Rezas e Orações

Lima Barreto

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A oração, à reza, não só nas freguesias afastadas, mas mesmo nas centrais, o povo atribui poderes superiores e miraculosos de várias aplicações. Há as que são destinadas a fins de cura, há as que se empregam em conjuração de moléstias, há outras para a proteção contra feitiços e “coisas feitas” de qualquer origem, tendo como fito perturbar a felicidade da nossa existência.

É corrente, e não sei como explicá-la, a frase: “Você anda caipora; precisa ir aos “barbadinhos” ou rezar nos “barbadinhos”.”

Os “barbadinhos”, como toda a gente sabe, são os capuchinhos italianos, cujo convento é no morro do Castelo; detentores, atualmente, da igreja mais antiga da cidade, onde está o túmulo de Estácio de Sá e no cunhal da qual existe o marco quinhentista da fundação da cidade, com as quinas do velho reino lusitano.

Os “barbadinhos do Castelo” entram sempre em tudo que se alude a benzeduras, e uma das suas missas, nas primeiras horas da manhã, creio que a primeira sexta-feira do mês, é tida entre os supersticiosos como possuindo a virtude de afastar o azar, o caiporismo, etc. Nunca a ela fui, mas muitos que lá foram me contam que tem uma freqüência segura de jogadores de todas as classes, de raparigas de vida airada e outros devotos do Acaso, que vivem acorrentados aos seus caprichos.

Outra missa muito curiosa é a chamada das “arrependidas”. Não sei em que dias é a assim chamada, que se diz na Igreja da Cruz dos Militares; mas as mulheres da cidade a freqüentam, para lavar-se de culpas e pecados peculiares a seu sexo.

Não é unicamente, porém, com o auxílio da missa – portanto do sacerdote católico – que a oração, na crença da nossa gente, exerce poderes maravilhosos e extraordinários sobre a causa da nossa vida e da nossa consciência.

Muitas vezes, o povo prescinde do sacerdote ungido regularmente e escolhe um outro que ele mesmo sagra e consagra. É o “rezador” ou “rezadeira”, que se encontram, sobretudo, nas freguesias rurais.

Os homens são quase todos de idade; mas as mulheres, não. A religião católica não quis sacerdotisas nas suas cerimônias, mas as antigas não passavam sem elas e a crença geral e popular é que as feiticeiras, médiuns femininos, “rezadeiras” são mais poderosas que os homens no seu comércio com a Divindade e com o Mistério. Nas tricas galantes mesmo, em que se maranham raparigas e senhoras, moças e velhas, de todas as condições, muito pouca fé têm os amantes e namorados nos hierofantes, nos feiticeiros machos. Todas as esperanças daqueles e daquelas que o amor abrasa, é na cartomante.

Há a cartomante quase licenciada que anuncia nas gazetas, tem entrevista com os repórteres, pitonisa Os sucessos políticos; mas há também as particulares, em ruas sombrias e pouco transitadas, que são procuradas pelas informações de boca em boca, por aqueles que querem vaticínios certos de vida amorosa.

Passeando nos subúrbios, já ouvi o seguinte diálogo, entre duas pequenas ou garotas, como chamam hoje os namoradores profissionais:

— “Ele” volta, Hadjina. Volta – “ela” disse!

— Qual! fez a outra lacrimejante.

— Volta, sim! O que é preciso é você rezar a oração.

Nunca me foi dado ler uma oração destas, distribuídas pelas cartomantes-feiticeiras, professores-cartomantes-feiticeiros, que há por aí e vivem com favor dos seus poderes sobre-humanos de unir corações e fazer toda a sorte de felicidades. Os que anunciam nos periódicos não me merecem interesse. São cínicos demais e os seus anúncios de extremada publicidade, desafiando a polícia são a mais segura demonstração do seu charlatanismo explorador.

Vejam só este, aparecido, em um dos nossos jornais, há algum tempo:

“MISTÉRIOS DA VIDA – O PROFESSOR BAÇU – Desvio das correntes adversas que surgem na vida – Ide vos casar? Quereis vos casar? Tendes dificuldade de obter noivo ou de realizar vosso enlace? Não sois feliz com o casamento? – Procurai o Professor Baçu. Ele vos fará um trabalho rápido e perfeito para que nesta reunião “reinem” A PAZ – A CONCÓRDIA – A FELICIDADE! Ele é o único que possui os MIMOS NUPCIAIS, verdadeiras relíquias, preparadas com as pedras “Natal”, o que atrairá para vós – “a fortuna, a fartura e os ensejos de feliz ventura”. Também possui as fórmulas em “líquidos e sólidos”, usadas pelas mais formosas mulheres da celeste Jerusalém. Faz todo e qualquer trabalho, mesmo a distância, de pesquisas e investigações para a descoberta de fatos de caráter mais ou menos íntimo; obtendo reconciliações, aproximações de pessoas afastadas e realização de qualquer negócio considerado irrealizável. Combate todos os males físicos e morais e todos os malefícios. Horóscopos, diagnósticos e prognósticos.

NOTA – Aos que sofrem, peço nome, idade, dia de nascimento e sintomas, acompanhado de envelope selado ao Capitão José Leão. Peçam prospectos. Reside com sua família à RUA 5. CLEMENTE N.o 183, Botafogo, Rio de Janeiro.”

Leram? Há tanto cinismo e tanta desfaçatez que aquilo que um mago anunciante nos fornecer em “breve”, em amuleto, oração ou quer que seja, não pode merecer um pingo de atenção. A credulidade humana, porém, não tem fundo; e a insistência com que este e outros apregoam, com a mais luxuosa publicidade, os seus poderes e as suas virtudes excepcionais, mostra bem que a clientela não lhes falta, apesar das perseguições da polícia.

Na roça carioca, como ia eu dizendo, os “benzedores” e “rezadeiras” não são desse quilate. Têm fé no seu mister e a sua sinceridade comunica essa fé aos outros.

Rezam tudo. Mas as suas especialidades são para curar certas moléstias particulares às senhoras: “cobreiros”, erisipelas, e dores vagabundas e sem explicação.

As “rezadeiras” são ajudadas por facas, anéis e outros objetos de metal, com os quais, fazendo sucessivas cruzes ou outros sinais cabalísticos sobre os pontos afetados do corpo do paciente, acompanham o balbuciar da oração adequada. Chamam a isto “cortar” a dor ou a moléstia. Benzem ou rezam também as casas, aspergindo os cantos com uma certa água “rezada”, aspersão que se faz com o auxílio de um ramo de alecrim ou arruda.

Benzem outrossim as plantações; e pessoa digna de fé, que teve uma fazendola, há alguns anos, pelas bandas de Guaratiba, contou-me um caso a que já aludi no meu Policarpo Quaresma.

Tendo dado as lagartas em uma sua plantação de feijão, ameaçando mesmo matá-la de todo, desesperado consentiu ele que chamassem uma “rezadeira” famosa, pela eficácia dos seus exorcismos, em toda a localidade. Ela veio e colocou cruzes de graveto nas bordas da plantação deixando na “cabeceira”, uma abertura maior, pôs-se nos pés e começou a rezar. Disse-me a pessoa que as lagartas se foram enfileirando militarmente e saindo processionalmente pela abertura, entre as cruzes que havia na “cabeceira”.

É morta a pessoa que me contou, e era muito digna de fé, sendo doutor em medicina; e muitas vezes narrou-me esse surpreendente espetáculo, como tendo visto com os seus próprios olhos.

Horácio, há entre o ceu e a terra…

Essa usurpação de atributos sacerdotais por particulares é feita, ou era, em larga escala.

Quando meu pai foi para a ilha do Governador, exercendo um pequeno emprego nas Colônias de Alienados, recentemente fundadas pelo governo republicano, isto em 1890, a ilha não era o Petrópolis de quinta classe que o meu amigo Pio Dutra está fazendo ou dela já fez.

Vivendo, por assim dizer, isolada do Rio de Janeiro, quase sem comunicações diárias com o centro urbano, abandonada pelos seus grandes proprietários, devido à decadência de suas culturas perseguidas atrozmente pela saúva, estava toda ela entregue a moradores pobres, apanhadores de suas frutas semi-silvestres, como caju, lenhadores e carvoeiros, pescadores e alguns roceiros portugueses, que tenazmente se batiam contra a implacável formiga, fazendo roças de aipins, de batatas-doces, de quiabos, de abóboras, de melancias, e até de melões. Essa espécie de “enclave” que era a ilha do Governador naquele tempo, profundamente rural e pobre, aqui pertinho da capital do Brasil, foi que me deu uma reduzida visão de roça e de hábitos e costumes roceiros. Cheguei a ver lá cavalhadas – que pobres cavalhadas! – na esplanada defronte à ilha da Freguesia, próximo da venda do Joaquim, pintor, agente do Correio, tendo como adestrados disputadores das sortes, próprias ao divertimento, o “Minhoto”, o Jorge Martins e outros.

A ilha não tinha vigário e o culto da população aos santos de sua fé era feito por intermédio de certos capelães rústicos, isto é, “rezadores” ingênuos e ignorantes, que diante de toscos oratórios, acompanhados pela assistência, entoavam nas cabanas ladainhas e outras orações. Do lugar em que morávamos, eu e a minha família, no Galeão, ainda me lembro do nome do respectivo capelão: – o Apolinário. Que fim terá levado?

Essa forte crença na oração, na reza, que buscamos como alívio para as nossas dores morais e como uma súplica à Divindade para que intervenha na nossa vida, favorecendo-nos nos nossos propósitos, toma este ou aquele aspecto bárbaro e tosco, aqui e ali, mas é sempre tocante e penetrante por isso mesmo. Ela não abandona a nossa gente humilde na sua obscura luta contra a miséria, contra a política e contra a moléstia; e, intimamente, pediu auxílio ao Correio, para mais eficazmente agir no perímetro urbano da nossa cidade.

No artigo anterior, citei esse ato de distribuir, por intermédio do carteiro, orações escritas que devem ser lidas um certo número de vezes e enviadas a outras pessoas amigas, em número determinado.

Não a tinha encontrado, entre os meus papéis. Encontrei-a, porém, e aqui a dou tal e qual, sem nada mudar ou omitir.

Conforme a recebi, no ano de graça de 1913, transcrevo abaixo:

“Oração S. Jesus Cristo Senhor Nosso. Jesus Cristo rogamos a vós por nossos pecados e vosso sangue derramado na Cruz por nós. Senhor Jesus Cristo, rogamos a Deus que se contemple de compaixão e misericórdia e perdoai-nos por vossa Mãe santíssima, hoje e sempre eternamente por todos os séculos dos séculos. Amém. Quem tiver esta oração deve distribuir durante nove dias a nove pessoas cada dia uma e no fim dos nove dias terá uma alegria em sua casa. Em Jesus a bem dizer que quem não fizer caso desta oração sofrerá um castigo grave perda em família. Esta oração foi enviada pelo Bispo Rio l.o de janeiro de 1913.”

Aos leitores que têm fé, eu peço que sigam as prescrições que essa oração recomenda. Não as segui porque, infelizmente, muito infelizmente mesmo, confesso que não creio, apesar da minha vaga e imponderável religiosidade.

Hoje, 3-4-1919

 

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