vencimentos marcados em lei, como dão
direito a propinas e outros achegos.

O de chefe de polícia rende, na nossa moeda, cerca de vinte contos
por ano, só nas taxas cobradas às mulheres públicas;
o de almotacé-mor da cidade, esse então não se fala…

Sendo, assim, lugares em que se pode enriquecer, não faltam doutores
da roça que os queiram e empreguem todas as armas para obtê-los.

Eles mal conhecem a cidade. Se a visitaram ou se mesmo residiram nela, nunca
lhes foi possível passar das ruas principais e daquela em que estiveram
morando; de forma que lhe ignoram as necessidades, os defeitos a corrigir,
a sua história, a sua economia e as queixas de sua população.

Houve um prefeito de polícia que, vindo diretamente da província
das Jazidas para a sua prefeitura em Bosomsy, nada sabia da cidade, nem mesmo
as ruas principais. Metódico, econômico, por estar muito preocupado
em desagravar as suas propriedades, de hipotecas, nos primeiros meses de sua
gestão limitava-se a ir de casa para a prefeitura no seu automóvel
oficial, e voltar dela para a sua residência, também no seu automóvel
burocrático.

Certo dia cismou em percorrer, a pé, um dos mais centrais boulevards
da cidade. Esta recente via pública cortava muitas outras estreitas
da antiga cidade e, em todas as esquinas, ele encontrou os urbanos (guardas
civis) nos seus postos. Todos estes modestos policiais da cidade o cumprimentavam
respeitosamente e o prefeito ficou muito contente com a sua administração.
Chegou, porém, em um dado cruzamento de rua donde, de uma estreitinha,
tanto da direita como da esquerda, saíam e entravam magotes de povo.
Que rebuliço será esse? pensou ele. Será uma grève?
Um motim? Que será?

O prefeito, assustado, medita logo providências, quando se lembra de
pedir ao urbano explicações diretas, sem ir pelos canais competentes:

— Que quer dizer tanto povo aí, nessa rua? perguntou ele esquecido
da celestial altura em que estava.

— Não há nada, senhor prefeito. É sempre assim,
acudiu o urbano, levando a mão ao boné.

— Como?

— Vossa Excelência não sabe que esta é a rua mais
transitada da cidade, e que é a antiga Rua do Desembargador?

O prefeito não conhecia, senão de ouvido, a rua mais célebre
do país, dentre todas as ruas célebres das suas principais cidades.

Com um almotacé-mor da cidade, deu-se um caso quase semelhante. Este
arconte tinha nascido na província dos Bois, e, apesar de viver desde
há muitos anos na capital da Bruzundanga, pouco a conhecia. Quando
foi provido no seu cargo, quis fazer em horas o que não havia feito
em anos. Tomou o automóvel oficial (certamente) e mandou tocá-lo
para os arredores de Bosomsy. Admirou-se muito de que não houvesse
por eles, matadouros de gado bovino, pois nos da sua pequena, pequeníssima
cidade natal, os havia em quantidade. Não viu senão essa falta
e deixou de ver as terras abandonadas, incultas, as estradas esburacadas,
terras em que um bom almotacé ainda podia, com proveito, animar o plantio
de árvores frutíferas, hortaliças, legumes e a criação
de pequeno gado, na zona rural.

Com essa decepção na alma, pois não podia admitir que
uma cidade não tivesse nos arredores matadouros, para o fabrico da
carne salgada, resolveu certo dia visitar as dependências da sua repartição.
Chegou ao arquivo. O arquivista, que era zeloso e conhecia bem a história
da cidade, prontificou-se a mostrar-lhe os documentos curiosos da vida passada
da linda capital:

— Vossa Excelência vai ver as atas das sessões do Senado
da Câmara, que…

Eram documentos escritos dos mais antigos, não só da história
da cidade, como da do país inteiro; mas o almotacé, com grande
surpresa de toda a comitiva, exclamou amuado:

— Como? O quê?

— …as atas do Senado da Câmara, Excelência.

— Qual! Senado é uma cousa e Câmara é outra. Como
Senado da Câmara? Que embrulho? Cada um se governa por si… A Constituição…

— Mas…

— Não tem mas, não tem nada. Mande o que é do
Senado, para o Senado; e o que é da Câmara, para a Câmara.

Um grande filósofo afirmou que, para bem se conhecer uma instituição,
uma ciência, um país, era necessário saber-lhes a história;
e ninguém, penso, pode admitir que se possa administrar bem qualquer
cousa sem a conhecer perfeitamente.

Os administradores de Bosomsy nada conhecem, como já disse, da cidade,
cujos destinos vão reger e cuja vida vão superintender. Exemplifico.

Um prefeito de polícia, como lhes contei, não lhe conhecia
a rua principal; e um almotacé-mor, encarregado da administração
geral do município, não lhe conhecia a natureza de suas produções
nem a sua história, como ficou contado. Ele não sabia que a
antiga câmara dos edis chamava-se — Senado da Câmara.

Como estes muitos outros se repetem na administração da capital.

* * *

Via eu todos os dias passar na rua principal de Bosomsy um sujeito cheio
de imponência e ademanes fidalgos; perguntei a um amigo:

— Quem é aquele? É algum duque? É marquês?

— Qual! E um tabelião.

* * *

"O Senhor F. de Tal, redator da Warkad-Gazette, contratou casamento
com a Senhorita Hilvia Kamond, filha da viúva Almirante Bartel Kamond",
informava um jornal.

É caso de perguntar: que diabo de cousa é esta — "viúva
almirante"? Por que a noiva não é logo e simplesmente filha
do falecido almirante?

* * *

— Quem é aquele sujeito que ali vai?

— Não lhe sei o nome. Sei, porém, que vive muito bem
e é o marido da Klarindhah.

* * *

— O doutor Sicrano já escreveu alguma cousa?

— Por que perguntas?

— Não dizem que ele vai ser eleito para a Academia de Letras?

— Não é preciso escrever cousa alguma, meu caro; entretanto,
quando esteve na Europa, enviou lindas cartas aos amigos e…

— Quem as leu?

— Os amigos, certamente; e, demais, é um médico de grande
clínica. Não é bastante?

Sobre o Teatro

Tendo lido na Warkad-Gazette uma notícia elogiosa da estréia
da revista "Mel de Pau", no Teatro Mundhéu, lá fui
uma noite. Quando entrei já o espetáculo tinha começado
e uma dama, em fraldas de camisa, fumando um cigarro, cantava ao som de uma
música roufenha:

Eu hei de saber

Quem foi aquela

A dizer ali em frente

Que eu chupava

Charuto de canela.

Por aí os pratos estridulavam, o bombo roncava e a orquestra iniciava
alguns compassos de tango, ao som dos quais a dama bamboleava as ancas. As
palmas choviam e, quase sempre, a cantora repetia a maravilha, que tanto fazia
rir a platéia.

Na noite seguinte, passando pelo "Harapuka-Palace", li no cartaz:
"Todo o serviço", revista hilariante, em três atos,
etc.

Entrei. No palco uma dama, em fraldas de camisa, fumando um cigarro, cantava
acompanhada de uma música rouca:

Eu hei de saber

Quem foi aquela

A dizer ali em frente

Que eu chupava

Charuto de canela.

Acabando os pratos eram feridos, o bombo trovejava, a música inteira
iniciava uns compassos de "maxixe" e a dama, com as mãos
nos quadris, bamboleava as ancas. Risos, palmas e o portento era repetido.

Interessei-me por tão variado teatro e foi com agrado que em certa
noite, muito próxima destas duas últimas, aceitei um convite
para ir ao "Mussuah Theatre". Lá dei com uma outra dama,
em fraldas de camisa, fumando e cantando, sob a direção da batuta
do maestro:

Eu hei de saber

Quem foi aquela

A dizer ali em frente

Que eu chupava

Charuto de canela.

Risos, palmas, pratos, chocalhos, bombos; a música iniciava alguns
compassos, e a dama remexia bem os quadris. Tratava-se da revista "Está
pra tudo".

Assim, fui a três ou quatro teatros e sempre dei com uma dama a cantar
esta cousa tão linda: Eu hei de saber etc., etc., etc.

Sobre os Literatos

Quantas cartas tens aí! disse-lhe eu ao vê-lo abrir a carteira
para tirar uma nota com que pagasse a despesa.

— São "pistolões".

— Pra tanta gente?

— Sim; para os críticos dos jornais e das revistas. Não
sabes que vou publicar um livro?

Sobre os Jornais

Novidades telegráficas sensacionais:

"Cocos, 2 — Foi aposentado o Primeiro Escriturário da Intendência
F (A. A.), Correio Vespertino, de 3-6-07."

"Caranguejos, 22 — Os padres maristas comemoraram ontem com grandes
festas o centenário da fundação da respectiva ordem (J.
C., ed. t., de 22-6-17)."

"Guarabariba, 22 — Foi desligado do quadro da administração
dos Correios daqui o praticante de segunda classe Virgílio César,
por ter sido removido para os Correios de Santa Catarina.

Chegaram a esta capital os doutores Ascendino Cunha e Guilherme Silveira
(J. C., ed. t., de 22-6-17)."

Erudição

"Costumava o Imperador Tito Lívio dizer que tinha ganho o seu
dia sempre que lhe era dado realizar um benefício." (Correio Matutino,
de 2-11-13).

Tito Lívio foi imperador?

"E é o motivo dessa antecipação que está
sendo explicado, agora, nos jornais da Fortaleza, pelos entendidos na matéria,
um dos quais acusa como razão desse desequilíbrio a abertura
do canal de Panamá, que pôs em contato duas grandes massas d’água
de nível diferente" (O Imparcial, de 12-11-15).

A que fica reduzida a tal história do equilíbrio dos líquidos
em vasos comunicantes? Pobre Ganot, quer o grande, quer o pequeno!

Sobre a Administração

" A extração deste combustível na América
do Sul se eleva, contudo, a mais de 1.500.000 toneladas, produzindo o México
500.000 toneladas e o Chile o restante" (Relatório oficial sobre
— A Indústria Siderúrgica no Mundo, pelo general F. M.
de S. A., pág. 198)

O México na América do Sul? Que terremoto!

* * *

Cousas maravilhosas de um tradutor burocrático:

1.o) arbustos de serra (arbrisseaux de serre)

2.o) bilhetes de bilhar (billes de billard)

3.o) Tecidos de… cânhamo ou de ramia (ramie)

4.o) fetos de serra (fougères de serre)

5.o) berloques, colorados… (breloques, coloriées).

Todas estas e muitas outras lindezas semelhantes vieram publicadas no D.O.
da Bruzundanga, em 23 de março de 1917: e o ato era assinado pelo grande
ministro — Kallokeras.

* * *

"A seleção nas repartições é feita
inversamente de forma que os em- pregados mais graduados são os mais
néscios e inscientes. Houve quem propusesse para corrigir tal defeito
que se mudasse a hierarquia burocrática: o cargo de diretor passava
a ser o primeiro da escala e o de praticante, o último."

No Gabinete do Ministro

— O senhor quer ser diretor do Serviço Geológico da Bruzundanga?
pergunta o ministro.

— Quero, Excelência.

— Onde estudou geologia?

— Nunca estudei, mas sei o que é vulcão.

— Que é?

— Chama-se vulcão a montanha que, de uma abertura, em geral
no cimo, jorra turbilhões de fogo e substâncias em fusão.

— Bem. O senhor será nomeado.

* * *

Pancôme, quando se deu uma vaga de amanuense na sua secretaria de Estado,
de acordo com o seu critério não abriu concurso, como era de
lei, e esperou o acaso para preenchê-la convenientemente.

Houve um rapaz que, julgando que o poderoso visconde queria um amanuense
chic e lindo, supondo-se ser tudo isso, requereu o lugar, juntando os seus
retratos, tanto de perfil como de frente. Pancôme fê-lo vir à
sua presença. Olhou o rapaz e disse:

— Sabe sorrir?

— Sei, Excelentíssimo Senhor Ministro.

— Então mostre.

Pancôme ficou contente e indagou ainda:

— Sabe cumprimentar?

— Sei, Senhor Visconde.

— Então, cumprimente ali o Major Marmeleiro.

Este major era o seu secretário e estava sentado, em outra mesa, ao
lado da do ministro, todo ele embrulhado em uma vasta sobrecasaca.

O rapaz não se fez de rogado e cumprimentou o major com todos os "ff"
e "rr" diplomáticos.

O visconde ficou contente e perguntou ainda:

— Sabe dançar?

— Sei. Excelentíssimo Senhor Visconde.

— Dance.

— Sem música?

O visconde não se atrapalhou. Determinou ao secretário:

— Marmeleiro, ensaia aí uma valsa.

— Só sei "Morrer sonhando" (exemplo).

— Serve.

O candidato dançou às mil maravilhas e o visconde não
escondia o grande contentamento de que sua alma exuberava.

Indagou afinal.

— Sabe escrever com desembaraço?

— Ainda não, doutor.

— Não faz mal. O essencial, o senhor sabe. O resto o senhor
aprenderá com os outros.

E foi nomeado, para bem documentar, aos olhos dos estranhos, a beleza dos
homens da Bruzundanga.

Sobre os Sábios

(a desenvolver)

Os engenheiros, tanto os civis como os militares, mais estes que aqueles,
julgam-se geômetras. Não o são absolutamente; os melhores
são simples professores.

* * *

Os médicos da Bruzundanga imaginam-se sábios e literatos.

Pode-se afirmar que não são nem uma coisa nem outra.

* * *

É sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros;
e quanto mais de país desconhecido, mais sábio é. Não
é, como se podia crer, aquele que assimilou o saber anterior e concorre
para aumentá-lo com os seus trabalhos individuais. Não é
esse o conceito de sábio que se tem em tal pais.

Sábio, é aquele que escreve livros com as opiniões dos
outros.

Houve um que, quando morreu, não se pôde vender-lhe a biblioteca,
pois todos os livros estavam mutilados. Ele cortava-lhes as páginas
para pregar no papel em que escrevia os trechos que citava e evitar a tarefa
maçante de os copiar.

* * *

Há mais de século que se estudam nas suas escolas superiores,
as altas ciências; entretanto os sábios da Bruzundanga não
têm contribuído com cousa alguma para o avanço delas.

Em toda a parte, os sábios, de qualquer natureza, são homens
de recursos medianos, modestos, retraídos, pouco mundanos, mesmo quando
ricos. Na Bruzundanga, não; os sábios são nababos, têm
carros e automóveis de luxo, palácios; freqüentam teatros
caros, durante temporadas completas; dão festas suntuosas nos seus
hotéis, etc., etc.

* * *

Não há médico afreguesado que não seja considerado
um sábio pela gente da Bruzundanga, e, para firmar tal reputação,
não fabrique uma compilação escrita em sânscrito.
O médico sábio não pode escrever em outra língua
que o sânscrito. Isto lhe dá foros de literato e aumenta-lhe
a clínica.

Com a vida dos sábios da Bruzundanga ninguém poderia escrever
Os Mártires da Ciência. Têm eles a precaução
preliminar de inaugurarem a sua sabedoria com um casamento rico.

Sobre a Música

A música, na Bruzundanga, é, em geral, a arte das mulheres.

É raro aparecer no país uma obra musical.

Sobre a Indústria

A indústria nacional da Bruzundanga tem por fim espoliar o povo com
os altos preços dos seus produtos. É nacional, mas recebe a
matéria-prima, já em meia manufatura, do estrangeiro.

A Última Nota Solta

A habilidade dos governantes da Bruzundanga é tal, e com tanto e acendrado
carinho velam pelos interesses da população, que lhes foram
confiados, que os produtos mais normais à Bruzundanga, mais de acordo
com a sua natureza, são comprados pelos estrangeiros por menos da metade
do preço pelo qual os seus nacionais os adquirem.

OUTRAS HISTÓRIAS DOS BRUZUNDANGAS

As Letras na Bruzundanga

"A solenidade que aqui nos reúne e para a qual foram convocados
os poderes do Céu e da Terra, e o mar, é de tanta magnitude
que a não podemos avaliar senão rastreando, através das
sombras do Tempo, a sua projeção no Futuro."

Coelho Neto. Discurso na inauguração da piscina do Fluminense
F.C.

O meu livro de viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga
está a sair das mãos do editor carioca Jacinto Ribeiro dos Santos;
por isso nada lhe posso adicionar, senão quando estiver em segunda
edição, caso tenha ele essa felicidade.

Nesse meio tempo, porém, tenho recebido notícias de lá
que, sem implicar numa total modificação dos costumes e hábitos
daquele notável povo e daquela curiosa terra, observados já
por mim, revelam, entretanto, pequenas alterações interessantes
que não devem ficar sem registro. Uma delas é a que se está
passando com os seus literatos e poetas.

Em todos os tempos os homens de letras, maus ou bons, geniais ou medíocres,
ricos ou pobres, gloriosos ou ratés, sempre se julgaram inspirados
pelos deuses e confabulando intimamente com eles. A vida dos escritores, poetas,
comediógrafos, romancistas, etc., está cheia de episódios
que denunciam esse singular orgulho deles mesmos e da missão da arte
de escrever a que se dedicam. Todos eles se deixariam morrer à fome
ou de miséria, antes de transformar a sua Musa em passatempo de poderosos
e ricaços. Entregaram essa função aos bufões,
aos histriões, aos bobos da corte, etc.

Mesmo quando um duque ou um príncipe tinha um poeta a seu soldo, o
estro dele só era empregado para solenizar os grandes acontecimentos
privados ou públicos em que o duque ou o príncipe estivesse
de qualquer forma metido. Se se tratasse de um batizado na família,
de um casamento, do aniversário da duquesa, de uma vitória ganha
pelo príncipe, de sua nomeação para embaixador junto
à corte de Grão-Mongol, sim! O poeta palaciano tinha que puxar
a mitologia do tempo, escrever uma ode, um epinício, um ditirambo ou
mesmo um simples soneto, conforme fosse a natureza da festa. Mesmo para as
mortes havia a elegia com todas as suas regras marcadas na retórica
e poética daqueles tempos de reis, marqueses e duques.

Esses fidalgos mesmo aceitavam de bom grado o orgulho profissional dos seus
poetas attachés. Alguns destes mereciam até homenagens excepcionais,
como um tal Alain Chartier, poeta francês do século XV. Conta-se
que a delfina Margarida da Escócia, passando com o seu séqüito
de damas e cavalheiros de honor, por uma sala em que estava cochilando o poeta,
não trepidou em beijá-lo na boca diante de todo o seu acompanhamento.
A mulher do príncipe que foi mais tarde o sombrio e velhaco Luís
XI de França justificou o ato dizendo que apesar do desgracioso físico
de Alain, a encerrar, contudo, tão belo espírito, daquela boca
tinham saído tantas palavras douradas, que ele merecia aquela sua imprevista
homenagem. As crônicas do tempo contam esse episódio que me parece
não ter eu adulterado e, além deste, muitos outros interessantes,
em que se mostra até que ponto os homens de pena eram prezados pelos
poderosos de antanho, e como eles tinham em grande conta a sua missão
de troveiros e trovadores.

Na Bruzundanga, até bem pouco, era assim também. A sua nobreza
territorial e agrícola estimava muito, a seu jeito, os homens de inteligência,
sobremodo os poetas, aos quais ela perdoava todos os vícios e defeitos.
Essa fidalguia à roceira daquele país era assim semelhante aos
nossos "fazendeiros", antes da lei de 13 de Maio; e poeta, ou mesmo
poetastro, que aportasse nas suas fazendas, que lá são chamadas
— "ampliúdas" — tinha casa, comida, roupa nova,
quando dela precisasse, e lavada toda a semana, podendo demorar-se no latifúndio
o tempo que quisesse, e fazendo o que bem lhe parecesse, desde que nada tentasse
contra a decência e a honra da família. Por agradecimento, então,
em dia festivo da família ou da religião, ao jantar cerimonioso
e votivo, o vate recitava uma poesia inédita, alusiva ou não
ao ato, e tomava uma grande e alegre carraspana.

Houve um até — uma espécie do nosso Fagundes Varela —
que é ainda lá muito célebre, recitador nas salas, e
cujas obras têm tido muitas edições, que viveu anos inteiros
em peregrinações de "ampliúda" para "ampliúda",
sem saber o que era uma moeda, por mais insignificante que fosse de valor,
comendo, bebendo, fumando, sem que nada lhe faltasse, a não ser dinheiro
de que ele mesmo não sentia nenhuma necessidade. Tinha tudo…

Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução social e, logo
em seguida, uma política, deslocaram essa boa gente da fortuna, e muitos
deles, até, dos seus domínios, que vieram a cair nas mãos
de aventureiros recentemente chegados à terra ou, quando nascidos nela,
eram de primeira geração, descendendo diretamente de imigrantes
recentes cujo único pensamento era fazer fortuna do pé para
a mão, cheios de uma avidez monetária e inescrupulosa que transmitiram
decuplicada aos filhos, e logo os lindos costumes de antiga nobreza agrária
se perderam. Os poetas foram postos à margem e não tiveram mais
nem consideração nem desprezo. Era como se não existissem,
como se fosse possível isso, seja em sociedade humana, fora de qualquer
grau de civilização que ela esteja.

Aos poucos, porém, os parvenus viram bem que era preciso pôr
um pouco de beleza e de sonho nas suas existências de mascates broncos
e ferozes saqueadores legais. Deram em pagar sonetos que festejassem o nascimento
dos filhos e elegias que lhes dessem lenitivo por ocasião da morte
dos pais. Pagavam bem e pontualmente, como hoje se pagam as missas de sétimo
dia aos sacerdotes que oficiam nelas, ou em outras cerimônias menos
tristes.

Alguns, porém, quiseram mais ainda e, tendo notícias que os
nobres feudais, de espada e cavalo de batalha encouraçado e intrépido,
tinham os seus vates e trovadores, nos seus castelos e manoirs, pensaram em
tê-los também, pagando-os a bom preço, a fim de que contribuíssem
com as suas "palavras douradas" para o brilho de suas festas.

Um desses milionários, caprichoso e voluntarioso, quis ir mais longe
ainda. Tendo construído nos fundos de sua chácara, situada em
um pitoresco arrabalde da capital da República da Bruzundanga, um tanque
imenso, para dar banho aos cavalos de raça das suas opulentas cavalariças,
teimou que havia de inaugurá-los soberbamente, com notícias
nos jornais, bênçãos religiosas e um discurso feito pelo
maior literato de Bruzundanga, ou tido como tal, enfim, pelo mais famoso.

Não posso garantir que o Creso tivesse pago ao celebérrimo
poeta ou que este lhe devesse algum dinheiro; mas o certo é que, desprezando
a dignidade de sua Arte e a Glória, a reputação literária
mais absorvente e mais tirânica da Bruzundanga, pescou latim, grego,
a cabala judaica, o Ramâiana, os Evangelhos e inaugurou com um discurso
assim pomposo, e grandiloqüente, no estilo hugoano, o banheiro dos ginetes
do multimilionário Har-al-Nhardo Ben Khénly.

O altitudo!

O Parafuso, São Paulo, 12-3-1919.

A Arte

O país da Bruzundanga, hoje República dos Estados Unidos da
Bruzundanga, antigamente império, tem-se na conta de civilizado e,
para isso, entre outras cousas, possui escolas para o ensino de belas-artes.

Naturalmente dessas escolas saem competências em pintura, escultura,
gravura e arquitetura que devem ter mais ou menos talento; entretanto, ninguém
lhes dá importância, seja qual for o seu mérito.

Se não conseguem lugares de professores, mesmo de desenho linear,
nenhum favor público ou particular recebem da sua nação
e do seu povo.

Houve um até, pintor de mérito, que se fez fabricante de tabuletas,
para poder viver; os mais, quando perdida a força de entusiasmo da
mocidade, se entregam a narcóticos, especialmente a uma espécie
da nossa cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos
de arte e glória dos seus primeiros anos.

Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os pouco audazes, aos
quais os jornais nem notícia dão dos livros.

Conheci um dos maiores, de mais encanto, de mais vibração,
de mais estranheza, que, apesar de ter publicado mais de dez volumes, morreu
abandonado num subúrbio da capital da Bruzundanga, bebendo sodka com
tristes e humildes pessoas que nada entendiam de poesia; mas o amavam.

A gente solene da Bruzundanga dizia dele o seguinte: "É um javanês
(equivalente ao nosso "mulato" aqui) e não sabe sânscrito."

Essa gente sublime daquele país é quase sempre mais ou menos
javanesa e, quase nunca, sabe sânscrito.

Todo estímulo se vai e uma arte própria lá não
se cria por falta de correspondência entre o herói artístico
e a sua sociedade.

Não é que ela não tenha necessidade dessa atividade
do espírito humano, tanto assim que os jornais da Bruzundanga vêm
pejados de notícias, encômios, ditirambos às mediocridades
mais ou menos louras do que as de lá.

Tenho aqui adiante dos olhos um jornal da Bruzundanga que trata de um poeta
da Austrália, cujos melhores versos são como estes:

Fui lá em cima ver meu Deus;

Voltei triste, por nada encontrar.

Mas se tiver forças hei de voltar

Para vê-lo de novo outra vez.

A notícia está assinada com o nome do autor e justifica os
elogios que lhe faz, com estas palavras, cuja aplicação devia
caber aos seus camaradas e contemporâneos, para animá-los a fazer
grandes cousas. Ei-las:

"Nada mais agradável e, sobretudo, nada mais útil que
aplaudir aos espíritos que apenas desabotoam, ainda cheios do calor
dos primeiros sonhos, ainda ressoantes da vibração dos primeiros
vôos. Para eles não deve ser a crítica um instrumento
frio, insensível, com as asperezas de uma medida certa, senão
uma voz de estímulo, uma alentadora voz que embale o coração
e penetre, carinhosamente, a inteligência que reponta. O comentário,
sem ser exagerado, para não se tornar prejudicial, sem ser frívolo,
para não se transformar em elemento nocivo, em fonte de erros e vícios,
deve procurar os aspectos mais significativos do temperamento que surge, apontando,
com amoroso intuito, as insuficiências, as indecisões da primeira
hora, as dúvidas e as hesitações peculiares aos que começam.
Geralmente, porém, não costumam os críticos profissionais
usar de tais cautelas antes preferem exercer o seu mister, com rudeza e impassibilidade,
confundindo autores novos, sem responsabilidades literárias ainda firmadas,
para os quais o maior rigor é brandura."

É engraçado que seja só maior rigor a brandura quando
se trata de poetas da Austrália; mas quando se trata de vates da Bruzundanga
a maior brandura é o rigor.

Não é só assim em poesia. Nas artes plásticas,
na música, tudo é assim.

Chega à capital da Bruzundanga um pintor que se diz pintor e espanhol,
a quem ninguém nunca viu ou conheceu, e logo os críticos dos
jornais, viajados e lidos, finos e limpos de colarinhos, logo dizem: "Este
Dom Tuas y Trias é Velázquez, é Zurbarán, é
o Greco, é Goya, etc., etc."

Os quadros que ele traz, talvez, não sejam dele; são de uma
banalidade de concepção e de uma infantilidade de execução
lamentáveis; mas os tais homens lidos, viajados, que desprezam os javaneses
(os mulatos de lá), afirmam que o homem é extraordinário.

Dito isto, logo todos os bobos ricos, enriquecidos com o tráfico do
ópio e outras coisas maléficas, a fim de imitarem os príncipes
da Renascença — já se viu! — correm à exposição
e compram os quadros a preço de ouro, enquanto os pobres-diabos naturais
ou vivendo na Bruzundanga, que são conscienciosos do seu mister, morrem
em ofícios humildes ou de sodka.

É assim o gosto da gente superior da Bruzundanga, gente feita de doutores
e aventureiros, ambas dadas à chatinagem e à veniaga, desde
os primeiros caçando casamentos ricos e os segundos na cavação
comercial e industrial, sem ter tido tempo para se deter nessas cousas de
pensamento e arte.

Quando ficam ricos, estão completamente embotados, para não
dizer mais…

Houve um pintor viriático que veio com uns quadros dramáticos,
cenográficos para a Bruzundanga, precedido de uma fama de todos os
diabos, a ponto de um guarda-livros, Filinto, não hesitar em dizer
que era Leonardo Da Vinci.

Quando publicar estas notas em volume, que está a aparecer em edição
de Jacinto Ribeiro dos Santos, meu bom amigo e camarada, hei de juntar uma
reprodução do retrato eqüestre de um rei dele, o pintor,
que é o modelo mais perfeito do maneirismo, do apelo aos uniformes,
aos chamalotes, às plumas que conheço, em pintura.

Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto, poderei desenvolvê-las
se os interessados me provocarem. Escrevo em dia oportuno.

ABC, Rio, 7-9-1919.

Lei de Promoções

(Crônica Militar)

O que tem até agora regulado as promoções, quer no exército
e armada, quer na polícia e guarda nacional, é o arbítrio,
o capricho e a ignorância cega dos elementos da genesíaca cartesiana,
que os metafísicos definem erroneamente como aplicação
da álgebra à geometria.

No semi-século genial e fecundo que medeou entre Descartes e Leibnitz,
muita conquista útil foi obtida, no terreno da análise transcendente,
mesmo antes da sua completa sistematização pelo gênio
do último daqueles filósofos.

Fermat, Cavallieri, Roberval e outros muitos concorreram para o estabelecimento
definitivo do instrumento leibnitziano — uma imortal conquista científica,
para obtenção da qual o espírito humano estava assaz
maduro, tanto assim que Newton, pela mesma época, apresentou o seu
cálculo das fluxões.

Todo esse lento e paciente trabalho que absorveu o espírito de tantos
grandes homens da Humanidade, obriga-nos a dispensar um culto acendrado à
memória deles, por isso lhes cito aqui os nomes, ao lembrar as suas
descobertas que muito lucraram com o rigor e a justiça das promoções
nos batalhões dos colégios equiparados e linhas de tiro.

Nestas unidades, o acesso ao posto imediato é determinado por um processo
rigorosamente científico, de um rigor verdadeiramente astronômico.

É preciso estendê-lo ao resto das forças armadas.

Suponhamos um sargento que quer ser alferes. Pega-se o candidato e faz-se
engolir a seguinte beberagem:

Ácido azótico ……………………………………5 g

Oxalato de potássio ……………………………7 g

Magnésia calcinada ……………………………3 g

Bicloreto de mercúrio …………………………2 g

Água destilada ………………………………….. 100 g

Deve-se dar ao paciente tudo isto de uma só vez. Se o sujeito não
bater a bota, examinam-se as fezes com o papel tournesol, que, no caso de
avermelhar-se, indica que o tipo pode ser alferes. No contrário, não.

Isto não tem nada que ver com Leibnitz, nem com o seu cálculo
infinitesimal; mas não me ficava bem deixar de citar o imortal filósofo
e a sua magna obra, podendo, se assim não procedesse, ser confundido
com um qualquer legislador metafísico e anarquizado, por aí,
que não é senhor do saber integral da humanidade.

A dosagem que indiquei, deve variar quando se tratar de polícias,
guardas nacionais e oficiais de fazenda. Para os primeiros carregar no ácido
azótico, para os segundos e terceiros, dobrar a dose de bicloreto de
mercúrio.

Com o emprego deste método que é rigorosamente científico,
o governo pode ter, em breve, um corpo de oficiais perfeitamente selecionados
pela Morte e um povoamento rápido e instantâneo dos cemitérios
— o que, afinal, é o fim natural de todas as guerras a que os
oficiais, sejam desta ou daquela corporação, são obrigados
a servir com todos os riscos e vantagens.

Há, porém, o método empírico que é mais
humano e compatível com o grau de adiantamento a que chegou a nossa
humanidade atualmente. Não há morte, nem sangue, nem bravura,
nem salvas.

Este método é muito usado na guarda nacional e poucas outras
entidades (vocabulário do football) militares. Vamos ver em que consiste.

Um tal método tem por princípio básico só admitir
à promoção, oficiais que nunca tenham visto soldados,
fortalezas, quartéis, etc.

Por esse processo, estão fatalmente eliminados todos os oficiais que
hajam servido em guarnições longínquas.

O mais relevante conhecimento exigido, para as promoções de
acordo com esse processo empírico, é o de uma perfeita sabedoria
nas marcas de papel de ofícios, de grampos, colchetes e alfinetes,
para papéis. Contam-se como ultrameritórios os serviços
pacíficos em linhas telegráficas, em leitura de pluviômetros,
em conversas com bugres filósofos e em construção de
estradas de ferro que não acabam mais.

Em caso de merecimento igual, entre os candidatas, promovido será
o que tiver melhor "pistolão".

Para isso, o oficial precavido não se deve afastar da capital do país;
e, nela, sempre cultivar a amizade de poderosos políticos e pessoas
de seu amor e amizade; e é, por isso, que os oficiais que servem em
guarnições longínquas, fronteiras, etc., não podem
entrar na lista das promoções, determinação que
se subentende nesse sistema empírico que a sabedoria dos tempos consagrou
com alguns retoques.

Não falei nas promoções nos bombeiros. Emendo a mão.
Nos bombeiros — corporação reduzida — as promoções
devem ser feitas em família. É o melhor.

O que acabo de dizer, são como o croquis das minhas idéias
sobre promoções nas classes armadas, sendo que algumas não
me pertencem propriamente, antes a todos os militares, suas mulheres, filhas
e noivas. Eis aí.

Capitão Ortiz y Valdueza (Do Exército da Bruzundanga).

Reconheço a rubrica supra e a letra do Capitão Ortiz y Valdueza,
do Corpo de Submarinos do Exército da República dos Estados
Unidos da Bruzundanga.

(Tenho o sinal público e, à margem, "grátis"),
— O COPISTA.

Careta, Rio, 29-1-21.

Rejuvenescimento

(Crônica Militar)

"Todas as medidas esperadas para resolver o problema do rejuvenescimento
dos quadros do Exército, das discutidas no Congresso, não conseguiram
sair do campo das discussões.

Rejuvenescer os quadros não significa somente melhorar o futuro dos
oficiais; é concorrer para que não reine o desânimo, para
que seja mantido o ardor profissional.

Não é possível esperar dum oficial que moireja de seis
a oito anos em cada posto, que ele tenha sempre o mesmo entusiasmo, que a
própria idade consegue arrefecer.

E com a idade vem naturalmente a diminuição do vigor físico
exigido para o desempenho do árduo trabalho de oficial de tropa."

É assim que se exprime sabiamente um jornal desta cidade. Estamos
de pleno acordo com as opiniões do nosso colega diário; mas
julgamos, no nosso humilde parecer, que ele só encara uma face do problema.
É nossa opinião que essa questão de rejuvenescimento,
é uma questão geral e interessa, não só aos militares,
como também a outras classes da sociedade.

Que ardor profissional pode ter um carpinteiro que tem cinqüenta anos
de idade e trabalha no ofício desde os dezesseis?

A sua obra há de se ressentir da fadiga dos seus músculos cansados
e do desinteresse que traz a monotonia de fazer durante anos a mesma tarefa.
A sociedade perde muito com isso, pois os seus trabalhos não terão
a perfeição que havia nos que executava com trinta anos de vida.

Seria inútil repetir exemplos como este, pois eles estão aí
aos pontapés, para mostrar o quanto é indispensável decretar
medidas que rejuvenesçam os quadros de todas as profissões.

Para as funções públicas, inclusive as militares, já
o célebre filósofo político-militar dinamarquês,
Hans Reykavyk propôs dois métodos para obter o remoçamento
dos quadros:

Um, aparente meramente, e de origem feminina; o segundo substancial e rigorosamente
científico.

O primeiro método se baseia nas pinturas, pomadas e massagens. Não
há negar que o seu emprego, quando executado por operador hábil,
dá ao indivíduo que a ele se sujeita a aparência de mocidade;
mas é só aparência e não restitui a quantidade
de força vital que o indivíduo perdeu com o correr dos anos.

De resto, ele ia levar para a caserna hábitos de camarim de atriz.

A guerra em si mesma nada tem de teatral; só acham essa cousa nela
os pintores de batalhas que recebem encomendas dos governos, e os literatos
da moda.

A guerra em si é uma cousa brutal e horrendamente ignóbil;
a única consideração que rege a batalha, se há
uma, está na cabeça de quem a dirige, e isto não é
matéria para tela, nem para páginas literárias, mas notas
e riscos numa carta topográfica, em escala conveniente com convenções
adequadas.

Além disto, introduzindo hábitos teatrais no viver guerreiro,
iria isso perturbar a ação dos combatentes, diminuir-lhes a
eficiência com a suposição de que deviam tomar belas atitudes,
para obter o aplauso da galeria, distraindo-lhes do verdadeiro objetivo de
sua ação que é dar cabo do inimigo, por fas ou nefas.

Esse sistema de academia de beleza não pode ser adotado, sendo essa
também a conclusão a que chega, depois de exaustiva análise,
o grande filósofo dinamarquês que nos guia nestas despretensiosas
notas.

Resta o método científico que se estriba na psicologia experimental
e é corrigido pela sociologia transcendente.

Não posso transcrever aqui todas as considerações que
precedem a exposição que o Senhor Hans Reykavyk faz desse método.

Bastará dizer-lhes que, depois de expor fatos concretos em abundância,
ele estabelece o postulado de que o general deve ser moço; de menos
de trinta anos, pois é nessa idade que os homens têm o máximo
de iniciativa.

Saído das escolas militares o oficial será logo general, ganhando
como tenente, depois irá descendo de graduação, de forma
a chegar aos sessenta como tenente, ganhando como general.

Eis em linhas gerais o plano de rejuvenescimento dos quadros de oficiais
militares, a que chega o ilustre Reykavyk, após uma análise
detalhada das conclusões da psicologia experimental, convenientemente
corrigidas pela sociologia transcendente.

Além de outras vantagens, tem este método a de fazer que os
tenentes deixem, por morte, para as viúvas, filhos, filhas, genros
e netos um montepio que porá estes a coberto de todas as necessidades
— montepio de general.

Pelo seu caráter geral e abstrato, com as necessárias modificações,
ele pode aplicar-se, não só a todas as corporações
militares, como também a quaisquer outras civis, estipendiadas pelo
governo.

Não é preciso mais dizer, a fim de pôr em evidência
o grande alcance do sistema do pensador dinamarquês e chamar para ele
a atenção do legislativo brasileiro.

Creio que, fazendo isso, cumpro um dos deveres da missão militar de
que me acho incumbido no Brasil.

Capitão Ortiz y Valdueza, do corpo de Submarinos dos Estados Unidos
da Bruzundanga.

Pela tradução do "bengali".—Lima Barreto —
(Tradutor público ad-hoc).

Careta, Rio, 19-3-1921.

No Salão da Marquesa

Na República da Bruzundanga, nunca houve grande gosto pelas coisas
de espírito. A atividade espiritual daquelas terras se limita a uns
doutorados de sabedoria equívoca; entretanto, alguns espíritos
daquele Fonkim se esforçavam por dar um verniz espiritual à
sociedade da terra. Escreviam livros e folhetos, revistas e revistecas, de
modo que, artificialmente, o país tinha uma certa atividade espiritual.

Notavam todos a falta de salas literárias, de salões espirituais,
tais aqueles que tanto brilho deram ao século XVIII francês,
revelando não só grandes escritores e filósofos, mas
também espíritos femininos que, pela sua graça, pelo
seu talento de penetração, muito distinguiram o sexo amável,
antes desse feminismo truculento e burocrático que anda por aí.

Consciente desta falta, a Marquesa de Borós, uma senhora de alta estirpe
e não menos alta inteligência, tomou o alvitre de fundar um salão
literário.

Ela residia em um grande palácio que se dependurava sobre a cidade
capital, do alto de uma verdejante colina; e nele, em certas e determinadas
tardes reunia os intelectuais do país.

Em começo, recebeu alguns de valia; mas, bem depressa, os fariseus
e simuladores de talento tomaram conta da sala.

A sua delicadeza e a sua bondade se vira obrigada a receber toda essa chusma
de mediocridades que, sem ter talento nem vocação, se julgam
literatos e artistas, como se se tratasse de condecorações e
títulos fornecidos pelo presidente da República do Cunany.

A esse pessoal, acompanhou o equivalente feminino; e era de ver como Cathos
fazia pendant ao farmacêutico Homais; Madelon ao gramático Vaugelas;
e Filaminta ao artista Pèlerin.

Uma sociedade, ou antes: este salão começou a dominar a atividade
espiritual do país; e não havia recompensa do esforço
intelectual em que ele não se metesse e até pusesse o seu veto.

O parecer dele era sempre sobremodo néscio e tolo.

Para uns, ele opinava:

— O Jagodes receber prêmio — qual! Um filho natural! Não
é possível!

Para outros, ele sentenciava:

— Não julgo o Fagundes digno de figurar no Grêmio Literário
Nacional… Ele não bebe champagne!

A propósito destoutro, ele dogmatizava:

— O Bustamante não pode receber a medalha. É verdade
que ele tem merecimento; mas veste-se muito mal…

Essa opinião acabava de ser pronunciada pelo ilustre literato Manuel
das Regras, cuja obra por ser desconhecida era de alto valor, quando, num
canto da sala, foi visto um sujeito malvestido, relaxado, sujo mesmo, com
um todo de homem de outros tempos.

Todos se entreolharam com certo medo, apesar do estranho não ter nenhum
ar de existência sobrenatural.

Um mais animoso resolveu-se a falar ao intruso:

— Quem é o senhor?!

— Eu! Eu sou Francisco II, rei da Prússia.

E toda aquela miudeza de gente escafedeu-se por todas as portas e janelas
da sala.

Careta, Rio, 5-11-21.

Outras Notícias

Da minha viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga,
tenho publicado, no A.B.C., algumas notas com as quais organizei um volume
que deve sair dentro em breve das mãos do editor Jacinto Ribeiro dos
Santos.

Estou fora da Bruzundanga há alguns anos; mas, de quando em quando,
recebo cartas de amigos que lá deixei, dando-me notícias de
tão interessante terra.

De algumas vale a pena dar conhecimento ao público que se interessa
pela vida desses povos exóticos e paradoxais.

Diz-me um amigo, em carta de meses atrás, que a Bruzundanga declarou
guerra ao império dos Ogres; mas não mandou tropas para combatê-los
ao lado dos outros países que já o faziam. Tratou unicamente
de vender uma grande partida de tâmaras dos seus virtuais aliados, com
o que o intermediário ganhou uma fabulosa comissão.

Outra carta que de lá recebi, mais tarde, conta-me que os governantes
da Bruzundanga resolveram afinal mandar uma esquadra para auxiliar os países
amigos que combatiam os Ogres.

Logo toda a Bruzundanga se entusiasmou e batizou a sua divisão naval
de "Invencível Armada".

Como lá não houvesse um Duque de Medina Sidonia, como na Espanha
de Felipe II, foi escolhido um simples almirante para comandá-la.

A esquadra levou longos meses a preparar-se e com ela, mas em paquete, partiu
também uma missão médica, para tratar dos feridos da
guerra contra os Ogres.

Tanto a esquadra como a missão chegaram a um porto intermediário,
onde, em ambas, se declarou uma peste pouco conhecida. Chamado o chefe da
comissão médica, este respondeu:

— Não entendo disto… Não é comigo… Sou parteiro.

Um outro doutor da missão dizia:

— Sou psiquiatra.

E não saiu daí.

— Não sei — acudiu um terceiro, ao se lhe pedir os seus
serviços profissionais — não curo defluxos. Sou ortopedista.

Não houve meio de vencer-lhes a vaidade de suas especialidades, de
anúncio de jornal.

Assim, sem socorros médicos, a "Invencível Armada"
demorou-se longo tempo no tal porto, de modo que chegou aos mares da batalha,
quando a guerra tinha acabado.

Melhor assim…

Não foram só estas duas cartas que me trouxeram novas excelentes
da Bruzundanga.

Muitas outras me chegaram às mãos; a mais curiosa, porém,
é a que me narra a nomeação de um papagaio para um cargo
público, feita pelo poder executivo, sem que houvesse lei regular que
a permitisse.

Um ministro de lá muito jeitoso, que andava fabricando em vida, ele
mesmo, as peças de sua estátua, julgou que fazendo uma tal nomeação…
tinha já em bronze o baixo-relevo do monumento futuro à sua
glória.

Consultou um dos seus empregados que estudava leis e a interpretação
delas em Bugâncio, sabia a casuística jesuítica, além
de conhecer as sutilezas da Escolástica, a ponto de ser capaz de provar
com a mesma solidez a tese e a antítese, desde que os interessados
em uma e na outra o retribuíssem bem.

Dizia a lei fundamental da Bruzundanga:

"Todos os cargos públicos são acessíveis aos bruzundanguenses,
mediante as provas de capacidade que a lei exigir".

O exegeta ministerial, depois de verificar que o papagaio tinha nascido na
Bruzundanga, e era, portanto, bruzundanguense, concluiu, muito logicamente,
que ele podia e lhe assistia todo o direito de ser provido em um cargo público
de seu país.

Argumentou mais com Augusto Comte que incorporava à Humanidade certos
animais; com o "artemismo", crença de determinados povos
primitivos que se julgam descendentes ou parentes de tal ou qual animal, para
mostrar que o anelo íntimo dos homens é elevar esses seus semelhantes
e companheiros de sofrimentos na terra. Emancipá-los.

A Arte, dizia ele, foi sempre por eles. Citava as esculturas assírias,
egípcias, gregas, góticas que, embora idealizados ou estilizados,
denunciavam um culto pelos animais que, injustamente, chamamos inferiores.

Na arte escrita, para demonstrar o que o sábio consultor vinha asseverando,
lembrava La Fontaine, com as suas fábulas, e modernamente, Jules Renard,
com as suas interessantes Histoires Naturelles.

Nas modernas artes plásticas, nem se falava, continuava ele. A representação
artística de animais, por meio delas, já constituía uma
especialidade.

Foi por aí…

E, de resto, dizia ele quase no fim, quem não se lembra do papagaio
de Robinson Crusoe?

Devemos, portanto, exalçar o papagaio, que é um animal que
fala, rematou afinal.

O ministro gostou muito do parecer; julgou dispensável pedir uma lei
ao corpo legislativo que, na Bruzundanga, é composto de duas câmaras:
a dos vulgares e a dos doutores; não julgou também necessário
avisar os outros papagaios da sua resolução, para que concorressem
e nomeou o do seu amigo Fagundes…

E foi assim, segundo me conta a missiva que recebi, que um "louro"
bem falante foi nomeado arauto d’armas da Secretaria de Estado de Mesuras
e Salamaleques da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.

A.B.C., Rio, 23-11-18.

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