O Cemitério dos Vivos

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Lima Barreto

1ª parte – Anotações para O CEMITÉRIO DOS
VIVOS
(4 de Janeiro de 1920)

I – O Pavilhão e a Pinel

Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências
dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações,
que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos
da polícia.

Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz
de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez
que lá estive me deram essa peça do vestuário que me
é hoje indispensável. Desta vez, não. O enfermeiro antigo
era humano e bom; o atual é um português (o outro o era) arrogante,
com uma fisionomia bragantina e presumida. Deram-me uma caneca de mate e,
logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim
com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria.

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece
é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para
mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool,
misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades
de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando
dou sinais de loucura: deliro.

Além dessa primeira vez que estive no hospício, fui atingido
por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado para a Santa Casa de lá,
em 1916; em 1917, recolheram-me ao Hospital Central do Exército, pela
mesma razão; agora, volto ao hospício.

Estou seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão,
saio dele para o São João Batista, que é próximo.
Estou incomodando muito os outros, inclusive os meus parentes. Não
é justo que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu,
senão o senhor Carlos Ventura e o sobrinho.

Este senhor Carlos Ventura é um velho homem, tem uma venda na Rua
Piauí, em Todos os Santos, fornece para a nossa casa, e foi com auxílio
dele que me conseguiram laçar e trazer-me até ao hospício.
Acompanharam-me o Alípio e o Jorge.

Passei a noite de 25 no pavilhão, dormindo muito bem, pois a de 24
tinha passado em claro, errando pelos subúrbios, em pleno delírio.

Amanheci, tomei café e pão e fui à presença de
um médico, que me disseram chamar-se Adauto. Tratou-me ele com indiferença,
fez-me perguntas e deu a entender que, por ele, me punha na rua.

Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru,
no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha
um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já
me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra
vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro,
onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos
nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor
de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei
de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido
em Argel e na Sibéria.

Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.

Desta vez, não me fizeram baldear a varanda, nem outro serviço.
Já tinha pago o tributo… Fui para o pátio, após o doutor
Adauto; mas, bem depressa, fui chamado à varanda de novo. Sentei-me
ao lado de um preto moço, tipo completo do espécimen mais humilde
da nossa sociedade. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas,
uma camisa cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço
e calçava uns chinelos muito sujos, que tinha descoberto no porão
da varanda.

Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós
nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente,
estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele.
Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de
certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual
que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito
livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu
do mistério – que mistério! – que há na especialidade
que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas
não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada
me atrai a ele.

Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois,
disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé
na onipotência da ciência e a crendice do hospício. Creio
que ele não gostou.

Acompanhava-o uma espécie de interno, que tinha uma cara bovina, apesar
do pince-nez. Tanto lá, como aqui, no hospício, os internos
evitam conversar com os doentes: morgue ou regulamento? No tempo de meu pai
não era assim e, desde que eles descobrissem um doente em nossa casa,
se aproximavam e conversavam.

Decididamente, a mocidade acadêmica, de que fiz parte, cada vez mais
fica mais presunçosa e oca.

Julguei, apesar de tudo, que o Roxo me mandasse embora, tanto assim que,
após o almoço-jantar, quando o tal bragança enfermeiro
me chamou, pensei que fosse para ir-me embora. Não foi.

Lembro-me agora de um fato; o guarda-civil, que me esperou na porta do hospício,
pois não veio comigo nenhum polícia, dirigindo-se a ele, tratou-o
mais de uma vez de doutor; ele, porém, nunca protestou.

Chamou-me o bragantino e levou-me pelos corredores e pátios até
ao hospício propriamente. Aí é que percebi que ficava
e onde, na seção, na de indigentes, aquela em que a imagem do
que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é mais formidável.

O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é
de uma pobreza sem par. Sem fazer monopólio, os loucos são da
proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres
da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e outros
mais exóticos, são os negros roceiros, que teimam em dormir
pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta
sórdida; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça,
trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação,
mas que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social.

Vi lá o D… L…, um poeta alegre, companheiro do Tapajós,
que conheci assim, assim e depois montou um colégio em Vila Isabel.
Parece-me que ele prosperou, mas, vindo a equiparação e não
tendo ele recursos para equipará-lo ao ginásio (depósito
de cinqüenta contos e quota de fiscalização), foi perdendo
a freqüência, ele se desgostou, endividou-se e enlouqueceu. Cumprimentou-me,
mas não quis falar comigo.

Esperei o médico. Era um doutor Airosa, creio eu ser esse o nome,
interrogou-me, respondi-lhe com toda a verdade, e ele não me pareceu
mau rapaz, mas sorriu enigmaticamente, ou, como dizendo: "você
fica mesmo aí" ou querendo exprimir que os meus méritos
literários nada valiam, naturalmente à vista das burrices do
Aluísio. Fosse uma coisa, fosse outra, fossem ambas conjuntamente,
não me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no caso dele,
eu talvez pensasse da mesma forma.

O enfermeiro-mor ou inspetor era o Santana.Um mulato forte, simpático,
olhos firmes, um pouco desconfiados, rosto oval, que foi muito bom para mim.
Ele fora empregado na ilha, quando meu pai lá era almoxarife ou administrador,
e se lembrava dele com amizade.

Deu-me uma cama, numa seção mais razoável, arranjou
que eu comesse com os pensionistas de quarta classe e, no dia seguinte, fez-me
dormir num quarto, com um estudante de medicina, Queirós, que um ataque
tornara hemiplégico e meio aluado.

Tratou-me bem esse moço, conquanto não deixasse de ter, como
eu já tive, essa presunção infantil do nosso estudante,
que se julga, só por sê-lo, diferente dos outros. Dei-lhe a entender
que já o havia sido; ele pareceu não acreditar.

Dormi a noite de 26 no dormitório geral e a de 27 no quarto do estudante.
Vinte e oito foi domingo, recebi visitas do meu irmão e do senhor Ventura,
ambos me trouxeram cigarros, e o senhor Ventura, passas e figos. Ainda desta
vez, dormi no quarto, com o estudante.

Na Seção Pinel, que é a de que estou falando, reatei
conhecimento com um rapaz português, que me conheceu quando era estudante
e comia na pensão do Ferraz, isto deve ter sido há vinte anos
ou mais. Durante os dias em que lá estive, ele, o José Pinto,
me foi de um préstimo inesquecível. Relembrava ao porteiro a
ordem que eu tinha do Santana de ir tomar refeições no refeitório
especial, arranjava-me jornais (Santana também), cigarros (contarei
essa tragédia manicomial em separado) e, na tarde de domingo, levou-me
a passear pela chácara do hospício.É muito grande e,
apesar de estiolada e maltratada, a sua arborização devia ter
sido maravilhosa. Os ricos de hoje não gostam de árvores…

O hospício é bem construído e, pelo tempo em que o edificaram,
com bem acentuados cuidados higiênicos. As salas são claras,
os quartos amplos, de acordo com a sua capacidade e destino, tudo bem arejado,
com o ar azul dessa linda enseada de Botafogo que nos consola na sua imarcescível
beleza, quando a olhamos levemente enrugada pelo terral, através das
grades do manicômio, quando amanhecemos lembrando que não sabemos
sonhar mais… Lá entra por ela adentro uma falua, com velas enfunadas
e sem violentar; e na rua embaixo passam moças em traje de banho, com
as suas bacias a desenharem-se nítidas no calção, até
agora inúteis.

Na segunda-feira, antes que meu irmão viesse, fui à presença
do doutor Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não
me admoestou, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar. Disse-lhe
que na Seção Calmeil. Deu ordens ao Santana e, em breve, lá
estava eu.

Paro aqui, pois me canso; mas não posso deixar de consignar a singular
mania que têm os doidos, principalmente os de baixa extração,
de andarem nus. Na Pinel, dez por cento assim viviam, num pátio que
era uma bolgia do inferno. Por que será?

II

Na Calmeil

Os Primeiros Dias

(de 29-12-19 a 4-1-20)

Eu entrei na Seção Calmeil, seção dos pensionistas,
na segunda-feira, 28 de dezembro. O inspetor da seção é
um velho português de perto de sessenta anos, que me conhece desde os
nove. Ele foi em 90, com meu pai, nomeado escriturário das colônias
da ilha do Governador, exerceu as funções de enfermeiro-mor
da Colônia Conde de Mesquita. As suas funções eram árduas,
porquanto, ficando ela a dois quilômetros e meio da sede da administração,
ele arcava com toda a responsabilidade de governar uma centena de loucos,
numa colônia aberta para um grande campo, cheio de vetustas mangueiras,
a que o raio e o tempo tinham desmanchado os maravilhosos quadriláteros,
um dentro do outro, formando uma alameda quadrangular, que devia ser soberba
quando intacta, aí pelos tempos de Dom João VI, que a conheceu,
pois o edifício principal dela tinha sido uma das muitas casas de recreio
que o bom e gordo rei tinha pelos arredores do Rio.

Ainda vi um curral de pedra, que mais parecia uma fortaleza, e um enorme
pombal, alicerçado em pedra, mas construído de tijolos enormes
e bem queimados, com as casuchas e pouso de entrada dos pombos feitos de um
ladrilho grande, quase quadrangular, que certamente eram, ladrilhos e tijolos,
de origem portuguesa.

Na ilha não havia pedra, a não ser granito em franca decomposição,
esfoliando, de modo que curral e pombal foram pedreiras que forneceram material
para reparos e acréscimos nos edifícios das duas colônias.

Dias, desde esse tempo, e parece que já mesmo antes, nunca largou
esse ofício de pajear malucos. Não é dos mais agradáveis
e é preciso, além de paciência e resignação
para aturá-los, uma abdicação de tudo aquilo que faz
o encanto da vida de todo o homem. É ele, por assim dizer, obrigado
a viver no manicômio, só podendo ir ter com a família,
ou o que com isso se parece, a longos intervalos, demorando-se pouco no lar.
Ouvir durante o dia e a noite toda a sorte de disparates, receber as reclamações
mais desarrazoadas e infantis, adivinhar as manhas, os seus trucs e dissimulações
– tudo isto e mais o que se pode facilmente adivinhar, transforma a
vida desses guardas, enfermeiros, num verdadeiro sacerdócio.

Estive mais de uma vez no hospício, passei por diversas seções
e eu posso dizer que me admirei que homens rústicos, os portugueses,
mal saídos da gleba do Minho, os brasileiros, da mais humilde extração
urbana, pudessem ter tanta resignação, tanta delicadeza relativa,
para suportar os loucos e as suas manias. Nem todos são insuportáveis;
na maioria, são obedientes e dóceis; mas os poucos rebeldes
e aqueles que se enfurecem, de quando em quando, são por vezes de fazer
um homem perder a cabeça. Tratarei deles mais minuciosamente. Pois
o meu Dias, apesar dos gritos, dos gestos de mando, é um homem talhado
para pastorear doidos, tanto ele como Santana, cuja seção é
mais trabalhosa, mas que eu deixei, não porque ele não me tratasse
bem, o que ele me fez espontaneamente, mas para ter às ordens a biblioteca
da Seção Calmeil, que eu descreverei devagar.

Outra coisa que me fez arrepiar de medo na Seção Pinel foi
o alienista. Se entre nós, no Rio, houvesse uma universidade, eu poderia
dizer que ele havia sido meu colega, porquanto, quando ele freqüentava
a Escola de Medicina, eu passeava pelos corredores da Escola Politécnica.

Nunca travamos relações, mas nós nos conhecíamos.
Ele, porém, não se deu a conhecer e eu, no estado de humilhação
em que estava, não devia ser o primeiro a me dar a conhecer.

Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado
do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à
psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão
preliminar, num doente qualquer. É muito amante de novidades, do vient
de paraitre, das últimas criações científicas
ou que outro nome tenham.

Dei-me muito com o irmão, cuja morte muito lamento; mas não
posso deixar de dizer essa minha inocente opinião que, talvez, possa
parecer maldosa. Garanto que não é.

Logo ao entrar na seção, no meado do dia da segunda-feira,
notei que a biblioteca tinha mudado de lugar. Mudei a roupa, pois meu irmão
me apareceu com outra de casa. Esperei o Dias, que me marcasse o dormitório,
e sentei-me na biblioteca e estava completamente desfalcada! Não havia
mais o Vapereau, Dicionário das Literaturas; dois romances de Dostoiévski,
creio que Les Possédés, Les Humilliés et Offensés;
um livro de Mello Morais, Festas e Tradições Populares do Brasil.
O estudo sobre Colbert estava desfalcado do primeiro volume; a História
de Portugal, de Rebelo da Silva também, e assim por diante. Havia,
porém, em duplicado, a famosa Biblioteca Internacional de Obras Célebres.

Olhei as fisionomias e, tanto aqui, como na outra seção, eu
me surpreendi de encontrar tantas fisionomias vagamente conhecidas. Umas me
pareciam de antigos colegas de colégio, de escola superior, de repartição,
do Exército, de cafés, de festas; mas não me animava
a falar-lhes, pois me olhavam com ar estúpido e parado, que eu detinha
o primeiro impulso de perguntar a cada um:

– O senhor não me conhece?

O engraçado é que aqueles que eu não conhecia prontamente,
é que vinham a mim falar-me; e não veio um só, vieram
muitos, e todos me trataram com afeto e respeito, conquanto me caceteassem,
lendo o que eu escrevia ou lia, querendo o meu jornal, pedindo-me cigarros,
não me deixando de todo sossegar e aproveitar esse descanso que o álcool
e as apreensões da minha atribulada vida me dão.

No dia seguinte à minha entrada na seção e no outro
imediato, fui à presença do médico. É um rapaz
do meu tempo e deve ter a minha idade; conheci-o estudante; ele, porém,
não me conheceu por esse tempo.

Nos nossos jornalecos troçamo-lo muito. Eu, porém, não
me lembro de qualquer pilhéria a seu respeito feita por mim. Ele me
tratou muito bem, auscultou-me, disse-lhe tudo o que sabia das conseqüências
do meu alcoolismo e eu saí do exame muito satisfeito por ter visto
no moço uma boa criatura, que não guardava rancor das troças
que ele bem podia atribuir a mim.

Era uma alma boa, em quem o dandismo era mais uma aquisição
que uma manifestação de superficialidade de alma e inteligência.

Não me achou muito arruinado e, muito polidamente, deu-me conselhos,
para reagir contra o meu vício. Oh! meu Deus! Como eu tenho feito o
possível para extirpá-lo e, parecendo-me que todas as dificuldades
de dinheiro que sofro são devidas a ele, e por sofrê-las, é
que vou à bebida. Parece uma contradição; é, porém,
o que se passa em mim. Eu queria um grande choque moral, pois físico
já os tenho sofrido, semimorais, como toda a espécie de humilhações
também. Se foi o choque moral da loucura progressiva de meu pai, do
sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal que tinha
na vida, que me levou a ela, só um outro bem forte, mas agradável,
que abrisse outras perspectivas na vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida
que, além de me fazer porco, me faz burro.

Não quero morrer, não; quero outra vida.

Não lhe disse isto ao doutor H., mas lhe quis dizer. Tenho que falar
dos doentes em cuja companhia estou, dos guardas, dos enfermeiros, mas preciso
tratar com mais detalhe e já me cansa o escrever estas notas.

Cá estou na Seção Calmeil há oito dias. Raro
é o seu hóspede com quem se pode travar uma palestra sem jogar
o disparate. Ressinto-me muito disto, pois gosto de conversar e pilheriar;
e sei conversar com toda a gente, mas, com esses que deliram, outros a quem
a moléstia faz tatibitate, outros que se fizeram mudos e não
há nada que os faça falar, outros que interpretam as nossas
palavras de um modo inesperado e hostil, o melhor é calar-se, pouco
dizer, mergulhar na leitura, no cigarro, que é a paixão, a mania
de todos nós, internados, e o possuí-los em abundância
é um perigo que se corre e só pode ser evitado pela astúcia
ou pela energia.

Falarei disso com mais vagar.

Estou entre mais de uma centena de homens, entre os quais passo como um ser
estranho. Não será bem isso, pois vejo bem que são meus
semelhantes. Eu passo e perpasso por eles como um ser vivente entre sombras
– mas que sombras, que espíritos?! As que cercavam Dante tinham
em comum o stock de idéias indispensável para compreendê-lo;
estas não têm mais um para me compreender, parecendo que têm
um outro diferente, se tiverem algum.

III

A Minha Bebedeira e a Minha Loucura

Ao pegar agora no lápis para explicar bem estas notas que vou escrevendo
no hospício, cercado de delirantes cujos delírios mal compreendo,
nessa incoerência verbal de manicômio, em que um diz isto, outro
diz aquilo, e que, parecendo conversarem, as idéias e o sentido das
frases de cada um dos interlocutores vão cada qual para o seu lado,
eu me lembro muito bem que um amigo de minha família, médico
ele mesmo de loucos, me deu, logo ao adoecer meu pai, o livro de Maudsley,
O Crime e a Loucura. A obra me impressionou muito e de há muito premedito
repetir-lhe a leitura. Saído dela, escrevi um decálogo para
o governo da minha vida; entre os seus artigos havia o mandamento de não
beber alcoólicos, coisa aconselhada por Maudsley, para evitar a loucura.
Nunca o cumpri e fiz mal. Muitas causas influíram para que viesse a
beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem
razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica
sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo;
previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me
com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação
condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava
distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci
o chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele.

A minha casa me aborrecia, tão triste era ela! Meu pai delirava, queixava-se,
resmungava, com tal ar que me parecia [ …. ]. Eu me agastava, tanto mais
que ele não tinha razão alguma. A não ser na ilha do
Governador, plena roça, por aquelas épocas, cujas vantagens
de moradia são fáceis de adivinhar, eu não me lembrava
de ter morado em melhor casa e ter comido melhor; mas ele resmungava.

De resto, tinha horror à vizinhança e, por isto e pelo que
disse mais acima, procurei sempre entrar em casa ao anoitecer, quando todos
estavam recolhidos. Era rematada tolice, porquanto eu saía para a repartição
dia claro e à vista de todos. Coisas de maluco…

No começo, havia dinheiro na bolsa de todos e o parati entrava como
mera extravagância. O forte era cerveja; mas, bem depressa, com a fuga
inexplicável do dinheiro das nossas algibeiras, a cachaça ficou
sendo o nosso forte; e eu a bebia desbragadamente, a ponto de estar completamente
bêbedo às nove ou dez horas da noite.

O aparecimento do meu primeiro livro não me deu grande satisfação.
Esperava que o atacassem, que me descompusessem e eu, por isso, tendo o dever
de revidar, cobraria novas forças; mas tal não se deu; calaram-se
uns e os que dele trataram o elogiaram. É inútil dizer que nada
pedi.

A minha dor ou as minhas dores aumentavam ainda; e, cheio de dívidas,
sem saber como pagá-las, o J. M. aconselhou-me que escrevesse um livro
e o levasse para ser publicado no Jornal do Commercio.

Assim o fiz. Pus-me em casa dois meses e escrevi o livro. Saiu na edição
da tarde e ninguém o leu, e só veio a fazer sucesso, para mim
inesperado, quando o publiquei em livro. Desalentado e desanimado, sentindo
que eu não podia dar nenhuma satisfação àqueles
que me instruíram tão generosamente, nem mesmo formando-me,
não tendo nenhuma ambição política, administrativa,
via escapar-se por falta de habilidade, de macieza, a única coisa que
me alentava na vida – o amor das letras, da glória, do nome,
por ele só.

Eu me senti capaz de fazer, mas de antemão sabia que não encontraria
em parte alguma quem me imprimisse e tinha a íntima certeza de que
não encontraria dinheiro com que me fosse possível editar o
meu trabalho, especialmente o Gonzaga de Sá.

Bebi cada vez mais, e, dentre muitas aventuras, algumas humilhantes, e não
foram as mais o parar duas ou três vezes nas delegacias de polícia,
aconteceu-me uma, que se cerca de um mistério que até hoje não
pude desvendar. Conto. Uma noite, às últimas horas, muito bêbedo,
pedi a V. que me levasse ao bonde, que passava na Rua Sete de Setembro. Esperei
no poste, em frente ao canil, o veículo e, de repente, focinhei no
chão. V., que já morreu e era muito mais forte do que eu, levantou-me,
equilibrou-me e pôs-me de pé. De repente, veio uma rapariga preta,
surgida não sei de onde, que perguntou a V. (foi ele que me contou):

– A patroa manda perguntar o que tem o doutor L.

V. respondeu: – O doutor L. está um pouco incomodado, devido
a ter se excedido um pouco. Não é nada.

A rapariga foi-se e logo após voltou:

– A patroa manda este remédio para o senhor fazer que o doutor
L. cheire. Ela manda também que o senhor acompanhe o doutor L. até
em casa, com todo o cuidado.

Era um vidro de amônia que, ainda, vazio, guardo em casa. Quem foi
essa boa alma? Quem é essa "patroa"? Não sei e creio
que não saberei nunca. Ficam aqui, porém, os meus ternos agradecimentos.
As minhas dores e as minhas dificuldades, também.

Não me preocupava com o meu corpo. Deixava crescer o cabelo, a barba,
não me banhava a miúdo. Todo o dinheiro que apanhava bebia.
Delirava de desespero e desesperança; eu não obteria nada.

Outras muitas me aconteceram, mas são banais a todos os bebedores.
Dormi em capinzais, fiquei sem chapéu, roubaram-me mais de uma vez
quantias vultuosas. Um dia, furtaram-me cerca de quinhentos mil-réis
e eu amanheci sentado a uma soleira, na Praça da Bandeira, com mil-réis
no bolso, que, creio, me deixaram por comiseração os que me
roubaram.

Tenho vergonha de contar algumas dessas aventuras, em que felizmente ainda
me deixaram com roupa. Elas seriam pitorescas, mas não influiriam para
o que tenho em vista.

Resvalava para a embriaguez inveterada, faltava à repartição
semanas e meses. Se não ia ao centro da cidade, bebia pelos arredores
de minha casa, desbragadamente. Embriagava-me antes do almoço, depois
do almoço, até ao jantar, depois deste até à hora
de dormir.

Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível;
nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica,
rígida do Universo e de nós mesmos. No último, no fim
do homem e do mundo, há mistério e eu creio nele. Todas as prosápias
sabichonas, todas as sentenças formais dos materialistas, e mesmo dos
que não são, sobre as certezas da ciência, me fazem sorrir
e, creio que este meu sorriso não é falso, nem precipitado,
ele me vem de longas meditações e de alanceantes dúvidas.

Cheio de mistério e cercado de mistério, talvez as alucinações
que tive, as pessoas conspícuas e sem tara possam atribuí-las
à herança, ao álcool, a outro qualquer fator ao alcance
da mão. Prefiro ir mais longe…

Certo dia, a minha alucinação foi tão forte, que resolveram
levar-me para a casa de um parente, para ver se melhorava; foi pior. Mandaram-me
para o hospício. No mesmo dia que lá cheguei, no pavilhão,
nada sofri. Assim não foi no Hospital Central, nem na Santa Casa, de
Ouro Fino, onde as visões continuaram, no hospital por mais de vinte
e quatro horas e, em Ouro Fino, unicamente na noite da entrada.

Agora, que creio ser a última ou a penúltima, porque daqui
não sairei vivo, se entrar outra vez, penetrei no pavilhão calmo,
tranqüilo, sem nenhum sintoma de loucura, embora toda a noite tivesse
andado pelos subúrbios sem dinheiro, a procurar uma delegacia, a fim
de queixar-me ao delegado das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo
as coisas mais fantásticas que se possa imaginar.

No começo, eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha; dessa
forma, vi-as familiarmente, como a coisa mais natural deste mundo. Só
a minha agitação, uma frase ou outra desconexa, um gesto sem
explicação denunciavam que eu não estava na minha razão.

O que há em mim, meu Deus? Loucura? Quem sabe lá?

IV

Alguns Doentes

Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos,
não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há,
como em todas as manifestações da natureza, indivíduos,
casos individuais, mas não há ou não se percebe entre
eles uma relação de parentesco muito forte. Não há
espécies, não há raças de loucos; há loucos
só.

Há os que deliram; há os que se concentram num mutismo absoluto.
Há também os que a moléstia mental faz perder a fala
ou quase isso. Quando menino, muito vi loucos e, quando estudante, muito conversei
com os outros que essas coisas de sandice estudavam sobre eles, mas, pela
observação direta e pelo que li e ouvi dos entendidos, percebi
bem a perplexidade deles em face de tão angustioso problema da nossa
natureza.

Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele;
há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes
observações, mas uma explicação da loucura não
há. Procuram os antecedentes do indivíduo, mas nós temos
milhões deles e, se nos fosse possível conhecê-los todos,
ou melhor, ter memória dos seus vícios e hábitos, é
bem certo que, nessa população que cada um de nós resume,
havia de haver loucos, viciosos, degenerados de toda a sorte.

De resto, quase nunca os filhos dos loucos são gerados quando eles
são loucos; os filhos de alcoólicos, da mesma forma, não
o são quando seus pais chegam ao estado agudo do vício e, pelo
tempo da geração, bebem como todo o mundo.

Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente
pueris. Todo o problema de origem é sempre insolúvel; mas não
queria já que determinassem a origem, ou explicação;
mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até hoje, tudo
tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos
ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os
colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode.

Se a estátua de Isis lá estivesse, havia de cerrar mais o véu
impenetrável que cobre o seu rosto. Essa questão do álcool,
que me atinge, pois bebi muito e, como toda a gente, tenho que atribuir as
minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é
o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos
não encontram no amor, desde o mais baixo, mais carnal, até
a sua forma mais elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divinização
do objeto amado; por que – pergunto eu – não é fator
de loucura também?

Por que a riqueza, base da nossa atividade, coisa que, desde menino, nos
dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é
também a causa da loucura?

Por que as posições, os títulos, coisas também
que o ensino quase tem por meritório obter, não é causa
de loucura?

Há um doente aqui, F. P., em que eu vejo misturados o amor e a presunção
de inteligência e de saber. É o mais bulhento e rixento da casa.
Desde as cinco horas da manhã até às sete ou oito da
noite, ri, vive a gritar, a berrar, proferindo as mais sórdidas pornografias.
Compra barulho com doentes e guardas, descompõe-nos, como já
disse; mas, dentro em pouco, está ele abraçado com aqueles mesmos
com que brigou há horas, há dias.

Há muita coisa de infantil nas suas atitudes, nas suas manias de amor,
na estultice de se julgar com grande talento e saber, de provir de uma raça
nobre ou parecida. Diz-se descendente de um revolucionário pernambucano,
em sexta geração, e que foi fuzilado.

Vi-lhe a letra e uma carta que escreveu a uma pessoa da família. A
letra é positivamente de tolo, graúda e redonda. Tem sempre
na boca a palavra formidável: meu talento é formidável;
tenho uma força formidável; o poder de Deus é formidável;
H. é um general formidável. A sua prosápia de educação,
de homem fino e de sala, não impede que, por dá cá aquela
palha, empregue os termos mais chulos e porcos. Uma hora diz do médico,
do chefe da seção, dos companheiros e amigos os maiores elogios;
daqui a pouco, está a descompô-los com os seus termos habituais.

Fila os jornais do médico, mas só para tê-los embaixo
do braço, pois não os lê e nota-se mesmo em todos os seus
atos, gestos e palavras, uma falta de seriação, uma instabilidade
mental, mais fácil de perceber, quando se lhe expõe qualquer
coisa, do que quando ele pretende narrar um fato ou contar uma anedota. O
orgulho dele, além do pai, que é totalmente desconhecido, está
nos irmãos, formados nisso e naquilo; entretanto, não o pai,
mas estes últimos não escapam da sua língua nas horas
de fúria. Tem a acompanhá-lo um guarda particular, que faz pena
vê-lo sofrer com ele. A toda a hora e a todo instante, além de
outros insultos, está a pôr-lhe na cara que ele ganha sessenta
mil-réis para servi-lo.

O velho quer despedir-se, mas, ao que parece, ele precisa muito dessa miséria
de ordenado. Não é lá muito velho, mas sofre já
de decrepitude. Foi guarda-civil, guarda do hospício e, nesse seu último
quartel da vida, para ter com o que viver, tem de aturar o mais insuportável
louco que eu tenho conhecido na minha longa convivência com loucos.
Mania de grandeza, delírio de saber, de família, de valentia
e coragem, uma agitação que não o faz dormir, nem deixa
o seu guarda dormir, tudo nela concorre para fazê-lo, nesta sombria
cidade de lunáticos, uma espécie à parte, e supliciar
os que são encarregados de sua vigilância.

Não me gabo, mas, com ele e muitos outros, tem-se dado um fato muito
interessante: eu lhes inspiro simpatia. Quando estive na enfermaria preliminar,
ao amanhecer do dia seguinte, mandei comprar um jornal e pus-me a ler no pátio.
Um doente recomendado, que lá havia – um velho nortista, moreno
carregado, feições regulares, a não ser os malares salientes
– sentou-se ao meu lado e quis ler de sociedade comigo o jornal. Disse-lhe
que não era conveniente lermos juntos; que ele esperasse, eu lhe daria
o jornal. Ouvindo isto, ele levantou-se amuado e amuado me disse:

– Mesmo mostra que você é maluco.

Ele foi transferido para o hospício e, quando deu comigo, disse-me
que tivera notícias que eu era do jornal, e procurara-me para conversar;
mas que eu já me tinha vindo embora. Tratou-me com uma distinção
extraordinária, fez-se meu amigo, pediu-me obséquios, deu-me
conselhos e prometeu-me este mundo e outro.

É um louco clássico, com delírio de perseguição
e grandeza. É um homem inteligente, mas com cultura elementar, e o
seu delírio, desde que não se o interrogue pela base, parece
à primeira vista a mais pura verdade. No começo, ele me enganou;
e julguei certo tudo o que dizia, mas, por fim, ele me revelou toda a sua
psicose. Por me parecer interessante, eu vou reproduzir as histórias
que ele me contou, procurando não quebrar a lógica mórbida
com a qual as articulava. Ele é de Sergipe e chama-se V. de O.

Quando encontrei V. de O., no corredor do hospício, e ele me falou
de forma diferente de todos os outros, como se conhecesse de fato, houvesse
lido alguma coisa minha, enumerou-me os seus títulos e trabalhos, dizendo-me
até que trabalhara em um jornal de Minas com o Senhor Augusto de Lima,
a minha satisfação foi grande. Demais, recitou-me versos dele
e, conquanto eles nada valessem, esperei encontrar nele um sujeito lido que,
por isso ou aquilo tenha caído ali, eu podia conversar, por ser da
minha raça mental.

Nesta seção, como na outra em que estive, não faltam
sujeitos que tenham recebido certa instrução; há até
os formados. Eu não tenho nenhuma espécie de superstição
pelos nossos títulos escolares ou universitários; eles dão
algumas vezes algum saber profissional, muito restrito e ronceiro, e nunca
uma verdadeira cultura; mas, em todo o caso, a convivência nas escolas
com rapazes de inteligência mais aguda, mais curiosos de saber e conhecer
a atividade mental indígena ou estrangeira, dá a alguns uma
tintura das altas coisas que, nesta minha solidão intelectual, num
meio delirante, seria um achado encontrar um.

Coisa curiosa, entretanto, os formados nisto ou naquilo, que me apontam aqui,
quase todos eles são possuídos de uma mania depressiva que lhes
tira não só a enfatuação doutoral, como também
se votam, em geral, a um silêncio perpétuo. Mostraram-me vários,
e todos eles eram de um mutismo absoluto. Contudo, um deles, bacharel, o mais
mudo de todos, na sua insânia, não se esquecera do anel simbólico
e, com um pedaço de arame e uma rodela não sei de que, improvisara
um, que ele punha à vista de todos, como se fosse de esmeralda.

Havia um outro, que diziam ser engenheiro; este guardava uma certa presunção
do "anelado" brasileiro. Sentava-se perto de mim e sempre atirava
com maus modos o seu prato servido para cima do meu. Andava sempre com um
ponche, parecia ser isso um hábito de viajante. O seu orgulho não
parecia vir do título, mas de um sentimento desmedido da sua aptidão
para endireitar a pátria. Soltava frases soltas como esta:

– Que podem estes broncos de empregados conhecer das necessidades do
Brasil?

Ou senão:

– O presidente deve vir aqui para conferenciar comigo.

Às vezes, na janela, através da grade, gritava para os bondes,
a passar:

– Digam ao doutor E. (o presidente) que não aceite alianças,
que só podem perder o Brasil.

Os outros formados nada diziam, ou balbuciavam coisas ininteligíveis.

Vendo aquele homem, que se dizia ter sido estudante do quarto ano de medicina,
engenheiro agrônomo, agrimensor, jornalista e fazia versos, é
de imaginar que prazer não foi o meu em encontrá-lo e como eu
me esqueci da pequena mágoa, que seu mau humor me causou no pavilhão.
Mas estava escrito que eu não poderia, no meio de cento e tantos insanos,
encontrar um com quem trocasse uma palavra.

Os leitores hão de dizer que não era possível encontrar
isso numa casa de loucos. É um engano; há muitas formas de loucura
e algumas permitem aos doentes momentos de verdadeira e completa lucidez.

No salão, há um bilhar, e eu admirava que um rapaz, O., que
passava o dia inteiro a cantarolar pornografias, em que misturava reminiscências
de família, jogasse com consciência bilhar com um outro, que
era dos médicos surdos a que me referi. Tinham ambos "conta",
conheciam os efeitos, e naquele momento o delírio ou a loucura cessava.

Dá-se o mesmo com a instrução, a educação.
A loucura dá intervalos. Eu vi um rapazote, de vinte e poucos anos,
explicar aritmética a um outro, divisibilidade, e pelo que me lembro
estava certo tudo o que ele expunha. Não me quis aproximar, para não
parecer importuno, mas pelo que ouvi ao longe nada tenho a atribuir como erro.
Entretanto, ele vivia delirando.

Mas o doutor V. de O. foi um desapontamento. Contarei tudo, porque é
interessante contar. Já disse como ele travou relações
comigo. Disse-me que precisava de mim para uns serviços na imprensa.
Pus-me logo às suas ordens, e ele me explicou que vinha sendo perseguido
por um complot que tinha até conseguido desmoralizá-lo pelos
jornais. A alma dessa conspiração contra ele era a mulher, atiçada
pela sogra. Casara-se, depois de ser amante, e ela, no fim de cinco meses,
abandonou o lar, levando tudo que nele havia, propondo em juízo uma
ação de nulidade de casamento.

A sua causa era advogada por certo advogado que era seu amante e deputado
pela Bahia; ele, porém, tinha quatro advogados. Fora sua mulher que
conseguira a sua internação no hospício, dizendo à
polícia que ele andava aluado e armado para matá-la. Fora preso
com um revólver na mão, e, sem mais nem menos, constituíra
advogado, ou melhor, advogados. Tinha quatro, mas depois disse-me que eram
dois.

Havia, no correr da sua exposição, muitas contradições
e exageros. Ele, em começo, me dissera que fora o seu advogado que
se interessara por ele para ser tratado com certa deferência no pavilhão.
Depois me dissera que o seu patrono se queixava de estar gastando dinheiro
em bondes, que não tinha dinheiro.

Há, em muita coisa, um fundo de verdade, mas a exaltação
da sua personalidade, a grande conta em que ele tem dos seus talentos, ora
de médico, ora de dentista, ora de engenheiro, o seu delírio
de grandeza monetária, soa, na verdade que se sente em algumas de suas
palavras, como uma nota falsa. A mãe é rica, acaba de receber
dois mil contos, os irmãos, cada um tem dois mil contos, etc. etc.
Ele mesmo tem tido muito dinheiro e tem dado. Promete-me mundos e fundos.
Pijamas de seda, passeios a Petrópolis, dinheiro – a gruta de
Ali-Babá. É exigente de roupas, que as tem possuído de
primeira qualidade – tudo bom e fino, vindo do estrangeiro para ele.
Tem uma demanda com a administração, por causa de uns suspensórios
que lhe custaram dezoito mil-réis. Em toda a sua narração
de passeios, etc., não se esquece nunca de dizer o preço do
custo das coisas. Apesar de sua prosápia sabichona, é de uma
ignorância crassa. Erra na ortografia como uma criança de colégio
e a sintaxe é um Deus nos acuda. Obriga-me a rever os seus escritos.
Fala com ênfase, entre os dentes, sibila e tem a risada do João
Barreto. Não sabe onde fica Blumenau e quis me convencer que os ladrilhos
do vestíbulo do hospício eram mármore que vinha antigamente
da Itália, e me explicou uma coisa fantástica de fornos, em
que o mármore era transformado em ladrilhos. A sua pretensão
intelectual é uma coisa comum à gente de Sergipe e o enlouqueceu,
ao que parece.

Não tem a mínima noção de ciências naturais
e das suas aplicações. Não diz minerais de um país,
diz a sua mineralogia. É um caso curioso, com algum parentesco com
o do F. P., mas mais seguro do que este no seu delírio de grandeza
intelectual e de fortuna, que F. P. não tem, mas em compensação
tem o de força e de amor, e de fêmea, que V. O. também
tem.

Diz-se conhecido em toda a parte, no Chile, na Argentina, mas nada sabe do
Rio de Janeiro. De repente, porém, conta que já esteve aqui,
que já foi preso no estado de sítio da vacina obrigatória
com Jaques Ourique.

Alia, à sua pretensão intelectual, a sua cisma de fortuna,
a um sentimento de uma grande importância social.

Para ele, ele é objeto de uma perseguição de poderosos;
entretanto, diz que dispõe de poderes quase sobrenaturais de hipnotismo.
Já conseguiu furtar os autos de seu processo de nulidade com auxílio
dele e fez outras proezas.

Todos o têm como homem temível, e por isso procuram inutilizá-lo.
Nada sei sobre os seus antecedentes. Só posso ter como certas coisas
que ele repete da mesma forma; entretanto, não garanto, pois esse homem,
no seu delírio, omite alguma coisa, para confessar mais tarde, e confessa
outras, para negar logo depois. Disse-me que não esteve no xadrez dos
loucos uma hora; outra, diz que esteve. Diz que não esteve na Pinel,
outra hora diz que esteve. Disse-me que era o seu advogado quem se interessava
por ele; outra hora, diz que é um pronto e não tem informação.

Ele está muito mais bem instalado do que eu. Tem um quarto com um
só companheiro, uma mesa para o seu uso, com uma gaveta e chave, onde
pode escrever à vontade. Eu, se quero escrever, tenho que ir pedir
para fazê-lo no gabinete do médico, que isso me facilitou. Para
mim, ele tem fortes recomendações políticas e outras
poderosas que fazem ter ele essas regalias excepcionais.

A história do seu casamento me parece fantástica e da sua prisão
também. Foram esses amigos políticos, talvez, que, à
vista do seu delírio, conseguiram a sua internação e
têm contribuído para ter gratuitamente o tratamento que tem.
A sua inteligência parece não ter sido nunca grande e a sua fortuna
também. Ele conhece o Amazonas, pessoas e coisas de lá. Percebe-se.
Diz que ganhou dinheiro viajando com uma lancha que rebocava batelões
carregados de mercadorias, que trocava com grande vantagem por borracha, que
vendia em Manaus, em grande. Tenho ouvido de pessoas sãs, de juízo,
que isto se faz ou se fez naquelas paragens. É, portanto, possível;
mas logo vem o delírio, quando diz que os seus batelões carregavam
cinqüenta mil toneladas de mercancia.

V

Guardas e Enfermeiros

Poderia alongar-me mais na descrição dos doentes que me cercam.
Mas a loucura tem tantos pontos de contato de um indivíduo para outro,
que seria arriscar tornar-me fastidioso se quisesse descrever muitos doentes.
Há uma grande parte que se condenam a um mutismo eterno. Como descrever
estes? Estes silenciosos são bizarros. Há três aqui muito
interessantes. Um é um tipo acaboclado, com um cavaignac crespo, denunciando
sangue africano, que vive embrulhado em trapos, com dois alforjes pendurados
à direita e à esquerda, sequioso de leitura, a ponto de ler
qualquer fragmento de papel impresso que encontre. Não chega aos extremos
de um português, que vive dia e noite, nas proximidades das latrinas,
senão nelas, e que não trepida em retirar os fragmentos de jornais
emporcalhados, para ler anúncios e outras coisas sem interesse, mas
sempre delirando. O silencioso ledor não faz tal, mas escolheu o vão
de uma janela, para aí passar horas inteiras deitado, como se fosse
um beliche de navio. Outro silencioso, que tem a mesma atitude, é mulato,
simpático, calmo, que só vai para as refeições
a correr. O refeitório fica fora da seção e um pouco
distante. Outro silencioso interessante é um matuto de Cabo Frio, que
parece uma estátua. É de uma grande atonia, de uma inércia
que não se concebe. Para deitar-se, é preciso ser trazido para
a cama, mas logo se levanta e encosta-se à parede de um corredor e
aí fica, até que o tragam de novo. Ama o silêncio e estar
de pé. Encostado à parede, hirto, olhos parados, sem brilho
nem expressão qualquer, parece uma estátua egípcia, um
cimélio de templo.

O guarda rondante, aquele que vigia os doentes, à noite, é
um velho português paciente e enérgico, que não tem nenhuma
espécie de mau humor, para trazê-lo, duas, três e mais
vezes para a cama.

O que assombra nestes portugueses é que, sendo homens humildes, camponeses
em geral, de fraca educação e quase nenhuma instrução,
se possam conter, abafar os ímpetos de mau humor, de cólera,
de raiva, que o procedimento dos doentes provoca.

V. de O., outro dia, chamou o enfermeiro de todos os nomes sujos que há
no português do Brasil e de Portugal; o F. P., toda a hora, todo o instante,
de envolta com as mais torpes injúrias, descompõe os guardas
na sua nacionalidade: galegos, etc. Daí a pouco, está a mimá-los
e pedindo-lhes favores. O substituto do chefe de enfermeiros é uma
vítima dele. É um português, novo, doce, simpático.
Ouve tudo o que ele diz, ri-se, e daqui a pouco está atendendo os pedidos
do F. P. Não é só com este que ele assim procede; é
com o meu guarda também. Um rapaz espanhol, muito moço, simpático,
com uns bonitos olhos ternos, que suporta da mesma forma todos os insultos
dele e de outros.

Os enfermeiros, na seção em que estou, são em geral
bons. Há, porém, uma casta deles que não presta. São
os tais particulares. Estes são aqueles que os doentes abastados das
primeiras classes são autorizados a trazer. Nem todos são assim,
mas com dois eu implico solenemente; e me fazem lembrar a insolência
do Bragança do pavilhão, que tem as costas quentes, por causa
da proteção que lhe dispensa o poeta épico da Psiquiatria,
H. R. Dizem que este está acabando os Timbiras de Gonçalves
Dias e, para embeber o seu espírito de cadência e harmonia, dá
freqüentes bailes em casa, em que o Bragança, o tal doutor do
guarda-civil, figura como chefe do buffet.

Esses dois enfermeiros são absolutamente insuportáveis. Um,
pela conversa que ouvi dele, é xucro português, sem as qualidades
dos portugueses em geral, mas fátuo dos seus namoros e da sua irresistibilidade
como homem, em face das mulheres. Ouvi-o conversar e sinto não poder
reproduzir a conversa. Enumerava as enfermeiras que havia namorado, e o seu
interlocutor, perguntando:

– Por que você não continuou o namoro com F.?

– Só podia ser por carta.

– Que tinha?

– Não gosto. O namoro só serve quando se pode beijar
e apertar os peitinhos.

Creio que foi Maxime du Camp que disse ser uma lenda a história do
senhor rico que desgraça as raparigas pobres. Tenho verificado que
ele tem razão: são os rapazes pobres que as perdem. Este portuguesote
tenho para mim que é candidato a um processo de defloramento ou de
estupro.

O outro é muito confiado, tem uns ares de fadista e guitarreiro, com
quem eu implico mais do que com o ar fanfarrão e meloso do nosso capadócio.

Os guardas em geral, principalmente os do pavilhão e da seção
dos pobres, têm os loucos na conta de sujeitos sem nenhum direito a
um tratamento respeitoso, seres inferiores, com os quais eles podem tratar
e fazer o que quiserem. Já lhes contei como baldeei no pavilhão,
como lavei o banheiro e como um médico ou interno me tirou a vassoura
da mão quando estava varrendo o jardim.

Mas na Seção Pinel, aconteceu-me coisa mais manifesta, da estupidez
do guarda e da sua crença de que era meu feitor e senhor. Era este
um rapazola de vinte e tantos anos, brasileiro, de cabeleira solta, com um
ar de violeiro e modinheiro. Estava deitado no dormitório que me tinham
marcado e ele chegou à porta e perguntou:

– Quem é aí Tito Flamínio?

– Sou eu, apressei-me.

– O seu S. A. manda dizer que você e sua cama vão para
o quarto do doutor Q.

Era este um estudante, que tivera um ataque e vivia no hospital, para curar
os efeitos do insulto, que o deixara semi-paralítico.

Fiquei tonto com o carregar eu só a cama; o capadócio nem se
deu ao trabalho de mandar um colega me ajudar, já que ele não
queria fazê-lo. Foi preciso um outro doente espontaneamente prestar-se.
Este guarda é brasileiro. Depois da minha ascensão no manicômio,
ele, quando me encontra no refeitório, olha-me com uma certa desconfiança.
Deste e do Bragança, eu tenho alguma mágoa, mas dos outros que
me trataram por você e do Camilo, do pavilhão, que me fez lavar,
baldear e varrer, nenhuma.

Não só eu fora para lá remetido como sujeito sem eira
nem beira, devido à tolice dos meus parentes, pois me podiam internar
sem passar por lá, mesmo com auxílio da polícia, como
também não tinha ele o ar de feitor do violeiro da Pinel, e
trabalhava, isto é, baldeava, lavava, varria junto conosco.

No hospício, das duas vezes em que lá estive, nunca me fizeram
executar qualquer serviço, mas, se quisessem fazer, eu me prestaria,
desde que ele estivesse de acordo com as minhas forças e os meus hábitos
anteriores. Eu me prestava mesmo a aprender um ofício que fosse leve,
mas essas tarefas pesadas…

Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderá apagar-me da
minha memória essas humilhações que sofri. Não
por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram
de que esta vida não vale nada, todas as posições falham
e todas as precauções para um grande futuro são vãs.

Eu tinha tudo, ou tenho tudo, para não sofre-las, tanto mais que não
as provoquei. Sou instruído, sou educado, sou honesto, tenho procurado
o mais possível ter uma vida pura. Parecia que sendo assim, que –
sendo eu um rapaz que, antes dos dezesseis anos, estava numa escola superior
(que todos me gabavam a inteligência, e mesmo até agora ninguém
nega) – estivesse a coberto de tudo isso. Mas eu e a sorte, a sorte
e eu, nos juntamos de tal sorte, nos irmanamos, que vim a passar por transes
desses.

Desde a minha entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho
em sonho e, agora que estou com quase quarenta anos, embora a glória
me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não tem mais sabor
para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria
esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades que
tenho, mas queria que ela fosse plácida, serena, medíocre e
pacífica, como a de todos.

Penso assim, às vezes, mas, em outras, queria matar em mim todo o
desejo, aniquilar aos poucos a minha vida e sumir-me no todo universal. Esta
passagem várias vezes no hospício e outros hospitais deu-me
não sei que dolorosa angústia de viver que eu me parece ser
sem remédio a minha dor.

Vejo a vida torva e sem saída. A minha aposentadoria dá-me
uma migalha, com que mal me daria para viver. A minha pena só me pode
dar dinheiro escrevendo banalidades para revistas de segunda ordem. Eu me
envergonho e me aborreço de empregar, na minha idade, a minha inteligência
em tais futilidades. Ainda tenho alguma verve para a tarefa do dia a dia;
mas tudo me leva para pensamentos mais profundos, mais doridos e uma vontade
de penetrar no mistério da minha alma e do Universo.

Eu me indago, de mim para mim, se, por acaso, não é amor que
me corrói. Mas vejo bem que não. Passei a idade de tê-lo,
fugindo dele, para que ele não me criasse sofrimento e não prejudicasse
a minha ambição de glória. A própria Heloísa
achava-o nocivo nos homens de pensamento; é verdade que ela também
achava o seu Abelardo virtuoso.

Se fosse ele, eu teria explicação, pois, conforme diz Bossuet,
"Posez l’amour, vous faites naitre toutes les passions; ôtez
l’amour, vous les supprimerez toutes."

Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual
não tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido,devido
à oclusão muda do meu orgulho intelectual; e te-la-ia amado
certamente, se tão estúpido sentimento não tivesse feito
passar por mim a única alma e pessoa que me podiam inspirar tão
grave pensamento.

Li-a e não a compreendi…

Ah! meu Deus!

Ontem, matou-se um doente, enforcando-se. Escrevi nas minhas notas:

"Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo.
Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão
belo como o de hoje."

Não me animo a dizer: venceste, Galileu; mas, ao morrer, quero com
um sol belo, de um belo dia de verão!

VI

Hoje é segunda-feira. Passei-a mais entediado do que nunca. Li o Plutarco,
mas não tive ânimo de acabar com a leitura da vida de Pelópidas.
Mais ou menos, releio esta célebre obra, porque aos dezoito anos fiz
uma leitura dela apressada e salteada. Não tem o mesmo sabor, a que
faço agora, como tinha de delícia a primeira. Observo que Plutarco
põe muito a intervenção dos deuses, nas proezas felizes
dos seus heróis; há relações de predicações
ingênuas que, apesar de tudo, nos fazem rir, mesmo a mim que sou supersticioso.

No almoço se deu um caso que me fez passar mal o dia. Há aqui
um louco que não parece ser profundamente alterado das faculdades mentais.
É aleijado das pernas e chamam-no até Caranguejo, porque, aqui,
como em todas as coleções de homens que vivem juntos, há
o gosto pela alcunha depreciativa. Há o Gato, há o Tetéia,
etc.

Há muito que um certo doente o perseguia com chufas e gestos. Hoje,
no refeitório, ao receber um destes do seu perseguidor, o Caranguejo
atirou-lhe uns copos na cara. Não pegou, mas ele, apesar de seu aleijão,
saiu atrás do adversário, que se cobriu de pavor e tremia. O
pobre do bom Caranguejo, com quem eu jogo bisca calmamente, teve um ataque
de nervos, rasgou as vestes e, quase a chorar, dizia:

– Eu não sou nada! Nada! Ponha tudo isto fora!

Deram-lhe uma injeção e ele dormiu, não podendo ir jantar.

O tal que o persegue, eu já lhe passei uma corrida. Não é
positivamente louco. É antes um débil mental de um fundo perverso
e de uma covardia sem nome. Só persegue os velhos, aleijados e os doentes
mais imbecis que ele.

Ele foi preso e, tendo que ir até às proximidades do dormitório
dele, de lá, muito de longe e com a fuga garantida, deu em fazer-me
gestos imorais.

Não o temo, mas me aborreci o dia inteiro, em imaginar que alguém
estaria na obrigação de se atracar com semelhante idiota.

É uma triste contingência, esta, de estar um homem obrigado
a viver com semelhante gente. Quando me vem semelhante reflexão, eu
não posso deixar de censurar a simplicidade dos meus parentes, que
me atiraram aqui, e a ilegalidade da polícia que os ajudou.

Caído aqui, todos os médicos temem pôr logo o doente
na rua. A sua ciência é muito curta, muito prevê; mas seguro
morreu de velho e é melhor empregar o processo da Idade Média:
a reclusão.

Leio com relativa minúcia os jornais. Até os crimes de repercussão,
eu leio. Por estes últimos dias, houve um nefando. Um oficial do Exército
matou a mulher em circunstâncias abomináveis. De uns tempos para
cá, estão os oficiais a fornecer matéria para essa espécie
de noticiários dos jornais. Tenho, para mim, que há nisso uma
grande desilusão por parte das mulheres e uma ralação
dos maridos, quando sentem as mulheres esfriar. A moça, a nossa moça
casadoira da classe média, vê, nos dourados da farda do cadete
ou do alferes, uma vida de delícia, de luxo, de importância.
Casada, não é assim. O soldo, se bem que não seja mau,
não dá para custear a metade do seu sonho de solteira. O marido,
querendo conservar as boas graças da mulher, faz empréstimos,
os vencimentos diminuem. Está aí a desgraça feita. Dificuldades,
em casa, credores, mau humor da mulher, rompantes do marido, descomposturas,
casas de tavolagem, álcool, etc.

Aqui, no hospício, há dois oficiais uxoricidas, e o tal engenheiro,
em quem não desculpo a arrogância, apesar de sua insânia,
o é também. Dos oficiais, um é positivamente louco. Delira,
e o seu delírio é típico, passa das coisas mais opostas
e sem intermédio algum logo, presente ou oculto. É muito difícil
reproduzir um delírio de louco, principalmente o deste, que é
de uma incoerência inacreditável. Eu quis segui-lo e guardá-lo,
já de memória, já por escrito; mas nada pude conseguir,
mesmo aproximadamente. Ele acaba em casas de alugar, passa para o curso dos
rios, história da guerra do Paraguai, etc., etc.

Além do delírio em voz alta, a sua loucura se revela pela necessidade
em que ele está de quando em quando fazer o maior barulho possível.
Ele dá murros nas mesas, bate com estrondo as portas, levanta as cadeiras
e fá-las cair sobre o assoalho com toda a força, e assim por
diante, tudo entremeado de palavras escabrosas e porcas. É geral nos
doentes essa necessidade de pornografia e de terminologia escatológica.
O F. P. imita a parte brilhante da demência do tenente. Haverá
contágio na loucura? Ouvi sempre falar que alienistas notáveis
atribuíam a loucura de velhos guardas à ambiência dos
hospitais; aqui, contaram-me vários casos. A imitação,
que é um poderoso fator de progresso social útil, positivo,
pode bem ser contada em sentido contrário, um fator de regresso do
indivíduo, e aqui sobra inteligência débil de modo a fazê-la
copiar gestos e coisas dos loucos que a cercam.

Lembro-me agora do Silvestre, um pequeno caibra que eu ensinei a ler e me
chamava de tu e você. Era um objeto perfeito para estudar a força
da imitação sobre os indivíduos. Ele era feio, desengonçado,
escanifrado, mas se tinha na conta de namorador. Um dia de calor e de gazeta
(ele iniciava a cansar-se), ele julgou que ficava muito elegante se calçasse
luvas. Calçou umas de tecido de meia, brancas, sapatos brancos, e correu
as ruas dos subúrbios debaixo de vaias e chufas.

Além do fato que narrei, da imitação aos gestos do Tenente
C. B. por parte do F. P., este ainda imita um português, Pereira, moço,
cuja mania é simular com a boca uma deflagração baixa,
muito baixa, e fazê-la seguir com expressões esquisitas. Não
é só F. P. que o copia, outros muitos.

Com espírito normal, nós imitamos, temos sempre modelos. Citam-se
nas rodas literárias desses tipos que imitam em tudo Artur Azevedo
e Joaquim Nabuco, este mesmo já imitava não sei que parlamentar
inglês, que ele conheceu em Londres, na sua primeira mocidade.

Conhecendo a vida dos guardas e pequenos empregados dos hospícios,
que convivem familiarmente com os loucos, que, com eles, trocam chufas e familiaridades,
é bem possível que alguns gestos, manias e caprichos os impressionem
de tal forma, lhes dêem desejo de imitá-los, no começo
por troça, habituam-se, a impressão se grava, e a exteriorização
se segue e se desdobra com tempo.

Não sou psicólogo, nem psiquiatra, nem coisa parecida; mas
tenho para mim que não é toda estúpida essa hipótese.
É preciso levar em linha de conta a capacidade e a resistência
mental dos guardas e enfermeiros. Lembro-me que a Romualda não se capacitava
de que meu pai estivesse sofrendo das faculdades mentais: "Não
vejo nada. Sempre o conheci assim, zanga-se às vezes; foi dessa forma
sempre e logo passa".

O outro uxoricida militar parece-me não ter nada. Creio que ele está
aqui para fugir a cárcere mais duro. Não se pode compreender
este homem assassino; é polido, culto, gosta de leitura e de conversar
coisas superiores.

Nestes últimos dias, houve na cidade um assassinato de uma mulher,
perpetrado por um tenente. Evitei falar nisto a ele; e a custo tenho me contido.
Quisera a sua opinião. O engenheiro, que me parece ter sido sempre
muito burro, matou a mulher, num acesso de loucura, e o filho. Este é
francamente e permanentemente doido. Não lê coisa alguma, a não
ser a Gazeta de Notícias, de cabo a rabo. É insuportável
de arrogância. Ninguém conversa com ele, a não ser um
imbecil R. (que pena! é moço, simpático e parece ter
recebido educação). Ambos cochicham. Há perguntas e respostas.

Deve haver outros nestas condições; mas eu os não conheço;
mas simples assassinos me apontaram três; um, na Seção
Pinel, e os dois restantes aqui.

O da Seção Pinel é um velho, que anda sempre irrepreensivelmente
vestido, muito limpo, engravatado, e foi empregado na Central, não
sei com que título. Matou um colega, não me disseram por que
motivo; mas o certo é que a sua aparência calma, de homem normal,
causa um engano à primeira vista.

Passa assim dias, meses; mas lá vem um minuto, à noite ou de
dia, em que ele sai da seção, fazendo gestos de fúria,
de raiva e raivosamente a exclamar referindo-se à sua vítima:

– Dá-me um descanso, miserável!

O outro é um pensionista de primeira, que tem curiosos hábitos.
Delira à meia voz, tem o seu quarto muito limpo pelas suas mãos,
cuida dos gatos, das plantas, chegou até a plantar batatas e colhê-las,
gosta de agarrar camundongos, esfolá-los e conservar as peles.

Este homem está no hospício há cerca de trinta anos;
entrou muito moço, e a sua entrada, ao que dizem, foi motivada pela
loucura que se seguiu ao assassinato de um rival, que disputava a moça
de quem ele gostava.

O outro é muito velho e é um fratricida. Está mudo ou
quase mudo. Certas formas de loucura têm esse efeito, e manifestações
dela são as mais díspares possíveis. Debruçar
sobre o mistério dela e decifrá-lo parece estar acima das forças
humanas. Conheço loucos, médicos de loucos, há perto
de trinta anos, e fio muito que a honestidade de cada um deles não
lhes permitirá dizer que tenha curado um só.

Amaciado um pouco, tirando dele a brutalidade do acorrentamento, das surras,
a superstição de rezas, exorcismos, bruxarias, etc., o nosso
sistema de tratamento da loucura ainda é o da Idade Média: o
seqüestro. Não há dinheiro que evite a Morte, quando ela
tenha de vir; e não há dinheiro nem poder que arrebate um homem
da loucura. Aqui, no hospício, com as suas divisões de classes,
de vestuário, etc., eu só vejo um cemitério: uns estão
de carneiro e outros de cova rasa. Mas, assim e assado, a Loucura zomba de
todas as vaidades e mergulha todos no insondável mar de seus caprichos
incompreensíveis.

Ver o F. P. falar na sua inteligência formidável e V. O. na
estrambótica engenharia me parecem coisas semelhantes que assistir
aquele preto da Seção Pinel não querer dormir na cama
do dormitório, para o fazer na proximidade da latrina, ou sorrir dolorosamente,
quando vejo os trejeitos beatos do F., antigo dono de casa de pasto, e as
suas rezas estapafúrdias. Todos eles estão na mão de
um poder que é mais forte do que a Morte. A esta, dizem, vence o amor;
a Loucura, porém, nem ele.

VII

Dia de São Sebastião. Um dia feio, nevoento. Olho a baía
de Botafogo, cheio de tristeza. Não acho tão bela como sempre
achei. Os longes dos Órgãos não se vêem; estão
mergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem
o cobalto de sempre; e as manchas de cortes e chanfraduras nelas aparecem
como chagas. O casario está mergulhado, confuso, não se desenha
bem no horizonte. Tudo é triste. O céu muito baixo, cheio de
fuligem, fumaça. O Pão de Açúcar está emoldurado
de nuvens brancas, parecem abaixar do cume. Vê-se o chalet do caminho
aéreo. A Urca, também chanfrada, é de uma estupidez diante
daquele cenário! A Urca não muda. Lembro-me que já estive
lá no alto. Como é diferente! O bosque é convidativo,
fresco, há um lago natural no centro. As árvores ainda tinham
os cipós da floresta, os pássaros chilreavam; parecia não
se estar no Rio. Não me lembro de tudo visto; mas vi a Rasa e o oceano
infinito, um pouco de Copacabana, da velha Copacabana. Um grande transatlântico
sai. Vai vagaroso, vai para o mar largo, que se estende pelas cinco partes
do mundo; beija-lhes e morde-lhes a praia. Corre perigo, mas está solto,
entre dois infinitos; como diz o poeta: o mar e o céu. Vejo passar
por Villegagnon, através das grades do salão. Villegagnon ainda
tem muros, mas não lhes vejo as palmeiras. Acode-me pensar na fundação
do Rio de Janeiro, que a data comemora. Nesta enseada houve, segundo a história,
um combate com os franceses – o das canoas. Olho-a, está um tanto
crespa, e as águas são turvas e dão ao olhar a impressão
de que estão mais povoadas do que nas outras. Há pescadores
em faina. Canoas ainda! Herança dos índios! O remo também
vem deles! Quantas coisas, dos seus usos e costumes, eles nos legaram? Muitas!
A farinha da mandioca, do milho, certas tuberosas, nomes de rios e lugares,
muitos, adequados e expressivos. Hoje, a vaidade nacional batiza os lugares
com os mais feios nomes que se podem esperar. Enseada Almirante Batista das
Neves! Só falta um doutor, também. Esta nossa sociedade é
absolutamente idiota. Nunca se viu tanta falta de gosto. Nunca se viu tanta
atonia, tanta falta de iniciativa e autonomia intelectual! É um rebanho
de Panúrgio, que só quer ver o doutor em tudo, e isso cada vez
mais se justifica, quanto mais os doutores se desmoralizam pela sua ignorância
e voracidade de empregos. Quem quiser lutar aqui e tiver de fato um ideal
qualquer superior, há de por força cair. Não encontra
quem o siga, não encontra quem o apoie. Pobre, há de cair pela
sua própria pobreza; rico, há de cair pelo desânimo e
pelo desdém por esta Bruzundanga. Nos grandes países de grandes
invenções, de grandes descobertas, de teorias ousadas, não
se vê nosso fetichismo pelo título universitário que aqui
se transformou em título nobiliárquico. É o Don espanhol.

O dia é de tédio e eu procuro meios e modos de fugir dele,
de voltar-me para mim mesmo e examinar-me. Não posso e sofro. Arrependo-me
de tudo, de não ter sido um outro, de não seguir os caminhos
batidos e esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram.

Tenho orgulho de me ter esforçado muito para realizar o meu ideal;
mas me aborrece não ter sabido concomitantemente arranjar dinheiro
ou posições rendosas que me fizessem respeitar. Sonhei Spinosa,
mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoiévski,
mas me faltou a sua névoa.

Aborrece-me este hospício; eu sou bem tratado; mas me falta ar, luz,
liberdade. Não tenho meus livros à mão; entretanto, minha
casa, o delírio de minha mãe… Oh! Meu Deus! Tanto faz, lá
ou aqui… Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que
é minha casa. Meu filho ainda não delira; mas a toda a hora
espero que tenha o primeiro ataque…

Minha mulher faz-me falta, e nestas horas eu tenho remorsos como se a tivesse
feito morrer. Logo, porém, como vem de mim mesmo ou de fora de mim
uma voz que me diz: É mentira.

Os outros deliram em redor de mim e, se não choro, é para não
me julgarem totalmente louco. Imagino que essa convicção se
enraíze nos médicos e me faça ficar aqui o resto da vida.
Ainda agora, meu irmão veio visitar-me e, nos primeiros dias, um amigo;
mas, dos que me vieram ver, na primeira vez que estive aqui, nenhum veio.
Se me demorar mais tempo, ainda, ficarei completamente abandonado, sem cigarros,
sem roupa minha, e ficarei como o Gato e o Ferraz, que aqui envelheceram,
vivendo aquele a fazer transações de forma tão cínica,
para arranjar cigarros. Troca pão por fumo e furta lápis dos
companheiros, para arranjar moeda para barganhar. Todos o perseguem, o maltratam,
o chasqueiam, na sua velhice, a ele que foi rico, filho de ex-ministro e senador
do Império. "Sic transic gloria mundi. "

Aceito todos os fins, mas não permita Deus que o tenha um destes.
Enche-me de angústia, quando este quadro se desenha a meus olhos; atribuo
a mim mesmo a culpa do que me sucede, ao mesmo tempo culpo F., culpo Z., culpo
X. e toda a humanidade, a sociedade em que vivo, mas não quero. Contudo,
eu queria viver isolado, fora dessa paixão pela literatura, pelo estudo.
Creio que ela me faz mal e lastimo não ter outra forma de talento em
que minha inteligência pudesse trabalhar, absorver toda a minha atividade,
sem comunhão com os meus semelhantes. Queria ser um geômetra,
mesmo medíocre, mas da família de Arquimedes, conforme o desenha
Plutarco, na vida de Marcellus, página 109.

Mas não me é possível, a minha pouco certa inteligência
é de outra raça; sou levado incoercivelmente para o estudo da
sociedade, para os seus mistérios, para os motivos dos seus choques,
para a contemplação e análise de todos os sentimentos.
As formas das coisas que as cercam, e as suas criações, e os
seus ridículos, me interessam e dão-me vontade de reproduzi-los
no papel e descrever-lhe a sua alma, e particularidades. Ao mesmo tempo, levado
para o estudo das sociedades, da sua história, do quid que as anima,
arrastado para o estudo do seu destino, sou também capaz de me emocionar
diante das coisas e da natureza. Não serei nunca sociólogo,
historiador, não serei nunca romancista. Falta-me amor ou ter amado.
Mas… Minha mulher!

Não posso tratar dela. Não se ama uma morta; e eu não
a soube amar em vida. Fui tomar café matutino, já melancólico;
li os jornais, hipocondríaco; almocei, ainda pior. Não pude
acabar de ler a vida de Pelópidas. À uma hora fui para o café
com pão, que é a refeição mais apreciada por mim
aqui.

Festa de São Sebastião. Uma enfermeira, com consentimento da
alta administração do hospício, certamente uma canivetada
na constituição, organizou na capela uma festa, flores, missa,
sermão, etc. Na hora do café, os internos almoçaram uma
bóia superfina, digna do santo do dia e da Constituição.
Alguns nos olhavam naturalmente; mas outros, com a enfatuação,
não tanto da idade, mas de estudantes, com a convicção
que estavam muito acima de nós e se podiam permitir debochar-nos. É
verdade que se limitaram ao Gato; mas, logo a uma reclamação
deste, falaram poderosamente em casa-forte.

Voltei do café entediado. Um vago desejo de morte de aniquilamento.
Via minha vida esgotar-se, sem fulgor, e toda a minha canseira feita, às
guinadas. Eu quisera a resplandecência da glória e vivia ameaçado
de acabar numa turva, polar loucura. Polar, porque me parecia que nenhuma
afeição me aquecia, e turva, pois eu não via, não
compreendia nada em torno de mim. Eu me comparava a um explorador das regiões
árticas, que tivesse durante anos atravessado florestas lindas, cascatas,
céus epinícios, lagos de anil, mares de esmeraldas, nessas paisagens
mais belas da terra, as suas servências mais majestosas, e se houvesse
de motu proprio atirado às banquises do pólo e se deixasse mergulhar
na sua noite imensa que, para o meu caso, era infinita.

Quase me arrependia de não ter querido ser como os outros. Seguir
os caminhos do burro e ter feito da minha vida um paradoxo. Quis ler ainda,
mas não me era possível. Pensava e triava todos os meus sonhos
que se iam esvaindo. Já tinha vivido dois terços da minha provável
vida e só um pouco deles realizara. O que mais desesperava era a angústia
de dinheiro. Não tinha contado com ele, como não contara com
muitos elementos que eu desprezara; agora, eles se vingavam…

Sentia-me impotente por isso, e os obstáculos invencíveis.
Não me quisera curvar, revoltara-me; entretanto, mais de uma vez me
vira obrigado a pedir pequenos favores humilhantes aos camaradas. Curiosa
independência!

Mastigava esse raciocínio, quando um colega de manicômio me
chamou, para ver um doente da Seção Pinel, que fica na loja,
impando no telhado. Lá fui e vi-o. Era o D. E., parente de um funcionário
da casa, de real importância. Tinha o vício da bebida, que o
fazia louco e desatinado. Já saíra e entrara no hospício,
mais de vinte vezes. Apesar de tudo, era simpatizado, e muito, pelo pessoal
subalterno. Não subira propriamente à cumeeira do edifício,
mas à de uma dependência, no flanco esquerdo do edifício,
onde fica a rouparia. Em chegando ao alto, começou a destelhar o edifício
e atirar telhas em todas as direções, sobretudo para a rua,
para as ruas, pois a tal rouparia ficava numa esquina.

Entre um e outro arremesso, prorrompia em descomposturas à diretoria
e sorvia goles de cachaça, que levara num vidro de medicamentos.

Não era a primeira vez que, zombando de todos os esforços da
administração, do inspetor e guardas, obtinha aguardente e se
embriagava, preso, no estabelecimento.

Desta vez, ele o fazia em presença da cidade toda, pois na rua se
havia aglomerado uma multidão considerável.

Jogava telhas e eles se apartavam para a borda do cais que beira o mar, no
momento, turvo, e atmosfera fosca. Num dado momento, tirou o paletó.
Ficou seminu; estava sem camisa. Atirava telhas e berrava. Alguém,
de onde nós estávamos, um tanto próximo dele, gritou-lhe:

– Atira para aqui!

– Não, entre nós, não! Vocês são
os infelizes como eu.

Continuou, durante algum tempo, nessa pantomima, quando acudiu o corpo de
bombeiros com escadas. A sua fúria cresceu. Desandou a atirar pedras
sobre os automóveis. Berros, palmas; e ele, como equilibrista, correu
toda a cumeeira e foi buscar a flecha que lhe dava a semelhança de
chalet e arrematava a cumeeira, para se armar. Os bombeiros fingiram que iam
estender mangueira e obrigá-lo a descer com jactos d’água.
Distraiu-se, deu pouca importância, e veio para a borda da cimalha falar
à multidão.

Enquanto isso, guardas e bombeiros subiam pelo outro lado, sem que ele desse
fé disso, e, surpreendendo, amarraram, não sem tenaz defesa
dele a unhas e dentes.

O diretor veio ver, e os loucos amolavam-no.

O V. O. fez-lhe esta recriminação que ouvi:

– Vê Vossa Excelência isso, numa casa desta! Que escândalo!

Este V. O. não sai mais daqui. Cada dia, torna mais completo o seu
depoimento de doido.

O diretor nada disse, e eu percebi; mas foi preciso ele vencer, com a sua
doçura, a sua paciência e a simplicidade de sua alma, a indelicadeza
desse seu hospitalizado.

Hei de falar mais longamente sobre ele, que é uma interessante figura
que conheci.

A proeza do D. O. agitou todo o hospício, pôs a rua em polvorosa
e suspendeu o tráfego da Light, e havia no seu procedimento muita coisa,
que parecia ser ele premeditado.

Doentes lá de baixo, e outros com os quais vim a conversar depois,
disseram-me que sim, que ele tinha feito veladas ameaças do que ia
fazer.

Num dado momento, trepado e de pé na cumeeira, falando, cabelos revoltos,
os braços levantados para o céu fumacento, esse pobre homem
surgiu-me como a imagem da revolta… Contra quem? Contra os homens? Contra
Deus? Não; contra todos, ou melhor, contra o Irremediável!

VIII

O hospício tem uma biblioteca; antigamente, isto é, há
cinco anos, quando aqui estive, estava nos fundos da seção,
em uma pequena sala. Tinha uma porção de livros, até
um Dostoiévski lá havia e um excelente dicionário das
literaturas, de Vapereau, que eu lia com muito agrado; atualmente, porém,
conquanto tenha pequenas mesas, meia dúzia, próprias para ler
e tomar notas, duas cadeiras de balanço e duas espécies de divãs
(estas últimas peças já existiam), não possui
mais a mesma quantidade de livros, e a freqüência é dos
delirantes, que lá vão dar pasto a seu delírio, berrar,
gritar, fazer bulha com as cadeiras sobre o assoalho, não permitindo
nenhuma leitura.

Há ainda livros curiosos que eu queria ler, mas não é
possível absolutamente. Vi uma obra em dois volumes sobre finanças
de Colbert, Félix Joubleau, que me tentava lá; vi um Daniol,
História das Classes Rurais na França, que devia ser interessante,
apesar de um pouco antigo; vi o romance de Pedro, o Grande, de Merejcóvski;
um Bohème Galante, de Gérard de Nerval; mas não me animei
a ler. Às vezes, para variar, ia até lá e pegava ao acaso
um volume da Biblioteca Internacional de Obras Célebres e lia. Foi
aí que se me ofereceu pela primeira vez o ensejo de ler uma carta de
Heloísa e a biografia de Abelardo, por Lewis, o célebre biógrafo
de Goethe e amante não menos célebre de George Eliot.

O lugar era cômodo e agradável. Dava para a enseada, e se avistava
doutra banda Niterói e os navios livres que se iam pelo mar em fora,
orgulhosos de sua liberdade, mesmo quando tangidos pelos temporais. Às
vezes, lendo, eu me punha a vê-los, com inveja e muita dor na alma.
Eu estava preso, via-os por entre as grades e sempre sonhei ir por aí
afora, ver terras, coisas e gentes…

Um dia, não sei se foi na biblioteca ou no salão de bilhar,
vi entrar barra adentro um grande quatro mastros à vela. Há
muito tempo que não via esses quadros marítimos, que foram o
encanto da minha meninice e da minha adolescência. A minha literatura
começou por Jules Verne, cuja obra li toda. Aos sábados, quando
saía do internato, meu pai me dava uma obra dele, comprando no Daniel
Corrazzi, na Rua da Quitanda. Custavam mil-réis o volume, e os lia,
no domingo todo, com afã e prazer inocente. Fez-me sonhar e desejar
saber e deixou-me na alma não sei que vontade de andar, de correr aventuras,
que até hoje não morreu, no meu sedentarismo forçado
na minha cidade natal. O mar e Jules Verne me enchiam de melancolia e de sonho.

Não gostava muito das viagens fantásticas, como à lua,
ou que tivessem por entrecho uma coisa inverossímil, como no País
das Peles; assim mesmo apreciava o César Cascabel e a Viagem ao Centro
da Terra. Do que mais gostava, eram aquelas que se passavam em regiões
exóticas, como a Índia, a China, a Austrália; mas, de
todos os livros, o que mais amei e durante muito tempo fez o ideal da minha
vida foram as Vinte Mil Léguas Submarinas. Sonhei-me um Capitão
Nemo, fora da humanidade, só ligado a ela pelos livros preciosos, notáveis
ou não, que me houvessem impressionado, sem ligação sentimental
alguma no planeta, vivendo no meu sonho, no mundo estranho que não
me compreendia a mágoa, nem ma debicava, sem luta, sem abdicação,
sem atritos, no meio de maravilhas.

Entretanto, nestes últimos dez anos, rara vez eu vinha ver o mar.
Vivia numa cidade marítima, sem ir vê-lo nem contemplá-lo.
Atolava-me na bebida, no desgosto e na apreensão… Pensava bem em
morrer, mas me faltavam forças para buscar a morte. Comprava livros
e não os lia. Planejava estudos e não os fazia. Delineava obras
e não as realizava. Minha capacidade inventiva e criadora, a minha
instrução técnica e a minha pretensão eram insuficientes
para fabricar um Náutilus, e eu bebia cachaça.

Lembrava-me disso, vendo a biblioteca, o mar, os paquetes, os perus e faluas,
que entravam na enseada de Botafogo, os pescadores a colher as redes, em canoas
quase atracadas ao cais, e sonhava o mar livre que se adivinhava, lá
fora da barra, ali bem perto…

O grande veleiro, a gábia de quatro mastros, entrava por ela afora,
sem auxílio de rebocador, com o terço do velame solto, sem denunciar
o esforço e sem ter a arrogância dos paquetes, a vogar, sereno,
parecendo de acordo com a natureza, com o céu e o mar, em que todo
ele estava mergulhado. Neste momento, apareceu-me o V. O., que me veio dizer
que não lhe davam a sua roupa fina, que tinha dezenove malas, que o
médico estava no complot que se organizava contra ele e o inspetor
também. Não sei como este último apareceu, e ele se pôs
a esbravejar contra ele, gritou, chamou-o dos nomes mais feios desta vida,
contra todas as suas prosápias de títulos, e acabou tirando
da palmilha dos sapatos algumas notas, dizendo que ali tinha trezentos e tantos
mil-réis. Dias antes, tinha me dito que tinha duzentos. Na loucura
deste homem, há muita impostura. Deixei de ler a carta de Heloísa
e de ver o mar, ambas as coisas me faziam sonhar.

Resolvi deixar de freqüentar a biblioteca, porque, quando não
era o V. O., eram o F. P., com suas dissertações de tico-tico
e enumeração dos seus parentes doutores e bacharéis,
o C. B., com o seu estardalhaço, que não me permitiam ler com
atenção. Resolvi fazê-lo no dormitório e durante
muito tempo sorvi sossegadamente o meu Plutarco. A minha leitura atual desse
célebre livro é feita com outro olhar que o de antigamente.
Noto-lhe uma porção de atributos sempre os mesmos, para os seus
heróis. Ele os quer sempre belos, como filhos mais belos do seu tempo,
e o paralelo entre os heróis de Grécia e Roma, às vezes,
não é feliz; mas há sempre nele muita coisa que nos faz
refletir. Vejam só esta observação de um antepassado
dos atuais bolchevistas, do cita Anacársis, feita a Sólon: "As
leis são como as teias de aranha que prendem os fracos e pequenos insetos,
mas são rompidas pelos grandes e fortes". Os nossos milionários
e políticos não pagam os impostos e, muitas vezes, os criados,
quando os alugam, se não mandam buscá-los na polícia
militar e na guarda civil; entretanto, há uma porção
de leis, de fiscais, etc., etc.

Ora, a lei! Que burla! Que trabuco para saquear os fracos e os ingênuos…

Mas, como dizia, resolvi abandonar a biblioteca e vir ler no dormitório.

Infelizmente, não tenho um quarto, para mim só, nem com outro
companheiro. Habito, com mais dezenove companheiros, um salão amplo,
com três janelas para a frente da rua, olhando para o mar. A minha cama
fica perto da janela, mas, entre ela e eu, há um colega dos mais estranhos
da casa. Só sai do dormitório para as refeições,
para lavar o rosto de manhã, conjuntamente com os seus trapos, na pia;
e, afora disto, vive a dormir, ou à janela, dizendo uma porção
de coisas desconexas, em que ele repete sempre coisas de jogo e batota. O
seu acesso foi na rua, e intitulou-se capitão de polícia, e
os outros aqui o chamam por esse título militar. Esquecia de dizer
que ele lê um volume do Dicionário Ilustrado, do Pinheiro Chagas,
ou, senão, jornais velhos, que arrepanha aqui ou ali. Todas essas coisas
não me incomodariam, se não se julgasse no seu direito de estar
a abrir e a fechar a janela, desde que lhe dê na telha sair dela ou
de ler, para deitar-se ou ir a qualquer parte. Muda-me a luz e incomoda-me
na leitura.

Meu vizinho de dormitório é um rapaz cuja loucura reagiu sobre
o seu aparelho vocal a ponto dele mal falar e com esforço. Olha-me
estupidamente, e com um olhar parado e de um único brilho, e tem a
mania de incapacidade de ingerir qualquer alimento. Tudo se tem experimentado:
leite, frutas, até um irrigador; mas é em vão. Ele não
ingere nada e, se ingere à força, logo vomita, debilita-se e
dá em suar às catadupas.

Esperando a sua morte próxima, a família levou-o para casa.
Vai mudar de cemitério – coitado! Para esse, não houve
um intervalo entre os dois. Foi substituído pelo Pinto.

Um outro companheiro de dormitório é um tal Cabo Frio. Tem
os traços todos do nosso camarada roceiro, com um fundo muito forte
de índio, cabelos negros e barba também grossas e luzidias.

Está completamente estúpido, não fala e vive hieraticamente
esteado nas paredes, ou nos cantos, como uma estátua de templo egípcio.
Em começo, era preciso, à hora de recolher, trazê-lo para
o quarto; mas, dias depois, já vinha pelo seu pé. Com essa conquista
sobre o seu cérebro ocluso, ele ganhou também outra atividade.
Remexe os baixos dos travesseiros e colchões dos outros, carrega o
que encontra e vai esconder os objetos onde cisma. Sempre antipatizei com
ele – Deus não me castigue! – e depois que desapareceu,
de debaixo do colchão, um livro, mais o fiquei aborrecendo. Desconfiei
que fosse ele, o que me aborrece extraordinariamente. O que me aborrece é
a sua inércia, a sua falta de iniciativa, e o furto do livro, como
já disse, fez-me aborrecê-lo mais, conquanto suspeite de outros:
um tal Veiga, o F. P., o sargento e mais um tal Gastão.

Este último, que já foi do meu dormitório, é
um rapazola de seus dezoito anos, que tem uns ataques de forma epiléptica.
É uma natureza de dissimulação e falsidade. Gosta de
escambar, gosto que não é só dele aqui, mas que se encontra
em muitos outros. O Gato é um deles. Carrega pães e troca por
cigarros, estes por jornais, vende os jornais por lenços, furta camisas
e livros, para cambiar por qualquer coisa, ou vender. Creio que já
lhes falei na sua prosápia de família, das suas constantes alusões
ao seu pai ex-ministro do Império, chama todos de negros, ladrões.
Ele já me furtou um lápis. A sua mania de descomposturas lhe
tem valido muitas sovas. Uma das últimas foi a do Borges, um negro
pretíssimo, de pais ricos, mas façanhudo, rixento, que não
pode estar na seção para que paga, pois agride todos por dá
cá aquela palha. É um belo tipo de cabra ou caibra, com fortes
peitorais, magníficos bíceps, deltóides. Um pouco curto
de corpo, sobretudo de pernas, como ele todo, robustíssimas, respira
audácia, bravura, desaforo.

Ao entrar, ele se chegou a mim e olhou-me ferozmente:

– Como é que você deixa a farda?

– Que farda? Não uso farda.

– Você não é oficial do Exército?

– Não; é meu irmão.

– Bem dizia eu.

Falou abruptamente, as suas palavras saltavam dos lábios, aos jactos,
descontínuas, mas sem propósito de me ofender, mas de acariciar-me;
daí a dias, deu-me biscoitos caros, que recebeu de casa.

O Gato, o Marquês de Gato, insultou-o de negro, vagabundo e ladrão.
B. não teve dúvidas e intimou-o ameaçadoramente:

– Repete, se você é gente, seu este, seu aquele.

O Gato, o nobiliárquico Gato, repetiu, e o B. deu-lhe tais murros,
que o pôs todo em sangue, com o nariz quebrado. Penalizei-me, porque
o Gato era um velho, a roçar pelos sessenta anos, cheio de uma loucura
infantil de insultar, fazer caretas e julgar-se muito, com ter sua parentela
obscura, mas colocada em bons lugares, e o seu título de bacharel em
Direito, por São Paulo, obtido adivinha-se como. Depois de levar os
bofetes de B., andou dias com o emplasto, e o nariz, que era grande, rubicundo,
proeminente até à altura da boca, encurtou um pouco e cambou
para um dos lados. A sua fisionomia era cômica, com esse nariz, a sua
cabeça redonda, os seus olhinhos verdes e, quando se enfurecia, com
o seu falar esganiçado e rápido.

Implicava com todo o mundo; comigo, só da primeira vez que estive,
quando saí para ir não sei onde, que ele disse ao passar:

– Este negro entrou ontem e já se vai embora.

Agora ele me trata muito bem.

Ontem, ele me chamou confidencialmente e me disse:

– Você sabe de uma coisa?

– Não.

– Vou para São Paulo e lá me casar com uma filha do S.
L., que tem noventa milhões de contos.

Ele não se contentava com pouco.

IX

Outras considerações referentes ao meu dormitório me
arrastaram a abandonar os motivos por que o deixei como lugar de leitura,
para voltar à biblioteca.

Queria reatar a narração das razões, mas não
me é possível. Um vizinho foi, afinal, quem me levou a fazê-lo.
Só este, porque, em geral, como já descrevi, pouco os outros
me incomodavam. Os mais próximos eram excelentes, tanto o da cama,
à direita, de que já sobre ele falei, como o da esquerda.

Era este um menino, moreno, completamente idiota. Tinha as feições
regulares, a não ser a boca, os olhos negros cravados nas órbitas,
e balbuciava que nem um criança. Tinha poucas idéias e quatro
ou cinco palavras. Parece que tinha mais idéias que palavras. Repetia:

– Papai é mau.

– F. é mau!

– Papai tem dinheiro!

– É mau!

– Que pena!

Eram mais ou menos estas as palavras que se entendiam na sua boca. Doce e
bom, geralmente estimado, tinha tudo e de todos, e figurava no hospício
como um cãozinho de estimação de todos. Hão de
estranhar que não houvesse quem criasse animais, gatos, cães,
pássaros, etc. A bem dizer, não havia; mas o Torres, o único
pensionista de primeira classe, o tal que matara o rival e era o decano do
estabelecimento, no almoço e no jantar, juntava restos de comidas e
levava aos gatos ariscos que andavam pelos pátios e jardins. F. tinha
toda a liberdade e andava onde queria. Fora deste, não vi louco algum
que se interessasse por animais.

Na outra casa de saúde em que estive, havia um oficial reformado do
Exército, declaradamente dementado, que tinha a cisma de que conversava
com os pardais.

Em todas as refeições, munia-se de miolo de pão, mergulhava-o
em água, na pia do seu quarto, e atirava pedaços da pasta assim
obtida aos pássaros, que voejavam em torno do pavilhão às
centenas. Não contente com isso, comprava chocalhos, apitos infantis,
fazia poleiros, gangorras, para divertir ou chamar os pardais. Estes pássaros
acorriam aos montes na varanda, que se estendia em face dos quartos, cujas
janelas para ela davam, e tudo emporcalhavam com os seus dejetos. A irmã
zangava-se, ameaçava-o, mas o tenente não se emendava. Continuava.

No hospício, não vi nada semelhante. Os loucos me pareciam
pouco emotivos, e quase todos eles se queixavam dos seus parentes e das suas
mulheres.

V. O. abrangia, na mesma queixa, a mulher, a sogra e os irmãos; o
F. P. descompunha os irmãos e afirmava em alto e bom som que havia
de falar mal da família até morrer.

Na minha convivência, ou melhor, nas minhas convivências com
loucos, dois ou três vi chorar. O tal rapazola da cama, à esquerda
da minha; e um outro, na janela do salão de bilhar, quando delirava.
Alguém repreendeu-o por isso, mas ele, com propriedade e urbanidade,
respondeu:

– O senhor nada deve observar-me, porque não sabe quais são
os meus sofrimentos.

Como dizia, porém, eu tive que ir para a biblioteca ler, por causa
do meu companheiro de dormitório. Tinha evitado travar relações
com ele, mas, aos poucos, pedindo fogo e outros pequenos favores muitos, fomos
travando conhecimento mais profundo.

Era um rapaz pálido, de feições delicadas, franzino,
que vivia sempre com um lenço na cabeça, bem molhado. A princípio,
julguei que fosse para manter a pastinha inalterável, com o seu vinco
muito nítido no meado da cabeça; mas, bem cedo, vi que não.
Uma noite, delirando, ele gritou:

– Estão me queimando a cabeça!

Atinei logo com o seu delírio, e em breve ele explicou todo o seu
sofrimento imaginário, fazendo questão de que eu escrevesse
e tirasse nota do que ele me expunha.

Trouxe-me escrito o seguinte:

[ …. ]

Deu-me isto a lápis, em papel amarelo de embrulho, dizendo-me: "resolva
este problema". Mas não esperou a minha resolução,
ele mesmo se encarregou de explicar-me a coisa, e eu pude registrar, mesmo
à vista dele, alguma coisa, o essencial do seu delírio. Dizia-me
ele:

[ …. ]

Quando me explicou isso, foi nas primeiras horas do dia, depois do café
matinal, e não me deu tempo de ler os jornais. Quando voltei do almoço,
às nove e meia, pude fazê-lo, mas acabado que ele foi, ele reencetou
a explicação, e, para me livrar dele, fugi para a biblioteca.
Lia eu o doutor Jousseaux, um livro sobre a geologia e fisiografia do Mar
Vermelho, aqui e ali, interessante, no maior sossego, pois éramos dois
malucos dos menos malucos – eu e o E. P. (o da cabeça branca)
– quando vi que o inspetor seguia um visitante vestido de casimira,
sem ar de médico, e entrava ele pela seção com o máximo
desembaraço. Ele deu comigo e eu com ele, encontrando-se os nossos
olhares. Pareceu-me já tê-lo visto e a ele, não sei porque,
suspeitei que acontecesse a mesma coisa em relação a mim.

Quem é? Quem não é? Soube-se logo que era um dos fiscais
do governo para casas de saúde e recolhimentos.

Logo que se soube isso, toda a seção se pôs em polvorosa.
Não houve quem não apresentasse a sua queixa. V. O. fez um discurso
e leu representações, cartas, que eu tinha corrigido e mesmo
escrito. Ficou muito contente, porque o doutor ia tratar de tirá-lo
de lá, tanto, isso depois, que ele sabia (ele sempre sabia do que se
passava fora do alcance das suas vistas e ouvidos) que o fiscal falara a respeito
dele, V. O., energicamente, com a alta administração.

O meu vizinho do holofote do monte Ararat não lhe deu a mínima
importância. Limitou-se a perguntar, horas depois da saída do
tal fiscal:

– Quem é esse doutor boa-vida que aí esteve?

Mais feliz do que V. O., ele se ria de todas as providências e solicitudes
do governo. O fato é que o tal doutor boa-vida, como o chamou o A.
de Oliveira, devia ter voltado para a casa, meditando sobre os percalços
de visitar casa de loucos.

Quando saiu, deu por falta de sua bengala com castão de ouro…

X

Sem data

O meu transplante forçado para outro meio que não o meu. A
necessidade de convivência com os de meu espírito e educação.
Estranheza. A minha ojeriza por aqueles meus companheiros que se animam a
falar de coisas de letras e etc. O J. P., que se animava a discutir comigo
Zola e falar sobre edições, datas, etc. Entretanto, eu gostava
dele. Ri-me mais que nunca quando, percebendo tudo isto, lembrei-me que me
supunha um homem do povo e capaz de lidar e viver com o povo. Concluí
que nem com ele, nem com ninguém. Lembrança da mulher, a única
que podia ter feito viver comigo e eu não compreendera.

* * *

Cigarro. Insistência em pedir. Negar. Arrependimento. O caso do velho.
Remorso: dei o cigarro, muito depois de tê-lo negado.

* * *

Um pequeno meteu-se no porão, armou-se de tijolos e ameaçou
não sair de lá. Os guardas entraram lá com escudos de
travesseiros.

* * *

Um maluco vendo-me passar com um livro debaixo do braço, quando ia
para o refeitório, disse: – Isto aqui está virando colégio.

A Noite, de 15-1-20, sobre desapropriações.

* * *

Dia 16-1-20.

Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar
terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja um dia bonito como
o de hoje.

* * *

Os sábios que seguiram Napoleão na expedição
do Egito, montavam em jumentos. Quando os mamelucos ameaçavam um ataque,
ao formar um quadrado, os soldados gritavam: "No centro do quadrado,
os asnos" – "Au centre du carré, les ânes"
– porque estavam montados em burricos.

* * *

What is gipsy?

* * *

O engenheiro diz que o Pires de Albuquerque foi promovido devido a ele, tendo-lhe
dado até dinheiro.

* * *

Revolta das mulheres por causa da comida. Loucas e enfermeiras. Diferença
entre a reclamação delas e a dos homens, que foi anteriormente.

* * *

Conversa de loucos. Dificuldade de reproduzi-la e o delírio também.

* * *

Rabelais XIII.

* * *

Abelardo: Viveu infeliz e morreu humilhado, mas teve a glória e foi
amado.

* * *

O B., homem de mais de cinqüenta anos, dizia ter oito ou nove anos e
tomava a bênção a outro doente (V. O.).

* * *

Há um doente, o tal dos berloques, que toca piano, é o que
toca melhor; ele toca coisas do meu tempo de rapazola, quando eu dançava.
Observo o seu modo de tocar. Embrulho. O Hino Nacional. Nunca acaba.

* * *

C. B., jogando xadrez, vai muito bem e de repente vem-lhe o delírio
e complica tudo.

* * *

Comparar com o bilhar. Por quê?

* * *

Quem toca é o tal bacharel que se condenou à mudez. E…, M…,
o velho que dizem matou a mãe, quase mudos. Observar as reações
da loucura sobre a articulação da palavra; alguns, trôpegos
de língua; alguns balbuciam, e outros, quase mudos.

* * *

B., quase preto, o terror da enfermaria. A briga dele com o Gato, o Caranguejo.
Falar desse tipo curioso de maníaco.

* * *

Eu vi o P. esfregando o assoalho com a vassoura pesada.

* * *

A., companheiro de dormitório; tem a mania de trazer a cabeça
molhada e os cabelos presos por um lenço fino. Uma noite, despertou
gritando: Estão me ateando fogo na cabeça! Dorme com uma venda
nos olhos e tem ao lado um verdadeiro guarda-comidas. Mania literária.

* * *

Um velho português que tem a vaga semelhança com Francisco José,
imperador da Áustria, se crê por isso imperador. Seção
Pinel.

* * *

Haverá contágio na loucura? Creio que sim. Ambiência
do hospital. A imitação como própria à natureza
da nossa inteligência. Notar P. imita dois loucos: C. B. (tenente) que
dá para bater portas e cadeiras, dá murros na mesa, etc., e
Pereira, que imita dar traques. Este é copiado por diversos. As falas
com que acompanham os gestos com a boca não se podem repetir: são
porcas demais.

* * *

A princípio ninguém me procura. Da outra vez, fui muito. Sou
muito estimado na Rua do Ouvidor; mas quem não o é aí?

* * *

O F. P. batuca no piano coisas tão estúpidas como a sua loucura.
Não sei como o povo julga que a loucura é sintoma de inteligência
e de muito estudo. No hospício, não se vê tal coisa.

* * *

Um louco perguntou-me se Lisboa ficava em Minas Gerais e V. O., aliás
doutor, não sabia onde ficava Blumenau.

* * *

Diz F. – está há vinte e seis anos, tendo entrado com
vinte e oito – que as mulheres temem refeitório devido à
revolta do João Cândido.

* * *

Há três doentes que mataram ou tentaram matar as mulheres, dos
quais dois são oficiais do Exército, sendo que um nada tem.
É o engenheiro, o tenente e o Tenente P. M.

* * *

A força da loucura do V. O. está nas suas pretensões
intelectuais. Ele me disse que tem os instrumentos de engenharia mais aperfeiçoados,
e um teodolito, caríssimo, [ilegível], e uma bússola
que faz levantamentos automáticos e os registra numa espécie
de fita telegráfica, indo no bolso. Instrumentos de cirurgia, etc.
A sua casa é uma lindeza de coisas pequeninas, até a mesa de
operações é de tamanho de uma boneca. Quando mora em
sobrados, tem as flores em potes. Entre elas, catléias, catléias
em pote!

* * *

Dia 20-1 -20.

Hoje, o D. E., sobrinho de um funcionário daqui, embriagou-se e, no
furor alcoólico, conseguiu subir até o telhado de uma dependência
do hospício e de lá, prorrompendo nos maiores impropérios,
pôs-se nu em pêlo, enquanto bebia aguardente. Na hora do café,
lá estavam os caibras ou coisa parecida. Alguns têm um ar bom
e modesto; mas outros têm a morgue de estudantes. Eu já tive.

* * *

Houve festa na capela e ao sair do café (à uma hora) cruzei-me
com os padres. Que lorpas! E a constituição! Padres como esses
não fariam mal, se não fossem eles a guarda-avançada
do estado-maior jesuítico que nos pretende oprimir, favorecendo os
ricos e pavoneando os seus preconceitos.

* * *

D. E. Veio o corpo de bombeiros, com uma escada, para tirá-lo de cima
do telhado. Ele partiu as telhas e pôs-se a atirá-las em cima
do povo que assistia o espetáculo do lado da rua. Não parece
intimidado. Está seminu e, apesar de saber perfeitamente que está
tomado de loucura alcoólica, de pé, na cumeeira do pavilhão,
destinado à rouparia, como que vi, naquele desgraçado, a imagem
da revolta.

Esse acontecimento causa-me apreensões e terror. A natureza deles.
Espelho.

* * *

Guardas e bombeiros conseguiram apanhar o homem e amarrá-lo. Ele estava
acocorado na borda da emalha, acocorado da forma daqueles animais fantásticos
que se vêem nas cimalhas das igrejas góticas. Suspendeu o trânsito,
durante mais de uma hora. O edifício ficava no canto da Rua General
Severiano.

* * *

O F. F. tinha no quarto também um estudo sobre moléstias crônicas,
em francês.

* * *

O barbeiro.

* * *

Dizia Catão, segundo Plutarco, que os sábios tiram mais ensinamentos
dos loucos que estes deles, porque os sábios evitam os erros nos quais
caem os loucos, enquanto estes últimos não imitam os bons exemplos
daqueles. Plutarco, página 178. 2v.

* * *

Ouvindo Catão, que pronunciava poucas palavras para o intérprete
traduzi-las em muitas, aos grupos, observaram estes que as palavras do romano
saíam do coração e as dos gregos da ponta da língua
(bout des lévres).

* * *

22-1-20.

Vi hoje entrar um navio à vela, sem auxílio de rebocador, com
um terço do velame. Outra impressão do vapor. Não denunciava
esforço e parecia docemente ir a navegar sereno.

* * *

O. N., o tal de engenheiro, qualificou de vermelhas as cascas das laranjas,
quando as mandou cortar pelo cozinheiro.

* * *

V. O. diz comprar um yacht logo que saísse e convidou o comandante
e o farmacêutico.

* * *

O. V. lavador de peças de roupas dos pátios. Foi aluno da Escola
de Minas. O tipo. Condenou-se ao silêncio. Gosto pela leitura. Vive
nos vãos das janelas. Uma sesta, com outros que têm a mesma mania.

* * *

O alemão grandão, que é meu vizinho no refeitório,
por ocasião do café teve um ameaço de ataque epiléptico.
Bem estúpido e malcriado. Tratar dos nomes de pavilhões e dependências.
Pinel, Esquirol – mulheres – Calmeil. O mais conhecido é
o Esquirol porque foi médico do Augusto Comte.

* * *

O F. P., a sua mania de amolar todo o dia o médico e seu esforço
para impedir que os outros fizessem o mesmo.

* * *

Juliano (Tito) César Flamínio.

* * *

Vive-se aqui pensando na hora das refeições. Acaba-se do café,
logo se anseia pelo almoço; mal se vai deste, cogita-se imediatamente
no café com pão; à uma hora, volta-se e, no mesmo instante,
se nos apresenta a imagem do jantar às quatro horas. Daí até
dormir, são as horas piores de passar.

* * *

O V. O. logo se informou de tudo, costumes dos doentes, guardas, mexericos,
puxava conversa com todos, doentes e guardas, para saber novidades.

* * *

23-1-20.

O S., que parecia idiota completo, a ponto de carregar troços dos
outros, para os dar a um meu vizinho de dormitório, desapareceu. Emoção
na seção.

* * *

O C., sempre com um pano preto. Tipo eclesiástico. Mal encarado. Companheiro
de bisca com o P. Uma voz fortemente nasal. Era tipógrafo. Tinha um
ríctus constante de mau humor e aborrecimento.

* * *

24-1-20.

Hoje, antes das sete horas, F., o que tem mania religiosa, desaveio-se com
um belga, que tem mania de milionário e condecorado, e deu-lhe um golpe
com uma faca improvisada.

* * *

Visita do procurador da República, Olinto Braga. Agitação.
Reclamação dos malucos. Inspeção das camas, etc.

* * *

Um doente chamou-o de boa-vida.

* * *

Furtaram da sala do diretor a bengala do procurador.

* * *

O A. disse que o faziam ficar sem juízo e a alma se esvaía.

* * *

O servente do laboratório. A sua pretensão. O avental que,
no interior dos hospitais, se confunde com a tal esmeralda simbólica.
Livros científicos. Meios de cultura. Não sabia francês.
Quis que lhe traduzisse páginas. Pede a P., embaraço deste.
Caso semelhante, Hospital Central, com F., diferença entre este e aquele.
João e Horácio, nos laboratórios de química da
Escola Politécnica.

* * *

F. diz que a mãe dele tem quatrocentos e vinte anos.

* * *

Suas façanhas. Casa-forte. Pai rico. Transferido de seção.
Saída da casa-forte. O […] estava no pátio na outra seção.
Negro. Vassoura na mão. Reflexões a respeito.

* * *

Vieram visitar-me o Luís Pinto, o Paixão e um amigo deste,
25-1-20, quando fazia um mês que eu aqui estava.

* * *

A loucura, a degradação humana – o horror desse espetáculo.

* * *

V. O., sua preocupação de ser o primeiro maluco que faz reclamações,
e sua pretensão de que fala muito bem e com toda a clareza.

* * *

V. O. disse-me que tinha duzentos e tantos mil-réis na palmilha da
botina; quando brigou com o Dias, disse que tinha trezentos e tantos. No dia
de São Sebastião, foi à capela do hospício pelo
correr do dia e à tarde. Voltou de lá dizendo que tinha arrematado
prendas. Estávamos no salão, e ele apontou uma menina que passava,
como tendo recebido dele o presente de uma flor arrematada. Vendo que a menina
não levava flor alguma, emendou que esta estava no chapéu. Na
ocasião da proeza do D. E. no telhado, viu a sogra e a mulher. Ele
toma-me as palavras e as repete como dele. Quando o B. quebrou o nariz do
Gato, eu, narrando-lhe o fato, classifiquei o estado do nariz do Gato como
estando à meia nau; imediatamente, contando a outro, ele repetiu a
classificação. Vendo os padres no refeitório, achei-os
indecentes, antipáticos, com ar de párocos portugueses. Ele,
na minha vista, repetiu a opinião. As cartas que lhe dou minuta, que
lhe emendo, quando eu o procuro para que ele aluda a esse serviço,
mínimo, ele desconversa. Ele é mais ignorante do que eu pensava.
É um caso interessante.

* * *

Diz Plutarco que, mais do que outra qualquer divindade, Vênus tem horror
à violência e à guerra.

* * *

Não sabe suportar nem a boa nem a má fortuna.

* * *

Há sempre prodígios, no Plutarco, até os ratos roem
o ouro do templo de Júpiter, raios advertissadores, crianças
que nascem com cabeça de elefante, eclipses, etc. Todos os seus heróis
têm filhos mais belos da cidade.

* * *

Houve quem perguntasse: bebemos porque já somos loucos ou ficamos
loucos porque bebemos?

* * *

A mania do F. P. pelos jornais que ele não lê. A razão.
Os livros também. Um livro de matemática em alemão.

* * *

Havia no hospício um louco completamente imbecil, cuja mania era tirar
os troços da cama de um e levá-los para as de outros. Constantemente
fazia isso. Hoje, 26-1-20, desapareceu-me um livro que me fora oferecido,
dentre os três que ali tinha. Além do mutismo e ficar ereto nos
cantos, a sua mania era esta. Tive-o sempre em antipatia, e o fato, que me
aborreceu muito mais, aumentou a minha antipatia por ele. Os furtos aqui,
antes dele, eram de onde em onde; agora se sucedem com freqüência.
É preciso saber que não tenho dormitório e tudo que tenho
– livros, toalha, papel, sabonete, etc. – guardo debaixo do travesseiro
ou do colchão.

Na primeira vez que aqui estive, consegui não me intrometer muito
na vida do hospício; agora não, sou a isso obrigado, pois todos
me procuram e contam-me mexericos e novidades. Esse convívio, obrigado,
com indivíduos dos quais não gostamos, é para mim, hoje,
insuportável e ainda mais esse furto e as minhas apavorantes dívidas
fazem-me desejar imensamente sair daqui. O médico me ofereceu alta,
mas não aceitei já, porque só quero sair depois do carnaval.
Demais, eu penso que o tal delírio me possa voltar, com o uso da bebida.

Ah! Meu Deus! Que alternativa!

E eu não sei morrer.

* * *

Sarará das drogas, o tal chibante, tem o cabelo crespo. Para assentá-lo,
usa uma touca e naturalmente vaselina. Dorme com a touca e a usa pela manhã
em fora.

* * *

V. O., desde dias, vinha brigando com M. Antônio, guarda, o substituto
de Dias, na inspetoria da seção. Sabendo aquele que ele tinha
uma tesoura em seu poder, tomou-a. Ele se enfureceu e disse que tinha um punhal;
deram uma busca mais rigorosa e descobriram que ele furtava roupas particulares
de outros doentes, cujas marcas trocava. Além disso, encontraram uma
chave da porta dos fundos.

* * *

O caso dos jornais atrasados e a sua prisão no dormitório-cárcere.

* * *

A sala de bilhar é uma das melhores peças da parte do edifício
que ocupamos. Fica no extremo da ala esquerda do hospício. Tem três
janelas de sacada para a frente, que olha para o mar; e três outras
do lado esquerdo. Já foi melhor mobiliada. Nas paredes há quadrinhos,
com recortes de revistas ilustradas, emoldurados modestamente com passe-partout
improvisados. Representam castelos nas pontas de montanhas, com torres cilíndricas
com os tectos cônicos, das condessinhas do século XIII ou XIV,
paisagens de Estaque, no inverno; uns carvalheiros sem folhas ou peupliers
tristes. Há um desenho de um senhor gordo deitado num divã rico,
ele mesmo em vestuário de baile, que me parece ser de Leandro.

Quem teve esse trabalho de decoração? Há vestígios
de que foi pessoa de gosto e educação.

* * *

Dia 27-1 -20.

Logo após o café, o V. O. provocou um barulho dos diabos com
o F. P., porque este tinha sido transferido para um quarto melhor, com cômoda,
etc., e não pagava nada, enquanto ele pagava quinze mil-réis
e não tem essas regalias. Trocavam insultos mutuamente os mais vis
e baixos. V. O. mostrou todo o seu fundo de soberba, de presunção,
de vaidade e mesquinharia. Entretanto, ele não paga.

* * *

Tem-se na conta do doente mais rico, mais importante, o que mete medo aos
guardas, aos médicos, ao pessoal superior.

* * *

A sua loucura veio-lhe da vaidade doentia.

* * *

O T., o tal que matou o rival em amor, diz que viveu doze anos num ovo.

* * *

V. O. tem o riso algo parecido com o J. B. e algumas vezes sublinha as frases
com contrações da fisionomia e do canto dos lábios, e
tem gestos parecidos com ele.

O riso é antipático. Dostoiévski diz que se o riso de
um desconhecido é agradável, ele é homem honesto. O do
V. O. é desagradável, soa como um chocalho de coco ou cabaça.

* * *

Há outro caso de imitação entre loucos: um doente que
esteve na minha seção foi transferido para outra e lá
espiava o A., que vivia pelas salas e corredores a dizer coisas desconexas,
palavrões, e repetir, a espaços, a palavra pinacoteca, derivadas
e ou acompanhadas de outras, que não fazem sentido com ela. Ao imitador
não vi, mas fui informado por pessoa segura que andava de um lado para
outro a dizer: pinacoteca, Piabanha.

* * *

O doente borrado, seminu, o seu aspecto horripilante.

O seu maneio de sombra no corredor.

* * *

Gabrielle Coni – Vers l’oeuvre douce e Fleurs de l’air.

* * *

Annuaire international du crédit public.

* * *

Attala.

* * *

Dia 27-1-20.

Revolta dos presos na casa-forte, às sete horas da noite. Baderna,
etc. A revolta é capitaneada pelo D. E., o tal que subiu no telhado.
Estão chegando bombeiros e força de polícia. Previ isto.
Os revoltosos são vizinhos de quase metade da Seção Pinel.
Armaram-se de trancas. Vejo-os cá de cima. O resto da Seção
Pinel mantém calma. A nossa está quase sem guardas nem enfermeiros,
mas a atitude de todos é de curiosidade. Um acontecimento desses quebra
a monotonia e distrai. O Ferraz diz que o Santana é vítima de
inimigos traiçoeiros, por ser mulato. Santana é um velho empregado
da assistência e muito bom para os doentes em geral. Ferraz, em seguida,
acrescenta que ele é um homem velho, tem quatrocentos e vinte anos,
já foi Márcio Néri e outros despautérios que eu
não pude guardar; mas pode com eles todos. O que é evidente
é que alguém fornece meios e modos ao D. E. para ele fazer esses
escândalos todos, no intuito de desacreditar alguma pessoa influente
no hospício ou mesmo toda a diretoria. A rua encheu-se; há um
movimento de carros, automóveis com personagens, e força de
polícia e bombeiros; há toques de corneta – um aspecto
de grosso motim.

Consta que ele lançou cimentos e varões de ferro. Já
tenho medo de ficar aqui.

* * *

Há alguns que não são aparentemente doentes, mas que
em dados momentos se denunciam em contrário. Os epilépticos,
os sujeitos a certas manias que têm um delírio de tempos em tempos.
Conheço o E. P. desde que entrei aqui, como homem polido, de certa
educação, serviçal, não aparentando a menor mania,
senão a de não sair daqui. Foi estabelecido com tabacaria e
mostra ter boas relações de amizade. Uma vez atrasou-se no banho;
o guarda, ao passar pelo banho para o café, disse-lhe uma coisa sem
importância, ele vestiu-se rapidamente, chegou a tempo, o guarda repetiu
uma pilhéria sem alcance e, por isso, ele se fez pálido, beiços
roxos e tremendo que nem uma pilha. Que seria capaz de fazer?

* * *

28-1-20.

O diretor proibiu a entrada dos jornais.

* * *

O F. P. atirou fora os abacates que lhe deram, porque os temperaram com açúcar
de terceira. Ele é branco de primeira ordem e não negro, nem
mulato, para usar tal açúcar.

* * *

O nu no hospício. A Liga pela Moralidade. Poucos homens bem feitos;
o mesmo no banho de mar. Um único eu vi no hospício. Era um
rapaz moreno, olhos e sobrancelhas negras, assim como os cabelos, de um negro
bonito e luzente. Perfeitamente imbecil, olhava-me com um sorriso parado,
sem dizer nada e nada pedir.

* * *

Os jornais foram proibidos, mas todos tinham jornais, entre eles o F. P.
e o tal engenheiro C. P. Aquele meço bem alto, que não emprestava
a ninguém, olhando para mim, ele que não cessa de pedir-me cigarros,
fósforos, jornais e até dinheiro, eu lhe dei para comprar revista.
Contudo, o Gastão dos cigarros guarda um para mim. O maluco é
em geral mau e egoísta, especialmente o Porto, cujo delírio
é de grandeza. Raro é o liberal e agradecido. Só aqueles
que caem em profunda loucura é que perdem o sentimento de propriedade.
Descobri quem me furtou o livro. Foi o Gato a quem tratei bem e nunca lhe
atirei chufas. Deu-o ao Gastão, que viu meu nome e não mo restituiu.
Este G. é um rapazola de que já falei, e não tem nada
de louco. Simplesmente sujeito a ataques. A Esse tempo, agarrou de aborrecer-me
muito, tenho feito muitos obséquios. Este pequeno tem de sair daqui,
por força; é muito moço e não tem cura; mas terá
um mau destino.

* * *

Convém falar no J. C., de Santa Teresa, um louco. A sua loucura. A
história dos seus estudos, as suas crises, apelo a misticismo, vícios,
etc.

* * *

Custa a crer que esses loucos, dois principalmente, V. O. e F. P., me aborrecem
e irritam-me. Esqueço de que são loucos e dá-me vontade
de vociferar. Vou pedir alta, para não dar essa demonstração
de loucura.

* * *

– "Un partenaire au jeu est un individu trés émerdant.
Toujours il me demande: Est-ce que vous connaissez monsieur un tel? En attendant
ma repouse, il dit: Ce monsieur un tel est marié avec ma cousinne qui
est fille du docteur un tel. Connaissez vous? – Non. – Au moins
le docteur… II a été une notabilité à Valparaiso.
– Non. J’avait dit à lui que je suis été
au Hospital Central. – Vous avez connut sans doute le general Travassos.
Je me fache et en tire faché. Je dit: – Hier j’ait dit
ainsi que je mis été au H. C. le dernier année. Oh! Mon
Dieu de la France! J’étouffe."

* * *

F. Porto diz que é tão inteligente que, depois de seis meses
de estudar latim, pôs-se a declinar grego, enquanto o irmão levou
dois anos para traduzir Virgílio.

* * *

O Torres matava camundongos, pelava-os, estripava-os, para dar aos gatos,
a fim que não tivessem trabalho de fazer isto.

* * *

As rixas! Os heróis delas.

* * *

A loucura do cigarro. Um doente, homem rústico, tipo de nosso roceiro,
veio para o meu dormitório. Nos primeiros dias, passou bem; mas, não
recebendo visitas e, conseqüentemente, fumo ou cigarro, perdeu a quietude
e ficou doido. Descrever a noite.

* * *

No salão, havia um recorte representando uma pescaria de fúcea
feita por mulheres de coifa, à noite ao luar.

* * *

Telefone do Schettino – 3863 C

* * *

"As leis são como as teias de aranha que prendem os fracos e
pequenos insetos, mas são rompidas pelos grandes e fortes." –
Palavras de um sábio cita Anacársis, citado por Plutarco, na
vida de Sólon.

* * *

A., primeiro, repetia – suavemente perfumas a tua lembrança
– frase que ele encontrou num livro que me deram.

* * *

Este mesmo fez-me ler, na biblioteca, a Dor do Alcindo, com má prosódia,
em que pronunciava "inercia" e "esteríl." Aconselhou-me
que a lesse, porque educaria melhor o meu espírito que o livro de Renan
que estava lendo. Lia um artigo sobre Amiel. A Dor está no volume 24
da Biblioteca das Obras Célebres.

* * *

Leio o Plutarco (hospício) vida de Coriolano a Alcibíades.
Ambos puseram os seus talentos a serviço dos inimigos de sua pátria,
por despeito de serem perseguidos politicamente. Temístocles matou-se.
O beócio P. considera todos os três homens ilustres; hoje, aqueles
dois não tomariam arma, mas vendê-la-iam em convênios e
declarações de guerra, mediante ouro do estrangeiro.

* * *

Não esquecer o poltrão do Veiga. Tipo de débil mental.

2ª parte: CEMITÉRIO DOS VIVOS

[FRAGMENTOS]

I

Quando minha mulher morreu, as últimas palavras que dela ouvi, foram
estas, ditas em voz cava e sumida:

– Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga,
num livro.

Ainda durou cerca de dois dias, mas quase sem fala. Balbuciava unicamente;
em geral, não entendia o que queria por aí, mas pelos gestos
e sinais que fazia.

Nas ocasiões em que me aproximava dela, nos seus últimos momentos,
o seu olhar de moribunda tinha uma doce e transcendente expressão de
piedade. Era como se ela dissesse: "Vou morrer! Que pena! Vou deixá-lo
só por este mundo afora".

Para o filho, que andava próximo dos quatro anos, não lobriguei
nos seus olhos uma tão profunda manifestação de comiseração.
Parecia-lhe, certamente, que ele seria mais feliz do que eu. Não sei,
não me recordo se, logo após a sua morte, pus-me a pensar nas
suas palavras, a bem dizer as últimas, e no meu casamento e outros
fatos domésticos. Mas o certo é que elas me ficaram gravadas;
e nunca mais se foi de mim a imagem daquela pobre moça a morrer, com
pouco mais de vinte e cinco anos, e o sentimento da dor que se lhe estampava
no olhar místico, por me deixar no mundo, dor que não era bem
de mulher, mas de mãe amantíssima.

O melhor é contar como foi o meu casamento, um pouco da minha vida,
para que se possa bem compreender porque esse espetáculo doméstico,
em geral de tão pouco alcance, trouxe para mim conseqüências
desenvolvidamente dolorosas, um verdadeiro drama psicológico e moral,
que todas as satisfações posteriores não puderam dar
termo na minha consciência, nem tampouco o trabalho e o vício.

A minha história de casamento é singular. Vou narrá-la.
Como toda a gente, quis ser "doutor" em alguma coisa. Não
tendo quem me custeasse os estudos, logo pelos dezessete anos, com uma falsa
certidão de idade, fiz um concurso em uma repartição
pública e obtive um pequeno lugar de funcionário. Minha família
vivia fora do Rio de Janeiro; e eu, apresentado por outro colega, fui morar
na pensão da viúva Dias, à rua XXX. Canhestro e tímido,
apesar de ter vivido fora do ambiente doméstico, em internatos, no
meio de meninos e rapazes desenvoltos, nunca fui dado à sociabilidade
feminina, muito menos a namoros, e sempre que, por esta obrigação
ou aquele obséquio, me impunham a tomar parte em sociedade de moças
e senhoras, saía daí aborrecido. No dia seguinte, fazia um exame
retrospectivo dos fatos da véspera e verificava, com amargura e vexame,
que tinha dado tal "rata", tinha sido ridículo, por isso,
por aquilo, e jurava não mais me meter em semelhantes rodas.

Crente da minha irremediável inabilidade para tratar com damas de
todo o jaez, evitava-lhes o comércio o mais que podia. Se minha irmã
me pedia, lá donde estava, que comprasse qualquer coisa em loja servida
por moças, dava a encomenda a outrem, para executá-la, mediante
ou não gratificação. Até agora, ainda de todo
não perdi essa cisma, pois evito comprar selos a funcionários
de saias.

Com esse gênio, não me agradou muito quando deparei na pensão
uma moça de pouco menos idade do que eu, vivendo familiarmente com
os fregueses. Era dona Efigênia, a filha da dona da casa, que superintendia
o serviço na sala das refeições. Guiava o copeiro, ralhava-o,
atendia as reclamações dos fregueses; enfim, como já
disse, vigiava na marcha das refeições das pensionistas, no
salão a elas destinado.

A velha, sua mãe, dona Clementina, ficava lá nos fundos, dosava
os pratos, racionava, como se diz hoje, e fazia outras miudezas da copa.

A descoberta da moça quase me fez abandonar o hotel de dona Clementina
Dias, no fim do primeiro mês; mas temi agastar o meu colega e parecer-lhe
ao mesmo tempo ridículo, se confessasse o motivo. Contudo, no começo,
envergonhado, quer para uma, quer para outra refeição, esperava-o
sempre para tê-lo como companhia.

Dona Efigênia, que deu com o meu embaraço, veio ao meu encontro.
Respondi-lhe às perguntas, mas temia encará-la. Com quase vinte
anos, habituado a todas as troças de rapazes, ficava que nem um seminarista
diante daquela moça.

Furtivamente, eu a observava. Não era feia, nem bonita. Pequena, mesmo
miúda, com uma cabecinha minúscula de cabelos escassos, parecia
uma gatinha, com os seus olhos estriados muito firmes de mirada, agachada
na escrivaninha alta, donde dirigia o serviço do refeitório
e aonde ficava melhor, com mais elegante figura, do que de pé, quando
a isto era obrigada, para providenciar sobre qualquer coisa em cima das mesas,
às importunações e reclamações de um dos
fregueses de sua mãe.

Assim, nessa postura, ficava inteiramente insignificante, e o seu lindo olhar
de força e penetração se sumia todo na justeza de sua
figurinha; e na rua, então, ainda mais…

Não gostava de vê-la senão na escrivaninha alta, sobre
um estrado; e era onde, positivamente, apreciava os seus olhos pardos, pequenos,
penetrantes, como que estriados, ao redor das pupilas negras.

De onde em onde, ela os punha sobre mim, denotando uma grande vontade de
me adivinhar, e eu fugia deles com medo de me trair.

No fim de dois meses, ela me fez as perguntas do costume sobre os meus estudos
e os meus avanços neles. Aborrecia-me com isto, porque já começava
a aborrecer-me com eles. O que os estudos normais e consagrados do Brasil
me podiam dar, eu já supunha ter obtido; o mais era ter um título
de que me não iria servir e só me serviria de trambolho e enfeite
de botocudo.

Não me queria absolutamente ignorante nas ciências físico-matemáticas
e estava seguro de que as noções que tinha eram suficientes.
As carreiras especiais, em uso na nossa terra, não me tentavam, tanto
mais que sabia eu, pois tinha percebido logo após a minha matrícula,
que em nenhuma delas se enriquece ou mesmo se sobe em honrarias, sem ter nascimento
ou fortuna, ou senão empregando muita abdicação de suas
opiniões, ou – o que é pior – perdendo muito de
sua autonomia e independência intelectual na gratidão por seu
protetor.

O meu esforço em "formar-me", como se diz por aí,
era para atender a um capricho de meu pai, que, até o último
momento de vida, desejou isso, para vingar-se.

É caso que ele tinha um parente ou contraparente, com quem viera às
mãos por causa de uma questão de herança do avô,
meu bisavô, portanto, e dera-lhe uns tiros. Processado, fora absolvido,
mas não deixou de passar um ano na cadeia e sofrer o suplício
moral do júri. Nunca me contara isso, mas todos que ouvi a respeito
eram unânimes em dizer-me que esse tal meu primo era um fanfarrão,
presunçoso de seu título de engenheiro pela Bélgica ou
Estados Unidos. Tratava com muito desprezo o meu pai, e este o suportava,
porque fora amigo do irmão, pai dele, de quem não tirara a bondade
e o carinho.

Antes do doloroso fato, demonstrava publicamente não querer relações
estreitas com meu pai e, a quem o inquirisse sobre a natureza de seu parentesco
com o meu genitor, respondia desdenhoso:

– É, é meu parente; mas muito longe.

Acredito que dissesse isso, porque meu pai ainda tinha em muita evidência
traços de raça negra; e o meu primo, o doutor belga, como todos
os antropologistas nacionais, põe os defeitos e qualidades da raça
nos traços e sinais que ficam à vista de todos.

No suspeito doutor americano, eles se haviam detido muito, apesar do cabelo
liso e cor de fogo.

Apesar dos tiros terem todos errado o alvo, o seu ódio se sentiu cevado.
Casou-se meu pai, vindo eu a nascer em breve, e todo o seu esforço
foi encaminhar-me para a formatura, numa escola nacional, bem direitinho,
para dar uma outra lição no filho do seu irmão mais velho,
que o era em muitos anos sobre ele, numa diferença de quase vinte.

Comecei cedo a fazer os preparatórios, senão com brilho, ao
menos com muita segurança; e cedo acabei-os; mas sobrevieram dificuldades
de família, meu pai enfermo veio a morrer, fiquei sobre mim, longe
de minha mãe e dos meus irmãos.

Tinha grandes ambições intelectuais, um grande orgulho de inteligência,
mas não sentia nenhuma atração pelo "doutorado"
nacional, eu visava o Kamtchatka, os países exóticos, as regiões
defesas à inteligência.

Ainda mais: era meu propósito ambicioso de menino examinar a certeza
da ciência e isto – vejam só os senhores – porque,
lendo um dia, nos meus primeiros anos de adolescência, uma defesa de
júri, encontrei este período:

"O réu, meus senhores, é um irresponsável. O peso
da tara paterna dominou todos os seus atos, durante toda a sua vida, dos quais
o crime de que é acusado, não é mais do que o resultado
fatal. Seu pai era um alcoólico, rixento, mais de uma vez foi processado
por ferimentos graves e leves. O povo diz: tal pai, tal filho; a ciência
moderna também."

Muito menino, sem instrução suficiente, entretanto, semelhante
aranzel me pareceu abstruso e sobretudo baldo de lógica e em desacordo
com os fatos. Conhecia filhos de alcoólicos, abstinentes; e abstinentes
pais, com filhos alcoólicos.

Demais, um vício que vem, em geral, pelo hábito individual,
como pode de tal forma impressionar o aparelho da geração, a
não ser para inutilizá-lo, até o ponto de determinar
modificações transmissíveis pelas células próprias
à fecundação? Por que mecanismo iam essas modificações
transformar-se em caracteres adquiridos e capazes de se constituírem
em herança?

Não sabia responder isto e até hoje não sei responder,
e ainda mais se me perguntava, nesse caso de alcoólico: no ato da geração,
dado que fosse a verdade essa sinistra teoria da herança de defeitos
e vícios, o pai já seria deveras um alcoólico que tivesse
as suas células fecundantes suficientemente modificadas, igualmente,
para transmitir a sua desgraça ao filho virtual?

Menino, pouco lido nessa coisa, como ainda hoje sou, a afirmação
daquele advogado de júri me pareceu menos certa do que se ele dissesse
que um desvario, um mau gênio, tinha feito o seu constituinte errar,
pecar, roubar ou assassinar. É mais decente pôr a nossa ignorância
no mistério, do que querer mascará-la em explicações
que a nossa lógica comum, quotidiana, de dia a dia, repele imediatamente,
e para as quais as justificações com argumentos de ordem especial
não fazem mais do que embrulhá-las, obscurecê-las a mais
não poder.

Sou, e hoje posso afirmar sem temor, sujeito a certas impressões duradouras,
tenazes, que me acodem todos os dias à lembrança, por estas
ou aquelas circunstâncias aparentemente sem relação com
o fundo delas. Não sei nunca por que me ficaram e, as mais das vezes,
não posso verificar o instante em que elas me ficaram.

Lembro-me de um grande pé de eucalipto que havia na estrada da casa
de um amigo de minha família, e isto vi quando tinha sete anos ou menos;
lembro-me de uma cadeira de jacarandá, estilo antigo, com um alto e
largo espaldar, em que minha avó materna sentava-se, tendo os pés
num tamborete e todos os netos sentados no chão a ouvir-lhe histórias
ou a responder as suas perguntas afetuosas, e ela morreu antes de completar
eu vinte anos; entretanto, não tinha a menor lembrança de fatos
importantes que se deram depois, quer domésticos, quer particulares
a mim, quer públicos.

Não me recordo mais quais foram os meus examinadores de História
Universal, dos seus nomes, nem das suas fisionomias. Só me lembro de
que todos os três eram velhos, bem velhos, e me tratavam filialmente.

Tinha, entretanto, já treze anos de idade.

Esse fraseado de advogado, que mais acima citei, jamais me saiu da memória.
De mim para mim pensei: se um simples bêbedo pode gerar um assassino;
um quase-assassino (meu pai) bem é capaz de dar origem a um bandido
(eu). Assustava-me e revoltava-me. Seria possível que a ciência
tal dissesse? Não era possível. Havia ali, por força,
uma ilusão científica, um exagero, senão uma verdadeira
imperfeição; e o meu pensamento de menino foi estudá-la,
mas bem depressa, depois que a freqüência das prédicas positivistas
deram-me, por negação, algumas vistas sobre as bases metafísicas
das ciências, planejei estudá-las, decompô-las e marcar
o grau de exatidão dos seus métodos, a sua conexão com
o real, a deformação que ele trazia ao que passava de fato bruto
para o dado na teoria científica; havia de aquilatar a colaboração
da fatalidade da nossa inteligência nas leis, na contingência
delas, as idéias primeiras – todo um programa de alta filosofia,
de alta lógica e metafísica eu esboçava nas voltas com
o cálculo de "pi".

Parecia-me que estávamos, quanto à experiência, ao método
experimental, caindo nos mesmos erros e exageros que os escolásticos
medievais com os seus princípios aristotélicos, seus silogismos
e outras ilusões e preconceitos lógicos, bem etiquetados, enfileirados
e disciplinados. Sobretudo, no que tocava aos confins da biologia e do que
chamam sociologia ou estudos sociais, havia vícios insanáveis
de pensar, e tudo o que parecia indução, resultado de experiências
honestas e conclusões de documentos que os eqüivaliam, devia merecer
uma crítica rigorosa, não só dessas experiências
e documentos, como também dos instrumentos de observação
e de exame – crítica que, neste e naquele ponto, já vinha
sendo feita por espíritos mais livres, mais ousados, libertos das tiranias
da tradição das academias e universidades.

Tinha firme o propósito, quando pisava a pensão, de abandonar
o que vulgarmente se chama, entre nós, estudos superiores e fazer com
todo o afinco, segundo programa meu e o destino que tinha em vista, o que
entendesse e da forma que entendesse.

Por isso eu me aborrecia, como já disse, quando dona Efigênia,
com toda a sua unção de mulher e de moça, me perguntava
pelos meus estudos oficiais.

De acordo com o meu sistema, a ninguém fizera confidência dessas
minhas tenções. Tinha para mim que todos, admitindo que eu fosse
capaz de tudo ser, até poeta, haviam de rir-se do meu singular e estupendo
plano de trabalhos intelectuais. Se não me julgassem totalmente incapaz,
certamente haviam de aconselhar-me:

– Bem! Está direito! Mas você pode formar-se, pois uma
coisa não impede outra.

Impedia, sim. Com o diploma, o "pergaminho" da superstição
popular, não permitia a censura geral que havia de reagir sobre mim,
que ficasse eu copiando ofícios numa repartição do governo.
Tinha que obter um emprego adequado ao meu título, para isto era necessário
dar passos que me repugnavam: arranjar pistolões, mendigá-los
mesmo, para me colocar e, de acordo com a alta conta em que então tinha
as minhas faculdades mentais, para não fazer feio, estudar, estar ao
par das coisas da profissão de que o Estado me investira solenemente,
num canudo de folhas-de-flandres, curtindo um papel encorpado e uma caixa
de prata com selo de lacre.

Sobretudo este último passo não me convinha dar. Queria depender,
o menos possível, das pessoas poderosas, as únicas capazes de
me darem um emprego, e, conquanto elas nada exigissem, eu ficava tacitamente
obrigado a não expender umas certas opiniões radicais sobre
várias questões que as podiam interessar proximamente. De resto,
aplicar-lhe, ao estudo de uma profissão liberal, o que exigia o meu
amor-próprio, se a fosse exercer, seria desviar da aplicação
normal, da inclinação natural e espontânea da minha inteligência,
que não me levava para isso.

Sem nenhuma autoridade moral sobre mim, pois a única que tinha era
meu pai, que morrera, estava firmemente decidido a executar o meu plano de
vida, sem atender a conselhos quaisquer.

Mandaria às urtigas o "pergaminho", o canudo, o lacre, o
grau, o retrato de tabuleta, numa casa de modas na Rua do Ouvidor, e resignar-me-ia
a ser tratado desgraciosamente por "seu fulano".

Aquele ano em que fui para a pensão da viúva Dias, ainda resolvi
freqüentar, por minha conta e risco, sem cuidar da seriação
oficial das matérias, certas aulas da escola, para aprender umas dadas
noções e idéias que julgava necessário tê-las;
mas, no ano seguinte, não mais lá iria. Foi quando apareceu
dona Efigênia.

Apesar de fugir dela, a moça estava sempre a puxar-me pela língua.
Não sabia a que atribuir essa irresistível simpatia que se denunciava
assim por mim. Não me tinha como repelente, julgava-me mesmo simpático
para os rapazes e homens; mas supor que o mesmo fosse para raparigas e moças,
era vaidade que não penetrava em minha pessoa.

Ao menor pretexto, conversasse ela qualquer coisa com outro comensal da pensão,
voltava-se para mim e indagava:

– Não é, seu Mascarenhas? Não é assim?
Não é isso?

E deitava sobre mim aquele seu olhar de flecha, que fazia baixar o meu, timidamente.

Estava sempre a procurar jeitos e modos para que eu falasse. Ora falava-me
na guerra russo-japonesa, ora sobre os méritos de uma dessas efêmeras
celebridades que os jornais noticiavam a sua estadia; e eu respondia com muito
acanhamento e timidez, e até, em começo, com certo mau humor.

Aos poucos, porém, fui perdendo o medo; e, por fim, já dava
respostas mais longas, sustentava a palestra, levantava o olhar, não
me limitando a respostas secas e curtas.

Seguiu-se o capítulo dos livros emprestados: romances, livros de versos.
Com as minhas fumaças de filósofo e sabichão adolescente,
desdenhava tudo isso, muito tolamente, porque ainda não houve sábio
ou filósofo de verdade que os desdenhasse, a não ser os do Brasil,
que o são em família e, mal morrem, todos se esquecem deles
e da sua portentosa mentalidade inovadora.

As minhas leituras literárias eram poucas. Em menino, lia os autores
nacionais: Alencar, Macedo, Manuel de Almeida, Aluísio, Machado de
Assis; e também os poetas: Gonçalves Dias, Varela, Castro Alves
e Gonzaga, de quem soube de cor várias liras da Marília de Dirceu.
Júlio Verne, porém, era o meu encanto, pois me fazia sonhar
no concreto de novas terras, novos mares, novos céus e até novos
meios diferentes dos possíveis de admitir, mesmo imaginando.

Depois dos dezesseis anos, pouco procurei literatura, a não ser o
Paulo e Virgínia, o D. Quixote, o Robinson, que são livros geralmente
conhecidos e universalmente prezados.

Não os tinha porém, para emprestar à moça, e
tive que os pedir, por empréstimo, para ser galante e serviçal.

A mos emprestar, era um meu colega, Nepomuceno, positivista simpático,
pela mão do qual fui às conferências do senhor Teixeira
Mendes e a outras festividades da Religião da Humanidade. A minha passagem
pelo positivismo foi breve e ligeira. Freqüentei o apostolado cerca de
um ano; mas, apesar de me ter convencido de muita coisa da escola, eu, até
hoje, nunca pude acreditar que aquele conjunto de doutrinas, capazes de falar
e seduzir inteligências, fosse capaz de arrebatar corações
com o ardor e o fogo de uma fé religiosa.

Deu-me, entretanto, a freqüência daquela curiosa igreja, o gosto
pelas leituras de autores antigos, dos mestres que todos nós, em geral,
só conhecemos de nome ou por citações de citações.

Lembro-me bem que lá adquiri uma brochura do Discours de la Méthode,
de Descartes, em tradução. Lia-a com atenção,
sem fadiga, antes com prazer. O que me encantou no livrinho do filósofo
francês foi preconizar ele a dúvida metódica, senão
sistemática, a tábua rasa preliminar, para se chegar à
certeza. Quando, mais tarde, pude ler, nos resumos, as suas Meditações
Metafísicas, a minha admiração cresceu ainda muito, aumentou
sobremaneira, não tanto que o seguisse tão rápido quanto
ele, da análise e da crítica, à construção
final… Demorava-me na análise…

Além disto, gostava de História e dos estudos históricos
e sociológicos das civilizações; dos filósofos
franceses do século XVIII, constituí durante muito tempo minha
leitura predileta. Tive mesmo, por aqueles tempos, um magnífico exemplar
da Esquisse d’un tableau du progrés de l’espirit humain,
seguido de vários opúsculos de estudos sociais de Condorcet,
exemplar que não sei que sumiço teve.

Com tais leituras rebarbativas, senão pedantes, e a biblioteca ortodoxa
do Nepomuceno, via-me às vezes muito embaraçado, quando dona
Efigênia me pedia:

– Doutor Mascarenhas, o senhor não tem os versos do Bilac?

Não me vinha felizmente a burrice de dizer que os não lia;
mas, constrangido, dizia que não tinha. Se dissesse mesmo que não
lia, seria rematada hipocrisia, pois o fazia com emoção e gozo,
em toda a parte que os encontrava.

A moça, porém, insistia:

– Veja se me arranja.

– Vou ver.

Dava-me com um rapaz do Ceará, meu colega de curso, de nome Chagas,
vadio que nem ele, mesmo estróina e desregrado, mas inteligente, bom
camarada e dado a versos e a poetas, em cujo meio vivia. Possuía muitos
livros de versos e outros de autores literários que eu me abstinha
de ler. Morava na mesma casa de cômodos que eu, à rua do Lavradio,
o famoso 69, que conheceu gerações e gerações
de estudantes. Era um sobradão de dois andares e loja, que devia ter
sido construído nos fins da Regência ou no começo do Segundo
Reinado, forte, com amplas salas, áreas, mas assim mesmo escuro, iluminado
somente por aquela meia-luz dos templos e dos mosteiros. Chagas levava na
troça o meu positivismo, mas éramos amigos. Pedi-lhe o livro
de Bilac. Ele sorriu e disse-me, entre malicioso e contente:

– Você está namorando, Mascarenhas?

– Porquê? Homessa!

– Qual! Você, positivista, lendo Bilac – não é
possível! Isto é para "alguém", seu manata!
Vou emprestar a você o Bilac e é já!

Nunca me tinha passado semelhante coisa pela cabeça, pois me julgava
completamente inapto para semelhante atividade e conformava-me orgulhosamente,
por julgar tal incapacidade de bom augúrio, para realizar os estudos
que meditava. Chagas, porém, fez-me ver melhor a mim mesmo, examinar
mais detidamente as minhas atitudes diante da moça e as modificações
que elas tinham sofrido, naqueles oito meses de convivência pelo jantar
e pelo almoço. Não deixava de ter ele razão, em parte…

Não me assustei com a descoberta e, daí por diante, as minhas
relações com a moça, filha da dona da pensão,
se estreitaram; e a minha solicitude pelas suas leituras chegou a tal ponto,
que eu mesmo comprei livros para emprestar-lhe e até lhe dar. Ela passou
a chamar-me somente por "doutor"…

Uma manhã, levei Chagas a almoçar comigo. Chagas era um excelente
rapaz de coração, generoso, cavalheiro, poeta sem verso nem
prosa, mas tomava para mexer comigo, no dizer familiar, uma atitude satânica
e cínica. Logo que entrou e deu com a moça, disse-me em vez
baixa:

– Olha que ela não é má, Mascarenhas. Para Musa
é pouco escultural, tem muito pouco de Deusa; na rua das Marrecas,
há mais perfeitas; mas, para o fabrico dos feijões e dos bebês,
deve ser excelente.

Fechei a cara e Chagas não continuou nesse diapasão.

Veio o Pinto, um dos fregueses da viúva Dias, e, não havendo
lugar nas outras mesas, sentou-se na nossa, justamente na cabeceira. Empenhou-se
em uma conversa com Chagas, sobre Zola. Esse Pinto era um rapaz do comércio,
que vim encontrar mais tarde em circunstâncias bem tristes e de que
falarei com vagar no decorrer desta narração; era inteligente,
curioso, razoavelmente lido, tendo feito a sua educação e instrução
por si. Gostava de Zola, mas Chagas, que era nefelibata, decadente, símbolista
ou coisa parecida, detestava o romancista francês.

Tanto eu como o Pinto, pouco ou nada sabíamos dessas coisas de escolas
literárias; e Chagas, apesar de enfronhado e devoto desses assuntos
de literatura, não explicava claramente, nitidamente, a diferença
ou as diferenças que existiam entre elas. Falava nevoentamente, com
grande calor, frases bonitas e novas; mas não as definia cabalmente.
A discussão foi absolutamente inócua, mas a moça seguiu-a
com atenção e, com algum travo de ciúme, observei que
ela bebia, saboreando, o palavreado de Chagas.

No dia seguinte, ou no jantar desse mesmo dia – não me recordo
bem – ela, mal me sentava à mesa para tomar a refeição,
ela se dirigiu a mim e perguntou-me:

– Doutor Mascarenhas, aquele seu camarada que almoçou consigo,
falou nos Cegos, de um autor belga, cujo nome…

– Maeterlinck.

– É isto. Ele terá?

– Não sei; mas, se tiver, há de ser em francês.

– Não faz mal; serve assim mesmo.

Muito indelicadamente, perguntei sem reflexão:

– A senhora lê francês?

– Com dificuldade, respondeu ela, mas leio. Aprendi com as irmãs,
no colégio.

Trouxe o livro que, de fato, Chagas possuía; e esse episódio
me passou com muitos outros que, por aqueles tempos, me pareceram sem importância.

Escrevendo estas linhas hoje e percorrendo na lembrança toda a minha
vida passada, causa-me assombro de que, em face de todos esses episódios,
a minha atitude fosse de completo alheamento. Mais do que os grandes acontecimentos,
na nossa vida, são os mínimos que decidem o nosso destino; e
esses pequenos fatos encadeados, aparentemente insignificantes, vieram influir
na minha existência, para a satisfação e para o desgosto.
Entretanto, quando se davam, eu me limitava a responder o que ela me perguntava
e, sem força de consciência, fazia uma observação
banal.

Foram precisos muitos e dolorosos acontecimentos, erros e guinadas, na minha
vida, para que eu os reunisse todos na imaginação e reconstituísse
com eles a figura excepcional de minha mulher, que eu não soube ver
quando viva.

Não era menino, mas o meu sonho interior, o meu orgulho, o pavor de
parecer ridículo, de mistura com uma forte depreciação
a que, à minha personalidade, eu mesmo tinha levado, tudo isso e outros
fatores difíceis de registrar contribuíram para que eu não
visse, ou mal visse, a alma excepcional daquela pobre moça, cujo olhar,
onde não havia ódio, me amedrontava como se não fosse
humano.

Arrependo-me, embora não me sinta em nada culposo para com ela; arrependo-me
por não a ter bem visto e não a ter extremado da massa humana,
onde só via indiferença e incapacidade para o amor e para a
bondade.

Expiei bem duramente essa minha falta íntima, que tantos sentimentos
desencontrados fez surgir em mim, tantas dores deu nascimento, como verão
no decorrer destas páginas, que são mais de uma simples obra
literária, mas uma confissão que se quer exteriorizar, para
ser eficaz e salutar o arrependimento que ela manifesta.

O abismo abriu-se a meus pés e peço a Deus que ele jamais me
trague, nem mesmo o veja hiante aos meus olhos, como o vi por várias
vezes…

Como ia dizendo, porém, continuei a emprestar livros a dona Efigênia
e mesmo lia alguns dos que emprestava, para poder conversar com ela sobre
as suas leituras. Assim, pouco a pouco, fui vencendo o fingido desprezo que
tinha pela literatura; e, quase sem sentir, dei em me interessar pelas suas
coisas. Deixei aquela falsa e tola atitude positivista de só falar
em Shakespeare, Dante e Moliêre; e falei sem fingido pudor em outros
autores, alguns menores, mas alguns tão grandes quanto aqueles. De
há muito eu percebia, mas minha toleima infantil não queria
dar o braço a torcer, confessá-la. A convivência com a
moça tirou-me afinal desse empacamento de muar letrado.

Deu-se um incidente, por aí, que muita influência teve ao depois
no desenvolvimento da minha existência: comecei a escrever.

Animou-me a isto um outro colega meu, camarada íntimo de Chagas, com
quem morava e discutia dia e noite literatura.

Era ele dado a escrever versos satíricos aos professores e a coisas
de estudantes, para o que demonstrava singular habilidade e uma virtuosidade
invejável. Tinha mesmo fundado um jornalzinho de estudante e arrastou-me
a escrever nele. Colaborava com artiguetes tímidos, vacilantes, tratando
de assuntos adequados ao meio, troças a este ou àquele, pequenos
comentários sobre este ou aquele fato. Foi assim que comecei. Houve
quem apreciasse e gabasse mesmo; e tratei de aperfeiçoar-me. Tratei
de ler os autores com cuidado, de observar como dispunham a matéria,
como desenvolviam, a procurar teorias de estilo, e isto, como todo principiante,
fui procurar no enfado dos clássicos; mas, bem depressa, abandonei
esse sestro e o meu escopo foi unicamente vazar o melhor possível o
pensamento que queria vazar no papel.

Tinha um grande medo da gramática, dos galicismos, da regência
dos complementos, das concordâncias especiais, por isso os escritos
saíam-me cautelosos, numa prosa um pouco dura, sem fluência;
mas os outros, assim mesmo, achavam graça no escrito.

Apurei-me, afinei-me, escrevendo duas, três e mais vezes a mesma coisa;
e estendi a minha colaboração a jornaizinhos equivalentes ao
do amigo de Chagas e, por intermédio dele, meti-me na roda de estudantes
literatos que abandonam as letras mal se formam, e também na de profissionais.

Esqueci-me um momento dos meus propósitos de alto debate metafísico,
de ferir a Ciência nas suas bases e contestar-lhe esse caráter
de confidência dos Deuses, que os pedantes querem dar-lhe, para justificarem
a vaidade de que tresandam, por saber dela um poucochito, levando, com as
suas asserções arrogantes, tristeza no coração
dos outros e discórdia entre os homens.

Certo dia em que me pus a pensar nisso, veio-me a reflexão de que
não era mau que andasse eu a escrever aquelas tolices. Seriam como
que exercícios para bem escrever, com fluidez, claro, simples, atraente,
de modo a dirigir-me à massa comum dos leitores, quando tentasse a
grande obra, sem nenhum aparelho rebarbativo e pedante de fraseologia especial
ou um falar abstrato que faria afastar de mim o grosso dos legentes. Todo
o homem, sendo capaz de discernir o verdadeiro do falso, por simples e natural
intuição, desde que se lhe ponha este em face daquele, seria
muito melhor que me dirigisse ao maior número possível, com
auxílio de livros singelos, ao alcance das inteligências médias
com uma instrução geral, do que gastar tempo com obras só
capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados, abarrotados de
títulos e tiranizados na sua inteligência pelas tradições
de escolas e academias e por preconceitos livrescos e de autoridades. Devia
tratar de questões particulares com o espírito geral e expô-las
com esse espírito.

De resto, é bem sabido que os especialistas, sobretudo de países
satélites, como o nosso, são meros repetidores de asserções
das notabilidades européias, dispensando-se do dever mental de examinar
a certeza das suas teorias, princípios, etc., mesmo quando versam sobre
fatos ou fenômenos que os cercam aqui, dia e noite, fazendo falta, por
completo, aos seus colegas da estranja. Abdicam do direito de crítica,
de exame, de livre-exame; e é como se voltássemos ao regímen
da autoridade.

A verdade, porém, é que, raciocinando assim, eu não
fazia senão justificar-me, iludindo-me, de um desfalecimento no caminho
que tinha prometido a mim mesmo trilhar. Não só abandonei os
meus estudos particulares, satisfeito como sucesso de estima que tinha obtido
no estreitíssimo círculo de estudantes, como também não
liguei importância alguma mais às disciplinas escolares.

Adiei os exames e deixei passar as duas épocas, sem prestar nenhum.
Pouco demorou que Efigênia não soubesse de minha estréia
nas letras; e instasse comigo para que lhe trouxesse os jornais. Trouxe um
ou outro e percebi que ela não tinha entendido as croniquetas. Não
era possível ser de outra forma. Eram momentos, observações
sobre episódios de uma classe, de vida muito à parte, com costumes
muito seus e sempre a variar. Um dia, porém, tentei um conto. Havia
já uma certa naturalidade na narração, alguma lógica
no encadeamento e no desenlace, mas sem frescura de emoção diante
das coisas vivas e mortas, e uma falta de ingenuidade doce, que precisava
acentuar-se na heroína.

Era a tal história da rapariga que Efigênia me falou na hora
da morte… A dar-lhe o continho, não fui eu; e até hoje não
sei como lhe chegou às mãos. O certo é que sempre me
falou nele, fazendo observações a respeito, como se o tivesse
de cor. Ainda me lembro que um dia, já estávamos casados, ela,
aludindo ao conteco, me perguntou:

– Por que você não descreveu mais o amor da rapariga?

– Por que você pergunta isto? fiz eu.

– Ora, porquê! Porque ficava mais bonito…

– Tive vergonha.

Ela dardejou sobre mim o seu olhar de malícia, em que não havia
o menor sinal de raiva, mas só esforço de penetração,
e inquiriu:

– Vergonha de quê?

– Não sei.

Disse isso, vexamos e nos calamos, como não precisando mais de palavras
para nos entendermos.

Tenho me alongado em detalhes que parecem não ter interesse algum
para o meu primitivo objetivo; mas espero que, quem tiver a paciência
de me ler, há de achá-los necessários para a boa compreensão
desta história de uma vida sacudida por angústias íntimas
e dores silenciosas.

Havia quase dois anos que eu comia na pensão da viúva Dias,
quando ela caiu doente. Um ataque prostrou-a, e perdeu movimentos, e tudo
levava a crer que morresse ou ficasse paralítica. Parecia não
ter parentes no Rio; e, a tal respeito, pouco sabia, pois nunca foi dos meus
hábitos essa nacional bisbilhotice doméstica. Daqui e dali,
uma frase hoje ou uma recordação amanhã, tinham-me feito
crer que ela tinha ainda dois filhos, mas em Mato Grosso. Um, o mais velho,
era oficial do Exército e lá vivia muito bem casado, interessado
na política local e de lá não queria afastar-se; o outro
era o mais moço, mais moço ainda que Efigênia, e vivia
com o irmão que, por não poder dar-lhe caminho qualquer, o fizera
soldado, depois cabo, mas não conseguindo, por mais que se esforçasse,
fazê-lo sargento do seu batalhão.

Só isso sabia sobre a família da velha Dias e, conforme o meu
gênio, dei-me por satisfeito.

Durante alguns dias ainda, a moça sua filha, fazendo todos os sacrifícios,
dirigiu a pensão; mas, ao chegar o fim do mês, avisou a todos
nós que ia fechá-la. Não podia mais; a mãe exigia
todos os cuidados, e ela não podia atender as duas coisas ao mesmo
tempo: à mãe e ao negócio. Tivéssemos paciência
e desculpássemos.

– Por que não vende? perguntou alguém.

– Não posso perder tempo em esperar quem apareça para
comprar. Faremos leilão de tudo. Eu, mamãe e Ana vamos morar
nos subúrbios, onde talvez minha mãe melhore.

Ana era uma crioula de meia-idade, que chefiava a cozinha. Não era
bem uma criada; era uma espécie de agregada desse tipo especial de
negras e pretas, criado pela escravatura, que seguem as famílias nos
seus altos e baixos, são como parte integrante delas e morrem nelas.

Reparei que, quando Efigênia respondeu daquela forma, olhou para mim,
com menos afinco do que lhe era habitual, e que seu olhar, sempre enxuto e
polido, tinha alguma névoa úmida, uma angustiosa expressão
de dor de quem não sabe ou não quer chorar.

Aquele pequeno drama doméstico, embora seja eu de natural bom, naquela
ocasião, não me feriu muito, porque tinha ainda o coração
dessecado por disparatadas ambições; agora, porém, relembro,
censurando-me a mim mesmo, por não ter sabido avaliar logo o tormento
daquela pobre moça, só no mundo, a acompanhar a mãe que
mal se movia no leito.

Acabada a pensão, deixei de saber notícias delas, durante três
ou quatro meses. Já me passavam mesmo da lembrança, iam ficando
no rol das fracas impressões da vida, quando, com espanto, recebo um
bilhete de Efigênia, pedindo-me fosse vê-las, numa estação
dos subúrbios. "Minha mãe, dizia-me ela, tem melhorado;
mas, mesmo assim e por isso, talvez, pede que o senhor venha até cá,
em atenção a ela".

Não enxerguei no bilhete coisa alguma de extraordinário. O
que me passou pela idéia foi que precisassem de algum recurso de dinheiro
e, em falta de outrem, apelassem para mim. Isto me punha em sérios
embaraços, porquanto não dispunha de pronto de qualquer quantia
e ser-me-ia doloroso negar-lhes o que me pedissem, pois era fácil de
supor as suas necessidades. Em todo o caso, disse de mim para mim, vou lá.

Uma tarde, tomei o trem de subúrbios e fui em demanda da casa das
pobres senhoras. Viajei despreocupado, sem dar nenhuma importância ao
caso. O meu pensamento ia vagabundo para todos os lados, sem me deter em coisa
alguma. A observação mais demorada que fiz, foi a da grotesca
e imprópria edificação dos subúrbios, com as suas
casas pretensiosas e palermas, ao jeito das dos bairros chics, a falta de
jardins e árvores, realçada pelos morros pelados, pedroucentos,
que, de um lado, correm quase paralelamente ao leito da estrada e quase nele
vêm tocará Não parecia aquilo subúrbios de uma
grande e rica cidade; mas uma série de vilarejos pedantes, a querer
imitar as grandes cidades do país. Totalmente lhes fazia falta de gracilidade
e de frescor de meia roça.

Destarte, cheguei à estação em que moravam e fui ter
à casa de dona Clementina Dias. Ficava longe da estação,
numa rua improvisada, mal delineada pelas casas escassas que se erguiam, tendo
de permeio terrenos baldios, onde cresciam árvores de capoeira de certo
porte. Por toda a parte, jaqueiras, mangueiras, sebes de maricás, além
das essências silvestres de que falei, enfim, muita árvore e
muita sombra doce e amiga. Se os arredores da estação tinham
um ar pretensioso, de pretender-se um pequeno Rio de Janeiro, aquela rua longínqua,
simplesmente esboçada, ensombrada de grandes árvores, atapetada
de capim e arbustos, tinha a parecença de uma estrada, ou antes, de
um trilho de roça.

Bati na porteira, pois tinha uma, ficando o chalezinho afastado da cerca
que bordeava a rua. Era começo de março e os espinheiros dela
estavam em flor, tocados de um branco flocoso e macio. Olhei as montanhas
distantes; a tarde ia adiantada e elas se enegreciam e douravam-se e prateavam-se…

Abriu-me a porta a moça e, juntos, entramos na casa modesta, cuja
planta é conhecida de todos na sua simplicidade mais que elementar.
Um quadrado, ou quase isso, divide-se em quatro partes desiguais, as menores
são quartos e as maiores salas que se comunicam entre si por uma porta.
Um quarto fica do lado esquerdo e dá para a sala de visitas; e outro,
do lado direito e tem comunicação para a sala de jantar. Há
um puxado, aos fundos, para a cozinha.

Descansei o chapéu na sala de visitas e logo Efigênia me disse:

– Venha ver mamãe.

Abriu a porta do quarto que dava para onde estávamos e nele deparei
a velha dona Clementina.

Pareceu-me melhor. Tinha a fisionomia mais repousada. Estava deitada, não
bem deitada, assim como que meio sentada, com o busto reclinado sobre grandes
almofadas. Os olhos estavam bons e, ao contrário da filha, que tinha
nos seus sempre uma grande firmeza, os dela eram incertos, distraídos
e erradios, humildes sempre de bondade e não sei de que vaga e indeterminada
cisma.

Perguntando-lhe se ia melhor, ela me disse lentamente:

– Sim, vou melhor, doutor; mas vivemos tão sós…

– Nem tanto, dona Clementina. Tem a companhia de sua filha, da Ana,
que…

– E do Nicolau, fez a moça.

– Que Nicolau? perguntei eu.

– Aquele que carregava marmitas, explicou a velha senhora. Ele não
pára aqui.., vai trabalhar.

– Qual trabalhar! acudiu a Ana, que chegava naquele momento. Não
sai das vendas e dos botequins… Uma vez ou outra faz um carreto, um biscate…

– Não digas isso, Ana. Sempre foi bom para nós… Soube
da minha moléstia e veio logo nos ver… Que seríamos nós,
neste deserto, sem um homem em casa. Ele nos serve e nos ajuda nas medidas
de suas posses…

Este Nicolau não era bem preto; tinha a tinta do rosto azeitonada,
cabelos lisos e negros, embora a barba e o bigode fossem crespos. Fora praça
do Exército e muito chegado ao pai de Efigênia, que morrera capitão.
Tendo baixa, quando cismava e deixava os seus empregos de ocasião,
procurava a casa da viúva, ajudava-a nisto ou naquilo e um belo dia
desaparecia, pois arranjava um trabalho neste ou naquele ponto da cidade e
arredores. Corria o Rio de Janeiro, da Penha à Gávea, da Praça
do Mercado a Santa Cruz; conhecia-o todo, pois o palmilhava a pé, de
bonde, de carroça, de automóvel, só não empregava
o cavalo, e, assim mesmo, não se sabe se o fazia nas freguesias rurais.

Nicolau era nortista, do Piauí ou do Ceará, mas viera muito
moço para um corpo do Exército, estacionado no Rio de Janeiro,
e nunca mais quis sair da capital do país.

– Por que você não vai para sua terra, Nicolau, comer
buriti e mangaba?

– Pra que? dizia ele. Aqui tem também boa fruta; o carioca é
que não sabe… Olhe: eu sempre acho.

De fato, ele sempre descobria frutas, que trazia a dona Clementina, se não
lhe acontecia achar comprador pelo caminho. Era fiel como um cachorro, serviçal,
prestável, mas despido de toda a ambição na vida. Não
procurava outro prazer na vida senão servir e beber cachaça.
Só bebia cachaça; não suportava outra bebida.

Ouvindo o que a mãe dizia a respeito de Nicolau, Efigênia observou
com certa dureza:

– Ora, qual! Mamãe! Nicolau não serve pra nada… Se
fôssemos fiar nele, estávamos bem arranjados. Ele chega à
noite, deita-se e dorme que nem uma pedra até o dia seguinte. De que
serve?

– Não diga isso, Efigênia; é sempre um companheiro.
Tenha pena.

– Tenho, mas a verdade deve se dizer.

Com intuito de variar de conversa, perguntei de chofre:

– E os seus filhos, dona Clementina?

Ela me olhou com espanto, e eu, atônito, olhei dela para a moça,
que parecia censurar-me amargamente com os olhos.

A velha, afinal, falou, e com raiva:

– Não me fale neles! Deixe-me… Deixe-me…

Efigênia chamou-me:

– Venha cá, doutor Mascarenhas. Mamãe quer descansar.

Anoitecia. Ainda havia cigarras retardatárias a chilrear dentro da
melancolia do fim do crepúsculo. Quando íamos saindo, a velha
chamou:

– Efigênia, endireita-me na cama.

A sua voz já era outra; a filha apressou-se em ajustá-la, em
posição conveniente nos travesseiros. Paralítica de um
lado, precisava a todo o instante de quem a auxiliasse para tudo. Mesmo com
a mão esquerda, que já tinha ganho alguns movimentos, ela não
podia afastar os cabelos, quando lhe caíam sobre os olhos, senão
com auxílio de alguém. Ao contrário de Efigênia,
que os tinha escassos, os da mãe eram ainda abundantes e tinham poucos
fios brancos.

Logo que se viu em posição, disse-me:

– Ah! Meu filho! Que suplício! Tenho que, a toda a hora e todo
o instante, incomodar os outros… Estar parada não me incomoda tanto,
mas… ter que aborrecer todos… e eu… e eu que só tenho essa filha!
Coitada!

Sossegou um pouco e continuou:

– O que me aborrece também… O que me aborrece, doutor, é
deixá-la só por aí… Se, ao menos, ela…

– Mamãe, sossega! Vamos falar em outra coisa! observou-lhe com
alguma rispidez a filha.

Eu e a Ana não dizíamos nada. Nós ambos adivinhávamos
que daquele diálogo entre mãe e filha sairia alguma coisa que
interessava o Destino.

– Não! Não! fez a velha com teimosia. Disseste que falavas,
que confessavas… E tua mãe que te pede, diz a verdade…

– Mas, mamãe!

A velha tinha falado com uma energia pouco comum, com um forte acento de
desespero; e a filha, súplice e vexada. Eu não entendia nada
daquela cena e a Ana, a quem interroguei com olhos, parecia sem espanto. Sorria
a meio até.

Depois do balbucio, dirigindo-se a mim e à Efigênia, dona Clementina
continuou com entono de ordem:

– Vocês devem se entender para o meu sossego.. Vão para
a sala conversar, enquanto eu descanso um pouco. Ana, acende as lâmpadas.

Não havia meio de eu atinar com o sentido de tudo aquilo. Estava no
ar e me parecia ao mesmo tempo estar entre doidos. A viúva ainda ordenou:

– Vão.

E obedeci ao convite de Efigênia:

– Venha para a sala, "seu" Mascarenhas.

Notei a mudança de tratamento e segui-a. Sentou-se ela e uma cadeira
e eu também. A porta do quarto estava fechada. A preta Ana ficara do
lado de dentro. Ficamos uns instantes calados. A fisionomia de Efigênia
era de opressão, de vergonha, de angústia… Parecia sofrer
por não poder chorar. Já tinha percebido nela essa dificuldade
para o pranto. Não dizia nada. Ao fim de instantes, ousei:

– Mas o que há, dona Efigênia?

– Que há? fez num ofego.

– Sim; o que há?

– Há… sim… há…

Depois, como se tomasse coragem e alento, falou de um só hausto:

– O senhor não me tomará mal, não é?

O tom de voz, o olhar, a atitude toda ela da moça me pareceu de vergonha,
de humilhação, mas, ao mesmo tempo, do desejo de dizer, de confessar
qualquer coisa que a trabalhava interiormente.

Eu me perturbava, mas respondi com firmeza:

– Não há motivo… Fale, minha senhora; seja franca!

Ela acalmou-se, olhou-me com a sua firmeza habitual de olhar e perguntou-me
naturalmente:

– Eu amo, seu Mascarenhas; o senhor quer casar comigo?

Esperava tudo, menos uma pergunta dessas. Vi logo as desvantagens do casamento.
Ficaria preso, não poderia com liberdade executar o meu plano de vida,
fugiria ao meu destino pelo dever em que estava de amparar minha mulher e
a prole futura. Com os anos cresceriam as necessidades de dinheiro; e teria
então de pleitear cargos, promoções, fosse formado ou
não, e havia de ter forçosamente patronos e protetores, que
não deveria melindrar para não parecer ingrato. Onde ficaria
o meu sonho de glória, mesmo que fosse só de demolição?
Onde ocultaria o meu "pensamento de mocidade"? Havia de sofrer muito,
por ter fugido dele…

De resto, mesmo que conseguisse aproximar-me da realização
do que planejava, o meu casamento era a negação da minha própria
obra.

Apesar de toda a minha superioridade no momento, o meu orgulho me determinava
que não desse essa prova pública de fraqueza; que não
sancionasse com esse gesto o pensar geral; que não amaciasse o meu
desgosto e não o tornasse inútil, para orquestrar superiormente
a obra que meditava… Tudo isso me passou num segundo pelo pensamento e só
pude responder com uma exclamação:

– Eu!

– Sim; você, Mascarenhas!

Ela percebia bem o meu caráter, o meu natural hesitante e a minha
disposição de inclinar-me sempre para o lado simpático.
Ela já me governava. Eu tremia.

– Mas, minha senhora, – animei-me – sou apanhado assim
de sopetão… A senhora não me conhece bem… Sou cheio de defeitos,
de caprichos… Não vá se arrepender…

Não sei como cheguei até aí. Fosse arrastado pela fatalidade
da palavra ou determinado por outra qualquer força, o certo é
que pronunciei aquele meio "consinto" – "não vá
se arrepender".

Parece-me que tinha falado mais alto, a ponto de dona Clementina ouvir lá,
de dentro do quarto, e dizer, que eu escutei:

– Também eu quero, doutor!

Havia me esquecido desta. Olhei mais firme a filha. Não tinha mais
o aspecto de angústia, de vergonha, de humilhação; os
seus olhos não tinham mais aquela vontade incoercível de chorar.
A sua fisionomia estava risonha, banhada de alegria. Acudindo à mãe,
ela respondeu:

– Ele aceita, mamãe.

Não a desmenti e fomos até a borda da cama de dona Clementina.
A custo apertou-me a mão, eu a beijei depois, e ela me disse:

– Abracem-se, meus filhos. Como estou satisfeita!

Deu um suspiro muito longo e nós nos abraçamos. A Ana chorava,
eu também, mas me sentia feliz…

II

Entrei no hospício no dia de Natal. Passei as famosas festas, as tradicionais
festas de ano, entre as quatro paredes de um manicômio. Estive no pavilhão
pouco tempo, cerca de vinte e quatro horas. O pavilhão de observação
é uma espécie de dependência do hospício a que
vão ter os doentes enviados pela polícia, isto é, os
tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente
internados.

Em si, a providência é boa, porque entrega a liberdade de um
indivíduo, não ao alvedrio de policiais de todos os matizes
e títulos, gente sempre pouco disposta a contrariar os poderosos; mas
à consciência de um professor vitalício, pois o diretor
do pavilhão deve ser o lente de psiquiatria da faculdade, pessoa que
deve ser perfeitamente independente, possuir uma cultura superior e um julgamento
no caso acima de qualquer injunção subalterna.

Entretanto, tal não se dá, porque as generalizações
policiais e o horror dos homens da Relação às responsabilidades
se juntam ao horror às responsabilidades dos homens do pavilhão,
para anularem o intuito do legislador.

A polícia, não sei como e porquê, adquiriu a mania das
generalizações, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito
estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são
para ela forçosamente cáftens; todo o cidadão de cor
há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão
de ser por força furiosos e só transportáveis em carros
blindados.

Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que há tantas
formas de loucura quanto há de temperamentos entre as pessoas mais
ou menos sãs, e os furiosos são exceção; há
até dementados que, talvez, fossem mais bem transportados num coche
fúnebre e dentro de um caixão, que naquela antipática
almanjarra de ferro e grades.

É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie
de solitária, pouco mais larga que a largura de um homem, cercado de
ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se enxergam as
caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir quem é o doido
que vai ali. A carriola, pesadona, arfa que nem uma nau antiga, no calçamento;
sobe, desce, tomba pra aqui, tomba para ali; o pobre-diabo lá dentro,
tudo liso, não tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos,
de encontro às paredes de ferro; e, se o jogo da carruagem dá-lhe
um impulso para frente, arrisca-se a ir de fuças de encontro à
porta de praça-forte do carro-forte, a cair no vão que há
entre o banco e ela, arriscando a partir as costelas… Um suplício
destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados
criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que teve a infelicidade
de ensandecer, às vezes, por minutos…

É uma providência inútil e estúpida que, anteriormente,
em parte, me aplicaram; contudo, posso garantir que iria para o hospício
muito pacificamente, com qualquer agente, fardado ou não. Era o bastante
que me ordenassem segui-lo, em nome do poderoso chefe de polícia, eu
obedeceria incontinenti, porquanto estou disposto a obedecer tanto ao de hoje
como ao de amanhã, pois não quero, com a minha rebeldia, perturbar
a felicidade que eles vêm trazendo à sociedade nacional, extinguindo
aos poucos o vício e o crime, que diminuem a olhos vistos.

Por mais passageiro que seja o delírio, um ergástulo ambulante
dessa conformidade só pode servir para exacerbá-lo mais e tornar
odiosa aos olhos do paciente uma providência que pode ser benéfica.
A medicina, ou a sua subdivisão que qualquer outro nome possua, deve
dispor de injeções ou lá que for, para evitar esse antipático
e violento recurso, que transforma um doente em assassino nato involuído
para fera.

Dessa feita, porém, pouparam-me o carro-forte. Fui de. automóvel
e desde o Largo da Lapa sabia para onde ia. Não tive o menor gesto
de contrariedade, quando percebi isto, embora me aborrecesse passar pelo pavilhão.

Não guardava nenhum ressentimento dessa dependência da assistência
a alienados, mas o seu horror à responsabilidade, que o impede de dar
altas por si, fazia-me ver que eu, apesar de sentir-me perfeitamente são,
tendo de passar por ele, teria forçosamente de ficar segregado mais
de um ou dois meses, entre doentes de todos matizes, educação,
manias e quizílias. Tristes e dolorosas lembranças…

Feria-me também o meu amor-próprio ir ter ali pela mão
da polícia, doía-me; e, mais me doeu, quando, nesse dia de Natal,
eu tomei café num pátio, sem ser mesa, e, sem ser em mesa, com
prato sobre os joelhos, comi a refeição elementar que me deram,
servida numa escudela de estanho e que eu levava à boca com uma colher
de penitenciária. Jamais pensei que tal coisa me viesse acontecer um
dia; hoje, porém, acho uma tal aventura útil, pois temperou
o meu caráter e certifiquei-me capaz de resignação.

Quando, pela primeira vez, me recolheram ao hospício, de fato a minha
crise era profunda e exigia o meu afastamento do meio que me era habitual,
para varrer do meu espírito as alucinações que o álcool
e outros fatores lhe tinham trazido. Durou ela alguns dias seguintes; mas,
ao chegar ao pavilhão, já estava quase eu mesmo e não
apresentava e não me conturbava a mínima perturbação
mental. Em lá chegando, tiraram-me a roupa que vestia, deram-me uma
da "casa", como lá se diz, formei em fileira ao lado de outros
loucos, numa varanda, deram-me uma caneca de mate e grão e, depois
de ter tomado essa refeição vesperal, meteram-me num quarto-forte.

Até ali, apesar de me terem despido à vista de todos –
coisa que sempre me desagradou – não tinha razão de queixa;
mas aquele quarto-forte provocou-me lágrimas. Eis em que tinham dado
os meus altos projetos de menino. Por aí, não sei porquê,
me lembrei de minha mulher morta, cuja lembrança o delírio tinha
afastado de minha mente; ganhei mais forças e entrei mais confiante
naquela prisão inútil…

Aí, tive três companheiros, dos quais dois eram inteiramente
insuportáveis, que, a bem dizer, não me deixaram dormir. Um
deles era um velho de cerca de sessenta anos, com umas veneráveis barbas
de imagem, alto, a que chamavam os outros por São Pedro; o outro era
um português esguio, anguloso, mas sólido de m&uacutuacute;sculos
e de pés.

Tinha este a mania de sapatear com força e gesticular como se guiasse
animais de carro ou carroça. Soltava, de onde em onde, interjeições,
assovios; e fazia outros gestos e sinais usados pelos cocheiros, ao mesmo
tempo que imitava com os pés o esforço de tração
dos burros, quando se apóiam nas patas a que o chão foge, a
fim de arrastar a carroça. Não esquecia de chamar as imaginárias
alimárias pelos seus nomes de cocheira:

– Eia, Jupira! Acerta, Corisco!

"São Pedro" ficava, enquanto isto, ficava em outro canto,
rezando, à meia voz, litanias, ou a orar em voz alta, tudo acompanhado
de persignações rituais.

Em certas ocasiões, o palafreneiro e as invisíveis bestas corria
para onde estava aquele, cego inteiramente. "São Pedro" afastava-se,
mas prorrompendo em injúrias muito pouco próprias a um santo
tão venerável.

Quando não encontrava, de pronto, caminho livre para a sua fuga, atirava-se
para qualquer lado. Mais de uma vez, quer um quer outro, quase me pisaram
em cima da simples enxerga de capim que, com um travesseiro e uma manta, me
haviam dado, para dormir.

De uma feita, fugi de vez para a cama de um deles. Parecia-me que lá
ficaria mais sossegado. Foi por aí que interveio o quarto companheiro.
Era um preto que tinha toda a aparência de são, simpático,
com aqueles belos dentes dos negros, límpidos e alvos, como o marfim
daqueles elefantes que as florestas das terras dos seus pais criam. A sua
aparência de sanidade era ilusória; soube, mais tarde, que ele
era um epiléptico declarado. O crioulo, vendo o meu embaraço
e a minha falta de hábito daquela hospedaria, gritou enérgico:

– "São Pedro" vai rezar lá pra porta! E você,
cavalgadura (falava ao português), fica dando coices à vontade,
mas na cama de você… Deixa o rapaz dormir sossegado!

Agradeci ao negro e ele se pôs a conversar comigo. Respondi-lhe com
medo e cautela. Hoje, não me lembro de tudo o que ele me perguntou
e do que lhe respondi; mas de uma pergunta me recordo:

– Você não foi aprendiz marinheiro?

Esta pergunta me pôs bem ao par da situação onde tinha
caído; era ela tão humilde e plebéia, que só se
podia supor de mim, na vida, essa iniciação modestíssima
de aprendiz marinheiro. Verifiquei tal fato, mas não me veio –
confesso – um desgosto mais ou menos forte. Tive um desdém por
todas as minhas presunções e filáucias, e até
fiquei satisfeito de me sentir assim. Encheu-me de contentamento tirar a prova
provada de que, na vida, não era coisa alguma; estava mais livre, e
os ventos e as correntes podiam-me levar de pólo a pólo, das
costas da África às ilhas da Polinésia…

No dia seguinte, quando o guarda que nos veio abrir a porta, deu-me uma vassoura
e um pano com que eu ajudasse a ele e outros a baldear o quarto-forte e a
varanda, não fiz nenhum movimento de repulsa. Tomei os dois objetos
e cumpri docilmente o mandato. O que me aborreceu, porém, foi a minha
falta de forças e hábito de abaixar-me, para realizar tão
útil serviço. Havia-me preparado para todas as eventualidades
da vida, menos para aquela, com que não contei nunca. Imaginei-me amarrado
para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar;
imaginei-me assaltado por facínoras e ter coragem para enfrentá-los;
supus-me reduzido a maior miséria e a mendigar; mas por aquele transe
eu jamais pensei ter de passar… Realizei, entretanto, o serviço até
o fim, e foi com uma fome honesta que comi pão e tomei café.

A faina não tinha cessado, e fui com outros levado a lavar o banheiro.
Depois de lavado o banheiro, intimou-nos o guarda, que era bom espanhol (galego)
rústico, a tomar banho. Tínhamos que tirar as roupas e ficarmos,
portanto, nus, uns em face dos outros. Quis ver se o guarda me dispensava,
não pelo banho em si, mas por aquela nudez desavergonhada, que me repugnava,
tanto mais que até de outras dependências me parecia que nos
viam. Ele, com os melhores modos, não me dispensou, e não tive
remédio: pus-me nu também. Lembrei-me um pouco de Dostoiévski,
no célebre banho da Casa dos Mortos; mas não havia nada de parecido.
Tudo estava limpo e o espetáculo era inocente, de uma traquinada de
colegiais que ajustaram tomar banho em comum. As duchas, principalmente as
de chicote, deram-me um prazer imenso e, se fora rico, havia de tê-las
em casa. Fazem-me saudades do pavilhão…

O guarda, como já disse, era um galego baixo, forte, olhar medido,
sagaz e bom. Era um primitivo, um campônio, mas nunca o vi maltratar
um doente.

A sua sagacidade campônia tinha emprego ali no adivinhar as manhas,
planos de fuga dos clientes, e mais maroscas deles; mas, pouco habituado às
coisas urbanas, diante daquela maluqueira toda, uniformemente vestida, não
sabia distinguir em nenhum deles variantes de instrução e educação;
para ele, devia ser o seu pensar, e isto sem maldade, todos ali eram iguais
e deviam saber baldear varandas.

Teria para si, sem desprezar nenhum, que aqueles homens todos que para ali
iam, eram pobres, humildes como ele e habituados aos mesteres mais humildes,
senão, iriam diretamente para o hospício. Não deviam,
por conseqüência da vexar-se por executá-los.

Desde lá, não o levei a mal, por ter-me conduzido àquelas
baldeações. Estava ele no seu papel, tanto mais que eu não
era melhor do que outros a que o Destino me nivelara. Sofri, com resignação
e, como já disse, às vezes mesmo com orgulho, o que poderia
parecer a outrem humilhação. Esqueci-me da minha instrução,
da minha educação, para não demonstrar, com uma inútil
insubordinação, como que uma injúria aos meus companheiros
de Desgraça. Não reclamei; não reclamo e não reclamarei;
conto unicamente.

Parece-me que ele gostou da minha obediência, pois deu-me cigarros;
e, naquele dia ou no seguinte, escolheu-me para ir varrer os canteiros do
jardim, isto é, os que circulavam o edifício da enfermaria.

Por essa ocasião, confesso, vieram-me as lágrimas aos olhos.
Já não era mais o varrer, porque, mais de uma vez, varri a minha
residência; em menino, minha mãe fazia-me varrer a casa e fazer
outros serviços menores, para não ficar em prosa; quando estudante,
para poupar dinheiro, vasculhava o meu cômodo. Não era o varrer;
era o varrer quase em público, sob o olhar de tanta gente a que não
ligava a infelicidade comum.

Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e a vida; uma vontade
de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo
de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter
sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra,
sem ter perdido de fato a minha situação, cair tão, tão
baixo, que quase me pus a chorar que nem uma criança.

Senti muito a falta de minha mulher e toda a minha culpa, puramente moral
e de consciência, subiu-me à mente… Pensei… Não…
Não… Era um crime…

Tomei a vassoura de jardim, e foi com toda a decisão que, calçado
com uns chinelos encardidos que haviam sido de outros, com umas calças
pelos tornozelos, em mangas de camisa, que fui varrer o jardim, mais mal vestido
que um pobre gari.

Não dei, porém, duas vassouradas. Um rapaz de bigode alourado,
baixo, vestido com aquele roupão de brim apropriado aos trabalhos de
enfermaria, médico ou interno, cujo nome até hoje não
sei, aproximou-se de mim, chamou-me e perguntou-me quem tinha determinado
fazer eu aquele serviço. Disse-lhe e o médico ou interno determinou
que encostasse a vassoura e me fosse embora. Se nesse episódio, houve
razão de desesperar, houve também a de não perder a esperança
nos homens e na sua bondade.

Disse mais atrás que tinha do pavilhão recordações
tristes e dolorosas. Uma delas é a desse episódio e a outra
é do pátio, do terreiro em que estávamos encurralados
todo o dia, até vir a hora de ir para os dormitórios, pois eu
estava num bem asseado.

Habituado a andar por toda a parte, a fantasiar passeios extravagantes, quando
não me prendem as obrigações de escrever e de ler, ou
então a estar na repartição, enervava-me ficar, bem doze
horas por dia, em tão limitado espaço, sob a compassiva sombra
de umas paineiras e amendoeiras.

Os cigarros que tinha, fumava-os um sobre o outro, guardando as pontas para
fabricar novos, com papel comum de jornal. Fumar assim era um meio de afastar
o tédio. Jornais, recebia irregularmente dos meus parentes, dos meus
amigos e, uma ou outra vez, do chefe dos enfermeiros, que era muito afável.

Conversar com os colegas era quase impossível. Nós não
nos entendíamos. Quando a moléstia não os levava para
um mutismo sinistro, o delírio não lhes permitia juntar coisa
com coisa.

Um dia, um menino, ou antes, um rapaz dos seus dezessete anos, chegou-se
perto de mim e me perguntou:

– O senhor está aqui por causa de algum assassinato?

Estranhei a pergunta, que me encheu de espanto.

Respondi:

– Deus me livre! Estou aqui por causa de bebida – mais nada.

O meu interlocutor acudiu com toda a naturalidade:

– Pois eu estou. O meu advogado arranjou…

Não pôde concluir. O guarda chamou-o com aspereza:

– Narciso (ou outro nome), venha para cá. Já disse que
não quero você perto da cerca.

Não pude apurar a verdade do que me dizia esse tal Narciso ou que
outro nome tenha. Soube que era fujão e, talvez por causa disso, foi
logo transferido para o hospício propriamente.

Vivi assim cerca de uma semana, condenado ao silêncio e ao isolamento
mais estúpidos que se podem imaginar, junto a uma quase imobilidade
de preso na solitária.

Foram dias atrozes por isso, e só por isso, os que padeci no pavilhão;
mas, em breve, depois que um médico moreno, de óculos, um moço,
pois o era, em toda a linha, inteligente, simpático e bom, ter-me minuciosamente
examinado o estado mental e nervoso, a monotonia do pátio foi quebrada
com o fazer eu as refeições no comedouro dos enfermeiros. Deixava
um pouco o pátio, aquele curral de malucos vulgares.

Pouco me recordo dos doentes que ali encontrei, a não ser do tal menino,
cuja palestra comigo interrompeu-a uma reprimenda do guarda.

Não me lembro se tudo que já narrei, foi tudo o que ele me
disse ou perguntou; mas, fosse delírio ou fosse verdade, é à
imagem dele que ainda hoje associo a lembrança do pavilhão e
a do seu pátio.

Doutra forma não era possível a contasse, à vista de
um conhecimento que se trava por intermédio de tão fantástica
pergunta:

– O senhor está aqui por causa de algum assassinato?

Criminoso que fosse, ele mesmo, a sua pessoa não me meteu medo, como,
em geral, não me assustam os criminosos; mas a candura, a inocência
e a naturalidade, em que não senti cinismo, com que ele respondeu –
"pois eu estou" – causaram-me não sei que angústia,
não sei que tristeza, não sei que mal-estar.

Aquele menino, quase imberbe, falava-me de seu crime, como se fosse a coisa
mais trivial desta vida, um simples incidente, uma pândega ou um contratempo
sem importância.

Todas as minhas idéias anteriores a tal respeito estavam completamente
abaladas; e me veio a pensar, coisa que sempre fiz, no fundo da nossa natureza,
na clássica indagação da sua substância ativa,
na alma, na parte que ele tomava nos nossos atos e na sua origem.

Até bem pouco, quase nada me preocupava com tais questões;
tinha-as por insolúveis, e tomar tempo com o querer resolvê-las
era trabalho perdido. Entretanto, os transtornos e as dores da minha vida
doméstica tinham-me levado às vezes a pensar nelas. Procurei
estabelecer, para meu uso particular, uma teoria que, forçosamente,
me saiu por demais simplista, a fim de explicar a nossa existência e
a do mundo, assim como as relações entre os dois. Não
tinha chegado ao mistério, ao espesso mistério impenetrável,
em nós e fora de nós. Isto que escrevo, agora, aqui, não
será propriamente muito meu; mas o gérmen que havia em mim não
fez mais que se desenvolver mais tarde, com o adubo das idéias dos
outros.

Repugnava-me personalizar com este ou aquele nome o desconhecido, o informe,
o vago. Dar um apelido seria limitar o ilimitado, definir o indefinido, distinguir
o indistinto, fazer perecível o imperecível. Sendo tudo, em
face do nada, e nada, em face de tudo, esse ser não devia ter corpo,
nem forma, nem extensão, nem movimento, nem outra qualidade qualquer
com que nós conhecemos as coisas existentes. O nosso ideal, a nossa
felicidade seria ser como ele, e, para alcançá-lo, devíamos
procurar a nossa desincorporação, pela imobilidade e pela contemplação.
O sábio é não agir. Quando li esta conclusão nos
meus manuais baratos de filosofia, assustei-me. Aceitava a concepção,
mas a conclusão me repugnava. Se verdade era que, em presença
desse tumulto da vida, desse entrechocar de ambições, as mais
vis e imundas, desse batalhar sem termo e sem causa, o homem beneficiado pela
sabedoria tinha o dever superior de afastar-se disso tudo e tudo isso contemplar
com piedade; era verdade também que a ação, julguei assim,
seria favorável à nossa reincorporação no indistinto,
no imperecível, desde que fosse orientada para o Bem. Como conhecer
o Bem? O meu espírito não encontrava, para sinal de seu conhecimento,
senão na revelação íntima. Os problemas últimos
da nossa natureza moral, nas minhas cogitações, ficaram aí,
e dei-me por satisfeito; mas – chega-me esse pequeno criminoso e me
põe tudo de pernas para o ar! Por que, pensei eu, se cada consciência
fala ao indivíduo de uma maneira, sobre o bem e sobre o mal, como na
desse rapazola, que não podia ter sofrido outras influências
duradouras que não as dele mesmo; se os homens não se encontram
a respeito numa opinião única, como distingui-las – Deus
do Céu?

O curto encontro com esse rapazola criminoso, ali, naquele pátio,
mergulhado entre malucos a delirar, a fazer esgares, uns; outros, semimortos,
aniquilados, anulados, encheram-me de um grande pavor pela vida e de um sentimento
profundo da nossa incapacidade para compreender a vida e o universo.

Lembrei-me, então, dos outros tempos em que supus o universo guiado
por leis certas e determinadas, em que nenhuma vontade, humana ou não,
a elas estranhas, poderia intervir, leis que a ciência humana iria aos
poucos desvendando… Não sorri inteiramente; mas achei tal coisa ingênua
e que todo o saber humano só seria útil para as suas necessidades
elementares de vida e nunca conseguiria explicar a sua origem e o seu destino.
Tudo mistério e sempre mistério.

Em tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual,
foi que penetrei no hospício, pela primeira vez; e o grosso espetáculo
doloroso da loucura mais arraigou no espírito essa concepção
de um mundo brumoso, quase mergulhado nas trevas, sendo unicamente perceptível
o sofrimento, a dor, a miséria, e a tristeza a envolver tudo, tristeza
que nada pode espancar ou reduzir. Entretanto, pareceu-me que ver a vida assim
era vê-la bela, pois acreditei que só a tristeza, só o
sofrimento, só a dor faziam com que nós nos comunicássemos
com o Logos, com a Origem das Coisas e de lá trouxéssemos alguma
coisa transcendente e divina. Shelley, se bem me recordo, já dizia:
"Os nossos mais belos cantos são aqueles que falam de pensamentos
tristes"…

Toda a minha vida particular, toda a minha existência doméstica,
quer de filho, quer de chefe, tendia para conceber e praticar essa concepção
do Universo, só sentido e representado em nós pelos seus aspectos
sombrios.

Casado, como já contei, com tantas reservas íntimas, vivi cinco
anos com minha mulher, até à sua morte, na mais perfeita paz
de decência doméstica. Logo após passar o meu primeiro
ano de casamento, aí pelo nascimento do meu primeiro e único
filho, sua mãe, a minha sogra, melhorara muito das conseqüências
do ataque, ganhara quase todos os movimentos, mas de juízo não
me saiu muito sã e o foi perdendo aos poucos, até chegar à
mania declarada.

Foi depois da morte de Efigênia que o meu pensamento fez-me viver uma
vida desnorteada, que me levou duas vezes ao manicômio.

O meu primeiro ano de casamento correu mansamente, da forma mansa e vulgar
de todos os enlaces da espécie do meu. Não tinha por minha mulher
grandes extremos de sentimento; dominava em mim, porém, a imagem das
minhas responsabilidades de marido, e as cumpri como um dever sagrado. Estimava-a,
prezava-a, mais como um companheiro, como um amigo, do que mesmo objeto de
uma profunda solicitação da minha total natureza. Reprimia mesmo
o mínimo movimento nesse sentido, porque sempre tive vexame, pudor
de amar.

Não lhe dizia as coisas mais secretas a mim mesmo. Dos meus planos
de vida, dos meus projetos intelectuais, não lhe confidenciava palavra,
nem dos meus desânimos, nem dos meus desalentos. Mal lhe noticiava o
aparecimento de um trabalho nesta ou naquela pequena revista ou jornal obscuro.
Não só motivava isso um certo desdém pela sua inteligência
e instrução, como também por temer que ela me desanimasse
e censurasse os meus propósitos literários, porque ela sempre
teve sobre mim um grande ascendente, senão império moral.

Os nossos sentimentos nunca são lógicos, por isso mesmo não
são simples. Eu respeitava muito minha mulher, via-a, às vezes,
interessada pelas minhas tentativas; mas não me queria abrir com ela,
dizer tudo, temendo que a sua medíocre condição de pequena
e modesta burguesa não se assustasse com as minhas ambições
intelectuais. Encerrava-me em mim mesmo e sofria. Sem inquietar-me que toda
a gente percebesse a minha relação íntima, para a qual
não sabiam, até, onde procurar a fonte, fazia, contudo, todos
os esforços, para que Efigênia não a percebesse em mim
e nos meus escritos.

Veio, porém, um acontecimento, que me obrigou a desvendar-me um tanto.
Graças ao meu amigo Chagas, pouco depois do nascimento de meu filho,
fiz parte, como colaborador, da redação de uma revista do gênero
denominado humorístico, que se acabava de fundar e era dirigida por
quem sabia explorar a indústria da publicidade. Tinha eu aí
um razoável ordenado mensal, que sempre empreguei honestamente, e a
Gatimanhas, tal era o nome da publicação, fez sucesso. Não
pude esconder isso à minha mulher e ela pareceu alegrar-se; mas, com
o meu espírito sistemático, não quis ver, na sua alegria,
senão o contentamento pelo acréscimo da renda do casal.

De há muito tinha abandonado a escola superior que freqüentava;
e, embriagado com o sucesso de estima que ia fazendo, na revistinha, esquecia-me
dos meus estudos, das minhas leituras, sem, contudo, procurar reputação
no gênero que ela representava. Saía da repartição,
ia ao escritório da publicação, entregava originais,
conversava um pouco, jantava nos freges literários e ficava até
à meia-noite nas cervejarias. Quase sempre encontrava minha mulher
acordada, costurando, fazendo crochet ou mesmo lendo.

Não chegava muito são, mas minha embriaguez era discreta e
pouco evidente. Nunca ela me disse nada; nunca lhe fiz a mínima má-criação.
Passava assim durante a semana; e só no domingo ficava em casa ou saía
com ela a passeio ou a visitas. Evitava muito estas, pois me aborreciam; eu
estava naquele período inicial de literato que só quer ouvir
falar de literatura ou coisas literárias. As conversas familiares me
entediavam, e não sabia sustentá-las. Enquanto minha sogra não
ficou declaradamente doida, era ela as mais das vezes quem acompanhava minha
mulher; mas, à proporção que ensandecia, deixou de faze-lo,
e eu tive de acompanhá-la.

A minha entrada na Gatimanhas e o hábito de freqüentar chopes,
adquiri depois de ter meu filho, Boaventura, um ano. Antes, eu vinha cedo
para a casa. Minha sogra, apesar da decadência de seu estado mental,
e a preta Ana gostavam muito do pequenote, que havia nascido robusto, forte,
mas com um mau feitio de cabeça, que me desgostava.

Não tinha eu, porém, conquanto pai, tanto gasto de ternura
com ele; e se o queria animar e acalentar, fazia-o com a mais total falta
de jeito de que uma criatura é capaz.

– Arre, Vicente! dizia minha mulher. Você não sabe pegar
numa criança.

Não lhe dizia nada ou senão passava-lhe a criança, observando:

– Pega lá, você, que sabe! Isto é mesmo serviço
de mulher.

Mais de uma vez, ao lhe dizer isto, minha mulher dizia, meio séria,
meio brincando:

– Dá cá, meu caboclinho! Dá cá! Diz pra
ele, meu filhinho, diz: deixa estar! Quando você se casar, segunda vez,
há de saber também. Diz, meu filhinho.

E se punha a acalentar a criança, cantarolando qualquer coisa adequada.
Em outras vezes, o diálogo continuava, desta maneira, após a
minha pergunta, cheia de surpresa:

– Como é isto, Efigênia, segunda vez?

– Sim, quando eu morrer; porque eu só me casei com você,
para ensinar a você estas coisas.

– Você tem cada uma… Ora, bolas!

– Qual! Eu sei… Você ganha nome, é capaz de formar-se…

– Disse a você, antes de nos casarmos, que não me formava
mais, não foi? Quanto a mulher, você sabe muito bem o que vale…

– Enfeita, pelo menos.

– Se é assim, você já está recebendo os
enfeites.

– A mim! Você nem ao menos me diz o que escreve…

– Foi. Mas pensei que você se entregasse a estudos altos. Você
se enveredou, porém, por essas coisinhas de revistas sem importância…

Por aí, eu olhei minha mulher, espantado com a sua reflexão,
e ela, que estava sentada do outro lado da mesa em que eu escrevia, olhava-me
muito séria, sem dureza, debruçada, com a mão na cabeça,
apoiada no móvel, com um ar misterioso que não pude decifrar.

Tentei dizer alguma coisa:

– Não dou importância a essas tolices, tanto que não
as assino…

– É verdade, mas não vejo você pegar mais nos livros.
Ainda ontem, vi-os tão cheios de pó, que tratei de limpá-los.
Você sabe onde estava o Bouglé?

– Qual?

– La Démocratie devant…

Cada vez me espantava mais minha mulher. Com aquele interesse pelos meus
livros, sabendo-lhes os nomes, os títulos… Olhei-a mais e demoradamente
para ela, estava ainda na mesma postura de sondagem, de exame, de interrogação
misteriosa. Não me contive:

– Efigênia, é você mesmo quem me fala?

– Sou, meu filho. Sou eu, Efigênia, tua mulher.

No momento, eu vi, na censura disfarçada de minha mulher, a manifestação
de um pequeno desgosto doméstico, por chegar eu, em casa, geralmente
tarde; hoje, porém, a fisionomia e a expressão de minha mulher
naquela ocasião me parece totalmente outra, e, no correr da narração,
eu tenho bem dito que a senti misteriosa e estranha.

Minha mulher nunca teve para mim uma palavra azeda, uma palavra má;
e, conquanto às vezes birrento, mudo, nunca a tratei senão com
delicadeza e cordura. Se tenho algum arrependimento das minhas relações
com ela, não é por nenhum dos meus atos externos; era pela minha
reserva de alma e de pensamento, que sempre mantive em face dela; é
da minha incompreensão dela, enquanto viveu, e da grande esperança
e do grande desejo que eu realizasse o meu destino.

Fosse pela sua meiga e disfarçada censura, fosse porque fosse, o certo
é que deixei um pouco as rodas bulhentas da minha literatice incipiente,
fugi aos cafés e pus-me a meditar em um livro. A obra que meditava,
assim que travei conhecimento mais íntimo com a cozinha literária,
percebi logo que me seria difícil publicá-la, sem que, antes,
eu adquirisse um certo nome, uma certa posição que me garantisse
o bem-querer dos livreiros. Demais, eu precisava anos para realizá-la,
tal qual eu a meditava. Pobre, não me seria possível custear
a impressão, e mesmo era preciso que eu fosse criando um núcleo
de leitores. Resolvi, portanto, publicar alguma coisa que atraísse
atenção sobre mim, que me abrisse as portas, como se diz, que
me fizesse conhecido, mas queria pôr nessa obra alguma coisa das minhas
meditações, das minhas cogitações, atacar em síntese
os inimigos das minhas idéias e ridicularizar as suas superstições
e idéias feitas. Pensei em diversas formas, procurei modelos, mas me
veio, ao fim dessas cogitações todas, a convicção
de que o romance ou a novela seria o gênero literário mais próprio,
mais acessível a exprimir o que eu pensava e atrair leitores, amigos
e inimigos.

Mas o romance, como a canônica literária do Rio ou do Brasil
tinha estabelecido, não me parecia próprio. Seria obra muito
fria, teria de tratar de um caso amoroso, ou haver nele alguma coisa de parecido
com isso. Eu tinha um grande pudor de tratar de amor. Parecia-me ridículo
ter esse sentimento e ainda mais ridículo analisá-lo ou tratá-lo
em livro. Todo o amor, parecia isto a mim, me humilhava, e não queria
o fato de descrever um qualquer encontrasse em mim prova de fraqueza e rebaixamento
de mim mesmo.

Evitando o amor, voltei as minhas vistas para os grandes livros de aventuras;
e, por eles, vi bem que os romances que as narram são talvez os que
mais resistem ao tempo. Não foi, porém, por isso, nem mesmo
pela sua aparente facilidade; foi tão-somente para evitar o escolho
do Amor, que comecei a escrever um.

Tínhamos entrado no terceiro ano do casamento; meu filho já
tinha dois, já tinha mais aparência de gente e me atraía
com mais naturalidade de sentimento. Minha sogra não o deixava, o pequeno;
era o seu enlevo, era a sua única preocupação. Tinha
questões com a filha, por causa dele; atribuía-lhe a culpa das
suas manhas naturais de criança, ensinava-o a andar. A velha Ana, que
o era um pouco mais do que minha sogra, também tinha um grande pendor
pelo pequeno, embora não demonstrasse grande simpatia por mim.

Não era bem preta e tinha sido cria do pai de minha sogra, senão
filha ou parenta próxima dele. As duas velhas se tratavam pelos apelidos
e por tu e você. Era você, Aninhas, pra ali; era tu, Clementina,
pra lá.

Entre as duas, havia muitos vestígios daqueles singulares costumes
existentes entre senhores e escravos, nas pequenas propriedades rurais, antes
das agitações abolicionistas. Eram todos parentes e íntimos,
mucamas e sinhazinhas. Fingia sempre não perceber a antipatia de Aninhas
por mim e sempre, afora o que minha mulher lhe dava, eu lhe oferecia dinheiro,
que era aceito com pressa. Tinha um fundo religioso, não era bem este
ou aquele credo que a tomava: eram todos. Todo o domingo ia à missa,
confessava-se e comungava com freqüência, nos dias próprios
levava a benzer palmas, ramos de alecrim e arruda, mas isso não impedia
que também freqüentasse sessões espíritas e procurasse
feiticeiros quando julgava necessário.

Se conversava com ela, não cessava de dizer-me a todo o propósito:

– No tempo de seu Zuzu, as coisas eram outras… Havia sempre de "um
tudo" a fartar em casa… Não era, Clementina?

Esse Zuzu era o falecido marido de minha sogra, que tinha umas propriedades
agrícolas no Estado do Rio, mas que, depois da República, liquidara
tudo e se fizera tesoureiro ou pagador de uma repartição do
Ministério da Viação.

Outras vezes, quando eu estava presente, a velha Aninhas lembrava:

– Clementina, você se lembra daquele São João em
que seu pai matou um boi, para receber a visita do deputado?

Minha sogra não gostava dessas rememorações; mas nada
objetava, limitando-se a dizer: "Sim, eu me lembro". Minha mulher,
porém, era mais franca:

– Ora, Aninhas! Águas passadas não movem moinho…

– Não movem! exclamava a velha cabrocha, tirando o cachimbo
da boca. É que naqueles tempos havia "homens…."

E olhava para mim significativamente. Compreendia que ela queria pôr
nos meus olhos a grandeza passada dos parentes de minha mulher, em face da
mediania atual, que, se não era eu culpado, demonstrava, por continuar
ela, incapaz e indigno de me ter casado com Iaiá Figena. Disse isto
a minha mulher e ela me observou:

– É assim, Aninhas: pensa sempre em muito; mas se contenta com
pouco e nada exige quando não se tem. Essas lembranças do passado
são para ela como os nossos sonhos de futuro.

Tive ocasião de verificar isto nos transes de vida por que vim a passar.
Escrevia meu livro, mas não com seguimento e vontade. Interrompia,
ora por uma coisa, ora por outra. Continuava a escrever nas minhas revistecas,
para ganhar dinheiro e mesmo por gosto; mas via bem que elas não me
dariam o que sonhava e estavam abaixo dos meus propósitos e da minha
instrução. Procurava campo mais vasto…

Uma tarde, era domingo, estava eu sentado com minha mulher no jardim, quando
ela me perguntou:

– Você leu a opinião de F. sobre o livro do teu amigo
Oliveira?

– Li.

– Achei justa.

– Você o leu?

– Li. Ele não ofereceu a você? Peguei-o em cima da mesa
e li-o… Uma coisa, Vicente?

– Que é?

– Você abandonou a sua obra?

Não tinha dito nunca a minha mulher que fazia uma tentativa literária,
mas não escondia nada, nem fechava móvel algum. Espantei-me
e indaguei:

– Como é que você sabe disso?

– Muito simplesmente: via você escrever tantas folhas de papel
e descobri que você fazia uma obra.

Fiquei envergonhado e arrependido com aquela falta de franqueza com minha
mulher e tentei uma desculpa:

– Não disse isso a você porque podia falhar e…

– Mas que mal havia nisso para a sua mulher, Vicente? Você tem
vexames, temores, com sua mulher? O que é preciso é acabá-lo…
Há quase um mês que você não escreve nele…

– Como é que você sabe disso?

– Antes de São João, você estava na página
cento e catorze; ontem, eu vi que você continuava na mesma página,
e nós estamos em fins de julho!

Todo esse interesse de minha mulher pelos meus trabalhos, pela minha vida
mental, passava-me desapercebido. Eu os não unia, eu os não
coordenava, para completar a figura dela, a sua inteligência, o seu
amor por mim. Duas coisas levavam-me a isto: a certeza de que não é
dado as mulheres brasileiras de seu nascimento se preocuparem com essas coisas,
e o meu vexame de fazer confidências a quem quer que fosse do que planejava
em letras.

A intervenção dela, porém, não foi em vão.
Terminei a obra e, apesar de antemão saber que não arranjaria
editor, procurei um, dois, três. Todos eles me diziam: "O senhor
já mostrou a F.?" "Não", dizia eu. "Deve
mostrar", objetavam; e restituíam-me o manuscrito intacto. Não
conhecia nem fulano, nem beltrano, e desconfiava que eles não gostassem
da minha literatura, das minhas poucas opiniões existentes no livro,
na forma da narração e, sobretudo, a timidez junto ao orgulho
impediam-me de pedir-lhes opinião.

Correram tempos e minha mulher, vendo-me uma vez ler o meu manuscrito, ao
trazer-me café que lhe pedi, perguntou-me:

– Você por que não publica isto?

– Não há quem o queira imprimir.

– Publique você mesmo. Custa caro?

– Muito.

Ela convenceu-me que devia pedir emprestado o dinheiro necessário
sobre os meus vencimentos. Assim fiz, e o livro ia em meio da composição,
quando ela adoeceu gravemente. A sua moléstia foi dolorosa e duradoura.
Mais de quatro meses, ela esteve acamada, morrendo aos bocados. No fim, só
tinha de humano o olhar, aquele seu olhar vivo, penetrante, com expressões
indefiníveis. Penou muito e muito me fez penar. No fim, parecia estranha
a tudo, até ao filho, até à mãe, e estava já
quase assim, quando me fez aquela recomendação:

– Você deve desenvolver aquela história da rapariga num
livro…

Já estava morta, quando meu livro apareceu. Vendi toda a edição
quase pelo preço de impressão, para pagar dívidas, e
ma comprou um daqueles livreiros que me editara. Não pude desagravar
os meus ordenados; a minha colaboração rendia pouco. Minha sogra,
depois da morte da filha, ficou aluada. Não se movia do lugar, não
queria sair, não queria ver ninguém. Os atos e requerimentos
para receber a sua pensão de montepio, era uma dificuldade para obter
dela a assinatura. Do pequeno, cuidava, mas a seu jeito; enfurecia-se com
qualquer repreensão a ele e a todo o instante relembrava-lhe a mãe:

– É isto, a Efigênia não está aí…

O meu consolo era o meu livro. A crítica assinada, a responsável,
honrou-o muito, particulares insuspeitos gabaram-mo à queima-roupa.
Ele era cochichado, e eu pressentia no ar a emoção e a surpresa
que tinha causado.

Devia alegrar-me, mas a alegria que me podia causar era abafada pelas minhas
dificuldades de dinheiro e pela doença de minha sogra.

Ela sempre me estimara, eu via bem; ela sempre me quisera, eu percebia; ela
mesma fora que nos casara; mas a loucura sua, que ia a passos largos, como
sempre, virava-se para os parentes próximos e para as pessoas amigas.

Sem aproveitar o pequeno e restrito sucesso que havia obtido, eu não
sabia como haver dinheiro. Não queria tentar o jornal. Muitas coisas
me faziam pensar. Repugnava-me aceitar um lugar subalterno, sentia-me capaz
de outra coisa; mas, ao mesmo tempo, não me queria hipotecar por gratidão
ou dinheiro a pessoas e influências, que fariam sepultar em mim as minhas
idéias e abafar a paixão com que elas deviam ser expostas.

Voltou-me o hábito de beber, e, desta vez, sem dinheiro, mal vestido,
sentindo a catástrofe próxima da minha vida, fui levado às
bebidas fortes e, aparentemente, baratas, as que embriagam mais depressa.
Desci do whiskhy, à genebra, ao gin e, daí, até à
cachaça.

Tinha recebido um sobrinho para se empregar no Rio, no decorrer desses cinco
anos que mediaram entre a morte de minha mulher e a minha primeira entrada
no hospício. Era um rapaz simples, bom, de pouca instrução
e inteligência. Filho de uma irmã que ficara e se casara no interior,
eu não o conhecia; mas foi bom para mim. Ele e a preta Aninhas.

Esta perdera a antipatia por mim, adivinhava-me as dificuldades, não
todas, e, das origens, ela só supunha consolar-me da morte de Efigênia:

– Sossega, "seu" Mascarenhas! dizia-me ela em certas manhãs
que eu amanhecia terrível. Que se há de fazer? Deus assim quis.

Meu filho crescia sob os cuidados desta pobre rapariga. Ele tinha pouco mais
de dois anos, quando a mãe morreu. Pouco depois dos cinco, veio a ter
em certas noites umas convulsões, um choro, um tremer que me assustou.
Levei-o a um médico, meu amigo.

– Mascarenhas, disse-me ele, toma cuidado com este teu filho… Evita
contrariá-lo…

Deu-me uma poção calmante e não me quis dizer mais nada.
Foi crescendo e, aos sete anos, tentei ensinar-lhe a ler. Começava
"a-e-i-o-u"; quando passei a juntar as letras, ele ia até
certo ponto e desandava a chorar. Minha sogra intervinha, às vezes
com bons modos, às vezes malcriada:

– Deixem o pequeno! Malvados!

Tentava convencê-la, mas era em vão. Tratei de experimentar
o colégio; a professora me disse que era dócil, o meu filho,
mas não sabia o que tinha ele. A verdade é que não havia
jeito de poder-lhe prender a atenção na cartilha.

Tinha trinta e poucos anos, um filho fatalmente analfabeto, uma sogra louca,
eu mesmo com uma fama de bêbedo, tolerado na repartição
que me aborrecia, pobre, eu vi a vida fechada. Moço, eu não
podia apelar para minha mocidade; ilustrado, não podia fazer valer
a minha ilustração; educado, era tomado por um vagabundo por
todo o mundo e sofria as maiores humilhações. A vida não
me tinha mais sabor e parecia que me abandonava a esperança.

Depois de beber consecutivamente durante unia semana, certa noite, amanheci
de tal forma gritando e o dia seguinte passei de tal forma cheio de terrores,
que o meu sobrinho André, que já era empregado e muito me auxiliava,
não teve outro remédio senão pedir à polícia
que me levasse para o hospício.

Foi esta a primeira vez.

III

O espetáculo da loucura, não só no indivíduo
isolado, mas, e sobretudo, numa população de manicômio,
é dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se pode oferecer
a quem ligeiramente meditar sobre ele. Dizia Catão que os sábios
tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles. Deve ser assim, conforme
quem os interpela e o tempo que o faz, mas o certo é que, à
primeira vista, o ensinamento não é, como queria o orgulho romano,
para melhoramento e progresso dos ajuizados; ao contrário, a primeira
impressão é de abjeção para o espírito,
pelo enigma que nele se põe, diante de uma misteriosa interrogação
sem resposta. Donde vem isto? Que inimigo da nossa espécie é
esse que se compraz em nos rebaixar?

No pavilhão, devido ao número exíguo de doentes, não
se sente bem essa dor especial, esse tomado de amargura pelo nosso destino,
o nosso pensamento não se angustia tanto em querer resolver tão
sombrio problema da nossa existência que a loucura provoca; mas na Seção
Pinel é de abater, é de esmagar, a contemplação,
o contato, o convívio com quase duas centenas de loucos.

Da primeira vez, não saí do pavilhão para essa seção,
que é a dos gratuitos, a dos indigentes, mas, na qual, como uma consideração
que a bondade da administração pode ter, sem ferir os regulamentos,
há muitos que não o eram. De forma que, quando saí do
pavilhão, para ela, na segunda vez, foi-me um espetáculo novo,
inédito, denso, a que fui obrigado a assistir nela.

Logo após o café, fui chamado à presença de um
jovem médico, muito simpático, pouco certo dos seus poderes
para curar-me. Fez-me umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandar-me
embora. Disse-me mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas,
depois de dizer o que eu tinha tido:

– Não há dúvida… Mas o senhor ou você
– não me recordo – veio pela polícia, tem que se
demorar um pouco.

Concordei e voltei para o pátio. Vestia umas calças que me
ficavam pelas canelas, uma camisa que me ficava pela metade do antebraço.
Um tal vestuário me aborrecia deveras e não porque eu me julgava
mais ínfimo ali com ele do que se outro tivesse. Pouco tempo depois,
fui de novo para a varanda, onde me puseram num banco, ao lado de outros companheiros.
Estava em uma extremidade, e o doente a meu lado era um preto moço,
tipo completo do espécimen mais humilde da nossa sociedade.

Era ocasião da visita do médico-em-chefe, que me conhecia de
vista e eu a ele; mas não fez alusão a isso, e também
não me dei por achado. Sempre me disseram um excelente rapaz, mas o
supunha muito cheio de certeza, por isso embirrava com ele.

Acabada a visita do médico-em-chefe, voltei para o terreiro, à
espera da minha alta. Estava certo dela; e, quando o enfermeiro-mor me chamou
do alto da varanda que dava para onde eu estava sentado, sorri de alegria.

Esse enfermeiro não me fez mal algum, mas impliquei com ele. Era alto,
bem apessoado, tinha uma fisionomia bragantina, papada, bochechas, olhos pequenos…
O guarda-civil que me esperava no portão do hospício, chamou-o
de doutor e ele se deixou tratar assim. Pareceu-me um pouco pedante; se não
me maltratou, tratou-me com desdém e sobranceria… Muitas vezes, rio-me
interiormente, quando tal acontece, mas com ele irritei-me.

Veio-me chamar e levantei-me alvissareiro:

– Venha cá!

Olhando para ele, perguntei:

– Eu?

– Sim, você.

Levou-me o bragantino por corredores e pátios até ao hospício
propriamente. Aí é para não me ir embora, mas ficar.

– Não vou-me embora?

– Não; você fica.

Ainda esperei que fosse cair na seção dos pensionistas; mas
assim não foi. Entrei para a Pinel, para a seção dos
pobres, dos sem-ninguém, para aquela em que a imagem do que a Desgraça
pode sobre a vida dos homens é mais formidável e mais cortante.

O mobiliário, o vestuário das camas, as camas – tudo
é de uma pobreza sem-par. O acúmulo dos doentes, o sombrio da
dependência que fica no andar térreo e o pátio interno
é quase ocupado pelo pavilhão das latrinas de ambos os andares
– tirando-lhe a luz, tudo isso lhe dá má atmosfera de
hospital, de emanações de desinfetantes, uma morrinha terrível.

Os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se,
em geral, das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres
imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e outros mais exóticos;
são negros roceiros, que levam a sua humildade, teimando em dormir
pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta sórdida;
são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários,
trabalhadores braçais e proletários mais finos: tipógrafos,
marceneiros, etc.

No meio desse baralhamento de homens de tão diferentes raças
e educação, fazem-se às vezes descobertas. Um dia, um
maluco diz a outro:

– Você sabe? Aquele novo é padre.

– Qual?

– Aquele alemão, que veio há dias do pavilhão.

A notícia corre de boca em boca e vai até ao enfermeiro-chefe.
Este, então, verifica e procura melhorar o tratamento do pobre náufrago
da vida.

Quando lá estive, havia um religioso alemão ou teuto-brasileiro,
moço, forte, silencioso, com aquele doce olhar que há em certos
alemães, em que a gente vê o mar raso e a areia faiscando no
fundo. Parecia um frade concentrado e, sem rezar, parecia rezar, andando de
um lado para outro do corredor. Pelo que se entendia do seu português,
ele o falava bem, com certo acento, mas correto. Não se o entendia,
porque não pronunciava as palavras: balbuciava, ciciava…

Vi também o D. L., meu antigo conhecido, poeta das pequenas coisas,
paródias, sonetos satíricos. Era companheiro do T., que foi
meu colega de colégio, e agora se fez esquecer; mas foi um grande estróina.
D. L. montou um colégio num arrabalde modesto e, segundo notícias,
ele prosperou. Deixou de andar em rodas dos literatos, parece que estudou,
pois eu o conheci com pouca instrução, e os seus discípulos
gabavam-lhe o saber e o método. Veio, porém, a equiparação
ao ginásio, ele não tinha dinheiro, para equiparar o seu colégio
ao oficial, foi perdendo alunos, endividou-se e enlouqueceu.

Foi o primeiro a me falar e, pelo jeito com que o fez, parecia que me esperava
ali desde muito tempo…

Fui de novo à presença de um médico; era também
moço, mas não tão cético como o primeiro que me
viu no pavilhão, nem tão crente como o chefe deste. Interrogou-me
pacientemente, sobre o meu delírio, sobre os meus hábitos e
antecedentes. Disse-lhe toda a verdade. Não me desgostou este médico,
senão quando ele me perguntou assim, com um pouco de menosprezo:

– O senhor colabora nos jornais?

– Sim, senhor; e já até publiquei um livro.

O doutor, por aí, sorriu desdenhosamente, mas foi um instante. Saí
do exame e fiquei pelos corredores. Eu tinha passado bem a noite passada;
mas tudo aquilo me parecia mais extravagante. Como é que eu, em vinte
e quatro horas, deixava de ser um funcionário do Estado, com ficha
na sociedade e lugar no orçamento, para ser um mendigo sem eira nem
beira, atirado para ali que nem um desclassificado?

Por que o Estado queria-me gratuito, comendo à sua custa, quando era
mais simples tomar-me o ordenado e dar-me pelo menos um paletó?…

Recordei-me um pouco da casa do meu sobrinho, da sua infantil mania de supor
que o hospício me curava e de supor que era o álcool e as companhias
que me punham a delirar. O meu sofrimento era mais profundo, mais íntimo,
mais meu. O que havia no fundo dele, eu não podia dizer, a sua essência
era meu segredo; tudo mais: álcool, dificuldades materiais, a loucura
de minha sogra. a incapacidade de meu filho, eram conseqüências
dele e do desnorteamento em que eu estava na minha vida. Depois de quase dez,
ou antes, logo nos primeiros anos da morte de minha mulher, é que eu
senti bem a falta dela e que me convenci que ela viera ao meu encontro, para
realizar o meu destino e o meu sonho. Perdida ela, perdida nas condições
em que foi, parecia-me que eu tinha praticado um crime, uma falta grave, sem
remédio e sem resgate. Embora não a tivesse nunca maltratado
de nenhuma sorte, eu me sentia culpado por não a ter compreendido em
tempo, por não a ter adivinhado.

Vinha-me um desespero íntimo, um aborrecimento de mim mesmo, um sinal
da evidência da minha incapacidade para qualquer obra maior, pois –
raciocinava eu – quem teve um ente humano a seu lado, com ele viveu
na mais total intimidade em que dois entes humanos podem viver, não
o compreendeu, não pode absolutamente compreender mais coisa alguma.
E eu atirava meus livros para o lado, e eu me punha a beber, e eu não
tratava do meu, e eu me queria anular, ficar um desclassificado, uma bola
de lama aos pontapés dos polícias…

Não tinha lido o trecho de Plutarco a que aludi, pois o li no próprio
hospício; mas, agora, relembrando as minhas impressões, sinto
bem que ele tem bastante razão. Eu estava ajuizado e tinha muito que
aprender com loucos.

Da primeira vez, não me demorei observando loucos. Revoltei-me, censurei
meu sobrinho; mas desta vez, voltava mais capaz de fazê-lo. Eu me tinha
esquecido de mim mesmo, tinha adquirido um grande desprezo pela opinião
pública, que vê de soslaio, que vê como criminoso um sujeito
que passa pelo hospício, eu não tinha mais ambições,
nem esperanças de riqueza ou posição: o meu pensamento
era para a humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento, para
os que sofrem, para os que todos amaldiçoam. Eu sofria honestamente
por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado,
e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia
que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonhos de atingir a verdade,
do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso
de contribuir para que os outros fossem mais felizes do que eu, e procurava
e sondava os mistérios da nossa natureza moral, uma vontade de descobrir
nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade.

O hospício me retemperava. Lembrava-me do plano de minha obra, dos
grandes trabalhos que ela demandava, dos estudos que pedia; e, de mim para
mim, eu me prometia levá-la a cabo, empregando todos os argumentos,
tirando-os de toda a parte, não só os lógicos, como os
sentimentais; havia de escrevê-la, empregando todos os recursos da dialética
e da arte de escrever.

Voltava-me para trás da minha vida e lá via minha sogra louca,
às vezes, delirando; às vezes, calada, a olhar tudo com um olhar
intraduzível e sobretudo meu filho, seu neto, que passava dos dez anos
e não sabia absolutamente nada. Não havia ameaça, não
havia afago, não havia promessa que o fizesse dar um pouco de atenção
à cartilha. Eu não sabia o que fazer. Deixava o tempo correr;
e, quando me vinha a idéia que havia de ter um filho completamente
analfabeto, eu amaldiçoava tudo e me arrependia de tê-lo gerado.
No hospício, porém, estas duas lembranças dolorosas não
me abatiam tanto quanto em casa ou solto em qualquer parte. A conclusão
a que chegava era ser preciso transmontá-las, para executar o meu propósito
de moço e o meu sonho de menino…

– "Seu" Vicente, venha ver sua cama.

Era o inspetor. Era bom homem, conhecera meu pai e se lembrava dele com amizade.
Eu não me recordava dele; havia-o visto menino. Ele, entretanto, fez
tudo para suavizar a minha sorte, sem pedido nem rogo meu. Era um mulato escuro,
forte, mesmo muito forte, rosto redondo grande, olhos negros brilhantes, com
uma pequena jaça de desconfiança.

Deu-me uma cama num dormitório mais razoável, com melhor companhia;
e, por sua iniciativa, fez que eu tomasse as minhas refeições
com os doentes mais escolhidos.

Entre estes fui encontrar um rapaz português da minha idade, a quem
conhecera quando estudante. Travamos relações na pensão
da senhora que veio a ser minha sogra. Parece que ele fora daqueles que tinham
de voltar pobres. Era um tanto instruído e me foi de um préstimo
inesquecível. Não tinha cigarros, ele mos deu; não sabia
ir ao refeitório, ele me ensinou; enfim, amaciou as dificuldades do
primeiro estabelecimento.

Apesar de não demonstrar vestígio algum de loucura, nem mesmo
a alcoólica ou tóxica, Misael era veterano no hospício
e me informou muito sobre os loucos, suas manias, seus antecedentes. O meu
mergulho naquele mundo estranho foi logo profundo, naqueles quatro dias que
nele passei.

Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura
não parte da verdadeira causa. O que todos julgam, é que a coisa
pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos
dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco,
quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a
outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é
o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.

Há indivíduos que se condenam a um mutismo absoluto, que não
conversam com ninguém, não dizem palavra anos e anos. Destes,
uns vivem de um lado para outro, outros deitados; ainda outros fazem gestos,
e certos outros prorrompem em berreiros.

Alguns, a sua doença atacou-os no aparelho de emissão da palavra.
Havia um, mas na outra seção, velho e dizem que de família
importante, que falava de onde em onde, mas logo perdia o jeito e emudecia.
Tinha delírios terríveis. Corria que em estado de loucura matara
uma irmã, na fazenda paterna, com mão-de-pilão.

Alguns não suportam roupa no corpo, às vezes totalmente, outras
vezes em parte. Na Seção Pinel, num pátio que ficavam
os mais insuportáveis, dez por cento deles andava nu ou seminu. Esse
pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido
à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí
recolhidos, a imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O
negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma
porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem
no nosso pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na suposição
de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa. Aí é
que há os berradores; mas, como em toda a parte, são só
os seus gritos que enchem o ambiente. Eles são relativamente poucos.

Há outros que se degradam no sexo, com uma indiferença de amaldiçoados
a isso… É um horror silencioso, que nos apavora e faz-nos cobrir
a humanidade de piedade, e nos amedronta sobre a nossa vida a vir.

Olham-se os quartos e todos aqueles homens, muitas vezes moços, sem
moléstia comum, que não falam, que não se erguem da cama
nem para exercer as mais tirânicas e baixas exigências da nossa
natureza, que se urinam, que se rebolcariam no próprio excremento,
se não fossem os cuidados dos guardas e enfermeiros, pensa-se profundamente,
dolorosamente, angustiosamente sobre nós, sobre o que somos; pergunta-se
a si mesmo se cada um de nós está reservado aquele destino de
sermos nós mesmos, o nosso próprio pensamento, a nossa própria
inteligência, que, por um desarranjo funcional qualquer, se há
de encarregar de levar-nos àquela depressão de nossa própria
pessoa, àquela depreciação da nossa natureza, que as
religiões querem semelhante a Deus, àquela quase morte em vida.

Parece tal espetáculo com os célebres cemitérios de
vivos, que um diplomata brasileiro, numa narração de viagem,
diz ter havido em Cantão, na China.

Nas imediações dessa cidade, um lugar apropriado de domínio
público era reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Dava-se-lhes
comida, roupa e o caixão fúnebre em que se deviam enterrar.
Esperavam tranquilamente a Morte.

Assim me pareceu pela primeira vez que deparei com tal quadro, com repugnância,
que provoca a pensar mais profundamente sobre ele, e aquelas sombrias vidas
sugerem a noção em torno de nós, de nossa existência
e a nossa vida, só vemos uma grande abóbada de trevas, de negro
absoluto. Não é mais o dia azul-cobalto e o céu ofuscante,
não é mais o negror da noite picado de estrelas palpitantes;
é a treva absoluta, é toda ausência de luz, é o
mistério impenetrável e um não poderás ir além
que confessam a nossa própria inteligência e o próprio
pensamento.

A loucura se reveste de várias e infinitas formas; é possível
que os estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação,
mas ao leigo ela se apresenta como as árvores, arbustos e lianas de
uma floresta: é uma porção de coisas diferentes.

Uma generalização sobre o seu fundo pecaria pela base. Choques
morais, deficiência de inteligência, educação, instrução,
vícios, todas essas causas determinam formas variadas e desencontradas
de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é.

Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes como naqueles;
e que, se ela fosse exercer tão despoticamente o seu poder, não
haveria um só homem de juízo, na terra. É bastante pensar
que nós somos como herdeiros de milhares de avós, em cada um
de nós se vem encontrar o sangue, as taras deles; por força
que, em tal multidão, há de haver detraqués, viciosos,
etc., portanto a hereditariedade não há de pesar só sobre
este e sobre aquele, cujos antecedentes são conhecidos, mas sobre todos
nós homens. Por ser remota? Mas as forças da natureza não
contam o tempo; e, às vezes mesmo, as mais poderosas só se fazem
notar quando se exercem lentamente, durante séculos e séculos.

A explicação por hereditariedade é cômoda, mas
talvez seja pouco lógica.

Sem capacidade nem competência para tratar de semelhante assunto, eu
me lembrei de fazer estas considerações, por ter observado entre
os meus colegas da Pinel um caso singular de mania.

Eu via um português velho, sempre com um gorro e borla, de barba cerrada,
enroupado num grande sobretudo marron, passear de um lado para o outro nos
corredores. A sua fisionomia tinha um ar de estampa, sorridente, mas orgulhosa.
Perguntei certo dia:

– Misael, quem é aquele doente?

– É um português que foi barbeiro. Os fregueses chamavam-no
de Francisco I, imperador da Áustria. Ele se parece, convenceu-se e
acabou aqui. Há dias, quando embarcaram uma turma para a colônia,
ele foi até ao grupo e recomendou: "Olhem, vocês vão
para lá. Se forem maltratados, queixem-se a mim, que sou seu imperador".

Que relação teria a sua loucura com a sua fortuita semelhança
com o imperador da Áustria? É possível que ela tivesse
alguma intervenção?

Parecia pueril uma tal questão, mas eu a pus sempre, de mim para mim,
essa pergunta do poder de auto-sugestão na loucura e também
da imitação.

Tomei posse do meu dormitório e despertei maravilhosamente. O meu
dormitório era no canto da ala direita do pavimento térreo.

O hospício é bem construído e seria adequado, se não
tivesse quatro vezes o número de doentes para que foi planejado. É
obra de iniciativa individual, e a sua construção, pode-se dizer,
foi custeada pela caridade pública. Nas dádivas e doações,
como sempre, nas obras, muito concorreram os portugueses que enriqueceram
no comércio. Os chãos parece que já eram da Santa Casa,
mas o edifício propriamente é resultado de dádivas e
doações. É grande de fachada, com fundo proporcional,
acabamento e remates cuidadosos, um pouco sombrio no andar térreo,
mais devido aos acréscimos, do que ao plano primitivo, que se adivinha.
Acabado de construir em 1852, todo ele trai, no aspecto exterior, ao gosto
do pseudoclássico da Revolução e do Império Napoleônico.
O seu arquiteto, Domingos Monteiro, foi certamente discípulo da antiga
Academia de Belas-Artes e certamente do arquiteto Grandjean de Montigny. É
de aspecto frio, severo, solene, com pouco movimento nas massas arquiteturais.
Custou naquela época cerca de mil e quinhentos contos, e por aí
se pode avaliar a tenacidade de José Clemente, que o ideou e o ergueu,
no espaço curto de dez anos. Dizem que há, no salão nobre,
uma estátua dele, mandada fazer pelo segundo imperador, que também
tem a sua, diante da daquele. Este José Clemente parece não
ter sido estadista de grandes vistas políticas, mas pelas posições
em que passou deixou traços do seu amor a obras de utilidade pública,
sobretudo de assistência.

Interiormente é dividido em salões e quartos, maiores e menores,
com janelas todas para o exterior, e portas para os corredores, que olham
para os pátios internos.

O meu dormitório ficava no extremo da ala esquerda do edifício,
como já disse, e as camas ficavam encostadas ao longo das quatro paredes.
Tinha três janelas de sacada para a rua, mas eram inteiramente gradeadas.
Via-se o jardim, a rua, os bondes, o mar e as montanhas de Niterói
e Teresópolis.

Com o ar azul da enseada de Botafogo, para quem olha, devia ser um alegre
retiro, tivesse ele outro destino; mas a beleza do local pouco deve consolar,
apreciada através das grades, da triste condição em que
se está, torvo o ambiente moral em que ali se respira. A beleza da
natureza faz mais triste a quem tem consciência do lugar em que está
e, olhando-a com os olhos tristes, ao amanhecer, a impressão que se
tem é que não se pode mais sonhar felicidade diante das belas
paisagens e das belas coisas…

Assim amanheci. Olhei o mar através das grades, com esses sombrios
pensamentos, e recebi essa emoção. Demorei-me pouco vendo-o…
Pela enseada adentro, entrava uma falua, com velas enfunadas e muito suavemente
deslizava sobre o mar levemente encrespado pelo terral fresco… Passavam
banhistas de ambos os sexos. As mulheres, envolvidas em roupões ou
lençóis, escondiam as pernas e os braços, mais ainda
que os calções e as blusas; os homens, porém, ostentavam-nos
com garbo. As pernas, embora musculosas, às vezes, eram hediondas.

Todos olhavam para a grade, e logo saí dela vexado com aquela curiosidade
malsã. Domingo, eu não amanheci mais nesse dormitório.
O inspetor, tinha resolvido, me transferia para um quarto em que havia um
outro doente de consideração. Não me agradou, porque
se tratava de um estudante e porque, à sua enfatuação
(eu a tive também) de estudante, não devia agradar um companheiro
que lhe surgia no estado de mendigo. Tratou-me bem e eu não tive queixa
dele durante as duas noites que fui seu companheiro de aposento.

Estava há quatro dias no hospital e não havia recebido visita
alguma. Misael salvou-me no que toca a cigarros, o inspetor emprestava-me
os jornais; mas não me contentava com isso.

Chamaram-me à noite e, de pé, no corredor para onde se abria
a porta da seção, falei com meu sobrinho. Não tive aborrecimento
algum, eu tinha convicção da minha manifestação
de loucura. O que me amedrontava era a seção. Não os
loucos propriamente, mas do que o seu aspecto geral me trazia ao pensamento.
Trouxe-me cigarros e eu só lhe reclamei a saída da seção,
fosse como fosse. De tanto pensar no meu destino, entrelaçado com o
daqueles que me eram companheiros, eu me apavorava mais do que se estivesse
no Inferno, perseguido por mil diabos.

Perguntei por todos de casa e despedi-me. Voltei ao interior da seção
e fizeram-me mudar a roupa. Foi a primeira satisfação que me
oferecia o manicômio. Senti mais integrado na minha dignidade, na minha
educação, com aquele pijama que me cobria os tornozelos e os
braços.

Não pude fumar um cigarro até ao fim. Vieram-me chamar. Era
um bom vizinho, negociante dos subúrbios, humano e compassivo. Minha
família comprava na sua venda e, a bem dizer, foi dela que saí
da segunda vez para o hospício. Deu-me cigarros e jornais. Conversamos
dez minutos, e senti bem, naquele homem simples, de pouca cultura, a piedade
profunda que lhe inspirava. Foi a segunda satisfação que o hospício
me dava. Havia bondade, simpatia de homem para homem, independente de interesse
e parentesco.

Pus-me a ler os jornais. A minha sensação já não
era de mágoa e de dor de estar ali; era de esperança da minha
correção e da melhoria de todos os homens. A afeição,
o amor, a simpatia e a piedade haviam de inspirar um dia alguém que
curasse aqueles pobres homens…

Naquele instante, conversando com um companheiro, um outro doente delirava
de fazer rir. Não me ri, mas prestei-lhe atenção, simulando
ler.

Dizia o doente a outro que, no banco em que era empregado, certas vezes dava
a fazer a cobrança de que estava encarregado a outro colega. Este lhe
pedia a roupa, os sapatos, o chapéu, o relógio, etc. Um dia,
porém, pediu-lhe por empréstimo o nariz, os olhos, os bigodes,
etc.

Neguei-lhe, afirmava com energia; como havia eu de viver sem nariz, sem olhos,
sem bigodes, enfim, sem a minha cabeça?

O outro, que era também delirante, não vi a que propósito,
veio a falar em livros, poetas, etc., porque é próprio do delírio,
como toda a gente sabe, não ligar nunca as idéias, às
vezes só às palavras, outras vezes nem a uma nem a outra coisa,
para continuar a sua manifestação, em estilhaços de pensamentos,
de uma que arrebentou sob a pressão da loucura:

– Livros! Tive-os muito bons! fez o homem que não queria emprestar
os bigodes. Você já ouviu falar em Luís de Camões?

– É o autor dos Lusíadas, português.

– Qual o que! Sou eu! Era uma obra em que eu há muito tempo
trabalhava. Escrevia-o em papel muito bom, com uma excelente caligrafia, quando
saía, guardava-o numa escrivaninha à chave. Eu tinha uma criada,
uma negra, que era amigada com um português. Certo dia, esqueci-me da
chave e, ao voltar para a casa, não encontrei a negra, nem o livro.
Ela tinha fugido com o meu trabalho… Passam-se anos e um dia li que, em
Lisboa, morrera na miséria um poeta que vivia com uma negra, deixando
um poema, intitulado Lusíadas, primoroso… Adivinhei logo a coisa:
era o meu trabalho, que a negra tinha roubado e dado ao galego…

– Não reclamou?

– Qual! Não arranjei nada!

O parentesco do delírio do meu companheiro de dormitório com
o episódio do jau, da vida de Camões, toda a gente percebe;
eu, porém, não intervim na conversa e, até, forcei a
atenção para os jornais, a fim de que ela não me arrastasse
de novo a pensamentos agoureiros.

Li-os com cuidado, li seções que, normalmente, desprezava,
mas não findei a leitura. Misael chamou-me para o jantar.

Nos domingos, era mais cedo, e, como das outras vezes, atravessamos o pátio
cheio dos doentes mais incorrigíveis, uns em pé, do lado para
outro, outros deitados debaixo daquele sol de dezembro, outros nus e sobre
uma esteira, um inteiramente nu, de bruços, com um curativo negro de
um cáustico qualquer, que denunciava uma das mais nojentas formas de
sodomia. Misael perguntou-me:

– Sabe o que é isso?

– Sei… Há muitos?

– Muitos.

Não quis mais continuar o diálogo, mesmo porque chegávamos
ao refeitório.

O domingo, que tinha amanhecido toldado, nevoento, com o correr do dia se
tornou claro e luminoso. O calor bastante sensível não era de
sufocar, a viração soprou bem cedo, e a tarde se fez uma esplêndida
tarde tropical, tépida, embalsamada de azul e de silêncio imaterial
das coisas. Do refeitório, nós víamos as montanhas, e
até o Corcovado inclinava-se para o hospício. Acabado o jantar,
eu e Misael fomos dar um passeio pela chácara. É vasta e, apesar
das modificações, mutilações, que tem sofrido,
ainda guarda exemplares das grandes fruteiras que deviam povoá-la há
quarenta anos passados. Vi nela uma grande horta, sem viço, sem verdura
tenra das couves e repolhos, por ser verão; mas, assim mesmo, ela me
interessava todo, me recordava sonhos e projetos.

Gostei sempre muito da casa, do lar; e o meu sonho seria nascer, viver e
morrer, na mesma casa. A nossa vida é breve, a experiência só
vem depois de um certo número de anos vividos, só os depósitos
de reminiscências, de relíquias, as narrações caseiras
dos pais, dos velhos parentes, dos antigos criados e agregados é que
têm o poder de nos encher a alma do passado, de ligar-nos aos que foram
e de nos fazer compreender certas peculiaridades do lugar do nosso nascimento.
Todos os desastres da minha vida fizeram que nunca eu pudesse manter uma inabalável,
minha, a única propriedade que eu admitia, com as lembranças
dos meus antecedentes, com relíquias dos meus amigos, para que tudo
isso passasse por sua vez aos meus descendentes, papéis, livros, louças,
retratos, quadros, a fim de que eles sentissem bem que tinham raízes
fortes no tempo e no espaço e não eram só eles a viver
um instante, mas o elo de uma cadeia infinita, precedida de outras cadeias
de números infinitos de elos.

Uma horta, um pomar com grandes jaqueiras, mangueiras, laranjeiras, abacateiros,
sempre foi o meu sonho; e estavam ali aqueles restos de uma grande chácara,
com árvores de mais de meio século de existência, maltratadas,
abandonadas, talvez, de toda a contemplação sonhadora de olhos
humanos, mas que ainda assim davam prazer, consolavam aquele sombrio lugar
de dor e de angústia.

Misael tinha não sei que moléstia nos músculos de uma
das pernas que o faziam capengar, e nós, sob a luz coada maternalmente
pelas árvores, andamos devagar pela chácara afora.

Havia por ela outros pavilhões, além do de observação.
Havia o de epilépticos, o de tuberculosos, e neste eu vi um chin, no
último grau, deitado numa cama, debaixo de uma árvore frondosa,
que me lembrou de novo o Cemitério dos Vivos de Cantão. Ele
tinha todas as duas magrezas: a de tuberculoso e a de chin; e, falando a Misael,
eu me admirei que não tivesse tido piedade dele. Quis afastar-me logo;
e o china nos ofereceu cigarros. Recusei, por temer o contágio. Surpreendi-me
com esse motivo que calara, porque nunca temo pegar moléstia alguma.
É espontâneo em mim esse destemor, mesmo nas maiores epidemias
que tenho atravessado.

Continuamos a nossa peregrinação. A tarde ainda estava alta
e clara; a noite ainda se demoraria a vir.

Por baixo das árvores, havia doentes; e deparei ao lado cerradas touceiras
de bambus, cujos colmos se entrelaçavam no alto. Não eram as
do Jardim Botânico; mas, no momento, tinham a beleza de me lembrar as
ogivais dele. Quem as teria plantado? De quem teria sido aquela chácara?
Como as coisas têm às vezes o destino ilógico!

Aquelas árvores, aqueles bambus, destinavam-se a uma remansosa estação
de recreio, teriam assistido festas de junho, bulhentas de foguetes e outros
fogos, e iluminadas por fogueiras de cultos esquecidos. Os anos as fizeram
ver a mais triste moléstia da humanidade, aquela que nos faz outro,
aquela que parece querer mostrar que não somos verdadeiramente nada,
nos aniquilando na nossa força fundamental.

Parecia que bastava esta ali; mas não era assim.

Fomos ver outra pior, a horrorosa morféia, que, junta com a loucura,
é para juntar o horror até ao mais alto grau. Uma deforma, degrada
o pensamento; a outra, o corpo, o rosto sobretudo.

Não quis olhar onde estavam alojados os lázaros dementes. Era
numa barraca de campanha, erguida sobre espeques, e cujas bordas eram presas
por pedregulhos respeitáveis.

A sua moradia era provisória; a Morte não tardaria em levá-los…

Era no fundo da chácara. Os automóveis passavam fonfonando.
Adivinhava-os cheios de senhoras, moças, rapazes, homens, cheios de
satisfação por ir gozar aquele domingo em Copacabana; na frente,
era o mesmo movimento dos que se dirigiam a contemplar a baía, a cidade,
o mar e as árvores das montanhas, por cima do Pão de Açúcar.

O hospício estava naquele dia de passeio, quase cercado de alegria,
e movimento. Ele, porém, continuava tranqüilo, silencioso, só
às vezes o silêncio se quebrava, com um grito isolado de alienado
lá nos pavilhões da frente; e nós estávamos diante
da mais terrível associação de males que uma pessoa humana
pode reunir.

Voltamos pelo mesmo caminho. Olhei o céu tranqüilo, doce, de
um azul muito fino. Não se via o sol, que descambava pelas nossas costas.

A tarde continuava bela e agradável. Em meio do caminho, encontramos
bandos de crianças loucas, de menos de dez anos, que iam brincar, sob
a vigilância de uma enfermeira estrangeira, alemã, parecia.

Havia de todas as cores, e todas eram feias, algumas mesmo aleijadas.

Continuamos a volta. Eu olhei o muro que dava para uma das ruas, onde corriam
os automóveis, e calculei sua altura pela minha, que eu sabia de cor…

IV

Segunda-feira, logo após o almoço, o superintendente da seção
chamou-me e disse-me:

– Senhor Mascarenhas, vamos à presença do diretor. Pus
o cigarro fora, ele mesmo ajudou-me a compor o meu vestuário, e lá
fui eu. Em caminho, perguntou-me o chefe da enfermaria:

– O senhor conhece o diretor?

– Conheço, respondi.

A segurança da minha resposta pareceu intrigar o meu caridoso pastor.
Adivinhei, de mim para mim, que ele se fazia a seguinte pergunta: como é
que este rapaz conhece assim o diretor, e logo não reclamou uma melhoria
de situação, e deixou que eu espontaneamente o fizesse?

Seria simples a explicação, se ele me conhecesse melhor. A
minha consciência, a certeza em que eu estava de que o culpado de estar
ali era eu, era a minha fraca vontade, que, entretanto, era forte em outros
sentidos, obrigavam-me, para meu decoro moral, a nada pedir aos camaradas
que me suavizassem a minha situação. De resto, eu já
tinha obtido o razoável para um sujeito que foi recolhido a um hospital
público como um va-nu-pieds Longe de acusar os outros, longe de censurar
aqueles desconhecidos e semi-desconhecidos com os quais lidei com essa classificação
social, eu só tinha que dizer bem deles, pois me julgando assim, em
nada me ofenderam ou maltrataram. As pequenas coisas que feriam o meu amor-próprio
e que me desgostavam intimamente, eram decorrentes do modo por que eu ia me
conduzindo na vida, deixando cair, aniquilando-me. É curioso agora
notar que o que mais me impressionava nos loucos era a mania depressiva, eram
os efeitos da moléstia, a conduzir o indivíduo para o esquecimento
do seu corpo, da sua dignidade de homem, da obliteração, senão
apagamento, de todas as manifestações externas de sua alma,
de sua vida…

Conhecia perfeitamente o diretor e travei conhecimento com ele espontaneamente.
Havia em mim uma atração para ele, e eu me espantava que ele
pudesse, sem barulho, mansamente, se fazer até onde estava. Pouco conhecia
de sua vida, mas conhecia bem a geral e de outros no seu caso, para achar
a dele surpreendente. Ele tinha mesmo qualidades nativas de sedução
e despertar simpatias; mas, se isso se dava nele, e se dá em muitos
outros, entretanto, não despertava, não provocava antipatias,
o que é inevitável, desde que a nossa força na vida venha
da capacidade oposta, como acontecia com ele.

Todos gabavam muito o seu talento, a sua ilustração; mas não
era bem por isso que eu o amava. Nunca lhe tinha lido um trabalho, só
mais tarde me foi dado fazer isso, não tinha nenhuma ilustração
no assunto do seu caber para julgar; mas, conquanto sentisse logo um homem
superior, eu o amava pela sua exalação de doçura.

Logo que fui à sua presença, estava ele sentado a uma pequena
mesa, modesta e sem traduzir nenhuma imponência burocrática,
muito semelhante àquela em que escrevo em casa. Deu comigo, fez-me
sentar a seu lado e perguntou-me, sem nenhuma censura nas palavras e nem no
acento da fala ou no olhar:

– Você, Mascarenhas, quer ficar embaixo ou em cima?

– Em cima, doutor; lá há uma biblioteca…

– Pois bem; vá lá pra cima.

E foi assim que, antes de ter meu sobrinho dado o menor passo para a minha
transferência, ela me foi dada, e tive um pequeno alívio na minha
sorte de maluco periódico.

A biblioteca era a dependência da seção de que mais me
recordava. Quando estive lá pela primeira vez, enchia o tempo lá,
lendo. Havia um razoável número de livros, mas, além
dos muitos dilacerados, havia obras desfalcadas nos seus volumes. Logo ao
entrar, depois de mudar de roupa, tratei de me instalar nela. Tinha mudado
de local; era agora logo na entrada, quando antigamente era no fundo. Fui
vê-la. Estava pobríssima, não havia mais o Vapereau, dicionário
de literatura, tão interessante; não havia mais uns volumes
de Dostoiévski, nenhum deles escapara; os segundos românticos
nacionais tinham desaparecido; e, dos primeiros, só restava um volume
de Gonçalves Dias.

Mesmo da vez passada, a biblioteca do hospício não era um modelo
de lógica, não a tinha presidido nenhum espírito; tinha
de tudo, mas como a massa dos volumes era de literatura de ficção,
não se observava bem o absurdo de certas associações
de obras. Agora, não; ele ressaltava francamente. Os livros de ficção
eram poucos; entretanto de Bourget, de quem não havia só romance,
se encontravam os dois volumes de Essais de psychologie contemporaine, em
magnífico estado; a Bohème galante, de Gérard de Nerval,
estava conservada, assim como o Romance de Pedro, o Grande tinha os dois volumes
em magnífico estado.

Encontravam-se, porém, outros livros, que não se sabia bem
como foram ali parar. Por exemplo, eu achei nela livros estreitamente especiais,
como estes: L’État civil des nouveau-nés, cujo autor não
me recordo; safados relatórios oficiais de vários ministérios,
que, entretanto, apesar da sua aridez, eram muito procurados; Études
sur Colbert, por Jubleaux, que me pareceu uma bela obra, embora a não
pudesse ler; Histoire des classes rurales en France; E. Poirier – Le
Chili en 1908; e um La mer rouge, Le darwinisme, em que o doutor F. Jousseaume
combatia as opiniões de Darwin sobre a formação dos bancos
e recifes calcários, com muito luxo de palavras de má literatura,
assim como a teoria do calor central, ou por outra, de um núcleo ígneo
no centro da terra, com bastante razão. Pode parecer fatigante, mas
não me é possível deixar de citar mais estas três
obras exóticas por demais ali: Le chien, Gayot; um tratado de xadrez;
Annuaire du crédit public, de 60 a 61. Dois romances dessa curiosa
literatura de colégio de irmãs de caridade encontrei também.
Eram de uma virtuosa, certamente, dama – Dona Gabrielle Coni e se intitulavam:
Vers l’oeuvre douce e Fleur não sei de que. Um estava dilacerado,
mas no outro procurei descobrir indícios de quem fosse, não
encontrei. Em alguns, havia. O forte, porém, da biblioteca eram duas
coleções, com vinte e tantos volumes, da Biblioteca das Obras
Célebres.

O salão da biblioteca era mobiliado com pequenas mesas de peroba,
em três filas com quatro delas, cadeiras comuns, duas em cada mesa,
cadeiras de balanço e duas espécies de divãs com enxergão
de arame, próprios à leitura, mas no qual dormiam aqueles que
precisavam companheiros, senão bulha, para conciliar o sono.

Tinha três janelas de sacada, mas gradeadas, e via-se bem próximo
o Pão de Açúcar, a Urca, surgindo das ondas suavemente,
sem luta, nem a interrupção que a denunciasse na transição
de uma praia.

Entrando na biblioteca, muito naturalmente, pois já estava acostumado
aos costumes da casa, tirei a esmo um volume dos vinte e dois ou quatro das
Obras Célebres. Não conhecia essa obra, implicava mesmo com
ela; mas, como vão ver, ela tem o dom de sugerir, de encaminhar, pelos
excertos que traz, em geral bem escolhidos, à leitura dos autores que
recorta.

Deixei mesmo Renan: Dialogues philosophiques e Feuilles détachées,
que não me causaram surpresa achá-los ali, embora não
me lembrasse de tê-los visto da outra vez em que estive.

Os doentes continuavam a passar ao corredor, a entrar e a sair no salão,
a tirar livros e consultá-los durante minutos, e, depois, desandavam
a delirar. Um ou outro de fato lia, mas as obras mais vulgares que lá
existiam.

Não tinha até então falado com nenhum. Tanto nesta como
na outra seção, eu me surpreendi de topar com tanta fisionomia
conhecida vagamente. Umas me pareciam de antigos colegas do colégio
ou de escola superior; outras, de cafés, de festas, de vizinhança,
de conduções públicas. Conquanto isso, não me
atrevia a dirigir-lhes a palavra e perguntar-lhes:

– O senhor não me conhece? Eu me lembro do senhor.

Era preciso travar conhecimento com os meus tristes companheiros de isolamento
e de segregação social. Deixei para depois e dispus-me a ler.
Procurei no índice e encontrei este artigo: Lewis – "Abelardo
e Heloísa."

O autor do artigo que precedia uma ou duas cartas de Heloísa era o
muito conhecido autor inglês, autor de uma famosa vida de Goethe, e
cujas relações com George Eliot ficaram famosas. Trabalho muito
curioso o seu artigo sobre o famoso filósofo do Medievo, mas que, em
resumo, censura em Abelardo o que se pode censurar em todo o grande homem:
um amor muito maior à sua obra, ou talvez aos seus projetos, do que
às pessoas que o amam. Ele vai a ponto de dizer que no forte amor que
ele inspirou a Heloísa, entrou cálculo de aproveitar as deficiências
de sua instrução com as sobras da de sua amada, fugindo ao casamento
público, para obter grandes posições na clericatura.

Não me sobra conhecimento para contrariar esse julgamento; mas, conquanto
achasse justo na primeira leitura, hoje partilho a opinião de Heloísa,
que mais o queria glorioso, do que exemplar chefe de família, porquanto
a sua glória, que unicamente ele a podia realizar, precisava da sua
dedicação e do sacrifício de outros muitos, para ser
útil a todos.

Quando pensei nisso, compreendi melhor minha mulher. O que me assoberbavam
eram dificuldades de toda a ordem, especialmente de dinheiro, coisas caseiras
e triviais; e eu, que nunca lhe tinha confiado meus projetos e escrevera coisas
vulgares e pouco acima do médio, merecia que Efigênia nunca me
atormentasse com as coisas triviais da casa. O que me roía, era o silêncio,
era calar, esconder o que eu tinha de mais eu mesmo na minha vida. Nunca confiei
e não sei como, talvez lendo uma nota ou outra, ela veio a compreender,
como só muito mais tarde vim a inferir pelas suas frases isoladas,
pelos seus conselhos, pelos seus olhares.

Essa descoberta não só me trouxe um grande desgosto e arrependimento,
como uma convicção íntima da fraqueza da minha inteligência.

Vieram-me essas e outras considerações menores, à leitura
daqueles extraordinários fragmentos, e eu chegava a este período
de uma carta de Heloísa: "Se é verdade que os pesares comunicados
a quem deveras nos ama, se dividem e partem ao meio, vós, meu caro
Abelardo, vos vereis por este modo (escrevendo a ela) aliviado de metade do
peso que vos oprime".

Mal tinha acabado a leitura, quando uma voz forte, jovial e atraente, falou
a meu lado:

– O senhor não é o Vicente Mascarenhas?

– Sou.

– Conheço-o de vista e de nome. Não escreveu na Lux,
do Ribeiro Botelho?

De fato, eu havia escrito nessa pequena revista uma coisa sem valor algum;
e aquele rapaz que me falava a tinha lido, por ser amigo do editor da publicação.

Deu-se a conhecer. Era irmão do Samuel Cavalcanti, jornalista, amigo
do Tibério de Belém, também poeta e homem de jornal,
e chamava-se Godofredo Cavalcanti. O todo do rapaz não era do maluco
comum, ele falava com desembaraço e siso, e obedecia em tudo as regras
da conveniência e polidez. Achei estranho que, ali, afinal dentro de
casa, ele vivesse sobraçando um maço de jornais, assim como
quem está fora e vai levá-los para a sua residência.

Godofredo apresentou-me logo a diversos doentes e eles me cercaram a mesa.
A um ele me apresentou como o Capitão do Exército Carvalho Nascimento,
a outro como o doutor Rufino Bezerra, e assim por diante. Por fim, ficamos
nós ambos sós, e Godofredo começava a contar-me uma história,
quando se aproximou um rapaz de menos de trinta anos, magro, de uma boniteza
feminina, pele fina, com a cabeça coberta com um lenço úmido.
O meu introdutor interrompeu o que dizia e, de mau humor exclamou:

– Já vem você, Ribeiro! Não se pode conversar uma
coisa que você não venha se meter! Que falta de educação!

– Já sei, fez o outro, que você, Godofredo, é o
homem mais polido do hospício.

– Sou, sim. Meu pai, que não tinha título algum, que
não era bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, como
meu irmão Samuel, foi convidado pelo doutor João Barbalho Uchoa
Cavalcanti para representar o Brasil nos Estados Unidos.

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