História macabra

Lima Barreto

PUBLICIDADE

Logo que soube da morte de meu amigo Florêncio da Costa, tratei de habilitar-me a ir ao seu enterro. Florêncio morava no Engenho Novo e o seu enterramento seria feito no cemitério de Inhaúma.

Ajustei bem no corpo a minha melhor roupa preta e se­gui para a residência do falecido amigo, cheio de compunção.

Dei os pêsames de praxe à família, notei bem a desolação da mulher e saí a alugar na redondeza uma meia-caleça dessas lamentavelmente tristes que acompanham os nossos en­terros.

Conhecia mal os subúrbios de modo que não adivinhei os tormentos por que ia passar e também o meu amigo morto.

Na hora aprazada, por entre prantos e ataques, com a assistência curiosa da vizinhança, o caixão foi saindo, acompanhado das grinaldas que amigos carregavam. As inscrições nas fitas das coroas eram longas e, em uma delas, pude ler: “Ao competentíssimo chefe de seção da Repartição de Terras, Mangues,Pauis e Atoleiros, os seus colegas da mesma – Rio, 6-5-14”.

As outras eram do mesmo teor, O enterro seguiu e nunca vi carro que balançasse mais nas molas do que o meu. Fomos indo. Tínhamos que atravessar a linha da Estrada de Ferro Central.

A cancela estava aberta; o carro mortuário passou e alguns do cortejo; mas o resto ficou do lado de cá, pois a tranqueira foi fechada para dar livre trânsito aos comboios vertiginosos.

Passou S P 5 célebre e ficou-se à espera de um outro S qualquer. Este veio e atracou à estação com a locomotiva diante da porteira. Mas não havia meio de partir; e o coche com o cadáver de meu amigo esperava o resto do cortejo, que fora cindido em dois pelas inflexíveis linhas de aço. Porque não partia o trem? Houvera um desarranjo no “su­búrbio” que o antecedera e a linha estava impedida.

Após uma demora de vinte minutos, conseguimos que as autoridades competentes fizessem recuar um pouco o comboio.

Seguimos e eis-nos na Rua José Bonifácio, em Todos os Santos. Esta rua há vinte anos que foi calçada; e, desde essa longínqua data, o seu calçamento não tem recebido o menor reparo. Os buracos nele são abismos e o cocheiro do coche fúnebre, ao desviar-se de um bonde, caiu em um deles, o caixão foi ao chão, o cadáver saltou de dentro deste e o meu amigo, ainda mesmo depois de morto, ficou machucado.

Piedosamente concertamos o defunto e o caixão, seguindo enfim o nosso caminho.

Na entrada da Estrada Real, no canto da Rua José Bonifácio, graças a um buraco que a Light deixa entre os seus trilhos, uma caleça partiu o eixo e, dos seus passageiros, um quebrou uma das pernas.

Houve outras peripécias e, tão emocionantes foram, que o defunto ressuscitou.

Ainda bem que ele não se alistou no partido do senhor Vasconcelos.

Careta, Rio, 17-7-1915

Fonte: pt.wikisource.org

 

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.