Sonhei com isto: o que é?

Lima Barreto

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O sonho sempre representou na nossa atribulada vida terrena, cuja regra é a insegurança de tudo, um grande papel profético. Em todas as pequenas crenças religiosas de toda parte, ele tomou uma atitude oracular indiscutida; e quase todos os agrupamentos humanos organizaram e organizam uma tábua para a sua interpretação. A humanidade, ou, para não errar, quase toda ela, está convencida de que o sonho é um aviso por parte do Mistério, de coisas boas e más que vão acontecer. Pode ser que ela tenha razão, pois, segundo me parece, a origem, a natureza e o mecanismo do sonho continuam mais ou menos inexplicados à luz dos estudos mais modernos. Não tenho certeza, mas leituras semi-esquecidas me dizem mais ou menos isso, não havendo, portanto, pessoa bastante autorizada para condenar a crença que, sobre o sonho, o povo tem. Os livros antigos, tão cheios de alusões a sonhos divinatórios, e Plutarco, que infelizmente já não tenho, não narram a vida de um herói que não se refira a eles. Não me recordo nitidamente de nenhum, mas creio não me ter enganado redondamente. As literaturas de todos os quilates, de todas as línguas, têm usado e abusado do sonho. Agora de pronto lembro-me de muita poucas obras literárias que o aproveitem; e, entre elas, aquela de que me recordo mais é a – Athalie -.

Quando estudei francês, já lá vão vinte e seis anos, era o prato de resistência da nossa tradução em aula, o famoso sonho da heroína dessa tragédia; ele me ficou quase inteiramente de cor. O nosso professor, o bom Dr. Frutuoso da Costa, antigo seminarista, que, ao que parece, não tomou ordens definitivas de sacerdote devido à exigência canônica de um bom resultado no processo de “puritate sanguinis”; esse nosso professor, como dizia, certamente aborrecido com a nossa leitura arrastada e indiferente, tirava os óculos de aros de ouro, agarrava o Théâtre Classique, chegava bem perto dos olhos esse trecho da tragédia bíblica de Racine, e declamava-o com entusiasmo eclesiástico de um patético sermão de Páscoa:

Je jouissois en paix du fruit de ma sagesse;
Mais un trouble importun vient, depuis quelques jours,
De mes prospérités interrompre le cours.
Un songe (me devrois – je inquiéter d’un songe?)

Quando o Dr. Frutuoso atingia à imprecação de Jezabel:

Tremble, m’a-t-elle dit, fille digne de moi.
Le cruel dieu des Juifs l’emporte aussi sur toi.

Por aí assim, punha toda força de voz que lhe restava, para acentuar bem a fala; e, certamente por causa de um tal esforço, não observava a sua teologia monoteica a heresia de haver um deus especial para os judeus, como se depreende dela. Por fim o seu furor dramático já era muito menor, ao recitar o final dessa fala de Athalie, quando ela tenta abraçar a sombra da mãe, que, no sonho, se aproxima do seu leito. Nessa passagem a sua voz era menos retumbante, havia menos ênfase nela, aproximava-se mais do natural e dizia:

Mais je n’ai plus trouvé qu’un horrible mélange
D’os et de chair meurtris, et trainés dans la fange
Des lambeaux pleins de sang et des membres affreux
Que des chiens dévorants se disputeient entre eux.

Parava nesse ponto infalivelmente, e nem mesmo exclamava – Grand Dieu! – frase com que Abner remata essa parte da narração do sonho profético da filha de Jezabel. O trecho é poderoso, vivo e desenhado em breves e poucas linhas fortes, mas nem sempre os sonhos literários têm essa grandeza, essa sobriedade e esse vigor.

Eça de Queirós, que talvez se picasse de realista, tem na A Relíquia uma visão ou um sonho muito pouco verossímil, longo e cheio de pitoresco e pinturesco; e Machado de Assis, no Brás Cubas, com a Summa, Santo Tomás de Aquino, o hipopótamo, etc., descreveu um com muita coerência para o destino literário que ele tinha; mas ambos são sonhos muito pouco comuns. Todos nós já sonhamos e sabemos bem que uma das regras gerais do sonho é a falta de nitidez de plano, é a confusão de coisas disparatadas, senão nas partes, no todo.

Proféticos ou não, seria um nunca acabar estar relembrando os sonhos registrados nas grandes obras literárias. Quase todos os heróis e heroínas de romances e poemas sonham; quando não é com seus autores, é por conta própria. É um efeito de que grandes e pequenos autores, bons e maus, se têm socorrido, e não seria eu quem havia de censurá-los por isso, mesmo porque, se não digo, como as namoradas desprezadas, que a vida é um sonho, tenho, entretanto, muito para mim, que ela é uma ilusão – o que talvez não fique muito aquém do que as garotas desta ou daquela classe, deste ou daquele país, dizem e resumi mais acima.

A interpretação dos sonhos tem merecido desde muito tempo sacerdotes especiais, mas particulares quase clandestinos não eram como aqueles áugures e arúspices de Roma, respeitados e oficializados, que prediziam os acontecimentos pelo modo de voar dos pássaros, pela maneira com que as galinhas e outras aves sagradas comiam os grãos. Contam os cronistas que não havia general que prescindisse de tal horóscopo antes de entrar em batalha. Hoje, não há mais disto; as missas solenes, porém, ressoam, pedindo-se que Deus favoreça com a vitória cada um dos inimigos, e são mandadas rezar por cada um dos partidos em briga. É pena, à vista disso, que o nosso Panteon seja reduzido a um único Deus, porque, além de tal fato atrapalhá-lo com pedidos contraditórios, impediu essa nossa pobreza de deuses que a guerra última permitisse à Discórdia levar a sua obra até ao céu e, de lá, o Empírio fazer descer Fochs, Hidenburgos, Lloyds Georges, Wilsons e Clemenceaus (não! estes últimos viriam do inferno), todos eles divinos para combater pró e contra Mercúrio ou São José, se este fosse Deus… Digo São José porque é patrono dos nossos bancos católicos…

Seria um belo espetáculo – não acham?

Reatando, porém, a narração, tenho a lembrar que, se a nossa época não possui sacerdotes destinados à interpretação de sonhos, criou, entretanto, essa maravilha que é o Dicionário dos Sonhos, livro barato e portátil. Já folheei um e observei que a maioria das predições se encaminha para o amor e para a fortuna. Os poetas dizem que o Amor é irmão da Morte. Está aí uma afirmação que o Dicionário desmente: o Amor é irmão do Dinheiro. Só não ama quem não tem dinheiro; entretanto, tenho conhecidos que me afirmam que só se ama para ter dinheiro. Eu não sei… o povo, porém, aquele verdadeiro, aquele que não sabe ler e escrever, tem uma regra muito diferente para interpretar os seus sonhos.

— “Inácia! Sonhei hoje que estava arrancando um dente. O que quer dizer?” pergunta uma lavadeira à outra.

— “Filha! Credo! Reza um Padre Nosso e uma Ave Maria para as almas”, responde a companheira e continua: “Sonhar com dente é defunto na família”.

Nunca pude atinar com a relação que há entre uma coisa e outra; mas deve haver. Voz do povo, voz de Deus. Sonhar com excremento, é fortuna; sonhar com defunto, é saúde; sonhar com carne crua, é crime; e assim por diante.

Onde foi o povo descobrir essas equivalências?

Não há ainda para os sonhos aplicados ao jogo do bicho uma teoria interpretativa e segura, mas já se esboça uma, apesar das dificuldades. Conto um caso. “Sinhá” Maria sonhou um dia com um burro em cima do telhado de uma casa. Pediu cinco mil-réis adiantados à patroa e jogou-os no burro. Durante o tempo em que preparava os seus quitutes, foi sonhando com o vestido, as rendas, os sapatos, cheios de “manicolas”, enfim com tudo aquilo com que havia de se revestir para ir à festa da Glória no Outeiro. Veio a tarde, correu a loteria e saiu o gato. Ficou triste, a “Sinhá” Maria; e pôs-se a analisar o seu .sonho, chegando a esta conclusão:

— “Burra sou eu; nunca burro andou em telhado. Quem anda em telhado, é gato.”

Desde tal descoberta da “Sinhá” Maria ficou assentado entre os jogadores de bicho que burro, cobra, avestruz, coelho e qualquer outro animal, no telhado, é gato.

Pobre “Sinhá” Maria! Ela não tem motivos para se amaldiçoar! Todos nós vemos muitos burros nos telhados e afirmamos logo que é bicho muito inteligente; mas, nem por isso, acertamos. Passam-se anos e nos convencemos de que nem burros eram. Eram bonecos de papelão. Eis aí!

Há muitos modos de nos enganarmos com os nossos sonhos; um deles é ao jeito da analfabeta e simples “Sinhá” Maria; um outro é ao nosso; sabemos ler e, para isto ou para aquilo, precisamos de auto-ilusões…

Hoje, 17-7-1919

 

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