O Subterrâneo do Morro do Castelo

Lima Barreto

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Sexta-feira, 28 de abril de 1905

Fabulosas riquezas – Outros Subterrâneos

Os leitores hão de estar lembrados de que, há tempos, publicamos
uma interessante série de artigos da lavra do nosso colaborador Léo
Junius, subordinados ao título Os Subterrâneos do Rio de Janeiro.

Neles vinham descritas conscienciosamente e com o carinho que sempre o autor
dedicou aos assuntos arqueológicos as galerias subterrâneas,
construídas há mais de dois séculos pelos padres jesuítas,
com o fim de ocultar as fabulosas riquezas da comunidade, ameaçadas
de confisco pelo braço férreo do Marquês de Pombal.

Verdade ou lenda, caso é que este fato nos foi trazido pela tradição
oral e com tanto mais viso de exatidão quanto nada de inverossímil
nele se continha.

De feito: a ordem fundada por Inácio de Loiola, em 1539, cedo se tornou
célebre pelas imensas riquezas que encerravam as suas arcas, a ponto
de ir tornando a pouco e pouco uma potência financeira e política
na Europa e na América, para onde emigraram em grande parte, fugindo
às perseguições que lhe eram movidas na França,
na Rússia e mesmo na Espanha, principal baluarte da Companhia.

Em todos estes países os bens da Ordem de Jesus foram confiscados,
não sendo pois admirar que, expulsos os discípulos de Loiola,
em 1759, de Portugal e seus domínios pelo fogoso ministro de D. José
I, procurassem a tempo salvaguardar os seus bens contra a lei de exceção
aplicada em outros países, em seu prejuízo.

A hipótese, pois, de existirem no morro do Castelo, sob as fundações
do vasto e velho convento dos jesuítas, objetos de alto lavor artístico,
em ouro e em prata, além de moedas sem conta e uma grande biblioteca,
tomou vulto em breve, provocando o faro arqueológico dos revolvedores
de ruinarias e a auri sacra fames de alguns capitalistas, que chegaram mesmo
a se organizar em companhia, com o fim de explorar a empoeirada e úmida
colchida dos Jesuítas. Isto foi pelos tempos do Encilhamento.

Sucessivas escavações foram levadas a efeito, sem êxito
apreciável; um velho, residente em Santa Teresa, prestou-se a servir
de guia aos bandeirantes da nova espécie, sem que de todo este insano
trabalho rendesse afinal alguma coisa a mais que o pranto que derramaram os
capitalistas pelo dinheiro despendido e o eco dos risos casquilhos de mofa,
de que foram alvo por longo tempo os novos Robérios Dias.

Estes fatos já estavam quase totalmente esquecidos, quando ontem novamente
se voltou a atenção pública para o desgracioso morro
condenado a ruir em breve aos golpes da picareta demolidora dos construtores
da Avenida.

Anteontem, ao cair da noite, era grande a azáfama naquele trecho das
obras.

A turma de trabalhadores, em golpes isócronos brandiam os alviões
contra o terreno multissecular, e a cada golpe, um bloco de terra negra se
deslocava, indo rolar, desfazendo-se, pelo talude natural do terreno revolvido.

Em certo momento, o trabalhador Nelson, ao descarregar com pulso forte a
picareta sobre as últimas pedras de um alicerce, notou com surpresa
que o terreno cedia, desobstruindo a entrada de uma vasta galeria.

O Dr. Dutra, engenheiro a cujo cargo se acham os trabalhos naquele local,
correu a verificar o que se passava e teve ocasião de observar a seção
reta da galeria (cerca de 1,60m de altura por 0,50m de largura).

O trabalho foi suspenso a fim de que se dessem as providências convenientes
em tão estranho caso; uma sentinela foi colocada à porta do
subterrâneo que guarda uma grande fortuna ou uma enorme e secular pilhéria;
e, como era natural, o Sr. Ministro da Fazenda, que já tem habituada
a pituitária aos perfumes do dinheiro, lá compareceu, com o
Dr. Frontin e outros engenheiros, a fim, talvez, de informar à curiosa
comissão se achava aquilo com cheiro de casa-forte… O comparecimento
de S. Exa., bem como a conferência que hoje se deve realizar entre o
Dr. Frontin e o Dr. Lauro Muller, levam-nos a supor que nas altas camadas
se acredita na existência de tesouros dos jesuítas no subterrâneo
do morro do Castelo.

Durante toda a tarde de ontem, crescido número de curiosos estacionaram
no local onde se havia descoberto a entrada da galeria, numa natural sofreguidão
de saber o que de certo existe sobre o caso.

Hoje continuarão os trabalhos, que serão executados por uma
turma especial, sob as imediatas vistas do engenheiro da turma.

Que uma fada benfazeja conduza o Dr. Dutra no afanoso mister de descobridor
de tesouros, tornando-o em Mascotte da avenida do Dr. Frontin.

A propósito da descoberta deste subterrâneo, temos a acrescentar
que, segundo supõe o Dr. Rocha Leão, nesta cidade existem outros
subterrâneos do mesmo gênero e de não menos importância.

Assim é que na Chácara da Floresta deve existir um, que termina
no local onde foi o Theatro Phenix; um outro que, partindo da praia de Santa
Luzia, vai terminar num ângulo da sacristia da Igreja Nova.

Ainda outro, partindo também de Santa Luzia, termina num pátio,
em frente à cozinha da Santa Casa de Misericórdia, além
de outros ainda, de menor importância.

O Dr. Rocha Leão, que obteve há tempos concessão do
governo para exploração dos chamados subterrâneos do Rio
de Janeiro, assevera mais, em carta a nós dirigida, que na Travessa
do Paço há um armazém em ruínas, em uma de cujas
reforçadas paredes está oculta a entrada para uma galeria que
vai até os fundos da Catedral; daí se dirige paralelamente à
Rua do Carmo até o Beco do Cotovello, onde se bifurca e sobe pela ladeira
até à igreja.

Segundo o mesmo arqueólogo, nestes subterrâneos se devem encontrar,
além de grandes riquezas, o arquivo da capitania do Rio de Janeiro,
a opulenta biblioteca dos padres e os mapas e roteiros das minas do Amazonas…

Pelo que vêem, eis aí farta messe de assunto para os amadores
de literatura fantástica e para os megalômanos, candidatos a
um aposento na Praia da Saudade.

Sábado, 29 de abril de 1905

Visita à Galeria

Uma hora da tarde; o sol causticante ao alto e uma poeirada quente e sufocante
na Avenida em construção; operários cantam e voz dolente,
enquanto os músculos fortes puxam cabos, vibram picaretas, revolvem
a areia e a cal das argamassas.

O trajeto pela Avenida, sob a canícula medonha, assusta-nos; um amigo
penalizado, resolve-se a servir-nos de Cirineu e lá vamos os dois,
satirizando os homens e as coisas, pelo caminho que conduz ao tesouro dos
jesuítas ou à blage da lenda.

Estacamos para indagar de um grupo de trabalhadores onde podíamos
encontrar o Dr. Dutra.

— Patrão, não sabemos; nós trabalhamos no theatro.

Não eram atores, está visto; simples operários, colaboradores
anônimos nas glórias futuras da ribalta municipal.

Mais alguns passos e aos nossos surge a mole argilosa do Castelo: um grande
talho no ventre arroxeado da montanha nos faz adivinhar a entrada do famoso
subterrâneo.

Limitando uma larga extensão, há, em torno ao local de tantas
esperanças, uma cerca de arame, barreira à curiosidade pública
que ameaçava atrapalhar a marcha dos trabalhos.

O Dr. Pedro Dutra, enlameado e suarento, discreteava num pequeno grupo.

Ao aproximarmo-nos, o novel engenheiro, amável, nos indicou com um
sorriso a passagem para o local vedado ao público.

— Então, já foram descobertos os apóstolos?
— Que apóstolos?
— Os de ouro, com olhos de esmeralda?
— Por ora não, respondeu-nos risonho o engenheiro e, solícito,
acompanhou-nos à porta da galeria.

Esta é alta, de 1 metro e 90 centímetros, com cerca de 80 centímetros
de largura; no interior operários retiravam o barro mole e pegajoso,
atolados no lameiro até o meio das canelas. Ao fundo bruxuleava uma
luzinha dúbia, posta ali para facilitar a desobstrução
do subterrâneo.

Um cenário tétrico de dramalhão.

O Dr. Dutra dá-nos informações sobre os trabalhos.

Por ora, limitam-se estes à limpeza da parte descoberta.

Pela manhã de ontem, ele a percorreu numa extensão de 10 metros;
é o primeiro trecho da galeria.

Daí em diante, esta conserva a mesma largura, aumentando a altura
que passa a ser de 2 metros e 10 centímetros e dirigindo-se para a
esquerda num ângulo de 55 graus, mais ou menos.

O trabalho tem sido muito fatigante; não só pela exigüidade
do espaço, como pela existência d’água de infiltração.

Mesmo assim, o Dr. Dutra espera hoje limpar toda a parte explorada, continuando
em seguida a exploração no trecho que se dirige para a esquerda.

— Até agora nada se encontrou de interessante, se há
tesouro ainda não lhe sentimos o cheiro.
— Mas o que imagina o doutor, sobre o destino desta galeria?

— Não tenho opinião formada; apenas conjecturas… Os
jesuítas talvez hajam construído o subterrâneo para refúgio,
em caso de perseguição; o Marquês de Pombal era um pouco
violento…

Gostamos da benevolência do conceito; um pouco…

E o engenheiro continuou:

— Nota-se que não houve a preocupação de revestir
as paredes, o que seria natural fazer, caso se pretendesse ali guardar livros
ou objetos de valor… Os construtores da galeria evitaram na sua perfuração
o barro vermelho, procurando de preferência o moledo, mais resistente;
todo o trabalho parece ter sido feito a ponteiro.

—E sobre a visita do Dr. Bulhões?

—Esteve com efeito aqui, acompanhado pelo Dr. Frontin e penetrou com
este até o último ponto acessível da galeria. Mas parece
que voltou desanimado…

O nosso companheiro de excursão quis discutir ainda o papel do Marquês
de Pombal no movimento político religioso do século XVIII; mas
o calor sufocava e nada mais havia de interessante sobre o subterrâneo
do Castelo.

Despedimo-nos gratos à amabilidade cativante do Dr. Pedro Dutra, cujo
aspecto não era, entretanto, o de quem se julga à porta de um
tesouro secular.

Em torno, contida pela cerca de arame, apinhava-se a multidão sonhadora
e desocupada…

Ainda a propósito do subterrâneo do Castelo, convém notar
que há mais de vinte anos o Barão de Drummond, que depois se
tornou dono de uma fama imorredoura pela genial descoberta do jogo do bicho,
tentou a exploração do morro do Castelo, com o fim de retirar
de lá os tesouros ocultos e promover por este modo o pagamento de dívida
pública e… das suas.

Os trabalhos eram feitos com o emprego de minas de dinamite o que provocou
protestos dos moradores do morro e conseqüentemente suspensão
do perigoso empreendimento.

E ficou tudo em nada.

O Dr. Rocha Leão, que durante longos anos se tem dedicado aos estudos
dos subterrâneos do Rio de Janeiro declara-nos existir documentos positivos
sobre o local em que se acham tesouros dos jesuítas no Arquivo Público
e na Antiga Secretaria de Ultramar, na Ilha das Cobras.

Terça-feira, 2 de maio de 1905

Alegrem-se os que acreditam na existência de fabulosas riquezas na
galeria do morro do Castelo.

Se o ouro ainda não refulgiu ao golpe explorador da picareta, um modesto
som metálico já se fez ouvir, eriçando os cabelos dos
novos bandeirantes e dando-lhes à espinha o frio solene das grandes
ocasiões; som feio e inarmônico de ferro velho, contudo som animador
que faz pregoar orquestrações de barras de ouro, cruzados do
tempo do D. João VI, pedrarias policrômicas, raras baixelas de
repastos régios, tudo isto desmoronando-se, rolando vertiginosamente
como o cascalho humilde pelo talude escarpado da montanha predestinada.

Por agora contentemo-nos com o ferro velho; ferro cujo passado destino, ao
que se diz, honra pouco a doçura de costumes dos discípulos
de Loiola, ferro em cuja superfície oxidada a Academia de Medicina
ainda poderá achar resquícios do sangue dos cristãos-novos.

Ainda bem que hoje em dia nem mais para os museus poderão servir as
carcomidas correntes levantadas pelas mãos dos buscadores de ouro.

Agora que tanto se fala na candidatura do Sr. Bernardino de Campos seria
assaz de temer que as golilhas e polés encontradas no Castelo ainda
estivessem capazes de uso.

O Sr. Presidente da República lá esteve, na galeria dos jesuítas,
galeria em que, diga-se a verdade, sente-se bem a sua angélica pessoa.

Foi isto ontem pela manhã, depois do café e antes da segunda
inauguração do primeiro decímetro de cães.

S. Exa., acompanhado da casa civil e militar, do Dr. Frontin e de outras
pessoas gratas (gratas, sr. revisor!), enveredou pelo buraco, iluminado por
um foco de acetileno, que dava à galeria o tom macabro da furna de
Ali Babá.

Entrou, olhou e nada disse; se o chefe de polícia estivesse presente
teria exclamado como de outra vez (e desta com alguma razão): —Senhores,
estamos com um vulcão por cima da cabeça.

A frase não seria de toda absurda, desde que por uma ficção
poética se concedessem por um momento ao inofensivo Castelo as honras
vulcânicas.

Mas, em suma, nem o Sr. Bulhões nem o Sr. Frontin, nem mesmo o Presidente
da República tiveram a dita de encontrar os apóstolos de ouro
de olhos esmeraldinos; e como S. Tomé, que também era apóstolo,
ficam aprovisionando entusiasmo para quando os seus dedos assépticos
conseguirem tocar as imagens que nos vão salvar da crise econômica.

E contem conosco para a inauguração do curso metálico.

Quarta-feira, 3 de maio de 1905

Mais uma galeria subterrânea foi descoberta ontem no morro do Castelo.
Decididamente a velha mole geológica, esventrada pela picareta do operário
descrente, despe o mistério que a envolvia e escancara o seu bojo oco
e cobiçado à pesquisa dos curiosos.

Já ninguém contesta que o morro lendário, célula
matriz de Sebastianópolis, encerra nas arcas de seus poços interiores,
atulhados pela caliça de três séculos e meio, um alto,
um elevado tesouro… bibliográfico, pelo menos.

Em toda a parte do morro, onde a picareta fere mais fundo, responde um eco
grave no interior, eco que vai de galeria em galeria quebrar-se nas vastas
abóbodas onde repousam os doze apóstolos de ouro.

Mais um mês, mais 8 dias, quem sabe, e o Santo Inácio de Loiola,
há trezentos anos afundando na tenebrosa escuridão do cárcere
calafetado, emergirá à luz dos nossos dias, todo refulgente
nos doirados de sua massa fulva.

Há por força dentro do morro do Castelo uma riqueza fabulosa
deixada pelos discípulos de Loiola na sua precipitada fuga sob o açoite
de Pombal.

Tanto metal precioso em barra, em pó, em estátuas e objetos
do culto, não podia passar despercebido à arguta polícia
do ministro incréu e atilado.

Na sua mudez de catacumbas seculares, os subterrâneos do Castelo bem
serviriam para guardar os tesouros da Ordem mais rica do mundo e ainda os
guardam certamente.

Mas agora chegou o tempo de quebrar o segredo de sua riqueza e ser espoliado
de seu olímpico depósito.

O homem já não se contenta em querer escalar o céu,
quer também descer ao coração da terra e não poderá
o morro do Castelo embaraçar-lhe a ação.

Há de rasgar-se, há de mostrar o labirinto de suas acidentadas
galerias e há de espirrar para fora os milhões que vêm
pulverizando numa digestão secular.

Um dia destes foi num dos flancos que se abriu a boca silenciosa de um corredor
escuro que os homens interrogam entre curiosos e assustados; hoje é
a própria cripta do morro que se parte como a querer bradar para o
céu o seu protesto contra a irreverência e avidez dos homens!

Mas os operários prosseguem cada vez mais porfiados em ver quem primeiro
colhe o prazer ultra-marinho de descobrir o moderno Eldorado.

Foi ontem; uma turma explorava o dorso imoto do morro; súbito a ponta
da picareta de um operário bate num vazio e some-se…

A boca negra de um outro subterrâneo escancarava-se.

Pensam uns que é a entrada, arteiramente disfarçada, de uma
outra galeria, opinam outros que é simples ventilador dos corredores
ocultos.

Seja o que for, porém, a coisa é verdadeira, lá está
a 8 metros abaixo do solo emparedada a tijolo velho.

Trouxemos uma terça parte de um dos tijolos para nosso escritório
onde quem quiser a pode examinar

Quinta-feira, 4 de maio de 1905

A multidão apinhava-se curiosa, diante do morro do Castelo, em cujo
imenso bojo se entesouram riquezas fabulosas, abandonadas pelos jesuítas
na precipitação da retirada.

Olhos ávidos de descobrir na sombra pesada da galeria o rebrilho de
uma peça de ouro, ouvidos atentos ao mínimo ruído vindo
de dentro, toda aquela gente, nos lazeres do feriado de ontem, se acotovelava
ao longo da cerca de arame, que a previdência oficial construiu, para
maior segurança do subterrâneo opulento.

Íamos sequiosos de novas do Castelo e das suas lendárias coisas;
mas, a dilatada área defesa ao público, não havia o movimento
habitual dos dias de labor.

Pequerruchos despreocupados revolviam a terra e à porta soturna da
galeria dois negros cérberos vigiavam, modorrentos, o tesouro secular.

Aproximamo-nos. Havia uma franca comunicatividade entre os curiosos, trocavam-se
comentários estranhos sobre a direção dos subterrâneos,
as salas amplas, em mármore rosado, nas quais se enfileiram, pejadas
de ouro e pedrarias, as arcas dos discípulos de Loiola.

Mas, em meio a multidão, salienta-se um senhor alto, de bigodes grisalhos
e grandes olhos penetrantes, cuja voz pausada e forte atrai a atenção
de toda gente. O círculo de curiosos se aperta a pouco e pouco e os
ouvidos recebem deleitados as palavras do oráculo.

De coisas extraordinárias sabe este homem; tem talvez cinqüenta
anos de idade, dois terços deles gastos no esmerilhamento das verdades
ocultas nas entrelinhas de pergaminhos seculares.

Ele sabe de todo um Rio subterrâneo, um Rio inédito e fantástico,
em que se cruzam extensas ruas abobadadas, caminhos de um Eldorado como não
no sonhara Pangloss.

Acercamo-nos também, na ânsia de escutar a palavra sábia;
ele já enveredara por um detalhe trágico da história
conventual do Castelo: a história de uma condessa italiana, da família
dos Médicis, raptada, em noite escura, de um palácio florentino
e conduzida num bergantim para o claustro dos jesuítas, onde, em babilônicas
orgias, seu alvo corpo palpitante de mocidade e seiva corria de mão
em mão, como a taça de Hebe; depósito sagrado de um capitoso
vinho antigo.

Os circunstantes ouviam boquiabertos a interessante narrativa; um senhor,
nédio e rosado, aparteava de quando em vez, pilhérico.

Ousamos uma pergunta:

— Há documentos a respeito?

— Preciosíssimos, meu amigo; eu tive sob os olhos todo o roteiro
das galerias; conheço-as como a palma das minhas mãos. A reconstrução
daquela época trágica seria uma obra de fazer arrepiar os cabelos!…

— E quanto às duas galerias recentemente descobertas?

Ele disse:

— Não valem nada, meu amigo; o caminho está errado; por
aí não darão no vinte.

— Mas, neste caso, que utilidade tem estas?

— Estas e muitas mais foram feitas, umas para os suplícios e
outras com o único fim de atordoar, desnortear os investigadores. O
verdadeiro depósito dos tesouros, onde se encontram arcas de ferro
abarrotadas de ouro e pedras finas, acha-se a 430 metros do sopé do
morro; aí o ar é quase irrespirável em vista das exalações
sulfúricas; é mesmo de crer que o morro não seja mais
que o tampo de um vulcão. De tudo isto há documentos irrefutáveis
e não só referentes ao Castelo como aos demais subterrâneos,
quais os da ilha do Raimundo, próxima à do Governador, e da
Fazenda de Santa Cruz e tantos outros que minam a velha cidade de Mem de Sá.

— E o cavalheiro me pode dar alguns apontamentos a respeito?

— Com prazer; o meu maior desejo é elucidar todos os pontos
desta interessante história para que o governo não esteja a
perder tempo e dinheiro com buscas fatalmente improfícuas

— Neste caso…

— Apareça em minha residência; mostrar-lhe-ei os documentos.

— É favor; lá irei hoje mesmo.

— Às oito horas, está dito.

E com um forte aperto de mão, depedimo-nos, de coração
palpitando de curiosidade, prelibando o cheiro dos documentos arcaicos e a
imaginar toda a complicada tragédia de suplícios inquisitoriais,
de pesados lajões, sepultando ouro em barra, e de condessas louras,
a desmaiar de amor nas celas do claustro imenso.

Da longa história que ouvimos, fartamente documentada e narrada em
linguagem simples e fluente, por um homem de espírito cultivado e arguto
conhecedor do assunto, daremos amanhã circunstanciada notícia
aos leitores, justamente ávidos de desvendar os mistérios do
venerável morro.

O Dr. Rocha Leão escreve-nos, à propósito do palpitante
assunto:

“Sr. redator,
Digna-se V.S. dar-me pequeno espaço para uma reclamação.
Fui hoje surpreendido com a publicação que fez O Paiz de documentos
que foram entregues ao Ex.mo Sr. Presidente da República.
Não tenho a honra de conhecer, nem ao menos de vista, o Ex.mo Sr. Almirante
Nepomuceno.
Já há tempos declarei que os documentos que eu possuía
sobre o Castelo entreguei-os ao meu finado amigo o engenheiro Jorge Mirandola
e não Miranda, quando ele foi há anos à Inglaterra.
Falecendo esse engenheiro em Lisboa, procurei aqui em Icaraí (Niterói)
a sua viúva para lhe pedir a entrega dos meus pergaminhos.
Nessa visita fui acompanhado pelo meu amigo Sr. Camanho.
Disse-me a senhora que nenhum papel ou documento se arrecadou em Lisboa.
Agora vejo uma oferta desses pergaminhos que me pertencem, pois estão
com o meu nome.
Declaro que são dois pergaminhos antigos, não tinham cor vermelha
nenhuma, nem declaração por minha letra donde foram achados;
um deles estava dobrado como uma carta e o sobre-scripto é uma cruz
longitudinal com cifras que significam o endereço ao Geral da Companhia
em Roma.
Além disto, ainda confiei ao finado Mirandola um grosso volume em francês
encontrado por mim, com o título Portrait des sciences, com gravuras
de colunas e anotado em cifras pelos padres.
Responderei ao artigo do ilustrado Sr. Dr. Vieira Fazenda.
O abaixo assinado teve ao seu dispor os mais importantes documentos do seu
finado amigo, o Dr. Alexandre José de Mello Moraes.
Ainda mais descendentes de famílias que governaram o Brasil como os
Barretos de Menezes, Telles e outros, em seus papéis colhi notícia
de tudo.
Bobadella era compadre e amigo do Dr. Francisco Telles de Barreto de Menezes
e lhe dizia sempre que um dia apareceriam as riquezas dos padres que eram
avultadas e estavam ocultas em vários lugares.
Aguardo a resposta do Ex.mo Sr. Almirante Nepomuceno, relativa aos meus pergaminhos.

”Dr. Rocha Leão.”quot;

Sexta-feira, 5 de maio de 1905

Os Tesouros dos Jesuítas
Chovia torrencialmente quando apeamos do bonde que nos conduzia à residência
daquele senhor alto de bigodes grisalhos e olhar penetrante que ontem apresentamos
aos leitores como um grande sabedor das extraordinárias coisas do Morro
do Castelo.

Uma ladeira íngreme, lá para os lados de Gamboa, lamacenta
e negra a nos recordar o passado Porto Artur com toda a bravura dos vencidos
e todo o ridículo dos vencedores.

Céu caliginoso ao alto, de nuvens pardas, pesadas de chuva…

A luz dúbia e intermitente das lamparinas elétricas da Central,
que dificilmente nos aponta o caminho da residência do “nosso homem”.

Neste cenário trágico nos encaminhamos pelas tortuosas vilas
da Gamboa, à cata das preciosas informações que nos prometera
de véspera o senhor alto, de olhos penetrantes.

Há alguma dificuldade em encontrar a casa; a escuridão tenebrosa
da noite e da iluminação nos não consente distinguir
os números dos portais.

Indagamos da vizinhança:

— O Sr. Coelho? Sabe nos dizer onde mora o Sr. Coelho?

— Ali adiante, moço, informa-nos opulenta mulata que goza a
noite, refestelada à janela.

Caminhamos; em meio à ladeira íngreme, um velho abanando o
cachimbo. Informa-nos:

— O Sr. Coelho mora no 27, passando aquela casa grande, a outra.

O Sr. Coelho, concluímos, é conhecido de toda gente; toda gente
nos dá notícias precisas do Sr. Coelho, inda bem…

Encontramos, por fim, o 27, entramos. Casa modesta de empregado público,
sem altas ambições; efígies de santos pendem das paredes;
há no ambiente o perfume misterioso da gruta de um derviche ou do laboratório
de um alquimista.

À luz macilenta de um lâmpada de querosene os nossos olhos divisam
retratos em fotogravura de Allan Kardec e Pombal, que “hurlent de se
trouver ensemble”.

— Tem aqui o Pombal! hein Sr. Coelho?

— O Pombal? Meu grande amigo, meu grande amigo!…

Amável, o dono da casa lamenta o ofício de jornalista.

— Com esta chuva…

— Que quer? É preciso informar o público; o público
é exigente, quer novidades a todo transe e agora a novidade que se
impõe é o Castelo, são os seus subterrâneos e o
senhor é o homem fadado a nos tornar capazes de satisfazer a curiosidade
carioca.

O Sr. Coelho desfaz-se em modéstia: não é tanto assim,
ele sabe alguma coisa, mas o seu maior prazer é abrir os olhos ao público
contra as falsidades dos embusteiros.

E levanta-se para nos trazer seus documentos.

São largas folhas de papel amarelado, cheirando a velho, preciosos
pergaminhos em que se mal descobrem caracteres indecifráveis, figuras
cabalísticas, coisas intraduzíveis aos nossos olhos profanos.

— Aqui temos nós toda a verdade sobre os tão falados
tesouros, diz-nos, num gesto enérgico. Mas antes de enveredar neste
caos, uma rápida explicação! As galerias agora encontradas,
como já disse, nada significam; são esgotos, são esconderijos
e nada mais. O atual edifício do convento compunha-se antigamente de
três andares; dois deles estão atualmente soterrados. A porta
que conduzia ao Morro, corresponde ao antigo 2o andar do edifício,
e estava por conseguinte muito abaixo do primitivo convento.

Todas as galerias que atravessam a montanha com diversos sentidos não
foram construídas, como se tem imaginado, no tempo de Pombal, nas vésperas
da expulsão da Companhia de Jesus; elas datam da instalação
da Companhia no Brasil.

Os jesuítas argutos e previdentes, imaginaram o que, de futuro, lhes
poderia suceder; e daí o se aprestarem com tempo, construindo na mesma
época em que fizeram as galerias de esgotos e as que serviam para o
transporte de mercadorias, os subterrâneos de defesa e os grande depósitos
dos seus avultados bens.

Os jesuítas eram senhores e donos de quase todo o Rio de Janeiro;
possuíam milhares de escravos, propriedades agrícolas, engenhos
de açúcar e casas comerciais. Quando a 10 de maio de 1710 aportou
a esta cidade a expedição de João Francisco Duclerc cuja
misteriosa morte vai ser em breve conhecida por documentos que possuo, os
jesuítas perceberam com fina clarividência que os franceses não
deixariam impune o assassinato do seu compatriota. Prevendo assim a expedição
vingadora de Duguay Trouin, os padres da Companhia cuidaram de pôr em
lugar seguro os tesouros da Ordem, receosos de um provável saque dos
franceses. Aproveitaram para este fim os subterrâneos, já construídos,
do Castelo e lá encerraram todos os tesouros lavrando-se por esta ocasião
uma ata em latim cuja tradução é a seguinte:

Ad perpetuam memoriam

“Aos 23 dias do mês de novembro de 1710, reinando El Rei D. João
V, sendo capitão-general desta capitania Francisco de Castro Moraes
e superior deste Colégio o Padre Martins Gonçalves, por ordem
do nosso Rev.mo Geral foram postos à boa guarda, nos subterrâneos
que se fabricaram sob este Colégio, no monte do Castelo, as preciosidades
e tesouros da ordem nesta província, para ficarem a coberto de uma
nova invasão que possa haver. Consiste este tesouro de:—Uma imagem
de Santo Inácio de Loiola, de ouro maciço pesando 180 marcos;
uma imagem de S. Sebastião e outra de S. José, ambas de ouro
maciço pesando cada uma 240 marcos, uma imagem da Santa Virgem, de
ouro maciço pesando 290 marcos; a coroa da Santa Virgem, de ouro maciço
e pedrarias, pesando, só o ouro, 120 marcos; 1400 barras de ouro de
quatro marcos cada uma; dois mil marcos de ouro em pó; dez milhões
de cruzados, em moeda velha e três milhões de cruzados em moeda
nova, tudo em ouro; onze milhões de cruzados em diamantes e outras
pedras preciosas, além de um diamante de 11 oitavas, 9 quilates e 8
grãos, que não está avaliado. Além destes tesouros
foi também guardada uma banqueta do altar-mor da Igreja, seis castiçais
grandes e um crucifixo, tudo em ouro, pesando 664 marcos. O que tudo foi arrecadado
em presença dos nossos padres, lavrando-se duas atas do mesmo teor,
das quais uma fica neste colégio e outra segue para Roma a ser entregue
ao nosso Rev.mo Geral, dando-se uma cópia autêntica a cada um
dos nossos padres. Feita nesta cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro,
aos 24 dias do mês de novembro do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de
1710 (Assinados) Martins Gonçalves, superior. —Padre Manuel Soares,
visitador. —Frei Juan de Diaz, prior.”

Sábado, 6 de maio de 1905

Os Tesouros dos Jesuítas

Diante do documento, em que se vêem arrolados os bens da companhia,
sem dissimular o espanto, indagamos do nosso informante:

— E tais riquezas existirão ainda nos subterrâneos do
morro?

— Certamente e eu explico: Quando chegou às mãos do Conde
de Bobadella, Gomes Freire de Andrade, o decreto de 4 de novembro de 1759,
em que D. José I por influência de seu grande ministro expulsara
os jesuítas de Portugal e seus domínios, já de há
muito que se achavam em lugar seguro os bens da ordem; em obediência
à carta régia de 4 de novembro, Bobadella fez cercar o Colégio,
aprisionando os padres e cuidou sem detença do confisco dos seus múltiplos
haveres; pois bem, tudo quanto se apurou em dinheiro importou apenas na ridícula
quantia de 4.173$220!

É crível que a riquíssima Comunidade, proprietária
de vastos terrenos, engenhos, casas de comércio, escravos, etc., nada
mais possuísse em moedas que aquela insignificante quantia?

E as valiosas baixelas de prata, e os objetos de culto, tais como cálices,
turíbulos, lâmpadas, castiçais e as alfaias de seda e
damasco bordadas a ouro?

Que fim levou tudo isto?

Gomes Freire Conseguiu apenas seqüestrar os bens imóveis e os
escravos, e esta parte de sua fortuna montava a alguns milhares de contos
de réis; quanto ao resto, ele próprio declara, em carta dirigida
ao rei em data de 8 de dezembro de 1759:

“É certo que, sabendo os padres que em mais ou menos tempo havia
de chegar a tormenta, puseram o seu tesouro em salvamento, pelo que se lhes
não encontrou mais dinheiro (eles dizem ser quase todo alheio) que
4.173$220 de que se vão sustentando como se me decretou.”

— Mas, passada a “tormenta”, não teriam eles arranjado
meios de retirar os tesouros ocultos, conduzindo-os para Roma, sede capital
da Ordem?

— Esta objeção tem sido formulada centenas de vezes e
centenas de vezes destruída como uma bolha de sabão.

O morro do Castelo ficou sempre, depois da saída dos jesuítas,
sob a guarda vigilante das autoridades civis portuguesas e depois brasileiras;
além disso, não era fácil empresa penetrar nos subterrâneos
e de lá retirar arcas e cofres pejados de ouro e pedrarias sem provocar
suspeitas, ocultamente, sem o menor arruído.

— Realmente…

— Os tesouros lá estão ainda, nas vastas salas subterrâneas,
até que mãos hábeis, trabalhando com prudência
e método, os vão arrancar do secular depósito.

Parece que o momento é chegado; é necessário, entretanto,
não perder tempo com escavações inúteis; é
preciso atacar o morro com segurança, de acordo com os documentos existentes
e que dizem respeito à topografia dos subterrâneos.

Estes, os que conduzem ao lugar do tesouro, são em número de
quatro, construídos na direção dos pontos cardeais.

Vão ter a um vasto salão de forma quadrada e abobadado, que
por sua vez tem comunicação com o Colégio por meio de
escadas em espiral abertas no interior das paredes.

Esta sala fica inscrita a um largo fosso onde vão ter, antes de a
elas chegar, as quatro galerias.

Duas grossas paredes dividem em quatro compartimentos a referida sala.

Em um deles acham-se os cofres de moedas de ouro e prata, os cofres de ouro
em pó e, as imagens de S. Inácio, S. Sebastião, S. José
e da Virgem, todas de ouro maciço e grande quantidade de objetos do
culto católico.

Em outra divisão se encontram as arcas com diamantes e pedras preciosas
e numerosas barras de ouro.

As duas restantes contêm os instrumentos de suplício, a riquíssima
biblioteca dos padres, as alfaias e uma mobília completa de mármore,
assim como todos os papéis referentes à Ordem no Brasil e que
se acham guardados em grandes armários de ferro.

— É extraordinário.

— É verdade, meu amigo, e quem for vivo há de ver; contanto
que abandonem o caminho errado e tratem de penetrar no subterrâneo do
alto para baixo, o que não será difícil visto a existências
das escadas em espiral que conduzem ao grande salão que lhes descrevi.
E ninguém está em melhores condições de descobrir
o que está lá dentro que o próprio Marquês de Pombal,
que pretendia confiscar todas as riquezas da Companhia.

— Quem? O Marquês de Pombal? exclamamos sem compreender.

— Sim, senhor; o Marquês de Pombal ou o Dr. Frontin, que são
uma e a mesma pessoa.

— Está a fazer perfídia, hein?

E rimos a bom rir.

— Não graceje, meu amigo, protestou, severo, o Sr. Coelho; o
que lhe digo não é nenhuma pilhéria; o Dr. Frontin é
o Marquês de Pombal; ou melhor, aquele encarna atualmente a alma do
ministro de D. José!

Íamos desmaiar; o Sr. Coelho bate-nos amigavelmente ao ombro e promete-nos
dar os motivos por que com tanta segurança afirma que o reconstrutor
de Lisboa anda entre nós, metido na pele do construtor da Avenida Central.

E prestamos ouvido atento entre pasmados e incrédulos.

Amanhã contaremos aos leitores esta bizarra e maravilhosa história

Domingo, 7 de maio de 1905

Os Tesouros dos Jesuítas

O Sr. Frontin é o Marquês de Pombal na segunda encarnação!

Esta frase, dita num tom firme e catedrático, na meia-luz de uma sala
francamente iluminada, deu-nos calafrios à alma, já, de resto,
habituada às surpreendentes coisas de que tem sido pródigo este
encantado morro do Castelo.

Mas o Sr. Coelho explica-nos em poucas palavras o motivo do seu acerto.

Ouçamo-lo:

Quando, há anos passados, ocupava a diretoria da Estrada de Ferro
Central, o atual construtor da Avenida sentiu-se seriamente impressionado
com os desastres consecutivos que ali tinham lugar; abatia-o uma neurastenia
profunda, quiçá uma íntima desconfiança das suas
habilitações técnicas.

— Que diabo! Eu emprego todos os meios, dou todas as providências
para evitar desastres e sempre esta danada cábula, exclamava S. Exa.,
amarrotando a barba ruiva.

Mas os desastres continuavam e o povo insistia em chamar a Central, pelas
iniciais: Estrada de Ferro Caveira de Burro.

Certa vez, lamentava-se o Sr. Frontin, numa roda de amigos, da jettatura
que o perseguia, quando um dos circunstantes, notável engenheiro, sugeriu-lhe
uma idéia.

— Seu Frotin, eu lhe darei a explicação de tudo: venha
comigo a uma sessão… O Sr. Frotin sorriu, incrédulo.

Mas o amigo insistiu; que não fazia mal experimentar, era sempre uma
tentativa, que diabo!

Enfim, o ilustre engenheiro decidiu-se; foram combinados dia e hora e a sessão
realizou-se em uma casa da Rua D. Polixena, em Botafogo.

O medium, um conhecido jornalista vidente, de óculos e barbas negras,
invocou o espírito do Visconde de Mauá, fundador das estradas
de ferro no Brasil, e este, apresentando-se, teve esta frase:

— Que queres tu, Pombal?

O Sr. Frontin ficou surpreso e começou a empalidecer.

Em torno, os circunstantes não dissimulavam o espanto.

— Pombal? Por que Pombal?

Nova invocação foi feita; e o espírito, já desta
vez irritado, escreveu pela mão do medium:

— Ora, Pombal, não me amole!

Era baldado insistir; ou o espírito estava enganado ou era algum brejeiro
(que lá por cima também os há) que queria fazer espírito.

Pelo sim pelo não, foi chamado D. José I para deslindar aquele
embrulho.

O mofino monarca apresentou-se sem demora, tratando o Sr. Frotin pelo nome
de seu dominador ministro.

O medium pediu-lhe explicações; e D. José, sem se fazer
rogado, declarou que efetivamente o Conde de Oeiras encarnara no diretor da
Central e que estava na terra a expiar as passadas culpas; que os desastres
o haviam de perseguir por toda a vida e que assim como Sebastião José
reconstruíra Lisboa, assim também André Gustavo seria
o encarregado de reconstruir o Rio de Janeiro.

A propósito do subterrâneo do Castelo nada disse o espírito;
mas fácil é concluir que, tendo sido Pombal o predestinado a
tornar efetiva a expulsão dos jesuítas e a confiscar-lhes os
bens, era justíssimo que, na segunda encarnação, reparasse
o mal, descobrindo os seus tesouros ocultos e distribuindo-os com os pobres.

Era esmagadora a conclusão; realmente a carta régia de 4 de
novembro de 1759 não podia ficar sem conseqüência nos fastos
da Humanidade.

E há de ter lá pelo Castelo mais pessoal daquela época;
concluiu o Sr. Coelho.

— Quem nos poderá garantir que o engenheiro Pedro Dutra não
é o Conde de Bobadella?

Os fatos no-lo dirão.

Continuaremos amanhã a narrativa da nossa entrevista com o Sr. Coelho
e dos extraordinários casos que se contêm nos seus velhíssimos
papéis.

Por hoje, informemos aos leitores do estado da galeria atualmente explorada.

Tem ela, como é sabido, dois lances que se encontram em ângulo
obtuso e está iluminada a luz elétrica, o que lhe dá
uma tenue mais com o século.

O segundo trecho esbarra num poço cheio d’água até
a borda; é quase certo que este poço não é mais
que a descida para outra galeria de nível mais baixo, coisa fácil
de concluir pelo seguinte fato:

Nas paredes do subterrâneo vêem-se, de espaço a espaço,
provavelmente destinados a colocação de lâmpadas no tempo
em que foi este construído e de certo ponto em diante estes nichos
vão descendo, acompanhando sempre o declive da galeria, de modo que
o último avistado está à flor d’água do
poço que o delimita.

O Dr. Dutra vai tratar de dessecá-lo e então ficará
este ponto esclarecido.

Ontem, às 2 horas da tarde, foram as galerias visitadas pelos srs.
intendentes municipais que lá se demoraram cerca de duas horas, recebendo
do Dr. Dutra de Carvalho todas as explicações.

Os dignos edis mostraram-se entusiasmadíssimos com os trabalhos de
engenharia tão bem executados pelos jesuítas.

A galeria, franqueada ao público, tem sido extraordinariamente concorrida,
entre os comentários mais estranhos e cômicos dos viajantes;
sobem a três mil o número de curiosos que ontem lá estiveram.

Segunda-feira, 8 de maio de 1905

Os Tesouros dos Jesuítas – Uma Narrativa de Amor
[editar] O Velho Códice
Entre os preciosos documentos pertencentes ao nosso precioso informante, e
de cujo conteúdo temos transmitido aos leitores a parte de que ele
não faz absoluto segredo, ressaltam algumas narrativas da época,
sobre casos de que foram teatro os subterrâneos do morro do Castelo,
narrativas estas que, pelo seu requintado sabor romântico, bem merecem
a atenção do público carioca, atualmente absorvido em
conhecer nos mínimos detalhes a história daquela época
legendária.

O grande Martius, cujos trabalhos sobre a nossa natureza e sobre a etnografia
sul-americana merecem o aplauso dos institutos sábios de todo o mundo,
faz notar que no Brasil as lendas sobre tesouros ocultos substituam as dos
sombrios castelos medievos que são o encanto dos povos ribeirinhos
do Danúbio e, sobre os quais grandes gênios da arte têm
bordado obras de um pichoso lavor estético em todos os moldes da fantasia
humana, seja a música, a pintura, a poesia ou o romance.

Uma tradição velhíssima tem alimentado entre nós
no espírito do povo a idéia da existência de tesouros
enterrados, dormindo há séculos sob pesadas paredes de monastérios,
resistindo à argúcia de olhares perscrutadores e acirrando a
curiosidade e a cobiça de seguidas gerações.

Algo de real existe certamente em meio às exagerações
da lenda; documentos antigos falam dessas riquezas e indicam mesmo, com relativa
precisão, os pontos em que se acham elas ocultas.

A recente descoberta de galerias subterrâneas no morro do Castelo vem
mais uma vez provar à evidência não ser de todo destituída
de fundamento a crença que, de há séculos, vem alimentando
a imaginativa popular.

Prendendo-se por um laço natural à história das riquezas
amontoadas, aparece aqui e ali um perfil feminino, um vago perfume de carne
moça, o roçagar frufruante de uma saia de mulher que vem dar
aos racontos a nota romântica do eterno feminino, indispensável
ao interesse de uma lenda que se preza…

Pois o nosso morro do Castelo neste ponto também nada fica a dever
aos castelos feudais da Idade Média.

Em meio à papelada arcaica que revolvemos em busca de informações
sobre o palpitante assunto, fomos encontrar a história de uma condessa
florentina conduzida para o Brasil num bergantim e aqui recolhida ao claustro
do Castelo aos tempos da invasão de Duclerc.

A este fato já aludimos de passagem em um dos nossos artigos e agora
vamos dar ao leitor a sua narrativa completa.

Trata-se da história de um desses amores sombrios, trágicos,
quase medievais, cheirando a barbacã e a castelo ameado; e que, por
uma singular capitação histórica, na Idade Moderna, a
América do Sul foi teatro.

Não é narrativa de uma dessas afeições do nosso
tempo, convencionais e pautadas; é a do desprender de um forte impulso
d’alma irresistível e absorvente.

Um velho códice manuscrito em italiano dos meados do século
XVIII conta-o; e pela dignidade do seu dizer e pela luz que traz a um ponto
obscuro da história de nossa pátria, merecia que, transladando-o
para o vernáculo, não o mutilassem em uma forma moderna, que
o desvigoraria sobremodo.

Consoantes as altas autoridades filológicas e literárias, ao
português Gusmão, ou melhor, de Pitta, coevos com certeza do
autor dele, devíamos ir buscar o equivalente de sua fogosa e hiperbólica
linguagem; entretanto, não nos sobrando erudição para
empresa de tal monta, abandonamos o propósito.

Guardando no tom geral da versão o modo de falar moderno — embora
imperfeito para exprimir paixões de dois séculos atrás,
aqui e ali, procuramos com um modismo, uma anástrofe, ou com uma exclamação
daquelas eras, tingir levemente a narração de um matiz arcaico.

O original é um grosso volume, encadernado em couro. A letra escorre-lhe
miúda e firme pelas folhas de papel de linho, resistentes e flexíveis.

A tinta indelével, talvez negra, tomou com o tempo um tom vermelho
sobre o papel amarelecido, cor de marfim velho; absolutamente anônimo.

Nenhum sinal, indício, escudo heráldico ou mote denuncia o
autor. Não obstante, uma emenda, traços fugazes, fazem-nos crer
que a mão que o traçou foi de jesuíta.

Um — nós — riscado e precedendo a expressão —
os jesuítas — entre vírgulas, e a maneira familiar de
que o códice fala das coisas da poderosa Ordem, levam-nos a tal suposição.

Os leitores julguem pela leitura que vão fazer da crônica intitulada:

D. Garça ou O que se passou em meados do século XVIII, nos
subterrâneos dos padres da Companhia de Jesus, na cidade de S. Sebastião
do Rio de Janeiro, a mui heróica, por ocasião da primeira invasão
dos franceses a mando de Clerc.

Como vêem, o título se alonga num enorme subtítulo,
e, de acordo com a conveniência do jornal, nós iremos publicando
o vetusto palimpsesto encimado unicamente pela primeira parte: D. Garça
— elegante alcunha da estranha heroína que o velho cronicou.

Terça-feira, 9 de maio de 1905

Um Caso de Amor

Conforme ontem prometemos ao leitor, iniciamos hoje a publicação
da interessante narrativa por nós encontrada entre vetustos papéis
referentes à história dos jesuítas do morro do Castelo.

Traduzimo-la, como ficou dito, em português moderno, conservando apenas
no diálogo o sabor pitoresco característico daquela época,
na impossibilidade de conservá-lo em todo o correr da narrativa.

D. Garça

I – Boas e Novas Más

— Vai-te deitar, Bárbara.

Com o demo, que hoje muito queres transformar às matinas?!…

— Sinhá dona, meu senhor ainda não veio; e o chá?

— Porventura todos os dias esperas Gonçalves para te recolher?

— Não, sinhá dona.

A preta velha, respondendo, ia arrumando cuidadosamente os bilros sobre a
almofada das rendas. E, assim que acabou, ergueu-se com dificuldade do assento
raso em que estava, e tirou o lenço de Alcobaça, que, em coifa,
lhe cobria a cabeça.

Antes, porém, de tomar a benção respeitosa, a escrava
aventurou ainda algumas palavras:

— Sinhá dona soube que hoje entrou no Rio a frota do reino?

— Soube… e por quê? indagou pressurosa a senhora.

— Talvez meu senhor não viesse cedo por ter ficado com o governador
a ajudar o despacho da correspondência das Minas e Piratininga, chegada
na frota. Não é?

— Pode ser… e no que te importa isso?

— Nada, sinhá. Lembrava só.

— Bem. Vai-te deitar, disse então com império à
escrava a senhora, descansando sobre a mesa o livro que lia.

Saindo a negra, a mulher que lhe dera ordens ergueu o busto acima do bufete
e cravou o olhar num grande armário defronte, reluzente de prata e
coberto de lavores de talha, em carvalho.

Pouco tempo esteve assim. Dentro de alguns minutos a pesada peça moveu-se
um tanto, sem bulha e suavemente; e da fresta aberta, de roupeta e solidel,
surgiu um religioso, trazendo na mão esquerda uma lanterna surda. Mal
a depondo sobre um consolo próximo, saudou familiarmente à senhora,
que parecia esperá-lo.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Alda.

— Louvado seja, Jean.

Não se sentou logo; antes de fazê-lo sacudiu das mangas da batina
alguns salpicos de barro molhado.

Era um homem alto, alongado, de formas finas. Um tanto obeso já, a
sua obesidade discrepava lamentavelmente do seu todo aristocrático.
Nos seus olhos azuis, ora indagadores, ora mortiços e apagados, às
vezes penetrantes, havia um inteiro arsenal de análise d’almas.

Se outro indício não houvesse, este bastava para caracterizar
o religioso. Era jesuíta, e professor também,—o que se
adivinhava na convicção interior a irradiar-lhe pela fisionomia.

Como não houvesse chovido e ele limpasse das manchas pegajosas de
barro umedecido, bem parecia que as havia apanhado ao atravessar um lugar
lamacento e úmido.

E o cheiro de terra que, à sua entrada, logo recendeu pela sala, dava
a supor que viesse por caminho subterrâneo, guiado pela luz da lanterna.

Tudo fazia acreditar que aquele religioso não passara pelas ruas.
Àquelas horas era excepcional transeuntes pela cidade; e um clérigo
levantaria maldosas suspeitas.

Em 1709, o Rio de Janeiro era uma pequena cidade de 12 a 15 mil habitantes.
Iluminação não havia de espécie alguma, a não
ser em alguns nichos devotos, velas ou candeias acesas aqui, ali, nas beiradas
dos telhados baixos, povoando as vielas de sombras fantásticas.

Depois do anoitecer, a cidade morria: e somente um ou outro corredor de aventuras
ousava atravessar a treva, armado até os dentes.

O jesuíta que ali estava não era desses; viera com certeza
por caminho seguro e só dele sabido.

Do Colégio ao alto do Castelo, ele descia para a grande cripta embaixo
da praça de S. Sebastião. Não penetrava em qualquer de
suas salas. Seguia pelo corredor circular até à galeria de Oeste,
que ia ter a Santo Antônio e ao morro da Conceição; e
em certa altura, subia em rampa um desvio à direita, feito adrede,
até encontrar um segundo, em conveniente plano horizontal, pelo qual
penetrava naquela casa da Rua da Ajuda, próximo à de S. José,
por um flanco dela que beijava a colina.

Quem da rua contemplasse essa casa, nada encontraria de anormal. Tinha dois
pavimentos. No superior se abriam três janelas com sacadas de grade
de pau, em xadrez; e estava ocupado pelos donos. O térreo possuía
duas largas portas e abrigava alguns escravos com a preciosa cadeirinha, que
levava os senhores pelas martirizantes ruas da incipiente cidade.

Tal era a casa de Martim Gonçalves Albernaz, almoxarife do paiol da
alfândega da cidade de S. Sebastião.

O seu serviço era luxuoso. Havia baixela de prata e porcelana da Índia;
e os portadores de sua liteira tinha libré própria.

As más línguas diziam que nelas se cortava Fazenda Real…
mas outros pretendiam que a senhora possuía bens e abundantes cabedais
na terra do seu nascimento…

Logo que se sentou, à margem do bufete de jacarandá, na cadeira
de alto espaldar e assento de couro lavrado e repregado com pregaria de cobre,
o jesuíta disse:

— Dá-me de beber, Alda. Já faz frio.

D. Alda levantou-se e tirou do armário um pichel com vinho branco
e dois copos.

De pé, ela era como um frágil caniço. Delgada, esguia,
nem a elevação dos seios lhe quebrava a unidade da linha. Por
todo o seu corpo, não havia interrupções ou soldagens
de partes: era feira de um só traço. Vestia de branco; e as
cânulas do cabeção em leque, erguido atrás da nuca,
eram como pétalas de uma dália extravagante, sua cabeça
de traços regulares figurava como um disforme pistilo imprevisto.

Movia-se lentamente, levemente, como uma cegonha nos banhados.

Quer na rua, quer em casa, vestia-se com rigor.

Era sempre branco o corpete e, aberto triangularmente no colo, permitia entrever
a opala de sua pele. O resto do corpo ficava-lhe envolvido no abundante panejamento
do vestuário da época.

Os cabelos negros, longe de trazê-los à moda do tempo, repartia-os
ao meio da testa, e empastando-os à esquerda e à direita, deixava-os
cair sobre as orelhas, unindo-os nas costas em novelo…

Quarta-feira, 10 de maio de 1905

O padre seguiu-a com os olhos. E logo que ela voltou, encheu os dois copos,
provou o seu, dizendo:

— Esse miserável já veio?

— Não, respondeu Alda.

— Tem dado um imenso trabalho, esse tal teu marido…

Alda sorriu e baixou um tanto a cabela enigmaticamente.

— Como? indagou complacente.

— Há dias, o governador queixou-se dele ao reitor. Não
guarda as conveniências; freqüentemente se embriaga; anda amancebado
com negras. Disse o mesmo governador que a dignidade do serviço de
S.M. não pode tolerar tais desmandos. Hoje, para a tarefa extraordinária
da chegada da frota, foi preciso ir buscá-lo a um batuque, lá
para as bandas do Valongo. Até agora têmo-lo salvo, mas não
sei…

O padre calou-se, e depois de alguns instantes, perguntou, despedindo um
olhar diabólico:

— E se tu enviuvasses?

— Oh! Não, Jean. Não! deixa-o viver…

— Não sei se sempre poderei fazer isso. Ele tem segredos que
talvez não os guarde sempre. Amanhã, despedido do serviço
real, errará na miséria, e o desespero…

Ajudá-lo não nos será possível… Todos saberão
que auxiliamos um incontinente ímpio… Até aqui temos dito
que é ímpio nos atos, mas nos sentimentos não. E eu não
sei, Alda, até quando a nossa casuística lhe valerá.

— Deixa-o viver, Jean, deixa-o. É desgraçado, merece
piedade.

— Quem sabe que não o amas? perguntou gracejando o clérigo.

— Eu! oh! fez com um muxoxo a moça.

O que sinto por ele, continuou, é dó, pena, unicamente; pena
de o ver perseguido pelo mau fado. Sabes que ele começou alto. Dava
grandes esperanças em Coimbra; mas, de uma hora para outra, transformou-se;
e, esquecido dos livros, foi viver indignamente pelas sarjetas de Lisboa,
até que…

— Eu sei, Alda, sei; mas a população murmura, e não
tarda que os seus murmúrios cheguem aos ouvidos da Corte.

Os dois misturaram o francês e o italiano, e uma frase portuguesa que
repontava, sonorizava mais o diálogo.

— Sabes que temos novas do Reino? perguntou o padre.

— Boas? inquiriu a moça.

— Boas e más.

— Quais são?

— El-Rei foi aclamado.

— É velho. E da guerra?

— Que guerra? espantou-se o religioso.

— A da coroa da Espanha, ora!

— Em que te interessa ela?

— Muito.

— Pretendes?

— Não pretendo, mas…

— Ouve, Alda. Tu me inquietas; enches-me de zelos.. Ah! Se algum dia…
fez com raiva o clérigo, levantando-se da cadeira.

— Mas o que é, Jean? perguntou com meiguice a moça. Que
é?

— Olha…

— Mas que olhar, Jean. Que coisa! Tu nem pareces o mesmo. Metes-me
medo. Que é que tens?

— Eu te explico com vagar, disse o padre sentando-se. Olha, na frota
que chegou hoje veio para nós um aviso. Sire, Luís XIV, vai
proteger uma expedição que se arma contra esta cidade. Será
forte e trará grande cópia de homens para o desembarque.

— Já estava armada? indagou com curiosidade a moça. O
jesuíta, como estranhando a pergunta, esteve algum tempo analisando
a fisionomia da mulher. Ela tinha um ar ingênuo, e respirava uma enorme
franqueza. O padre, desesperado do esforço que fizera para penetrar-lhe
no íntimo, respondeu:

— Ainda não, mas se aprestava. Os capitães já
estavam levantados e o Intendente das Finanças tratava com o Ministro
da Frota os navios reais a ceder.

— É certo que se dirija p’r aqui, Jean?

— É seguro o aviso, respondeu sem refletir o padre.

Sentindo que o segredo, pouco a pouco, se lhe escapava arrancado pela dama
dos seus pensamentos, o padre resolveu falar pouco, tomando precauções.

— Alda! Toma tenência! Eu te vou transmitir um sagrado depósito
do meu voto, e embora seja de pequena importância a sua revelação,
convém que fique oculto, para que não se suspeite até
onde vai o poder da Companhia.

Ouve-te e cala-te, senão, nem o meu amor te salvará, disse
com ardor o jesuíta.

— Acaso, alguma vez, revelei o que confidencias? Tenho amizades na
cidade, para que o possa fazer?

— Bem. Ouve, retrucou mais seguro o clérigo.

— Ouço e… perinde ac cadaver, fez com galanteria D. Alda.

O padre então prosseguiu:

— A expedição é contra S. Sebastião. Os
nossos irmãos da França sabem-no com firmeza. Está rica
a cidade, e a riqueza das minas fazem-na cobiçada. É presa certa
e farta e em breve ela aportará. Comanda-a…

— Quem?

— Oh! Alda! Que pressa!

— Não há admirar. É do teu saber que tenho grandes
conhecimentos em França, e por isso convinha que soubesse quem era
o comandante, para evitar encontrá-lo. Isso em meu bem, e no teu…
Assim não crês, Marquês de Fressenec?

O jesuíta, assim chamado pelo seu antigo nome do século, estremeceu
na cadeira. Bem depressa recobrando a primitiva calma, foi ao chamado da pergunta:

— Bofé! Que tens razão, Condessa Alda de Lambertini.
Tens razão… Quem a comanda, Condessa, é François Duclerc,
da Guadalupe.

Sexta-feira, 12 de maio de 1905

— Ahn! É Duclerc, refletiu com indiferença D. Alda.

— Não te espantas?

— De quê? De medo, não podia ser; estou bem protegida.
Demais, o nome não é tão ilustre assim; um marinheiro
obscuro que quer fazer fortuna em empresas arriscadas…

— Alda! Dissimulas… escondes algum segredo…

— Eu?!

— Sim, escondes.

Ainda amas o crioulo?

— Não o amo, Jean, objetou firmemente a senhora, e bem deves
ter verificado isto.

— Então de quem foi a carta da América portuguesa que
ele recebeu?

— Que carta?

— Sim… uma carta. Os nossos irmãos de França pretendem
que ele recebeu uma carta de Pernambuco ou daqui; e que, depois dela, provocou
a expedição.

— Ah! Compreendo. Queres dizer que a carta foi minha, não é?

— É…

— Ora, ora, Marquês, gargalhou a condessa. Nem pareces o fidalgo
de quem Mme. de Mainte me dizia ter tanto espírito como o famoso cura
de Meudon! Nem pareces o jesuíta que em poucos anos preencheu os quatro
dificultosos votos da Ordem! Pois numa terra em que abundam aventureiros de
toda a casta, vingativos, sequiosos e dúcteis; pois numa terra dessas,
havia de ser eu, uma fraca mulher, a quem a Ordem de Jesus protege —havia
de ser eu quem chamaria corsários contra ela?

A condessa italiana tinha falafo com várias entonações
na voz. Cedo bordava as palavras de uma tênue ironia para, depois, falar
com ardor e paixão. Em outras vezes ameigava a voz com um forte acento
humilde; e quando, de um só jato, lhe saiu dos lábios a última
frase, o pranto aljofrava-lhe as faces de cetim.

— Não chores, Alda! É meu amor que me faz assim. Conheces
o quanto ele é forte e imperioso. É um amor infernal. Por ele
sofri, sofro e sofrerei durante as minhas duas vidas. Perdoa-me, Alda.

Quando o passado me vem, continuou o jesuíta com ternura, quando o
passado me vem, não sei que zelos me sobem à alma. Quero penetrar,
devassar arcanos do teu pensamento; e, como a bala que, por ter demasiada
força, transmonta e passa além do alvo, a minha penetração
me engana, me desvaira. No teu gesto mais familiar, numa palavra dita a meio,
no modo por que bebes o vinho, eu vejo traições, traições.

De resto, andas sempre triste…

— E tu me querias alegre, quando deixei a consideração,
a posição, o império, para viver nesta feitoria cheia
de negros e selvagens?

— Mas, e eu?

—Não é o mesmo, Jean; sempre tens consideração
e poder. És o respeitado irmão professo da Companhia de Jesus,
enquanto que eu, que tenho o sangue de Lourenço, o Magnífico,
a gentalha deste lugar tem por mim dó, piedade…

— E te aborrece?

— Como não? como não se há de aborrecer a “considerada”
condessa, com a piedade da mais ínfima gente da terra toda?

— Oh! Alda!…

— E por que isso? Porque é bonita mulher de um funcionário
secundário, que a abandona e se embriaga.

Entretanto, essa bela mulher não o ama, não se casou com ele;
e tem por esse indivíduo a piedade que envolve também os vermes.
Supõem-me amá-lo, ah! nem sabem…

— Sossega, Alda. Não vês que também eu desmereci
da honra de freqüentar a mais bela corte do orbe, e a glória de
emular com os Racine e os Corneille? Os dois sacrifícios se equivalem,
Alda.

— Oh! Jean. Não compares. Ninguém se apieda de ti. Ninguém
se lembrou ainda de te pôr doces alcunhas.

Nesta cidade, sou a GARÇA, a D. GARÇA, como me chegam a chamar
familiarmente; e quando o poviléu põe alcunhas meigas é
porque sente muita desgraça no alcunhado, Jean.

— Espera… Alda. De volta da missão que vou pregar, voltarei
à Europa; e lá, então, serás restabelecida na
tua posição.

— Nunca mais. Nunca. Aqui enxovalhei-me.

O diálogo, depois de impetuoso, tinha, aos poucos, baixado de tom,
e seguiram-se a estas palavras pequenas frases explicativas, que o clérigo
rematou, aconselhando:

— Dorme; sossega; pensa melhor, Alda.

— Tu te vais? inquiriu com espanto a condessa, vendo o padre acender
a lanterna.

— Vou. Há capítulos. Adeus, D. Garça; ama-me sempre.

— Adeus, Jean.

E os dois beijaram-se por longo tempo.

A condessa, logo que o clérigo saiu, ajoelhou-se ao oratório
e, imperceptivelmente, disse:

— Graças a ti, minha Nossa Senhora. Graças! Ele vem.

Domingo, 14 de maio de 1905

Os Tesouros
O padre João de Jouquières, irmão professo de quatro
votos da Companhia de Jesus, antes de penetrar a estreita porta do subterrâneo,
murmurou em voz quase imperceptível algumas palavras à escrava,
em seguida ao que, tomou o seu rumo, demandando o salão dos capítulos
secretos.

Já alcançava o grande conduto oeste das galerias do Colégio.

Seus passos na crasta lajeada ressoavam lugubremente. Marchava vagaroso.
Um pensamento tenaz e sombrio retardava o seu andar. De onde em onde parava,
fazia como quem quer voltar; e, após freqüentes hesitações,
penetrou na grande galeria em circunferência. Quatro salas, esquarteladas,
abriam as portas para o grande toro oco que a galeria formava.

Uma das quatro destinava-se aos capítulos secretos; as restantes eras
as casas-fortes da Ordem.

O salão dos capítulos, embora fortemente iluminado por um grande
alampadário de prata e uma profusão de candelabros, guardava
ainda a penumbra característica das salas religiosas.

Alto e côncavo, guarnecido de grandes armários cheios de livros,
era um toda a sua extensão revestido de grossas lajes com as juntas
tomadas à argamassa romana.

Estudando as construções combalidas da Cidade Eterna, a milícia
de Cristo lograra saber a composição dos cimentos usados nelas;
e nas suas edificações eram empregados iguais com proficiência
e sabedoria.

Todos os capitulares não tinham ainda chegado. A seda vazia aguardava
o Reitor, e as cátedras do Procurador e do Secretário, ao dela
e em frente à grande mesa oval, não estavam ocupadas.

As amplas curuis, nove, dos capitulares, em curva aberta para a mesa, tinham
um ou outro professo.

Em um canto repousavam instrumentos de pedreiro e um caixão com argamassa
dosada.

Assim que o padre João entrou na sala, correu ao jesuíta mais
próximo, dando-lhe o toque simbólico de professo. Procurou entre
as nove cadeiras a sua; sentou-se com desembaraço e esperou.

Vagarosamente chegaram os restantes e, logo que foram doze, o Reitor ergueu-se,
acompanhado dos demais, e pronunciou claramente:

— Ad majorem Dei gloriam.

Os padres repetiram as palavras; e, tendo lembrado alguns trechos da Monita
Secreta, o presidente do conclave explicou o motivo da reunião.

Ameaçada a cidade de uma invasão, as grandes riquezas da Ordem
corriam perigo de saque. Era conveniente precavê-las em lugar seguro;
tanto mais que tinham decuplicado com o recebimento de extraordinários
valores da Ásia, do Colégio de Angola e de algumas províncias
da América.

Lembrava também que, com elas, se deviam guardar as ricas alfaias,
os paramentos e as imagens de Cristo e dos apóstolos, em ouro de lei.

O reitor falava em latim. As sílabas destacadas da língua arcaica
voavam pela sala com um estalido seco.

Quando o reitor acabou, deu a palavra ao padre Saraiva, encarregado do acondicionamento
das riquezas.

O clérigo expôs o que fizera. Guardara-as em 16 grandes arcas
de madeira do país. Cristo e os apóstolos já estavam
na sala do Sol, à esquerda; e também lhe parecia, segundo o
seu modesto julgar, que as portas das salas deviam ser vedadas e parte dos
subterrâneos destruída, de forma que, se viesse a durar duzentos
anos ou mais, a ocupação da cidade, nunca lograssem descobrir
os valores.

Deu fim à sua explicação, com a leitura da ata que lavrara.
Lida e assinada pelos doze iniciados na Monita Secreta, o padre reitor anunciou
a segunda parte do capítulo.

Expôs:

— Há alguns anos, o paulista Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera,
penetrou no sertão dos índios Goianases, e aí encontrou
minas de ouro fartas e ricas. E como Sua Paternidade, o Padre Provincial,
me haja ordenado receber o mais possível aos Paulistas nas suas entradas,
seguir-lhes as pegadas, resolvi despachar um pregador àqueles brasis.

Humildemente, rematou o Reitor, espero a opinião de Vossas Reverências.

Padre Manuel de Assunção, chegado de Piratininga, achando o
alvitre bom, observou.

— Deve ser quanto antes a partida da missão, porquanto, ao que
ouvi em S. Paulo, o filho do Anhangüera reúne meios para continuar
a empresa do pai.

Todas as conclusões foram acordes com o padre Reitor. Devia partir
um missionário o quanto antes.

O presidente da Assembléia então continuou:

— Sendo o voto de todos o meu parecer, penso que o escolhido também
será da vontade de Vossas Reverências.

— Assim será, padre Reitor, responderam os capitulares em coro.

— Exige-se-lhe coragem, inteligência, boa cópia de letras
e solércia; e, como dentre Vossas Reverências sobre desses, grande
foi a minha dificuldade na escolha; entretanto, o Santo Espírito iluminou-me
e escolhi-o no padre professo João de Jouquières.

A assistência recebeu com um estremeço a decisão. Ninguém
supunha fosse ela recair no irmão Jean, antigo Marquês de Fressenec.
A permissão que tinha do Geral para se servir dos subterrâneos
da Ordem a fim de experimentar as grosserias do mundo, parecia pô-lo
a coberto das expedições longínquas. O escolhido foi
quem na aparência menos se admirou. Pedindo a necessária vênia,
observou:

— Vossa Paternidade muito se há de espantar do pedido que vou
fazer.

— Vossa Reverência pode fazê-lo, retrucou o Reitor.

— Solicito de Vossa Paternidade dispensa de tão gloriosa missão,
fez com doçura o padre.

— Vossa Reverência fará mercê de relatar os embargos?
objetou o Reitor.

— Creio escusado dizê-los, pois que bem são sabidas de
Vossa Paternidade as razões do alegado, disse o padre Jouquières,
trocando um olhar de inteligência com o Reitor.

— Contudo Vossa Reverência deve declará-las à casa,
padre João.

— Débil de corpo, careço de forças para suportar
as agruras do sertão. Demais, não conheço suficientemente
a língua geral…

— Não é mais Vossa Reverência o douto sábio
que, com os novos elementos colhidos, corrigia o catecismo do padre Navarro?
indagou com ironia o Reitor.

Sem se dar por achado, o jesuíta francês explicou:

— De fato, desde dois anos dedico-me ao estudo acurado das línguas
americanas, mas daí a falar, a distância é grande!

— A prática de meses ajudará Vossa Reverência,
objetou teimoso o Reitor.

Segunda-feira, 15 de maio de 1905

II – Os Tesouros

O padre reitor, velha raposa jesuíta, tinha aos poucos anulado todas
as razões do moço religioso, que sentindo-se derrotado, se encheu
de ódio e raiva, até ali contidos, assegurando com firmeza:

— Saberá Vossa Paternidade que não irei.

Os dez capitulares ficaram atônitos e pálidos. Conheciam o reitor,
a pureza de sua fé, a sua inquebrantável energia. Temeram pelo
antigo Marquês.

Entreolhavam-se.

O reitor crispou os dedos e ergueu-se da cátedra.

Era um homem baixo, magro, anguloso. Sob a sua tez tostada havia o baço
dos ictéricos. Espanhol de nascimento, professara no Colégio
de Évora. Mandado para o Pará, bem cedo mostrara o seu grande
ardor apostólico. Andara 20 anos pelo Solimões, levando aos
selvagens boas novas do sagrado evangelho. Tinha a confiança que os
impressiona e a afabilidade que os rende.

Depois de professo só tivera um desejo — apostolar, e só
quisera uma glória — o martírio.

Este, quase obtivera; mas a sua força d’alma afastara-o dele.

Apostolando no Madeira, prisioneiro dos Muras, fora amarrado ao poste do
sacrifício. Próximo o fogo crepitava. Um enxame de vespas, repentinamente
espantadas com a fumaça, voou feroz. Mordilharam-lhe o corpo, descarnado
e nu; transformaram-no numa chaga só.

Quando os selvagens voltaram e contemplaram a sua fisionomia plácida,
serena, de olhos untados de beatitude postos ao alto, admiraram aquela insensibilidade,
e plenos de superstição soltaram-no respeitosos.

Esfarrapado, doente, esfaimado, Gaspar Hurtado continuou a pregar e fundou
quatro aldeias. Era a esse homem que o padre Jouquières tão
abruptamente desafiara.

— Porventura estareis esquecido da obedientia coeca, que juraste? indagou
o reitor.

Absolutamente, padre Hurtado, não estou. Vossa Paternidade, me parece,
é que já está esquecido em demasia.

— Quereis falar da autorização especial que tendes?

— Sim. Do Geral que tudo pode e manda, e quer ser obedecido.

— E quem vos disse que ele está sendo desmandado, Marquês
de Fressenec? Quem vos disse?

— Relembrai-lhe os termos, padre Reitor.

— Lerei. Será melhor.

“… concedo-lhe a graça de experimentar as grosserias do mundo,
enquanto for para bem dos interesses da Ordem…” Não é
isso?

O velho missionário, logo ao tirar a cópia da carta de sob
as vestes, tinha dado com o tópico; e a presteza com que o achou dava
a entender que muito meditara sobre ela e a interpretara segundo as suas conveniências.

O antigo marquês percebera argutamente a finura do superior; mas quis,
no entanto, argumentar.

Tenazmente refutado, caiu em cólera. Com o olhar aceso, levantou-se
de um salto da cadeira, dizendo:

— Na terra, não há quem me possa tolher os passos. Desconheço
em vós esse poder. Sou homem, sou livre.

Sabei. Quero amar, hei de amar. Não irei; não me apraz…

Os professos cabisbaixos, assistiam com ceticismo àquela revolta.
Sabiam até onde ia o poder da Ordem de Jesus. Mediam as suas forças
ocultas e os perigos que corriam um perjuro dela.

— Vossa Reverência parece ter esquecido o juramento: perinde
ac cadaver, disse o Reitor com calma e reflexão.

— Que me importam os juramentos, os compromissos; que me importam eles,
se se antepõem ao meu amor, ao meu coração. Quero o inferno
nas minhas duas vidas; quero perseguições, misérias,
mas quero amar, Padre, quero amar; quero tê-la bem perto de mim, bem
junto, a minha Alda, o meu Amor. Não irei, Padre! Dentro da minha alma,
sou rei, sou Deus!

Os professos continuavam calados.

O Reitor levantou-se e mansueto discorreu:

— Deus é rei dentro de vós. Pensais isso? Que engano!
Humilhado, despicado com o mundo, há quinze anos, batestes às
nossas portas. Vínheis corrido da glória, do amor. De nada vos
valeu vossa nobreza, vosso talento… Só a Ordem brilhava nas trevas
dessa noite de vossa vida. Batestes e receberam-vos.

Ela, a Ordem, vos deu paz, sossego, abundância; não contente,
vos deu também amor. Tudo o que quisestes em França, há
quinze anos, a Companhia vos deu aqui. Não vos pediu ela, só
obediência. Nada vos exigiu de sacrifício até hoje. Entretanto,
ela vos pede agora uma pequena privação, objetais orgulhosamente
que sois Deus, que sois rei, que vosso amor não quer… Como se vosso
amor não proviesse da Companhia; como se ele não fosse uma esmola
da Ordem!

Marquês de Fressenec, sede rei, sede Deus, mas notai bem: o que aqui
vistes, não vistes; o que aqui ouvistes, não ouvistes.

Acabando de dizer estas palavras, padre Gaspar voltou-se para o irmão
Secretário, recomendando:

— Vossa Reverência fará mercê de lavrar o compromisso
de expulsão, de acordo com as Instruções Secretas.

O jesuíta puxou uma folha de papel e pôs-se a escrever.

Sexta-feira, 19 de maio de 1905

Entrementes, o marquês recostado à guarda da curul, pensava.
A [ilegível], flexível, por toda a parte segui-lo-ia. Expulso,
sem classe, erraria pelas aldeias e vilas. O amor fugir-lhe-ia, porque tinha
razão o Reitor, seu amor era uma esmola da Ordem.

Que seria dele? Só, sem parceiros, sem mulher…

Na alma do marquês havia o caos. Tudo se chocava, tudo se baralhava;
nem um sentimento definido. Por fim, acovardado, ajoelhou-se e implorou:

— Perdoai-me, padre reitor, perdoai-me.

O semblante do velho religioso resplandeceu e, como de antemão se
contasse com aquela cena, ergueu o professo do lajedo, calmo e meigo, e lhe
disse:

— Prolfaças que obrastes bem, João.

Em seguida recomendou ao padre secretário:

— Rasgai o ato.

E para os capitulares reunidos:

— Transportemos agora para as salas as riquezas da Ordem.

Os padres se ergueram. Quatro saíram e foram se postar em um compartimento
mais alto. Os oito restantes ficaram no mesmo aposento, arredando um grande
armário de junto da parede. Retirado o móvel, padre Saraiva
introduziu uma talhadeira entre os lajedos, deixando ver um largo conduto
inclinado, que começava no aposento a cavaleiro. Com um sistema misto
de roldanas, cabos e plano inclinado, as grandes arcas desciam por ele, cada
uma de per si. Mal ajuntavam na abertura, dois padres, nas alças da
cabeceira, e dois nos pés, tal como as esquifes, removiam as arcazes
para as salas próximas.

Todas estas precauções foram tomadas a fim de melhor guardar
segredo. Para o aposento superior, as riquezas tinham sido, aos poucos, levadas
por escravos e gente a soldada da companhia; e daí para baixo vinham
dessa maneira.

Já tinham descido quinze caixas, quando a décima sexta, a das
pedrarias, tropeçou no caminho e resistiu à tração.

Era a última, e a noite ia alta. O alampadário tinha a mesma
luz e os candelabros haviam recebido novas velas.

A um só tempo os oito padres deram um único puxão no
cabo de linho.

A caixa escorregou e, dado o impulso que tinha, veio cair no centro do salão,
despedaçando-se.

Diamantes e rubis; coríndons e ametistas; pérolas, crisólitas,
turquezas, turmalinas, ágatas; grandes, pequenas e miúdas, semeadas
pelo lajedo, brilhavam, faiscando. Tons cambiantes, matizes do verde, do azul,
do vermelho, misturavam-se, caldeavam-se. Por baixo da película verde
do brilho das esmeraldas havia coriscos azuis do cintilar das safiras. Rubros
pingos de sangue vivo desmaiavam à fosca luz das pérolas. Um
grande diamante da Índia, principescamente, como um sol, faiscava no
centro.

E à indiferente luz da grande alâmpada de prata, febrilmente,
uma a uma, os padres, agachados, ficaram a reunir aquelas riquezas dispersas…

Padre João conservava-se a distância, braços cruzados
sobre o espaldar da cadeira, na humildade do seu arrependimento; o seu olhar,
intenso e vivo, fixava-se nas pedrarias espalhadas pelo lajedo.

Em seu espírito uma íntima revolta flamejava; o marquês
relembrava o seu passado, cheio de nobres e cavalheirescas ações;
jamais ele se curvara a uma imposição ou a uma ameaça.

Fora sempre um forte nas lutas de política como nas do coração.

Entretanto agora se haviam dobrado os seus joelhos numa súplica e
os seus lábios afeitos ao mando tinham murmurado frases de perdão!

E tudo isso por quê?

Um amor intenso, fatal, dominador, obcecava-lhe a razão, apagara-lhe
do peito a chama vívida de um orgulho indomado.

A expulsão seria a perda do poderio, da paz monástica do colégio,
seria talvez a perda de sua vida; nada disso, porém, era de força
a abater o ânimo do clérigo.

O que o obrigara àquela humilhação, à quebra
de vaidade de homem, fora o amor, unicamente o amor; fora o receio de perder,
com a roupeta de jesuíta, a sua Alda, a sua querida Alda.

A Companhia era forte, era quase onipotente.

Expulso dela, vagaria solitário pelo mundo, e aquela por quem abandonara
o mundo, entre as paredes do claustro do Castelo, seria pasto da lubricidade
dos outros.

Padre João fizera bem; a vingança viria depois, cedo ou tarde.

E com os braços apoiados no espaldar da velha curul, o jesuíta
fixava as pedrarias esparsas, com um sorriso diabólico a brincar-lhe
nos lábios.

Sábado, 20 de maio de 1905

A Descoberta de uma Nova Galeria

Ontem, à uma hora da madrugada, os trabalhadores sob a direção
do hábil engenheiro Pedro Dutra, encarregados do arrasamento do morro
do Castelo, descobriram uma nova galeria, que parece ser a mais importante
das três até agora encontradas.

Segundo as informações fidedignas que em dias consecutivos
publicamos, deve ser esta a galeria mestra, conduzindo à vasta sala
subterrânea, onde, segundo rezam a crônica e a lenda, estão
encerrados os tesouros dos jesuítas.

Foram encontrados no meio do barro lamacento restos carcomidos pela ferrugem
de instrumentos de suplício, pregos, correntes, polés, gargalheiras,
etc.

O novo subterrâneo, ao que parece, não é, como os precedentes,
aberto simplesmente a ponteiro no moledo; a sua construção foi
mais cuidada e obedeceu aos preceitos da arte de construir compatíveis
com os progressos da época.

Abre-se a porta que para ele dá ingresso ao pé de uma velha
escada do Seminário, agora destruída por via do arrasamento
do secular edifício. Uma enorme pedra de cantaria obstruía-lhe
a entrada; removida esta, penetraram no subterrâneo o engenheiro Dutra
e alguns operários de confiança e logo ficou patente a importância
da descoberta.

Pessoa que assistiu a este trabalho garantiu-nos ter sido encontrado um pequeno
cofre de madeira cintado de ferro, que de pronto chamou a atenção
do Dr. Dutra o qual resolveu sem demora comunicar ao Dr. Frontin o interessante
achado, guardando sobre o caso o mais completo sigilo.

Pela leveza do cofre, parece não conter ele metal, senão documentos
da Ordem de Jesus.

A nova galeria, que segue a direção do Convento dos Capuchinhos,
já está explorada na extensão de dez metros, tendo sido
ontem visitada pelos Drs. Lauro Müller, Paulo de Frontin,Getúlio
das Neves, Emílio Berla, general Sousa Aguiar, Chagas Dória
e vários engenheiros da avenida, que em seguida percorreram, em bonde
especial, a Avenida Central.

Continuaremos amanhã a publicação de D. Garça,
a narrativa que tanto interesse tem despertado e que tão intimamente
se prende ás descobertas dos subterrâneos do morro do Castelo.

Domingo, 21 de maio de 1905

Novas Galerias – Uma Visita

Pouco a pouco vão se desvendando os mistérios das lendas seculares
do morro do Castelo e a picareta dos trabalhadores vai descobrindo galerias,
salas subterrâneas, confirmando o que dizem os roteiros.

Sobre a notícia que demos ontem do aparecimento de uma nova galeria,
temos a retificar um ponto.

Não se trata de uma galeria e sim de uma sala subterrânea revestida
de tijolos. Desta saem duas galerias: uma que corre paralela à avenida
e outra que segue em direção ao convento dos Capuchinhos.

A primeira está com a abóbada descoberta e ainda não
está desentulhada.

O mesmo acontece à sala.

A outra galeria, onde ontem penetramos graças à gentileza do
Dr. Dutra de Carvalho, tem a boca estreita, que começa a se alargar
depois de três metros. Daí em diante é uma vasta galeria
revestida de tijolos e onde pode andar à vontade o homem mais gordo
e alto.

Ainda não está desentulhada e a sessenta metros torna-se nela
difícil a respiração.

Têm sido encontradas várias balas rasas e outros instrumentos
de ferro carcomidos pela ferrugem.

Foram também encontradas algumas garrafas.

Os trabalhos continuaram toda a noite devendo ser suspensos hoje de manhã.

A galeria que está sendo desobstruída ficava exatamente num
corredor do seminário de serventia privada dos padres. Acima da abóbada,
grandes lajes suportavam a terra, sobre as quais foram construídos
os suportes das vigas que agüentam o corredor.

Obra antiga e sólida, só a picareta poderia pô-la a descoberto

Terça-feira, 23 de maio de 1905

Os trabalhos de desobstrução das novas galerias descobertas
no sábado, suspensos por motivo do descanso dominical recomeçaram
ontem sob a direção do Dr. Dutra de Carvalho.

A galeria que seguia sentido ascendente do morro ficou limpa até a
distância de sessenta metros, e aí bifurca-se em duas direções.

O Dr. Paulo Frotin, em visita que se fez, deu várias instruções
para este serviço.

Foram instaladas lâmpadas elétricas na parte desobstruída
devendo o serviço prosseguir sem interrupção.

Além daquele engenheiro visitou as galerias o Dr. Lauro Müller,
Ministro da Viação.

Têm sido encontrados vários pedaços de ferro carcomidos
pela ferrugem e cuja serventia não se pode precisar.

Na ocasião em que se procedia ao desentulho da grande galeria desabou
um pedaço da abóbada, não tendo felizmente havido vítimas

Quarta-feira, 24 de maio de 1905

As Galerias do Castelo

O caso do dia que ainda preocupa a atenção do povo é
incontestavelmente o das galerias do Morro do Castelo.

Tenazmente a picareta dos trabalhadores da Avenida, sob a hábil direção
do ativo engenheiro Dr. Dutra de Carvalho, vai desvendando os mistérios
das galerias.

Ontem à tarde foi encontrado um crucifixo, que se supõe ser
de ouro e que mede cerca de oito centímetros.

Também foi encontrada uma imagem de madeira do Senhor dos Passos.

A galeria, que segue em sentido ascendente do morro, bifurca-se, como dissemos
ontem, em duas galerias: uma em sentido reto e outra em direção
ao convento dos Capuchinhos.

A primeira interrompe o seu trajeto por uma laje, presumindo-se que seja
uma porta falsa, o que em breve saberemos com o prosseguimento das explorações.

Como se vê, o morro do Castelo ainda por muito tempo fornecerá
aos curiosos novas notícias.

A Vingança do Jesuíta

Demandando os índios Goianases, cujas mulheres, segundo a fabulosa
narração do Anhangüera, traziam como enfeites palhetas
de ouro virgem, o jesuíta parte do Colégio de S. Paulo. Voga
rio abaixo. A montaria desliza mansamente ao sabor da corrente.

Quatro carajás, ainda dos que vieram meninos no resgate de Pires de
Campos, remam vagarosos e sem esforço. A velocidade das águas
arrasta a tosca embarcação; e é bastante aproveitar-lhe
o ímpeto para navegar célere.

À popa, o padre e o coadjutor se estreitam. Pequenos fardos de alimentos
repousam aos seus pés e também na proa; é pouca coisa…
Deus dará o resto para a viagem toda!…

O antigo marquês olha as margens.

Aqui, uma praiazita alva, límpida, ondula em graciosa curva. A canoa
a descer é como um lápis a traçá-la.

De repente, dois pavorosos blocos negros de pedra avançam pelas duas
margens. O rio se adelgaça e a correnteza aumenta. Seguem-se barrancos
de dois lados.

O fio d’água escorre entre dois diques abruptos. A mata vem
até às margens. As últimas árvores se inclinam
e as lianas pendentes rasam à superfície prateada, oscilando
ao impulso da água que corre.

Chega a noite. Os quatro remeiros, em língua indiática onde
se misturam vagas sonâncias portuguesas, entoam uma melopéia
nostálgica. Os padres rezam; e as árvores da margem a que se
dirigem, estremecem e farfalham ao sopro da brisa.

Abicados em lugar propício, armam uma tenda passageira; e passada
a sombria noite, povoada de gênios e duendes, seguem caminho.

Assim dias e dias: e às vezes a chuva, moléstia, o cansaço
retardam a rota sem termo preciso. Mais do que uma noite, demoram-se no ligeiro
acampamento.

Os índios pescam e caçam pelos arredores com as suas primitivas
armas. Não há mosquetes, nem espingardas. Uma missão
não as usa. Conseguem dessa maneira refazer as escassas provisões.
Pouco se falam. Cada qual, ante a augusta presença do deserto, recolhe-se
dentro de sua alma.

Padre João medita e relembra o passado.

Recorda sua mocidade. Que grandeza não ameaçava ela! A chegada
em Paris… a sua primeira tragédia representada!…

Os elogios e as saudações que recebeu prometiam-lhe um destino
seguro, feliz e alto.

Depois encontrou a condessa Alda, esposa do velho embaixador de Florença,
o Conde Ruffo de Lambertini. Era uma maravilha de mocidade, de beleza e de
graça.

Foi em Versailles que a viu pela primeira vez e logo se apaixonou. Duclerc,
por esse tempo, chegou também à corte. O almirante Touville
apresentou-o como um dos bravos da batalha do cabo de São Vicente que
acabava de ganhar. Tanto ele como Duclerc cortejavam a condessa, que parecia
hesitar entre dois amores.

Mas, ai! que foi ele próprio quem a desviou para o rival…

Um duelo cruel e injusto com o marinheiro atraiu-lhe a animosidade de Alda.
Aos poucos, o escândalo que ele levantou, fez-lhe perder o valimento.
Os amigos fugiam-lhe; o rei não o recebia mais.

Desgostoso, não encontrando saída para aquele angustioso momento,
procurou a Ordem. Em breve preencheu os quatro votos…

A tarde vinha. Agora, subindo o rio mais largo, a canoa se move com dificuldade.
Cava na superfície das águas um sulco profundo.

O jesuíta professo continuava agitando nas recordações.

Lembrava-se agora da entrevista que tivera com o Geral, em Roma.

— Que vos fez entrar para a Ordem, Marquês? perguntou-lhe o superior
da Companhia.

— O amor, Eminência. O amor…

— Desanimaste dele?

— Sim; sou padre.

E em seguida relatou-lhe todo o seu sofrimento, a sua angústia e o
seu desespero. Descreveu-lhe o nome, a posição e a beleza do
objeto do seu amor.

O Geral ouviu complacentemente a sua narração e, ao retirar-se
ele, lhe disse:

— Vossa Reverência vai para Lisboa. Esperará e verá
então o quanto pode a Companhia.

Na capital do reino luso esperou. Dentro de um ano a condessa chegava em
um navio da Companhia, que a resgatara aos piratas de Argel, dos quais fora
prisioneira na embarcação a cujo bordo voltara de França
em busca de sua terra. A tripulação trucidada e passageiros
também, só ela escapara cativa.

Trazida secretamente do galeão Santo Inácio, da Ordem, desembarcava
em São Sebastião figurando como esposa de Martim Gonçalves
Albernaz, criatura da Companhia e despachado por El-Rei, almoxarife do paiol
da Alfândega…

— Olá, meu padre, por aqui, falou uma voz da margem da qual
se aproximaram.

O jesuíta e os companheiros ficaram surpreendidos. Naquelas alturas,
tão boa linguagem portuguesa era para admirar.

Investigaram a margem. Em pé com a espingarda descansada no solo e
inclinada a braço frouxo, havia um homem alto coberto de um largo chapéu.
Era o chefe de uma bandeira, talvez. Saindo de moitas, um a um, foram-lhe
aparecendo os companheiros. O jesuíta não tivera notícia
daquela entrada. Por aquelas épocas era assim; um punhado de homens
se juntavam e um belo dia seguidos de alguns índios e negros, partiam
discretamente para o interior encantado. De algumas dessas correrias os povos
guardavam memória, de poucas a história conservou o resultado,
mas da maioria, nem os alvadios casos da sua gente, pelos tempos em fora,
ficaram marcando nos valedos a grandeza do seu esforço. Apagaram-se.

O jesuíta estava em frente a uma dessas. Era pequena: quatorze paulistas
e alguns índios e negros.

— Pois não, irmão, retrucou o padre ao bandeirante, vou
em busca de almas para o purgatório. De que vos admirais?

— Padre, as cidades estão cheias de almas precisadas de vosso
socorro. Deixai-nos os sertões; quando eles se tornarem vilas, então
sim, padre, obrai.

A lógica do jesuíta não foi suficiente para demover
aqueles rudes. De manhã, no dia seguinte, logo ao romper d’alva
o chefe veio ao padre:

— Voltai, reverendo, voltai sobre os vossos passos. E a intimação
feita a berros pelo ajuntamento todo foi tão peremptória e enérgica
que o jesuíta no dia seguinte retomava o caminho pelo qual jornadeara
quatro longos meses.

A volta durou mais da metade que a ida. Foi penosa, mas, de esforço
em esforço, a missão chegou afinal ao ponto de partida.

O alvoroço da invasão do Rio enchia a vila. Apesar de já
se ter dado há meses, as notícias não eram seguras.

Padre Jouquières recolheu-se ao Colégio, onde dias depois recebeu
um dos estudantes do Colégio do Rio que tomara parte nos encontros.

— Onde foi o desembarque? indagava um outro jesuíta ao rapaz.

— Na Guaratiba. Marchou oito dias; e eu me gabo de haver sido um dos
primeiros a atacá-lo.

— Onde?

— Na lagoa da Sentinela, com Bento do Amaral Gurgel. É bravo
o Bento, meus padres! Com dois deles não haveria franceses capazes.

— E não o combatestes mais? interrogou o padre Jouquières.

— O francês desceu por Mata-Cavalos, frei Meneses o atacou no
Desterro e nós, com o Bento, esperamo-lo pelas ruas…

— Não se deteve Duclerc em parte alguma? continuou a interrogar
o jesuíta francês.

— Qual, padre, vinha que nem um raio. Na Rua d’Ajuda parou…

— Em que lugar?

— Numa casa, onde entrou…

— Que casa?

— Não me recorda agora…

Espere… Foi na casa do Almoxarife Albernaz, casa essa que foi destruída
por uma bala do Castelo.

— E o almoxarife e a mulher onde param?

— Albernaz morreu na explosão do paiol da Alfândega e…

— E a mulher?

— A mulher foi morar na Rua do Vaz Viçoso, próximo à
casa do tenente Gomes da Silva, onde hoje habita Duclerc.

O antigo marquês fez-se pálido, depois rubro. A custo continha
a cólera. Compreendeu o modo por que os dois lhe ludibriavam; e antes
que os seus interlocutores percebessem o seu estado d’alma, disse pausadamente:

— Amanhã irei para S. Sebastião. Padre, fazei preparar
as malas para a madrugada.

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