Uma outra

Lima Barreto

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– É um engano supor que o povo nosso só tenha superstições com sapatos virados, cantos de coruja; e que só haja na sua alma crendices em feiticeiros, em cartomantes, em rezadores, etc. Ele tem, além dessas superstições todas, uma outra de natureza singular, partilhada até, como as demais, por pessoas de certo avanço mental.

Dizia-me isto, há dias, um meu antigo companheiro de colégio que se fizera engenheiro e andava por estes Brasis todos, vegetando em pequenos empregos subalternos de estudos e construção de estradas de ferro e até aceitara simples trabalhos de agrimensor. Em encontro anterior, ele me dissera: “Antes eu tivesse ficado nos correios, pois ganharia agora mais ou menos aquilo que tenho ganho com o ‘canudo’, e sem canseiras nem maçadas”. Quando se formou já era amanuense postal.

Tendo ele, daquela vez, me falado em superstição nova do nosso povo que observara, não pude conter o meu espanto e perguntei-lhe com pressa:

– Qual é?

– Não sabe?

– Não.

– Pois é a do doutor.

– Como?

– O doutor para a nossa gente não é um profissional desta ou daquela especialidade. É um ser superior, semidivino, de construtura fora do comum, cujo saber não se limita a este ou aquele campo das cogitações intelectuais da humanidade, e cuja autoridade só é valiosa neste ou naquele mister. É onisciente, senão infalível. É só ver como a gente do mar do Lloyd, por exemplo, tem em grande conta a competência especial dos seus diretores – doutor. Todos eles são tão marítimos como um nosso qualquer ministro da Marinha nouveaugens, entretanto, os lobos-do-mar de todas as categorias não se animam a discutir a capacidade de seu chefe. É doutor e basta, mesmo que seja em filosofia e letras, coisas muito parecidas com comércio e navegação. Há o caso, que tu deves conhecer, daquele matuto que se admirou de ver que o doutor por ele pajeado, não sabia abrir uma porteira do caminho. Lembras-te? Iam a cavalo…

– Pois não! Que doutor é esse que não sabe abrir porteira? Não foi essa a reflexão do caboclo?

– Foi. Comigo, aconteceu-me uma muito boa.

– Qual foi?

– Andava eu perdido numas brenhas com uma turma de exploração. O lugar não era mau e até ali não houvera moléstias de vulto. O pessoal dava-se bem comigo e eu bem com ele. Improvisamos uma aldeia de ranchos e barracas, pois o povoado mais próximo ficava distante umas quatro léguas. Morava eu num rancho de palha com uma espécie de capataz que me era afeiçoado. Dormia cedo e erguia-me cedo, muito de acordo com os preceitos do falecido Bom homem Ricardo. Uma noite não devia passar muito das dez – vieram bater-me à porta. “Quem é?” perguntei. “Somos nós.” Reconheci a voz dos meus trabalhadores, saltei da rede, acendi o candeeiro e abri a porta. “Que há?” “Seu doutô! É u Feliço qui tá cô us óios arrivirados pra riba. Acode qui vai morrê…” Contaram-me então todo o caso. O Felício, um trabalhador da turma, tinha tido um ataque, ou acesso, uma súbita moléstia qualquer e eles vinham pedir-me que acudisse o companheiro. “Mas”, disse eu, “não sou médico, meus filhos. Não sei receitar”. “Quá, seu doutô! Quá! Quem é doutô sabe um pouco de tudo”. Quis explicar a diferença que existia entre um engenheiro e um médico. Os caipiras, porém não queriam acreditar. Da mansidão primeira, foram se exaltando, até que um disse a outro um tanto baixo, mas eu ouvi: “A minha vontade é aprontá esse marvado! Ele u qui não qué é i. Deixa ele!” Ouvindo isto, não tive dúvidas. Fui até ao barracão do Felício, fingi que lhe tomava o pulso, pois nem isso sabia, determinei que lhe dessem um purgante de óleo e…

– Eficaz medicina! refleti.

– …depois do efeito, umas cápsulas de quinino que sempre tinha comigo.

– O homem curou-se?

– Curou-se.

– Ainda bem que o povo tem razão.

Vida urbana, 6-3-1920

 

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