Um Conselho

Lima Barreto

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Os nossos patriotas voltam a incomodar-se com as caricaturas que os jornais do Rio da Prata publicam, criticando coisas do Brasil.

A histeria patriótica se zanga com a coisa, expectora desaforos, brame e o Zé Povo pensa logo em agarrar as mausers da Intendência da Guerra, marchar sobre Buenos Aires e puxar as orelhas do desenhista.

Não sei porque semelhante aborrecimento; é verdade que o patriotismo é intolerante, por isso não pode permitir a mais ligeira crítica às coisas do seu culto ou um julgamento mais azedo.

Se lá aparecem desenhos em que o Brasil figure com pretos, os sábios cá de casa vociferam que aqui não há pretos.

Os diplomatas encarregam-se até de mandar os desenhos tidos como ofensivos para o Itamarati e a Secretaria do Exterior, pressurosa, envia-os aos jornais.

Eu trabalhava no Fon-Fon quando, com grande espanto meu, vi chegar um emissário do senhor Rio Branco, trazendo um desenho que quase desencadeou em guerra entre o Brasil e a Argentina.

É pueril semelhante estado de espírito. Não só porque uma caricatura representa um julgamento individual, como também as mais das vezes esse julgamento é certo.

As amabilidades que os principais países se trocam em caricaturas, estão a mostrar que o nosso modo de encarar essas coisas de desenhos jocosos deve ser muito outro.

Só podem ver injúria em tais clichés quem for obcecado pelo patriotismo a ponto de não pesar a verdade das suas críticas.

De resto os acontecimentos a que eles se referem, são públicos e toda a gente pode sobre eles expender os julga­mentos que quiser.

Haveria um meio de impedir que tal se desse; era não permitir que os sucessos nacionais passassem as fronteiras.

Não seria má a medida que já deu excelentes resultados no Paraguai, na China e não sei se também no Afeganistão.

Era caso de experimentar, já que os exemplos acima mostram à sociedade o caminho a seguir, para evitar as irreverências dos caricaturistas estrangeiros.

Correio da Noite, Rio, 29-1-1915.

AS MANGUINHAS DE FORA…

O que se está passando com o doutor Mário Valverde, comissário de higiene, e os padres redentoristas e crentes católicos, merece alguns reparos daqueles que, não sendo fun­cionários da higiene municipal e conscritos da religião ro­mana, podem falar com alguma isenção de ânimo.

É o caso que o doutor Valverde, pessoa muito conhecida nos meios intelectuais, como médico de alta cultura, como agraciada de outras atividades de espírito, delicado, tolerante, bondoso, no exercício de suas funções, visitou uma igreja, fazendo as exigências das leis municipais, de que ele é zela­dor, e de cuja execução é fiscal, e quis, ao mesmo tempo, visitar um convento, em obediência aos deveres de seu cargo.

Os religiosos, esquecidos de que atualmente estão debaixo da lei comum, receberam-no mal, debicaram-no e chegaram até a impedir-lhe a entrada no monastério.

O doutor Valverde é moço, não crê que possa haver privilégios no nosso regime, revoltou-se; e, como revoltado, naturalmente excedeu-se no artigo em que revidou os deboches pouco mansuetos dos padres redentoristas e mais religiosos das cercanias destes.

Agora, o Centro Católico, esse Centro Católico das mesinhas de chá, dos namoros, dos casamentos chiques, arranja uma malta de vinte ou mais tipos e quer obter do doutor Val­verde, à força, uma carta de retratação.

Mas, que é que pensam os católicos, desta choldra em que estamos?

Porventura, eles têm nas mãos poderes extraordinários para obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, sem ser em virtude de lei?

Por que cargas d’água semelhantes cavalheiros da mais aparente virtude e damas da mais austera aparência se julgam no direito de pedir a demissão de um funcionário vita­lício, como é o doutor Valverde?

Então, por acaso, o governo deve demitir este ou aquele funcionário porque injuriou esta ou aquela religião, esta ou aquela seita?

É boa, meus senhores!

Se há no artigo do doutor Valverde injúria ou calúnia, os padres, com esse teólogo curioso que é Padre Júlio Ma­ria, à frente, devem processá-lo de acordo com os artigos do código; mas estarem a ameaçá-lo, a pedir-lhe a demissão, exorbitam e promovem um escândalo maior que é o de se julgarem um Estado em outro Estado.

Eu sou inteiramente tolerante, digo, ao finalizar, e nunca me fiz anticlerical.

Estão pondo as manguinhas de fora.

Correio da Noite, Rio, 11-2-1915

 

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