Madame Pommery

Lima Barreto

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Na sua Viagem ao Araguaia, em uma espécie de preâmbulo, o general Couto de Magalhães conta como causou um grande rôlo, em pleno teatro de gala, por ocasião de uma festa de 7 de Setembro, quando ele era ainda estudante de direito, o fato de um certo colega seu, também paulista, recitar, acompanhado de gargalhadas dos colegas, um soneto satírico, que começava assim:

Comendo içá, Lomendo cambuquira,
Vive a afamada gente paulistana
E aquelas a que chamam caipira,
Que parecem não ser da raça humana…

Içá é o que chamamos formiga tanajura; e lá, por aquelas priscas eras em que o general era estudante, se vendia, ao que parece, torrada, em tabuleiros ou cestos, pelas ruas, sendo guloseima apreciada como o nosso mindobi torrado, ainda apregoado à noitinha nos bairros pobres deste Rio de Janeiro.

Quem leu a Viagem desse curioso tipo de brasileiro que foi o general Couto de Magalhães, relembra isso quando acaba a leitura dessa estranha, original, por vezes desordenada, mas sempre brilhante obra, que é a crônica ou romance ou as duas coisas juntas, editadas pela Revista do Brasil, sob o sugestivo título de Mme. Pommery. A ostentação de hoje que este livro nos revela, dá um grande realce à modéstia e pacatez daqueles tempos de São Paulo. O café ainda não tinha pulado do vale do Paraíba para o do Tietê.

O seu autor – que não sei verdadeiramente quem seja – é um filósofo risonho, sem piedade e sem ódio, sem paixão pró ou contra, discípulo de Montaigne, que ele cita a cada passo, vendo tudo, todos os fatos, todos os acontecimentos, a existência toda num plano só no plano da nossa integral miséria humana.

A natureza não o interessa e nenhum, ou pouco, entendimento tem com as coisas mudas. É um clássico de alma.

O livro, além de ser dedicado a várias sociedades sábias, inclusive a deliciosa “Eugência”, foi suscitado pelo atual movimento nacionalista.

Hilário Tácito, o autor, diz-se simplesmente fiel cronista dos feitos e proezas de Mme. Pommery, “née” Ida Pomerikowsky, de Ivã do mesmo nome, domador de feras de profissão, e de Consuelo Sanchez, noviça espanhola, descendente do famoso padre Sanchez, creio que jesuíta, autor de um apreciado tratado – De Matrimônio – que, se fosse posto em vulgar, teria grande sucesso nos colégios de adolescentes púberes.

Consuelo fugiu com o lambe-feras de um convento de Córdova e foram dar nascimento à futura heroína da crônica, na Polônia ou adjacências.

Após muitas aventuras, avelhantadas, embora moça ainda, gordunchuta, a descendente polaca do teólogo conjugal vem dar com o costado em Santos.

Hilário Tácito, farto das vás histórias da marquesa de Santos e da Pompadour, viu que entre elas, as vãs histórias, havia muita coisa com que não se sonhava. Tratou de escrever o relato da vida de Mme. Pommery. Podia, afirma ele, justificar o seu asserto, se o quisesse desenvolver, com grande cópia de considerações filosóficas sobre o valor da história, citar Spencer, Kant e Pedro Lessa e o resto da ferragem de erudição que não se dispensa em conjunturas semelhantes. Abandonou, porém, tal propósito e desembarcou logo Mme. Pommery em Santos.

Ela aí chegou como um herói de Carlyle, no seio da nossa trevosa Humanidade; chegou cheia da “centelha divina”, para fazer arder os gravetos da sociedade paulista.

E a “Lecture”, donde o autor tira essa comparação, nem de propósito, é aquela em que se trata do Herói-Divindade; é a de Odin.

Dessa “radiance” celestial de Mme. Pommery vem logo uma grande transformação no opulento “mundo” do grande Estado cafeeiro.

Segui-la seria repetir o autor – o que não é possível; mas eu mostrarei em termos gerais como esse “a natural luminary shining by the gift of Heaven” a operou.

Mme. Pommery montou uma usina central produtora e transformadora, com auxílio de um “coronel” camarada, chamou-a “Au Paradis Retrouvé”, a rua Paissandu, donde emitiu a sua irradiação e baniu daí a cerveja, substituindo-a pela champanha, a 30$OOO a garrafa. Iniciava a sua missão heróica nas terras do Tietê…

A usina era uma espécie de convento ou colégio, onde ela empregava toda a foôrça e capacidade de disciplina e rigor monacais da sua ascendência, que, na mãe, tinham dado em droga, mas que nela haviam ficado como um estigma, hereditário. O autor mesmo diz:

“E ficou, de fato, pelo menos em estado latente, até o dia em que repontou na filha, claro e forte, como um pendor natural para tudo disciplinar no seu colégio à imitação das ordens monacais, à força de regimentos, praxes, regras e etiquetas, com que chegou a este paradoxo de regulamentar os desregramentos de alto bordo por um sistema tão completo e tão adequado ao nosso caso, que nunca mais necessitou de aperfeiçoamentos, nem de emendas, nem de retoques.”

Era uma espécie de Abbaye de Theléme, não muito igual à de Pantagruel e muito menos à dos pândegos de Paris, por demais, porém, adequada a São Paulo e, se possível fosse, ao Rio de Janeiro.

A usina, “abbaye” ou coisa que o valha, começou a funcionar, segundo regras de uma particular mecânica aplicada, cuja teoria geral convém pedir emprestada ao autor.

Ei-la num exemplo:

“Trata-se de aliviar dito indivíduo (um coronel) dos seus 1 35$OOO por um processo automático mecânico; isto é, sem nenhuma força a mais, além de cocotte, champanha, coronel. A operação executa-se em três fases: Fase A – Cocotte engrena coronel. Resistência ao rolamento – lOO$OOO. Resultante: contração, movimento retardado. Fase B – Cocotte engrena champanha, champanha engrena coronel. Resistência inicial – 30$OOO. Resultante: atração, movimento giratório cerebral. Fase C – Coronel engrena cocotte. Resistência final 100$000. Resultante: convulsão, movimento ascensional acelerado.”

Diz Hilário Tácito que esse mecanismo é o mais perfeito que se possa imaginar, pois, de 135 mil-réis de combustível, aproveita 130 em trabalho útil, e só se perdem cinco na gorjeta.

Realizando esta obra portentosa, Mme. Pommery rapidamente começou a influir nos destinos da sociedade paulista e, indiretamente, em toda a comunhão brasileira.

A Finança, a Valorização, o Bar Municipal, a Moda, o Carnaval, a Política recebiam o seu influxo e a ele obedeciam; e, não lhe sendo bastante isto, transformaram-na em educadora, em afinadora de maneira dos rapazes ricos, pois, como diz o autor:

“Ora, por estes efeitos indiretos o prestígio de Mme. Pommery transcendeu desmesuradamente. Cursar o “Paradis Retrouvé” ficou sendo, no conceito geral da gente fina, um titulo de merecimento e remate indispensável de toda a educação aprimorada.

“A sociedade de Ninon de Lenclos gozou da mesma opinião favorável do seu século. Mas devemos reconhecer que Mme. Pommery granjeou igual estima por meios muitíssimo mais práticos; pois nem filosofou, nem escreveu. E, sem ser tão bela, segundo a fama, alcançou contudo um grau de superioridade superior ao de Ninon.”

Assim, Mme. Pommery influiu sobre as várias e todas as partes da sociedade, exceto sobre os literatos, naturalmente sobre os paulistas, porque, sobre os daqui, estou informado de gente limpa que ela influiu dadivosamente. dando até a certo e determinado um principado em Zanzibar, por ocasião da assinatura do Tratado de Versalhes, além de favores que prestou a outros para escrever futuramente as suas magníficas obras…

É tempo, porém, de falar de um modo geral de tão curioso livro. Seria estulto querer encarar semelhante obra pelo modelo clássico de romance, à moda de Flaubert ou mesmo de Balzac. Nós não temos mais tempo nem o péssimo critério de fixar rígidos gêneros literários, à moda dos retóricos clássicos com as produções do seu tempo e anteriores.

Os gêneros que herdamos e que criamos estão a toda a hora a se entrelaçar, a se enxertar, para variar e atrair. O livro do Sr. Hilário Tácito obedece a esse espírito e é esse o seu encanto máximo: tem de tudo. É rico e sem modelo; e, apesar da intemperança de citações, de uma certa falta de coordenação, empolga e faz pensar. Vale sobretudo pela suculenta ironia de que está recheado, ironia muito complexa, que vai da simples malícia ao mais profundo “humour” em que assenta afinal o fundo de sua inspiração geral.

Não quero mais tratar dele, embora ainda pudesse dizer muito e ele o merece. Bebe-se muita champanha em casa de Mme. Pommery; e eu me lembro de um caso de boêmia que um camarada me contou.

Certo doudivanas “pronto”, num belo dia, jogou na “centena” e ganhou. Encontrou uns amigos e convidou-os a beber. Beberam champanha, como na casa de Mme. Pommery. Num dado momento, o anfitrião levantou-se e convidou:

— Vamos tomar uma “lambada”.

— Como? Não há mais dinheiro? – perguntou um dos outros que queria “morder”.

— Há.

— Então?

— Nada, nada! – fez o “pagante”. – É que não se devem deixar os amigos velhos pelos novos.

Bebe-se muita champanha em casa de Mme. Pommery…

Gazeta de Notícias, 2-6-1920

 

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