Variações

Lima Barreto

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Não sei se os senhores leram que a policia, graças à denúncia de populares, foi encontrar num matagal de Fábrica das Chitas, um indivíduo de cor preta, que aí armara tenda, comia e fazia outras necessidades naturais. Não diz a notícia dos jornais que o homem se alimentasse de caça e pesca, acabando assim o quadro de uma vida humana perfeitamente selvagem, desenvolvendo-se bem perto da avenida Central que se intitula civilizada.

Seria um modelo que deveríamos todos imitar; pelo estado em que as coisas estão, com ameaça de ficarem piores, é bem de crer que tenhamos que fazer o que o tal Rolim estava fazendo nas matas do Trapicheiro; entretanto, conquanto o sistema de vida que havia adotado ultimamente o tal solitário, seja digno de sugerir milhares de adeptos, a sua em si mesmo não era lá grande coisa, capaz de ser copiada. O homem já havia tido negócios com a polícia e com a justiça, contando dezoito entradas no Corpo de Segurança e uma condenação por se ter apropriado de coisa alheia; além disto, tinha consigo uma mala com cartas, etc., que parecia não ser dele. É, como vêem, um sujeito ultracivilizado e não um apóstolo convencido da nossa volta à natureza para… fugir aos pasmosos aluguéis de casa.

Atualmente, nada mais mete medo a um pobre-diabo que a tal história de aluguel de casa: Não há quem não esteja pagando, por trapeiras, exorbitantes locações dignas da bolsa de ricaços e altos escrocs internacionais. Um amigo, muito meu amigo mesmo, paga atualmente, nos confins dos subúrbios, o avantajado aluguel de duzentos e cinco mil-réis por uma casa que, há dois anos, não lhe custava mais de cento e cinqüenta mil-réis. Para melhorar um tão doloroso estado de coisas, a prefeitura põe abaixo o Castelo e adjacências, demolindo alguns milhares de prédios, cujos moradores vão aumentar a procura e encarecer, portanto, ainda mais, as rendas das habitações mercenárias.

A municipalidade desta cidade tem dessas medidas paradoxais, para as quais chamo a atenção dos governos das grandes cidades do mundo. Fala-se, por exemplo, na vergonha que é a Favela, ali, numa das portas de entrada da cidade – o que faz a nossa edilidade? Nada mais, nada menos do que isto: gasta cinco mil contos para construir uma avenida nas areias de Copacabana. Clama-se contra as péssimas condições higiênicas do matadouro de Santa Cruz, imediatamente a prefeitura providencia chamando concorrência para a construção de um prado de corridas modelo, no Jardim Botânico, à imitação do Chantilly.

De forma que a nossa municipalidade não procura prover as necessidades imediatas dos seus munícipes, mas as suas superfluidades. É uma teoria de governo que devia estar na cabeça daquele régulo selvagem que atirava sementes fora e só tinha extremos para as bugigangas de vidros coloridos.

A casa, como ia dizendo, é nos dias que correm, um pesadelo atroz. Todos explicam esse encarecimento da locação dos prédios com a carestia dos materiais de construção, que cresceram de preço demasiadamente nos últimos seis anos, refletindo esse encarecimento no custo dos caibros, ripas, sarrafos, tábuas, esquadrias que já estavam apodrecendo, há mais de vinte, em prédios velhos, de forma que os aluguéis destes tiveram que subir também paralelamente aos novos.

O Governo Federal – não há negar – tem sido paternal. A sua política, a respeito, é de uma bondade de São Francisco de Assis: aumenta os vencimentos e, concomitantemente, os impostos, isto é, dá com uma mão e tira com a outra.

Um amanuense ganha hoje perto de um conto de réis; mas, em compensação, só de ama-seca, por mês, paga mais de duzentos mil-réis. Um francês, observando que nós falávamos em quinhentos, em mil, em dois mil-réis, etc., quando eram de fato quantias insignificantes em nada correspondendo o seu poder aquisitivo às altas cifras que nos saíam da boca, disse:

– Vocês são muito ricos… na aritmética.

Pois continuamos a ser e ainda havemos de sê-lo por muito tempo. O amanuense que ganha um conto de réis, julgar-se-á milionário ao saber que Fernando de Magalhães deixou o serviço de sua pátria e foi viver à Castela, porque o “Venturoso” lhe negou o aumento de cem réis (um tostão) mensais na sua mesada de fidalgo da casa real; mas julgar-se-á um pobre quando tiver que pagar pelo seu cochicholo trezentos mil-réis, por mês, – preço tal que, talvez, no tempo de Magalhães, o rei não pagasse, se o tivesse de fazer, pelo seu palácio, em Lisboa.

A questão é do real, essa absoluta e fictícia unidade monetária que nos ilude e espanta os estrangeiros.

Isto seria uma questão a debater-se no congresso, a qual, talvez, não fosse sem propósito para acalmar os nervos dos deputados e senadores, nos debates dessa chatíssima perlenga de candidaturas presidenciais. É preciso não esquecer que é uma questão de unidade de moeda – base de tudo.

O que parece atualmente é que o governo, seja municipal, seja federal, é impotente para resolver a carestia da vida e o encarecimento exorbitante dos aluguéis de casas.

Todos os alvitres têm sido lembrados e todos têm sido rejeitados e criticados asperamente, como não obedecendo às leis de economia política e da ciência das finanças, quer públicas, quer particulares, quer individuais.

O meu ilustre confrade Veiga Miranda e o mirabolante e algorítmico Cincinato Braga já propuseram, para remediar uma tão deplorável situação, encaminhar grande massa de nossa população para o campo. Eles a querem para as fazendas. Eu proponho melhor. Que sejam dados a cada indivíduo isolado um machado, um facão, uma espingarda de caça, chumbo, espoletas, enxadas, semente, uma cabra, um papagaio e um exemplar de Robinson Crusoe.

O livro de Defoe será, como a Bíblia desses mórmons de nova espécie; e com a fé que ele lhes há de inocular, teremos, em breve, a cidade do Rio de Janeiro descongestionada e o sertão devassado e povoado.

Os nossos robinsons irão se estabelecendo pelo caminho, erguendo choças para a sua moradia, onde não haverá barbeiros; plantando cereais, café e cana que não serão perseguidos por insetos daninhos; e encontrarão ainda pelo caminho, jecas que lhes servirão de “sextas-feiras” amigos. A roupa, para os mais industriosos, será obtida com a tecelagem do algodão, pelos meios primitivos; e os mais preguiçosos poderão voltar a vestir-se como os velhos caboclos que figuram em Gonçalves Dias e José de Alencar e nas nossas nobiliarquias respeitáveis, inclusive a de Taques.

O problema será assim resolvido, em prol do progresso do país e é de notar que tão fecunda solução foi encontrada num simples romance ao qual as pessoas sisudas não dão importância.

Marginália, 14-1-1922

 

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