Levanta-te e caminha

Lima Barreto

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Pois para que saibais que o Filho do Homem
tem poder sobre a terra de perdoar os pecados,
disse ele então ao paralítico: Levanta-te, deixa
o teu leito, e vai para a tua casa.
S. Mateus.

O Sr. Walfrido Souto Maior, sob esse título, que lembra todo o poder divino de Jesus e a suave e ingênua poesia dos Evangelhos, acaba de publicar um poema, impresso na conhecida tipografia – Revista dos Tribunais – hoje uma das mais procuradas pelos nossos intelectuais de todos os matizes.

A leitura do poema do Sr. Walfrido logo demonstra que este não é o seu primeiro. Versifica com muita facilidade e abundância, até ao ponto dessa facilidade traí-lo, deixando perpetrar pequenos desleixos.

Sou de todo incompetente em matéria de versificação; mas, não é preciso ser muito forte nela, para sentir no Sr. Souto Maior a luz e a sombra de seu talento poético.

O tema do poema é todo espiritual. O autor, depois de mostrar os fatores de nossa queda moral, mostra os outros da nossa elevação, que, vencendo aqueles, farão que se realize esse milagre a célebre ordem de Jesus a um paralítico: “surge et ambula”; levanta-te e caminha.

Para que o milagre se opere, diz muito bem o autor:

Trazemos dentro de nós sentinelas perdidas
Que devem gritar sempre e muito forte: alerta!
Porém, que vão passando a vida adormecidas,
Deixando a porta da alma inteiramente aberta!

Devemos despertar depressa esses soldados,
E dar-lhes disciplina, enchê-los de valor;
Pospontar-lhes na farda alguns galões dourados,
Fazendo-os da razão ouvir sempre o tambor!

Precisamos trazer de pé as energias
Que vivem dentro da alma inertes, sem ação;
Debelar num sorriso os golpes de agonias
Que trazem sempre o luto ao nosso coração!

Uma dessas sentinelas perdidas que é preciso despertar, é o pensamento que, numa formosa poesia, talvez a mais bela parte do seu poema, ele aconselha como agir.

Não posso deixar de ceder à tentação de transcrever o final desse trecho do poema, cujos alexandrinos tem uma grande ressonância e maravilhosa amplitude sonora.

Ei-lo:

Deve ser como a planta o pensamento humano:

Livre deve nascer, desalogadamente
Florir; porque, se a planta enxertam, nem um ano
Conserva o seu vigor, e muito lentamente
Perdendo a vida vai, e morre, e se aniquila.
É que a fonte da vida, a verdadeira mola
(A sua essência enfim, essência que se asila
Na própria Natureza) arrefece e se estiola.
Porém, se a mesma planta ou tronco, se a mesma hera,
Apenas puro sol aquece onde ela esteja,
Rebenta, alegre, e vai saudando a primavera,
Sem nunca precisar das bênçãos de uma igreja!

Percebe-se bem, por aí e por outras partes do seu poema, que o Sr. Souto Maior está familiarizado com a técnica do verso, mas ama sobretudo o alexandrino, à Junqueiro; e o heptassílabo, à moda de Castro Alves. Na primeira parte, logo na segunda poesia – “Anatomia Ideal” – que, como todas do livro, demonstra estudo e uma visão particular do autor, há décimas de fino gosto do grande poeta baiano. Passo para aqui esta que é típica:

Vi Lamarck nesse pego
Da camada subterrânea,
Procurando como um cego
A Geração espontânea!
Estava lá Goethe – o sábio – !
Herschel sustinha o astrolábio,
Querendo falar ao Sol;
Vi, como Laplace, Linneu,
Discutindo o valor teu,
Com muitos sábios de escol!

Isto não diminui em nada o valor da obra, pois esse aspecto, por assim dizer, extremo, encobre uma originalidade sempre latente do autor, cuja visão do mundo e da vida, baseada sobre fortes leituras que se tocam aqui e ali, é transfigurada de um materialismo genuíno, que parece ter sido a primeira crença do autor, por um espiritualismo fluídico que perpassa por toda a obra.

O trabalho do Sr. Souto Maior, não só dá a capacidade de pensador, como também mostra todas as feições íntimas do seu estro e do seu temperamento literário.

“Coração-Alma” com que abre a segunda parte do poema, é uma poesia lírica de raro valor e apreço. Daria toda ela aqui, se não temesse parecer que queria assinar trabalho alheio; mas não posso deixar de citar esta estrofe, tão sentida e tão profunda, que os leitores ficarão admirados de não ter eu tido ânimo de pôr também nesta notícia as outras. Vejamo-la:

Não te maldigas nunca, e nunca te exasperes
Contra a dor que te oprime; o espinho em que te feres
Criaste-o mesmo tu:
Quem a túnica rasga, embora a mais singela,
Não pode maldizer o frio que o regela,
Se quis mesmo andar nu!

Pelo pouco que citei, poderão avaliar os leitores do raro valor do livro do Sr. Walfrido Souto Maior. Era meu desejo alongar-me mais na análise do poema: mas, para tanto não me sobra tempo, assoberbado como ando com pequenos trabalhos que me forneçam o necessário para as despesas imediatas da vida. Contudo, vai aqui o preito da minha admiração por tão raro poeta, no qual, apesar de conhecer eu homem há tantos anos, me surpreendeu encontrar, não só um bom poeta, mas também um singular poeta.

Argos, n.0 9-10, outubro e novembro de 1919

 

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