O anel dos musicistas

Lima Barreto

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As meninas do Instituto de Música escreveram aos jornais, lembrando a criação de um anel que as marcasse ao fim do curso ou dos cursos daquela casa sonora. A exemplo dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, dos dentistas, dos bacharéis do Pedro II, dos cônegos, das raparigas da Escola Normal, elas querem também um distintivo que as extreme do vulgo. É muito justo, pois se o destino da mulher é o casamento, tudo o que possa concorrer para que elas o cumpram, deve merecer o nosso apoio entusiástico. Quando uma moça, doutora do Instituto, for de anel no dedo pelos bondes a fora, ao fim da viagem não esperará muito que um namoro se transforme em noivado… Ela garantirá a “zona” e o marido futuro ficará sossegado quanto às despesas da casa. O anel à mostra, isto é, o que ele rende, ficará sendo assim, às claras, uma espécie de dote, porque de todas as profissões femininas, a que tem maiores possibilidades entre nós é a de professora de música, quando garantidas pelo Instituto do largo da Lapa. Os motivos disto estão entrando nos olhos de todos os que residem no Rio de Janeiro e vivem sitiados por pianos ou violinos, na frente, nos fundos, nos lados, seja a casa em bairro rico ou pobre.

De tal modo é rendoso o oficio de professora de música e de seus instrumentos, no Rio, que as brigas vergonhosas que há de vez em quando no Conservatório, só podem ser atribuidas à ganância dos professores e acólitos na caça e disputa de discípulos. Cherchez l’argent.

A música, entre nós, é a única arte em que raramente aparece uma tentativa de criação. Entregue, como está, a moças, melhor, a mulheres, que em geral nunca em arte foram criadoras – estudam unicamente para o professorado – a arte musical, na nossa cidade, não dá nenhuma demonstração superior da nossa emoção, dos anseios e sonhos peculiares a nós. Limita-se a repetir, trilhando os caminhos batidos. Não há invento nem novidade.

As suas sacerdotisas agora querem um anel, talqualmente as senhorinhas da Escola Normal, quando acabam o seu curso secundário.

Se a medida não trouxer progressos à arte de Euterpe, entra, entretanto, na lógica da nossa sociedade. Não é possível que num pais democrático, uma moça que andou aos cuidados do Sr. Richard, do Sr. Arnaud Gouveia, do Sr. Alberto Nepomuceno, que escreve óperas para exportação, possa ser confundida com qualquer rapariga aí.

Para todos os que têm um curso qualquer, não há distintivo? Como não cabe o mesmo direito às talentosas executoras do Instituto de Música?

Certamente, que elas tem toda a razão, e, se dependesse do meu voto, desde já estariam usando o berloque simbólico. Seria mais um.

As pedras, querem elas que sejam de safira, porque – justificam – a música tem muita coisa com a matemática; e a safira é a pedra dos anéis de engenheiros. A moça que projetou o anel tem certamente um namorado aos cuidados dos Srs. Ortiz ou Villiot, na Escola Politécnica, imagino eu. Contudo, animo-me a lembrar a ambos, que tanto a engenharia dele como a música da sua deidade, no fim quando ambos forem se servir de uma coisa e da outra, a matemática que entrar nelas pouco além irá daquela que se aprende nas escolas primárias.

Seria melhor que a menina que ideou o anel, desde já estudasse as divisões da nossa moeda, a conta de juros da Caixa Econômica, para bem poupar e fazer render o que ganhar nas suas lições. E, para isto, basta o Viana, Aritmética; e pode deixar de lado o nome pomposo da matemática. Quanto ao seu futuro marido, se algum dia passar além do trânsito ou do nível, tem os “handbooks” que lhe suprirão as falhas na sabedoria.

A matemática, minha senhora, para a maioria dos engenheiros, é assim como o latim para um grande número de padres: eles sabem só pronunciá-lo.

Não amesquinho seu noivo ou namorado, pois nunca foi do meu temperamento amesquinhar um doutor ou futuro doutor. Faço uma observação, unicamente. De passagem seja-me permitido lembrar à futurosa Cellini acadêmica, que a safira, na escala da dureza, ocupa um dos primeiros lugares; e uma pedra tão dura não fica bem para emblema de uma arte tão doce e tão pouco rígida. Pense em outras, minha senhora.

Se o fito é distinguir-se, extremar-se do vulgo feminino, há um processo seguro: É a tatuagem, que os doutores também poderiam usar, e, em certas partes dos corpos femininos, no colo, por exemplo, iria magnificamente. Além de tudo, é indelével. Ficaria a senhora Dra. em música, até que, como nós todos, fosse a gentil senhorinha formada, muito comumente,

“moisir parmi les ossementes, sous l’herbe et les fioraisons grassées”, como diz Baudelaire. Procure na Une Charogne isso.

A Lanterna, 25-1-1918

 

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